LIVRO SEMENTE

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Lilian Maria Leite de Souza

Uma Semente no Mar Vermelho

2010


Copyrigth©2009 Lilian Maria Leite de Souza. Direitos Reservados. (vishinarosa@gmail.com)

Ilustrações Rina Johnson (PJohnson@atarde.com.br) Capa Dania Azoubel Revisão Silvia Baqueiro Proj. Grafico e paginação eletronica Matilde Eugênia Schnitman & Esperança Pardo

SOUZA, Lilian Maria Leite de Uma Semente no Mar Vermelho/ Lilian Leite de Souza. Salvador: 2010 104p.


Agradeço as palavras do avô fogo, dos meus pais, de Nana, de Rô, de Roger, de Dr. André Luis Romeo, de Dr. Aureo Augusto, de Soninha, de Joca, de Cacinha, de Cleide, de Rina, que me fizeram acreditar na possibilidade de trilhar em direção ao corpo-receptáculo, reacendendo a chama esquecida da vida.



Apresentação Meu cuidado quanto a este espaço é o de não transformá-lo em um campo de justificativas, já que parece ser este o mal dos homens quando precisam desnudar sua Alma. Não acredito que os títulos acadêmicos possam dizer mais ou menos sobre mim; primeiro porque não quis colecioná-los, segundo porque pouco ou nada podem expressar da verdade do meu coração. Considero-me um ser que busca se colocar no mundo de forma desperta, visando apreender a linguagem oculta dos mistérios da vida, dos seus ritmos e fluxos; vida reduzida, por muitos, a um “receptáculo” de guerras, fome, misérias, injustiças sociais, que arremessam ao abismo de impossibilidades. Nesse lugar o bem estar é raro. A tentativa de sobreviver impera. Não há espaço para sonhos, imaginação, magia, apenas para o desalento, depressão e o vazio infértil mantenedores de um profundo estado de sono no homem, a conduzi-lo apenas ao que pode tocar e conceber da sua rotina escravizante. Este livro retrata a jornada em direção ao despertar do meu próprio sentido através do enigma endometriose ovariana. A intenção é a de deixar que as cores das experiências reflitam suas variações no branco do papel, confiante no seu poder de comunicação. Não imaginava que da tristeza do diagnóstico pudesse saltar à alegria das revelações, adquirindo a possibilidade de tomar posse do que a vida desejava para mim.


Não vislumbro estabelecer fórmulas para a “cura”, como mapas a serem seguidos meticulosamente por um corpo que apresente a mesma sintomatologia. Acredito que a cura seja uma mudança de estado de consciência e de frequência energética, e não a eliminação de um sintoma puramente, que se traduz numa experiência única no caminho de cada ser. A trajetória exigida por ela requer coragem e disposição; sem essas forças aliadas nada poderá acontecer, já que quem decide percorrê-la jamais será o mesmo. Costumo comparar o processo da cura com a elaborada tarefa de tecer um tapete. Todo cuidado, paciência, dedicação, atenção e confiança são essenciais para a criação de um espaço seguro e acolhedor dos movimentos precisos dos fios da vida, ansiosos por delinearem uma nova qualidade de percepção da vivência interna. Nesse laborioso trabalho nada se perde; todos os fios são fundamentais na construção da história a ser contada. Diante dos erros, uma parada para reflexão. Diante dos acertos, a compreensão e a constatação da sutileza que permeia o que é material e o que é imaterial em nós. É a certeza de que existem mãos sobre as nossas, ávidas por manifestar os mistérios que sustentam e animam o corpo-vaso que é cada ser. A cura é o reflexo da dança afinada dos fios que se comunicam, expressando a sintonia entre o desejo do criador e o de cada homem. É o anseio da vida em adquirir forma, forma a ser exaltada e compartilhada com muitos. Não creio que as doenças tenham o mesmo significado em cada


corpo. Cada doença, apesar das similaridades dos sintomas, contam histórias singulares da natureza ferida de cada homem. Enquanto não levarmos em consideração esse detalhe, estaremos diante de portas trancadas cujas chaves se perderam na ignorância e insensatez. Quando decidi tecer meu tapete, assumi o compromisso de reconhecer e valorizar os múltiplos recursos e as forças que pudessem surgir no transcorrer do caminho, somando mãos, pensamentos e inspirações à construção de um novo estado de Consciência. Os sonhos, os rituais, a alimentação, os procedimentos naturopáticos, as orações, o cuidar da terra com suas flores e ervas medicinais, os banhos de ervas, os chás, o fogo, a lua, as estrelas, Maria Madalena, as Mulheres das Estrelas, a Linhagem das Rosas, a acupuntura, a homeopatia, a massagem, os animais, o canto dos pássaros, o estudo das leis essenciais, todos esses recursos, cada um no seu tempo, remeteram-me ao encontro com o poder de recepção, com as histórias, pedidos, paixões mais secretas do meu feminino e do seu impulso criativo, permitindo-me trilhar por dez portas-portais uma jornada. Espero que a partilha das experiências deste caminho reverberem em luz em cada corpo, masculino ou feminino, fazendo-o restituir o significado e o sentido da sua condição receptiva sensível, iniciando, assim, o caminho em direção à compreensão do que em essência o sustenta.



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Agradecimento Apresentação Uma Semente no Mar Vermelho

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Primeira Porta Endometriose Ovariana

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Segunda Porta Corpo e Ovários

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Terceira Porta Sangue

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Quarta Porta Ventre

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Quinta Porta Princípio Feminino

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Sexta Porta Sexualidade

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Sétima Porta Cura

79

Oitava Porta Água e Fogo

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Nona Porta Terra e Ar

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Décima Porta Portal

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Referências bibliográficas

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Uma Semente no Mar Vermelho Aguardava o momento. Aguardava que a inspiração batesse à porta anunciando o instante de dar forma às linhas dos tempos. Sabia que na hora marcada pelos céus a Alma não hesitaria. Foi quando no corpo de um sonho ela se apresentou demarcando o início da jornada. Estava em um local desconhecido. Havia a presença impassível e silenciosa de uma mulher ao lado de uma roleta, controlando a entrada e a saída das pessoas de uma porta. Observei atentamente os movimentos e decidi passar por baixo da mesa posta ao lado da roleta. Fui repreendida pela mulher que pediu que retornasse e seguisse o caminho exigido para todos. Para minha surpresa apertou um botão, dando-me a autorização para passar sem que a roleta registrasse minha presença. Em silêncio caminhei em direção à porta que dava acesso a uma grande sala cujo fluxo de pessoas era intenso. No lado esquerdo da sala a maquete de um mapa suspensa no ar, construída em papel branco, guardando em seu centro um frasco de perfume de cor azul celeste de uma delicadeza indescritível.

Ao despertar pela manhã tive o cuidado de registrar cada detalhe do sonho como de costume. Ao longo do caminho com os sonhos tenho aprendido sobre o zelo requerido por uma

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interpretação. Afinal a busca em compreender seu significado nunca deve aprisionar o quotum de força criativa da qual ele é mensageiro, já que é essa a energia capaz de remover e transformar os hiatos existentes entre os mundos internos e as múltiplas dimensões que compõem a existência. Nenhuma interpretação deve se esgotar nela mesma. Seu compromisso reside em abrir espaços seguros para que a renovação, a revelação e a cura, tornem possível o acesso a diferenciadas linguagens e organizações. Uma interpretação não pode esquecer que seu objeto de investigação pertence à ordem imaterial. No sonho havia uma passagem controlada por uma mulher. Em cada passagem a proteção de um guardião e com ele as exigências para todo aquele que anseie acessar o mistério ali protegido. Sua presença personifica sempre um desafio, passível de ser traduzido por um tema ou questão, muitas vezes, mobilizadora para o sujeito. Caberá ao homem, diante do seu desafio, identificar a senha capaz de conduzi-lo ao outro lado do portal-porta, garantindo-lhe obter as informações pertinentes a sua Alma.

No sonho o silêncio e a firmeza do guardião eram marcantes. A presença daquela mulher refletia meu desafio: o meu próprio corpo. Sua senha: a dimensão da receptividade feminina. Para onde a presença daquela mulher encaminhar-me-ia no corpo? Todo portal carrega consigo inscrições e com elas o âmago do seu funcionamento. Decifrar seu enigma é o que norteia e dá sentido à jornada. Nesse tempo-espaço as antigas con

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Uma Semente no Mar Vermelho cepções nada podem revelar sobre o desafio apresentado. Reafirmá-las é o mesmo que não ter a permissão para comungar com a realidade abrigada pelo outro lado da passagem.

O sonho solicitou-me considerar o lugar do corpo e seu poder receptivo como condição essencial para atravessar o portal-porta. Não poderia continuar driblando o exigido. Decidir seguir adiante seria assumir a responsabilidade de deixar marcas por onde passasse ao tocar novos sentidos. A imagem da maquete impregnou meus olhos. Era um papel alvo, suporte das inscrições de um mapa, com suas linhas convergindo para o centro onde repousava um frasco de perfume. Alcançar esse centro representava a realização de uma obra. Na alvura do papel o chamado para decifrar as informações ali existentes e a reconhecer as marcas dos tempos nas terras internas de uma Alma errante. As essências sempre fizeram parte do meu caminho, recordando os tempos antigos e a pureza dos estados originais. Símbolo da luz, das virtudes, da beleza, da alegria, da completude e da realização. Sua presença no centro da maquete personificava o eixo, o cerne de sustentação dos registros ali existentes à espera de serem traduzidos por uma linguagem compreensiva ao homem.

A partir deste sonho resolvi navegar pelas águas dos rios internos, buscando dar forma às informações acessadas em meu mapa corpo. A tinta do sangue se transformaria na testemunha fiel da intimidade das dimensões desse mapa, ainda muda pela falta

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da escuta que reconhecesse seus vales, precipícios, suas moradas. Entregar-me ao silêncio permitir-me-ia resgatar o valor do sangue dos antepassados com seus ensinamentos e tradições. Poderia falar das lágrimas de alegria e de tristeza ao longo do caminho. Descobrir que sangues correm e deságuam em meu sangue seria um mergulho no que sempre permaneceu intocado nos ovários pela presença do sintoma endometriose ovariana. Nessas linhas a inquietude visitou-me. Não sei se o medo que me invade é o de mostrar para o mundo o que partilho comigo mesma em meu silêncio solitário ou se é de ser surpreendida por alguém que em mim eu desconheço. De qualquer forma nada posso fazer para conter esse fluxo. Ele parece ter adquirido vida própria. Resta-me somar forças e aceitar a ponte – o papel, para selar o compromisso entre o sangue e a expressão da sua sabedoria, entre o que está dentro e fora de mim, entre o céu e a terra.

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Primeira Porta

Endometriose Ovariana A endometriose representa uma das patologias mais frequentes da atualidade, afeta cerca de 10% a 15% das mulheres em idade reprodutiva. A incidência de casos tem levado a ciência a identificá-la como a doença da modernidade. Conceitua-se endometriose como a presença de um implante de tecido endometrial em um foco extra-uterino, seja ele de epitélio glandular ou estroma endometrial. A causa dessa sintomatologia ainda é desconhecida, sendo levantadas algumas hipóteses para o seu aparecimento no corpo feminino: a menstruação retrógrada, a hormonal, a hereditariedade e a imunológica, com sintomatologias variáveis. Os estudos costumam levantar que o perfil das mulheres portadoras dessa sintomatologia é o de ansiedade e stress. Os fatores de risco apresentados nesse quadro seriam: o fluxo menstrual abundante e longo, os ciclos menstruais curtos, baixa paridade, menarca precoce, longo intervalo após a última gestação, obstrução do fluxo menstrual, entre outros. As queixas mais frequentes costumam ser: a irregularidade menstrual, as alterações urinárias e intestinais cíclicas durante o período perimenstrual. Em 1992 a patologia endometriose passou a ser considerada conforme sua profundidade e localização: ovário, peritônio e septorretovaginal. O acometimento do septorretovaginal repre-

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senta o principal alvo de preocupação na atualidade com essa doença, em razão da intensidade dos sintomas e das dificuldades terapêuticas maiores com o comprometimento deste local. Não há corpo que permaneça calado por todo tempo. Não há corpo que não encontre caminhos, mesmo que tortuosos, para expressar seus anseios e necessidades. Não há tempo que não seja aplacado pela penetrante exigência da vida em se desenrolar e frutificar. Diante da inevitável necessidade em participar ativamente dos desdobramentos da vida, fui convocada a tomar consciência do corpo e dos seus registros através da presença de um cisto endometriótico no ovário esquerdo. O que possa eu ter feito para merecer isso? Esta foi a primeira indagação envolvida em revolta. Mas em seu silêncio o corpo sabia do caminho percorrido até aquela condição. A presença dessa sintomatologia remetia-me a pontos de inquietude constante na relação com o corpo feminino, dos seus desejos, do seu sangue, da gestação, do masculino. Sentia o ventre como um fardo a ser carregado com todas as culpas, medos, proibições e rigores. Frente ao diagnóstico percebi ter caído em uma armadilha criada por mim mesma. Nada mais a fazer. Sem alternativa para fugas. Mas como buscar o fio de toda aquela complexa rede se o pavor rondava diante da possibilidade de mergulhar nas infinitas interrogações? O impasse configurou-se. O corpo convidava ao retorno de um significado, ao resgate de uma instância imaterial em mim. Duas foram as sugestões lançadas pelos médicos para a possível solução do quadro: a gravidez e a utilização de medicação. Em

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ambas as possibilidades o olhar sustentava-se no sintoma, o corpo havia se retirado em suas histórias. Como seria gestar uma criança em um mar de tamanha inconsciência? Como conceber uma criança sem desejo, apenas pelo pavor do fantasma da infertilidade? Definitivamente esse não era o caminho a ser seguido naquele momento. Inquieta e confusa, iniciei a medicação. Durante sete meses acompanhei as alterações do corpo na presença dos hormônios. O cisto regrediu. Contudo algo em mim dizia que aquele havia sido apenas o primeiro passo, de uma série, em direção ao estado de apaziguamento interno. O que fazer? Uma medicação não poderia aplacar por muito tempo o apelo do corpo. O que precisava ser resgatado desse mar? A única certeza era a de não poder transformar o sintoma em uma sentença capaz de fazer crescer suas raízes no ventre. Restou-me selar um compromisso com a vida passando a considerar o sintoma como uma porta a ser aberta e não como um túmulo a aguardar a morte, colocandome, assim, disponível a acessar as memórias ali ocultadas. Estava diante do enigma endometriose e, como todo enigma, do sincero desejo de ser decifrado. Os sintomas, como mensageiros, ecoam vozes carregadas de memórias de violação, abuso, esquecimento e desrespeito. São apelos para que o homem retorne ao caminho esquecido da fonte. São pedidos explícitos de reconciliação e reconhecimento do que de fato anima sua existência. Cada corpo abriga um elaborado e sensível sistema de forças. A particularidade de cada campo traduz os desafios individuais de cada sujeito ao longo da jornada pessoal, permitindo-o reconhecer,

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desenvolver e aprofundar as forças disponíveis em seu campo, em prol de uma nova ordem de sustentação e percepção pautadas nas leis da essência. As experiências individuais estão carregadas de cargas suficientes para acionar as redes de força desse campo. Os sintomas, nesse contexto, são importantes marcadores dos caminhos percorridos no corpo pelas energias, como dos seus desvios e fixações no campo. Através deles é possível retomar informações ocultadas da consciência, como também identificar a utilização inadequada do potencial de forças reservado a cada sistema. Dentro dessa perspectiva, cabe ao homem reconhecer e transitar nas diversas realidades paralelas que o compõem, elevando e expandindo sua qualidade vibracional, rumo à percepção do essencial encoberto pela pele do corpo. Ele é incitado a desvendar seu segredo. Mas como atentar para essa realidade se sua mão já não sabe mais sentir o toque de uma flor? Se seus olhos não mais diferenciam a luz da sombra? Se suas palavras perderam a medida da coerência e do equilíbrio? A mesma força que cria é a mesma que destrói. O que assegura ao homem a construção de uma nova base de vida é a canalização do potencial de força em seu campo, como o veículo de comunicação entre o céu e a terra. A função dos sinais e dos sintomas é clara: mostrar a direção, dar sentido à busca diante do enigma apresentado pela via da doença. Em que momento da jornada a fonte foi esquecida? Em que momento o homem se desfigurou, misturando-se nas identificações e projeções das polaridades? Em que momento tornou-se seu adversário, fixado nas zonas de desprazer e desesperança? Preso à própria crueldade o homem segue sua jornada surdo e

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cego, preso à inflexibilidade das posturas, concepções, valores e comportamentos. Onde há doença há interrupção, desorganização, fechamento e esquecimento, aspectos que contribuem com o alheamento e a inconsciência humana. O homem adoece ao se colocar à parte do fluxo da existência, dissolvendo seu sentido primordial nas distrações do que estabeleceu ser o mais importante para si mesmo dentro do reduto diminuto do que conhece sobre ele e o Universo. Na ilusória ânsia da conquista externa ele se desconhece. Nada sabe do germe silencioso que abriga nas entranhas. Talvez passe toda a vida à parte desse fato. Talvez sua Alma encontre uma brecha e se apresente através da linguagem emaranhada dos sintomas na tentativa de despertá-lo para uma nova ordem e à tomada de consciência da vida clandestina que elegeu com seus atalhos, abandonos e desmedidas. A presença dos sintomas convoca a parada, a reconsiderar, a prestar atenção, a tomar a decisão de seguir em direção a um nível mais expandido de percepção. A doença quando considerada em seu significado personifica a esfinge, aquela que coloca o homem diante do enigma que ele é. É ela a guardiã da porta do templo do corpo. Essa porta só poderá ser aberta quando o homem se colocar disponível a percorrer suas estradas em direção aos registros abandonados por existências responsáveis por revelar sua real identidade. Sem a restauração da confiança no corpo os passos em direção à construção do estado de cura são ineficazes em seu intento. Sem a dose devida de força, determinação e compromisso as ações

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não serão capazes de dar sustentação às memórias emergentes do corpo e à força por elas liberadas para as necessárias mudanças vibracionais internas. Quando hesitamos adentrar na realidade apresentada pela doença e seus sintomas, tendemos a reduzir o processo de abertura e resgate pessoal à esterilidade. Apesar das resistências, a natureza interna não paralisa diante de um não. Os sintomas nas múltiplas doenças retratam essa condição. A viagem para dentro da dimensão corpórea para muitos parece insignificante. Por trás das costumeiras justificativas, dos ceticismos exacerbados, dos adiamentos, das hesitações, há o medo. O desconhecido fascina, mas tende a paralisar em dados momentos. Tende a nos encaminhar a zonas de restrito conforto, mescladas pela vulnerabilidade e desorganização. O homem encontra-se dividido, imerso no mar de registros órfãos. Conteúdos estéreis em seu isolamento, cujos fios de ligação e comunicação foram perdidos, imperando a alienação como base de funcionamento. Acredito que essa tem sido uma das causas para tantas doenças na atualidade. Sem que o corpo seja concebido em suas necessidades mais genuínas, a dança dos sintomas se apresentará exigindo ao homem espaço para novas linguagens. A solicitação do corpo é simples: o mergulho em direção ao aprimoramento da Escuta Interna. Nesse território não vale o controle, a razão, a lógica. Impera o contato, a experiência viva, a percepção sensível, a imaginação, a confiança firmada a partir da sabedoria da natureza interna. Resta ao homem a entrega à nova ordem que tem por base a essência.

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Precisava saber mais sobre meu enigma. Precisava mergulhar no mundo desconhecido do meu Nome – local de repouso dos mistérios da criação reservados para mim. Iniciei o tecer do fio da vida no desejo de escutar as vozes da terra e do céu em cada célula do corpo que me fora entregue a zelar. Ultrapassei a porta.

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Segunda Porta

Corpo e Ovários Meu “velho” corpo. Como pouco compreendo da sua senda, dos seus anseios, dos seus mistérios! Peço nas orações a permissão para adentrar no veio da sua sabedoria, honrando seu caminho.

Como numa casa abandonada, podia apenas escutar vozes de pesar. Era um corpo que aprendera a existir através dos incômodos. Talvez por isso estar presente fosse tão difícil. Convivia com um estranho envergonhado, frio e ausente. Foram diversas as experiências dolorosas até que pudesse vivenciar a possibilidade de estar em um corpo encarnando-o com respeito. O corpo humano configura-se num engenhoso laboratório através do qual inúmeros experimentos são realizados. A inteligência que o anima parece não pertencer a este mundo! Formado por um sistema arrojado de comunicação elétrica que ultrapassa a dinâmica temporal, abarca infinitas informações que rompem com viciosas e restritivas concepções da relação do homem com o fluxo do existir. Somos dotados das portas dos mundos e nada sabemos sobre isso. Por onde caminha cada corpo? Ao retornar os sentidos para as entranhas, percebi que durante toda a vida me preparei para uma batalha pelo pavor de ser destruída pelo que em mim habitava. O corpo, uma fonte de ameaça. Tocar seus caminhos era o mesmo que viver o terror desse encontro. Foram dias, noites, na presença da angústia e do

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medo frente à possibilidade de aproximar-me desse estranho e percorrer suas avenidas, bairros, encruzilhadas. Temia perder-me nesse labirinto, nas ruas sem saída do tempo. A presença do labirinto sinalizava a existência de um segredo e a urgência do reconhecimento dessa condição no corpo. Contudo, resistia na esperança que os segundos se tornassem eternos e não precisasse desvendar o que era pedido. Pura ilusão. Quanto mais hesitava mais o tempo se tornava implacável. Estava diante do meu nó cego. Qualquer passo me conduziria exatamente para o ponto mais vulnerável da minha história. Há momentos em que as estratégias não mais funcionam e a única salvação é a entrega, por mais que pareça absurda e avassaladora. Quanto mais tenho permissão para adentrar nos mistérios do corpo mais observo a força inteligente que emerge de um sistema tão delicado. São tênues fios que se encontram e tecem as histórias da história de um ser infinito. Cada fio é preciso e fiel às exigências das substâncias que o compõem oriundas de diferentes espaços, garantindo a textura e a consistência necessárias no tecer dos desdobramentos da vida no corpo. Temos a fidelidade da entrega e a precisão da confiança como base dessa organização. Caminhar sem reconhecê-las é estar à parte do processo. Um único homem tem a possibilidade de ser composto por diversas substâncias pela diversidade dos fios que sustentam sua trama. É na dinâmica das tramas desses fios que os órgãos se delineiam e adquirem suas respectivas formas e impressões, singularidades ainda dissolvidas no mar da inconsciência. As inúmeras pulsações e vibrações presentes no corpo quando reunidas definem a melodia individual, a reverberação

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do som do Universo na terra através de cada homem. As memórias abrigadas por cada órgão alimentam o tom melódico que garante a qualidade das experiências a serem vividas pelo corpo, compondo sua canção. Temos um corpo habitado por vários povos, galáxias e dimensões, e seguir em sua direção é descobrir a sinfonia que a ele fora reservada. Viver consciente da recepção e transmissão do corpo passa a ser uma construção diária. Como aprendiz o homem terá que desvendar suas substâncias e vibrações, reconhecendo os povos que o animam em prol da canalização e elevação das forças existentes no seu repertório individual. No desvendar e na apropriação sucessiva das informações do seu campo, caminha seguro rumo ao reconhecimento da sua tarefa na Terra. Seus passos o viabilizam retomar a consciência do espelho d’água que é o corpo, reflexo preciso dos múltiplos sistemas energéticos dos ciclos da vida. O ventre, como área de choque, sempre recebeu o primeiro impacto de qualquer alteração na dinâmica habitual do funcionamento do meu corpo. Os ovários, nessa perspectiva, foram o convite para o desvendar das terras do ventre. Sua sofisticada engrenagem se comprometia a cada ciclo menstrual pela presença do tecido endometrial, sujeito a perda das suas funções diante do Mar Vermelho de sangue. O que o vermelho do sangue represado nos ovários queria comunicar? Que condições conduziram essa célula do endométrio para essa área? E por quê? Os estrogênios são os fatores hormonais de maior importância na maturação sexual da mulher e na preservação das características físicas da feminilidade. A fonte básica desses hormônios são os ovários. Responsáveis pelas funções endócrinas e

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reprodutivas do corpo feminino, sofrem diversas transformações no nível histológico, morfológico e bioquímico, transformações estas relacionadas à sua fisiologia, ponto que denuncia sua inquietude anatômica e estrutural. No nível puramente hormonal, os estrogênios são a principal forma endócrina através da qual o princípio feminino se manifesta, enquanto que os androgênios, a forma endócrina através da qual o princípio masculino se manifesta. A observação do funcionamento endócrino na mulher leva a crer que a plena manifestação endócrina do princípio feminino está paradoxalmente na dependência de uma sutil manifestação endócrina do princípio masculino. Dessa maneira, a relação entre os androgênios e estrogênios nos ovários é crítica e paradoxal. Parece existir uma “luta” entre os hormônios masculinos e femininos nessa área, ressaltando a inquietude que caracteriza as gônadas femininas. Os folículos ovarianos se esforçam para transformar os androgênios em estrogênios, não só para garantir o bom nível estrogênico de que a mulher necessita, como também para evitar a atresia que pouco a pouco vai consumindo os ovários. A célula do endométrio instalada no ovário esquerdo era uma estrangeira. Acompanhava o cíclico ritmo da lua sangrando todo mês, armazenando o sangue em uma bolsa. A sabedoria do corpo é extraordinária. Encontra meios para preservar a vida e sua ordem a qualquer preço. Sentia-me transitar no tênue fio entre a vida e a morte a todo instante. Os registros pediam reverência, contudo não bastava desejar ir ao encontro deles. Seria preciso aprender a seguir, antes de tudo, as condições determinadas pelo corpo e

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aguardar sua autorização para que cada passo fosse realmente em direção do que o sintoma protegia. Nem sempre a autorização é explícita, podendo se dar através de uma súbita sensação de abertura, um sentimento de confiança, um insight, um sonho, uma imagem, por exemplo. As imagens, os símbolos, foram importantes reflexos da fonte ao longo da jornada do ventre. A concha de madrepérola rosada, o primeiro símbolo dos ovários. Em seu mistério evoca a origem – as águas com sua fecundidade; em seu formato evoca o órgão sexual feminino, traduzindo seu aspecto erótico e fecundante. Associa-se à lua e aos movimentos cíclicos da vida (nascimento, morte e renascimento). Portadora da força mágica é representante da entrada da gruta, da câmara do tesouro que guarda em seu interior a pérola. É a pérola quem revela o princípio yin e a feminilidade criativa, assemelhando-se ao feto, responsável por inserir o homem no ritmo cósmico regenerador. Como emblema do amor e do casamento, retrata o centro místico da sublimação dos instintos, da espiritualização da matéria, da transfiguração dos elementos. Atributo da perfeição adquirida mediante uma transmutação, traduz-se pela ciência do coração. Segundo a lenda, surgiu pelo efeito do relâmpago ou pela queda de uma gota de orvalho na concha, sendo produto da atividade celeste em ação a reafirmar a presença de um embrião responsável pelo nascimento corporal ou espiritual. Associa-se à criança, à riqueza e à ciência. A concha e a pérola definem o caminho em direção à síntese. O sintoma na área feminina convocava mortes e renascimentos, transmutações das densas camadas internas, que pudessem preservar a integri-

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dade do germe da vida e dos seus frutos. O reconhecimento das pedras raras dos ovários, do seu poder de captação, filtragem e manifestação da origem energética de cada ser, das sementes da eternidade contidas por eles, seria um convite ao resgate de um antigo tesouro. A cada mulher seria pedido o assumir o corpo como um local de repouso do substrato da origem, tornando-o um catalisador e canalizador de forças. É o ovário o órgão autorizado pelo criador a criar corpos a partir da essência dos encontros. Suas sementes– pérolas, a representação dos mundos passíveis de serem criados e experienciados e o embrião, o feto, a criança, o coroamento desse processo alquímico. Ao menstruar o corpo revela a sua face oculta, o que no seu silêncio se processa durante o ciclo de vinte e oito dias. Assumir o sangue é reafirmar as ligações entre os corpos femininos e sua ancestralidade. Ansiava honrar as raízes, desvendar o segredo do sangue, compreender seu poder e sua linhagem. Desejava sustentar a vida, seu impulso criativo e sua força de manifestação. Abri a porta.

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Terceira Porta

Sangue Fiquei a pensar na cor vermelha do sangue. Se a ele foi dada essa cor, sábia foi a intenção da natureza. Nenhuma das cores do espectro é mais quente, mais viva que o vermelho, a abrigar em seu cerne o impulso da vida, da morte, a força vital e o calor do fogo. Como vermelho claro, manifesta o lado brilhante, masculino, diurno e centrífugo, que incita a ação. Como vermelho escuro, revela o lado noturno, fêmea, secreto e centrípeto, senhor do mistério da vida, com seu valor matricial e uterino. Um seduz, encoraja, provoca, enquanto que o outro alerta, detém, incita à vigilância. Símbolo de poder, o vermelho traz em si mesmo as forças masculinas e femininas. É nesse campo de significações que o sangue se revela. Afinal é o mesmo vermelho que percorre o corpo através das veias, artérias, capilares. São esses longos canais que permitem ao sangue tocar cada órgão, tecido, célula sem distinção de tamanho, função e “cor”, levando para cada local o alimento e a purificação necessária. Costumo reconhecê-lo como a água benta do corpo, aquela que foi tocada pelo sopro e aquece em seu âmago a certeza para o que foi destinada – a sustentação da vida. O corpo que abraça o Mar Vermelho do sangue sabe que na liquidez deste elemento a origem se apresenta a guiar o homem

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na retomada do movimento fluido dos seus líquidos, perdido pelo endurecimento do coração. Desconectado da sua origem, das memórias essenciais, terá dificuldades em irromper o ciclo vicioso das impossibilidades, impedindo que as águas internas reflitam sua verdadeira face a ser conquistada. O que fazer diante desse quadro? Reconhecer a presença da fonte e seguir o caminho em sua direção parece ser a única alternativa promissora. Ao homem será pedido rever o lugar que ocupa na relação consigo mesmo, assim como seu papel e compromisso com a manutenção da vida, em nome da retomada da ciência do sangue que o constitui. Tomei consciência do significado de uma busca pessoal aos vinte e três anos quando conheci as terras do Egito e Israel. Foram duas semanas que se desdobraram em sessenta dias e me permitiram viver um sonho acalentado há muito tempo. O encontro dos meus pés com os solos dessas terras ativou uma poderosa rede de forças que, acendendo o corpo, permitiu que sua seiva perdida retornasse. No transcorrer da experiência não tive a dimensão do que fora nele ativado, mas sei hoje que trouxe a vida de volta para esta vida. O que parecia mudo despertou e requereu espaço. A partir dessa experiência recebi a autorização para iniciar a jornada da minha Alma, aprendendo a transitar entre as dimensões com seus ensinamentos. Adquirir um corpo é aprender a colocar em ação a trindade, ou melhor, estar em relação. É tomar consciência da semente dourada adormecida nas terras internas que anseia ter condições

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para germinar. Cada passo da jornada encaminha à aquisição de mais força, espaço e poder interior. Esses aspectos deveriam estar a serviço da conquista de novos reinos e dimensões internas, em nome das sucessivas perdas de peles da semente dourada da nossa Alma. Contudo, nem sempre é o que acontece. A força liberada no processo se perde em superficiais gratificações por falta da clareza do seu propósito no corpo, comprometendo, assim, a colheita dos futuros frutos. Nesse contexto, as denominadas experiências dolorosas seriam tentativas em traduzir o esquecimento pelo homem dos campos de força que o sustentam e o alimentam, como também o abandono dos compromissos firmados por sua Alma. “Ah! Como gostaria que os homens fossem preparados, desde muito cedo, para seus compromissos espirituais. Ah! Como gostaria que reconhecessem logo cedo o sentido desta vida e compreendessem que nem sempre os fatos seguem o curso dos seus anseios”.

O reconhecimento do corpo como um germe o incita a vivenciar desperto as metamorfoses da sua natureza. O chamado se constitui em dar corpo ao próprio corpo, em gerar novas formas, em criar novas realidades. Diante desse chamado, receei perder-me nas ilusões egóicas, resistindo sucumbir, em razão disso, à certeza interna de que havia algo a ser recobrado e cumprido. Considerava ser absurda essa possibilidade inicialmente. Mas diante de cada “não”, mais claro passou a ser o pedido. Com o

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passar dos anos fui percebendo que a negação do compromisso me encaminhava à inflação egóica tão rejeitada, embora fosse ela negativa. Não sabia decodificar as solicitações do “povo do alto” através das sinalizações do corpo e dos eventos externos. Iniciar o caminhar rumo à lembrança do compromisso, dessa linguagem tão desconhecida, tornou-se uma necessidade visceral. A presença do Mar Vermelho em mim demarcava o limite do tempo. Não havia muita opção. Seguir ao encontro do meu destino ou afogar-me nas águas vermelhas. Se o homem tivesse olhos para o que lhe foi concedido, não perderia tanto tempo nas querelas emocionais e não alimentaria tantas discórdias pelo que ainda não pode compreender. Estaria, sim, devidamente ocupado com o desenrolar da gestação da vida em suas entranhas em favor da expansão da criação internamente. Aí sim teria tempo para trazer o divino para terra e elevar a terra para os céus, coroando a integração entre os mundos em cada ato. A divisão que se instalou em mim foi atroz. A separatividade dos mundos me compunha. Combatia a possibilidade de desejar o que haviam desejado para mim, por mais que nada soubesse sobre o desejo a mim destinado. Sentia-me tolhida quanto ao direito da escolha. Queria ter o direito de exercê-la. Como exercê-la se internamente não era livre? “O homem se esquece que seus desejos têm de estar em consonância com os do divino e não o contrário como costuma viver.”

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Somos crianças sem discernimento. O que por vezes colocamos como essencial é visto como um capricho para os céus. Quando a Alma bate à porta na esperança de ser ouvida não há ego que possa dar as diretrizes. Ele precisa reconhecer sua pequenez, e aprender o exercício da entrega indo além dos limites do seu contorno a partir do suporte da sabedoria interna. O conflito em mim instalado criou raízes profundas. A possibilidade de conciliação dos mundos internamente um longínquo anseio. Nenhuma ponte havia entre o céu e a terra. O corpo não reconhecia sua função de intermediário. Prosseguir nessa direção seria o mesmo que caminhar com uma das partes amputadas do corpo. O que eu havia feito comigo? Onde me abandonei na impossibilidade de experimentar o encontro dos mundos? Parecia ser enorme a distância criada entre a realidade prática e a sutil. A prática da vida deveria ser um reflexo fiel da matriz energética que a sustenta, um instrumento imprescindível para o homem desvendar seus enigmas e reconhecer as forças aliadas dos símbolos como precisos veículos de experimentação do potencial energético das correntes elétricas, aprendendo, assim, a colocá-los a serviço do intrincado mundo dos desejos da essência. Apesar de tudo o homem ainda caminha desgarrado da sua essência. Sem consciência do símbolo que é, é um homem sem memória da matriz divina que o gerou. Incapaz de acessar as forças que estão disponíveis no corpo, passa a impor muita força no seu viver, onde seu desejo não toca

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céus, limita-se, sim, a espelhar seu narcisismo, com suas múltiplas imagens projetadas. Cedo ou tarde a face encoberta pelos véus delinear-se-á sem que seja possível ocultá-la. O que constitui cada

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um deverá mostrar-se na alegria ou na dor. São muitos os caminhos tomados. São diversos os atalhos construídos na esperança do preenchimento das horas que nos perguntam a todo instante por onde ir. Os passos apressados colecionam marcas consideradas sem valor para aquele que as desconhece. A parada para a escuta do coração será inevitável. Há vozes do tempo que pedem espaço, desejam compartilhar informações. Caso contrário seremos reféns do tempo, fixados em uma única perspectiva. Um corpo inconsciente é um corpo ausente. Precisava convidar o corpo a ocupar seu lugar. Era o sangue nos ovários que lembrava que o fluxo da vida havia ficado interrompido. Era ele quem pedia misericórdia para que uma nova ordem de compreensão e vivência da vida fosse instaurada. Era o sangue represado que se debatia nas águas das dores e dos ressentimentos. O Mar Vermelho clamava por ser navegado. Suas águas só poderiam se abrir na leveza de um coração cônscio do seu propósito. Rendi-me ao apelo do vermelho em mim na ânsia de beber a água da fonte. Abri mais uma porta confiante no desenrolar dos mistérios.

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Quarta porta

Ventre Fui levada a tocar na terra do ventre tão desconhecida como a noite. Uma noite envolvida em profunda escuridão. O pavor, um companheiro. Chorava como uma criança desgarrada do seio materno. A pressão do desconhecido era uma constante no ar. As lágrimas, um refúgio diante de tamanha impotência. O corpo incorporara o pavor com toda sua flacidez e frieza. Toquei no limite do desespero. Apesar da adversidade do local e do desconforto interno constante, havia algo em mim que não se calava e me impulsionava seguir. Com as pontas dos dedos iniciei o reconhecimento daquela terra. Muitas eram as construções antigas esquecidas pelo tempo. Quanto mais caminhava mais audível tornou-se o pedido daquele local – reconciliação. O ventre reserva inúmeras iniciações para a condição feminina. É nessa terra que as vozes dos ancestrais se manifestam, fazendo ressurgir, no tempo do agora, as inscrições responsáveis por dar a cada mulher a possibilidade de restaurar a ordem esquecida do princípio feminino internamente e no Planeta. Restaurar essa ordem é ativar no corpo o fio de ligação entre o céu e a terra, retomando a fertilidade do seu potencial receptivo, rumo à comunicação com os mundos que o compõem, sediados no coração e no ventre. Tanto os homens quanto as mulheres abrigam em

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seus corpos essa possibilidade. Em razão das variadas mudanças na estrutura vibracional do Planeta, o homem tornou-se um ser de esquecimento, passando a ser a fonte criadora uma ilusão, condenada apenas ao imaginário. Recobrar a memória passa a ser o desafio humano. No campo corpóreo há redes capazes de sustentar e alimentar a presença da chama da origem e permitir suas manifestações. Quanto ao corpo feminino, acolhe chaves importantes que lhe asseguram o ressurgir do poder de transformar os estados dos fios que compõem a complexa rede estrutural da matriz da essência da vida, assim como de dar corpo a novas formas e ordens. Apenas quando o corpo puder sintonizar e sustentar os desdobramentos das leis da essência, será capaz de ativar esses recursos em seu campo. O contato com a eternidade colocará o homem no fluxo contínuo do aprendizado da força criativa da vida, tornando-o testemunha e agente desperto dos seus ensinamentos. Uma mulher ciente das chaves que abriga no corpo, que reconhece a usina interna – ventre – é autorizada a iniciar a jornada rumo a sua ligação e sentido. Sem a compreensão dessa função teremos mulheres “independentes” mas alienadas do seu real significado e potencial. Como fazer despertar a fertilidade das terras do ventre nos tempos de agora? Como fazer ressurgir a confiança nessa busca? Como retomar o estado no qual de uma única árvore se podia colher todos os frutos? Reavivar o valor da seiva que habita a terra do ventre é o mesmo que seguir em direção à morada do silêncio interno. Somente na quietude será possível ultrapassar a fúria das águas de um dia de tempestade, para saciar a sede nas águas profun-

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das e calmas da terra. As altas ondas intimidam, confundem, assustam, mas vistas dentro da perspectiva adequada sinalizam iniciações. Conduzem cada mulher a transitar delicadamente nos obstáculos que ocultam suas verdades, ultrapassando o estado de cegueira que a constitui. A luz só poderá emergir da escuridão quando do escuro for tocado o seu poder revelador. É no silêncio do escuro, do indiferenciado, que o germe da eternidade tem todas as condições que o garantam submeter-se às contínuas diferenciações e fazer-se brotar dos recônditos espaços da terra. Foi na escuridão mais profunda que precisei dar o primeiro passo. O escuro sempre foi combatido e temido nas lições de casa. O considerado abominável era o ponto de partida. Estava disposta a ir de encontro ao que haviam criado para mim e ir ao encontro do que sobre mim desconhecia. Ao iniciar a comunicação com as terras escuras do ventre, a imagem do caldeirão emergiu. De metal, chumbo ou estanho, com a superfície desgastada pelo tempo, abrigava um furo em sua base. Na dimensão simbólica o caldeirão representa o conhecimento ilimitado. Acolhe as porções, os alimentos, a força mágica manifestada pelo licor divino – ambrosia ou água da fonte - que concedem ao homem a imortalidade, a eterna juventude. Local e meio de regeneração, retomada do vigor e ressurreição das profundas transmutações biológicas, é um prelúdio ao nascimento de um novo ser. O chumbo reporta ao peso e à individualidade incorruptível. Associa-se ao deus separador Saturno, aquele que estabelece os limites precisos. Para a transformação do chumbo em ouro o homem deverá se desprender das limitações individuais para atingir os valores co-

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letivos e universais. O chumbo seria a base inicial mais modesta para se seguir o caminho ascendente da evolução. Enquanto que o estanho, nessa dinâmica, convidaria à irreverência e à inventividade do planeta Júpiter frente as referências vigentes. A presença do caldeirão demarcava um tempo distante, talvez aquele através do qual as mulheres saíam à noite e se deixavam inspirar pelos raios prateados da lua, preparando em seus caldeirões o elixir da vida. Revelava o primeiro mistério sobre a natureza oculta do meu feminino. A presença do chumbo, com seu representante Saturno, definia o início da jornada. O desafio lançado pelo caldeirão: reconhecer e colocar em movimento o potencial criativo interno disponível com irreverência, definindo limites precisos frente às possíveis desmedidas no sistema do corpo. Mexer com o centro da terra é contatar as raízes, a nutrição e a sustentação do que há de mais profundo e do que há de mais elevado em cada ser. O caldeirão clamava pela sustentação das raízes e da recepção. O furo na sua base o impedia de conter, de acolher o que a ele fosse destinado. Ao avançar na comunicação com o ventre, a superfície do caldeirão foi sendo polida e sua base restaurada, tornando possível acompanhar, nessas mudanças, as transformações da energia no corpo. O caldeirão podia estar sustentado pela terra, aquecido pelo fogo e umedecido pela água à espera que o espírito o preenchesse. Era uma questão de tempo para que sua antiga engrenagem voltasse a funcionar. Em uma meditação com o caldeirão me vi na presença de algumas mulheres na beira do rio no meio da floresta. Próxima desse grupo uma mulher de pele escura em pé. As marcas do tempo

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em sua face traziam um olhar sábio e misterioso, contudo preciso diante do estado do meu ventre. Era conhecedora dos mistérios do corpo feminino e colocou-se disponível para me auxiliar no resgate dos princípios desta área. Desse contato foi me ofertado um cântico de cura, elo de comunicação com sua presença.

Lôdem sotên Sá. Coquem alô tê mêendê. Ao malete sôondara Congon densaiê Luquem dêdê coconar Loquem de noche folender Ou malêlê cadandara Ou malaiacê.

A energia dessa senhora e do seu cântico geravam confiança e força nos momentos de desalento e medo. O caldeirão refletia em sua superfície as metamorfoses do processo. Dele emergiram duas importantes imagens femininas: a de um corpo ereto com os braços elevados para o alto e a de um corpo em lágrimas com marcas nas mãos, na coluna vertebral (do cóccix até o cardíaco), nos ombros, nos braços e na base do calcanhar até o tornozelo. Na presença desse corpo marcado uma voz feminina dizia: “Verás o reflexo desta mulher em você mesma”. As antigas mulheres costumavam trazer marcas no corpo como reflexo dos seus compromissos com o céu. As inscrições

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contavam sobre o caminho percorrido pela energia no corpo, dos espaços abertos pelas informações acessadas. Eram elos de comunicação. Com o passar do tempo as informações sobre essas marcas foram sendo esclarecidas. “As mãos precisam estar em consonância com o que o peito ordena. Uma mão sem comunicação com o peito é uma mão que apenas separa e afasta. É uma mão que não aprendeu a reunir, a discriminar, a trazer para perto o alimento essencial, desconhecendo o mistério do contato. São mãos que clamam por entrar em relação, por se aproximar. O calcanhar revela o mistério da sustentação. Representa o primeiro degrau de uma escalada, o eixo a ser respeitado por aquele que anseia dar corpo a algo na vida. É o primeiro elo de ligação entre o criador e a criatura. Simbolicamente é a coluna vertebral do germe interno cujo pé é seu representante.”

O caminho delineado por essas marcas definiam a trajetória ascensional do calcanhar ao coração. O retorno à fertilidade dos vales, dos rios, das montanhas, das matas, das terras internas.

“O coração só poderá revelar seu poder quando o homem resgatar o prazer de existir. Essa passa a ser a grande conquista do homem. É nele que reside o poder vivificante, transformador e libertador do ser humano. O exercício do poder sem o amparo do coração tenderá a tiranizar, a subjugar e a aprisionar o equilíbrio das forças da vida. A terra do coração é composta de camadas que ocultam os segredos da sabedoria da origem. Adentrar nessas camadas é abrir

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Uma Semente no Mar Vermelho as portas dos mundos e comungar com o conhecimento ali preservado, transformando o homem em um agente ativo das leis e das forças do Universo. É o coração quem acolhe o quinto mistério. Enquanto suas terras dão acesso a outras esferas, as do ventre encaminham o homem a adentrar nas memórias do seu Ser. São os ombros, os braços e as mãos que permitem trazer para perto e elevar aos céus a obra. Um corpo em pé, erguido, firme em sua base, é um corpo que encontrou o sentido da sua raiz e conseguiu ser nutrido na profundidade da sua seiva. É a coluna que cumpre o eixo inscrito no calcanhar, ou melhor, o reafirma em sua magnitude, permitindo que a seiva ascenda, inunde a coluna em direção aos ombros, braços e mãos, que se elevam em prece entregando à vida o trabalho realizado”.

A imagem da mulher com os braços elevados assemelhavase ao símbolo do candelabro. Uma cabeça erguida e dois braços suspensos em direção ao céu. Representante da luz espiritual, da semente da vida e da salvação, o candelabro com seus três braços traduz o movimento dinâmico da vida ansiosa por experimentar a ligação e a união com os seres. O formato do candelabro ou taça fala da “presença” passível de ser processada no coração. Ao projetar para cima as linhas da figura do corpo ereto, foi possível chegar ao formato da figura de um losango, do diamante. Como filho da terra, o diamante nasce sob a forma de um embrião, sendo o cristal a representação do seu estado intermediário de maturação. Nesse contexto, o diamante está maduro, enquanto o cristal verde. Associado à pedra filosofal, segundo Platão, o eixo do mundo é descrito como sendo um diamante. Talismã universal,

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torna impotente todos os venenos e todas as doenças, assim como os fantasmas. Como pedra da conciliação, incita ao retorno da ordem antiga. Como símbolo feminino, está associado à vulva. O formato da vulva remonta à gruta dos mistérios, a porta dos mundos subterrâneos, a passagem iniciática para o ventre do mundo – a entrada na residência das forças ctonianas. Como reflexo da matriz da vida, é considerada uma guardiã do templo do ventre. As duas imagens femininas fervilhavam possibilidades e informações pouco conhecidas por mim. O medo de invasão me acompanhava, havia no ar o receio de que algo muito precioso fosse maculado e destruído. Estava diante do meu corpo, da sua preciosidade e delicadeza. Em suas marcas o caminho, como um mapa, a ser trilhado no silêncio da recepção no cálice da lua nova. O pedido era claro: partir em busca da maestria das mãos como canal fiel da inspiração divina, enfrentando os dragões dos medos, dúvidas, hesitações, inconstância, preservando a beleza e a delicadeza. Estava diante da conquista do Graal, do encontro entre o coração e o ventre. Seria preciso trabalhar o caldeirão até que ele pudesse revelar sua outra face, o cálice sagrado, reconhecendo sua porção imortal. “Teu ventre é um convite à iluminação, à expressão plena da luz que o habita. É nesse local que reside tua força, tua possibilidade de beber das águas do Ser e acessar os registros de uma Alma peregrina. É preciso deixar que a luminosidade da estrela que a constitui se manifeste e revele o ventre como o portal de iniciação da magia do fogo e da água. O candelabro necessita ser aceso. Esta é a jornada. A sabedoria ancestral, a capacidade de regeneração, da criação e da fertilidade

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Uma Semente no Mar Vermelho compõem seu eixo. Teu ventre passa por um momento de transmutação alquímica, uma morte iniciática, sendo um território de conciliação de forças. O que pertence a ti é imortal. O teu ventre é o teu paraíso, local de crescimento e cultivo dos fenômenos vitais.”

Tomada de força, reverenciei mais uma porta.

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Quinta porta

Princípio Feminino Como pode uma mulher achar ser possível caminhar sem a conexão com a sua força instintiva? Seguir nesse estado é desconsiderar a sabedoria da natureza interna que habita o corpo e os seus mistérios. Sentia-me interditada, cerrada em um corpo. Nasci em um corpo de mulher, mas pouco reconhecia das suas formas, pulsações, ritmos e desejos; a estranheza me acompanhava. Como reconhecer o significado e apurar a percepção sobre a natureza feminina, da sua dinâmica em direção à comunhão com a vida, se no meu próprio corpo não me reconhecia? Há muitos homens, mulheres, nesse estado de desconexão e esquecimento. Há muitos corpos mutilados e desabitados. Fui chamada pela terra do ventre para compreender os segredos do feminino e os mistérios do princípio feminino que ocultam em seu silêncio a sábia ordem das leis essenciais. Experimentar o significado do feminino se assemelha a escavar antigas terras à procura das marcas deixadas pelos fluxos dos tempos na vida. Foram horas escavando territórios desconhecidos na ânsia de descobrir quem eu era e qual o real sentido do existir. À medida que adentrava no processo de resgate das memórias, dos instantes de encontro entre o céu e a terra nas experiências, podia sentir o emergir , na superfície da pele, de partes de objetos abandonados

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que mais pareciam compor uma linguagem antiga. Linguagem amparada por uma Linhagem de Mulheres, conhecedora do princípio que rege a condição feminina. O que o corpo feminino precisava identificar e experimentar sobre o princípio que o sustentava? Na ânsia de encontrar respostas, fui envolvida pelo encanto das histórias. A partir delas foi possível compreender que todo princípio traz em seu cerne uma tradição, a ordenação de conhecimentos ancestrais a remeter ao silêncio do não revelado, à origem, ao potencial puro e indiviso do Ser. O princípio feminino está sustentado em uma tradição oral de mulheres, denominada Linhagem das Rosas, pautada na vivência do despertar do significado do corpo como um receptáculo de forças. Nessa tradição caberá ao corpo identificar e transitar na gama de forças que abriga em seu sistema em prol do desenvolvimento e aprimoramento da sua capacidade de recepção, doação e criação, tornando-se, assim, um veículo consciente da manifestação das leis da essência na terra. Falar do princípio feminino é reafirmar a condição indivisa da fonte e a existência do germe interno, potencial ainda desconhecido pelo homem. O corpo feminino carrega em suas entranhas a capacidade de alcançar frequências e estados energéticos que o garantam tocar, através de cada memória corpórea, o quotum curativo de força da origem nas múltiplas dimensões corpóreas e extracorpóreas, abrindo portas internas seladas pelo tempo. O princípio feminino afirma a importância de alguns mistérios:

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Primeiro mistério: Unificação Somos formados não apenas por um pai ou por uma mãe. Somos povoados pelos ecos distantes de diversos pais, mães, vozes, linguagens oriundas de longínquos espaços. É a reunião de forças, denominada aqui de coletivo, que transcende tempo e espaço e abre ao homem a possibilidade de comungar com a pureza do seu estado indiviso. Existo porque sou o lugar onde várias mãos, corpos, inspirações, sopros e anseios repousam suas intenções. Nessa intrincada teia de comunicação tudo passa a ter significado e sentido. A origem só poderá ser exaltada na diferenciação do que ela constitui e vivifica em cada corpo. Adentrei na linguagem do princípio feminino ao receber a visita de três mulheres vestidas de preto com uma estrela prateada na altura do terceiro olho, Mulheres das Estrelas, como se identificaram, enquanto escrevia sobre o ventre. Duas delas estavam mais à frente, colocavam-se como porta vozes da terceira mulher. Nos primeiros contatos permaneceram em silêncio, aguardavam o momento devido para me auxiliar na vivência dos mistérios do ventre. Pertenciam a uma estrela responsável por preparar os corpos femininos na terra para o despertar do poder de canalização das forças do Universo em prol da mudança da qualidade vibracional da humanidade. Estavam, assim, disponíveis para instaurar uma nova ordem de funcionamento no corpo humano, pautada na transformação das mínimas estruturas do seu funcionamento. Seus veículos de deslocamento chamados corpos energéticos foram preparados para alterar estados e formas, mexendo nas estruturas primeiras - DNA da vida existentes no planeta.

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Lilian Maria Leite de Souza “Tua memória será despertada. Em breve poderá reconhecer que é uma de nós, que pertence a este grupo de mulheres comprometido em trazer para o planeta Terra a semente da estrela à qual pertence. A trajetória a ser percorrida por você pertence aos mistérios femininos”.

A assistência das Mulheres das Estrelas me levou a tocar na engenhosidade do espectro da condição feminina. Em cada experiência a possibilidade de retirar densos véus e tocar em camadas cada vez mais profundas, seguindo ao encontro dos segredos do céu e da terra em mim.

Segundo mistério: Silêncio Não há escuta, não há visão clara sem que o silêncio se manifeste. É preciso aprender a silenciar diante das formas, das condições aprendidas, do pré-concebido. O cultivo do silêncio é passível de revelar o que é eterno em seu estado indizível, levando o corpo a iniciar o tecer do receptáculo da arca do coração e do cálice do ventre. O silêncio coloca o homem frente ao impasse da desidentificação, incitando-o a abrir mão do controle da mente, gerador de aprisionadores ciclos repetitivos de impossibilidade e dor. Toda intenção, em sua mobilização de forças, conduz a um efeito no campo: a criação de uma condição harmônica ou desarmônica. A falta de consciência plena desse funcionamento tem gerado efeitos devastadores na terra. O “mal”, nesse contexto, representa a consequência do que foi desconsiderado no campo de forças, que termina por recair sobre o que é puro, sobre o extrato, sobre o potencial não diluído da semente, ou melhor, sobre o

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potencial do divino em nós ainda não manifestado. A negação da fonte original tem interferido diretamente no curso da germinação, do florescimento e da colheita de cada homem, assim como na conquista do seu fruto. Silêncio e conhecimento caminham juntos.

Terceiro mistério: Recepção O homem se tornou um obstinado executor. Aprendeu a impor sua força, suas vontades, suas concepções em nome do que determina construir. Suas ações o incitam, muitas vezes, a compulsões diversas. Na fala, no pensar, no agir, não há espaços livres para o emergir das informações oriundas da natureza interna. O princípio feminino reaviva a possibilidade dos ritmos da vida serem vivenciados e das ações serem sustentadas na recepção e captação dos cursos energéticos no corpo e através dele. O tornar-se receptível só será possível com o cultivo do corpo como um receptáculo, como um local das sínteses. Desconectado das linguagens ocultas nos eventos da vida, o homem terá dificuldades de agir em consonância com as forças que se apresentam e seus respectivos pedidos. Aprendendo a sintonizar com as redes de forças colocará disponível sua capacidade receptiva ao processo da multiplicação, estando aberto para somar sua força com as do Universo no âmago da essência de cada experiência, ultrapassando as divisões e o isolamento existencial, transformando-se em um co-realizador e um desdobramento natural da fertilidade da vida na terra. Através desse processo, será capaz de imprimir seu extrato no mundo, de amadurecer sua escuta, tornando-se um parceiro desperto da existência.

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Quarto mistério: Dose O homem tem se perdido na desmedida, visando se reafirmar na quantidade. Esqueceu que apenas uma gota é capaz de organizar ou desorganizar uma ordem interna vigente, levando-o a permanecer na falta ou a perder-se nos excessos. A anatomia do corpo acolhe em seu silêncio o sagrado das formas e funções dos órgãos. As importantes portas no corpo como: o ânus, a vagina, a boca, as narinas, os ductos auditivos, os bicos dos seios e o umbigo são responsáveis pela comunicação da realidade interna limitada pela pele com o meio externo. No corpo feminino a porta vagina incita algumas considerações. Como uma passagem define limites e ao estabelecê-los convida cada mulher a se apropriar da sensível realidade interna. Navegar nos líquidos internos estabelecendo a comunicação entre eles e a solidez da realidade externa passa a ser uma laboriosa tarefa para cada mulher. A costura da dimensão sólida com a líquida no corpo poderá dar vazão a experiências jamais vivenciadas. Nessa dinâmica o corpo feminino poderá assumir seu poder de manifestação, escolhendo o que deseja dar vida, o que busca compartilhar; dando ao sim e ao não um corpo limite com densidade suficiente para definir territórios e realidades mais consistentes. Uma escolha ancorada na presença permite ao corpo selecionar com firmeza a qualidade do alimento que nutre sua Alma e reafirma sua fonte. A anatomia do corpo clama por respeito e momentos de parada. Quando respeitadas as solicitações, os órgãos poderão compartilhar seus ensinamentos. Um corpo consciente terá a autorização para ultrapassar a porta/portal vagina e seguir ao en-

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contro do corredor do canal vaginal. Como todo canal, encaminha a vivência do significado do tempo de preparação, do tempo da revelação, do tempo da maturação sensível. Quando a pulsação do tempo interno é considerada o corpo tem a oportunidade de ser sensibilizado e organizado nos níveis necessários para atender aos pedidos da jornada da Alma. O respeito ao tempo de cada passo leva a mulher ao encontro do seu altar – útero, que, com sua mesa oval, convida a partilha dos alimentos dos mundos. Espaço de silêncio, prece e conexão, o útero é o local de fortalecimento do fio de ligação céu e terra em cada corpo. Apenas na intimidade da oração a mulher terá a autorização de prosseguir ao confessionário – os ovários, através dos corredores das trompas de falópio. A jornada pelas trompas de falópio reafirma o tempo fértil que cada mulher necessitará resgatar a partir da retirada de antigas referências no seu templo de silêncio. Esses corredores pedem a avaliação da verdadeira motivação de cada ser, a identificação do que realmente o sustenta e nutre. O significado do tamanho pessoal é revisto nessa passagem. Estou a serviço do que e de que ordem? Tocar os ovários é ter acesso à escuta do Verbo criador. Sem a presença da consciência do Verbo criador as sementes dos ovários estarão interditadas, impedidas de expressar a voz sábia dos seus registros.

Quinto Mistério: Forma Este mistério está relacionado com o processo da vivificação. Vivificar é fazer com que o espírito volte a habitar os lugares que lhe

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foram destinados, revelando, assim, a frequência de força da qual ele é guardião e para o que se destina. Dentro dessa perspectiva, será permitido ao homem experimentar o desdobramento da vida através das formas existentes, comungando com o divino e seu poder de transformação, transmutação e revelação. Tocar esse estado é acender a centelha do mistério do coração e sua substância, o amor. Diante de cada mistério foram perceptíveis as marcas da desmedida e do engano quanto ao princípio feminino. Existia um descompasso entre o que a vida desejava para mim e o alcance do meu olhar. Por muitas vezes, a diminuta percepção do meu valor e significado fizeram-me tocar o desequilíbrio do não merecimento. A cegueira, uma companheira a dificultar na aceitação do que a vida colocava disponível. Tornei-me desafiadora e, com a prepotência dos irados, passei a questionar a coerência de Deus. Enfraqueci-me ao alimentar os venenos da apatia, do desrespeito, da dependência, da superficialidade, da desesperança, cujas presenças sugavam a seiva destinada a alimentar a jornada da Alma. Quem ou o que o homem tem reverenciado? Onde não há reverência não há aceitação e sem a aceitação continuaremos armados a disputar ínfimas migalhas de uma terra que não pode dar mais nada. Sem a visão, buscaremos estratégias que driblem o curso natural dos acontecimentos, tentando apressar o tempo. “Aceita-te. Acolhes a semente que tu és. Uma semente é uma semente e nada poderá fazer contra isso. Reconheças as forças que habitam em ti e deixe-as fazer o que precisam

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Uma Semente no Mar Vermelho fazer. Tu tens um compromisso com o princípio feminino. Já é tempo de as mulheres despertarem para o poder transformador que guardam em seus corpos e iniciarem a revolução no mundo”.

Tornar-se uma semente é não negar a presença do céu na terra e a consciência que há trabalho a ser realizado por cada corpo nessa condição. Diante de tantas revelações não podia continuar negando o tempo ao qual faço parte, o das mulheres sentadas em volta da fogueira a contemplar a sabedoria do avô fogo com suas orações e cânticos. Nesse tempo o grande oráculo se revelava através das chamas e brasas, mostrando onde a Alma havia se desgarrado e os ensinamentos necessários para que voltasse a comungar com seu real sentido e presença. Era o fogo que abria a noite e invocava a chama guardada nos corações e ventres das mulheres que traziam no seio esquerdo a inscrição de uma rosa, símbolo do toque do fogo em suas veias. Cada mulher necessita adentrar nos mistérios do ventre e reencontrar a chave desse local. Não há como resgatar a chave da porta do ventre sem que se identifique o que nele necessita se cumprir e ser lapidado ao longo da jornada. Chamaremos de “pedra-angular” a força a ser identificada por cada mulher e por ela desenvolvida. Poderá ser traduzida por um símbolo, uma qualidade, definindo assim as condições a serem respeitadas em cada etapa do processo de aprofundamento da condição feminina. A força da “pedra-angular” ao longo do processo, clamará em cada passo pela presença dos dons e talentos, forças aliadas, eficazes na construção da comunicação com o céu na terra do corpo.

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A pedra-angular identificada por mim foi o diamante. Cumprir esse símbolo pressupunha ir ao encontro da purificação e utilização do quotum de força por ele ocultado. O diamante associa-se à força indomada, representando o ventre, local do fundamento e poder criador. Símbolo da verdade eterna indestrutível, fala da fidelidade e da ousadia. Traz consigo a simbologia do eixo e do ritmo, afastando todos os venenos e doenças. Figura o amor e uma reavaliação divina. Remete a um estado maduro, acabado. A força aliada do diamante caracterizava o início e o fim da jornada. Durante anos imaginei nada ter a oferecer ou construir quando, de repente, tomo consciência deque o que preciso é aprender a reconhecer, a aceitar e a compartilhar com a sabedoria do diamante guardada pelas entranhas. Meu desafio na terra do ventre traduz-se por aceitar e emanar o perfume da flor de lótus branca que guarda em seu centro um límpido diamante. O de acolher a presença da força da vida e do seu poder curativo. O de aprender a transpor os limites das formas seguindo em direção ao infinito existente no silêncio de cada manifestação viva. O de sustentar a luz com sua sabedoria criativa a guiar os corpos ao crescimento espiritual. O de fazer cumprir as leis da essência na terra. O de compreender sobre os mistérios da vida através do corpo. Tomada de coragem imprimi mais força aos passos antes que eles hesitassem prosseguir. Atravessei mais uma porta.

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Sexta porta

Sexualidade Todo fluir da vida está ancorado no aqui e agora. Essa fração de tempo oculta um potencial revelador passível de desencadear profundas transformações quando animado pela ação da chama da Consciência. É na presença dessa chama que a magia de cada experiência pode ser capturada, transformando simples eventos em valiosas brechas reveladoras de informações ainda não acessadas pelo homem. Não há como transitar no “aqui e agora” sem que o olhar se submeta a uma revisão, abdicando viciosas concepções amparadas pela eterna busca do consentimento do olhar do outro. Apenas um olhar sensível tenderá a despertar para o que o aparente esconde na agitação da ilusão, percorrendo direções que encaminhem ao reconhecimento do que a dimensão interna - corpo orienta. O convite da vida é explícito – “conheça-te”. Por maior que seja o entusiasmo criado pelas múltiplas estimulações da realidade externa ao corpo, não há como desconsiderar o compromisso inscrito em cada célula desse receptáculo a clamar por atenção e contato. Há mistérios a serem desvendados. Para tanto cada homem deverá assumir o comando da sua jornada em direção ao seu sentido. Negar considerar as necessidades da essência encaminha o corpo a ser consumido, como uma agitada chama, pela desarmonia. A sabedoria do germe, do potencial puro

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da vida contido em cada corpo, se esvai em ofegantes suspiros descompassados pela resistência do homem em fazer parte da sua própria História. Absorvido por distrações, nada sabe sobre o encontro das forças que lhe deram um corpo e lhe fizeram ocupar o lugar do fruto na operação alquímica entre duas células. Talvez seja o anseio inconsciente em desvendar a origem que encaminhe o homem à incessante busca de realização através do encontro com o outro. Mas o desconhecimento do seu sentido o conduz a desatinos, depositando no outro a responsabilidade da jornada que apenas ele poderá cumprir internamente. No campo da desmedida, das projeções e transferências, abandona-se à falta de orientação e vazio estéril. Quando o vazio estéril desponta mesclado pelo descontrole há força sendo utilizada inadvertidamente, escapando do seu curso criativo. Toda força anseia por espaço para revelar seu mistério e, quando diante de algum obstáculo, buscará caminhos substitutos para expressar seu intento. Alienado da sua origem, o homem se debate, afastando-se dos indícios que o conduzam à retomada da sua presença, do encontro com sua Alma. O desejo, poderoso combustível que movimenta a delicada engrenagem do viver, passa a ser banalizado e reduzido a caprichos egóicos com graves distorções. Aprender a lidar com seus sutis desdobramentos é participar da construção do elo perdido com o poder fértil da existência, com a dinâmica da força da sexualidade. Quando o homem se dispuser a ocupar seu corpo como instrumento de revelação, vivendo em compasso com a manifestação inteligente da vida através da força criativa da sexualidade, será um agente ativo na dança dos elos dos encontros.

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“Se tu tens o anseio de criar alguma coisa nunca te esqueças que sozinha nada poderás fazer, já que na ausência do outro (mundo) qualquer intenção se transforma num recipiente oco, que nada pode gerar nem fazer multiplicar”.

Foi através do corpo de um sonho que a força dos elos compartilhou sua sabedoria. Dirijo-me a uma casa para alugar ou para retirar os objetos do seu interior. Era muito antiga e pertencia a uma tia. Na frente um jardim com um belo pé de azaléia amarela. Minha prima trazia três chaves antigas: uma chave da porta principal, uma da janela da direita e a última da janela da esquerda. Cada uma com um nome. A primeira delas trazia o nome de “carbôdiseur”, apresentava o formato circular em preto, tendo em seu centro um círculo menor em amarelo com o desenho de dois seios vistos de perfil. A segunda chave prateada com o formato de uma torre semelhante a da Catedral da Sagrada Família de Gaudí. Quanto à terceira chave, manteve seu silêncio quando despertei.

Fiquei a refletir sobre os símbolos desse sonho durante semanas na tentativa de acessar o conteúdo do qual eram mensageiros. Devagar as informações foram emergindo e delineando o caminho a seguir. Nos sonhos a casa costuma conduzir à reflexão dos estados de consciência do sonhador, questionando o valor do significado, do conhecimento e da intimidade entre ele e seu instrumento-corpo. Solicita o comando da vida e a expressão do

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potencial interno. Como representação da face humana, reflete o dinamismo existencial, seus recursos e desafios no encarnar-se. Nesse sonho sou convidada a acessar uma realidade interna totalmente desconhecida: abrir janelas e portas que permitam a construção de ordens mais harmônicas e elevadas, tendo por base os desígnios da Alma. Cada símbolo orienta, como uma bússola, por onde transitar para a aquisição de mais expansão, abertura e retomada do potencial interno. A dimensão atemporal dos sonhos incita o brincar com o tempo e a ultrapassar as barreiras impostas ao infinito, dando aos registros aparentemente mortos o lugar de fieis mensageiros. Estava diante de três chaves. Como instrumento de discernimento, abertura e fechamento de estados, as chaves marcam iniciações e purificações no desenrolar da jornada. Sendo de prata, de ouro ou de diamante é um símbolo de mistério a ser penetrado e de enigma a ser desvendado. De posse das chaves, segui em direção das passagens escondidas em meu corpo. A melodia da inscrição “carbô-diseur” da primeira chave me conduziu ao idioma francês na esperança de obter algum esclarecimento. Duas palavras se mostraram: carvão e desejo. Símbolo do fogo escondido, da energia oculta, de uma reserva de calor, o carvão revela, na presença da brasa, a força material ou espiritual contida que aquece e ilumina sem chama e sem explosão, a perfeita imagem do autodomínio. O carvão negro/ frio clama a presença de uma centelha ou de um contato com o fogo para fazer emergir sua verdadeira natureza, tornando possível a transmutação alquímica do estado negro para o vermelho. O

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negro do carvão traduz uma vida extinta e incapaz de reacender por si mesma. As brasas deixadas pelo fogo descortinam a luz das realidades adormecidas. Intermediária entre a chama e a cinza, a brasa só poderá expressar seu ensinamento no silêncio da confiança da intimidade. A delicadeza do caminho estava em saber identificar que condições poderiam fazer ressurgir o calor perdido do corpo e do seu poder curativo. O negro do carvão me fez tocar no círculo amarelo dos seios em perfil em direção à compreensão do nome “carbô-diseur”: “o que pode ser vivenciado no lastro da confiança da intimidade se torna uma realidade nos seios para nutrir o mundo”. De que nutrição essa afirmação falava capaz de emergir apenas da entrega na confiança a dois? Parecia estar diante de um enigma passível de ser reconhecido e compartilhado apenas através do encontro de corpos. Os seios como montanhas necessitariam ser escalados cuidadosamente rumo à conquista do alimento responsável por nutrir não apenas o corpo, mas também a Alma. Na chave, o amarelo do centro imprimia o impulso diferenciador frente ao círculo preto guardião do extrato, do potencial da vida não diluído, condicionando, assim, a verdadeira nutrição do corpo à capacidade do homem em mergulhar e emergir do mar das forças indiferenciadas (o negro) diferenciado e identificado com a fonte. Em muitas tradições a grande mãe é representada com fartos seios nutridores, como aquela que acolhe e aquece aquele que busca aplacar sua sede através do leite da eternidade, o primeiro alimento oferecido aos homens na terra. Símbolo da imortalidade, o leite coloca o homem frente a frente com a transitoriedade dos falsos alimentos e questiona sua identificação temporal.

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Como instrumento de crescimento incita a expansão do pensar, do sentir e do agir. Beber do leite que emana dos seios é restabelecer a conexão com a fonte da vida. Não há encontro possível se a chama do desejo não estiver acesa a impulsionar para uma construção a dois. Ansiava por um outro, um outro de mim mesma, um outro do mundo. Silencioso como o carvão negro, o outro aguardava o momento para se apresentar através do calor do desejo, suficiente para trazer à superfície da pele do corpo o poder adormecido dos elos. Sem a presença do calor do desejo a força da vida não terá expressão e o homem viverá impedido de se apropriar da sua presença e, consequentemente, da irradiância da sua pele. Faltará o contato, o toque responsável por disparar a dança do desejo. “Na sua história, filha, o contato e o toque poderão auxiliar o carvão na manifestação da força adormecida”.

As arrojadas e criativas obras de Gaudí tocaram meus sentidos no primeiro instante que as vi em Barcelona e Madrid. A segunda chave trazia uma das torres da Igreja da Sagrada Família. A genialidade das formas e a riqueza do colorido parecem ser a expressão da comunicação direta do artista com o divino. Sua obra o mergulho na dimensão dos arquétipos e símbolos. Segundo Gaudí: “Na Sagrada Família tudo é providencial”. O que se poderia pensar sobre essa afirmação, estando ela voltada para a dimensão simbólica? A obra da Sagrada Família, dentre vários aspectos, remete-nos a refletir sobre a dedicação exigida a cada homem na construção de um corpo vivo, ou seja, na construção do

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corpo de um sonho em vida. É no espaço dos sonhos que repousam as pulsações da existência à espera de um consentimento para ganharem forma na terra. Todo sonho desperta a possibilidade de romper a barreira entre o finito e o infinito, convidando o homem a enraizar na carne sua criação. A edificação de uma torre retoma o significado da porta do céu cujo objetivo é o de restabelecer o eixo primordial rompido pelo homem e por ele permitir a elevação de qualquer estado até a morada dos deuses. Como representante da escada, ampara as relações entre o céu e a terra, constituindo cada degrau a escalada para este encontro. Na Sagrada Família a torre em sua base quadrangular convoca o homem ao retorno do significado da sua origem e do seu eixo de sustentação rumo à reconciliação com o poder fértil das terras internas, expressão genuína do encontro da Terra e do Céu. Como ponto de partida, os pés, a base da torre, acolhem os mistérios do que foi entregue ao corpo do homem para ser desenvolvido e apropriado por ele. São eles que sabem tocar com intimidade a terra e dela fazer ressurgir a sabedoria das suas redes energéticas, convidando o homem ao aprendizado do seu cultivo. Sem esse cultivo a jornada ascensional ficará impedida de fluir, interferindo diretamente nas mortes e renascimentos do corpo-germe. Não há como realizar uma escalada com excesso de peso nos ombros a exigir da coluna vertebral o que ainda esse reduto não pode sustentar. No corpo, a coluna vertebral, a torre, com suas vértebras–degraus, pede ao homem reverência, reflexão a cada passo em direção ao alto. Sabiamente Gaudí construiu no interior de cada torre escadas em caracol, que dão acesso a quem

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deseje experimentar girar em torno do próprio eixo, tanto para o lado direito quanto para o lado esquerdo. Nesse singelo movimento o homem vivencia o eixo primordial através do circular da energia nas torres da direita-masculina e na da esquerda-feminina do corpo. O movimento em torno do próprio eixo remonta o movimento em espiral dos ritmos repetidos da vida, do caráter cíclico da evolução, da permanência do Ser sobre a fugacidade do movimento. Elevar a terra é deixá-la seguir em direção ao encontro do seu bem amado - o céu - fazendo-a tocar diferentes estados/frequências, ativando em escala crescente as qualidades do seu campo de forças. Em seu caminho para o alto da torre a terra se torna circular na altura da lembrança do seu compromisso em propagar no mundo o que traz na sua intimidade. É pedido à terra a voz do seu coração. Para tanto, as sínteses internas serão fundamentais para o reconhecimento da importância dos encontros ocorridos durante sua escalada. É no coração-coroa que as forças da terra e do céu se tornam Una e irradiam a luz da Síntese. Quando a prata se tornaouro e o ouro se torna prata gerando um terceiro capaz de manifestar uma consciência desperta, o homem consciente da presença do divino na sua humanidade, da sua aliança, desabrocha em flor. O ápice da jornada coroa o casamento das forças, reafirmando o compromisso com o que foi instaurado no corpo agora desperto e ciente de quem é. O homem é. Essa passagem remete-me à terceira chave. Não será ela a chave que reafirma o encontro? A unidade? Capaz de ser vivida a partir do desdobramento dos mistérios das duas chaves anteriores? O território da Sagrada Família afirma a dinâmica criativa

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do número três na expressão máxima da figura de Maria, a mãe, com seu poder acolhedor, da figura de José, o pai, com seu poder fertilizador e da figura de Jesus, o filho, com seu poder realizador. O desafio lançado ao homem está em aprender a conciliar, nas entranhas do corpo, as forças do pai, da mãe e do filho. Apenas através do filho poderá adentrar, ascender e transcender o que o pai e a mãe a ele entregaram. Na segunda chave do sonho, o prateado da lua pedia a ascensão das forças armazenadas no grande útero e o resgate do seu poder de dar forma ao corpo a ser conquistado. Ciente do desafio da torre do meu corpo, decidi mergulhar nas águas escuras do mar das origens em direção aos seios fartos e luminosos da Grande Mãe, buscando compreender mais sobre o chamado, sobre a alquimia possível através do encontro de dois corpos e reverência exigida ao terceiro corpo manifestado. Ultrapassei confiante mais uma porta.

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Sétima porta

Cura Nesta porta senti o peso da responsabilidade recair sobre os ombros diante da intensidade dos desdobramentos da força da vida. Assumir a morada interna com suas presenças, zelar do que dela faz parte e das suas extensões nas vidas de outros, não é nada fácil. Seguir o caminho da cura é almejar desfrutar de uma qualidade de estado e de uma amplitude de consciência que permita ao homem tocar o ato da criação abrigado em cada célula. Como o paciente desdobrar de um manto, o processo da cura dá acesso à segunda pele do corpo, guardiã das memórias universais, responsável por trazer a cada um a consciência da centelha de luz que é. Nessa jornada não há externo a ser conquistado, o mergulho segue em direção ao profundo de uma consciência perdida no além tempo. Na trajetória a ser cumprida os fragmentos de memória são valiosos aliados no recompor da confiança e da conexão com o desejo do criador. O ato de adoecer parece repousar na transgressão e na desconsideração do sensível que permeia e sustenta as realidades. O homem caminha vazio, sentindo-se à parte e desamparado pela existência, se perde no mar das insatisfações, dissolvendo-se em sintomas que obliteram a singela percepção da motivação da sua Alma. Sem espaço para acolher a escuta interna, sem o sustento

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do que suas entranhas anseiam contar se perde em movimentos improdutíveis. O fio criativo da vida só poderá dar início a sua obra quando o homem se dispuser a percorrer os desertos, os precipícios, as erosões do ventre, colocando-se disponível para capturar seus ensinamentos, leis, ordens, pedidos e seu delicado potencial de recepção. Ele é chamado a assumir uma nova frequência de força que o encaminhe a ultrapassar as costumeiras dicotomias: luz e sombra, terra e céu, e a reconhecer a luz que o capacita a gerar mudanças estruturais nas ordens internas vigentes. Ele é lembrado sobre sua unidade e convocado a estabelecer conexões que superam a lógica e a condição humana. É o mistério da vida a se revelar dando ao homem a possibilidade de ser um gerador de corpos e de realidades. Nesse estado de consciência a comunicação precisa possibilita a troca de sopros, de intenções, de presenças, tornando acessível a concretização dos anseios da Alma. O estado de cura repousa no reencontro de uma antiga linguagem entre o homem e o criador. Nesse espaço-tempo não há distâncias, diferenças; há apenas o compartilhar e o comungar com o instante de significativa intimidade entre o homem e sua origem. Os passos dados em direção ao resgate dessa antiga linguagem colocarão disponíveis forças, às vezes, há muito esquecidas que estarão a serviço da reconstrução do eixo de ligação, ancorado no corpo, na coluna vertebral, a morada dos deuses e dos seus desígnios. Mexer nesse local é tocar nos alicerces existentes remodelando ordens antigas arraigadas, mobilização geradora de medos, confusões, perda momentânea do sentido e da direção. Há muitas vozes que emergem simultaneamente de lugares ainda não

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reconhecidos com solicitações múltiplas, por vezes,inquietantes. O momento de abertura dos espaços internos requer muito cuidado. A firmeza do que ansiamos conquistar internamente é a única sustentação quando tudo parece estar ruindo e escapando. O tremor das terras do ventre é assustador, principalmente quando encontra resistências daquele que é convidado a se entregar ao processo. A emergência da luz ocultada nas entranhas revelará sua face apenas na aceitação e no reconhecimento do fio da ligação entregue a cada homem para ser tecido em sua jornada pessoal. Os conteúdos emergentes do ventre buscam fazer conexões com os fragmentos de memórias existentes na consciência em prol da construção das histórias a serem reorganizadas na dimensão atual. Nessa dança das ligações o invisível ampara os passos, aparentemente sem sentido para a consciência ordinária, que tocam o silêncio fértil do vazio. Os conteúdos das jornadas refletem a diversidade dos corpos presentes em um único corpo a pedirem reconhecimento e cuidado. São portas que quando abertas encaminham o homem à compreensão do que o autorizou a existir nesta fração de tempo denominada Terra. A comunhão com as forças da fonte parece ser a incessante busca do corpo. Tornar-se uma porta, uma via de acesso e comunicação com a existência, tendo por desafio o despojamento, inevitável, das identificações com os “eus”, estar aqui e não pertencer ao aqui. A entrega a essa jornada levará a sucessivas purificações e mudanças nos estados vibracionais, responsáveis por fazer ressurgir os registros do corpo-receptáculo. Cada homem é

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convocado a legitimar o lugar de agente transformador que é. O tempo passa a comunicar o não tempo, a atravessar as aparentes distâncias dos mundos, tendo por alvo a experiência do encontro entre células, passível de disparar partículas de elevada frequência energética ativadoras dos elos de ligação entre o céu e a terra no corpo. Quanto maior a expansão da percepção interna, maior será o descolamento, por parte do homem, das identificações exclusivamente terrenas, reafirmando não estar essa jornada a serviço do psiquismo ou da organização de uma personalidade. Essa caminhada guarda com ela genuínos detalhes que quando reconhecidos asseguram o aproveitamento devido das energias e dos seus potenciais disponíveis. Toda mudança de estado vibracional e dimensão mobilizam as raízes do corpo, ocasionando alterações no nível físico, emocional, mental e energético. No transcorrer do processo, no âmbito físico, será possível experimentar alterações na percepção corpórea como, por exemplo, perda das dimensões do corpo, alterações dos seus níveis de força, oscilações entre os estados de presença e de ausência. São experiências que viabilizam a retomada de importantes porções da condição indivisível do homem, da presença das leis que de fato o constituem e do significado e sentido do corpo como instrumento. No nível emocional, antigos conflitos poderão emergir servindo de base para o resgate e para a compreensão das nuances que animam o conflito original entre o homem e a criação. A intenção norteadora será a de conquistar uma qualidade de ligação interna que assegure o mergulho no mar das dúvidas sem o sucumbir na divisão e fragmentação, viabilizando ao homem desprender-se das

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identificações que aprisionam seu Ser. Crenças, valores, concepções, são diretamente mexidos em prol do estabelecimento de uma ordem diferenciada cuja sustentação estará pautada na natureza da essência. O homem necessitará de tempo para acomodar as expansões energéticas do seu novo repertório, para administrar as possíveis oscilações dos ritmos do corpo, assim como da atenção, da concentração e do emocional nesse período. O estado da cura se delineia e se aprimora na medida em que cada homem assume o cultivo das forças do Universo no corpo. São potenciais energéticos que têm por representantes inicialmente as forças animais, qualidades que desencadeiam sucessivos resgates e consequentes casamentos internos. Sem o encontro com as forças animais e o aprofundamento da sua escuta não será possível ao homem acionar a engrenagem da construção do eixo céu e terra e assegurar a qualidade da sua obra. A conquista do estado da alegria e da exaltação introduzirá em novos territórios celulares nos recônditos espaços da terra do envelope corpóreo. Nessa dinâmica o homem identificará que alimentos são ímãs eficazes para atrair mais vida para a vida, mais expansão, realização e fertilidade para ela. Em minha trajetória reconheci muitos alimentos, perfeitas antenas de captação de forças, que sustentaram as ações. Os banhos de ervas, a dança, oartesanato, as rosas, o cuidado com as plantas, o canto, a escrita, o estudo dos símbolos, os gatos e outros, foram forças aliadas no emergir da verdade da natureza interna. Quanto mais o homem se coloca receptivo para retirar os véus do entorpecimento, maior espaço revelar-se-á no corpo, levando-o

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a sustentar o vazio prenhe das entranhas. Sem o amparo do vaso interno, ventre, o céu não poderá partilhar sua sabedoria. A edificação do estado de cura gera uma diferenciada forma do tempo se manifestar. São horas que mais parecem segundos, dias que mais parecem anos. O tempo se abre, torna-se plástico. A dança dos fios da vida requer cuidado para que sua integridade não seja violada e o homem não necessite adoecer tanto. Mas a falta de cuidado tem feito com que ele forje e se emaranhe nas ilusões que o convencem acreditar percorrer a jornada que sua Alma requer. Falar da Alma e da Espiritualidade passou a ser referência de importância e destaque. Mas o que é a espiritualidade senão o caminho destinado ao homem para que experimente, no veículo do seu corpo, os desdobramentos da sua essência e o faça cumprir o que em sua pele está cravado, tendo como pai e mãe o impulso criativo da vida? Será que ele está disposto a pagar o preço requerido por esse encontro com ele mesmo? Não há crescimento sem trabalho. Não há nascimento sem disposição e compromisso. O estado da cura visa reativar a plenitude do número três, do movimento da força dos elos a convidar a criatura a fazer parte ativamente da obra do criador. Sustentar o fruto desse encontro é reconhecer a presença da mãe, como terra tocada pelos mistérios, e a presença do pai, como força misericordiosa e fertilizadora. Nesse caminho demarcado pelo encontro, o reconhecimento de quem a pele reveste é esperado. Mais um passo e fui ao encontro dos elementos em mim.

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Oitava porta

Água e Fogo A gruta é o reduto das revelações. No seu escuro, o rasgo de luz é convidado a iluminar o que não pode ser iluminado pelos olhos despertos. É o olho do coração que ela convoca a ser tocado em seu silêncio e verdade. As forças ali disponíveis incitam ao recolhimento sem que as testemunhas externas ocupem o lugar das palavras. O guia disponível é a entrega. Este é o momento do confronto. Com o corpo virado pelo avesso não é possível negar o que habita em cada um, o que constrói e o que destrói internamente. O dentro se revela sem pudores, ultrapassando os costumeiros limites criados. O homem se devora como a grande serpente a devorar a própria cauda a espera da diferenciação. O ponto de partida desta jornada no corpo é a boca, fonte de construção e manifestação do sopro. É a boca que mergulha e percorre internamente todo o canal esbranquiçado que a liga ao ânus em busca da comunhão com a boca original, receptáculo de toda criação. Nesse caminho de retorno o homem toma posse do Si mesmo, sendo testemunha desperta do que o invólucro da pele oculta. O Uroboros é a imagem da serpente circular que morde a própria cauda, tradução do estado psíquico inicial, da condição primeira em que a consciência ainda não se desenvolveu imersa no mar dos opostos e do caos. O círculo construído pela serpente

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que se devora contém ao mesmo tempo as idéias de movimento, de continuidade, de autotransformação e do eterno retorno. É a união do mundo ctônico, figurado pela serpente, com o mundo celeste, representado pelo círculo, a romper com a incapacidade do movimento linear em acolher o processo ascensional da força da essência em direção a estados mais elevados de consciência no corpo. Quando o homem decide ir ao encontro da sua terra tocará em redutos famintos do que é essencial. São lugares que abrigam em si o impulso espontâneo da realização, sustentados pela força ativa das águas primordiais. São espelhos d’água, de intensa força energética ainda indiferenciada, à espera de condução e expressão. O corpo, dentro dessa perspectiva, necessitará apropriar-se da sua capacidade receptiva e do potencial não diluído que o anima, seu nome. Participar das águas do nome é reconstruir a relação de confiança com o poder de manifestação e criação do reduto do coração sobre suas terras, fazendo emergir o seu compromisso com o corpo de luz. É na presença do fogo que o extrato da essência é liberado e os perfumes passam a habitar a terra. Não há corpo que se reconheça da mesma forma quando tocado por esse elemento. Suas marcas são profundas fendas de onde exalam a sabedoria e o calor da Alma. É o fogo que reúne, restabelece a troca das essências, reacende a confiança do homem com a origem, elevando seus estados. Sua presença autoriza a abertura das dimensões como uma realidade palpável. Sua chama só poderá ser acesa quando o corpo se dispuser a se tornar a própria chama, a reacender o compromisso com os atos criativos do existir. Fogo e água, opostos

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complementares, a serviço do recobrar no homem da força adaptativa, condutiva e de manifestação das ordens mais elevadas do Ser. É o infinito a aquecer a água e a exaltar a chama em nome do que precisa se realizar no homem. O elemento fogo, meu avô como costumo chamá-lo, traduz a morada da vida em mim e a referência da comunicação com as dimensões. Coloco-me como uma mensageira a guardar a sabedoria antiga dessa chama comprometida com o pulsar da vida em seu poder de criação. Suas mãos fazem parte do meu corpo de agora e de muitos tempos, sou-lhe grata pela presença. Foi esse elemento que me guiou ao encontro da sua consorte a água. A jornada foi marcada por experiências delicadas onde afoguei-me na incompreensão do significado da vida e da morte na dimensão terrena. Foram duas iniciações, uma aos nove anos na água salgada e a outra aos vinte e três anos na água doce. As marcas dessas e de outras experiências no corpo foram sendo cicatrizadas pelo calor e orientação do avô fogo no seu encontro com o potencial da água. Desse encontro, o vapor exalado elevava aos céus seus aromas e a chuva se entregava à terra para fertilizá-la. Reverenciei a força desse encontro no coração carregado de rosas amarelas e segui a jornada em direção ao sopro da terra. Curvei-me a mais uma porta.

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Nona porta

Terra e Ar A entrada da gruta permanecerá fechada para aquele que resiste à possibilidade de deixar o controle. Os sentidos deverão penetrar os reinos internos em direção às sucessivas iniciações no útero da mãe, local de repouso das transformações da chama da vida. O corpo vislumbra o amanhecer e espera ávido o tempo da abertura das câmaras internas para que nasça em corpo, em germe nesta dimensão. E o corpo da mãe se apresenta ao mundo aguardando a presença do pai através do filho que acolhe nas entranhas. A natureza pede ao homem a compreensão do tempo da espera através do útero materno. A espera da retomada dos registros dos diminutos movimentos de cada célula na edificação de um corpo. O tempo de uma gestação configura-se no tempo que o infinito precisa para se delinear e reverberar as comunicações sensíveis e inteligentes do Universo destinadas a ela. O homem é convidado a se inteirar da obra que é. A essência da terra se desdobra nos ciclos, ritmos e pulsações e em seu movimento contínuo expande a possibilidade das camadas que a compõem anunciarem seus atributos. Não há corpo que a terra não se apresente a apelar pela retomada da fertilidade dos fluxos da vida. No corpo é possível identificar os

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estados da terra apartir das respostas dos órgãos. Normalmente as áreas mais vulneráveis expressam a perda da energia característica da sustentação desse elemento, necessitando do auxílio dos demais elementos para o reequilíbrio do seu funcionamento. Há muitas terras abandonadas no corpo, ressecadas pelo tempo. Certa noite, na presença do fogo, o tempo pareceu parar. No ar uma suave brisa. Foi quando senti uma presença próxima. No primeiro instante estremeci frente a imagem daquela senhora grande e negra. Era a terra negra a me falar da reconexão necessária com a mãe, com o princípio feminino. O pulsar da sua fala trouxe de volta a umidade e o frescor ao corpo, e com ele a imagem de uma tartaruga nas brasas do fogo. No ar o cheiro forte da flor de acácia anunciando a possibilidade de encontro entre o céu e a terra e do equilíbrio das porções masculina e feminina. Foi precisa a sensação de firmeza da terra nos pés, senti-me amparada e acolhida. Foram instantes de fortes emoções. Restava-me reverenciá-la com todo respeito, pedindo-lhe perdão por tamanho esquecimento. Foi quando ouvi: “você não precisa mais abominar a mãe e se vingar do pai”. Essa informação veio acompanhada da imagem de uma mulher sendo queimada em uma fogueira. Tive a clareza de que aquela dor era a de ter dedicado e entregue a vida ao cultivo da grande mãe e diante de tamanho desespero, desamparo, solidão e abandono, abominei e rejeitei um compromisso. Onde estava ela, a mãe? Onde estava o pai capaz de permitir tamanha atrocidade? Do arquétipo da Grande Mãe, o surgimento de dores e ressentimentos. Manter a presença na dor das vísceras me levou à compreensão do significado da Mãe Divina. Podia sentir no corpo a reverberação da sua

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doação, do seu acolhimento e identificar a ressonância dessas qualidades na mãe terrena a entregar seu corpo ao desenvolvimento de uma semente sem nada saber do seu destino. Toquei no eterno da dor do abandono do grande útero arquetípico e, ao mesmo tempo, no acolhimento de um ventre terreno. Nesse instante de abertura vislumbrei o sentido de se ter um corpo como um poderoso veículo de ancoramento da realidade mágica das memórias universais. A dor que emerge das entranhas pode conduzir à fonte ou retirar o homem dessa direção, encaminhando ao cultivo da revolta e da ira, interceptando o fluxo do viver. Quando o homem não reconhece a presença da dinâmica das leis da essência nas experiências, tenderá a equívocos na leitura das circunstâncias reduzindo-as a causalidades. Desejará explicar pelas vias comuns o que não poderá ser entendido dentro dessa perspectiva. Quanto maior for sua intimidade com as ações das leis essenciais, mais sutilmente elas manifestar-se-ão, chamando-o a desvendar novos reinos e adquirir novas linguagens. Toquei na zona limítrofe das dimensões, onde não há separação entre a morte e a vida, entre o dentro e o fora, entre o em cima e o embaixo. Abria-se uma nova ordem passível de me orientar à experimentação dos antigos registros abrigados pelos corpos encarnados, áreas máximas de recepção. É a terra sendo animada pelo sopro sagrado, dando passagem ao que os céus desejam comunicar através de palavras que revolucionam o solo que as recebem. É a pulsação ritmada entre a terra e o sopro, animando e preenchendo os espaços para que novos corpos de-

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lineiem suas formas em cada homem, fazendo-o despertar para o sentido de ser preenchido pelo pai e pela mãe arquetípicos. O fogo e a água, o sopro e a terra, dois pares, quatro elementos, fonte de todas as possibilidades. Demarcam o início, os recursos a serem restaurados por aquele que vislumbre o despertar da condição imaterial. Desfrutar desse banquete é nosso desafio. Animada pela força dos quatro elementos, carregando o coração cheio de esperanças no cálice do ventre, ultrapassei mais uma porta.

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Décima porta

Portal Eis a presença do portal. Limite explícito da mudança de dimensões e estados de consciência. Diante dele a inevitável parada, o contato com o silêncio que conduza a sínteses. Sua aparição, sinônimo de finalizações e do reconhecimento dos passos dados com seus significados. É um instante traduzido por tantos instantes cujas marcas emanam odores variados. Os odores inebriam a atmosfera demarcando as histórias vividas com seus encontros e desencontros. Não há como transpor um portal sem a consciência plena da última pele que será retirada. Pareço não mais pertencer apenas a mim. Fui tocada pela chama, acolhida pela terra, preenchida pelo sopro e ressuscitada pela água. Trago chaves em minhas mãos, resultado das conquistas das terras desvendadas. Cada experiência uma fechadura a incitar o homem a transpor o portal. Seguir o caminho é deixar realizar o que necessita a Alma, na confiança das ações guiadas pelo amanhecer de uma nova aurora. Não há dúvidas, não há hesitação. Há uma voz audível a dizer: “cá estamos a tua espera. Não temas. Confie e ultrapasse o limite que te escondes da tua verdadeira face.” Reconhecer qual o desejo que a vida quer que desejemos junto com ela não é simples. Requer dedicação e entrega. Talvez tenha sido por isso que durante muitos anos permaneci ausente da minha verdadeira jornada pessoal.

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Escuto pessoas falarem ser mais fácil uma vida não desperta. Não concordo, apesar de todos os preços pedidos ao longo do caminho. Não anseio prosseguir uma caminhada órfã, amparada pelo medo em romper as fronteiras do desconhecido. Desejo saborear a vida em suas íntimas entrâncias, nos milésimos de segundos do silêncio audível apenas pelo meu coração. Anseio movimentar minhas asas para que no topo das montanhas possa experimentar na pele a brisa que traz o êxtase. Aprender a não pensar sozinha é uma construção. Estar acompanhada pelos mundos, uma descoberta. Ser guiada, um teste de confiança. São desafios constantes e a possibilidade segura de romper os limites por eles expostos. A escuta deverá estar em sintonia com o fluxo contínuo da criação. Qual o próximo passo? O que desejam de mim neste instante? Qual a face que necessita se revelar? Tornar-se receptivo é a chave para toda a jornada. No espaçotempo da receptividade me aproprio das forças disponíveis, obtendo o apoio para o mergulho. A direção a ser seguida é a do coração e da reconquista do seu poder de cura ainda selado nas terras do ventre. Todo o percurso trilhado até aqui revelou em cada porta aberta pedaços da essência esquecidos nas terras abandonadas pelo adormecimento. O amor não é uma substância a ser fabricada. É um estado a ser conquistado como o da cura. É uma qualidade de força disponível na existência, mas que exige algumas condições para ser acessada. O ouro, o símbolo capaz de traduzir sua preciosidade, demanda paciência e continuidade para ser adquirido. Reflete o aprimoramento a ser coroado em todo o percurso. Não há como cultivar

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a terra do ventre e reconhecer o valor do corpo receptáculo se a escuta dos mundos, através do coração, não for tocada. O pedido adquire corpo: “segue a voz que vem de longe e assegura a chegada no porto das realizações. Teu coração tem muito a falar e a expressar. Desvenda-o como o despetalar de uma delicada flor.” A única imagem capaz de representar esse pedido é a da rosa. Esse cálice de pétalas perfeitamente confeccionado pelas ágeis mãos da vida. Percorrer o labirinto das pétalas é descortinar os mundos em direção ao tesouro do nome. É o assumir o corpo como antiga escritura. Não há mais tempo para fugas ou justificativas tolas. O corpo anseia comunicar-se, expandir sua perspectiva a partir do novo fluxo nele implantado. O nascimento está marcado. As contrações da terra do corpo assinalam que a hora de nascer chegou. A ultrapassagem necessita acontecer. A história precisará ser contada para que outros encontros possam existir. Todo movimento de passagem arrasta consigo o nascer do sol. Nascer para o mundo é partir em direção ao outro, ao outro que reconheço como reflexo da criação como eu. O vazio solitário existencial aniquila os tempos e os templos, aborta as oportunidades de retomada do calor da pele que dissolve os hiatos entre as dimensões, entre o ventre e o coração. A presença do outro como testemunha permitirá ao homem sair da condenação da impossibilidade, tornando real a partilha dos sopros e das chamas. É o outro quem auxilia no rompimento dos jogos ilusórios, instituindo um território seguro para que o homem sustente sua humanidade e divindade a partir da comunhão de peles, sangues, ossos e carnes.

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Adoeci por ter me fechado à existência do outro, por ter esquecido que há um céu a espera de uma terra, pelo recolhimento abusivo, pelo fechamento e negação da vida. Negar o outro é negar outras dimensões, realidades, corpos, existências, acreditando que não há mãos tecendo a vida a todo instante junto conosco. As dez portas que emergiram do encontro com meu corpo contam sobre o desejo de saborear dos milagres e mistérios das forças do Encontro. Se me é pedido percorrer e tomar posse da vida como um cálice que traz um doce vinho, que assim seja. Se me é pedido honrar e anunciar as histórias dos mundos, que assim se cumpra. Desejo ocupar o lugar que a mim foi reservado, ansiosa por escutar o canto da vida. Sem choro e sem olhar para trás ultrapassei o portal. Tudo em mim estava agora em movimento ávido por comunicar a muitos as experiências do mergulho no Mar Vermelho. Em minhas mãos a semente salva do esquecimento e do abandono envolvida em mel. A claridade penetrou os poros da pele reconhecendo sua nova morada. Os olhos mantiveram-se erguidos embora as lágrimas não parassem de rolar pela face anunciando a alegria de um trabalho cumprido. Sei que não há fim quando se fala da eternidade, nem tampouco anseio esgotar essa fonte que agora jorra sem pedir licença. Há muitas vozes que desejam ganhar espaço em futuras linhas vermelhas como o sangue da vida a afirmar a sua vitória sobre a morte. E assim continuo a tocar, a desvendar novos solos, realidades, deixando as marcas, através da escrita e da fala, nas terras do infinito da existência. Muito obrigada.

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Referências Bibliográficas CHEVALIR, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro:José Oympio,2008. LURKER, Manfred. Dicionário de Simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ULTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. BIEDERMANN, Hans. Diccionario de Símbolos. Espanha: Ediciones Paidós, 1993. SOUCASAUX, Nelson. Os Órgãos Sexuais Femininos: Forma, Função, Símbolo e Arquétipo. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

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