“A” maiúsculo com círculo à volta
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“A” maiúsculo com círculo à volta Rui Eduardo Paes (rep.no.sapo.pt) Volume -3 da colecção THISCOvery CCChannel. Editado por Marcos Farrajota, revisto por Rafael Dionísio. Design de Bráulio Amado (alva-alva.com) Ilustrações de Braúlio Amado, David Campos, João Chambel, André Coelho, Marcos Farrajota, José Feitor, Jucifer, André Lemos, Daniel Lopes, Ana Menezes e Joana Pires. Publicado pela Associação Chili Com Carne (chilicomcarne.com) e Thisco (thisco.net). Impresso na A3 - Artes Gráficas, Portugal, Maio 2013 Dep. Legal: ____________ ISBN: 978-989-8363-21-3 Os editores e autores dos textos e ilustrações prescidem dos chamados “direitos de autor”, desde que os conteúdos deste livro sejam utilizados exclusivamente para objectivos culturais e artísticos, sem fins lucrativos, e cujos autores sejam informados de tal. Proibida a cópia para fins comerciais.
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Muitíssimo Suspeita Introdução 8
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ste é um livro suspeito, se bem que, com ele, se verifique – apesar de tudo – que ainda acredito em alguma coisa. E é suspeito não apenas por se sustentar em “suspeitas” (adesões de princípio ou, pelo menos, manifestações de interesse), como fazia Robert Anton Wilson, mas porque se fez livro por acidente. Antes de o ser, foi uma série de textos publicados no blogue Bitaites, sem periodicidade fixa nem sequencialidade lógica – tanto assim que não eram numerados. O que aconteceu propositadamente, pois isso deixava-me à vontade para abandonar a empreitada quando esta se me revelasse entediante. Pois, aborreço-me com facilidade… Mas já nessa fase bloguista as prosas eram suspeitas, e não porque tivessem influenciado as sessões de pedrada diante do Palácio de S. Bento. Não foi minha pretensão apresentar teses de alto relevo intelectual ou sequer partilhar informação privilegiada, até porque não me pareceu que os leitores habituais do Bitaites tivessem especial curiosidade pelos algo esquizofrénicos meandros da Anarquia – facto confirmado pela ausência de comentários, fossem a favor ou contra o que escrevia – e porque não sou, de todo, um especialista na matéria. Simplesmente, os textos que saíam eram notas de leitura que fazia, enquanto investigava as novas tendências do pensamento anarca e as suas relações com a música. Nada mais do que isso. O que me motivou a tal? Sede de conhecimento, claro, mas sobretudo resultou de uma
minha maior disponibilidade temporal para um estudo de grande fôlego, numa altura em que começava a faltar-me trabalho. A revista de que era o editor tinha sido “descontinuada” e as instituições culturais com que colaborava estavam a sofrer cortes nos orçamentos de programação. Digamos, pois, que os escritos que se seguem, revistos, adaptados e, espero, melhorados para ganharem formato de livro, constituíram como que uma terapia ocupacional, canalizando a raiva que me ia crescendo contra as políticas de austeridade em vigor. Estranhamente (tendo em conta o aparente nenhum impacto público dessas minhas pessoais reflexões), houve quem lesse com atenção e gostasse, com a Chili com Carne a convidar-me a compilar esses posts nesta edição. Ao contrário de Wilson, que não acreditava em nada, o editor e autor de banda desenhada Marcos Farrajota voltou a acreditar em mim poucos meses depois de ter publicado o meu Bestiário Ilustríssimo. E é assim que, nas páginas seguintes, encontrarão questões reais e irreais (e até surreais), que num certo sentido não têm qualquer significado, mas noutro podem até ter muito. O que aqui vai lê-se depressa e até recomendo uma audição para acompanhar: o álbum And the World Aint Square’, do grupo 4 Walls, que começa com o magnífico The Anarchist’s Anthem…
Rui Eduardo Paes Parede, 10 de Janeiro de 2013 9
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de Deleuze, impresso em 1946, quando este contava apenas com 21 anos de idade. Trata-se do prefácio de um obscuro livro publicado por um médico e ocultista do período romântico de que hoje pouquíssimo se fala, um tal de Johann Malfatti de Montereggio, austríaco de origem italiana. “Mathesis: Estudos sobre a Anarquia e a Hierarquia do Conhecimento” é o título dessa inttrodução, de imediato nos levando a suspeitar outra coisa que não uma prévia influência anarquista no filósofo francês. Se o termo mathesis universalis foi avançado pelo racionalista Descartes para a designação de uma ciência capaz de tudo explicar, o certo é que os seus fundamentos são platónicos, teológicos e esotéricos, e foi nesse âmbito que Malfatti o utilizou. O que este escreveu e o que sobre ele e “Mathesis” considerou Deleuze nessa prosa ilumina muitos aspectos da posterior obra do coautor, com Félix Guattari, de Anti-Édipo, como o ensaio Diferença e Repetição e o conceito de «corpo sem órgãos». A verdade é que nunca mais Gilles Deleuze haveria de mencionar Malfatti, não obstante aplicar, recorrentes vezes, a ideia de mathesis no seu ensaísmo. Além disso, não permitiu que fossem reeditados os seus escritos de juventude, motivo que explica a surpresa de Kerslake. Aqueles mantiveram-se resguardados da maioria dos leitores. Ora, Malfatti chegou a ter um papel importante nos meios secretos do ocultismo europeu do século XIX, entre martinistas, rosacrucianos, mações livres, Illuminati e teósofos. Enquanto médico, era um seguidor dos métodos de John Brown: todas as terapias envolviam a administração de drogas como o ópio, o arsénico, a cânfora, o vinho ou a cinchona do Peru. Não era raro que, no Hospital Geral de Viena, os doentes estivessem profundamente embriagados, deambulando pelos corredores ou jazendo, prostrados, nas suas camas… Antes um teólogo, Brown virou-se para a medicina depois de curar a gota de que sofria com o consumo de ópio. Colocou em prática com os seus pacientes a teoria de que o organismo humano funciona pela combinação de estímulos externos e internos, sendo a manifestação de uma qualquer doença causada por um desequilíbrio destes. O uso de ópio funcionava, simultaneamente, como um estimulante e um calmante da excitabilidade de um corpo.
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Ilustrações por Bráulio Amado
Gilles Deleuze e o Envenenamento de Beethoven 12
Vivemos um curioso momento da história do pensamento anarquista. A guarda-avançada deste tomou a designação de Pós-Anarquismo, pelo facto de ter interiorizado as reflexões críticas da contemporaneidade, desenvolvidas pelos filósofos da escola pós-estruturalista, com especial destaque para Gilles Deleuze e Michel Foucault. Numa altura em que a Anarquia já não tem de ser adversa ao divino, e em que vemos florescer um anarquismo cristão, defensor do regresso a um estado selvagem, e um Paganismo anarca, com incursões pelo xamanismo e pelo uso ritual de substâncias dopantes, estas “novas pessoas” (assim se identificavam os niilistas russos nos finais do século XIX e inícios do XX, e o termo ficou para identificar os seus descendentes) têm-se deliciado com a descoberta do ocultismo e das suas potencialidades especulativas. Foi, pois, com evidente prazer que Christian Kerslake encontrou um dos primeiros textos
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Para alguém do nosso tempo, isto pode parecer estranho, mas tenha-se em conta que, há dois séculos, os psicotrópicos eram encarados como a melhor das panaceias, sendo livremente comercializados e administrados… Nem a circunstância de os seus doentes acabarem por morrer, fosse por inexistência de uma cura mais efectiva ou por overdose, demoverau Brown e Malfatti de usar aquelas drogas, segundo rezam as crónicas, ambos evidenciando o típico comportamento dm toxicodependente. Antes pelo contrário: o último chegou a ser o clínico da moda preferido por príncipes e burgueses. E por artistas: o seu nome é mais reconhecido, hoje, como o médico do compositor Ludwig van Beethoven do que por qualquer outra actividade. Ou melhor: como o médico que matou Beethoven. Mas já lá vamos… Para já, importa estarmos cientes de que o entendimento da época era muito diferente dos juízos morais que possamos ter na actualidade. Segundo Schelling, o pai da naturphilosophie de então, e também um inveterado fumador de cachimbos chineses, Brown «foi o primeiro a entender os únicos genuínos princípios de todas as teorias da natureza orgânica». Por exemplo, os de «sonambulismo» e «magnetismo animal», que a medicina oficial depois deixou cair. O «fogo artificial» adoptado por Malfatti para a estimulação dos «corpos sem órgãos» tem tido a longevidade que sabemos e encontrou outros defensores em filósofos de influência recente, como os psicadélicos Timothy Leary e Terence McKenna, ambos, de alguma maneira, influenciados pelo movimento anarquista e, quiçá, pelo ocultismo romântico. O próprio Gilles Deleuze conta-se entre os pensadores radicais que realizaram experiências com drogas, juntando-se a uma lista que remonta ao pós-marxista Walter Benjamin e ao anarca Ernst Junger nos seus últimos anos de vida. O orientalismo de Leary e McKenna nas décadas de 1960 e 1980 estava já presente no Malfatti da passagem dos anos 1790 e 1800, que mergulhou no misticismo hindu como poucos mais dos seus contemporâneos e daí retirou a noção de uma «anatomia oculta» ordenada segundo polaridades, potências e planos. Factores matemáticos, mas de uma velhíssima, milenar, matemática metafísica. O nome Malfatti faria as delícias dos niilistas de barbas hirsutas e roupas intencionalmente sujas que, mais tarde, não olhariam a meios para assassinar o czar da orgulhosa Rússia. Em 14
todas as línguas é traduzível por «Mal Feito» ou «Mal-Intencionado». Muito se discute sobre o que realmente aconteceu. Pode o iluminado doutor ter planeado a morte por envenenamento de Beethoven, aumentando a dose de arsénico nas poções que lhe preparava. Pode ter-se tratado simplesmente de um acidente, ainda que previsível com tão perigosa medicação. Pode até ter sido o compositor que exagerou nas quantidades ingeridas. O certo é que foi a mathesis que tirou a vida a Beethoven. Este, ao que parece, não estava propriamente enfermo; necessitava, isso sim, de ser estimulado para compor, e foi essa a função desempenhada pelo médico ocultista. O arsénico tem propriedades afrodisíacas e estas, quando desviadas da prática do sexo, ou seja, quando sublimadas ou “transcendentalizadas”, têm uma reconhecida potencialidade criativa. Beethoven foi estimulado até ao nível da absoluta não-excitabilidade. De certo modo, foi simbolicamente deposto da sua condição de génio. A grande ironia desta história, que tem Gilles Deleuze como mediador, é que um outro grande nome da música, o anarquista Zen John Cage, sustentou toda a sua teoria musical na negação de Beethoven. É proverbial a sua afirmação de que este «estava enganado». E estava enganado, na sua opinião, porque Beethoven definia as partes de uma composição por meios harmónicos e Cage não só desdenhava a relevância da harmonia como tinha uma pessoal incapacidade para lidar com a dita. Conhecendo as afinidades do Pós-Anarquismo com a ficção científica e a literatura fantástica de um William Burroughs, temos aqui os ingredientes para imaginar que Malfatti de Montereggio foi mandatado por um Deleuze feito viajante do tempo por meios mágicos, aquando da sua morte em 1995, para aniquilar o responsável pelo autoritarismo da harmonia na música, Beethoven. Repare-se que assim tornando possível a existência de um Satie, de um Webern e, claro, do inventor do piano preparado… O segredo imposto pelo pensador pósestruturalista quanto às suas ligações intelectuais com o pré-niilista de Viena, nascido em Itália, poderia, neste contexto, ser interpretado como o indício da sua cumplicidade num crime. Restaria identificar quem foi o cérebro desta conspiração movida pelo anarco-esoterismo. Hakim Bey? Para todas as consequências que disso queiramos retirar, o mais mediático dos pós-anarquistas tem cadastro criminal. É um publicamente assumido pedófilo. 15
Quando alguém como o contrabaixista português Carlos Barretto se identifica como «anarquista Zen», à semelhança, aliás, do que fez o compositor John Cage, o que quer isso dizer? Que é um anarquista “suave”, “calmo”, “moderado”? Nem por isso. Contrariando a imagem que parece deleitar as televisões do manifestante movido a cerveja que atira pedras e cocktails molotov, a Anarquia pode ser vegan e nãoviolenta, mas a sua radicalidade não se dá a medir. O que a identificação como anarquista Zen vem dizer é que a Anarquia pode ter uma dimensão espiritual, algo que não agrada aos ortodoxos do próprio campo libertário. Apesar, diga-se, de todas as evidências deixadas pelos próprios fundadores do movimento… O suposto “ateísmo” de Bakunine não era como o de Marx, se bem que a indicação de que ambos frequentaram a Maçonaria deixe iguais indícios de espiritualidade para o lado do teorizador do materialismo dialéctico. Afinal, um Pedreiro-Livre deve acreditar em alguma entidade divina, mesmo que lhe chame de O Grande Arquitecto. (O que me lembra um dito do mais fascinante dos anarquistas da segunda metade do século XX e um dos maiores teorizadores da conspiração de sempre, Robert Anton Wilson, co-autor da Illuminatus Trilogy: «Já fui ateu, mas percebi que não tinha ninguém a quem chamar quando me faziam um broche. “Oh Acaso, Oh Acaso” não me servia…») Mas, enquanto o aparentemente falso ateu Karl Marx definia a religião como o «ópio do povo», um ainda menos ateu Mikhail Bakunine identificava a causa da liberdade com… a causa de Satã. O certo é que se confundiu nestes dois homens o conflito com Deus com a descrença em Deus. «Mas eis que avança Satã, o eterno rebelde, o primeiro pensador livre e o emancipador dos mundos. Ele envergonha o homem confrontando-o com as suas bestiais ignorância e obediência; ele emancipa-o, coloca-lhe na testa o selo da liberdade e da humanidade, incitando-o a desobedecer e a comer o fruto do conhecimento», escreveu o russo. O inevitável aconteceria, pois, na evolução do anarquismo desde o século XIX: uma íntima relacionação com organizações ocultistas e místicas de vário teor, entre o Paganismo, o Gnosticismo cristão, o Judaísmo da Cabala, as devoções orientalistas e as muitas sínteses – algumas delas excêntricas, delirantes e pronunciadamente fantasistas – das várias fés.
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Ilustrações por Marcos Farrajota
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O Castor com Cauda de Lagostim 16
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Sim, aqueles barbudos anarcas que vemos em fotografias desbotadas dançaram nus nas florestas, festejando os ancestrais mistérios, e entregaram-se a orgias carnais que fariam as delícias dos Inquisidores apesar de serem uma outra forma de Comunhão… O que nada tem de demasiado estranho, se escrutinarmos os fundamentos dos princípios anarquistas, desde o Taoísmo na China às ordens heréticas do Catolicismo europeu. A vivência clandestina ou semiclandestina dos anarquistas casou bem, no passado, com a desses grupos marginalizados pelas hierarquias eclesiásticas. Vem daí, talvez, o gosto de Bakunine pelas sociedades secretas, que considerava necessárias até num contexto de federação dos trabalhadores para a autodeterminação dos seus destinos. Esta visão de um anarquismo espiritual poderá ainda ser surpreendente, mas traduz-se na participação de muitos anarquistas no actual regresso da feitiçaria, em torno da Deusa Gaia, Diana ou Kali, e da magia, numa retoma das pesquisas de Aleister Crowley, também conhecido por A Besta. Por vezes distinguindo-se, inclusive, como protagonistas em ambos os domínios, como é exemplo Starhawk, a bruxa que também é escritora, activista anti-autoritária, feminista lésbica e ecologista empenhada na difusão da permacultura. A mais longínqua base do ideário anarquista está na filosofia Tao do século VI A.C., que rejeitava a noção de governo e de propriedade e defendia que tudo devia existir em harmonia natural e espontânea, entregue a si mesmo. O não-intervencionismo, para taoístas como Lao Tzu e Chuang Tzu, era a condição para as coisas do mundo – do cosmos, aliás – florescerem. O Tao da China antiga era o correspondente ao nosso ocidental Caos: uma fonte de energia em contínuo estado de fluxo, um processo. Qualquer interferência com este só pode ser negativa – à aplicação da força sucede-se a fraqueza, acreditava-se então e continua a ser verificável. Quando Tzu advogava o wu-wei, ou seja, a «não-acção», o «trabalhar sem fazer», não era um apelo à inércia que fazia, mas uma renegação de todas as actividades e instituições que contrariassem a natureza. Foram estas premissas do Taoísmo que influenciaram o posterior Budismo Zen e lhe passaram o simbolismo do arco. Não necessariamente o arco para disparar as flechas que emanciparam a caça do menos eficaz arremesso de lanças, dada a orientação Zen para o
vegetarianismo; não já o arco para acender o fogo, como aconteceu nos primórdios da humanidade; mas o arco para a criação de música com instrumentos de cordas, representando um novo estádio civilizacional. O arco para a meditação, a expansão da mente… Refira-se, a propósito, que o próprio contrabaixo é um instrumento Zen e que Carlos Barretto constitui uma excepção numa tipologia musical, o jazz, que parece ter dispensado o uso do arco, deixando-o para o classicismo sinfónico. O Zenarquismo de Barretto surge, assim, como uma manifestação de consciência. À semelhança das demais artes, a consciência de que a música é um acto mágico, transformativo da realidade, é certo, mas operado segundo as disposições naturais. A magia
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anarquista da música é Tao, é Caos (é Zen), transformação permanente (o oposto da Ariosofia nazi, magia contra a natureza). Música com «o espírito da revolta e a revolta do espírito», para parafrasear o poeta William Blake. Em curiosa equivalência com o niilismo da nossa parte do planeta, e “curiosa” pelo facto de ser uma construção espiritual e não uma filosofia da violência destrutivo-criativa, o factor Zen serviu, e serve, ao anarquismo para não ser uma ideologia no sentido convencional do termo. A recusa de aceitar verdades transcendentes pode parecer paradoxal numa religião, mas não esqueçamos que o Budismo é uma religião sem Deus. Melhor: é uma religião que convida a matar Deus. Nada de mais útil à “ambiguida-
de” anarca, cuja máxima, afinal, é «nem deuses nem mestres». O que o Zen diz é: tudo quanto há e se imagina tem tanto de verdadeiro quanto de falso. Também a tal aspira a Anarquia. A negação do que é afirmativo e a afirmação do que é negativo. Tudo o que escapa a esta equação não tem sentido – procurar o Nirvana fora deste mundo é «como tentar descobrir uma cauda de lagostim num castor», para parafrasear Hui-neng. Se bem que o mesmo Hui-neng estivesse longe de poder prever que as mundividências anarquistas ganhariam dimensões estratosféricas… O espiritualismo anarquizante continuou com as primeiras seitas cristãs em Roma, perseguidas por promoverem o conceito de Deus libertas (Deus liberta) e por – como relatam os
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registos – se dedicarem ao amor livre. Também ao canibalismo e ao animalismo, o que é impossível de confirmar, mas julga-se serem exageros de conveniência repressiva. Mais adiante encontramos os Adamistas, hereges acusados de satanismo, que praticavam o nudismo e o sexo comunitário e que tiveram descendência, por exemplo, nos Menonistas e nos Huteritas. Reprimidos foram também os Ranters ingleses envolvidos nas revoltas camponesas iniciadas no século XIV. Eram panteístas, pois acreditavam que a divindade vive em todas as criaturas, e proclamavam que os indivíduos só podem ser governados pela sua moral e não pela Igreja e pelo Rei. Os Ranters viriam a ter alguma importância na colonização do Novo Mundo, contrariando a influência dos Puritanos e chegando mesmo a juntar-se aos índios para lutar contra estes. Como se sabe, venceram os Puritanos, que é quem ainda hoje se mantém no Poder dos Estados Unidos. Tivessem os rebeldes sido bem-sucedidos e, como salientou em T.A.Z o alucinado Hakim Bey, haveria hoje uma Santeria na América do Norte, uma fusão céltico-algonquina. Com toda a ironia do universo, este é o mesmo Bey que desconfia da improvisação, processo eminentemente anarquista de criar música e matéria primeira do jazz. Segundo ele, os resultados muito dificilmente podem ser positivos. «Se existe algum tipo de estrutura com que se possa trabalhar, já é, pelo menos, possível ter um desempenho decente que entretenha decentemente toda a gente», comentou algures. Sendo improvisar o devolver
da música ao seu estado selvagem, tanto pior para a premissa beyana de que «tornarmo-nos selvagens é sempre um acto erótico, um acto de nudez». Mas enfim, sabemos o que significa o erotismo deste inquieto pensador pela insistência com que alude ao simbolismo fotográfico de um rapaz de 12 anos a masturbar-se. Se a Cristandade teve o propósito de erradicar e converter o Paganismo, as feiticeiras e os magos sobreviveram, fosse fora ou dentro dos mosteiros e das sacristias. Cada sucessor dos xamãs, dos druidas, das “putas de Deus” (sim, voltaram a existir com um grupo radical da década de 1970 chamado The Family) e das videntes de antanho era um(a) anarquista em potência. A partir do século XIX, muitos eram já anarquistas. Caso do acima referido Crowley, que teve um encontro com o nosso Fernando Pessoa na Boca do Inferno. Socialistas do Romantismo negro como Jules Michelet, Eliphas Levi e Victoria Woodhull (que chegou a ser consultora em Wall Street – uma das muitas divertidas incongruências dos anarquistas) entenderam a feitiçaria como uma teologia da libertação e foram fundamentais para o seu futuro desenvolvimento. Albert Pike fundou o Rito Escocês na mui idosa e augusta Maçonaria, no qual se celebrava o irmão de Diana, Lucífer, como o supremo andrógino, por também ser a estrela da manhã, Vénus. Não o diabo de judeus, católicos e protestantes, mas a serpente-dragão signo do Sol quando ainda não havia Israel. Ou, como escreveu Levi: «Que coisa mais absurda e mais 20
ímpia do que atribuir o nome de Lucífer ao demónio, isto é, ao mal personificado. O Lucífer intelectual é o espírito da inteligência e do amor; é o Paracleto, o Espírito Santo, enquanto o Lucífer físico é o agente do magnetismo universal.». Depois, na América, vieram os Knights of Labour, sindicato industrial de enquadramento maçónico e ligações à Primeira Internacional, a de Marx e Bakunine, que, factor então inédito, incluiu mulheres, negros e lúmpens. Dedicada a Baco (ou Dioniso, o seu nome grego), o shemale celeste da Antiguidade, o Libertador, o Deus do vinho, da música e da dança, e à «religião viva da revolta», distinguiu-se da cada vez mais aguerrida frente feminista a egiptóloga Jane Harrison. A sua luta: denunciar os deuses patriarcais que «se institucionalizaram e tornaram no Estado». Membro da britânica Federação Socialista, barítono intérprete de Wagner, advogado da livre fornicação e, ao que se conta, espião da Prússia infiltrado na extrema-esquerda europeia, Theodore Reuss viria a criar a Ordo Templi Orientis. A actividade desta ainda vigora nos nossos dias, muito graças à boa e má fama de Crowley, vindo da sociedade secreta Golden Dawn. Para ele a magia estava no sexo, actividade sagrada de comunicação com o divino. O orgasmo como Iluminação, nem mais. Se bem que a Devoção Fálica da O.T.O., dirigida a Pan, o Deus da luxúria, pareça circunscrever a “pequena morte” ao orgasmo masculino, tão menos intenso e iluminante, tão menos “morte”, que o feminino. Tão menos anarquista? Talvez, ou talvez não. Aleister Crowley apresentava-se como um anarquista monárquico, ou seja, um anarquista que agia como um rei, recusando curvar-se perante deuses ou seres humanos. O seu «não há outro Deus senão o homem» é uma retoma das velhas e proibidas inscrições em Latim: Deus est homo. A intitulada Besta teve uma grande influência na música das últimas décadas e, sobretudo, na área do rock, dos Led Zeppelin aos Current 93 de David Tibet. Também na música improvisada e no jazz, com uma representação portuguesa por via de Carlos “Zíngaro”, parceiro ocasional de Carlos Barretto. Chegamos ao agora do ocultismo anarca com o Discordianismo, religião Zen do absurdo que nos diz que a ordem e a desordem (inclusivamente a ordem e a desordem da Anarquia e do Caos – que designa com o inglês Chao, em homofonia com Cow, vaca) são meras ilusões
cerebrais. O paradoxo e o humor marcam, de resto, os Principia Discordia. Um exemplo: «O masculino e o feminino são ideias sobre sexo. Afirmar que a masculinidade é uma ausência de feminilidade, ou vice-versa, é uma questão de definição e por isso metafisicamente arbitrária.». Na mesma linha surgiu a americana Church of the SubGenius, centrada no profeta Bob Dobbs, um fictício caixeiro-viajante da década do baby boom. Uma das suas missões é a promoção do lazer, começando pelo boicote aos trabalhos pesados. A outra é o erotismo, preferencialmente o mais desbragado. O Deus dos SubGénios é Jeovah 1, um extraterrestre que terá contactado Dobbs – o que tem sido tomado como um sarcasmo dirigido aos bem menos simpáticos Cientologistas. Jeovah 1 tem uma consorte, Eris, Deusa partilhada com os discordianistas. Os músicos do colectivo de piratagem áudio Negativland são acólitos. Muito activas nos EUA e no Reino Unido são também as organizações da frente Chaos Magick, devotas do Caos Sagrado, que é tudo e absolutamente nada. Alimentam-se da ciência e da ficção científica, da mitologia e da filosofia, da tradição mágica e das experiências individuais, designadamente aquelas que recorrem a substâncias alucinogénias. Peter J. Carroll foi, nos anos 1970, um dos pioneiros destes novos «psiconautas» e «artistas do visionarismo» que proclamam a «desordenação das estruturas da fé». Entendida esta, já por si, como um «estado alterado de consciência». Especialmente relevante neste domínio é o anarco-feminista e anarco-ecológico (também, lamentavelmente, anarco-New Age) Movimento da Deusa, praticante de bruxaria. A Deusa em causa não tem nome, pois é todas as Deusas do Paganismo, Ísis, Ma’at, Freyja, Artemisa, Diana, Atena, Hecate. E Kali-Ma do Hinduísmo, e a Senhora das feiticeiras Wicca, e Gaia, a Mãe-Terra. Afirmou Starhawk, autora de The Spiral Dance, a propósito: «O simbolismo da Deusa não é estruturalmente paralelo ao simbolismo de Deus-Pai. A Deusa não governa o mundo. É o mundo. Porque se manifesta em cada um de nós, pode ser conhecida interiormente por todos os indivíduos, na sua magnificente diversidade.». Deixemos, pois, que o castor e o lagostim tenham a sua própria cauda… Sempre permitindo que existam castores com cauda de lagostim, pois é esse, para todos os efeitos, o genial fundamento da ideia anarquista, aquilo que esta tem de mais cativante. 21
Ilustrações por André Coelho
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O Efeito da Bomba em Lê Quan Ninh 22
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Com a sua refutação do esquerdismo anarquista do passado, não deixa de ser intrigante que o chamado Pós-Anarquismo de Todd May, Bob Black e outros tantos se apresente como insurreccionista, assim reafirmando a sua descendência do niilismo russo, ou, dizendo de outro modo, o seu ainda enquadramento na “moldura filosófica” do niilismo, com as bombas, pistolas, facas e artes de sabotagem deste. Ainda que, é de acrescentar, por via de uma 24
“releitura” de Nietzsche que interpreta o SuperHomem do pensador alemão como o habitante da Anarquia. Se estes pós-anarquistas são, regra geral, fisicamente passivos (trata-se na maior parte de inofensivos professores catedráticos de filosofia, sociologia e politologia), pouco mais se insurgindo senão por via da palavra, não devemos surpreender-nos com a ascendência violenta de muitos dos conceitos por eles valorizados. Afinal, a não-violência de Gandhi era uma forma de lidar com a violência. Condenemo-la ou não, a violência faz parte da existência humana. Os Estados Unidos nasceram de uma guerra contra a colonial Grã-Bretanha e o federalismo americano foi confirmado e selado com a guerra civil entre o Norte e o Sul do país. Mas até posso dar um exemplo mais próximo: Portugal nasceu da insurgência armada de um filho contra a sua mãe. Porque não haveria o anarquismo de nascer de uma explosão? Surge como claramente niilista o seguinte pensamento do percussionista francovietnamita Lê Quan Ninh sobre a prática da improvisação musical, ele que é um dos poucos improvisadores que reflectem sobre a sua actividade e um dos mais raros ainda que, pela sua identificação como anarquista, assumem o carácter libertário desta abordagem da música: «Deve haver um espírito de contradição, um infantilismo, uma recusa da obediência. É preciso contradizer a todo o custo, mesmo contradizer o que se contradiz, afirmando algo e o seu contrário. Improvisar é poder tocar uma coisa e o seu inverso na travessia do instante. Quando o instante começa – na realidade existe desde sempre – o gesto que se segue e que forma a intuição é justo, mas perde a sua justeza quando o instante termina – ainda que na verdade continue. O que é justo contradiz o que era justo, e isto no mesmo momento. A disciplina do improvisador é viver essa justeza que se contradiz.». Em livro que Ninh publicou em 2010, com o título Improviser Librement – Abécédaire d’une Expérience, percebe-se que o que acima se lê foi mediado pela influência da Internacional Situacionista, para todos os efeitos a mesma que é reconhecida pelo Pós-Anarquismo, mas o fundamento, ou melhor, a origem pensante, é sem dúvida niilista. O músico substitui apenas o conceito de “situação” pelo de “circunstância”, o que é perfeitamente compreensível: Guy Debord
partira da observação do urbanismo e da arquitectura (sendo esta, como dizia Xenakis, «música congelada»), enquanto Ninh o faz da música composta no preciso momento em que é executada. «Nada substitui a examinação das circunstâncias presentes, a experiência do instante que é a experiência do fluxo do seu aparecimento e do seu desaparecimento. Se podemos conceptualmente considerar o conjunto dessas circunstâncias como terminado, ou seja, como passível de ser inventariado, os movimentos no seio – ou entre – (d)essas circunstâncias tornam tal tarefa impossível: não podemos descrever o voo do pássaro senão tornando-nos no pássaro que voa. Aceitar as circunstâncias é aceitar o movimento permanente que as anima.». Mas atenção… Na entrada “Anarquia” do mesmo livro, Lê Quan Ninh faz notar o que agora aqui se reproduz: «Tornarmo-nos proprietários do momento presente é um roubo. Querer apropriar-nos do cometimento dos outros é um roubo. Pretender garantir um bom desenvolvimento da improvisação por meio de restrições é usurpação. Impor uma direcção pelo uso de uma obstrução deliberada é coerção. Não confiar no estado do instante e substituí-lo pela sua vontade é já tomar o poder. Por mais genérico que seja o rótulo “improvisação livre”, não poderíamos senão questionar o termo “livre” e, em consequência, o aspecto libertário desta prática. Creio profundamente que esta realiza de maneira muito concreta a posição de Mikhail Bakunine na sua mais conhecida citação: “A liberdade dos outros prolonga a minha até ao infinito.”». Por outras palavras, o que Ninh advoga tem duas vertentes. Por um lado, aceitar a realidade tal como esta se nos apresenta, ignorando construções morais e intelectuais predeterminadas, é a pedra-base do posicionamento niilista. Por outro, fazer escolhas, a partir daí, leva o niilismo perceptivo em direcção à Anarquia tal como a entendemos hoje, um processo que demorou dois séculos a sedimentar-se, mas que em cada um de nós – é o que fazem os improvisadores – pode ter expressão no curtíssimo intervalo de dois segundos, entre enfrentar-se uma circunstância e tomar-se uma decisão. O niilismo é uma funcionalidade da percepção; o anarquismo, acima de tudo o mais, é uma questão ética. A negatividade “bombista” (o que qualquer circunstância traz em si de entrópico) converte-se num positivo, seja o pensamento crítico (o ensaísmo de May, Black…) 25
ou a acção militante (o movimento Occupy, p. ex.). «As minhas capacidades perceptivas são a minha liberdade. É por elas que me posso mover no espaço das minhas sensações, que posso compreender a complexidade do real e tentar estabelecer um caminho entre cada um dos seus elementos. Quanto mais abro a minha aptidão para os entender, mais abro o real», acrescenta Ninh. Ora, o real não é por si mesmo válido ou inválido; é o que é, simplesmente, como gosta de repetir um outro improvisador, o saxofonista de jazz Joe Giardullo. Os niilistas russos faziam isso mesmo, mas a urgência dos seus atentados fez com que a pulsão destruidora não fosse também um impulso criador. O seu modo interventivo era exclusivamente uma recusa; nada tinham a oferecer que pudesse ser edificado no lugar da cratera aberta pela dinamite. O método de racionalização niilista tornouse anarquista, e tornou-se um pensamento de facto, com o aprofundamento das suas premissas, o que só aconteceu quando a rapidez da acção – talvez por esta ver repetidamente gorados os seus intuitos – permitiu que se parasse e reflectisse. Essa pausa foi fundamental, até, para uma melhor compreensão da instantaneidade na música improvisada, ainda que essa reflexão seja, para todos os efeitos, um apriorismo da performance improvisada. Niilistas dos primórdios como Karakozov, Grineveckij, Zhelyabov, Rysakov, Perovsky, Kibalchich e Mikhaylov estavam equivocados numa particularidade. O poder não tem um centro, não está na figura do Czar nem na do camarada-presidente do Politburo – os niilistas combateram ambos e acabaram mal: pendurados. É, pelo menos, irónico que o romance de um niilista, O Que Há a Fazer? (1863), de Nikolai Chemyshevsky, tenha inspirado Lenine e a Revolução de Outubro, sabendo-se que mais tarde este condenaria outros niilistas aos mesmos destinos utilizados pelos czares para quem queria rebentar com eles: a Sibéria e a forca. O poder funciona, isso sim, em rede, e esta foise disseminando rizomaticamente conforme a evolução dos sistemas económico-políticos, fosse o do quase deposto socialismo de Estado (falta que caiam a Coreia do Norte e Cuba, sendo a bipolar China um caso à parte) como o do capitalismo neoliberal dos nossos dias, abrangendo todas as dimensões da sociedade, da pública à mais privada. O que os pós-anarquistas dizem sobre os presentes movimentos sociais não é, assim,
muito diferente do que Lê Quan Ninh afirma sobre a música que lhe interessa criar: «Improvisar livremente é não ser ajudado, nem por Mozart, nem por Beethoven, nem por Stockhausen, nem mesmo pelo indeterminista Cage ou por qualquer texto que especifique um modo de emprego e uma cronologia.». É, aliás, por esse motivo que o Pós-Anarquismo anda às avessas com o anarquismo histórico: o primeiro é (pretende ser) tendencialmente anti-ideológico, enquanto o outro se converteu numa doutrina, não obstante assegurar que não era esse o seu propósito. Estamos, no entanto, a pisar terreno pantanoso. Chegouse já à conclusão que o niilismo, hoje, pode ser conciliável até com a fé religiosa, «desde que não se confunda a nossa interpretação da realidade com a própria realidade» (no entender de um activista da Net que se apresenta como Vijay Prozak; com certeza que um pseudónimo). Isto porque, como argumenta o mesmo autor, este novo crente niilarquista é um “transcendentalista” que «encontrou a fonte do seu espiritualismo na organização do mundo físico e do seu estado mental». De tal modo que, quando alguém lhe fala em Deus, pensa não numa entidade abstracta e invisível, mas «nos padrões desenhados na madeira das árvores». Deste ponto de vista, o anarquismo pode pacificamente entender-se como uma ideologia, na condição de que o niilismo metódico que há em si coloque essa sua condição permanentemente em causa… Este cenário é bem diferente daquele concebido por Dostoievsky após a sua conversão ao Cristianismo ortodoxo. Em Crime e Castigo percebe-se até que ponto o escritor se equivocou relativamente à postura niilista. Ao crime segue-se a redenção, não o castigo. Já Nietzsche, que nem sequer via com bons olhos os anarquistas do seu tempo, acertou ao perceber que «nada tem sentido». Essa é precisamente a condição para que nós, seres humanos, possamos construir o sentido das coisas, tal como nos é transmitido pela sua intrínseca realidade. O filósofo mais admirado pelo nazi-fascismo era, afinal, um anarca? Pois, e uma bomba pode ser um tambor, instrumento afirmativo e impositivo que Lê Quan Ninh utiliza – com objectos como pinhas, esferovite e barras de ferro, tanto quanto com as convencionais baquetas – de forma a não se «sentir obrigado, a não reagir», a fundir-se «com o fluxo da escuta». É esse o insurreccionismo da música improvisada… 26
Capítulo 4
Frases de Frank Zappa surgem, volta e meia, nas redes sociais em comentário ao que vai sucedendo num mundo dominado pela ideologia neoliberal e por uma paradoxal articulação entre “mercados livres” e Estados repressores. Muito especialmente aqueles dizeres que têm feito as delícias de socialistas e libertários, tomando o músico como um dos seus. Nada de novo nisso, afinal. Ainda Zappa estava no início da carreira e já algumas das suas fórmulas serviam à actividade da esquerda radical. Lembram-se do álbum Freak Out, um dos marcos discográficos do século XX e o primeiro com os seus Mothers of Invention? Pois a organização estudantil anarquista Transcendental Students, criada em 1969 nos Estados Unidos com o propósito de instalar a «insurreição através da felicidade», chamava freak outs ou freak ins às suas manifestações. A bandeira do colectivo era uma delícia: negra, mas em vez de ter um A rodeado por um círculo no centro apresentava uma mão vermelha com o dedo do meio esticado. Por boas razões aconteceu essa adopção, pois o próprio compositor e guitarrista definia este freaking out como «o processo em que um individuo sai dos restritivos standards de pensamento, vestuário e etiqueta de maneira a expressar criativamente a sua relação com o meio imediato e com a estrutura social no seu todo». Mas este foi um balão que, com o tempo, perdeu o ar… A Transcendental Students deu lugar, em 1988, a outro movimento, a Cacophony Society, com esta a defender a realização de «trips to the Zone», e, finalmente, ao festival Burning Man no Black Rock Desert do Nevada, depois de ter passado pela Baker Beach de San Francisco. Nesta evolução, as “zonas autónomas” que se pretendia criar em contexto capitalista, com vista a minar a sociedade por dentro, foram desviadas da cidade para o deserto. Se o Burning Man é uma explosão anual de imaginação, liberdade, arte e nudez, o certo é que foi remetido para a terra de ninguém, de modo a não interferir ou contaminar o quotidiano das populações. Para esta imagem de um “Frank Zappa anarquista” terão contribuído as suas posições em defesa da liberdade de expressão aquando da sua campanha contra as pretensões de instauração da censura por parte da PMRC, sinistra organização dinamizada pela muito pia mulher de Al Gore, o mesmo que viria a ser o vice de Bill Clinton e é hoje um
Ilustrações por Jucifer
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paladino do ambientalismo. A censura vingou e continua nos Estados Unidos, mas essa foi uma batalha a que Zappa se entregou de corpo e alma, depondo no Senado em 1985 e participando em debates televisivos. Um deles foi no programa Crossfire da CNN, com o conservador John Lofton a acusar Frank Zappa, precisamente, de ser anarquista, interrompendo-o quando estava a afirmar que «o grande problema da América, hoje, não é o comunismo, mas o facto de estar a tornar-se numa teocracia fascista»: «Quando se tem um governo que privilegia o código moral de uma determinada religião, e esse código moral se torna numa legislação a favor desse ponto de vista religioso…». Antes e depois, em depoimentos que dava à Imprensa, Zappa foi alimentando a ideia de que era um esquerdista. Como este: «As pessoas têm o direito de decidir o seu próprio destino; as pessoas são donas de si mesmas. Acredito também que, em democracia, um governo só existe porque (e enquanto) os cidadãos lhe dão uma “permissão temporária para existir” (…). Numa democracia somos nós que mandamos no governo, não o governo que manda em nós.». Mas, assim como as referidas tentativas de subversão libertária do capitalismo não surtiram o efeito desejado, abrindo um fosso entre a teoria (a vontade) e a prática (a sua realização), também na actividade musical que desenvolvia, Frank Zappa entrava em contradição com o que parecia ser o seu posicionamento filosófico e político. No que respeitava à condução dos seus grupos musicais, Zappa era um ditador. O britânico Evan Parker, um dos mais importantes (senão “O” mais importante) saxofonistas das últimas décadas na área do jazz e um conhecido anarquista, teve ocasião de trabalhar com ele e não gostou. A descoberta do rígido e arrogante autoritarismo de Zappa levou-o mesmo a considerar a sua música «uma mentira». Em entrevista conduzida pelo musicólogo marxista Frank Kofsky, publicada no livro The Age of Rock – Sounds of the American Cultural Revolution, ficamos melhor elucidados sobre a dimensão política do ideário musical de Frank Zappa. A mesma personalidade que disse que os EUA são uma «nação de leis», por sinal «mal escritas e aplicadas ao acaso», argumentou aí que o seu objectivo não era destruir o sistema, mas «modificá-lo de forma a funcionar bem», ou melhor, «colocar o siste30
ma contra si próprio para se purgar». O Zappa desta conversa que pouca circulação terá tido (ou não existiriam os equívocos que perduraram), constituirá uma surpresa para quem hoje o cita, pois revela um homem que, sendo indubitavelmente “liberal” no sentido americano, ou seja, progressista, era muito mais moderado do que se julga. No fundo, o que pretendia era uma reposição dos «princípios originais da democracia» tal como colocados em forma de letra pelos fundadores dos Estados Unidos, entendendo ele que não estavam «a ser aplicados». E se em determinado ponto do diálogo aparece a palavra “revolução”, Zappa coloca imediatamente de lado a sloppy kind desta, a que, como referiu, se faz com sangue derramado pelas ruas. «Hoje, a revolução pode ser realizada através dos mass media e com os mesmos meios que a Madison Avenue utiliza para vender máquinas de lavar, pão e tudo o mais. Basta isso para mudar o país sem dor.». O Pai da Invenção chegou na entrevista, inclusive, a rotular como «estúpida» a ideia de «deitar tudo abaixo e começar de novo». Mais: segundo ele, «é válida» a política que sustenta o funcionamento dos mecanismos de representação democrática, vulgo parlamentarismo. Aqueles mesmos que anarquistas, trotskistas, maoístas e autogestionários consideram que não garantem uma democracia plena, construída de baixo para cima. Com uma nuance zappiana: «O que nós temos agora não é propriamente política. É o equivalente das eleições escolares, um concurso de popularidade. Não é política, é mercantilização de massas.» Ficamos assim com o retrato de um reformista do centro-esquerda. Afinal, este é o mesmo Zappa que referia que o comunismo não é possível porque «as pessoas gostam de possuir coisas». A frase foi entendida como uma crítica à obsessão proprietária dos seres humanos, quando na realidade se tratava de uma recusa dos preceitos colectivistas. O que perdurou, no entanto, foi o mito, e já se sabe que este tem sempre mais força do que os factos. Assim sendo, se recordar o Zappa mitológico ajuda à resistência, continua-se a usar frases suas como esta de duplo sentido: «Na luta entre ti e o mundo, torce pelo mundo.». Torce pelo mundo bradando no deserto dos equívocos, diante de uma estátua de madeira a arder… 31
Capítulo
5
Ilustrações por José Feitor
Panteras Negras 32
Foi membro do Black Panther Party nos gloriosos tempos da luta pela emancipação negra nos Estados Unidos e ingressou no Black Liberation Army, o que teve como consequência ir para a clandestinidade da luta armada. A opção de Ashanti Alston pela guerrilha urbana não durou muito tempo: foi apanhado pelo FBI e condenado a uma pena de prisão. Lendo e reflectindo enquanto esteve “dentro”, trocou o anterior ideário marxista-leninista pela filosofia anarca, e hoje, já cá fora, é um dos rostos de uma novíssima corrente norte-americana, o chamado “black anarchism”. Pertence ao Jericho Movement, destinado a defender os direitos dos presos políticos (há quem esteja atrás das grades desde a década de 1960 e muitos novos detidos tem havido desde que começou a vaga Occupy), é membro de um grupo pró-Zapatista, de apoio à luta dos índios mexicanos, o Estación Libre, e integra o Institut for Anarchist Studies. Chamam-lhe «pantera anarquista» e até «pantera pós-moderna», em ambos os casos com toda a justiça, pois o que propõe é uma actualização não-autoritária das velhas aspirações dos Panteras Negras… Pois é de Ashanti a seguinte declaração que vem recolocar na ordem do dia a cumplicidade – no melhor dos sentidos – do jazz com o Black Power: «Considerem o jazz: é uma das melhores ilustrações de uma prática radical existente, dado que assume uma conexão participatória entre o individual e o colectivo e permite a expressão do que somos a nível pessoal, dentro de um grupo, com base na alegria e no prazer proporcionados pela música. As nossas comunidades podem funcionar da mesma maneira. Podemos juntar todos os tipos de perspectivas para fazer música como para fazer a revolução.». Com este exemplo, Ashanti Alston explica que a Anarquia não é propriamente a preparação dos “amanhãs que cantam” do entretanto desaparecido comunismo de Estado, e sim a concretização de “zonas autónomas livres” agora e aqui mesmo. Não é preciso esperar que o capitalismo morra, até porque são estas acções, precisamente, que minam o sistema por dentro: «Muito do que fazemos na comunidade negra já é a Anarquia, pois não envolve o Estado e a classe política. Olhamos uns pelos outros, tomamos conta das crianças uns dos outros, vamos à mercearia fazer as compras dos vizinhos que não podem sair de casa, vigiamos a entrada da polícia no bairro.». Afinal, insiste, «a cultura negra sempre foi de oposição, sempre arranjou formas de resistir
criativamente à opressão no país mais racista do mundo». As pessoas sabem já como conduzir as suas vidas por si mesmas, apoiando-se mutuamente e assim transformando mentalidades e comportamentos. Tal como no jazz, estes são actos de liberdade. «Aprendemos com as lutas que se desenvolvem no mundo. Com o que se passa na Bolívia. Com os Zapatistas. Com os colectivos que no Senegal estão a construir centros sociais. As pessoas que simplesmente tentam sobreviver ensinam-nos mais do que aquelas que surgem com ideias muito avançadas. Temos de desenfatizar a abstracção e focar-nos naquilo que está a acontecer no terreno…» Ao contrário do que acontecia com a paternalista e “educadora” direcção do Black Panther Party, ainda que – não duvida Ashanti – com as melhores das intenções, há que «confiar na capacidade do povo para descobrir colectivamente o que há a fazer com este mundo». Na sua opinião, «esta é a oportunidade para colocar de lado o que pensávamos ser a resposta e batalharmos em conjunto para explorar diferentes visões do futuro». É isto o anarquismo negro dos nossos dias, um processo em curso, uma improvisação jazz… O multi-instrumentista Daniel Carter di-lo melhor que ninguém: «As noções de democracia e anarquismo não estão tão separadas quanto se possa imaginar. Trata-se de nos associarmos livremente, decidindo por nós mesmos o que queremos fazer. Isto pode ser mais democrático do que a democracia tal como a conhecemos. A ideia atrás de “democracia”, aquela que os fundadores da América ainda não estavam preparados para compreender, não é muito diferente da que encerra a palavra anarquismo.». Defende ainda o músico de jazz: «A democracia, ou o anarquismo, que eu prefiro é uma forma de descentralização. Algo como a Internet, com organização não-hierárquica. Se, como no jazz, a música é essencialmente improvisada, com todos a tocarem espontaneamente, que sentido faz surgir sob o nome de alguém em particular? Só porque foi esse tipo que arranjou o concerto? Os fundamentos do sistema de poder hierárquico do governo perpetuam-se no pequeno homem, que é levado a pensar deste modo: “Eu quero é ser o patrão e ter gente a trabalhar para mim.”». No entender de Ashanti Alston é muito simples: se se tem a visão, se se tem a criatividade, «não podemos permitir que as fechem à chave». Daniel é um dos que, no jazz e no quotidiano, tomou essa consciência e essa posição… É um anarquista negro, e com orgulho. 34
Ainda que amplamente determinadas pelas políticas neocolonialistas da Europa e dos Estados Unidos, são desconhecidas no hemisfério Norte muitas das especificidades políticas, económicas, sociais e culturais de África. Simplesmente, não percebemos que o continente-mãe tem as suas próprias lógicas e ilógicas… Daí que uma personalidade tão especial, mas ao mesmo tempo tão paradigmaticamente africana, quanto a de Fela Kuti seja bastante incompreendida por nós. De resto, a generalidade dos admiradores não-africanos da sua música e das suas ideias tropeça nas contradições deste homem que fumava gigantescos charros. Se Kuti defendeu as mais amplas liberdades, era também sexista, senão mesmo misógino, e colocava em prática os autoritários fundamentos patriarcais da tradição africana, aqueles que parecem estar na origem das mentalidades da maior parte deste man’s world (para lembrar a canção de James Brown, uma das suas maiores referências musicais)… Era tendencialmente libertária a visão que o compositor e multi-instrumentista tinha da sociedade, dirigida contra o capitalismo e o socialismo de Estado do seu país, a Nigéria, nas versões que um e outro foram tendo de “democracia” civil e de ditadura militar. Ambas repressivas e corruptas e ambas ao serviço de interesses estrangeiros. E no entanto, é impossível apontá-lo como um “anarquista”. Não propriamente porque Kuti tenha sido influenciado pelos conceitos marxistas-leninistas do Black Panther Party e pelo conservadorismo islâmico de Malcolm X, no período em que esteve na América. Tanto um como o outro pronunciadamente machistas, como se sabe… Entende-se melhor Fela Kuti depois de ler os nigerianos Sam Mbah e I. E. Igariwey. Num livro de reduzida circulação, African Anarchism: The History of a Movement (que, segundo o editor, deveria ter como subtítulo, na verdade, Prospects for the Future, pois é mais essa a sua perspectivação), os dois autores equacionam exemplarmente o que estava por detrás de temas como “Zombie”, “Colonial Mentality” e “Teacher, Don’t Teach Me No Nonsense”. Nem sempre da melhor maneira, diga-se. Era Fela, também, quem estava por detrás da Kalakuta Republic, a comuna organizada pelo pai do chamado Afrobeat, misto de funk e jazz com os sons da Nigéria. Por detrás dos anúncios que publicava nos jornais sob o nome Chief Priest Says, por detrás das Yabi
Capítulo 6
Fela Kuti eo Paradoxo Africano 36
Sessions no seu bar, o Shrine, e por detrás do partido político que fundou, o Movement of the People (ainda activo). Ainda por detrás do seu casamento colectivo com as 27 cantoras e bailarinas do seu grupo, que justificou como uma medida de protecção das mesmas. E sim, dormia com elas, pelo que não se tratava apenas de altruísmo. Essa decisão tomou-a depois de as Forças Armadas terem incendiado a Kalakuta, onde se encontrava instalado o seu estúdio de gravação. Os soldados atiraram a sua mãe (que, atenção, fora uma prestigiada militante anticolonialista) de uma janela do segundo andar e, na mesma ocasião, o músico foi brutalmente espancado. Diga-se igualmente que, já no leito de morte, vítima de HIV, Kuti continuava a insistir que a Sida não existia. A relacionação que na altura se fazia da doença com a homossexualidade conduziu-o a um estado de negação. Afinal, em África, afirma-se que não há homossexuais – e para que essa “situação” se mantenha alguns países determinaram a pena de morte para os sodomitas. O grande argumento de Mbah, Igariwey e outros socialistas libertários africanos é o de que a anarquia tem ali uma vantagem sobre outras regiões do globo: as sociedades rurais de África, lembram, eram comunalistas, ou seja, organizadas horizontalmente e não segundo pirâmides hierárquicas. As deliberações eram tomadas a partir das células sociais mais ínfimas, o clã e a aldeia. O certo é que algumas dessas práticas subsistem, subterraneamente ao domínio capitalista: «O anarquismo como modo de vida não é novo em África, ainda que, enquanto filosofia e teoria de organização social e enquanto movimento revolucionário, seja aqui largamente desconhecido», lemos no referido ensaio. O comunalismo ancestral em causa é mesmo apresentado como algo de distintivamente africano. As comunidades de antanho não só se autogovernavam como eram auto-suficientes e nelas cada indivíduo participava, directa ou indirectamente, na governação colectiva. Esta percepção do afro-anarquismo não só deu uma sustentação de viabilidade ao movimento local como alimentou as teses neoprimitivistas ou retro-futuristas, mistas de ecologia radical e antitecnologismo, que foram florescendo internacionalmente e, muito em especial, no país mais desenvolvido do mundo, os Estados Unidos.
Ilustrações por David Campos
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O problema é que tal recuperação da cultura tradicional africana dificilmente poderia ser parcial. Fela Kuti tomou-a na sua integralidade, fazendo acompanhar os aspectos que mais facilmente entendemos como “recuperáveis” dos que são francamente negativos, a começar pelas manifestações patriarcais. Por exemplo, algumas das velhas proto-anarquias de África eram tribalistas e abrigavam também a escravatura. A igualdade de uns em termos de acesso à terra e de distribuição da riqueza produzida era contraposta pela ausência de liberdade de outros. Era esse, designadamente, o caso dos Tallensi onde é hoje o Gana, nação pela qual Kuti passou, umas vezes em fuga, outras para tocar ao vivo. As incongruências do tradicionalismo como base política de acção ficaram bem patentes numa figura como Julius Nyerere. O primeiro Presidente da Tanzânia pós-colonial (antes Tanganica) é uma referência maior dos actuais
anarquistas africanos, devido ao seu conceito de Ujamaa (traduzível por «bairro familiar»). Em plena concordância com as estruturas sociais do passado, este entendia a aldeia como a incubadora de um socialismo das bases, autogerido pelo próprio campesinato e restantes trabalhadores. Em grande parte devido aos próprios dilemas da tradição local, a aplicação dos princípios teóricos da Ujamaa foi um desastre e o modo como Nyerere enfrentou o problema pior ainda. A Anarquia que procurou artificialmente criar (ou seja, a partir de cima, o que também explica o insucesso) deu lugar muito depressa a um violento regime totalitário. No início da década de 1970, as suas tropas transferiram pela força as populações para grandes quintas supostamente colectivas e queimaram as aldeias a fim de impedir quaisquer regressos. Veja-se a distância entre esta realidade e 40
as anteriores palavras do político na defesa da Ojamaa: «Os agricultores terão de verificar por si mesmos a vantagem de trabalharem e viverem em conjunto antes de confiarem todo o seu futuro a esta forma de organização.». O libertário Nyerere transformou-se, assim, num dos piores ditadores de África. Quando abandonou o poder em 1985, a Tanzânia era um dos países mais pobres do continente, com os esfaimados habitantes a necessitarem de ajuda alimentar externa. Os autores de African Anarchism omitem totalmente este lado dos factos, o que é, pelo menos, intelectualmente desonesto. Mas previsível, dado que até em África os teóricos (burgueses muitas vezes formados no Ocidente) lidam mal com as complexidades da sua própria identidade colectiva. Na comuna que dirigiu como na música que nos deixou, de modo muito semelhante Fela Kuti foi simultaneamente um libertador
e um tirano, e a verdade é que é impossível separarmos uma faceta da outra. Com uma diferença substancial: se Nyerere era um estadista profissional, Kuti via-se a si mesmo como um messias espiritualmente legitimado. Por quem ou pelo quê? Pela crença de que a música estaria em vias de ser «a expressão final da raça humana e os músicos muito importantes no desenvolvimento da sociedade humana», provavelmente os seus futuros presidentes. «Os artistas serão os ditadores da sociedade», afirmou, inclusive, numa entrevista conduzida por Roger Steffens. O homem que desafiava os generais e incitava o povo à revolta era o mesmo que esbofeteava as suas mulheres e dirigia os instrumentistas que para si trabalhavam com mão de ferro. Se Kuti tivesse chegado ao Poder, teria muito provavelmente sido um dirigente sanguinário. Com ideias anarcas, mas pior que um Idi Amin Dada… 41
Capítulo
No seu actual ressurgimento (muito devido aos movimentos Occupy e Indignados), a frente anarquista vem manifestando um especial interesse pelas questões do foro pessoal ou pelo menos as que, tendo dimensão social, se expressam a um nível subjectivo. Por influência das tendências individualistas a partir de Max Stirner, esta nova evolução a que Murray Bookchin, algo depreciativamente (por temer a descaracterização socialista da filosofia desenhada por Proudhon, Bakunine e Kropotkine), chamou «anarquismo lifestyle» tem prestado especial atenção à orientação sexual. Uma consequência tem sido o desenvolvimento da queer theory, ainda que uma parte desta aconteça fora do quadro do militantismo vermelho-e-negro e sim nos do feminismo e da nebulosa LGBT. A ligação do ideário anarca às lutas de gays e lésbicas já tem algum tempo. A novidade mesmo é o cada vez maior interesse deste tipo de activismo pela pansexualidade e pelo poliamorismo. Não surpreende que assim seja: a fluidez das relações humanas desejada pelo Black Bloc ficou presa a questões de identidade e esta cria fixações, imobilidades. Na sua ambição de mudar o mundo imediatamente, sem esperar pela revolução, ficaram encalhados os anarquistas que se fascinaram com os conceitos de “deriva” e “nomadismo” pilhados ao pós-estruturalismo e aos situacionistas. E ficaram-no tanto face às lutas pela emancipação das comunidades de origem africana, hispânica ou asiática no “primeiro mundo”, preferindo os processos de mestiçagem (contra)cultural, como em relação a uma homossexualidade tão mono e quase já tão institucionalizada (as novas leis do casamento na Europa e nos Estados Unidos) quanto a heterossexualidade que definiu o presente sistema patriarcal, privilegiando em alternativa as sexualidades mutantes. A frente pansexual nasceu da verificação de que até o bissexualismo lida com o binário homem-mulher, apresentando-se como o tipo de amor que abstrai a pessoa dos delimitado-
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Ilustrações por Daniel Lopes
«um homem que se torna numa mulher (...) mas que se relaciona afectiva e sexualmente com mulheres»
O Factor Pan/Poli 44
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res mecanismos de atracção determinados pelo género. Os pansexuais emergem de uma realidade em que já não existem apenas dois sexos, o masculino e o feminino, mas vários. Desde um terceiro sexo andrógino a uma transsexualidade em que a redeterminação dos sinais sexuais nada tem a ver com preferências desejantes – por exemplo, um homem que se torna numa mulher porque se sentia uma mulher, mas que se relaciona afectiva e sexualmente com mulheres. Vejam-se as implicações: já não se trata de heterossexualidade, homossexualidade ou bissexualidade, mas de algo de inimaginável até há poucas décadas… De facto, há homens com vagina, mulheres de barba e gente que confunde sinais masculinos e femininos ou que dispensa uns e outros construindo novas personas, ou mais exactamente novas projecções de si mesmas, para as viver no dia-a-dia. Para o anarquismo, este é um dos factores que representam o estádio trans-humanista do mundo de hoje. No presente quadro, o tradicional “amor livre” reivindicado pelos anarquistas desde o século XIX deu lugar ao poliamor. A caracterização deste diverge daquela outra noção: trata-se não apenas de confrontar os padrões judaicocristãos da monogamia, dessacralizando o matrimónio, mas de promover a capacidade humana de amar várias pessoas em simultâneo,
providenciando o relacionamento, a dois ou em grupo, com os diversos sexos existentes. Assim sendo, a vivencialidade do amor não depende, apenas, das diferentes personalidades individuais – beneficiará também, num futuro de optimização anarquista desta tendência, das diversas sexualidades praticadas individualmente. A cada pessoa, um sexo: é esse o limite… Se a já aqui referida queer theory rompeu com a normatividade do discurso geral sobre a sexualidade para obter uma perspectiva mais alargada e consentânea com a realidade, a sua adopção anarquista trouxe-lhe um inédito radicalismo. Nunca se tinha ido tão longe no visionamento do novo ser humano anarquista. Inclusive, já se realizou nos Estados Unidos um estudo sobre o que seria o urbanismo e a arquitectura numa sociedade não-exclusivista e não-ciumenta, com conjugações de edifícios à volta de pátios comuns e inexistência de muros nos exteriores e, nos interiores, com interligações entre os quartos. Como é óbvio, os lifestylers não esperam, nem pretendem, que todos nos tornemos pan e poli. Existirão sempre fidelidades 1+1 duradouras, bem como heteros e homos permanentemente dedicados. Aliás, essa é a condição da diversidade tão prezada numa sociedade livre. «Nobody has to be anything», lemos num post dos muitos que se encontram
«Nobody has to be anything»
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«Vivemos em plena era entrista, entre uma coisa e outra»
na Web sobre a questão. Estes anarquistas apenas perceberam que pans e polis são por si mesmos agentes revolucionários, tal como os precários têm um simbolismo especial na rebelião Occupy Everything. A ensaísta trans (homem transformado em mulher) Kate Bornstein comentou que teve de deixar de se considerar lésbica quando a sua companheira mais constante resolveu mudar de género, munindo-se de um pénis. Afinal, não a amava por ser do sexo feminino, mas por ser quem é. «Além disso, percebi que reclamar-me como uma mulher era uma tolice. Não sou uma mulher, assim como não sou homem», referiu ainda. O mais curioso é que as derivas nómadas da pansexualidade e do poliamorismo acabaram por influenciar outros campos do pensamento e da práxis anarquistas. Uma pesquisa pela Internet conduz-nos a escritos de activistas que propõem que a “atitude” pan/poli seja aplicada igualmente na teorização política, económica, sociológica e antropológica. Se o dito anarquismo virado para os estilos de vida decorre já de um sincretismo de conceitos, o propósito é que se aprofunde ainda mais essa permeabilidade a noções que enriqueçam o
quadro teórico da liberdade. Para todos os efeitos, «a maneira como amamos influencia o modo como entendemos a política», defendem Deric Shannon e Abbey Volcano. Afinal, até o Bookchin do “comunalismo” e da «democracia olhos-nos-olhos» o fez no final da sua vida: o velho pensador, que tivera uma juventude como trotskista, terminou a sua obra incorporando elementos do marxismo de pendor libertário nas suas formulações de uma sociedade mais justa. Neste ponto, não há grandes distinções entre o seu “anarquismo social” e o anarquismo dos “egoístas” do século XXI: ambos pretendem transformar a sociedade aqui e agora, um por meio do municipalismo basista, o outro por via do sexo e dos afectos. Na área da música, a prática pan/poli por excelência é o noise, essa difusa área de criação sonora que vai de uma Nihilist Spasm Band a Merzbow (Masami Akita), ou do grupo Wolf Eyes a Pita (Peter Rehberg). A tal conclusão chegamos com a leitura da colectânea Noise & Capitalism, publicada pela Kritika, editora da associação de artistas bascos Audiolab Arteleku. Csaba Toth intervém com o que designa por noise theory, consciente com certeza de 47
«“Jelly Roll” Morton, que traduzido à letra significa “Pachacha” Morton»
que é um equivalente, senão mesmo uma extensão, das construções reflexivas queer. No seu texto sobre a mais metropolitana das músicas (uma não-música ou antimúsica, se assim lhe quisermos chamar) da actualidade, forma cultural “de guerrilha” por excelência devido ao facto de utilizar inapropriadamente computadores, sintetizadores e guitarras eléctricas, refere mesmo o seu carácter polimorfo e disseminatório. Lemos: «As texturas agrestes das forças sonoras destroem as nossas identidades mais do que as reforçam. Utilizando o vocabulário da psicanálise lacaniana, diria que o noise cria jouissance. Jouissance significa em Inglês “enjoyment” (“deleite” em Português); em Francês o termo é utilizado para indicar o orgasmo.» Para Toth, o noise é pré-linguístico e pré-subjectivo, enquanto tal podendo ser encarado como uma antiteleologia. Inspirado na teórica queer Judith Butler, o musicólogo Robert Fink prefere chamar-lhe «teleologia performativa», por «libertar a líbido mutando esta indefinidamente». O autor adopta a mesma visão. A materialidade não-mediada da música noise apresenta-se, deste modo, como uma «experiência orgásmica», o momento em que «a significação interrompe o sentido, em disrupção do simbólico e do social». No ensaio “Genre is Obsolete”, Ray Brassier considera que a designação noise se aplica às «zonas de interferência anómalas entre os géneros musicais/artísticos: entre o pós-punk e o free jazz; entre a música concreta e a folk, entre a composição estocástica e a arte bruta». O paralelismo com a fórmula “intersexo” não surge por acidente. Vivemos em plena era entrista, entre uma coisa e outra. Não sendo nenhuma delas, tem a sua razão de ser no facto de estar a meio… Mas porque existe nos interstícios das «formas de experimentação sónica que desafiam ostensivamente a classificação musicológica», tornou-se, simultaneamente, num subgénero específico da “vanguarda” e em algo que se recusa a ser tomado como tal. Inerentemente indeterminista e subversivo, o noise pulveriza por dentro os seus próprios tropismos idiomáticos. Como escreve Brassier: «O noise está condenado a reiterar ad infinitum a sua abstracta negação do género.». Nina Power disserta no livro sobre o noise feito por mulheres, desmistificando a suposta (para alguns) masculinidade desta prática musical erroneamente apontada como sendo violenta e agressiva. Se «o capital foi e é feminizado pelas máquinas», argumenta, as mulheres que operam
estas «fazem-nas sonhar», tal como já tinha dito Sartre. «Sempre estivemos secretamente conscientes da privilegiada relação entre as mulheres, a tecnologia e o ruído: o mais fantástico e enérgico maquinismo dos dados, a conversação, sempre foi encarado, para o melhor como para o pior, uma reserva feminina», refere. Power lembra mesmo que uma mulher, a actriz de cinema Hedy Lamarr, foi co-inventora do sistema de descodificação de mensagens que ajudou os Aliados a vencer a guerra contra a Alemanha nazi. Não deixa de ser curioso que a música noise tantas vezes se tenha cruzado com a poesia fonética e tão habitualmente incorpore os detritos áudio dos media e das redes de comunicação: a voz é a medida biológica da sua tecnomundividência. Nina Power aponta também o exemplo de uma noiser, Jessica Rylan, que fez a seguinte afirmação: «Sinto, por vezes, uma grande conexão psíquica com as máquinas.». O que está em causa, por conseguinte, é uma imprecisão libertária de género… Por sua vez, Ben Watson – um marxista autonomista (linha Tony Negri) muito marcado por Deleuze – trata a Zona Cacofónica Temporária criada pelo noise como «revolução em permanência». Revolução contra si mesma, designadamente contra as suas cristalização formal e coisificação capitalista. Howard Slater salienta que a curto-circuitação do sentido processada pelo noise seria uma «semiótica dos impulsos» e um «modo inconsciente de comunicar», ao nível subliminal, se não fosse o caso de também desconstruir os materiais e as temáticas. Considera o ensaísta: «Sob o assalto do noise a essência humana dissolve-se numa (alienante) difusão de potenciais becomings, enquanto a identidade pode revelar-se como uma fabricação, como um produto de endocolonização.» Nesta lógica, a «sensualizada activação do “corpo-ego”» por uma brutalista acção áudio revela «uma sexualidade polimorfa, uma pele libidinal que, no extremo, pode até minar a organização genital». Ou seja, se a música é uma expressão sexual (veja-se o simbolismo encerrado no pseudónimo do compositor e pianista de dixieland, também proxeneta, “Jelly Roll” Morton, que traduzido à letra significa “Pachacha” Morton, e verifique-se também o simbolismo do nome Spunk (“Esporra”) para o colectivo feminino em que encontramos Maja Ratkje), o noise é pan e poli. E anarquista, mesmo quando os seus autores não se apresentam como tal… 49
Capítulo
8 Ilustrações por André Lemos
“a” Minúsculo com Círculo à Volta 50
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anarquista é algo que coloca às avessas tudo o que se entende hoje sobre as máquinas que temos ao nosso serviço e a Máquina que todas juntas compõem e que nos coloca a nós ao seu dispor, e também porque alguns libertários entendem que para haver Anarquia é preciso destruir a tecnologia. Toda a tecnologia, dos relógios de ponto nas fábricas e nos escritórios aos iPhones com que falamos nos transportes e nos restaurantes como se não houvesse gente à volta. Passando, claro está, pelos desktops sem os quais julgamos já não saber viver. No imaginário da Touch os estilizados laptops e as ramadas dos chorões tombadas sobre a água parecem coexistir pacificamente, mas a força combinada das imagens e do áudio funciona apenas porque há um conflito inerente. Sem qualquer tipo de panfletarismo, subtilmente, é este o «statement moral», é esta a «visão do mundo», que Wozencroft criou para este projecto que entende a tecnologia musical de forma não conformista, oferecendo aos interessados obras realizadas pelos seus autores com processos, técnicas e conceitos que subvertem as próprias ferramentas utilizadas. Mika Vainio, Christian Fennesz, Chris Watson, Biosphere, Hafler Trio, Ryoji Ikeda e Philip Jeck são alguns dos artistas sonoros associados a este propósito. No que às aplicações presentes da tecnologia diz respeito, Wozencroft insurge-se contra o facto de não se fomentar uma atitude de “edição” quando as pessoas adquirem, por exemplo, uma câmara de vídeo, sendo pelo contrário encorajadas a “imitar”: «O computador conduziu a uma cultura de karaoke.». Mas não é propriamente uma utilização criativa generalizada dos meios digitais que o mentor da Touch preconiza. Wozencroft desconfia das amplas “democratizações” prometidas pela tecnologia capitalista: «Porque tudo pode ser feito com uma workstation, desde composição musical a imagem em movimento, há a suposição de que todos o podem e devem realizar. Isso seria um problema ecológico de primeira ordem. Muitos designers gráficos querem fazer filmes e CDs e não há como demovêlos disso. Os designers querem ser os canalizadores do século XXI, arranjando as fugas dos defeituosos canos da comunicação corporativa e cobrando fortunas pelo privilégio.» O pastoralismo fotográfico da editora tem tudo para fazer as delícias dos Primitivistas deste estranho início do século XXI, mas o ob-
O que realmente fascinava Roland Barthes e Julia Kristeva não eram os símbolos e os signos por si mesmos, mas as curto-circuitagens que advinham de certas relacionações entre eles. Essas derrapagens de sentido levaram o fotógrafo e designer gráfico Jon Wozencroft, um dos responsáveis da editora discográfica Touch Music, a “vestir” os CDs de música electrónica da etiqueta britânica com capas em que encontramos paisagens naturais e aparentemente intocadas pelo homem. A conteúdos regra geral digitais, computadorizados, com recurso a sons sintéticos e de criação artificial, correspondem imagens de um mundo sem cultura e sem tecnologia. Um mundo desabitado em que os únicos seres verticalmente erguidos são as árvores. Outra combinação simbólica de efeito disruptivo com semelhantes implicações é aquela que os títulos deste livro e deste capítulo propõem, entre o “A” maiúsculo com círculo à volta que identifica a Anarquia e o “a” minúsculo também com círculo à volta dos endereços internéticos de comunicação, sendo a World Wide Web a mais importante ferramenta cibernética do presente estádio do capitalismo global. Esta maiúscula e esta minúscula não podiam representar domínios mais diversos da actividade humana, mas transferir para o símbolo tecnológico as características do símbolo político é como derrubar um ninho de vespas com um pau. Porque pensar na possibilidade de existência de uma tecnologia 52
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jectivo é apenas constituir uma linguagem de oposição «ao que é meta-isto e tecno-aquilo». As paisagens da Touch Music são «gravações atmosféricas» e também «indícios forenses». Nunca o Unabomber haveria de apreciar as pulsações mecanizadas, frias e repetitivas de Ikeda ou os processamentos electrónicos de Geir Jenssen (Biosphere) sobre sons recolhidos no Tibete ou nas planícies geladas do extremo Norte da Terra. Nem sequer a inquietude musical destes artistas convenceria o matemático tornado terrorista Ted Kaczynski, que agora cumpre pena de prisão depois de ter assassinado três pessoas e ferido cerca de 30 com as suas pequenas bombas enviadas por correio. Ao contrário do bloco anarco-primitivista, o Unabomber deseja um regresso ao período antes da Revolução Agrícola (pois: antes da Revolução Industrial já havia tecnologia!) não porque tem dele uma visão hedonista e de concórdia, mas porque era um tempo de luta sem tréguas e de sangue. Se o regresso à natureza de John Zerzan, um engenheiro arrependido, pode parecer idiótico, pois implicaria no seu cenário de sustentabilidade uma diminuição em 98% da população mundial, o proposto pelo manifesto de Kaczynski é ainda mais sinistro. Qual a diferença? Os zerzanistas acreditam que o próprio colapso do sistema capitalista levará à extinção da maior parte da humanidade, enquanto o “negativo” de Thoreau (tal como este, recolhia-se numa cabana da montanha) gostaria, com certeza, de ajudar na carnificina. Há outro factor distintivo: Kaczynski não é anarquista – não tem como princípio da sua crítica do industrialismo e da “civilização” uma objecção relativa à existência de governos e de Estados – e condena mesmo o Primitivismo de bandeira verde e negra por ser «esquerdista». O seu ódio aos computadores só tem rival no desdém que dedica à generalidade das esquerdas e à própria noção de “esquerda”. Os stills naturalistas de Jon Wozencroft não são, portanto, os captados pelas retinas do Unabomber e de Zerzan. “Falam”, isso sim, de uma conversão libertadora da tecnologia. Uma conversão que teria de passar tanto pela adaptação dos maquinismos e dos seus propósitos como por uma redução dos aparatos e até das velocidades processuais. Por mais difícil que esta se anuncie: afinal, o poder da cibernética atingiu tal grau de complexidade e omnipresença que o neoliberalismo vigente em quase todo o globo, a «Máquina 56
Abstracta» de Tiqqun, é ainda mais totalitário do que foram a Alemanha nazi, o estalinismo soviético e a China da Revolução Cultural. Uma sociedade dominada por máquinas é uma sociedade em que faltam postos de trabalho, apelando esta vertente a uma intervenção dos fundamentos socialistas da Anarquia e à capacidade de esta transformar os circunstancialismos do desemprego nas condições do lazer. Sobre tal muito escreveu já Bob Black, ainda que numa perspectiva de “pósesquerda” não alheia aos preconceitos do Unabomber. É, igualmente, uma sociedade em que as ditas máquinas servem para conformar e reprimir, e tal característica convida a uma revivificação de todo o historial anti-autoritário do anarquismo e à formação de novas aplicações. Alexander Brener e Barbara Schurz designamnas como «antitecnologias de resistência». Estas abrangem o campo das artes e têm várias propriedades, cuidadosamente enumeradas pelos dois pensadores. Devem surgir em contextos locais específicos, para um desempenho mais eficaz. Devem contemplar a acção do corpo, pela circunstância de os corpos serem o contrário das máquinas («não são máquinas de desejo, nem máquinas de guerra, nem máquinas de poder»), tendo como condição «destruírem as suas funções, saírem dos seus contornos e entrarem em contradição consigo mesmos»). Devem proporcionar actividades «selvagens», introduzindo o acaso na ordem estabelecida. Devem aspirar à não-produtividade e à descontinuidade, dado que o oposto temporal desta resultou na «história dos vencedores» a que se referia Walter Benjamin. E devem ainda contrariar a satisfação ética e estética, entendida como uma porta de entrada para o fascismo. Devem escapar a qualquer tentativa de documentação normativa. Devem buscar a não-originalidade, de modo a recusar o triunfo “original” de uns e a consequente obediência de outros ao seu “vanguardismo”. Em suma, devem ser as antitecnologias de uma anti-arte, como que «um peido numa vernissage». Ora, há máquinas que não são necessárias e podem ser descartadas e há máquinas que ainda não existem e é preciso inventar, sendo que, em grande parte, as já existentes servem aos bolos de PM (um anónimo professor do ensino secundário) e às federações de Proudhon, dependendo do modo como são utilizadas. E o certo é que todas elas são passíveis de fun57
cionamentos outros que não os originalmente intencionados. O hacking de hardware e software (ou dito de outra maneira: o esventramento de mecanismos e programas para sua correcção e optimização criativas) é o pilar da Anarquia cibernética, já em curso, em prol de uma realidade em que lagos cristalinos e circuitos integrados não são dois planos opostos da realidade. No âmbito da invenção as possibilidades são imensas, seja por tentativa e erro, à descoberta, como fazem os chamados benders (os entusiastas do circuit bending, por exemplo), como por conhecimento de causa, com os cada vez mais numerosos sábios sem diploma, aderentes ao militante princípio do Do It Yourself, que roubam à classe dos tecnólogos e cientistas a especialização que a tornou num novo baluarte do Poder. A Máquina Abstracta pode prever o que escapa ao seu controlo, neutralizando essa perda, e pode até recuperar o que à partida a contradiz. Existe melhor exemplo do que o punk anarquista tornado num bem comercial do capitalismo, tal como, de resto, previa o muitíssimo esperto Malcolm McLaren? Por acaso sim: a Internet, que começou por ser um recurso militar para se tornar numa plataforma nómada de ideias, com um aparente grande potencial subversivo, mas que o sistema gere para circunscrição dos circuitos comunicantes, para domesticação dos conteúdos e para vigilância das ameaças e dos “desvios” em maior evidência. O exemplo da Internet comprova, inclusive, que na cibernética capitalista nada há que, por si só, possa servir a liberdade. A governação tecnológica só se serve a si mesma. É um bom sinal que existam netlabels independentes de música criativa, mas não chega. É bom que se possa descarregar gratuitamente da Web a bibliografia básica do anarquismo, mas de que vale verdadeiramente isso? Pouco. O que importa é sabotar a Máquina com as suas disfuncionalidades, que é o que distingue a electrónica glitch, exploradora das falhas sistémicas, divulgada pela Touch e pelas editoras Raster-Noton e Mego. O que importa é provocar situações de panne, de avaria, de loucura maquinal. Situações de entropia, sejam elas quais forem. É assim que os hackers (não os infopiratas que trabalham para proveito próprio, mas os aficionados da costumização que dedicam as suas inovações a todos os demais) constro-
em máquinas selvagens e muito concretas. Há quem desenhe e coloque em circulação software que substitui o fabricado nos laboratórios das multinacionais monopolistas, como é o caso de Julien Ottavi. Com tal objectivo abrem-se as guitarras para que produzam sons diferentes e ensinam-se os outros a fazê-lo, que é o que caracteriza John Hegre. Também este tipo de intervenções é entrópico, e tal como escreveu Tiqqun, «a lei natural que tem o nome de entropia é o inferno da cibernética». Na música, o hacking tem um equivalente ao Anarchist Cookbook que substitui os detonadores por ferros de soldar. Intitula-se Handmade Electronic Music e foi escrito por Nicolas Collins. Não se trata de uma tese filosófica ou de uma cartilha de intenções, mas de um manual de procedimentos práticos. Não é um “livro vermelho”, mas um guia de activismo musical-tecnológico. Um convite à «transformação criativa da electrónica de consumo para usos alternativos». Não há teoria, mas indicações passo-apasso sobre como montar um microfone de contacto, um oscilador manipulável por luz, um controlo remoto que dispara feedbacks ou uma cabeça de leitura magnética capaz de “tocar” um cartão de crédito, entre muitas outras possibilidades. Collins é uma das mais importantes figuras da segunda geração de bricoleurs/ compositores surgidos nos Estados Unidos, depois daquela representada por David Behrman, que não por acaso assina o prefácio de Handmade Electronic Music. É um homem de objectivos, como manter as coisas simples, baratas e «estúpidas», no sentido de que o que interessa é soar bem aos ouvidos, não propriamente estabelecer um novo paradigma para a engenharia sonora. Graças a pioneiros como Nicolas Collins fazse hoje música com dispositivos de criação própria (em Portugal temos Rafael Toral, André Gonçalves, Gustavo Costa, João Martins e outros tantos), não raro coincidindo essa particularidade com uma completa autogestão da actividade musical que inclui auto-edição e auto-agenciamento. Em lado nenhum do livro se refere a causa anarquista, mas isto é anarquismo vivenciado. Bem que Wozencroft podia colocar Collins numa das suas fotos paisagísticas, mas, por estranho que pareça, a Touch nunca lançou um CD do músico. Há equações simbólicas cuja ocorrência se torna não só necessária como urgente – esperemos que ele se aperceba disso. 58
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por inerência, representação da representação, mesmo quando o propósito que lhes assiste seja mudar as consciências e a sociedade. Nem todas têm essa ambição militante, funcionando mais ou menos passivamente nos meandros do mercantilismo capitalista (veja-se o caso dos Radiohead), mas mesmo quando a mensagem é política pouco podem os irreverentes Gogol Bordello ou os veteranos e sabidos Can (acrónimo de “Comunismo-Anarquismo-Niilismo”) contra os mecanismos de recuperação e coisificação da máquina industrial de que fazem parte. Não chega compor canções pop anarquistas, para mais quando se tem por adquirido que, não obstante o seu glamour, o factor pop é destrutivo. Faria libertariamente sentido optar por um formato menos comercial ou, porque não, inventar algum novo, como, de resto, fizeram os praticantes das músicas improvisada e experimental? Fará com certeza, mas não implica isso uma diminuição das audiências, o tal “afastamento das massas” que é, desde sempre, o grande pesadelo das esquerdas (e claro que também originando uma diminuição dos rendimentos pessoais)? Pois implica, mas lá está: aceitar o jogo capitalista com a pretensão de o sabotar tem conduzido apenas à sua manutenção… Não é fácil chegar a boas conclusões, mas estes músicos deviam pensar autocriticamente no que será (ou seria; sejamos objectivos e desapaixonados) a música numa democracia de base, comunalista e federativa. Provavelmente, alguns deles enrolariam a bandeira negra, tais as contestações que encontrariam do seu assumido conceito monetarista de “carreira”. Nada melhor, para tal, do que consultar os cenários musicais avançados pela literatura anarquista, em especial a de ficção científica (FC) ou de antecipação, dadas as superiores capacidades de “visualização” narrativa e descritiva que esta tem relativamente à escrita filosófica, bem mais seca e cifrada. Por algum motivo, de resto, o autor da Mars Trilogy, Kim Stanley Robinson, sustenta peremptoriamente que «a FC é, presentemente, a mais importante forma de arte». Aliás, a FC tomou nos últimos 50 anos o lugar que as utopias tiveram desde, pelo menos, o século XVI e um visionário chamado Thomas Morus. Com a vantagem de o imaginário utópico actual, seja o projectado para outros planetas (The Dispos-
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Despojados que Querem Ser Livres Ilustrações por João Chambel
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Músicos anarquistas como Thom Yorke (Radiohead), Eugene Hutz (Gogol Bordello), Jello Biafra (ex-Dead Kennedys, presentemente com o grupo Guantanamo School of Medicine), Holger Czukay (Can, ainda e sempre), Chris Johnston (Ghost Mice) e Lemmy (Motorhead, ex-Hawkwind) terão, com certeza, consciência de que a música que fazem, da maneira como a fazem e, sobretudo, como a apresentam e colocam em circulação, é um produto formatado pela “sociedade do espectáculo”. A expressão foi cunhada pela Internacional Situacionista e, em particular, por Guy Débord, significando que a vida social dos nossos dias, em todos os seus aspectos, se transformou em mera representação. Diria até que as músicas criadas e interpretadas pelas figuras em causa têm duplamente essa condição, dado que todas estas bandas se movimentam nos domínios da cultura pop. Esta é, 61
sessed, Ursula Le Guin) como aquele que refere um tempo terrestre derivado dos presentes circunstancialismos (The Free, Mike Gilliland) ter perdido o clássico carácter distópico… Afinal, em Arrares, o mundo que aplica os princípios da filósofa anarquista Odo (cuja obra Le Guin imagina como uma síntese das ideias libertárias desde Proudhon até 1974, ano em que publicou o livro), no já referido The Dispossessed, a música, tal como de resto, todas as demais artes, «não é considerada como tendo um lugar na vida, sendo antes uma técnica básica da vida, à semelhança do discurso falado». Se todos aprendem a cantar e a tocar um instrumento desde crianças e se todos criam (ou não) música quando o entendem, na sociedade odonista não há músicos profissionais nem propriamente “concertos”. A música faz parte do quotidiano, mas não dispõe de um espaço próprio e diferenciado no aparelho de produção, nem de circuitos de distribuição ou de divulgação específicos. Até um ilustre, ainda que polémico, cientista como o protagonista Shevek dedica uma boa parte da sua atenção ao trabalho socialmente útil no imediato, surgindo a Física apenas como um part-time no seu dia-a-dia ou como uma actividade concentrada em períodos isolados na sua duração. Ora, não sendo a música considerada um bem de primeira necessidade, os odonistas criam-na somente nos tempos que o ensino de música lhes deixa livres, inserindo-a em contextos de socialização dos trabalhadores em que todos são músicos e ouvintes em simultâneo. Como escreve Ursula Le Guin quando Shevek assiste a um espectáculo na capitalista Abbenay, «ele pensava que a música era algo que se fazia e não que se ouvia». Pela primeira vez, testemunha um momento musical fruto da divisão e da especialização do trabalho, em que músicos tocam para não-músicos. Esta diferenciação social entre “produção” e “consumo” está no cerne mesmo do fenómeno pop. Se todos tivéssemos habilitações musicais não haveria tops ou hits. Nem, de resto, Ghost Mice ou Jello Biafra. É neste ponto que a utopia da escritora norte-americana se confirma como uma contrautopia, ou seja, uma utopia que a si mesma se denuncia, expondo, desmontando e recusando as suas tentações absolutistas. Mesmo não havendo governo, patrões e hierarquias, a sociedade e os seus utilitarismos constituem, ou podem constituir, um constrangimento à liber-
dade dos indivíduos. Só em parte Bakunine tinha razão quando dizia que uma pessoa só é livre quando todas as outras também o são. Todos esses outros homens e mulheres livres podem ser a causa de não o sermos nós mesmos… Como afirma a personagem Bedap sobre o «sofrimento espiritual» de alguém que deseje outra coisa que não aquilo que é pretendido pela generalidade dos cidadãos, alguém, por exemplo, que sinta a necessidade de se expressar musicalmente a tempo inteiro: «O sofrimento de pessoas que vêem o seu talento, o seu trabalho, a sua vida perdidos. De boas mentes submetidas a gente estúpida. De força e coragem estranguladas pela inveja, pela ganância do poder, pelo receio da mudança. A mudança é liberdade, a mudança é vida – há algo de mais básico no pensamento odoniano do que isso? Mas nada mais muda. A nossa sociedade está doente.» É o que se passa, precisamente, com Salas, o compositor. Porque os mandatados do Sindicato dos Músicos não gostam do que faz, impedem-lhe uma maior dedicação à escrita. Numa reacção de rebeldia, ele recusa-se a dar aulas… «É que eu não componho da maneira que se ensina no conservatório. Componho música disfuncional. Eles querem corais, mas eu odeio corais. Querem peças de harmonia aberta como as que Sessur escrevia, mas eu odeio a música de Sessur. Estou a escrever uma peça de música de câmara e vou chamarlhe “O Princípio da Simultaneidade” [nota: o mesmo nome da teoria física de Shevek]: cada um dos cinco instrumentos toca um tema cíclico independente, sem causalidade melódica, com o processo de desenvolvimento surgindo inteiramente da relação entre as partes.» Infelizmente, como Sala conclui, «eles não ouvem, não querem ouvir». É a vertente colectivista da Anarquia que se contrapõe à individualista, comprovando que os preceitos comunistas de Kropotkine só fazem sentido quando se colocam em prática também os “egoístas” de Stirner, sob o risco de se instalar outro totalitarismo. Repare-se no comentário de Bedap: «Como podem eles justificar esse tipo de censura? Tu compões música! A música é uma arte cooperativa, orgânica por definição, social. Pode ser a mais nobre forma de comportamento social de que somos capazes. E é com certeza um dos mais nobres trabalhos que um indivíduo pode desempenhar. Pela sua natureza, pela 64
natureza de qualquer arte, é uma partilha. O artista partilha, é essa a essência da sua actividade.» Ou seja, «a complexidade, a vitalidade, a liberdade de invenção e iniciativa que estavam no centro do ideal odoniano estão a ser deitados fora». «Estamos a voltar à barbárie.». The Dispossessed vira os princípios anarquistas contra os próprios princípios anarquistas, apresentando a sociedade alternativa não como uma solução perfeita, mas como algo que tem os seus inerentes paradoxos e é necessário aperfeiçoar continuamente. Nada que se assemelhe ao congelado e estéril Falanstério de Fourier. Seja como for, um Jello Biafra ou um Lemmy não podem esperar um cenário minimamente parecido com aquele que os conduziu à fama. E o que mais temos na FC a dar-nos indicações? Temos a escritora e activista Starhawk, que num texto intitulado “The Vision of the City”, sobre a San Francisco “utópica” que propôs em The Fifth Sacred Thing, idealiza uma cidade ajardinada e artisticamente intervencionada em que a Guilda dos Transportes contrata músicos para circularem em camionetas abertas, a fim de que «correntes de música constantemente flutuem pelas ruas». A música, pois, como um serviço público, não um produto comercial. Valorado como qualquer outro, e, por isso, inserido nos currículos estudantis básicos: «Quando as crianças aprendem a tocar tambor, mais facilmente ficam a saber contar.». A música pode até ser usada nas metodologias educacionais: «Tudo o que precisa de ser memorizado é colocado em música e cantado.». Em outro escrito seu, Starhawk coloca já na actualidade o utilitarismo revolucionário da música. Por exemplo, nas acções de protesto e nas barricadas, que considera deverem ser mais imaginativas: «Arte, música, dança, marionetas, rituais, teatro de rua, procissões, paradas, todas as coisas que já fazemos e outras em que ainda não pensámos. Divertimentos e surpresas. Humor. Fazer o inesperado. Nunca ser aborrecido, entediante ou estereotipado.». Autora de Woman on the Edge of Time, a poetisa Marge Piercy mostra, por sua vez, uma Mattapoisett em que «as carreiras são distribuídas numa base rotativa e quase todos estão envolvidos em serviços públicos», sendo a arte «produzida comunitariamente». No monólogo fantasista, híbrido de ensaísmo, Bolo Bolo o misterioso PM designa por bolos os bairros autónomos com identidades
culturais próprias e diferenciadoras, «os seus hábitos, filosofia, valores, interesses, estilos de vestir, cozinha, maneiras, comportamento sexual, educação, religião, arquitectura, artesanato, artes, cores, ritos, música, dança, mitologia, body-painting». Não propriamente tribos, apesar das suas semelhanças com as velhas sociedades de colectores / caçadores, mas unidades sociais de raiz reunindo cerca de 500 indivíduos que tudo decidem em conselhos deliberativos de democracia directa. Há um motivo que leva PM a imaginar a estrutura base do seu modelo de Anarquia segundo a identidade cultural: «A cultura é mais importante do que a sobrevivência material. As pessoas que passam fome lutam mais pela sua religião, pelo seu orgulho, pela sua língua e por outros “luxos” superestruturais do que propriamente por rendimentos mínimos assegurados.». Num bolo, de resto, é o contexto cultural que define «o que é considerado “trabalho” (= dor) e o que é entendido como “divertimento” (= prazer)». Não há obrigatoriedades, «somente um fluxo mais ou menos livre de paixões, perversões e aberrações». A música pode ser uma dessas aberrações, pode ser um dos “entretenimentos” transformados em “empregos”… Por sua vez, Kim Stanley Robinson traduz o visionarismo anarca de 2312 numa estruturação equivalente ao sampling da electrónica de pesquisa e ao DJing dos clubes de dança, ou seja, uma colagem de diversos géneros literários e tipos de escrita. As referências à música, essas, não passam da alusão ao gosto pelos clássicos de Wahram, um intelectual de Titan com cara de sapo. Já os yunkers (jovens) organizados em clans de The Free, obra do acima mencionado Mike Gilliland, são os típicos punks com reminiscências hippie do Black Bloc e do movimento Okupa. Mas se as personagens deste relato de insurreição numa conjuntura futurista (para daqui a uns meses?) de colapso do capitalismo na Europa são as do imaginário punk, a música é apenas mencionada como parte da festa revolucionária. É nada mais, nada menos do que uma ferramenta para o bem comum. Mas conseguirão os Radiohead imaginarse a animarem, sem palco, nem luzes, nem equipamento de som, nem fotógrafos, nem jornalistas, uma reunião guerrilheira prestes a partir para uma investida contra uma milícia fascista? Duvido, mas é isso que cabe fazer aos músicos despojados (“dispossessed”) que querem ser livres com a Anarquia… 65
Capítulo
Os binóculos anarquistas têm-se imiscuído em tudo o que fazemos. Nem por isso será legítimo dizer que a Anarquia é um sistema pensante, uma narrativa fechada sobre si mesma. Aliás, o melhor amigo que o voyeurístico olhar libertário encontrou foi a pós-modernidade explicada por Lyotard às criancinhas. Se a produção intelectual dos últimos 40 anos, nesta área, tem sido a mais rica de sempre (é a minha opinião, e muitos não hesitarão em contestá-la), contrariando a crescente ineficácia da luta no terreno – são mais visíveis as influências anarcas nos presentes movimentos sociais do que a própria acção como tal identificada – é porque, precisamente, os grandes paradigmas que constituíram o modernismo caíram por terra e se começou a lidar com o entulho produzido por essa implosão. O que os cogitadores anarquistas têm escrito sobre questões de sociedade, trabalho, tecnologia, lazer, sexo, amor, violência, condição humana, espiritualidade e criatividade abarca tudo o que é possível imaginar, mas não com o propósito de construir uma gigantesca teia de aranha. Fê-lo o marxismo com os desfechos que se sabe, na ilusão metonímica de que a Parte configura o Todo. O chamado Pós-Anarquismo (porque pósmoderno) gere a coisa ao contrário – observa as ruínas vindas dos edifícios que tombaram. Nesse processo de análise não tem havido preocupações de uniformização, ou pelo menos de transversalidade, das lógicas extraídas, mesmo quando se procura a transdisciplinaridade analítica. Algo aconteceu em consequência: um festival de incoerência que, se para uns é um mal, para outros (o autor destas linhas incluído) é o que a actual Anarquia tem de mais excitante e, até, divertido. Neste quadro, aquele que é talvez o melhor contributo do anarquismo contemporâneo para o nosso colectivo avanço intelectual está a ter incidência na área da investigação e da formulação científica, com uma avaliação crítica das lógicas e dos processos daquilo a que se chama Ciência. Também a uma sua reformulação e ao lento derrube do Muro de Berlim que a separa da mitologia religiosa, da sabedoria popular e, inclusive, da experimentação artística – como mais adiante se verá. Não sem uma enorme polémica, pois estamos perante a última vaca sagrada, o derradeiro tabu, da civilização ocidental. Um filósofo com formação em Física que nem sequer era anarquista (as suas preferên-
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Ilustrações por Ana Menezes
A Ciência, rte e Experimentação 68
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cias político-económicas iam para a socialdemocracia, ou seja, para uma sociedade de mercado com Estado social) acabaria por constituir uma visão anarquista da ciência e do saber. No seu seminal ensaio Contra o Método, o austríaco Paul Feyerabend arrasou os fundamentos científicos de “verdade”, “realidade” e “objectividade” como sendo preconceitos (pré-conceitos) vagos e sem sustentação, tão imprecisos que, no seu entender, conduziram a que a ciência não se distinguisse do mito tanto quanto se julga. Acusado de ser «irracional» por aqueles que assim se sentiram atacados, Feyerabend argumentou que o conceito de Razão não só não é científico como não tem conteúdo definido, sendo este preenchido pelo que alguém entende subjectivamente como a racionalidade. E assim como criticou a produção de leis científicas universais quando as próprias metodologias utilizadas não são universais, referiu que a tendência para a Ciência (com maiúscula autoconcedida) se apresentar como um monólito do conhecimento é um truque de ilusionismo, dado que as várias ciências estão desunidas, por vezes chegando a “conclusões” distintas e exclusivistas sobre as mesmas matérias, e são sempre incompletas. O «pior inimigo da ciência», segundo os seus detractores, chegou a contrariar a ideia geral de que primeiro vêm os factos, só depois se desenvolvendo a teoria. Feyerabend considerava que a interpretação factual depende sempre da grelha cultural em que o cientista se encontra, o que à partida deturpa os resultados. E chamou a atenção para um comportamento não propriamente raro: o encaixamento dos factos num corpo teórico previamente estabelecido, para satisfação dos patrocinadores de um determinado estudo científico. Afinal, as ciências estão ao serviço do poder económico, do poder militar e do poder político. Deste modo, e tendo em conta a dificilmente comprovável superioridade cognoscente da ciência face à religião, ao folclore e à arte, bem como verificando a tendência do aparelho científico para a tirania, Feyerabend propôs o relativismo como princípio condutor das operações do conhecimento. Não há verdades absolutas, apenas leituras do que se acha que é a verdade, todas elas admissíveis (atenção: não escrevi “aceitáveis”). O que é verdade para os outros tem igual peso do que é verdade para mim. O que quer dizer que, se posso achar um disparate a cren-
ça dos Criacionistas de que a vida na Terra foi formada em seis laboriosos dias divinos, com descanso do Senhor ao sétimo dia, eles têm tanto direito a defendê-la quanto eu tenho de aderir à tese do Big Bang, que até pode ser outro absurdo… Assim se lançaram as bases do chamado Anarquismo Epistemológico, a mais fértil expressão libertária que podemos encontrar por estes dias. O que afirma é: «Se queremos entender a natureza, temos de utilizar todas as ideias e todos os métodos, e não apenas uma pequena selecção deles.». A máxima extra scientiam nulla salus revela-se, por conseguinte, como um equívoco. A medicina ocidental não é mais válida do que, por exemplo, a medicina tradicional chinesa, algo que nunca uma ordem dos médicos admite na nossa parte do planeta. E o que interessa isto às artes, e designadamente à música, que é o que motiva esta reflexão? Nenhuma prática artística tem como horizonte a obtenção de conhecimento, a não ser ao nível das metodologias a aplicar, constituindo técnica e estética duas dimensões distintas, muito embora a primeira esteja ao serviço da segunda. O certo, e isto não é ciência de foguetões, mas senso-comum, é que deriva invariavelmente de um enquadramento conceptual alimentado pelo que se julga ser conhecimento adquirido ou por uma questionação realizada nesse âmbito. De resto, é cada vez mais habitual criarem-se obras de arte (e especificamente de música) com pressupostos “científicos”. Com uma particularidade: à intervenção artística interessa mais explorar a “excepção que confirma a regra”, bastantes vezes se demonstrando que essa excepção, afinal, desmente a regra estudada. Ora, se a ciência é incapaz de chegar a certezas, ficando-se pela teoria, e se a argumentação científica recorre a metáforas e analogias porque, simplesmente, a mente humana não atinge (nem pode atingir) a essência da tão abstracta “realidade”, abre-se todo um mundo de possibilidades para a arte. A produção metafórica e a capacidade de exprimir o indizível são específicas da arte, pelo que o discurso científico que as integra já está em processo de conversão. O próprio Feyerabend referiu que o anarquista epistemológico, o cientista desdogmatizado, tem semelhanças com o artista Dada, no sentido em que este «não só não tem programa 70
como está contra todos os programas». Pode ser «tanto o mais vociferante defensor do status quo como da sua oposição, pois um dadaísta autêntico tem de ser também um antidadaísta». A comparação justifica-se. O movimento Dada foi, no início do século XX, profundamente marcado pelas ideias anarquistas, à semelhança de outros como o Futurismo (não eram todos fascistas em Itália, a começar por Renzo Novatore), o Surrealismo (André Bréton trocou o vermelho do comunismo de Estado pelo negro do anarco-comunismo), o Expressionismo de Mark Rothko e Jackson Pollock, o Situacionismo de Guy Débord (ainda que de origem marxista) ou o Fluxus de George Maciunas e Henry Flynt, o mais esganiçado dos violinistas. Num texto intitulado “The Anarchist Aesthetic”, Michael Scrivener postula que nessas e noutras frentes artísticas dos últimos 100 anos o factor experimental «é anarquista pelo menos em tendência, quando não mesmo conscientemente». Em termos históricos, a verificação não é pacífica: o ensaísta assinala que, se Mikhail Bakunine, Max Stirner e William Godwin eram «libertários estéticos», já Pierre-Joseph Proudhon, Piotr Kropotkine e Leo Tolstói consideravam essas manifestações decadentes, burguesas ou individualistas. Esse factor tem sido entendido de maneiras diferentes pelos próprios artistas e, nem sempre, a favor, subsistindo a impressão de que o que é experimental não é suficientemente sério, num resquício dos velhos juízos positivistas. Aquela que parece, no entanto, mais partilhada toma a “experiência” como algo de similar ao experimentalismo que nas ciências, apesar de tudo, tem sido valorizado. Muito em particular, os experimentalistas musicais falam em “pesquisa” e em “laboratório”. Esta terminologia está patente, de resto, na documentação escrita da associação portuguesa de músicos Granular, que tem como propósito estatutário, precisamente, promover a experimentação. Na sua prosa, Scrivener identifica experimentalismo com vanguarda, sem se aperceber que está a dar ao anarquismo artístico a mesma categorização que o comunismo estatal deu à vanguarda proletária, quando o que distingue a Anarquia é não se reivindicar como uma vanguarda. Se não considerarmos este lapso, a sua perspectiva tem claros paralelismos com o Anarquismo Epistemológico, que Feyerabend insistia em distinguir da história do libertarismo político: «A vanguarda, que 72
trabalha nos limites e nos extremos da consciência, torna possíveis as rupturas libertárias com a realidade estabelecida. Para entender a experiência, que muitas vezes é formatada e determinada por factores que escapam ao nosso controlo, precisamos de ir além do entretenimento de consumo servido pela indústria cultural. E necessitamos igualmente de ir para além das teorias anarquistas e marxistas formuladas no século XIX com base em assunções que já não são adequadas.». O experimentalismo na arte deu e dá forma à chamada “anti-arte”, surgida da rejeição de universalismos definitórios quanto ao que é ou deve ser a arte e mesmo do estatuto que lhe foi consagrado. As anti-artes que se sucederam no tempo (as acima referidas: Dada, Futurismo, Surrealismo, etc.) foram recuperadas pelo sistema mercantil e colocadas no museu, mas permitiram que outras abordagens em contracorrente tivessem lugar. Seria de esperar que o equivalente experimental da ciência tivesse conduzido a uma “anticiência”, mas tal não se verificou – o que só significa que está cuidadosamente resguardada numa fortaleza. Não surpreende: a maior obra científica até à data foi a bomba atómica. Mesmo a ida à Lua teve como motivo o despique americanosoviético da Guerra Fria.
É esta, agora, a tarefa anarquista: desenvolver uma anticiência que surja como uma transfiguração da ciência em arte. E porque a mitologia e a sabedoria do povo (camponeses e pescadores lêem os sinais da natureza melhor do que ninguém) são outros materiais artísticos habitualmente utilizados, além de outras fontes legítimas de conhecimento, os artistas encontram nestes âmbitos muito com que fazer.
Façam, pois, o favor de partir pedra. E de gravar, já agora, os sons produzidos, para inclusão e tratamento nas composições musicais do futuro… 73
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+4 Chthonic: Prose & Theory VADGE MOORE Em Inglês / In English Esgotado / Sold Out
+3 ANTIBOTHIS, vol. 3 Selected texts by FERNANDO CERQUEIRA Em Inglês / in English John Zerzan, Earth First, Chad Hensley, Ewen Chardronnet, Iona Miller, Joe Ambrose, Nigel Ayers, Socialfiction, Frank Rhyne, Randal Pyke, Adi Newton and Jane Radion Newton (Clock Dva/ T.a.g.c.). Antibothis cd compilation includes The Master Musicians of Joujouka, Lydia Lunch with Philippe Petit, Checkpoint 303, Kal Cahoone, Gintas K, Orbit Service, Anla Courtis, Stpo, Zeitkratzer, Jane Radion Newton and Adi Newton/T.A.G.C., Pietro Riparbelli/K11, Gjoll. Cover by André Lemos.
+2 ANTIBOTHIS, vol.2 Selected texts by FERNANDO CERQUEIRA Em Inglês / In English Erik Davis interviews Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey), Carl Abrahamsson, Magus Coyotel Leyba, Vadge Moore, Chad Hensley Interviews Boyd Rice, Center For Tactical Magic, Critical Art Ensemble, Antero Alli, Brian Dean, Andrew Mckenzie, Stefan Szczelkun, Orryelle, Aesthetic Meat Front And Vincent Alexzander. Antibothis cd compilation includes O Yuki Conjugate, Controlled Bleeding, Orryelle, Aesthetic Meat Front, Enkidada (Psychik Warriors Ov Gaia/Exquisite Corpse), Cotton Ferox, Hybrids, Strings of Consciousness and MILF (Bourbonese Qualk). Cover by André Lemos.
+1 ANTIBOTHIS, vol.1 Selected texts by FERNANDO CERQUEIRA Em Inglês / In English Gx Juppiter Larsen, Kenji Siratori, Corrupt, Pentti Linkola, Iona Miller, Socialfiction, Jorge Mantas, Edgar Franco, Wulf Zendik, Adel Souto, Sztuka Fabryka, Denny Sargent, Ordo Antichristianus Illuminati And Alex Birch. Spoken word/oral cut up cd compilation Jarboe, Fernando Ribeiro (Moonspell), Kenji Siratori, Phil Von (Von Magnet), Christophe Demarthe (Clair Obscur), Rasal.asad, Euthymia, Wildshores, Andrey Kiritchenko, Netherworld, Rapoon, Planetadol, Thermidor, Structura, Martin A. Smith and Alex Tiuniaev. Cover by André Lemos.
-1 Scorpio Rising: Transgressão Juvenil, Anjos do Inferno e Cinema de Vanguarda ONDINA PIRES Em português / In Portuguese sobre/about Kenneth Anger. Capa de/Cover by João Maio Pinto.
-2 Bestiário Ilustríssimo RUI EDUARDO PAES Em português / In Portuguese sobre/about Music and multimedia. Capa de/Cover by Joana Pires.
ANTIBOTHIS são antologias literárias occulturais periódicas, apresentando textos e entrevistas de autores tanto desconhecidos como já com créditos firmados, na dissidência e disseminação alternativa de informação e propaganda literária, uma revolta em nome da imaginação em oposição a uma existência tóxica de baixo teor cognitivo. ANTIBOTHIS is a collection of book anthologies featuring texts, interviews showcasing a variety of ideas that are a genuine alternative to the dogma of conformity, the commitment to disconnect the cables of corporhate coolonization, disinverting cultural reality through the dissemination and dispersion of alternatives vortices of information and infinite chaotic propaganda, speculation, simulation, stimulation, to revolutionize the dynamics of life in a total process of cultural transformation, reclaiming our guts and revolt in the name of imagination in opposition to a toxic life of low awareness, herd mentality and programmed though, infecting human minds and alter their behaviour. www.antibothis.com
Rui Eduardo Paes Com quase 30 anos de actividade repartida entre o jornalismo cultural, a crítica de música e o ensaísmo teórico, Rui Eduardo Paes é autor de vários livros sobre as músicas criativas. É o editor do site jazz.pt, membro da direcção da associação Granular e autor dos press releases da editora discográfica Clean Feed. Foi um dos fundadores da Bolsa Ernesto de Sousa. Assessorou a direcção do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian e integrou o júri do concurso de apoios sustentados do Instituto das Artes / Ministério da Cultura para o quadriénio 2005-2008.
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