Corta-e-cola

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A T R O C -ECOLA

stรณrias do discos e hi ortugal punk em p 8) (1978-199

ez

Afonso Cort


Ao Tomé Brito (1976-2017)


PARTE I

REVOLUCIONÁRIOS, ELITISTAS E MARGINAIS

AQUI D’EL ROCK. “PUNK ROCK ’77” LP. Faíscas, Minas & Armadilhas, Raios e Coriscos, Xutos & Pontapés, UHF. Metrosom, Pirate Dream Records. Estado de Sítio, Gazua, Desordem Total, Leitmotiv. Brown’s, C.A.C.O., Bar É. Rock em Portugal, Música & Som, Musicalíssimo. Rotação.

THE WARM. WARM RECORDS. “NOVA VAGA” LP. Photozine, F**k P**k. Odd Combo.

CORPO DIPLOMÁTICO, ANTÓNIO & VARIAÇÕES. Índice _ 5

Crise, WC / Porno.


PARTE II

INDEPENDENTES, DISSIDENTES E VENDIDOS

ROTAÇÃO, XUTOS & PONTAPÉS (ROCK ´N´ROLL BAND), OPINIÃO PÚBLICA, STREET KIDS, Mau Mau, Manifesto, Delirium Tremens / Beijinhos & Parabéns, De Plástico. Fundação Atlântica.

PANCHITO & THE HI-ROCKETS, ROBOT JUKEBOX Grupo Parlamentar, Tilt, Speeds, Atitudes, UX Bombs. Deygo Records.

Índice _ 6

ROCK RENDEZ VOUS. DANSA DO SOM. “AO VIVO NO ROCK RENDEZ VOUS EM 1984” LP., Ocaso Épico. Café Concerto, Ocarina, Juke Box, Usina, Bar Oceano, Teia, Noruega, Lá Lá Lá. Rock Week, Blitz, Êxito, L.P.


CRISE TOTAL. AMA ROMANTA. GRITO FINAL. AGITARTE ’85. OS CÃES, A MORTE E O DESEJO / CÃES VADIOS, Ku de Judas, Choque, Crise, Profilaxia, Emílio e a Tribo do Rum, Bastardos do Cardeal, A Jovem Guarda, Frakturados, Kapput, Martinis, A Moral dos Idiotas, Guru Paraplégico e os Iconoclastas, Cagalhões, Objectos Perdidos, Curto Circuito, É’ Mas Foice, Senisga, Mortaxe, Catalepsia. Facadas na Noite. Tosse Convulsa, Cadáver Esquisito.

PESTE & SIDA, CENSURADOS, MATA-RATOS. “FEEDBACK 001” LP, Vómito, Fúria Tribal, Dogue Dócil,

Índice _ 7

N.A.M., C.I.A.neto. Hips. Palmeiras. Pop-Off.


PARTE III

SUBURBANOS, ANARQUISTAS E ROMÂNTICOS

“JUNTOS CONTRA A TOURADA” K7. SLIME RECORDS. “CHANGE” 7”.

CORROSÃO CAÓTICA, INKISIÇÃO. DIABO NO CORPO / D.N.C. ALCOORE. RAGE PRODUCTIONS. SUBCAOS, X-ACTO, NO OPPRESSION, SIMBIOSE, Trip Alcoólica, Atrofiados, Tropa Morta, Fart,

Índice _ 8

C.I.A.neto, Zé Manel Suicida, Estalada Total, Ratos da Ria, Agricultor Debaixo do Tractor, Born To Lose, Turbina Panzer, Arrghh!, Mentes Podres, Intervenzione, Desordeiros, Hipocondríacos, Vade Retro, Papo Seco, Cirrose, Noites de Nevoeiro, Peter Pank, Último Recurso, Human Beans, Mortos de Fome, M.A.D., Sistema Suicida, Lov da Xit, Hematoma Craniano, Crise Social, Herpes, Bullshit Propaganda; Reltih, Barba de Sapo, Exclusão Social., F.D.M. / Creative Conscience, Ataque Sonoro, Ratazana Produções, Arame Farpado. Nuclear Mosh / Ah! Zine.


“COMPILAÇÃO VAREJO” 7”. CRACK! TAPES. RENEGADOS DO BOLIQUEIME, INJUSTICED LEAGUE. BLACK FLAG PRODUCTIONS. SARNA, C.I.A.N.E.T.O., Krux da Pedra, Oink Oink Band, Sistema Suicida, M.A.D., Ratos Fanhosos, Squander, Farrapos, F.C.C.,

Índice _ 9

Osso Duro de Roer, Estado de Sítio, Feijão Freud. Human Beans, Landslide, Anti-Porcos, Pé-de-Cabra, 605 Forte, Cyco Lolitas, Last Hope, Kolapso, Condenados, Nestrum, Porks, Alien Squad, Injusticed League, Sarna, Strain, Kuspa, Carapaus do Lis, Sub-System, Foragidos da Placenta, Hud Sabão, D.K. Hard Jazz, Gob Art, Toomates Noise, Booby Trap, Humor Caustico, Kristo Era Gay, Caos Social, Renegados do Boliqueime, Desarranjo Cerebral, Mãe Louca. Morte à Censura, Crack, Kanibal Zine, Atitude Alternativa, Zine Without Future?, Afóbico, Global Riot,Terra Mãe, D.N.A., Vontade de Ferro, Entulho Informativo, Naturanimal, MuLiBu, C.A.P.


Desordeiros, Evisceration, Hipocondríacos, Vómitos Intencionalmente Puxados, X-Tema, Má Fama, Mancha Negra, Cabeça de Martelo, Jesus Morto da Cruz. Cadernos Insurreição, Loonatic, Afóbico. Rastilho Records.

LAST HOPE, HUMAN CHOICE, TRINTA & UM. DRUNK RECORDS. ACROMANÍACOS, SKAMIONETA DO LIXO, FUNNY BUNNY, GIBBERISH, X-ACTO, NEW WINDS, Pé de Cabra, Act Of Anger, 69

Ball, No Way Out, Mindchange, One Must Hope, Run Cold, Judged by Greed, Campo Minado, Newt, H2Vinho, Omited Grass Reaction, Albert Fish, Sistema Podre, Beringelas, One Breath, Bullies, No Class Youth, Refugiados do Urinol, Xitobula, Paizinho e os Putos, Staka Zero, Minds Of Our Own, Garagem 7, Losing Respect, Huckleberry Finn, Stone Yard, Muses Land, Nabos da Púcara, Crime Loucura, Vai Tú & os Amigos do Além, Outstanding, Inkriminados, Pardais De Telhado, Bible Toons, K2O3, Dissidentes do Projecto Estatal, Punkekas, 53a, Boikote, Liberation, Anti Anti, Force of Change. Bubble Gum Records, Street Sound Records, R.V.H Records, Ataque Sonoro. Índice _ 10




“Record covers ca n be a mirror to society. .. Something you can si nk your teeth into... you could bite into it... It is an opportunity for us to change the world. ” Winston Smith

A verdade é que ser punk, dizer-se punk, em 2017, já não é ofensivo. É elogioso. Já não é desprezível. É ostentado. E reclamado até por alguns que o desprezaram e se sentiram ofendidos quando o punk apareceu. Portanto, e fazendo um ponto da situação, em 2017, todos fomos e somos punks, tudo pode ser ou tudo é punk. Embora raramente se perceba porquê.

introdução _ 13

2016. Em Inglaterra, o punk fez 40 anos. Dizem. Outros dizem que está morto à quatro décadas. Em Portugal apareceu em 1977. Faz agora 40 anos. Se fizer. Pelo menos irão falar dele. Como aliás têm feito nos últimos anos. Reportando-se aos punks já não como “drogados”, “vândalos”, “marginais”, “ladrões”, “incompetentes” “malditos”, “bichos”, “nojentos”, “paneleiros”, mas como matéria de elevado interesse sociológico, como objecto para o mercado de coleccionismo, como desculpa para qualquer mediocridade. De facto, nunca se falou tanto de punk em Portugal. Viram-se (e leram-se?) artigos, livros, organizaram-se (e assistiram-se?) colóquios e conferências e até se fizeram documentários. E nunca se ouviu tanta gente a dizer-se punk e a afirmarem que o que fazem é punk. Ou que foram punks e que já nada disto é punk e que antigamente é que era… De repente, concertos que, na realidade, não tiveram mais de cinquenta pessoas a assistir parece que tiveram quinhentas. E que Lisboa era Londres ou L.A.…


Ou para quê. Uns explicam, outros teorizam, outros inventam, outros mitificam. Por necessidade de afirmação ou de pertença. Para aparecer. Para receber alguns dinheiros. Para justificarem seja o que for. Como cúmplice de longa data de toda essa “merda”, houve então que pôr mãos à obra e em meia-dúzia, ou numa centena, de páginas tentar explicar o que foi ou o que é isso do punk dito português e, ao mesmo tempo, inscrever alguns nomes, registar algumas histórias…

Há quase dois anos foi organizado no Porto o primeiro de uma série de congressos internacionais sobre punk e outras sub e/ou contraculturas (quem quiser que discuta esta terminologia…) onde tanto eu como o Marcos Farrajota, com quem divido este livro, participámos. Aí apresentei uma comunicação pensada como uma primeira introdução a uma possível – ou impossível – “história do punk em Portugal”. Intitulada “Estéticas, Anti-Estéticas e Mau Gosto”, nela tentei contar a história a partir das capas dos discos por cá editados. Depois de anos e anos de conversa sobre o assunto, e de vários projectos falhados acrescente-se, seria esse o meu primeiro estudo mais ou menos esquematizado sobre o assunto. A apresentação foi curta, mal organizada e cortada – havia que cumprir horários ou estava na hora do coffee break – mas serviu-me como ponto de partida para começar a trabalhar e aprofundar o que aqui se lerá. Que, por sua vez, é também apenas o começo de uma outra coisa. Porque só assistiu à conversa quem lá esteve e porque, embora tenha sido publicada em pdf, se acabará por perder algures na net, eu e Marcos decidimos desenvolver e materializar em papel a investigação então iniciada. Assim, introdução _ 14


na continuação do que foi apresentado, também este ensaio toma como mote as capas dos discos editados entre 1978 e 1998 e pretende narrar cronologicamente o que por aqui foi acontecendo. Quero com isto pensar sobre relações entre a música, ideologias, ideias e grafismo, tentar perceber se este reflecte ou cria uma imagem para a banda, se constrói e transmite alguma mensagem, ver como reflecte e/ou critica a sociedade.

Mas, antes de dar início à crónica, algumas explicações. Porque para muita gente a música foi a porta de entrada para o punk entendi que os discos e as capas seriam uma boa maneira de entrar dentro do assunto. Primeiro, porque são objectos materiais mais ou menos acessíveis por qualquer um. Ou que, pelo menos, podem ser vistos (e ouvidos) na sua versão digital e globalizada. Segundo, porque impondo essa obrigação de olhar para as capas se rompe, logo à partida, com a ideia generalizada do punk como um mero estilo musical. A capa faz parte do manifesto. Embora, muitas vezes, não manifeste nada, como veremos. A não ser uma falta de cultura, de cuidado ou de gosto. Enfim. É o que temos.

introdução _ 15

Entendendo o punk como algo mais que uma forma de música, é importante sublinhar que outros objectos de estudo poderiam ser escolhidos para contar esta história. O grafismo das capas dos discos punk portugueses é apenas um dos aspectos. O Marcos foca outro, a banda-desenhada. Sobre os fanzines escreverei depois deste livro. Poderia falar também dos cartazes, dos flyers e de outros trabalhos de ilustração. Ou dos vídeos e dos quase inexistentes filmes ou filmagens. Ou de qualquer outro aspecto visual de um movimento que, sublinhe-se mais uma vez, foi (ou é) mais do que música.


A escolha das capas como ponto de partida foi uma opção arriscada. Mesmo sabendo ao início ao que ía, nunca lhes tinha prestado muita atenção. Na altura em que saíram, interessou-me o som, interessou-me a mensagem. O lado gráfico era apenas e somente um invólucro para o disco em si. Pelo menos no que diz respeito aos discos portugueses. Talvez essa minha falta de atenção se tenha devido também à (falta de) qualidade dos trabalhos, à mediocridade ou desleixe das bandas ou autores. Há excepções, claro, e chegam a ser do melhor que se fez em Portugal (em qualquer género), conscientes que estavam das possibilidades abertas. Foi o caso dos Aqui del Rock, Peste & Sida, Mata-Ratos e Corrosão Caótica. Escolhi as capas dos discos mas não das cassetes, das ditas demo-tapes (que às vezes não são demo-tapes de todo mas álbuns). Seria difícil abarcar aqui tudo de uma forma mais ou menos simples. Além de que as cassetes tinham um circuito restrito. Limitavam-se muitas vezes aos amigos e colegas de escola. Escolhi, então, apenas os discos por serem o objecto com alcance mais relevante. Os discos estão nas lojas e, por norma, têm melhor distribuição. Se a cassete era gravada em casa consoante a procura e paciência e/ou motivação da banda, o disco, por ser fabricado em quantidades muitas vezes acima da procura, obrigava a um esforço de distribuição – venda ou troca – quer da parte da editora quer da própria banda. Dentro dos discos, acrescente-se, que fixei apenas aqueles editados em nome próprio e os chamados splits – disco repartido entre duas bandas, um modelo que, curiosamente, também este livro adopta. Menciono as compilações mas não me detenho sobre elas uma vez que estas não revelam a identidade e não se relacionam sequer com as bandas mas antes com uma ideia ou temática geral. Acaba, portanto, por dizer mais sobre a editora. introdução _ 16


Escolhido o objecto de estudo, de modo a facilitar a leitura, organizei a narrativa de forma cronológica. E porque o punk não foi movimento contínuo mas fragmentado, esporádico, dissolvido entre outras propostas, em permanente mutação, como aliás qualquer movimento juvenil, dividi a história em quatro períodos, mais ou menos distintos. A verdade é que, como dizem, o punk morre. Para uns. Mas para outros nasce ou renasce. Assim, como veremos, temos o momento inicial, quando aparece o punk em Portugal (19781979); a dita “segunda vaga do punk” (1983-1988); um período intermédio, breve mas fulcral para se perceber o que se segue (1989-1991); e, por último, o chamado punk / hardcore (1992-1998). O final da década de noventa, quase que poderia ser subdividido – punk para um lado, hardcore para outro. Mas como não vou entrar pelo século XXI, onde essa separação é efectiva, optei por deixá-los juntos. Além de que, com o advento da internet tudo muda. Desaparece o social – deixam de haver espaços, fanzines, cartazes, flyers – e aparece o virtual. Mas ainda é cedo para entrar por aí. E, por isso, termino esta história em 1998.

introdução _ 17

Dentro de cada um desses quatro períodos, fiz um levantamento das bandas e do que editaram. Escolhi, simplesmente, as bandas que se afirmaram como punk e que gravaram discos. Ficaram fora deste livro, injustamente, outras (as melhores?) como os Mão Morta, Pop dell’Arte, Ocaso Épico, Emílio e a Tribo do Rum / Capitão Fantasma, Guarda de Ferro e os Tédio Boys que na violência, sarcasmo, visceralidade, humor, extremismo e/ou no entendimento profundo do do-it-yourself e de outras propostas, mereciam aqui figurar. A complexidade de qualquer uma delas exigia uma abordagem mais séria e aprofundada. Não as poderia reduzir a duas ou três páginas. Outras são também postas de parte porque não gravaram discos, caso dos Condenação Pacífica, A Jovem


Guarda, Atrofiados, Tropa Morta ou Estalada Total que deveriam ter tido um destaque maior. Por outro lado, aparecem algumas bandas que, se calhar, não deveriam estar neste livro, caso dos UHF e outras do “boom do rock português”. Mas servem para se entender melhor alguns desenvolvimentos, explicar o que se vai suceder. Ou então para preencher vazios… As bandas, discos e acontecimentos são muitos, por isso é preciso deixar claro que houve interesse e gosto pessoal na selecção de todo o material, algo que, posteriormente, se reflecte na ênfase dado a cada qual na escrita do texto. Não quis ser neutro ou isento. No entanto, gostando ou não da música ou trabalho, houve uma preocupação em fixar o nome de todos intervenientes de que tomei conhecimento. Dentro dos que foquei, procurei deixar por escrito, em breves parágrafos, o seu percurso e sempre que possível, dar-lhes voz. Quer através de citações de entrevistas de época, recolhidas nas mais diversas fontes, como através de depoimentos recolhidos por mim propositadamente para este livro. Obrigado a todos. A obrigatória lista de agradecimentos vem no final. Para terminar estas explicações, acrescente-se apenas que, complementarmente à música, para que se percebam os contextos, saliento os espaços onde se desenrola a acção – bares, colectividades, centros sociais, lojas, ruas. Embora o mais importante tenha sido o quarto de cada um… Listei também outros espaços sem os quais nada disto era possível, o das publicações, dos jornais, revistas e dos fanzines.

introdução _ 18


Para terminar esta introdução e começar o livro ficam as questões:

O QUE É O PUNK?

Géne ro Mus ical? Atit ude? Mov imen to? Anar quis ta?Extr emis ta? Niili sta? Fasc ista ?Conser vado r?Reac cion ário ? (A) Polit íco? Prov ocad or? Rom ânti co? Subv ersiv o? Cons trut ivo? Dest ruti vo? Mod a?N egóc io? Unde rgro und? Com esta outras perguntas, vêm outras. Quem define o que é punk? A própria banda? A “cena”? O público? Imprensa? Editoras? Agentes?

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Não sou eu que vou responder. Para cada período há um entendimento – ou não há entendimento nenhum porque não há discussões sequer – e por isso procurei definições de época para clarificar o leitor sobre como então se via, ouvia e vivia o punk. Preferi deixar assim. Na voz de quem lá esteve. A favor ou contra. Confuso. Ou complexo. E sem comentários. Nem mártires. Nem heróis.


REVOLUCIONร RIOS, ELITISTAS E MARGINAIS parte I

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Portugal, 1978. Pós-25 de Abril. Pós-PREC. Entre os discos de intervenção e de rock progressivo que sufocam os escaparates, aparece um disco de capa preta com uma missiva escrita vermelho: “Há que Violentar o Sistema”. Num canto lê-se o nome da banda – Aqui d’el Rock. No outro – PUNK. Sem antecedentes, seria este o primeiro disco punk português.

Mas o punk não era uma novidade em Portugal. Desde 1977 que se ouvia punk e existiam punks nas ruas de Lisboa, Porto e Coimbra. À data da estreia dos referidos Aqui d’el Rock já se tinha ouvido, ou pelo menos ouvido falar, dos portugueses Faíscas, Minas & Armadilhas, Raios e Coriscos. Além disso, já de há algum tempo a essa parte que António Sérgio, no seu programa de rádio Rotação, vinha a introduzir o “espírito de 77”. Era assim que se referia ao que chegava de Inglaterra. Aos Sex Pistols, aos The Damned, aos The Stranglers e a outros. Foi também ele, juntamente com João Menezes Ferreira, João David Nunes, Bernardo Brito e Cunha, Jaime Fernandes e mais, quem impregnou com punk as páginas de revistas e jornais portugueses, como a Música & Som, Musicalíssimo e o Se7e, sob o pretexto de estar divulgar o que estava a acontecer “lá fora”. Apresentavam o punk como a alternativa à pop, ao rock e à música de intervenção que se ouvia e fazia por cá. Estabeleciam o punk como manifesto político. Impunham o punk como forma de acção directa, como uma possível contra-cultura.

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SER PUNK... EM PORTUGAL.


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Isto tudo porque, por um lado, desde o final da década de 60, que também em Portugal a música pop tentava eruditizar-se através de aproximações à música clássica e poesia. Com um cada vez maior domínio técnico, os grupos enveredavam numa maior complexidade ao nível das composições, como é característico do rock progressivo e sinfónico. Ou seja, algo que pouco ou nada tinha a ver com a selvajaria ou tédio dos tempos que corriam. Por outro lado, no que diz respeito às músicas de intervenção, a liberdade de que falavam soava cada vez mais castradora. Já se tinha outras ideias do que era ser livre. E tinham que se libertar até dessas músicas. Propunham, então, esses jornalistas, entusiastas e provocadores que, à semelhança de Inglaterra, se organizasse “um movimento [tanto] controverso como espontâneo, contestatário como quase ingénuo, de certa forma revivalista mas, ao mesmo tempo, profundamente 1 inovador”. Em termos concretos, incentivavam a que se rompesse com 1 J.G., «Skids» in o entorpecimento musical que se vivia, através de um “retrocesso” à Música & Som, n.˚54, Lisboa, Maio simplicidade e espontaneidade da música da década de 50, ao primitide 1980, página 12. vismo que caracterizava o rock ‘n’ roll. Mas agora teria de ser violento, 2 Paulo Borges in o mais violento possível, de modo a reflectir o mal-estar e o isolamento, Leitmotiv, n.˚1, o ódio e o desespero daqueles que vivem uma “vida quotidiana frustraLisboa, 1980. 2 3 da”. Recomendavam, para isso, que se explorasse as incapacidades técPedro Ferreira, «New Wave: o nicas e que, através de um “tempo musical acelerado” e de um “ritmo vento amainou» obsessivo, sem imaginação”, se procurasse “a destruição da sequência in Música & Som, n.˚49, Setembro de melódica e a libertação do potencial expressivo da voz” e se fizesse um 1979, página 12. 3 “som rude e difuso, agressivo”. Tal como o som, também as palavras teriam de ser básicas, rudes, directas, comuns, ordinárias, sem qualquer intenção poética. O mais ofensivas possível. Raiva, angústia, transgressão, uma revolta nada lírica, era o que se esperava que fosse o punk.


Mas, entre todas estas e outras bandas, são os The Stranglers os que vêm maior divulgação e aceitação. Foram eles a primeira banda punk a ter um disco editado em Portugal e os primeiros que vêm cá para um concerto ao vivo. Mesmo se criticados pela sua (falta de) técnica musical, os The Stranglers foram, desde logo, enaltecidos pela sua violência verbal e física, pelo “puro sadismo e provo5 cação” de algumas das suas músicas. Em suma, educava-se os portugueses com uma mistura corrosiva de punk norte-americano com punk inglês, um cruzamento 5 António Sérgio perverso de arte e violência, de in Música & Som, Lisboa, 1 de que se esperava que tivesse os n.˚22, Janeiro de 1978, página 27. piores resultados. Feita esta criteriosa e subversiva formação musical via revistas e rádio, a partir de ’78 as editoras portuguesas co6 António Sérgio avanmeçam, finalmente, a arriscar no çava com a estatística punk – isto depois de António Sér- de que em Inglaterra já tinham saído 20 gio se queixar que nenhum disco LP´s e 50 singles. do género tinha ainda sido edi- António Sérgio, «Punk - 11» in Música & 6 tado em Portugal. Assim, depois Som, n.˚18, Lisboa, 1 Novembro de 1977, do single e LP dos The Stranglers, de página 27.

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Embora se quisesse que o punk fosse niilista e destrutivo, esses mesmos jornalistas tentam dar alguma consistência ao movimento e direccioná-lo com coordenadas musicais e referências literárias. Em colunas regulares são eles que contam as histórias dos Sex Pistols, The Damned e The Clash aquando dos primeiros discos e escândalos. Acrescente-se a estes, as notícias e reportagens sobre os Buzzcocks e Sham 69, Television e Patti Smith, Wayne County e Johnny Thunders, Dead Boys, Pere Ubu, Radio Birdman. Outros como Blondie e Squeeze também tiveram o seu lugar nas páginas das revistas musicais embora alguns objectassem a sua classificação como punk considerando-os meramente bandas rock ou pop. Houve ainda espaço para encaixar Tom Robinson Band, Eddie & the Hot 4 4 Musicalíssimo, Rods, The Tubes e Elvis Costello. Algo conveniente sobretudo para as n.˚4, Lisboa, Abril de 1979. editoras e promotoras que os vão trazer a Portugal…


editados no final de ’77, saem pela Valentim de Carvalho os singles de Cock Sparrer, Slaughter & The Dogs, Rich Kids, Wire e The Secret e o LP compilação “Roxy London WC2”. Conforme se lê na publicidade a estes discos, “o movimento punk 7 7 pode ser discutido…não pode é ser ignorado”. Não foi uma coisa, nem Publicidade in Música & Som, outra. Apanhando o balanço, a Metrosom edita o primeiro disco punk n.˚31, Lisboa, 15 de português: Aqui d’el Rock “Há que Violentar o Sistema”. A ele voltarei. Maio de 1978.

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Isto era o que se ouvia em casa. Mas não foi só no quarto, que se ouviu punk. Como se “explicava” nas revistas, «o Punk baseava-se numa relação de igualdade entre o actor e espectador” e “o local privilegiado do seu consumo eram os clubes ou pequenos recintos” onde “o consumidor era indivíduo e não massa anónima”, onde 8 “criador e receptor eram termos intermutáveis».

8

Pedro Ferreira, «New Wave: o vento amainou» in Música & Som, n.˚49, Lisboa, Setembro de 1979, página 12.

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É, de facto, nesse espaços – clubes e pequenos recintos – que algo realmente acontece. É aí, se nos quisermos limitar ao aspecto musical, que se ouvem os discos que poucos tinham dinheiro para comprar. E é aí onde se vê e ouve punk em português. A saber, em Lisboa, no Clube Atlético de Campo de Ourique, na Sociedade Filarmónica Alunos de Apolo e nas Belas Artes mas também nas boîtes, caso do Brown’s, na Rua Conde Sabrosa, no Bar É no Campo Santana, no Porquê? e nas matinés do Finalmente no Príncipe Real, no Zodíaco na Avenida Infante Santo e no 2001 em Cascais.


Também há festas e concertos. Esporádicos, é certo, pequenos, quase todos, mas também alguns maiores. Fixemos, por agora, apenas esses maiores para se ter alguma noção do panorama geral. Pelo menos de Lisboa. Cronologicamente, a 31 de Março de 1978, a revista Música & Som organiza o “Festival de Rock Português” no Pavilhão do Belenenses, onde tenta conciliar os três géneros que então se ouve: punk rock, rock progressivo e hard-rock. Aí tocam, perante duas mil pessoas, os Psico, depois descritos como “a 9 João de Menezes chateza da noite”, os Arte & Ofício com a sua música “bem doseaFerreira, «O Rock Português em da, ensaiada, flexível, coordenada” e os Faíscas, com o seu “rock ‘n’ Festival” in Música 9 roll semi punk”. Também nesse ano, a 7 de Julho, toca em Lisboa, & Som, n.˚30, Lisboa, 1 de Maio no Coliseu dos Recreios, a banda de pub-rock Eddie & The Hot Rods de 1978. com primeira parte feita pelos Aqui d’el Rock. Tenta ainda trazer os 10 Sobre este já referidos The Stranglers em 1978, que “vieram e foi como se não concerto ver ainda 10 o fanzine O Alfinete, tivessem vindo”, porque não tocam. Ou melhor, porque fogem... n.˚3, Lisboa, Junho de 2012. Haveria outros, mais tarde.

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Houve também quem quisesse que o “movimento”, como lhe chamavam, fosse histórica e intelectualmente enraizado. Procurou-se, por isso, fortalecê-lo com outras referências além das musicais. É, mais uma vez, António Sérgio quem estabelece o que denomina como “apoios literários” do punk e usando como base um artigo da Rock et Folk enumera: Charles Bukowski e as “memórias de um velho porco”, o livro de Vincent Bugliosi sobre Charles Manson e 11 11 António Sérgio Robert Greenfield. Outros remetiam para Boris Vian, Artaud e demais in Música & Som, n.˚22, Lisboa, 1 de autores então editados pela Assírio & Alvim e pela &etc. Janeiro de 1978, página 27.

12

in Música & Som, n.˚45, Lisboa, Março de 1979. 13

Pedro Ferreira, «New Wave: o vento amainou» in Música & Som, n.˚49, Setembro de 1979, página 12. 14

Diário Popular, Lisboa, 4 de Janeiro de 1978 citado in Música & Som, n.˚24, 1 de Fevereiro de 1978, página 13.

O lado visual dos punks é recorrentemente referido e analisado, com fotografias e descrições que têm tanto de moralizador como de aliciante. A “moda punk na Inglaterra” é “caracterizada por grande abundância de injúrias e de provocações diversas, tais como ca- 15 António Sérgio, belos pintados de verde e alfinetes-de-ama espetados nas faces”, «PUNK» in Música escrevem no Diário Popular aquando da ida dos Sex Pistols aos Es- & Som, n.˚8, 14 Lisboa, 20 de Maio tados Unidos dando assim directrizes que alguns chegam a seguir. de 1977, página 27 Noutras páginas publicava-se um “guia auxiliar para você se sentir bem punk”. Este termina com alguns “conselhos marginais”: “não usar anéis, arranjar um ar agressivo, um ar não-engajado, um ar de guerra permanente 15 com o sistema, mesmo que não se saiba qual”. Independentemente do caracter humorístico da descrição, de facto, o punk pressupunha essa postura política ou apolítica de luta contra o sistema. Tal como em Inglaterra, reclama-se uma anarquia em Portugal. Se essa proposta, nesses anos, até poderia ter sido levada em conta, a postura e comportamento dos representantes deste dito “movimento punk” deita tudo a perder – são provocadores, intencionalmente ofensivos e violentos. Como é suposto serem. Não acreditam, nem querem, um futuro.

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Escolhidos os heróis, estabelecem-se os inimigos. Além do sistema, religião e o militarismo, no que diz respeito a música, mais do que o rock progressivo e sinfónico, o ódio deveria ser dirigido ao disco-sound que era moda nessa mesma altura. «Se o punk é a revolta do proletariado, o disco é a recuperação do capital!», escrevem em 1979 na Música & Som numa análise quase semiótica da roupa de ambas 12 as facções. Citando, «os trajes “disco” (característicos da discoteca e não já do clube ou do bairro) visam uma afirmação social. Mas uma diferente afirmação social num e noutro caso. Nos “Punk”, uma afir13 mação de autonomia. Nos “disco”, uma afirmação de conformismo».


Por essas e muitas outras razões, como seria de esperar, nada disto acontece de forma pacífica e é logo nesses anos que começa o “combate ao punkismo”. Como descreve António Sérgio, há “más reacções às poucas passagens 16 17 na RDP e RR” e uma “completa obliteração do movimento”. Outros diriam e fariam pior. Como António Amaral Pais sintetiza de forma humorística: 16

RDP - Rádio Difusão Portuguesa; RR - Rádio Renascença. 17

António Sérgio, «Os Detratores» in Música & Som, n.˚22, Lisboa, 1 de Janeiro de 1978, página 26. 18

António Amaral Pais, «A Grande PUNKada» in Música & Som, n.˚25, Lisboa, 20 de Fevereiro de 1978, página 51. 19

António A. Duarte in Musicalíssimo, n.˚1, Lisboa, Abril (2 quinzena) de 1980. 20

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J.G., «Skids» in Música & Som, n.˚54, Lisboa, Maio de 1980, página 12.

«Não abras o dicionário de inglês para saber o significado de punk. Eu digo-te: podre, prostituta, disparate, coisa ou pessoa sem valor. Não procures saber o que pensam os senhores deste e de outros países sobre o referido movimento e respectiva música; há dias um amigo meu, da tua idade, também lhes chamava isso mesmo: filhos da puta, gente abjecta, cambada de paneleiros, músicos ordinários, só-mortos-a-tiro. Não procures desmentir nada disto nem muito mais que possas ouvir, ainda que t’o cuspam na cara. Não procures adjectivos, justificações, desculpas ou argumentos para contrariar, porque: 1- se não és punk, ficas mal visto. 18 2- se pensas que és, ficas pior.» Bem ou mal recebido, por maior ou menor que tenha sido o impacto deste “pequeno, mas activo, movimento subversivo de rock urbano, com 19 textos violentos, de ataque ao sistema” , conforme se escreveu posteriormente, em 1980, “[p]elo que fez em si mesmo e sobretudo pelas brechas que abriu para os grupos que fazem a música de hoje, a música do nosso contentamento”, o punk foi uma ruptura e um 20 choque, o fim e o princípio de qualquer coisa.


LISBOA ´78 Voltemos aos Aqui d’el Rock e ao disco com que iniciei o capítulo. Oriundos do Bairro do Relógio, ou “Cambodja” como na altura era conhecido esse bairro social pré-fabricado da zona Chelas, em Lisboa, os Aqui d’el Rock formam-se em 1977. São eles Alfredo Marvão, Óscar Martins, Fernando Gonçalves e José Carlos Serra e é logo no ano seguinte, em 1978, que gravam o seu primeiro single, um disco com duas faixas, intitulado “Há Que Violentar o Sistema”. No lado A, ouve-se o épico que dá título ao disco que com os seus longos e arrastados 4 minutos e 20 segundos de duração quase contradiz tudo o que se esperava deste novo estilo de música – velocidade, energia. No lado 21 Letra de “Quero B ouve-se a já mais acelerada “Quero Tudo”. Enfim, uma desilusão Tudo” in Aqui para os que esperavam uma versão nacional dos Sex Pistols ou dos d’el Rock, 7”, The Clash mas um consolo para aqueles, poucos, que “sem vontade Metrosom, 1978. nem futuro” de há uns meses a essa parte andavam a tentar chocar 22 21 Letra de a sociedade portuguesa (ou lisboeta) visual, musical e verbalmente. “(Dedicada) A Como cantam os Aqui d’el Rock, “de quem nos rouba / a quem nos Quem Nos Rouba”in Aqui d’el Rock, 7”, 22 Metrosom, 1979. rouba / p’ra quem nos rouba / morre, morre se puderes”.

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Aqui d’el Rock “Há Que Violentar O Sistema” 7” (Metro-Som, 1978). Capa e contracapa.

A capa do disco corrobora as letras e atitude. Assinada pelos próprios Aqui d’el Rock, esta, na verdade, é concebida por Zé Serra, baterista da banda, e antes das medidas gráficas da editora, consistia em apenas no nome da música que ocupa o lado A, “Há que Violentar o Sistema”.


«O design desta capa foi influenciado pela situação política e social que se vivia em Portugal (foi criada cerca de 3 anos após o 25 de Abril de 1974) e tinha precisamente a intenção de refletir aquilo que era a realidade do que se passava no País – era uma das formas das pessoas tentarem manifestar a sua revolta relativamente às condições de vida, que se mantinham a um nível que podemos considerar como miserável – e que quer pelo formato, quer pelo contexto, 23 se encaixavam naquilo que era a filosofia punk original, ou seja chamar Zé Serra, entrevista ao autor, a atenção para os mais desfavorecidos, através daquilo que sabíamos 23 31 de Janeiro de fazer na época – MÚSICA.» 2016. 24

Zé Serra (entrevista) in Rock em Portugal, n.˚4, Lisboa, Maio / Junho de 1978, página 21.

Desenhada sobre cartão com tinta de esmalte a vermelho contra um fundo negro, com uma toada comunista ou anarco-sindicalista, a capa traduz visualmente a violência do título, da letra e as intenções da banda. Como deixam claro, «queremos atacar tudo o que seja de atacar, dentro do nosso ponto vista. É o sistema capitalista, é o outro 24 sistema, o chamado sistema “chuchialista”».

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Além do título, entre estilhaços, vê-se a reprodução de um dos badges feito na altura por um amigo onde se lê o nome da banda. Mas também um outro a dizer “PUNK”. Editado pela Metrosom, uma editora lisboeta especializada em fado e folclore, esta achou ser essa a melhor forma de identificar o conteúdo – sublinhe-se que o som dos Aqui d’el Rock era então desconhecido. Uma opção que, de resto, não era inédita. Aliás, vinha na sequência do que foi feito na compilação New Wave que na sua edição portuguesa passa a ter 25 um «carimbo ostensivo de gosto duvidoso a berrar “punk rock”», 25 A. P., «Discos em como se lê numa crítica publicada na Música & Som. Indiferente a Análise» in Música & Som, n.˚27, essa indignação, a Metrosom copia a jogada publicitária e imprime Lisboa, 15 de Março de 1978, página 23. esse dístico infeliz em cima do art-work original. Fosse a capa apenas estes elementos que destaquei e estaríamos bem. Infelizmente, como se não houvesse já informação suficiente, a editora ainda decide encaixar num canto o seu próprio logótipo – um disco e o nome “Metrosom” – gerando um caos mais próximo da incompetência do que do inconformismo. Quatro tipos de letra diferente, se quisermos contabilizar. Para o bem e para o mal, este lado gráfico passa despercebido como, de resto, acontecerá


quase sempre. Na verdade, todo o disco, música e capa, é ignorado pela imprensa à excepção da revista Música & Som, que o descreve 26 como “uma fonte de música dura, violenta, demolidora”.

26

Pedro Pyrrait in Música & Som, n.˚39, Lisboa, 1 de Outubro de 1978, página 45.

A edição deste single é complementada com alguns concertos que, por norma, são incompreendidos por quem os relata. Leia-se o que se escreveu na Música & Som sobre o concerto de 29 de Abril no Clube Atlético de Campo de Ourique, vulgo CACO:

Aqui d’el Rock “Dedicada – A Quem Nos Rouba” 7” (Metro-Som, 1979). Capa e contracapa.

Mau para uns, bom para outros…Curiosamente, seria uma fotografia da banda a tocar ao vivo a imagem escolhida para a capa do segundo disco. Tirada por Rui Santos, um amigo da banda, durante o concerto que deram no Coliseu de Lisboa, quando abriram para os Eddie & The Hot Rods, esta procurava reflectir

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«A abrir o espectáculo tocaram os “Aqui d’el-Rock”, apresentados como grupo “punk”. Como nós estamos desfasados em relação ao estrangeiro, agora que este tipo de grupos parecem encontrar algumas dificuldades, alguns estão mesmo a desaparecer, surgem em Portugal pelo menos dois. Os “Aqui d’el-Rock” actuam pela primeira vez (que eu saiba) em Lisboa. Da actuação pouco há a dizer... péssimo som, impossível de se ouvir o que quer que fosse para além de um som compacto saindo da aparelhagem. Ainda por cima do ponto de vista musical aquilo que ouvi era totalmente “quadrado”. O vocalista não se percebia (mas saltava, oyé!), a bateria era igual do princípio ao fim dos temas, o baixo não conseguia nada do ponto de vista rítmico, o guitarrista para além de alguns gestos mais ou menos pretensiosos também não conseguia salvar o esforço dos rapazes. Enfim, não acredito que estes “punks” consigam chegar onde quer que seja – é caso para perguntar se é forçoso que se chegue a algum lado?! – para além daquela “massa” sonora 27 Música & Som, que fere os ouvidos no mau sentido, fazendo no entanto vibrar n.˚32, Lisboa, Junho 27 alguns “meus” talvez a curtirem algumas viagens agradáveis.» de 1978.


a velocidade e energia que as novas músicas finalmente continham – “Eu Não Sei” demora 2 minutos e “Dedicada (a quem nos rouba)” não chega a três minutos. Contudo, a imagem pouco ou nada diz a respeito da banda nem sequer faz com que se diferencie das restantes bandas rock que se importavam. Se isso não era abonatório, pior ainda é o novo logótipo da banda que até poderia ser enganador para quem não os conhecesse. Construído em jeito de néon de carrinhos de choque, num colorido quase luminoso, percebia-se que o responsável pelo grafismo estava mais atento ao filme Febre de Sábado à Noite e ao disco-sound do que ao punk. Ou talvez fosse um presságio… Editado no início de 1979, neste disco ouvem-se duas músicas (que se repetem no lado B) agora mais directas, objectivas, rápidas. Infelizmente, mais uma vez, o disco passa despercebido sendo o jornal Se7e um dos poucos, senão o único, a dedicar umas linhas a esse «grupo “punk” português que 28 Se7e, n.˚36, parece ter chegado a esta “escola” vanguardista sem ter passado Lisboa, 14 de 28 Fevereiro de 1979. por qualquer outra». Apesar do disco não ter tido impacto, a banda ainda continua por mais dois anos, sem grande sucesso, acrescente-se, embora tenham sido chamados para fazer as primeiras partes de alguns concertos internacionais que tiveram lugar em Portugal. Depois do já referido com Eddie & The Hot Rods em 1978, em 1980 abrem para Wilko Johnson e, ainda nesse ano, tocam nos dois concertos de Lene Lovich. Organizados para festejar o primeiro aniversário do programa de 29 Mané T. M., rádio Rock em Stock, estes tiveram lugar no Porto e em Cascais e, pelo «Lene Lovich em Cascais – a simpatia menos a última data, foi considerada um desastre. Como se pode ler no não faz milagres» Musicalíssimo, os Aqui d’el Rock “mais nada fizeram do que um enorme in Musicalíssimo, n.˚5, Lisboa, Junho barulho” e “acabaram a desastrosa actuação, sem que uma única palavra (2 quinzena) de 1979. Ainda seriam dos poemas (sabe-se lá se eram poemas) das suas composições fosse contratados para abrir percebida”. E continuava: “O som desafinado e descoeso por natureza para os Uriah Heep mas estes fazem com foi ainda mal tratado pela mesa de mistura, chegando até nós em pésque os Aqui d’el Rock 29 não toquem. simas condições”. A própria banda foi descrita como “sem convicção”. a

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Seguem-se meses de poucos concertos e alterações de formação – entram Ultra-Violeta, vindo dos Corpo Diplomático e Carlos “Police” – mas não se segue nenhum disco. Desdenhados ou incompreendidos, da mesma forma que, em 1977, os Osiris mudaram de nome e de som para se tornarem os Aqui d’el Rock, em 1981 estes mudam de nome para Mau Mau e enveredam pela new-wave. É com esse nome que, no ano seguinte, lançam um single quase dançável pela Rotação – “Xangai / Vietsoul” – que pouco tem de punk e nada a ver com os Aqui d’El Rock. O projecto não se aguenta e termina pouco depois, ainda nesse ano de 1982.


Mau Mau, “Xangai”, 7” (Rotação, 1982). Capa e contracapa.

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Aqui d’el Rock, “Há Que Violentar o Sistema” (Vídeo, 1978).

Voltando atrás, ao Verão de 1978, é nessa altura que a RTP realiza um vídeo para a “Há que Violentar o Sistema”. Transmitido no programa Festa da Música, dado serem os Aqui d’el Rock “o primeiro conjunto punk a gravar discos”, o locutor pergunta-se “será que se sucedem outros?”. Os que então os acompanhavam – Faíscas, Minas & Armadilhas e Raios & Coriscos – não lhes sucederam. Apesar das promessas nunca gravaram. Outros, como os pouco ou nada punk UHF gravariam pouco depois. Os Xutos & Pontapés demorariam três anos até que “alguém” se decidisse a editar-lhes um single. Sobre estes detenho-me mais adiante. Por agora vejamos, rapidamente, os UHF.


UHF “Jorge Morreu” 7” (Metro-Som, 1979 - 1a edição). Capa e contracapa.

Vindos da “outra margem”, Almada, os UHF formam-se também em 1978 e estreiam-se ao vivo em Novembro desse mesmo ano, no Bar É, em Lisboa, ao lado dos Aqui d’el-Rock, dos Minas & Armadilhas e dos Faíscas. Poucos 30 Excepção feita meses depois a Metrosom edita-lhes o primeiro 7”. No lado A, ouvea uma entrevista recente onde o -se “Jorge Morreu”, uma música sobre a morte recente de “um amigo vocalista António toxicodependente”, e “A Caçada”. Esta, por ter uma letra de teor políManuel Ribeiro já afirma que na tico, ou mesmo apocalíptico, onde se poetisa um acontecimento conaltura «havia o punk dos UHF, creto – uma carga policial sobre os manifestantes da Lisnave – e por feito com botas ser rápida e sem solos – dura apenas 1 minuto e 38 segundos – viria alentejanas, e havia o punk da a ser considerada, muito posteriormente, uma das primeiras músicas Avenida de Roma, punk gravadas em Portugal. Algo discutível, especialmente porque os feito com roupa 30 que se ia comprar a UHF nunca se afirmaram como punks ou como uma banda punk… No Londres”». António Riberio in Público, lado B, de certa forma complementando a história de Jorge, ouve-se a Lisboa, 11 de Abril história da prostituição d’“Aquela Maria”. de 2009.

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O single vê duas prensagens, cada qual com a sua capa. A primeira tem uma capa assinada por Artur Guedes e consiste num desenho de prédios citadinos sem qualquer detalhe referencial mas que, dado o reflexo no rio, depreende-se que seja Almada. Apesar da pobreza a nível gráfico seria aí que se veria, pela primeira vez, uma imagem de uma cidade de subúrbio, a “cintura industrial e drogas duras, uma realidade que existia, mas para 31 António Manuel a qual ninguém estava a olhar na altura”, como descreveria o Ribeiro em entrevista 31 a Mário Lopes in vocalista, e cujas músicas serviriam de banda-sonora. Esses sólidos Público, Lisboa, 11 de monocromáticos sintetizam o texto da contracapa que e ilustram a Abril de 2009. 32 letra de “Jorge Morreu”, dão conta do “dia-a-dia asfixiante, cínico, neTexto não assinado crótico, de uma cidade pobre de contactos humanos, uma cidade de publicado contracapa do single “Jorge betão e de indiferença, uma esfera de luz seca, onde surdos-mudos se Morreu” (Metrosom, 32 1979) cruzam vagamente no atropelo”. Felizmente, para a segunda prensa-


UHF “Jorge Morreu” 7” (Metro-Som, 1979 - 2a edição). Capa e contracapa.

gem, a Metrosom concebe uma nova capa. Usam uma fotografia da banda a tocar ao vivo em negativo para assim expressarem o luto pelo falecido.

Uma vez que a história dos UHF já está escrita noutros livros e pouco interessa para aqui, acrescente-se apenas, como curiosidade, que chegam a tocar ao lado dos Skids, The Tourists, 999 e Original Mirrors no “I Festival Rock” em Cascais e que, em 1980, são eles que abrem para os Ramones. É precisamente nessa altura que os UHF assinam pela EMI-Valentim de Carvalho, onde editam o single “Cavalos de Corrida”, sendo imediatamente encaixados no “boom do rock português” sendo hoje tidos como uns dos principais responsáveis pelo fenómeno... Resumindo, em termos discográficos, porque só foram editados dois discos – o dos UHF não pode mesmo ser contabilizado –, estes inícios do punk podem ser caracterizados pela falta de investimento das editoras, ou seja, por uma carência de oportunidades para as bandas gravarem. A única que explora este género, como vimos, é a Metrosom, uma editora de Lisboa fundada em 1974 que investe em todos os géneros musicais com predilecção pelo fado, folclore e música ligeira e que, provavelmente, com a esperança que o punk tivesse o impacto e retorno monetário que se viu noutros países, decide editar os referidos singles. No entanto, desistem logo de seguida e passam a investir num rock mais acessível. Ao contrário de Inglaterra e de outros


países, não há, portanto, novas editoras independentes (do caso da Pirate Dreams Records falarei adiante). Assim, dada a escassez de edições e o contexto que as circundam, é difícil ser conclusivo. Olhando para esses dois discos, o pouco que se pode se pode constatar é uma clara falta de referências culturais ou mesmo artísticas da parte da Metrosom. E que a liberdade de expressão e criação que as fotocopiadoras e outros meios de reprodução baratos (e o novo sistema político?) traziam e que, por regra, estavam associados ao punk não ficaram, portanto, expressas da melhor forma nesses míseros discos editados. Ou não ficaram expressos de todo.

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Estado de Sítio. Lisboa, 1979. Capa ; Gazua, n˚3. Outubro de 1979. Capa.

Não que houvesse falta de interessados capazes de explorar esses meios e possibilidades. Na verdade, dentro dessa cena há uma série de indivíduos, tanto entusiastas e amadores como profissionais, que desenvolvem trabalhos gráficos nos mais diversos registos. E, tal como noutros países, também em Portugal o punk tomou múltiplas formas de expressão dando origem a fanzines, cartazes e flyers que, de certo modo, complementam a música. É o caso das “páginas rebeldes” do fanzine Estado de Sítio de Paulo Borges, vocalista dos Minas & Armadilhas, onde colaboram também alguns dos Faíscas; do Desordem Total; do Gazua de Carlos Carvalho, já um pouco mais tarde, da Leitmotiv de Paula Ferreira, Joaquim Cavalheiro, Pedro Costa, Paulo Nozolino e Luís Avelar. É nessas páginas que se desenvolvem, de forma escrita, desenhada, fotografada, em montagens, as ideias que outros expressam em sons. Mas sobre fanzines, cartazes e flyers falarei noutra altura, noutras instâncias. Fixe-se apenas, por agora, que foi aí onde


Há, no entanto, uma excepção ao drástico panorama que tracei. Mais uma vez é o locutor de rádio e crítico musical António Sérgio, desta vez acompanhado por Joaquim Lopes e “Zhe” Guerra, quem inventa a Pirate Dreams Records. Inspirados pelas novas editoras independentes inglesas e percebendo a facilidade e possibilidades da auto-edição, estes três decidem editar um disco com as novidades que não chegavam a Portugal. Fazendo uso de uma das cassetes enviadas por Rui Castro, da Warm Records, a António Sérgio, 33 E ainda Eater, onde se ouvia o que então se passava musicalmente em Inglaterra The Radiators from – Sex Pistols, Generation X, Motorhead, The Jam, Skrewdriver, entre Space, The Rings, London, Warm Gun 33 outros – os três piratas mandam prensá-la em vinil. e Hideous Strenght.

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Leitmotiv, n˚1. Lisboa, 1980.

melhor ficou registada a urgência e violência que o punk pressupunha… Voltando à música, para concluir, as bandas provavelmente estavam demasiado ocupadas a ensaiar e, talvez por isso, tenham delegado para as editoras esse aspecto gráfico. Como tal, não se transpôs para as capas o potencial simultaneamente emancipador e destruidor do do-it-yourself, a consciência de que se pode fazer acontecer sem ter de esperar por encomendas ou subsídios, sem ter chefe ou horário. É essa, sim, a grande novidade do punk. Algo que poucos parecem ter percebido.


V/A “Punk Rock 77” LP (Pirate Dream Records, 1978). Capa e contracapa.

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Não era só a música que era nova mas tudo o que ali se via e até a forma como é editado. Intitulado simplesmente «Punk Rock ‘77/ New Wave ‘77», podemos dizer que a capa deste LP é um dos mais interessantes objectos destes primeiros anos do punk em Portugal. Assinada por Faustfried Rich’Ma, esta consiste numa colagem de fotografias de bandas – não necessariamente incluídas na compilação, como foi o caso dos Slaughter & The Dogs –, artefactos simbólicos do “movimento” – lâminas, alfinetes-de-ama, o “destroy” da t-shirt de Johnny Rotten – e de fragmentos de fotografias e restos de película. Cortadas, rasgadas, coladas, sobrepostas, a violência inerente à colagem espelhava a agressividade da música. Todas estas imagens foram trabalhadas e impressas em negativo conferindo assim uma toada negra, fúnebre, “sem futuro” ao disco. O lettering do título foi feito à mão, sem preocupação nem cuidado, tal como o alinhamento e o “Producer’s remark”. Assinado pelo Lord Starfucker, sintetizava-se aí o “espírito de ‘77”: “there is absolutely no reason for this rekord to come out. So here it is…Punk’s the way it should be”.


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Infelizmente seria este o único disco da Pirate Dream. Porque algumas das bandas não estavam licenciadas, o disco é, de facto, e como o nome da editora indicia, pirata. Como tal, pouco depois de ser posto à venda, a editora Phonogram abre um processo que faz com que o disco seja 34 António Sérgio, confiscado e destruído, sobrevivendo apenas umas míseras cópias. «Pirataria de António Sérgio, fingindo não ser um dos envolvidos mas um mero discos chegou a “O poder intermediário que trabalhou em nome da “causa punk-rock”, ainda Portugal? corrompe”» in se defende deixando claro que “apenas 3 grupos foram chamados Música & Som, n.˚26, Lisboa, 1 como não estando autorizados, isto na versão local do hipotético de Março de 1978, lesado, que cedo transformou o disco numa pirataria completa e o página 8. acto num ataque aos honrados fonogramistas e videogramistas por- 35 Rui Mendonça, 34 tugueses”. Invertendo os papéis, aproveita a entrevista para acu- «Pirataria de Discos a Portugal?» sar publicamente as editoras portuguesas de também não pagarem chegou in Música & Som, os direitos às editoras inglesas de quem supostamente licenciam os n.˚25, Lisboa, 20 de Fevereiro de 1978, 35 discos, algo que tornava os discos ditos legais também piratas… páginas 12 e 13.


Warm “The Demo Tapes” 7” (Warm Records, 1977). Capa.

ENTRETANTO, EM LONDRES... Embora me queira centrar apenas na conjuntura portuguesa é importante registar umas linhas sobre a londrina Warm Records. Editora de Rui de Castro, português emigrante em Londres, esta é montada em 1976 com intuito de editar os discos da sua própria banda, os Warm. É nesse ano que lança dois singles, “(It’s) The Kooler / Teenage Space Queen” e “Crazy Daisy Lady”, hoje considerados dos primeiros discos do-it-yourself. Em 1977, de modo a escoar as sobras das vendas, reúne e reintitula-nas como “The Demo Tapes”. Se os primeiros discos não tiveram capa, para esta nova versão Leo Pennant, também membro dos Warm e gráfico do jornal West Indian World, utiliza sem qualquer autorização uma fotografia tirada à televisão pela esposa de Rui de Castro, Mary Harrison Goudie, onde se vê a actriz Mae West, que posteriormente reenquadra e compõe uma capa.

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Em 1978, “já com nome alterado à punk para The Warm”, segundo Rui de Castro, gravam «o EP “Floosie” com quatro temas mais punkish que podiam fazer» e o disco sai “com uma capa desenhada e com fotos tiradas pela sempre punkette esposa Mary H., de uma amiga tuga-punk, a Ana Maria, e o Georges 36 de Castro armado em muscoloso”. A contra-capa é concebida por Leo Pennant, desta vez com o apoio gráfico de Graham Lucas, e teve como base foto36 grafias tiradas por Mary Harrison-Goudie que, acrescente-se, foi uma Rui de Castro, entrevista ao autor, das responsáveis pelo Photozine e pelo F**K P**K, dois dos primeiros 18 de Novembro fanzines punk ingleses, editados ainda no ano de 1977. de 2016. Segue-se uma compilação, mais uma vez auto-editada, intitulada “Nova Vaga”. Aí podem ouvir-se cinco novas faixas e uma versão dos Ramones, “Pinhead”, além de várias músicas das restantes bandas da editora – The Fred Banana Combo, The Exile, Floozie, Alan’s Libert Parabola. Constam ainda no LP os The Beat Brothers, um projecto de Rui de Castro inventado na altura para fazer versões punk de músicas dos The Beatles. Também a capa explora o universo punk ao fazer uso, mal e porcamente, das possibilidades do corta-e-cola, prática que já caracterizava o grafismo desse género musical entretanto estabelecido. Nessa colagem vêem-se fotografias mais uma vez tiradas por Mary


The Warm “Tired of Waiting for You” 7” (Warm Records/ Nova, 1979). Capa e contracapa. | The Warm “007” 7” (Warm Records, 1979). Capa e contracapa.

A importância de Rui de Castro para esta história não reside apenas na música que edita, mas sobretudo na forma como o faz. É ele um dos pioneiros do que se viria a denominar como ética do-it-yourself e da edição independente – é ele quem, juntamente com os amigos, faz tudo, desde a gravação à distribuição dos discos – conceitos e práticas fulcrais para a génese e desenvolvimento do punk. Além disso, é grande parte graças a Rui Castro que o punk chega a Portugal. Em 1977, através do programa de rádio “Quando O Telefone Toca” de Odete Ferrão, conhece António Sérgio, filho da respectiva, com quem se começa

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Seria também Mary H. Goudie a autora das capas dos dois discos seguintes, ambos editados em 1979. Para a capa da edição portuguesa de “007 Shanty Town”, uma versão de Desmond Dekker, adapta a iconografia do mod revival então em curso, transformando os zeros em símbolos semelhantes ao dos The Who. Para a capa de “Tired of Waiting for You”, desta vez uma versão dub dos The Kinks, explora o quadriculado preto e branco que o ska começava a implantar, embora aqui tivesse contornos mais op art.

V/A “Nova Vaga” LP (Warm Records, 1978). Capa

H. Goudie das bandas, devidamente identificadas à mão, e uma placa com o nome de uma praia da Costa da Caparica, a Nova Vaga. Esta serve para dar o título ao disco, ao mesmo tempo que remete para um novo género musical surgido entretanto, a new wave.


a corresponder a partir de Inglaterra e a quem, durante os anos seguintes, envia cassetes com novo material e notícias. António Sérgio, posteriormente, divulga em Portugal tudo o que recebe, quer no seu próprio programa de rádio – Rotação – quer nas colunas que assina na Música & Som. Seria também Rui de Castro quem licenciaria discos da editora inglesa Cherry Red para que António Sérgio pudesse editar através da Nova. Isto enquanto não conseguiu estabelecer a sua Warm Records em Portugal. Tal só aconteceria em 1980, quando começa a trabalhar com Manuel Lorena. A partir daí, seriam eles os responsáveis pela edição portuguesa de discos punk, como os Dead Kennedys, mas também de reggae. É também na Warm Records que, em 1981, sai o primeiro e único single dos Robot Jukebox Band, “Sábado à Noite”, projecto a solo de Rui de Castro. Sobre este falo mais à frente. Ainda “lá fora”, é também nesse final dos anos 70 que Anamar forma a sua banda punk / new wave, os Odd Combo… 37

Paulo Borges in Leitmotiv, Lisboa, 1980. 38

Carlos Jorge in Música & Som, n.˚22, Lisboa, 1 de Janeiro de 1978, página 9.

De volta a Portugal, se por estas linhas pode parecer que existiu um “movimento punk”, a verdade é que tudo o descrito atrás foi esporádico, fragmentado e passou-se não nos palcos mas na rua ou 37 dentro de “boîtes à noite e dos quartos de cada um”. Talvez por isso ninguém lhes tenha dado credibilidade e se falasse, logo em 1978, da morte do punk. “Irá morrer? Irá viver? Tudo isto irá dar a 38 algum lado?” perguntavam-se então os jornalista. A resposta para qualquer uma das perguntas é “não”.

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' - O - PUNK APOS Vaticínios à parte, o punk sobrevive a 1978. Hoje em dia esse até é considerado o seu ano áureo. E em 1979, apesar de se continuar a sublinhar que “havia atingido o auge e iniciado o seu inevitável declínio” e de se escrever, em jeito elegia, sobre “a última punkada”, continua a haver punk sob inúmeras for39 39 mas. No entanto, a partir desse ano um “surto do rock renovado” J.P.A. in intitulado new wave começa a impôr-se. Musicalmente mais acessíMusicalíssimo, n.˚2, Lisboa, Janeiro vel, logisticamente mais organizado e visualmente mais apelativo, / Fevereiro de 1979, página 32. este género acaba por vingar e “a prova prática dessa realidade foi


Corpo Diplomático “A Festa do Bruno” 7” (Da Nova, 1979). Capa e contracapa.

Curiosamente, sem saber como ou porquê, a imprensa tinha razão. De facto, logo no início de 1979, a 12 de Janeiro, a primeira banda punk portuguesa, Os Faíscas, acabam e são prontamente classificados e arrumados como os “punks da 42 old wave”. Mas é nesse mesmo ano, das suas cinzas, que aparecem os Corpo Diplomático.

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Música & Som, n.˚53, Lisboa, Abril de 1980, página 15. 41

Pedro Ferreira, «New Wave: o vento amainou» in Música & Som, n.˚49, Lisboa, Setembro de 1979, página 12. 42

Mané T. M., «Rock ‘n’ Roll em Lisboa» in Musicalíssimo, n.˚3, Lisboa, Março de 1979. 43

Pedro Miguel Múrias in Se7e, Lisboa, 11 de Julho de 1979.

Formados por Falso Alarme, Choque Eléctrico, Dedos Aires, Flash Gordon, Ultravioleta e Carlos Maria os Corpo Diplomático estreiam-se em Junho de 1979 na Sociedade Alunos de Apolo. A este segue-se um concerto no Dramático de Cascais como primeira parte dos The Tubes onde tocam para mais de oito mil pessoas. Mesmo não sendo bem recebidos, nem pelo público nem pela crítica – apesar de salientarem o guitarrista “particularmente enérgico” e “imaginoso” e de, no geral, ter sido 43 “uma hora cheia de movimento” – os Corpo Diplomático conseguem lançar um 7” pouco depois. Editado pela Nova – editora onde trabalha António Sérgio, desta vez de uma forma legal – o disco consistia em duas faixas: a original “A Festa do Bruno” e uma versão destruída e destrutiva de “Engrenagem” de José Mário Branco. A capa do single apresenta uma versão simplificada e em miniatura do que viria a ser a contracapa do futuro LP, para além de uma série de informações técnicas. Esta é assinada por António Sérgio e Fernando Cerdeira, que é também o responsável pelo logótipo da banda. O símbolo, por sua vez, é assinado por Paulo Azevedo.

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o clamoroso êxito comercial que conseguiu”. Face a essa prova, mesmo que o punk ainda tenha resistido a esse ano, proclama-se, sem piedade, que “foi derrotado”. “Tinha que ser”, diziam. “Viva a 41 boa música” …


Corpo Diplomático “Música Moderna” LP (Da Nova, 1979). Capa e contracapa.

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O álbum sai pouco depois e, no que diz respeito à capa, demonstra um maior cuidado gráfico. À frente, vê-se um desenho maoista de jovens chinesas a fazer exercícios físicos cedido pela Associação de Amizade Portugal – R. P. China que, desde Maio de 1974, operava em Portugal editando livros, organizando exposições e sessões de cinema e promovendo intercâmbios. A razão da escolha foi simples. Como explica Paulo Pedro Gonçalves, «tinha o cartaz 44 na sala em minha casa e na altura eu e o Pedro achámos uma boa Paulo Pedro Gonçalves, entrevista ideia usar como a capa. A estética e as cores do póster (no nosso ao autor, 7 de 44 entender) eram punk e modernistas». Outubro de 2015. Na contracapa, vê-se uma colagem da autoria de Fernando Cerdeira de influência dada ou surrealista onde as fotografias dos membros da banda foram coladas, em jeito de badges, sobre um blazer. Este, por sua vez, é cortado por um dispositivo mecânico afiado que confere alguma dinâmica à imagem. Seria esta a primeira vez que se faria o uso de técnicas de corte-e-cola – a técnica que internacionalmente definira o punk e que, em Portugal, apenas tinha sido usada em fanzines, flyers e cartazes – para conceber a capa de um disco.


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O que se vê na capa corresponde ao que se ouve no disco, quer a nível das letras quer da música. Em 1979 o punk já era um género com regras que o post-punk tentava desmontar, destruindo convenções e estruturas através do cruzamento das mais diversas influências, quer musicais, quer artísticas quer literárias. O mesmo fizeram os Corpo Diplomático que adaptam e misturam de modo eufórico e até violento punk, post-punk, no wave, reggae, hard-rock, rock ’n’ roll dos anos 50 e mais. Toda esta inteligente colagem de géneros e referências e sons é atravessada por um sentido de humor cáustico, corrosivo e pelo cinismo próprio do punk, como se pode ouvir na introdução de “Kayatronic”. E em todo o álbum. Como explicam os próprios, o que se ouve “não é rock, nem new wave, é música moderna, feita, espe45 cialmente, para dançar, para quem tiver pernas, evidentemente”. 45 Rock Week, n.˚3, “Música Moderna”, seria esse o título deste disco editado no ad- Lisboa, 1980. vento do pós-modernismo. Urbano, mundano, quase conceptual, e acima de tudo contemporâneo, o álbum dos Corpo Diplomático tinha tudo para instaurar uma ruptura com o que tinha sido feito até então e abrir novos caminhos para vários futuros.


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António Macedo, «A Imposição da Qualidade» in Se7e, Lisboa, 17 de Outubro de 1979, página 4. 47

Ver Música & Som, n.˚51, Lisboa, Dezembro de 1979, página 50. 48

Duarte, António A., 25 Anos de Rock ‘n’ Portugal - Arte Electrica de Ser Português, Lisboa, Livraria Bertrand, 1984, página 184. 49

Música & Som, n.˚54, Lisboa, Maio de 1980, página 20.

Mas não abriu. Infelizmente o poder de compra dos portugueses era pouco e os possíveis interessados neste disco eram ainda menos. Conforme explica o jornal Se7e, 1979 foi “um ano de viragem e de reexame da política editorial estabelecida no nosso país”, isto porque, a partir daí, .46 passaram a estar representadas em Portugal a Virgin, Stiff e Sire Como tal, no Natal desse ano podiam comprar-se edições portuguesas de LP’s de Talking Heads e Ramones assim como Sex Pistols, X-Ray Spex, The Clash 47 e Devo. O disco dos Corpo Diplomático, editado em simultâneo, face à oferta estrangeira é posto de lado e pouco ou nada vende. Talvez um LP tivesse sido um passo demasiado grande para uma nova banda portuguesa que não tinha público – nunca figuraram sequer entre os dez primeiros do top do Rotação – e que raramente tocava ao vivo. Além disso, conforme relata António A. Duarte, no seu livro Arte Eléctrica de Ser Português, «Luís Filipe Barros, afirmando não perceber o que canta o cantor do grupo, de48 clara que não passará o disco no “Rock em Stock”».

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Sem promoção e boicotados, em Maio de 1980 já se perguntava 49 “Quem sabe do Corpo Diplomático?”. Em jeito de resposta, reapa50 Pedro Ayres recem um mês depois com uma nova formação – Falso Alarme, DeMagalhães in Blitz, Lisboa, 26 de Março dos Tubarão, Carlos Maria e o novo baterista, Chibita – e anunciam de 1985. um novo disco como, de resto, mandava o contrato. Contrato esse que não é cumprido porque a banda termina pouco depois, sem desculpas nem justificações. Como desabafa Dedos Tubarão ou Pedro Ayres Magalhães, já retrospectivamente, “foi perder tempo, porque fazíamos muita coisa que ninguém ouvia. O Corpo Diplomático foi um ano de trabalho que ficou feito 50 e quase ninguém entendeu”. É ele quem, logo de seguida, juntamente com parte da banda, forma os Heróis do Mar, projecto que levaria as preocupações estéticas a outro patamar. Os restantes formariam os Street Kids, sobre o qual falarei adiante, e os Casino Twist.

É com os Corpo Diplomático que encerramos este capítulo. Mas para arrumar a dita “primeira vaga” do punk em Portugal, é obrigatório referir ainda os Crise e os WC / Porno, que não gravaram, assim como António & Variações e a música “Toma o Comprimido”. Por ser esta das que melhor capturou a vitalidade que o punk e a new wave pressupunham. E também o humor, coisa rara, então e hoje, na música portuguesa. E por explorar a dimensão performativa que a música também poderia ter. Segundo consta, António Ribeiro apresentou-se acompanhado pelos seus Variações no pro-


grama “Passeio dos Alegres” de Júlio Isidro «vestido de aspirina e 51 lançando “smarties” para o público e para as câmaras...». Infelizmente, apesar de já ter um contrato assinado, esta música não chega a ser editada na altura e o primeiro disco de António Variações, editado em 1982, já é pensado dentro de outra abordagem, 52 além de ser tocado por outra banda.

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A versão hoje conhecida, incluída na compilação “A História de António Variações” (Valentim de Carvalho, 2006) foi gravada em 1980 para o programa “Meia de Rock” da Rádio Renascença.

António Variações serve também para encerrar este capítulo não só por causa de “Toma o Comprimido” mas também porque no disco de 52 Idem. 1984, “Dar e Receber”, seria acompanhado pelos ex-Faíscas, então Heróis do Mar, Pedro Ayres Magalhães e Paulo Pedro Gonçalves. Além de que foi ele quem, em 1979, na festa dos 25 Anos do Rock ‘n’ Roll que teve lugar nos Alunos de Apolo, fez penteados (punk? pós punk? new wave?) a quem entrava…


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