IRENE

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S達o Paulo 2015


Travail Soigné

La trilogie Verhœven, 1

Copyright © 2006 by Pierre Lemaitre et Éditions du Masque, département des éditions Jean-Claude Lattès © 2015 by Universo dos Livros

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.

Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Diretor editorial: Luis Matos

Editora-chefe: Marcia Batista

Assistentes editoriais: Aline Graça, Letícia Nakamura e Rodolfo Santana Tradução: Raphael Araújo

Preparação: Leonardo Ortiz

Revisão: Geisa Oliveira e Guilherme Summa

Arte e adaptação de capa: Francine C. Silva e Valdinei Gomes Design original da capa: www.headdesign.co.uk Foto de capa: plainpicture/Harald Braun

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 L563i

Lemaitre, Pierre

Irene / Pierre Lemaitre ; tradução de Raphael Araújo. – São Paulo: Universo dos Livros, 2015.

ISBN: 978-85-7930-839-0

15-0149

400 p. (Trilogia Verhoeven, v. 1) Título original: Travail Soigné

1. Ficção policial 2. Suspense 3. Literatura francesa I. Título II. Araújo, Raphael

CDD 840

Universo dos Livros Editora Ltda.

Rua do Bosque, 1589 • 6º andar • Bloco 2 • Conj. 603/606 Barra Funda • CEP 01136-001 • São Paulo • SP Telefone/Fax: (11) 3392-3336

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lado, tudo aquilo em meio a um odor de excrementos, de sangue seco e de vísceras vazias. Imediatamente veio-lhe à lembrança Saturno devorando seus filhos, de Goya, em que viu por um instante o rosto aflito, os olhos exorbitantes, a boca escarlate, a loucura, a absurda loucura. Ainda que fosse um dos homens mais experientes que se encontravam ali, ele logo teve vontade de dar meia-volta em direção ao patamar em que Louis, sem olhar para ninguém, segurava com esforço um saco plástico, como um mendigo afirmando sua hostilidade para com o mundo. ‒ Mas que zona é essa…?

...

O comissário Le Guen dissera aquilo para si mesmo e a frase pairara em um vazio total. Só Louis a ouvira. Ele aproximou-se enxugando os olhos.

‒ Não faço a menor ideia ‒ disse ele ‒ Entrei, saí em seguida... Estou aqui...

Armand, no meio do cômodo, voltou-se para os dois homens com um semblante atordoado. Ele secava suas mãos úmidas na calça para readquirir postura.

Bergeret, responsável pela perícia, aproximou-se de Le Guen. ‒ Preciso de duas equipes. Isso vai demorar. E acrescentou, o que não era do seu feitio: ‒ É algo fora do comum. Aquilo não era comum.

‒ Bom, estou indo ‒ disse Le Guen cruzando com Maleval, que tinha acabado de chegar e já saía com as duas mãos na boca. Camille fez um gesto ao resto de sua equipe, indicando que agora era com eles. — Era difícil ter uma ideia precisa do apartamento antes de... tudo “aquilo”. Porque “aquilo” preenchera toda a cena, e não se

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sabia mais para onde olhar. No chão, à direita, jaziam os restos de um corpo estripado, cujas costelas quebradas atravessavam uma bolsa vermelha e branca ‒ provavelmente um estômago ‒ e um seio ‒ o que não havia sido arrancado, mas era bem difícil dizer porque aquele corpo de mulher – ao menos aquilo era certo – estava coberto de excrementos, que recobriam parcialmente inumeráveis marcas de mordidas. Bem em frente, à esquerda, encontrava-se uma cabeça ‒ de outra mulher ‒ com os olhos queimados, de pescoço estranhamente curto, como se a cabeça tivesse adentrado nos ombros. A boca escancarada expelia tubos brancos e rosados da traqueia, e veias que uma mão deve ter ido buscar nas profundezas da garganta para arrancá-los de lá. Na frente deles, estava abandonado o corpo ao qual talvez essa cabeça uma vez pertenceu, a menos que fosse da outra cabeça. Tal corpo tinha sido em parte despelado por cortes profundos feitos sob a pele e a barriga ‒ assim como a vagina ‒ e apresentava buracos profundos, bem delimitados, provavelmente feitos com ácido líquido. A cabeça da segunda vítima fora pregada ao muro pelas bochechas. Camille analisou tais detalhes, tirou um bloco de notas de seu bolso, mas em seguida o pôs de volta, como se a tarefa fosse tão monstruosa que qualquer método fosse inútil, qualquer plano fadado ao fracasso. Não existe ­estratégia diante da crueldade. No entanto, é para aquilo que ele estava lá, diante daquele espetáculo sem nome. Usaram o sangue ainda fresco de uma das vítimas para escrever na parede com letras imensas eu voltei. Para tanto, fora necessário utilizar muito sangue, como comprovavam as longas manchas escorridas ao pé de cada letra. A mensagem havia sido escrita por muitos dedos, ora fechados, ora abertos, e por conta daquilo, a inscrição parecia ser vista por olhos turvos. Camille passou por cima da metade de um corpo de mulher e aproximou-se da parede. Ao final da inscrição, um dedo foi carimbado sobre a parede com uma delicadeza escrupulosa. Cada detalhe

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das impressões digitais estava claro, perfeitamente impresso, e formava uma impressão digital idêntica a uma antiga carteira de identidade, quando o tira em serviço pressionava os dedos sobre a carteira já amarela, virando-o para todos os lados.

Uma enxurrada de sangue havia salpicado as paredes até o teto.

Camille precisou de alguns minutos para voltar a si. Seria impossível raciocinar se permanecesse naquele cenário, porque tudo o que se via ali representava um desafio para o pensamento. — Cerca de dez pessoas trabalhavam no apartamento. Assim como em uma sala de cirurgia, nas cenas de um crime normalmente reina uma atmosfera que poderia ser considerada descontraída. Muitas brincadeiras são feitas. Camille detestava aquilo. Alguns peritos acabavam-se com piadas, a maioria de teor sexual, e pareciam nutrir o distanciamento como outros matam o tempo. Tal atitude é típica de ofícios em que o homem é maioria. Um corpo de mulher, mesmo morta, continua evocando um corpo de mulher e, aos olhos de um perito habituado a despojar a realidade do drama, uma suicida continua sendo “uma bela garota” mesmo se o seu rosto estiver azulado ou inchado como uma moringa. Mas, naquele dia, no loft de Courbevoie, reinava outra atmosfera. Nem retraída, nem compassiva. Calma e pesada, como se, de repente, os mais malandros tivessem sido pegos de surpresa e estivessem se perguntando o que poderia haver de leve a dizer sobre um corpo estripado ante o olhar vazio de uma cabeça pregada à parede. Assim, eles tomavam as medidas em silêncio, colhiam amostras calmamente, dispunham os projetores para tirar fotografias em um silêncio vagamente religioso. Armand, apesar de sua experiência, expunha um rosto com uma palidez quase sobrenatural, transpondo as fitas isolantes da perícia com uma lentidão cerimoniosa, ­parecendo temer que

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um dos seus gestos pudesse despertar subitamente o furor que banhava o local. Maleval continuava a vomitar entranhas e vísceras no seu saco plástico, tendo feito duas tentativas de se reunir à equipe mas logo voltando atrás, sufocando, literalmente asfixiado pelos odores de excrementos e de carne despedaçada. — O apartamento era bem amplo. Apesar da desordem, via-se que a decoração tinha sido bem meticulosa. Como diversos lofts, a entrada dava diretamente para a sala, um cômodo imenso com paredes de cimento pintadas de branco. A sala da direita estava coberta com uma imagem fotográfica de dimensão gigantesca. Era necessário recuar bastante para perceber o formato do conjunto. Camille já havia cruzado com essa foto em outros lugares. Ele tentava se lembrar, as costas apoiadas sobre a porta da entrada. ‒ Um genoma humano ‒ disse Louis.

Era isso. Uma reprodução do mapa de um genoma humano, retrabalhado por um artista, realçado por nanquim e carvão.

Uma larga baia de vidro dava para um subúrbio residencial, ao longe, atrás de uma cortina de árvores que ainda não tinham crescido. Uma pele de vaca artificial estava fixada à parede, uma enorme tira de couro retangular com manchas pretas e brancas. Abaixo do couro da vaca, um sofá de couro preto de dimensões extraordinárias; um sofá fora do comum, talvez até mesmo fabricado para a extensão exata da parede. Era difícil entender como, de repente, você se percebe fora da sua casa, em outro mundo, no qual fotografias gigantescas do genoma humano são coladas à parede e jovens são esquartejadas depois de alguém ter esvaziado a barriga delas... No chão, à frente do sofá, um número de uma revista intitulada Gentlemen’s Quartely. À direita, um bar bem abastecido. À esquerda, sobre uma mesa baixa, um

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telefone com secretária eletrônica. Ao lado, sobre uma mesa de vidro fumê, uma televisão de tela grande. Armand ajoelhou-se diante do aparelho. Camille, que nunca tinha oportunidade devido ao seu tamanho, pousou a mão sobre o ombro dele e disse: ‒ Deixe-me ver isto ‒ falou, apontando para o videocassete.

A fita cassete estava rebobinada. Via-se um cão, um pastor alemão, com um capacete de beisebol, descascando uma laranja, segurando-a entre as patas e comendo seus pedaços. Parecia um daqueles filmes imbecis de comédia, com roteiros bem amadores, tomadas previsíveis e abruptas. No canto inferior direito, via-se o logo “US-gag” com o desenho de uma câmera minúscula e sorridente. Camille disse:

‒ Deixe rodar, nunca se sabe...

Ele foi atraído pela secretária eletrônica. A música que precedia a mensagem parecia ter sido escolhida a partir da tendência da época. Alguns anos antes teria sido o Cânone, de Pachelbel. Camille acreditou reconhecer A primavera, de Vivaldi. ‒ O outono ‒ murmurou Louis, concentrado, com os olhos fixos no chão. Em seguida, ouviu-se: “Boa noite! (Voz de homem, tom refinado, articulação precisa, uns quarenta anos, dicção estranha.) Lamento, mas neste momento estou em Londres. (Ele está lendo seu texto, com a voz um pouco elevada, nasalar.) Deixe uma mensagem após o sinal (um pouco elevada, sofisticada, homossexual?), eu ligarei de volta ao retornar. Até logo”.

‒ Ele usou um neutralizador de som ‒ falou Camille. E ­avançou em direção ao quarto. —

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Este livro foi composto nas fontes Adobe Caslon Pro, Bodoni MT, Traveling Typewriter e Old Press, e impresso em papel Norbrite 66,6 g/m2 na Assahi.


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