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ano III • n. 5 • novembro 2009


ISSN 1982-2766

Domínios da Imagem Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5,

NOVEMBRO

2009


Universidade Estadual de Londrina REITOR: Wilmar Sachetin Marçal VICE-REITOR: Cesar Antonio Caggiano Santos DIRETOR DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Ludoviko Carnascialli dos Santos CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Cristiano Gustavo Biazzo Simon COORDENADOR DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: José Miguel Arias Neto EDITOR RESPONSÁVEL: Ana Heloísa Molina – UEL COORDENADOR DO LEDI: Alberto Gawryszewski – UEL

CONSELHO CONSULTIVO Daniel Russo – Université de Borgnone • Eddy Stols – Katholieke Universiteit Leuven – Bélgica • Francisco Alambert – USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB • Patrice Olsen – Illinois State University • Renato Lemos – UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta – UFMG • Terezinha Oliveira – UEM • Ulpiano Bezerra Menezes – USP

CONSELHO EDITORIAL E CIENTÍFICO Agbenyega Adedza – Illinois State University • Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM • Ana Maria Mauad – UFF • Annateresa Fabris – USP • Annie Duprat – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines • Áureo Busetto – Unesp • Cláudia Musa Fay – PUC / RS • Darío Acevedo Carmona – Universidad Nacional de Colombia • Luciene Lemkhul – UFU • Luiz Guilherme Sodré Teixeira – Fundação Casa de Rui Barbosa / RJ • Miriam Nogueira Seraphim – Unicamp • Miriam Paula Manini – UnB • Renata Senna Garraffone – UFPR • Solange Lima Ferraz – Museu Paulista • Vânia Carneiro Carvalho – Museu Paulista PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Kely Moreira Cesário IMAGEM DA CAPA: Fotografia da região de Londrina. Década de 1930. Fotógrafo: José Juliani. Acervo Museu Histórico de Londrina – Universidade Estadual de Londrina.

TIRAGEM: 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR. Ano I – n. 1 – nov. 2007 Semestral ISSN 1982-2766 1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação em História Social. CDU 2 Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista. Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio


Sumário Uma origem para os carmelitas: a azulejaria do profeta Elias na Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Paraíba colonial ............................................................................................................. 7 André Cabral Honor

L’imagerie populaire ...................................................................................................................... 23 Annie Duprat

Imagens de Babel na Idade Média: entre a arquitetura real e o imaginário da arquitetura ....... 33 Artur Simões Rozestraten

“Lápices sin punta” – Imagens da infância e da adolescência na Guerra Civil Espanhola ........ 47 Carla Damêane P. de Souza

Imagens da cidade, imagens construídas: as contradições da modernidade .......................... 59 Edilaine Custódio Ferreira

Novo Realismo e Internacional Situacionista: um estudo do questionamento da imagem pictórica pelas neovanguardas francesas .................................................................................... 67 Gabriel Zacarias; Tiago Machado

Imágenes gráficas y fotografías en una experiencia escolanovista (Rosario, Argentina: 19351950) .............................................................................................................................................. 83 María del Carmen Fernández; María Elisa Welti; Rubén Biselli

De braços abertos num cartão postal? Duas favelas da zona sul carioca na “era das remoções” pelas lentes do Correio da Manhã ........................................................................... 95 Mauro Henrique de Barros Amoroso

A fotografia numa pesquisa sobre a história do Carnaval de Salvador ................................. 109 Milton Araújo Moura

Os símbolos do CNPq e sua construção imaginária ................................................................ 123 Nancy A. Campos Muniz

A imagem de ou)rano&v e o providencialismo moralizante: platônicos, estóicos e epicúreos no último terço do século IV ...................................................................................................... 137 Rafael Virgílio de Carvalho

Entre o contexto e a linguagem: o discurso fotográfico e a pesquisa histórica .................... 153 Richard Gonçalves André

RESENHAS BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários do século XX. Rússia e Alemanha ..................................................................................................................................... 165 por Renata Senna Garraffoni

MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da sociedade porto-alegrense: vida pública e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). ............................ 169 por Zita Rosane Possamai


Imagem da capa

A foto de capa apresenta uma cena bastante representativa da história da ocupação do norte do Paraná, e faz parte do acervo do Museu Histórico de Londrina, da Universidade Estadual de Londrina. Trata-se de uma figueira branca, árvore de grandíssimo porte característica da região, junto a qual posam trabalhadores e, provavelmente, colonos, na década de 1930. Imagens como esta difundiram uma perspectiva de terra fértil e pujança que ajudaram a construir o ideal de desbravamento da floresta nativa. Colonizada pela empresa Companhia de Terras Norte do Paraná a partir de 1929, a região passou por um processo de desmatamento que deu lugar à produção agrícola e aos centros urbanos. José Juliani, filho de migrantes italianos, proveniente do interior do estado de São Paulo, como muitos outros que vieram para Londrina em busca de oportunidades, trouxe, no entanto, uma habilidade especial, a da execução de fotografias. Por isso foi contratado pela empresa colonizadora. No final dos anos 1970 seu acervo foi adquirido pelo Museu Histórico, principal centro de documentação da região, contando, ao todo, 380 negativos de vidro e 435 fotografias. A coleção é uma das mais importantes quanto a registros visuais do período, sendo especialmente valorizada por apresentar as mudanças da paisagem. Profa. Dra. Angelita Marques Visalli Diretora do Museu Histórico de Londrina Docente do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina


Apresentação A revista Domínios da Imagem em sua quinta edição vem confirmar um espaço de diálogo que envolve professores e pesquisadores da imagem, em diversos suportes, propondo outros olhares sobre o campo das visualidades, em recortes temporais abrangentes. Nesse número, André Cabral Honor analisa a azulejaria na igreja de Nossa Senhora do Carmo da Paraíba colonial apontando uma outra fonte para o estudo desse período da história brasileira. Artur Simões Rozestraten enfoca as imagens da Babel na Idade Média e sua relação com o espaço arquitetônico. Annie Duprat trata da difusão de imagens populares, entre outras, as publicitárias, na construção dos imaginários sociais da população da França, a partir do século XVII. Carla Damêane P de Souza propõe uma perspectiva da Guerra Civil Espanhola sob os olhares de desenhos de crianças, poemas e filme, entretecendo fios da história e da memória. Em “Imagens da cidade, imagens construídas: as contradições da modernidade”, Edilaine Custódio Ferreira analisa o discurso produzido pelo jornal “O Diário do Norte do Paraná” a partir do estudo da imagem fotojornalística. Novo Realismo e Internacional Situacionista são os motes de Gabriel Zacarias e Tiago Machado para o questionamento da imagem pictórica pelas neovanguardas francesas, enquanto Maria del Carmen Fernández, María Elisa Welti e Rubén Biselli investigam as imagens gráficas e fotografias da Escuela Serena, uma experiência escolanovista na Argentina entre 1935 a 1950. Pelo viés fotográfico, recortando o tema favela, Mauro Henrique de Barros Amoroso analisa as representações sociais deste tema no Rio de Janeiro, pela cobertura fotojornalística do Correio da Manhã, ao longo da década de 1960. Milton Moura aborda as questões metodológicas relacionadas à utilização da fotografia como documento em uma pesquisa sobre o Carnaval de Salvador. Os símbolos do CNPq e sua construção imaginária no período dos governos militares são os temas de Nancy Campos Muniz. Rafael Virgílio de Carvalho verifica a representação da imagem do céu por platônicos, estóicos e epicúreos, no último terço do século IV. A fotografia, seu discurso e a pesquisa histórica são o campo em que Richard Gonçalves André embrenha-se para refletir sobre essa fonte enquanto objeto de análise histórica. Na sessão resenha, Renata Senna Garraffoni nos apresenta o texto de Vanessa Bortulucce sobre a arte dos regimes totalitários do século XX, no caso, Rússia e Alemanha, enquanto, Zita Possamai analisa o texto de Cláudio de Sá Machado Júnior acerca das imagens da sociedade porto-alegrense, pelas fotografias da Revista do Globo, na década de 1930. Nessa perspectiva de ampliação de olhares, desejamos a todos uma boa leitura!! Ana Heloisa Molina Isabel Bilhão DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, NOVEMBRO 2009

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UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

Uma origem para os carmelitas: a azulejaria do profeta Elias na Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Paraíba colonial

André Cabral Honor Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor do Instituto de Educação Superior da Paraíba – IESP. Autor de, entre outros artigos, “Educação e preservação de sítios arqueológicos”. História & Ensino, v. 13, 2007.

RESUMO: Surgida no século XII, a Ordem do Carmo adota como seu fundador uma das figuras mais importantes do Antigo Testamento e da história católica: o Profeta Elias. O lapso temporal entre o surgimento efetivo dos carmelitas e a aparição do profeta suscitou diversos debates na Igreja Católica sobre a asseveração do profeta como fundador dos carmelitas. O presente artigo procura realizar um estudo iconológico de dois painéis de azulejaria da Igreja de Nossa Senhora do Carmo na cidade da Paraíba colonial – atual João Pessoa – que retratam importantes passagens da vida do profeta Elias. Conectando essas imagens a outros elementos imagéticos da igreja é possível visualizar, dentro da cultura histórica carmelita, a importância que a figura do profeta Elias tem como afiançador da primazia da antiguidade da Ordem Carmelita. PALAVRAS-CHAVE: azulejaria; carmelitas; iconologia.

ABSTRACT: Appeared in century XI, the Order of the Carmo adopts as its founder one of the figures most important of the Old Testament and history catholic: Elias Prophet. The secular lapse enters the effective sprouting of the Armelites and the appearance of the prophet excited diverse debates in the Church Catholic on the affirmation of the prophet as founding of the Armelites. The present article looks for to carry through a iconologic study of two panels of tiling of the Church of Ours Lady of the Carmo in the city of the “Paraiba colonial” – current João Pessoa – PB – that they portray important tickets of the life of Elias Prophet. Connecting these images to other imagetic elements of the church it is possible to visualize, inside of the Carmelite historical culture, the importance that the figure of Elias prophet has as warranter of the priority of the antiquity of the Carmelite Order. KEYWORDS: tiles; carmelites, iconology.

Recebido em: 09/06/2009

Aprovado em: 05/08/2009

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ANDRÉ CABRAL HONOR

Uma origem para os carmelitas: a azulejaria do profeta Elias na Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Paraíba colonial

Um nascimento nunca é fácil. E não poderia ser diferente, já que este inicia o fio de uma História que se propagará por tempo indeterminado. Seja uma criança, uma instituição ou uma crença, o seu fim é inevitável, porém imprevisível. O historiador, muitas vezes movido pela paixão inicial que a disciplina suscita, tende a acreditar que por possuir aquele fio de uma História inteiro em suas mãos, seu trabalho de interpretação será completo e perfeito. O que talvez ele não saiba é que o mesmo decorrer de tempo que lhe permite colocar aquela linha em cima da mesa de estudos é responsável por fragmentála. Olhando de perto, ele percebe que o fio não está inteiro: ele é feito de fiapos, meras fibras, quebradiças e subdivididas. Olhando atentamente para essa linha, o historiador encontra mais dúvidas do que respostas concretas. Óbvio que, ao escrever suas suposições, ele irá preenchê-lo com argumentos e provas que lhe permitirão construir um relato. Tal qual a linha histórica dissecada, um bom texto historiográfico, quando analisado de perto, é cheio de pontas que podem levar por apaixonantes e inusitados caminhos. Cabe ao leitor, leigo ou cientista, aventurar-se a percorrê-los. A origem da Ordem Carmelita é uma dessas linhas históricas extremamente fragmentadas em que mito e realidade se misturam. Neste sentido o profeta Elias aparece nas alegorias 1

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da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Paraíba colonial como um de seus fundadores mesmo tendo atuado no ano IX a.C., ou seja, muito antes da constituição da própria Igreja Católica. Em 1675 eram publicados os volumes da Acta Sanctorum, uma espécie de compêndio da história da Igreja Católica Romana que causou um verdadeiro escândalo dentro da Ordem Carmelita. Escritos por representantes da corrente ideológica intitulada de reação feudal – que tinha como principal expoente o historiador francês Conde de Henri Boulainvilliers (1658-1722), defensor da nobreza feudal – os livros colocavam “[...] que a origem dos carmelitas não ia além do final do século XII, acrescentando que o padre Bertoldo tinha sido seu primeiro general” 1. A reação dos carmelitas é imediata: os volumes são entregues ao Tribunal da Inquisição, que rapidamente condenou essa contestação da paternidade da ordem. Apesar da condenação do Santo Tribunal, o Papa Inocêncio XII não ratifica esta sentença. A partir de então é criada uma controvérsia dentro e fora da Ordem Carmelita sobre sua paternidade e antiguidade. Para compreender a importância dessa questão para os carmelitas e a necessidade que a ordem missionária tinha em conciliar seus dois “fundadores”, é necessário ir até o lugar em que o santo e o profeta realizaram suas maiores obras: um promontório intitulado Carmelo.

Texto original: “[...] que el origen de los carmelitas no iba más allá de los fines del siglo XII, añadiendo que el padre Berthold había sido su premer general.”. SEBASTIAN, Santiago. Contrarreforma y Barroco. Madrid: Alianza Forma, 1989, p. 240. As traduções em espanhol são de Maria Luiza Texeira Batista (DLEM/UFPB)

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UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO... O Monte Carmelo se eleva entre os confins da Galiléia e Samaria, na Palestina. Limita pelo norte com Haifa, cidade marítima; pelo sul com as terras de Cesaréia; pelo leste com a planície do Esdrelon; e pelo oeste pelo Mar Mediterrâneo.2

Para o cristianismo o Monte Carmelo não é um lugar ordinário. Ele se encontra enraizado à cultura cristã como um ambiente sagrado por ter sido o local em que o profeta de ação3 Elias comprovou a fé num Deus verdadeiro, Javé4. Sobre as origens de Elias nada se sabe, exceto que ele foi um Thesbita; se originário da Tisbe de Nephtali [1] (Tobit 1:2) [2] ou de Thesbon de Galaad, como nosso texto indica, não há certeza absoluta, embora a maioria dos acadêmicos, baseados no Septuagint [3] e em Josephus [4], considere a segunda opinião.5

Sua apresentação na Bíblia se faz de forma brusca. Sem nenhuma referência anterior, ele já surge como um importante profeta avisando ao rei Acab, que reinou Israel de 874 a 853 a.C., que sua heresia seria punida com um longo período de seca no seu reino: “Elias, tesbita, um dos habitantes

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de Galaad, disse a Acab: ‘Pela vida de Iahweh, o Deus de Israel, a quem sirvo: não haverá nestes anos nem orvalho nem chuva, a não ser quando eu ordenar”6. Acab era filho de Amri – que de acordo com a Bíblia foi o rei que “fez o mal aos olhos de Iahweh, superando nisso todos os seus antecessores”7 – e assumiu o trono de Israel com a morte de seu pai. Seus atos seriam ainda mais pecaminosos do que os de Amri, agravados pelo fato de ter se casado com Jesabel, filha do rei dos Sidônios, povo que cultuava o deus Baal. Como se lhe não bastasse imitar os pecados de Jerobão, filho de Nabat, desposou ainda Jesabel, filha de Etbaal, rei dos Sidônios, e passou a servir Baal e adorá-lo. Erigiu-lhe um altar no templo de Baal, que construiu em Samaria. Acab erigiu também um poste sagrado e cometeu ainda outros pecados, irritando Iahweh, Deus de Israel, mais do que todos os reis de Israel que o precederam.8

Elias pediu a um dos seus discípulos, de nome Abdias, que fosse até Acab para anunciar que o profeta se encontrava na região e demandava uma audiência com o rei. Acab aceitou o pedido e se encontrou com

SCIADINI, Frei Patrício. O Carmelo: História e espiritualidade. São Roque: Edições Carmelitanas, 1993., p. 11. Profetas de ação são aqueles que atuavam diretamente com a sociedade, distinguindo-se dos profetas escritores que faziam suas profecias através de textos escritos. O Deus que aparecia para Elias pode ser chamado tanto Javé como Iawé. No hebraico antigo não existiam vogais, somente consoantes, sendo assim, o nome do Deus bíblico era escrito como JHWH. Na fala—lembrando que, para os judeus, falar o nome de Deus era algo praticamente proibido devido a uma má interpretação do texto não usarás o nome dele em vão...—foram transliteradas inúmeras formas sendo as mais conhecidas IeHoWaH (ou Jeová) e Iahweh (ou Javé), isso porque a junção da vogal, adicionada pela fala judaica com o “H”, formava o som do “J”. Portanto Javé e Iahweh se referem ao mesmo Deus. O nome Elias, em hebraico Eliyahu significa “JHWH é o meu Deus”. Fonte: BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003. Texto original: “Of Elia’s origin nothing is know, except that he was a Thesbite; whether from Thisbe of Nephtali (Tobit 1:2) or from Thesbon of Galaad, as our texts have it, is not absolutely certain, although most scholars, on the authority of the Septuagint and of Josephus, prefer the latter opinion”. N.T. – [1] Naphtali (ou Nephtali) foi o sexto filho de Jacó e Bilhah. Também referido como uma das doze tribos de Israel. [2] Livro apócrifo da Bíblia. [3] Versão grega da Escritura Hebraica, datada do séc. III a.C., contendo tanto a tradução do hebraico quanto material extra, considerado texto base do Velho Testamento nos primeiros anos da Igreja Católica Romana e ainda texto canônico para católicos ortodoxos. [4] General judeu e historiador que participou da revolta dos Judeus contra os romanos. Escreveu a História da Guerra Judaica, principal fonte sobre o Cerco de Masada (72-73). Fonte: KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr. 2008. As traduções do inglês são de Berttoni Cláudio Licarião (Yázigi-João Pessoa). 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 17, vers. 1, p. 495. 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 16, vers. 25, p. 495. 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 1, vers. 31-33, p. 469.

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Elias que propôs uma espécie de desafio entre os dois deuses – Javé e Baal – no intuito de desacreditar o baalismo. Influenciado por sua esposa, Jesabel, Acab havia mandado matar todos os profetas de Javé9. Por ordem de Javé, Elias pediu ao Rei Acab que reunisse os seus 450 profetas em frente ao Monte Carmelo, onde sacrificaria um novilho enquanto os profetas de Baal fariam o mesmo. Aquele deus que acendesse a fogueira com os pedaços do sacrifício seria o verdadeiro. Os profetas de Baal clamaram da manhã até o meio dia e nada aconteceu. Somente após o visível fracasso dos profetas de Baal, Elias decidiu agir: Tomou doze pedras, segundo o número das doze tribo de Jacó, a quem Deus se dirigia dizendo: “Teu nome será Israel”, e edificou com as pedras um altar ao nome de Iahweh. Fez em redor do altar um rego capaz de conter duas medidas de sementes. Empilhou a lenha, esquartejou o novilho e colocou-o sobre a lenha.10

Ordenou que enchessem quatro jarras grandes de água e que as derramassem sobre a lenha e o holocausto por três vezes. Fez uma oração e o fogo caiu do céu queimando a lenha, a carne, a pedra, o chão, secando totalmente a água da valeta. Aclamado, Elias ordenou à multidão que prendesse os 450 profetas de Baal: “Elias lhes disse: ‘Prendei os profetas de Baal; que nenhum deles escape!’ e eles os prenderam. Elias fê-los descer para perto da torrente do Quisom e lá os degolou”11. No capítulo seguinte do relato

bíblico é dito que Elias matou todos os profetas à espada. Logo após, subiu ao alto do Monte Carmelo acompanhado de um servo, e prostrado no chão mandou que o mesmo olhasse por sete vezes seguidas em direção ao mar. Na sétima vez o servo viu uma nuvem, era o fim da seca intensa que assolara a região por três anos. Toda essa seqüência de fatos encontra-se representada no painel E4 de azulejaria da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, do lado esquerdo12 abaixo de um púlpito (Figura 1). Construída na segunda metade do século XVIII, ornamentada com elementos Barrocos e Rococós, suas alegorias tem como objetivo introjetar dentro do cristão a cultura histórica carmelita no intuito de que sirva de modelo de transformação do indivíduo na busca do caminho da salvação. É possível ver ao centro, construído com doze pedras, têm-se o altar, em cima do qual estão depositados os pedaços do novilho sacrificado, e ao seu redor a vala que Elias mandou cavar. Dentro dela destacam-se a figura do profeta Elias de braços erguidos para o céu, e a imagem de três homens sem camisa com jarras nas mãos derramando a água sobre a vala e o novilho esquartejado. Atrás se encontram os profetas de Baal, dois em destaque, muito bem vestidos, em invocação ao seu deus num altar maior que o do plano principal (Figura 2). À direita está o Rei Acab com a mão levantada usando uma coroa (Figura 3) e, ao fundo da imagem, notase a chuva torrencial que viria acabar com a seca imposta por Javé. Na parte inferior do

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Apesar de Abdias falar que escondeu e cuidou de cem profetas de Javé (1 REIS, 18), Elias se declara o único sobrevivente dos profetas de Javé. 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 18, vers. 22, p. 497. 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 18, vers. 31-33, p. 498. 11 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 18, vers. 40, p. 498. 12 O referencial para localização dos painéis de azulejaria será a perspectiva de uma pessoa que entra na Igreja de Nossa Senhora do Carmo pela porta principal. A letra é a localização, D (direito) e E (esquerdo), e o número (1 a 5) é a ordem crescente dos painéis na parede. Por exemplo: painel D4 - Quarto painel do lado direito. 10

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painel vê-se uma pequena cartela, segurada por dois pequenos anjos, com três pequenas flores (Figura 4) que podem ser identificadas

como orquídeas devido ao seu bulbo central (formação de pétalas no centro da flor que se assemelha a um cálice).

Figura 1. Painel E4 – Elias e os profetas. Acervo Pessoal.

Figura 2. Detalhe do painel E4 – Profetas

Figura 3. Detalhe do painel E4 – Rei Acab.

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Figura 4. Detalhe do painel E4 – Cartela com flores.

Segundo Chevalier e Gheerbrant, “São João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma, e do ramalhete que as reúne, a imagem da perfeição espiritual” 13 . A orquídea, símbolo da fertilidade, alude à bem aventurança fecundada por Javé aos seus seguidores naquele momento. O próprio sentido do verbo florescer é usado no Antigo Testamento como uma forma de união com Deus, como é possível ver nesta passagem: Iahweh falou a Moisés e disse: “Fala aos israelitas. Recebe deles, para cada casa patriarcal, uma vara; que todos o seus chefes, pelas suas casas patriarcais te entreguem doze varas. Escreverás o nome de cada um deles em sua própria vara; e na vara de Levi escreverás o nome de Aarão, visto que haverá uma vara para os chefes das casas patriarcais de Levi. Tu as colocará em seguida na Tenda de Reunião, diante do testemunho, onde eu me encontro contigo. O homem cuja vara florescer será o que escolhi; assim não deixarei chegar até mim as murmurações que os israelitas proferem contra vós.”14

O milagre operado por Elias, seguido do assassínio dos profetas de Baal, convenceu os súditos de Acab que Baal era um falso deus. Desta forma, o profeta restabelece, melhor dizendo, faz novamente florescer em seu povo a união com Javé. Após o milagre no Monte Carmelo, Elias foi obrigado a fugir para o deserto devido às ameaças de Jesabel. Segundo o relato bíblico, Javé apareceu para o profeta e ordenou que fosse até o deserto de Damasco e lá ungisse Hazael como rei de Aram, Jeú como rei de Israel e Eliseu, filho de Safat, como o profeta que iria lhe suceder. O primeiro encontro de Elias e Eliseu não poderia ser mais significativo: Partindo dali Elias encontrou Eliseu, filho de Safat enquanto trabalhava doze arapenes de terra, ele próprio no décimo segundo. Elias passou perto dele e lançou sobre ele seu manto. Eliseu abandonou seus bois, correu atrás de Elias e disse: “Deixa-me abraçar meu pai e minha mãe, depois te seguirei.” Elias respondeu: “Vai e volta, pois que te fiz eu?”15

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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 437. NÚMEROS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 17, vers. 16-20, p. 228. 15 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap 19, vers. 19-20, p. 499. 14

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UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

O relato bíblico deixa claro que Eliseu seria o guia do povo do Reino de Israel, pois ele se achava conduzindo o décimo segundo arapene de terra quando Elias o encontrou, uma forma metafórica de se referir às doze tribos de Israel. O profeta Eliseu estava diretamente ligado à tribo de Rúben, primogênito de Jacó, o que o faz descendente da primeira ou da última tribo de Israel, dependendo da posição que se dê à tribo. Ao vê-lo, Elias jogou seu manto sobre Eliseu. O manto representa um ritual de passagem e um ato de proteção. O monge ou monja que veste o hábito da ordem renuncia à vida terrena – Eliseu até se despede de seus pais – e se retira para junto de Deus. Como atributo dos reis, o manto alegoriza o ato de “assumir uma dignidade, uma função, um papel, de que a capa ou manto é emblema”16. Naquele momento Elias atribuilhe a função que Javé havia designado: a de seguir o profeta e protegê-lo para que depois pudesse substituí-lo. “[...]e o que escapar da espada de Jeú, Eliseu o matará”17, diz Javé a Elias quando o manda tomá-lo como discípulo. A fala de Elias, “Vai e volta, pois que te fiz eu?”, reafirmava a importância do simbolismo do manto como portador de um papel, no caso, designado por Javé, que

também responde por proteger os profetas quando esses executam sua obra. Acab morre com uma flechada numa batalha contra o rei da Síria e Acazias, seu filho, assume seu lugar como rei de Israel. De acordo com a Bíblia18, ele também prestava o culto a Baal, seguindo os passos de seu pai e de sua mãe, Jesabel. Logo após estes eventos Elias teria sido levado ao céu por Deus numa carruagem de fogo envolta em um redemoinho: E aconteceu que, enquanto andavam e conversavam, eis que um carro de fogo e cavalos de fogo os separaram um do outro, e Elias subiu aos céus no turbilhão. Eliseu olhava e gritava: “Meu pai! Meu pai! Carro e cavalaria de Israel!”. Depois não mais o viu e, tomando as suas vestes, rasgou-as em duas. Apanhou o manto de Elias, que havia caído, e voltou para a beira do Jordão, onde ficou.19

Cena comum na iconografia religiosa, a subida do profeta Elias ao céu também se encontra representada na azulejaria da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, mais especificamente no painel D4 (Figura 5). Sentado numa carruagem puxada por cavalos que trotam sobre as nuvens, rodeados por singelas labaredas de fogo (Figura 6), está Elias usando o escapulário da Ordem Carmelita20.

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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 589. 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 19, vers. 17, p. 499. 1 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 22, p. 503-505. 19 2 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 2, vers. 11-13, p. 508. 20 O escapulário é uma peça de roupa, uma espécie de poncho oval e branco, que é usado por cima do hábito da ordem. Com o tempo, foi substituído por pequenos cordões com duas imagens, uma em cada extremidade, chamados de bentinhos. Bastante populares no Brasil, possuem o mesmo significado simbólico de proteção. Fonte: ALBUQUERQUE, Marcos Cavalcanti de. Hagiografia carmelitana: espiritualidade. João Pessoa: A União, 2001. 17 18

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Figura 5. Painel D4 – Elias e Eliseu. Acervo Pessoal.

Figura 6. Detalhe do painel D4 – Labaredas.

Ajoelhado perante a carruagem, usando uma capa comprida, encontra-se Eliseu de braços abertos recebendo o manto que Elias lhe entrega. Ao fundo vê-se um rio, provavelmente o Jordão, local onde Eliseu realizou seu primeiro milagre como sucessor de Elias. Pouco antes de ser arrebatado para o céu, Elias havia aberto as águas do rio Jordão batendo com seu manto em suas águas. Toda essa cena foi observada de longe por cinqüenta discípulos de Javé. Quando Elias some no carro de fogo, Eliseu rasga as suas vestes, pega o manto caído e volta ao Jordão:

21

Tomou o manto de Elias que havia caído dele e bateu com ele nas águas dizendo: “Onde está Iahweh, o Deus de Elias?” Bateu também nas águas que se dividiram de um lado e de outro, e Eliseu atravessou o rio. Os irmãos profetas de Jericó viram-no a distância e disseram: “O espírito de Elias repousa sobre Eliseu”; vieram ao seu encontro e se prostraram por terra, diante dele.21

Qualquer dúvida que pudesse pairar sobre a sucessão de Elias se extingue com a apropriação do manto de Elias por Eliseu, objeto que lhe permite realizar seu primeiro milagre. Como é dito pelos profetas de Javé,

2 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap 2, vers. 14-15, p. 508.

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UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

“O espírito de Elias repousa sobre Eliseu”, o que torna a figura de Eliseu indissociável de seu mentor, tanto que, no altar-mor da Igreja do Carmo (Figura 7), os dois aparecem lado a lado nas laterais do altar, dividindo a cena – nenhum santo tem essa honra – com Nossa Senhora do Carmo. Contudo vale lembrar que suas imagens encontram-se abaixo da santa, como se eles abrissem espaço para a glorificação da grande mãe dos carmelitas. 22

Na parte inferior do painel, existem dois anjos que seguram uma cartela com a iconografia de uma árvore (Figura 8). Ela conecta o céu à terra devido a seu crescimento vertical. Da mesma forma, a carruagem que arrebatou Elias também é um símbolo de ligação entre o terreno e o divino, já que ela foi mandada por Javé para levar o profeta ao céu. Como as folhas secam e caem durante o outono para depois se renovarem,

Figura 7. Altar-mor. Acervo Pessoal.

Figura 8. Árvore – Detalhe da do painel D4. 22

À época da fotografia (fig. 7), a imagem de Nossa Senhora do Carmo havia sido retirada do camarim e transportada para a galeria de imagens sacras que se encontrava na parte superior do corredor lateral esquerdo da igreja. Com a desativação da galeria, e transformação do espaço na oficina de restauração das tábuas do forro da igreja, a imagem voltou ao seu lugar original.

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a imagem da árvore também está associada à idéia de ressurreição e de vitória da vida sobre a morte. De acordo com Manfred Lurker: A árvore, associada ao ritmo das estações e portadora dos frutos, convertia-se em revelação de vida para os povos que viviam na orla de desertos e rondavam pelas estepes. Profundamente enraizada na terra, a árvore atinge uma altura que ultrapassa a de todos os seres vivos, o que levou à idéia da árvore do mundo que liga entre si o céu e a terra.23

Elias não morre, ele sobe ao céu. Tanto que numa passagem da Bíblia que narra fatos posteriores a sua ascensão, ele envia uma carta ao rei Jeorão alertando que este não vinha seguindo os passos do seu pai, Josafá, que andava se desviando do caminho de Deus24. A descrição da passagem de Elias sobre o mundo terreno está centrada no conflito entre a adoração a Baal, difundida por Acab e Jesabel, e o culto a Javé, pregado por Elias. Em termos de alegoria, representa-se o eterno conflito entre a vida (Javé) e a morte (Baal). De acordo com Borriello: Parece que à luz dessa polêmica entre vida (= o Senhor) e morte (= Baal) pode-se compreender melhor o fim misterioso experimentado por E. [Elias], ou seja, o seu arrebatamento ao céu sem passar pela morte. Sendo o herói do Deus vivo e doador da vida, E. não morre como Baal e seus devotos, mas vive junto ao senhor da vida.25

A própria vinda da carruagem de fogo é uma antecipação da descida do Espírito Santo em forma de língua de fogo, “Apareceramlhe, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles [os apóstolos]. E todos ficaram repletos do Espírito Santo [...]”26. A representação de Deus como um fogo que não queima também pode ser encontrada no Antigo Testamento no primeiro encontro de Deus com Moisés “O anjo de Iahweh lhe apareceu numa chama de fogo, no meio de uma sarça” 27, e na coluna de fogo, “[...] tu, Iahweh, cuja nuvem paira sobre eles, que tu marchas diante deles, de dia numa coluna de nuvem e de noite numa coluna de fogo.”28 Traça-se um paralelo situacional entre o arrebatamento de Elias e a ascensão de Jesus ao céu, “Dito isto, foi elevado à vista deles [os apóstolos], e uma nuvem o ocultou aos seus olhos”. 29 O paralelo entre Elias e Cristo também está colocado na alegoria da árvore da vida, pois ambos são “testemunhas do Deus vivo que dá a vida aos homens”30. A árvore da vida está presente tanto no livro do Gênesis, “Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e árvore da vida no meio do jardim [...]”31, quanto no Apocalipse, “No meio da praça, de um lado e do outro do rio, há árvores da vida que frutificam doze vezes,

23

LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. 2. ed. Trad. João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 2006, p. 16. 2 CRÔNICAS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 21, vers. 12-15, p. 607. 25 BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003, p. 351. 26 ATOS DOS APÓSTOLOS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 2, vers. 3-4, p. 1902. 27 ÊXODO. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 3, vers. 2, p. 105-106. 28 NÚMEROS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 14, vers. 14, p. 223. 29 ATOS DOS APÓSTOLOS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 1, vers. 9, p. 1901. De acordo com BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003, p. 351: “Trata-se de paralelos verbais e gramaticais e de paralelos situacionais (isto é, situações semelhantes, e assim por diante): Lc 7, 11-17 (o filho da viúva de Naim) e 1Rs 17, 17-24 (o filho da viúva de Sarepta); Lc 24, 49-53 e At. 1, 1-12 (a ascensão de Jesus) e 2Rs 2, 1-14 ( O arrebatamento de E.); Jo 1, 43 (o chamado de Filipe) e 1Rs 19, 19-21 (o chamado de Eliseu); Jo 4, 1-26 (a mulher [sem marido] samaritana) e 1Rs 17, 7-24 (a viúva de Sarepta); Jo 14, 13 (‘O que pedides em meu nome, farei’) e 2Rs 2,9 (‘Pede o que te devo fazer’); Jo 13, 33 e 2Rs 2,15-18 etc.”. 30 BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003, p. 351. 31 GENESIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 2, vers. 9, p. 36. 24

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UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

dando fruto a cada mês; e suas folhas servem para curar as nações.”32 Na passagem da transfiguração de Cristo, Elias aparece ao lado de Moisés como um dos dois profetas mais importantes do Cristianismo, “E eis que lhe aparecem Moisés e Elias conversando com ele [Jesus].”33 As duas representações encontram-se embaixo de púlpitos de madeira ornados com volutas (Figura 9 e 10). O púlpito é uma derivação do ambom cristão. A presença de dois púlpitos numa Igreja remete a essas antigas tribunas de leitura, pois a do lado sul

Figura 9. Púlpito Direito. Acervo pessoal.

servia para leitura das epístolas e a que ficava ao norte era usada para a leitura dos evangelhos. Como se pode ver na planta baixa no Anexo II, o frontão da Igreja está voltado para o oeste, portanto o púlpito que se encontra do lado direito com o painel do arrebatamento de Elias é o local onde deveriam ser lidas as epístolas; do lado esquerdo, onde se vê a representação do milagre de Elias no Carmelo, deveria ser lido o evangelho. De acordo com Wilfried Koch34, desde a Idade Média, do lado direito ficavam os homens e do lado esquerdo, as mulheres.

Figura 10. Púlpito Esquerdo. Acervo pessoal.

32

APOCALIPSE. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap. 22, vers. 2, p. 2166. MATEUS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. Cap.17, vers. 3, p. 1735. 34 KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilos arquitetônicos. 2. ed. Trad. Neide Luzia de Rezende. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 33

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Para os fiéis, que assistem ao ritual da missa em latim, o púlpito se coloca como um dos locais mais importantes da celebração. Além da leitura dos evangelhos e das epístolas, o púlpito é o lugar onde o sermão acontece. Sua importância se dá não só por ele ser proclamado na língua vernácula, mas também porque abriga o momento, no ritual litúrgico, em que o pároco fala diretamente ao fiel. Escolher duas cenas da vida de Elias para compor um dos espaços mais importantes dentro da igreja demonstra o peso que a imagem do profeta tem na constituição da Ordem Carmelita. Portanto, trata-se de um local estratégico, para onde todos devem olhar em determinado momento da missa, reforçando a presença de Elias no imaginário da Ordem Carmelita. De acordo com Heinz-Mohr, Elias “é considerado o primeiro eremita, tornando-se paradigma dos padres do deserto do Egito e dos monges gregos de Atos [Atos dos apóstolos] [...]”35. É por volta do século IX a.C. que o monte Carmelo torna-se um lugar de peregrinação e de meditação. Eremitas e monges migravam para o local no intuito de morar em suas cavernas e grutas, procurando uma vida de contemplação religiosa. A fama do Monte Carmelo e das pessoas que lá viviam espalhou-se pela Europa de tal forma que o imperador romano Vespasiano (69-79 d.C.) 36 se dirigiu ao local para obter dos eremitas que lá viviam a benção divina para empreender a Guerra da Judéia.

Esse fato, trazido por F. A. Pereira da Costa37, não deve levar à errônea conclusão de que o imperador romano Vespasiano era cristão. Em meados do século I, os evangelhos ainda estavam por ser escritos e o cristianismo ainda se encontrava em fase de expansão por meio da ação dos apóstolos. Os eremitas do Monte Carmelo provavelmente eram seguidores do profeta Elias, porém a aura mística que o local havia adquirido deve ter atraído pessoas de outras crenças religiosas, como o então predominante paganismo romano. Posteriormente, parte desses homens se converteria à fé cristã. Mais tarde, quando os apóstolos espalharam pelo mundo a luz dos Evangelhos, e convertidos então os carmelitas a fé cristã, refundiram o seu instituto segundo os princípios da nova lei. Nessa fase do seu desenvolvimento histórico são eles chamados: ora Terapeutas, Eremitas ou Anacoretas, ora Solitários, Ascetas ou Cenobitas. [...] Sob o abrigo das cavernas do monte Carmelo permaneceram ainda os religiosos por dilatados anos, até que no século V, e antes da invasão dos sarracenos, fundaram, propriamente dito, um mosteiro de anacoretas submetidos às regras de S. Basílio, ou, segundo outra versão, sob o regime de uma regra escrita no ano de 412, no idioma grego, pelo venerável João Silvano XLIV, patriarca de Jerusalém – tal como foi ditada pelos exemplos do profeta Elias. – É esta a primeira regra dos carmelitas, historicamente comprovada.38

A tentativa de estabelecer a Ordem Carmelita como a mais antiga de todas está

35

HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Tradução de João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1994, p. 142. Vespasiano foi o primeiro imperador da época intitulada “paz romana”, período de apogeu do Império Romano, inaugurando a dinastia Flaviana. Militar de renome, além de reprimir violentamente a revolta dos judeus na Judéia (Guerra da Judéia), comandou a conquista da ilha de Wright, restaurou a finanças do Império, proclamou-se imperador no Egito, reprimiu revoltas, aumentou a arrecadação dos impostos pelo Estado e construiu o anfiteatro Flaviano, mais conhecido como Coliseu de Roma. Fonte: KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr. 2008. 37 COSTA, F. A. Pereira da. A ordem carmelitana em Pernambuco. Recife: Arquivo Público Estadual, 1976. 38 COSTA, F. A. Pereira da. A ordem carmelitana em Pernambuco. Recife: Arquivo Público Estadual, 1976, p. 18, grifo meu. 36

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UMA ORIGEM PARA OS CARMELITAS: A AZULEJARIA DO PROFETA ELIAS NA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CARMO...

bastante clara no trecho citado acima. Não há indícios documentais que venham afirmar que os religiosos do Monte Carmelo tivessem adotado a regra de São Basílio39, ou mesmo a regra escrita por João Silvano XLIV. Quando o autor afirma historicamente comprovada, deve-se entender que a regra escrita em grego por João Silvano XLIV sobreviveu até os dias atuais, enquanto que a regra de São Basílio perdeu-se no curso do tempo. O autor toma este indício como evidência que provaria a antiguidade da Ordem Carmelita. É certo que Maria foi escolhida, desde o princípio, como patrona da ordem. Os fundadores do Carmelo viam na figura de Nossa Senhora a personificação da mais perfeita união com Deus, já que esta se entregou de corpo e alma aos seus desígnios. Fundada a ordem, esses primeiros carmelitas passaram a viver como ermitãos no Monte Carmelo, a exemplo da grande figura inspiradora do movimento, o profeta Elias. Ele passou a ser saudado como o fundador dos carmelitas, até mesmo por ter sido o primeiro eremita. No entanto, tal alcunha levanta um problema temporal, pois os monges que no Monte Carmelo viviam só passaram a se reconhecer como pertencentes a uma Ordem religiosa cristã, a de Nossa Senhora do Carmo, a partir do século XI d. C. e Elias viveu por volta do século IX a.C. Quase dois mil anos

separam, portanto, o seu fundador da fundação efetiva de “sua” ordem. Tal questão parece ter sido de extrema polêmica à época, já que foi necessária a “aprovação pontífica de Honório III e Gregório IX em 1229”40 para a confirmação de Elias como patriarca da ordem. Ou seja, o patriarca e fundador da Ordem Carmelita o é de direito, mas não o foi de fato. Contudo, durante alguns séculos a ordem o considerava “seu verdadeiro fundador no sentido estrito da palavra”41. Em algumas representações iconográficas de Elias, dentre elas a imagem do século XVIII existente no altar-mor da Igreja do Carmo em João Pessoa (Figura 11) e no painel D2 (Figura 12) do mesmo templo, o profeta aparece segurando uma pequena Igreja em uma das mãos. Segundo Heinz-Mohr “com um modelo de Igreja na mão aparecem, além dos eventuais fundadores, os grandes doutores da Igreja [...]”42. Corrobora com a afirmação o fato que em 1725 permitiu-se “a construção de uma estátua de Santo Elias na Basílica do Vaticano entre os fundadores das ordens”43 cujo custo foi repartido entre as seções da Ordem Carmelita. Em 1571 o Padre Antonio Gonçalves escreve o Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo, que trata da regra carmelitana e da própria história da

39

Basílio (329-379 d.C.) foi padre da Igreja no Oriente chegando a ser, em 370 d. C., o bispo de Cesaréia. Abandonou o cargo para viver de forma monástica e foi o criador das regras monásticas—eram apenas duas—que serviriam, mais tarde, de inspiração para São Bento. Fonte: KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr. 2008. 40 MORIONES, Idelfonso. O Carmelo Teresiano: páginas de sua História. Trad. Vitória. Disponível em: <http://www.ocd.pcn.net/ hp_1.htm#1>. Acesso em: 29 dez. 2007. 41 MORIONES, Idelfonso. O Carmelo Teresiano: páginas de sua História. Trad. Vitória. Disponível em: <http://www.ocd.pcn.net/ hp_1.htm#1>. Acesso em: 29 dez. 2007. 42 HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Tradução de João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1994, p. 183, grifo meu. 43 Texto original: “[...] it permitted the erection of a statue of St. Elias in the Vatican Basilica among the founders of orders (1725)”. KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http://www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr. 2008.

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Figura 11. Estátua do Profeta Elias – Altar-mor. Acervo Pessoal.

Figura 12. Estátua do Profeta Elias – Painel D2. Acervo Pessoal.

ordem. Mesmo sem expressar claramente, é possível perceber na escrita do padre a preocupação com o lapso temporal que existe entre o surgimento efetivo da ordem e a presença do profeta Elias no Monte Carmelo. No Capítulo 14, intitulado “No qual se declara o mistério da nuvem que o discípulo do profeta viu sair do mar no monte carmo, e como significou a virgem gloriosa nossa senhora”44, o autor realiza uma interessante explicação para a atribuição da fundação da Ordem a Elias. Segundo ele, a nuvem que o discípulo de Elias vê, quando sobe no Monte Carmelo após o massacre dos profetas de Baal, é uma alegoria para Nossa Senhora. O autor realiza um estudo comparativo levantando, dentro das passagens bíblicas, os

momentos em que as nuvens aparecem como símbolo divino e os autores que a relacionam com a imagem de Maria: Nam he isto meu: mas do sancto póntifice Medionalnenfe Ambrosio declarando aquelle passo de Esaias em que diz. O senhor assentando sobre a nuvem leve vem a egipto que significa a aflição deste misero mundo, ao qual vem Deos pela virgem significada pela nuvem, e era leve porque era virgem sem alguma carga de corrupção. O bem aventurado Sam Crisostomo declarando o mesmo lugar, entende por esta nuvem a carne que Christo recebeu no ventre virginal da gloriosa padroeira nossa, e ally o entende nicholao de lira. [...]. O docissimo Sam Jeronimo expondo o mesmo lugar de esaias diz. a nuvem leve, he o corpo da virgem gloriosa; [...].45

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GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo. [S.l.: s.n.], 1571, p. 57. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL037727/ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out. 2008. Obs: Para as citações de Gonçalves (1571) optei, para que haja uma melhor compreensão do texto, por desdobrar as abreviaturas e substituir as letras “f” por “s”, quando necessário. 45 GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo. [S.l.: s.n.], 1571, p. 57. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL037727/ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out. 2008.

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Se Maria é representada como uma nuvem, na leitura alegórica das escrituras, Elias se torna o fundador de fato da Ordem Carmelita, pois é ele quem traz a amada mãe para o Monte Carmelo. Aquela área infértil, que sofria com uma seca de três anos imposta por Javé, frutificaria a partir da chegada da nuvem de chuva. Pois que mais fundamental causa se, pode achar que com mais razão possa dar nome, que aquelles frades fé chamem de Nossa Senhora Virgem gloriosa Maria, cujo fundador em espirito prophetico a mostrou ao mundo, mil annos antes que ella nascesse?46

Estabelecer um vínculo direto com Elias, se colocando como descendente de uma cultura fundada pelo profeta, proporciona a Ordem Carmelita uma vantagem acima das outras. Seu fundador não poderia ser mais perfeito, comparando-se ao próprio Cristo. Soma-se a esse fato, a adoção, como matrona da ordem, a maior figura feminina do cristianismo: Maria. Em parte, isso explica o porquê das demais ordens religiosas contestarem a paternidade do Carmo ao profeta Elias e a necessidade de os frades se reafirmarem como seus descendentes diretos. Como já foi dito, as alegorias da Igreja de Nossa Senhora do Carmo na Paraíba colonial buscam, por meio da História da Ordem Carmelita, introjetar um modelo de conduta cristão que conduza o fiel pelo caminho da salvação. Desta forma, o profeta Elias se apresenta como o exemplo máximo de dedicação a Deus, sendo visto, até os dias atuais, como a figura que inspirou toda a cultura histórica carmelita.

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Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, Marcos Cavalcanti de. Hagiografia carmelitana: espiritualidade. João Pessoa: A União, 2001. BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. BORRIELLO, L. et al. (dir.). Dicionário de Mística. Trad. Benoni Lemos et al. São Paulo: Paulus, 2003. COSTA, F. A. Pereira da. A ordem carmelitana em Pernambuco. Recife: Arquivo Público Estadual, 1976. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo. [S.l.: s.n.], 1571, p. 57. Disponível em: <http:// bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL037727/ ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out. 2008. HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Tradução de João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1994. KNIGHT, Kevin (Ed.). Catholic Encyclopedia. [S.l.: s.n.], 1907. Disponível em: <http:// www.newadvent.org>. Acesso em: 26 abr. 2008. As traduções do inglês são de Berttoni Cláudio Licarião (Yázigi-João Pessoa). KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilos arquitetônicos. 2. ed. Trad. Neide Luzia de Rezende. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. 2. ed. Trad. João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 2006. MORIONES, Idelfonso. O Carmelo Teresiano: páginas de sua História. Trad. Vitória. Disponível em: <http://www.ocd.pcn.net/hp_1.htm#1>. Acesso em: 29 dez. 2007. SCIADINI, Frei Patrício. O Carmelo: História e espiritualidade. São Roque: Edições Carmelitanas, 1993. SEBASTIAN, Santiago. Contrarreforma y Barroco. Madrid: Alianza Forma, 1989.

GONÇALVES, Padre Antonio. Compendio das Chronicas da Ordé de Nossa Senhora do Carmo. [S.l.: s.n.], 1571, p. 58. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL037727/ULFL037727_item1/>. Acesso em: 12 out. 2008.

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L´IMAGERIE POPULAIRE

L’imagerie populaire

Annie Duprat Professora de História Moderna na Université de Cergy-Pontoise/ CICC – Laboratoire communication et politique CNRS/ UPR 3255 – France. Autora de, entre outros livros, Révolutions et mythes identitaires. Mots, molences, mémoire. Paris: Nouve Monde Éditions, 2009.

RÉSUMÉ L’imagerie que l’on appelle « populaire » est à la fois bien connue et souvent ignorée. Largement diffusée, surtout à partir du XIXe siècle, dans les milieux les plus divers, elle a participé à la construction des imaginaires sociaux des populations ; accompagnant l’exil de Napoléon Ier, elle a entretenu la flamme de la gloire impériale, créant de ce fait une véritable geste héroïque, ce que l’on a nommé la « légende napoléonienne ». Multiforme, elle est toujours claire et très lisible car son objectif est de toucher le plus grand nombre de personnes. Mais, si l’imagerie d’Épinal est bien connue, il existe un océan d’images pour lesquelles il est important à présent de s’interroger. L’article présente quelques études de cas à partir de documents choisis à travers les siècles.

ABSTRACT The imagery is called “popular” is both well known and often ignored. Widely disseminated, especially from the nineteenth century in all walks of life, she has participated in the social construction of imaginary people; accompanying the exile of Napoleon, She has maintained the flame of imperial glory, thereby creating a truly heroic, what has been called the “Napoleonic legend”. Multifaceted, it is always clear and very readable because its goal is to reach as many people. But if Epinal imagery is well known, there is an ocean of images for which it is important to this inquiry. The article presents some case studies from documents selected through the centuries.

Recebido em: 10/05/2009

Aprovado em: 05/08/2009

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO III, N. 5, P. 23-32, NOVEMBRO 2009

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ANNIE DUPRAT

L’imagerie populaire

Un océan d’images méconnues Tout le monde connaît les figures des cartes à jouer et celles des cartes postales ou encore les belles joues roses et les boucles blondes du bébé Cadum, un exemple parmi d’autres des centaines de publicités qui s’étalent sur tous les panneaux d’affichage. Mais si ces images ont vocation à être largement diffusées et, de ce fait, popularisées, les considérons-nous comme des témoignages historiques et artistiques dignes d’intérêt? En France, on les regroupe sous le terme “imagerie populaire” 1 ? Images de catéchisme ou de confrérie, images publicitaires insérées dans les tablettes de chocolat ou reçues à l’école dès que le nombre des “bons points” acquis par un travail et une conduite irréprochables était suffisant, ou encore vignettes illustrées en tous genres, il existe un très grand nombre de ces figures aux lignes simples et à la lisibilité claire circulant dans toutes les couches de la société depuis la fin du XVIIe siècle. Si l’on ne retenait qu’un seul critère, celui de la mémorisation de ces figures par un public nombreux, ne devrait-on pas les considérer comme telles? Donner une définition unique qui soit pleinement satisfaisante pour tous les champs de la recherche sur l’imagerie populaire est difficile; on s’accordera, dans le cadre très bref de la présente réflexion, à s’en tenir à une 1

définition large, délibérément très extensive: “Ensemble d’images faciles à comprendre et destinées à une grande diffusion”. Pourtant, il est difficile, encore aujourd’hui, de classer ces documents, le critère de la reproductibilité technique n’étant pas unique puisque l’imagerie d’Épinal fait une part importante au lieu de fabrication, Épinal (ville de Lorraine, dans la région est de la France), dont le nom est devenu quasiment générique. On mettra donc sous le vocable “imagerie” une production d’estampes destinées à être vendues à la feuille et à faible prix soit par des libraires – qui sont souvent éditeurs-libraires jusqu’au milieu du 19è siècle étant donné la confusion des métiers – soit par l’intermédiaire de colporteurs. Cette production concerne le plus souvent des sujets religieux, mais elle peut comprendre des scènes d’actualité; ce sont des images sanglantes ou extravagantes, extraites des “canards”, nom familier donné aux journaux populaires qui prolifèrent entre le XVIIe et le XIX e siècles ou des productions de la Bibliothèque Bleue, ces livres peu onéreux fabriqués et vendus à Troyes, ville de Champagne); ce sont aussi des portraits, des sujets de la vie quotidienne traités dans une veine plus ou moins satirique, des thèmes littéraires (récits traditionnels dérivant des fabliaux médiévaux, des proverbes ou des fables de La Fontaine par exemple).

Nicole Garnier, L’imagerie populaire française, vol. 1 Gravures en taille-douce et en taille d’épargne, ATP et RMN, 1990 ; vol. 2, Images d’Épinal gravées sur bois, ATP, RMN et BNF, 1996 (avec la collaboration de Maxime Préaud et de Suzanne Valladas). Un premier état de mes recherches en ce domaine a été publié en 2001 : voir Annie Duprat, " L’imagerie populaire du Grand Ouest ", Annales de Bretagne et des pays de l’ouest, tome 108, 2001, p. 45-66.

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L’imagerie populaire excelle dans l’hagiographie et dans une iconographie religieuse providentielle et consolatrice2. Mais elle s’attache également à multiplier les rébus, les fables animalières ou les"mondes à l’envers “et autres "mondes renversés3”, les comptines et les leçons de morale à destination des enfants, ainsi que des histoires amusantes ou moralisatrices. Les conservateurs de musées et de bibliothèques, comme les collectionneurs, mettent encore à part l’immense fonds iconographique des cartes postales, encore peu exploité mais dont le contenu, des plus variés, est prometteur pour les historiens. De nos jours, on peut encore admettre que les différents logos illustrés, les cartes de téléphone, les "magics" ou les "magnets", quelque soit le nom qu’on leur donne, jouent le même rôle que l’imagerie populaire traditionnelle, même si leur fonction est le plus souvent publicitaire. Enfin, la reproductibilité technique massive, qui a commencé au cours de la seconde moitié du XVII e siècle avec le perfectionnement de la technique de l’eau forte et la multiplication du nombre d’éditeurs d’estampes à Paris, puis avec la maîtrise des techniques de reproduction peu onéreuses (gravures sur bois, lithographie au XIXè siècle, photogravure, offset, héliogravure, impression numérique enfin). Ces changements s’accompagnant de l’accroissement considérable du public potentiel, les sujets traités par l’imagerie populaire changent également; les masses acquièrent une culture

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commune, en particulier dans le domaine de l’Histoire, qui est faite du culte des héros et des braves; les imagiers la maison Pellerin d’Épinal contribuent à la création de cette culture. Des modifications sociales importantes s’opèrent alors et l’on passe de l’atelier familial, où la femme vendait ce que l’homme fabriquait à des ateliers où les ouvriers se comptent par dizaines. Lorsque, autour des années 1850, la maison Pellerin commence à utiliser la lithographie, les tirages sont beaucoup plus élevés, la diffusion se fait plus large, les thèmes et public changent: "l’imagerie d’Épinal" acquiert le statut de "lieu de la mémoire nationale" en produisant de nombreuses scènes d’Histoire de France destinées aux enfants. L’intérêt de ces images est immense; malheureusement, elles ont disparu ou sont pour la plupart dispersées, n’ont guère attiré l’attention des historiens et des historiens de l’art et ne sont pas mises en catalogues4. Témoin des imaginaires mentaux des sociétés anciennes, proche de nous par la chronologie mais très éloignée par les références et les pratiques culturelles, l’imagerie populaire a pourtant été bien étudiée par les ethnologues et par les folkloristes5. Mais il existe encore tout un pan de la production, encore plus difficile à saisir, qui consiste en dominoterie, papiers peints, calendriers, jeux de l’oie et autres. Nous avons choisi de privilégier ici les usages sociaux de l’image. Ainsi allons-nous nous interroger sur les objectifs utilitaires des images:

Christophe Beauducel, " À propos des images populaires. Étude d’une image caennaise ", Nouvelles de l’estampe, n°172, mars 2000, p. 6-17, consacrée à l’image Cantique spirituel de St e Marie-Madeleine, produite à Caen à la fin du XVIIème siècle. La revue les Nouvelles de l’estampe a récemment consacré quelques précieux numéros pour cette question : n°185-186, déc. 2002-fév. 2003 sur la gravure sur bois depuis 1400 et n°197-198, déc. 2004-fév 2005, sur la guerre 14-18 dans l’imagerie d’Epinal. Voir le livre précurseur d’Achille Bertarelli, L’imagerie populaire italienne, Paris, Duchartre et Van Buggenhoudt, 1929. Jean Adhémar, L’imagerie populaire française, Milan, 1968. Mais les nombreux papiers de commerce avec des en-têtes illustrées conservées à la B.N. Estampes dans la série Li ne sont jamais consultés. En particulier via les revues Ethnologie française et Terrains.

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L’image est-elle une source d’information et comment opère-t-elle? L’image est-elle engagée comme on peut le voir dans le cas de certaines séries iconographiques de l’époque révolutionnaire? Dans quelle mesure participe-t-elle à l’édification pieuse de la jeunesse avec l’exemple d’une image de catéchisme?

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Les usages sociaux de l’imagerie populaire Pour être vues, les images doivent être faites mais doivent également circuler, c’est à dire être diffusées et exposées à la vue du plus grand nombre, être comprises et entrer dans la mémoire collective. L’imagerie, souvent en couleurs depuis le début du XVIIIe siècle, s’adresse prioritairement à un public peu lettré d’où son caractère volontiers didactique, le but visé étant davantage l’édification que l’esthétique; elle accompagne les activités quotidiennes, sert à diffuser une culture commune allant de l’astrologie aux proverbes et de la satire aux remèdes médiciaux; parfois, elle rend compte d’une actualité héroïque ou enseigne des valeurs morales ou religieuses6. Au cours des XVIIe et XVIII siècles, on observe l’apparition de dynasties familiales d’éditeurs d’estampes qui diffusent leur production grâce à des bureaux de vente à travers tout le pays, comme l’avait signalé il y a longtemps Jean Adhémar qui insistait tout particulièrement sur l’Ouest de la France avec les Bonnemer à Falaise, les Hoyau à Chartres, les Sevestre, les

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Perdoux et les Letourmi à Orléans, ainsi que des ateliers dont le rayonnement est grand, comme pour l’imagerie chartraine qui est illustrée par la famille Garnier-Allabre à Chartres ou les maisons Portier et Leloup au Mans7. Au cours du XIXè siècle, la production d’images, à présent devenue quasiment industrielle, est essentiellement celle de l’est de la France, avec des centres de production tels que Metz, Epinal, Nancy, ou Wissembourg8. Les sujets traités et le graphisme des images populaires appartiennent à une tradition du dessin classique car toute rupture risquerait de heurter le client. Au cours du XVIIe siècle, lorsque s’est développée la gravure sur cuivre à l’eau-forte, qui nécessitait des moyens techniques supérieurs, donc un coût financier augmenté, les imagiers se sont repliés uniquement sur la technique de la gravure sur bois. Sous l’Ancien Régime, les images populaires ne requièrent pas l’autorisation de la Direction de la Librairie, à la différence de l’écrit, sauf si elles sont assorties d’une lettre importante. Cette particularité explique le laconisme de beaucoup d’estampes, ainsi que la pratique d’inclure une image dans un cadre indépendant et réutilisable pour d’autres comportant le texte (souvent une chanson ou une complainte traditionnelle). Enfin, notons que la plupart des images produites en province font la part belle aux événements parisiens, même lorsque des événements similaires se sont déroulés localement; citons l’exemple flagrant de l’imagerie mancelle concernant l’envol en ballon qui a eu lieu à

En 1688, Johannes Teyler obtient de faire protéger sa technique d’impression en couleurs dite " à la poupée " par un privilège des Etats généraux de Hollande pendant 25 ans, Anatomie de la couleur. L’invention de l’estampe en couleurs, ss dir. Florian Rodari, Paris/Lausanne, BNF/Musée Olympique, 1996, p. 31. Jean Adhémar, L’imagerie populaire, op. cit., supra ; René Saulnier, L’imagerie populaire du Val de Loire (Anjou, Maine, Orléanais, Touraine), Angers, 1945 ; Pierre-Louis Duchartre et René Saulnier, L’imagerie populaire, Paris, 1925 ; Pierre Casselle, “Recherches sur les marchands d’estampe d’origine cotentinoise à la fin de l’Ancien Régime”, Bulletin d’histoire moderne et contemporaine, 1978, Paris, p. 75-93. Dominique Lerch, Imagerie populaire en Alsace et dans l’est de la France, Nancy, 1992.

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Paris en 1783: l’imagier et marchand d’estampes Portier du Mans choisit de représenter cette scène en négligeant la chronique locale mancelle, en particulier l’envol qui se déroule au Mans le 3 mai 17849. On trouve des exemples de ce type à Chartres, Tours, Orléans et sans doute dans de nombreux autres foyers de l’imagerie populaire. Les deux exemples développés ci-dessous seront placés sous l’exergue de la remarque de Champfleury, un érudit qui avait contribué au cours du XIXe siècle à donner à l’imagerie populaire ses lettres noblesse: De l’imagerie découlent encore divers enseignements historiques et, si on ne juge pas digne de faire entrer, même au dernier rang, l’image dans l’histoire de l’art, elle tiendra sa place au premier rang dans l’histoire des mœurs10.

L’image populaire sous l’ancien régime Dès le début du XVIIe siècle, la production de gravures abandonne le domaine politique qui était prépondérant au siècle précédent à cause des guerres de Religion pour se tourner vers le genre burlesque, la cocasserie, les satires sociales et les proverbes moralisateurs ou acides. Un nouveau genre apparaît, celui des "Cris de Paris", qui met en scène avec tendresse et amusement les petits métiers et la vie bruyante d’une grande ville11. Tandis que l’imagerie religieuse se renforce, avec la production de figures de saints et de récits de miracles, la littérature populaire de la "Bibliothèque Bleue", à cause de la couleur bleue du papier de couverture est souvent

illustrée (almanachs, horoscopes, remèdes de médecine, récits de crimes, contes, proverbes et facéties). L’atelier de Jacques Lagniet (vers 1600-1675), "marchand-imagier" qui tient boutique à Paris sur la rive droite de la Seine, rue Saint-Martin, avant de s’installer sur le quai de la Mégisserie, est prépondérante au XVIIe siècle, en raison du grand nombre et de la variété de ses productions. Fabricant et marchand de gravures sur bois, il est à la tête d’un atelier comportant un grand nombre de compagnons, ce qui explique une production très importante: un Recueil des plus illustres proverbes, une Vie de Tiel Wlespiegle, les Adventures du fameux Don Quixote de la Manche et différentes planches isolées qui correspondent parfois à des commandes passées par d’autres éditeurs d’estampes. Célèbre en son temps, son Recueil des plus illustres proverbes est organisé en trois livres: des "proverbes moraux", des "proverbes joyeux et plaisants" et une dernière partie annoncée en ces termes, "la vie des Gueux en proverbes". Cependant, si le dessin est toujours précis et la composition très inventive, l’habitude d’inclure des éléments de la lettre à l’intérieur de l’image, dans un désordre apparent mais qui correspond à la volonté maîtrisée de dire le maximum de choses de manière ludique, rend parfois difficile la compréhension de l’image. Les estampes de Jacques Lagniet ornent très souvent les livres d’histoire, sans que son nom apparaisse, tant cet homme, célèbre de son temps, a sombré dans un oubli dont sa production abondante est peutêtre justement la cause. Il est vrai aussi que la lisibilité de ses estampes n’est pas immédiate aujourd’hui car il intègre des textes parfois trop

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Annie Duprat, " L’imagerie populaire du Grand Ouest ", Annales de Bretagne et des pays de l’Ouest, tome 108, 2001, p. 45-66. Champfleury, Histoire de l’imagerie populaire (1821-1889) Paris, Dentu, 1869, rééd. Cœuvres, Ressouvenances, 2004. 11 Vincent Milliot, Les cris de Paris ou le peuple travesti. Les représentations des petits métiers parisiens (XVIème-XVIIIème siècles), Publications de la Sorbonne, 1995. 10

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codés pour être facilement compréhensibles à l’intérieur même de l’image12. La Révolution française Un siècle plus tard, avec la Révolution, les images se multiplient et se font plus claires, plus directes, participant avec efficacité aux grands enjeux du moment. L’assassinat d’une jeune fille de 19 ans le 22 mars 1796 dans des conditions restées obscures dans la forêt de Blandouët (province du Maine) alors qu’elle se rendait au marché a suscité une grande émotion et généré de multiples images d’actualité en cette période troublée. Pas moins de trois estampes sont produites, l’une par Letourmy, l’autre par Portier du Mans, la troisième par Godard d’Alençon, sans que l’on puisse distinguer un ordre chronologique entre ces trois représentations différentes d’un même événement13. La maison Letourmy, la plus célèbre des trois, installée à Orléans depuis 1774, est exemplaire d’une croissance extraordinaire au XVIIIe siècle puisqu’elle compte une centaine de dépositaires dans toute la France. Les productions Letourmy obéissent presque toujours aux mêmes règles: une image coloriée au centre de la planche entourée sur les quatre côtés de textes qui, soit explicitent la scène centrale en racontant l’événement, soit l’accompagnent par des chansons, des complaintes, des prières ou des comptines. Racontant des faits-divers, des vies de saints ou des événements marquants de l’histoire de France, comme la prise de la Bastille, les Letourmy jouent au XVIIIe siècle un rôle équivalent à celui que joueront les Pellerin avec l’imagerie d’Épinal au XIXe siècle.

Une gravure en couleurs de grand format (36 x 31 cm) issue de l’atelier de JeanBaptiste Letourmy, Complainte véritable sur la mort de Perrine Dugué, montre crûment l’assassinat de Perrine Dugué. Si l’histoire est vraie, l’identité des criminels n’est pas clairement établie, mais une rumeur circule bientôt: "la sainte aux ailes tricolores"fait des miracles, en particulier en guérissant les femmes stériles et en faisant marcher les paralytiques… La légende napoléonienne La légende napoléonienne, qui s’est construite progressivement à partir de l’abdication de Napoléon Ier, s’est renforcée après sa mort le 5 mai 1821. Le principal vecteur de diffusion des images et des histoires exemplaires destinées à composer une légende de nature hagiographique à la gloire de l’Empereur est encore la maison Pellerin d’Épinal. L’histoire de cette fabrique remonte au milieu du XVIIIe siècle lorsque Nicolas Pellerin (1703-1773) s’installe marchandcartier à Épinal; lui succède son fils JeanCharles (1756-1836), qui est en même temps horloger (la proximité des métiers de l’image avec ceux de l’orfèvrerie ou de l’horlogerie est ancienne et se justifie par la minutie du travail). Dès les débuts de l’Empire, la maison Pellerin participe à une exposition organisée à Paris par Napoléon. Condamné en 1816 pour diffusion d’images bonapartistes, Jean-Charles Pellerin est cependant gracié. Dès lors, la fabrique Pellerin ne cesse de se développer, surtout avec l’invention des cartons à découper 14 par

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Annie Duprat, Images et Histoire. Outils et méthodes d’analyse des documents iconographiques, Paris, Belin, 2007, p. 134. Voir aussi http://expositions.bnf.fr/bosse/reperes/index.htm ou encore le site du château de Sceaux, http://www.collections.chateausceaux.fr/PreviewsLis.htm?idlist=1&record=19104747313919229291 . 13 Annie Duprat, " Provinces-Paris ou Paris-provinces ? Iconographie et Révolution française ", Annales historiques de la Révolution française, n°330, oct-déc 2002, p. 9-27, http://ahrf.revues.org/document738.html. 14 Ce sont des figurines illustrées.

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Charles-Nicolas (1827-1887) et le passage progressif à la lithographie à partir de 1852. Pellerin, qui absorbe ses concurrents comme la maison de Charles Pinot, acquiert un renom national et même international; le succès de sa production est sans doute dû aux thèmes iconographiques choisis, qui sont soit des hagiographies de facture simple, soit des récits historiques. L’imagerie Pellerin a beaucoup contribué au façonnement des mentalités collectives au XIXe siècle. Le document présenté ici (Figure 1) raconte la Bataille des Pyramides, qui s’est déroulée lors de la campagne d’Egypte le 21 juillet 1798, mais cette gravure sur bois coloriée est bien postérieure à l’événement puisque le dépôt légal atteste de la date du 7 juillet 1830. De dimensions moyennes

(42cm x 63cm), elle est construite de façon parfaitement géométrique: à droite, les troupes françaises autour de Bonaparte composent une ligne brisée et ouvrent le feu sur les mamelouks, les janissaires et les spahis autour de leur chef Mourad Bey qui, sabre dressé, s’élancent vers eux. Au premier plan et au centre de l’image, on voit trois victimes portant l’uniforme des mamelouks et des trophées d’armes. Le paysage au fond offre deux lignes de fuite: à droite, vers un fortin (barrières en bois) dont les bâtiments sont identifiés par les croissants de l’Islam (l’ennemi à vaincre), à gauche vers des pyramides (référence à une gloire ancienne à atteindre). La lettre, qui fait montre de beaucoup de respect à l’égard de l’adversaire, explique la tactique des troupes de Bonaparte:

Figure 1. Bataille des Pyramides, par Georgin, 1838, Imagerie Pellerin à Épinal (collection Annie Duprat)

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ANNIE DUPRAT L’armée française, victorieuse à Chébreisse, arrive le 21 juillet 1798 au pied des pyramides. Les Mamelouks, au nombre de 13 000, appuyés sur le camp retranché d’Embaleh, où se trouvent 20 000 janissaires et spahis avec 50 pièces de canon l’attendent avec confiance, le brave Mourad Bey à leur tête. Bonaparte fait de ses cinq divisions cinq bataillons carrés et se porte en avant en leur disant: "Français, songez que du haut de ces pyramides quarante siècles vous contemplent". Les Mamelouks s’ébranlent et fondent rapidement sur eux. Le général français les laisse approcher pour les séparer du camp et de manière à ce qu’ils se trouvent tout à coup assaillis par le feu croisé de nos cinq divisions. Les Mamelouks font des efforts inouïs pour les enfoncer; ils périssent foudroyés par le feu de nos carrés, comme sous les murs d’autant de forteresses. Le camp des ennemis est enlevé à la baïonnette; ses trésors, ses riches bagages, 400 chevaux, des vivres dont les Français manquaient depuis plusieurs jours, tombent au pouvoir des vainqueurs et la possession du Caire est assurée.

Tous les détails de cette image réalisée par François Georgin (1801-1863), le plus connu des imagiers, auteur d’environ 200 gravures sur bois, soit plus du dixième de la production Pellerin, contribuent à exalter la figure du grand empereur triomphateur. Les images de catéchisme Le XIX e siècle a été le théâtre d’une entreprise de reconquête catholique de la France par des missions, par l’organisation de pèlerinages, la construction d’églises et le renouvellement de la catéchèse. Des prêtres, mais aussi des particuliers, composent des catéchismes à destination des enfants qui associent deux contraintes: dispenser l’enseignement de la doctrine chrétienne de la façon la plus efficace possible tout en délivrant des considérations morales fortes.

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Les maisons d’éditions de ces livres de catéchisme dont la pédagogie est fondée sur l’utilisation systématique d’images rencontrent un grand succès: la Bonne Presse pour Le Grand catéchisme en images en 1884 et Tolra pour le Grand album d’images pour l’explication du catéchisme en 1899. La planche présentée ici (Figure 2) est extraite de l’album de la maison Tolra, qui choisit pour les enfants le registre de la morale davantage que celui de la doctrine; le projet pédagogique d’ensemble est "voir pour croire". L’éditeur a d’ailleurs pris soin de transposer ses images sur des plaques de verre afin de permettre des projections et donc un commentaire collectif15. Le document, intitulé Péchés de langue est ancré dans les représentations de la vie quotidienne avec une référence à l’iconographie de la presse à grand tirage de façon à créer chez le jeune une familiarité avec l’objet et à stimuler un sentiment d’appartenance. Par ailleurs, cette image joue sur plusieurs registres, celui de la morale, de la pastorale mais aussi de l’histoire et du souvenir des victimes de la Révolution de 1789. Péchés de langue planche de grande taille (35cm x 48cm) figure dans le chapitre "vérités, devoirs et sacrements". Sous la figure tutélaire de deux religieuses et d’un prêtre (que l’insertion dans un cadre transforme en figures de saints), un groupe (qui ressemble à une famille) se promène paisiblement dans la forêt. Un homme, véritable paterfamilias bourgeois et silencieux, marche seul en avant; deux jeunes femmes bavardent et l’une le désigne du doigt à l’autre; une petite fille, près de la rivière où deux femmes aux visages ridés et peu amènes sont occupées à bavarder tout en lavant le linge, est grondée par une jeune femme que l’on suppose être sa mère. La

Isabelle Saint-Martin, Voir, savoir, croire. Catéchisme et pédagogie au XIXe siècle, Paris, Champion, 2003.

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lettre en bas de l’image explique que "une petite fille a dérobé un fruit. Elle le cache. Sa mère veut lui faire avouer son larcin, elle nie effrontément". En bas de l’image, dans trois rectangles on voit un chat, figure de l’hypocrisie, des guêpes, figures de la médisance, et, au centre, "une méchante langue entourée de feu: la langue est comme le feu, quels ravages elle cause". Le détail de la lettre donne des explications absolument indispensables à la compréhension de l’image: les religieuses sont des martyres mises à mort en Chine en 1879, le prêtre est "M. Durand et nombre de prêtres pendant la Grande Révolution qui ont refusé de se sauver la vie par un mensonge", comme on peut le lire sur l’image. On voit que, sans ces informations écrites, le document serait incompréhensible.

Le dossier de l’imagerie populaire est immense car il peut être étendu à toutes les illustrations figurant sur divers supports (timbres postes et billets de banque, publicités commerciales, logos institutionnels ou badges, liste non limitative). Parvenus à la conclusion de ce bref article programmatique, nous souhaiterions appeler à une enquête qui pourrait être conduite dans les grands fonds des imprimeurs éditeurs d’estampes de second rang; les hypothèses de classement et de travail devant prendre en compte de façon première les usages sociaux de ces images (édification morale, connaissance de l’histoire, construction d’une identité etc…). Une enquête de ce type aurait le mérite de combler une lacune importante de l’histoire culturelle qui, pourtant, occupe un espace considérable dans l’historiographie contemporaine16.

Figure 2. Péchés de langue, extrait du Grand album d’images pour l’explication du catéchisme de la maison Tolra, 1899 (collection Isabelle Saint-Martin). 16

Jean-Yves Mollier (dir.), La lecture et ses publics à l’époque contemporaine. Essais d’histoire culturelle, Paris, PUF, 2001, 186 p. Traduction en portugais/brésilien, A Leitura e Seu Publico no Mundo Contemprâneo. Ensaios sobre Historia Cultural, Sao-Paulo, Autêntica, 2008.

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IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

Imagens de Babel na Idade Média: entre a arquitetura real e o imaginário da arquitetura

Artur Simões Rozestraten Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Moura Lacerda e das Faculdades COC, ambas em Ribeirão Preto. Autor de, entre outros artigos “Representação do projeto de arquitetura: uma breve revisão crítica”. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP. v. 25, 2009.

RESUMO: No século XI artistas da Europa ocidental criaram as primeiras formas plásticas para representar Babel. Que formas plásticas foram usadas para compor este imaginário de Babel? Que relações existiriam entre essas imagens de arquiteturas e a arquitetura real da época? Ao submergir em certos períodos da história da arte e aflorar em outros, as imagens de Babel evidenciam a kunstwollen de certos grupos sociais, e materializam relações poéticas entre a arquitetura vivenciada e a arquitetura de fantasia. Este artigo estuda as imagens desta cidadetorre na arte européia medieval entre o século XI e XV, procurando aproximar-se dos contextos nos quais foram criadas, e das poéticas e visões de mundo que as originaram e que delas afloram continuamente. PALAVRAS-CHAVE: iconografia da arquitetura, imaginário e arquitetura, representação da arquitetura.

ABSTRACT: At the XIth century Eastern European artists created the first artistic forms for Babel. What plastic forms had been used to compose this Babel’s imaginary? What relations did exist between these architectural images and the real architecture at the time? Submerging in certain periods of the history of the art and arising in others, the images of Babel evidence the kunstwollen of certain social groups, and materialize poetical relations between the lived architecture and the fantasy architecture. This article studies the images of this city-tower in medieval European art between the XI and the XV centuries, looking for the contexts in which they were created, and the poetics and worldview that originated them, and continuously arise from them. KEYWORDS: architecture iconography, architectural imaginary, representation of the architecture.

Recebido em: 09/06/2009

Aprovado em: 05/08/2009

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Imagens de Babel na Idade Média: entre a arquitetura real e o imaginário da arquitetura

Babel é aqui Eis que a língua dos arquitetos deixa de ser a mesma dos entalhadores de pedras, e a destes a mesma dos pedreiros... Cada corporação se vê presa na especificidade incomunicável de sua prática Paul Zunthor (1997, p.94) (Tradução do autor)

As mais antigas imagens de Babel atualmente conhecidas são iluminuras datadas entre os séculos XI e XV. São imagens em tamanho reduzido, miniaturas, que têm a função de iluminar, ilustrar ou ornar, textos manuscritos, dispostos ao seu lado, em geral de conteúdo religioso. Estas imagens de uma arquitetura mitológica são formas artísticas que dialogam com dois universos distintos e complementares: o universo das arquiteturas reais vivenciadas pelos artistas e o universo de arquiteturas fantásticas inventadas pela imaginação. E assim como as arquiteturas reais, a imaginação sempre alça vôo a partir de um certo contexto cultural, social e histórico. Tratando-se de imagens tão intimamente relacionadas à palavra, o estudo da relação entre imagem e texto, certamente se constituiria em um tema denso para cada uma das iluminuras existentes. Estariam estas imagens a acompanhar o texto do Gênesis, ou outras passagens? Que conteúdos tensionariam texto e imagens? Ao se concentrar exclusivamente nas

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imagens este artigo – que é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a iconografia de Babel – não se aprofunda nas relações entre texto e imagem, seus desdobramentos e aspectos literários, o que, sem dúvida, pode ser feito, com mais propriedade por pesquisadores de outras áreas. Fica o registro desta sugestão de enfoque que certamente poderá contribuir à compreensão do imaginário da Europa ocidental na Baixa Idade Média. Mas, independentes de seus textos anexos, as imagens autônomas de Babel podem ser interrelacionadas e associadas, sincronicamente, à arquitetura real da época. E é isto o que se fará aqui. Nas iluminuras em foco predomina a representação de Babel como torre, e não exatamente como cidade, muito embora no livro do Gênesis haja menção a uma cidade e uma torre. Estas torres em miniatura são edifícios independentes, isolados, com aspecto militar, diferentes das torres de igreja. Tratando-se de um tema associado ao texto bíblico, em pleno gótico, poderia se supor o predomínio de imagens de torres campanárias, mas não é o que a iconografia mostra. As formas arquitetônicas desenhadas nos manuscritos da Europa ocidental até o século XVI são muito semelhantes às torres medievais da época, comuns da Itália à Inglaterra. Como exemplo: as torres francesas do castelo de Foix (séc. XI) (Figura 1), das muralhas de Carcassonne e Aigues-Mortes

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IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

Figura 1. As três torres do Castelo de Foix, em Foix, França. Fonte: Disponível em < http://www.frenchtours.com.au/cex1.php> Acesso em 07/01/09

(séc. XIII), do castelo de Vincennes (séc. XIIXIV), e de La Rochelle (de la Lanterne, do séc. XV, e de la Chaine e St. Nicolas, de fins do séc. XIV); e a torre de Londres, na Inglaterra (séc. XI). Os castelos de pedra, na história da arquitetura medieval, associam-se ao declínio do Império Carolíngio e, conseqüentemente, à transferência forçada do poder político centralizado para vários vassalos, ocorrida em torno do ano 1000. Substituindo o antigo castellum medieval feito de madeira e terra com paliçada, os edifícios em pedra afirmam a força da ascensão da vassalagem ao poder.

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Nestes castelos, como um aperfeiçoamento da engenharia militar, foram introduzidas torres cilíndricas, a partir do séc. XII, por sua maior resistência aos impactos comparadas com as antigas torres quadrangulares (BUR, 1998). Assim como na arquitetura real, as variações sobre a imagem da arquitetura da torre consideram plantas quadradas ou plantas circulares. Já a volumetria destas torres de Babel nas iluminuras é prismática reta, ou então escalonada 1 , também chamada telescópica, por ter pisos sucessivos com tamanho decrescente2 (Figuras 2 e 3).

Entre a torre com volumetria escalonada e o zigurate há uma diferença: a rampa externa espiralada. Na iconografia esta solução de rampa externa só se apresentada na iluminura da Bible Historiale de Jean de Berry, na França, entre 1390 e 1400, e marca um segundo momento da história da imagem. A representação de torre escalonada, rara na arquitetura medieval, introduz na imaginário de Babel um viés de fantasia que ganhará força no séc. XVI à medida que as imagens da torre se distanciarão das arquiteturas reais da Europa.

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Figura 2. Hortus Deliciarum do Abade Herrad Von Landsberg (1167-1195), séc. XII. Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

Figura 3. Iluminura do séc. XII, sem identificação, França. Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

A nítida identificação com a arquitetura típica do lugar onde foi gerada a iconografia sugere uma transposição imaginária do mito de Babel ao contexto da Europa medieval; em outras palavras, “Babel é aqui”. A imagem de Babel como uma típica torre medieval européia é contextualiza no 36

presente dos artistas e dos leitores dos manuscritos. As iluminuras sugerem que Babel não é uma lenda distante, pois ela está aqui, próxima da vida cotidiana, entrelaçada no tempo (passado-presente-futuro) e nos lugares (Sinar-Babilônia-Europa) e, portanto, viva no dia-a-dia e na memória daqueles que atuam, pensam e constroem.

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Tudo indica que esta localização geográfica de Babel na iconografia é intencional, e não conseqüência de um desconhecimento do Oriente Próximo, pois as imagens medievais são posteriores às Cruzadas, e contemporâneas à descrição de zigurates de Benjamim Tudela (1178)3 O primeiro movimento na história da iconografia de Babel – considerando que o texto bíblico a situa no Oriente –, é trazê-la para perto, e situá-la como uma arquitetura semelhantes às construídas na Europa medieval. E sendo a construção metáfora de grande amplitude de sentidos, a ênfase no aspecto construtivo da torre é evidente nas iluminuras.

As composições plásticas privilegiam os construtores, e suas ações no canteiro de obras. Estes, não raro, estão em primeiro plano e têm, em cena, presença tão importante quanto a própria arquitetura. Também estão presentes na imagem ferramentas, esquadros, andaimes, esteios, cordas, rodas e roldanas associadas como máquinas-elevadoras para subir materiais. Alta tecnologia da época. Há homens a carregar pedras, outros a talhar, outros a subir escadas ou rampas. As obras estão em andamento. A torre está em construção (Figuras 4 e 5).

Figura 4. Iluminura c. 1250-1275, Dijon, França. Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

Figuras 5. Afresco na igreja de Saint-Savin-sur-Gartempe, França, c.1100-1133. Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres. 3

Escrita em hebraico, diga-se de passagem, e que a partir de 1540, com a imprensa terá 26 edições em latim e outras línguas européias (ZUMTHOR, 1997).

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Trata-se de um trabalho coletivo 4, envolvendo diferentes funções que convergem na montagem da alvenaria da torre. E a técnica da alvenaria é explícita na maioria das imagens. A obra envolve a disposição de peças, blocos regulares, fiada a fiada, unidos entre si com argamassa, dispostos em amarração (deslocados a cada fiada). Os desenhos registram a atenção dos artistas aos elementos arquitetônicos, e à tectônica, como lógica construtiva. Estão presentes na imagem: arcos plenos e arcos ogivais, colunas lisas, capitéis bizantinos, grades reticuladas em janelas, frisos externos de arremate de estruturas de piso, ameias, cunhais, contrafortes, alargamentos das bases das empenas como sapatas corridas. Registro artístico da realidade arquitetônica de uma Europa

tensionada entre a herança romana e a invenção do gótico. Na iconografia produzida entre o séc. XI e XIII não é visível nenhuma estrutura para o deslocamento vertical interno à torre. Isto é, não há escadas nem rampas permanentes, apenas as estruturas provisórias do canteiro de obras, externas à torre. A introdução de sistemas de circulação vertical permanentes – que irão se associar definitivamente ao imaginário da torre – pode ser percebida em exemplos do séc. XIV, mas só será nítida nas iluminuras de fins do XIV, início do XV, como as imagens do folio 2 da Bible Historiale de Jean de Berry, 1390-1400 (Figura 6), do folio 93v da Cidade de Deus de S.Agostinho, e do folio 17v do livro das Trés riches heures do Duque de Berry, datado entre 1414-1423 (Figura 7).

Figura 6. Imagem na Bible Historiale de Jean de Berry, MS Ludwig XIII 3, folio 2, Paris, 1390-1400. Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09. 4

Como bem ressaltou Paul Zumthor (1997), o mito de Babel, diferente dos gregos, não afirma o herói individual, mas sim o heroísmo coletivo e anônimo (p.12).

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Figura 7. Imagem no Trés riches heures do Duque de Berry, folio 17v, Paris, 1414-1423. Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

Esta imagem de Babel no manuscrito do Duque de Berry sintetiza com grande qualidade artística vários elementos inventados no imaginário europeu medieval da torre. A forma arquitetônica materializada nesta imagem será uma referência importante para a principal imagem renascentista da torre. Aquela feita para o Breviarium Grimani c.1500 e, portanto, faz a passagem entre a iconografia de tradição medieval e as expressões renascentistas e barrocas que se apropriarão de certos elementos, acrescentarão outros, e transformarão o imaginário de Babel.

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No enquadramento das iluminuras, a arquitetura ocupa quase todo o espaço da imagem. A cena é concentrada, desenvolvese no primeiro plano, há pouquíssima profundidade, e as torres não são construções monumentais em tamanho sobre-humano, e nem se encontram ao fundo, na paisagem. São construções com tamanho próximo ao das figuras humanas, e próximas também do observador, junto ao primeiro plano: “Babel não é longe, é aqui mesmo”. As torres medievais de Babel são construídas pelos homens, no lugar onde estes vivem, e têm, nas imagens em miniatura, o tamanho destes homens (Figura 8). A tradição medieval da iconografia de Babel firma, assim, uma relação realista com seu contexto histórico, e as imagens da Torre são pautadas tanto pelas formas da arquitetura real, quanto por seus procedimentos técnico-construtivos. O vínculo com o contexto parece estar na contramão das interpretações mais difundidas acerca da passagem cultural do mundo medieval para o mundo renascentista 5. Ao contrário do óbvio, a iconografia medieval de Babel é realista, referencia-se no mundo cotidiano, enquanto a renascentista é fantasiosa e explora um distanciamento da realidade na construção de outros mundos. Como se vê, a imagem não é, necessariamente, uma redundância ilustrativa de certas idéias e visões de mundo que se têm como típicas de um determinado período artístico. Nem toda arte medieval é idealizada e transcendente, assim como nem toda imagem renascentista é realista ou cientificista. A iconografia de Babel é um

A Renascença aqui em foco não é a italiana, mas a flamenga que produziu um acervo de dezenas de imagens de Babel.

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Figura 8. Iluminura do séc. XI-XIII, sem identificação, França. Fonte: Arquivo fotográfico do Instituto Warburg, Londres.

exemplo deste desajuste da imagem, ao inverter, paradoxalmente, aquilo que se considera ser a postura típica da cultura artística da Idade Média e da Renascença. A iconografia de Babel, justamente por seu vínculo inequívoco com o texto do Gênesis, exemplifica não só a autonomia das imagens com relação ao texto, como também com relação à kunstwollen predominante do período artístico no qual foi gerada. Quanto ao enfoque realista, este não deixa de ser simbólico, e confere a cada torre, em particular, o papel universal de signo de cidade. Babel é uma cidade-torre. As cidades medievais também: civitas muradas, urbs com torres. Estas cidades, “renascidas”6 a partir do ano 1000 (LE GOFF, 1998), têm nas torres seu elemento vertical mais visível, seu marco

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na paisagem, sua identidade arquitetônica que migra do mundo real para as composições miniaturizadas nos folios dos manuscritos, em cores e linhas pacientemente desenhadas, e carregadas de ambigüidades entre a afirmação de um novo humanismo e os mistérios dos desígnios divinos. E em meio ao predomínio de imagens medievais de Babel como torre, o afresco de Cimabue, pintado em 1283 na Basílica de S.Francisco de Assis, em Assis, na Itália, inaugura a tipologia de imagens de Babel como cidade. Este enfoque artístico da cidade-muralha possui raras expressões no séc. XIV, como o folio 16r da Bible Historiale (c.1320-1340) (Figura 9) e no séc. XV, como o folio 51 do Livre du Trésor (1425) (Figura 10), mas sinaliza para as expressões artísticas dos séculos posteriores, uma nova possibilidade compositiva.

O tema da sobrevivência de cidades romanas na Europa medieval continua a intrigar os pesquisadores e poderia ganhar uma contribuição importante com uma participação mais intensa de historiadores do urbanismo.

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Figura 9. Imagem na Bible Historiale, folio 16r, Paris, c.1320-1340. Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

Figura 10. Imagem em Le Livre du Trésor, folio 51, Florença, 1425. Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

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Se a imagem da cidade corresponde historicamente à afirmação de um novo humanismo citadino, especialmente na França do séc. XIII, os paradoxos do imaginário medieval da época não se ausentam e personificam em cena seres transcendentais. Embora a maior parte das iluminuras retrate apenas homens, diretamente envolvidos nas operações construtivas, há em algumas imagens, outras figuras presentes: seres alados, Deus como um personagem aureolado e barbado, demônios, e outras manifestações como “o verbo” em fita serpenteante, e a natureza em ação destrutiva, etc. Nas iluminuras do séc. XI e XII o confronto mitológico é encenado dispondo Deus, de um lado, em uma extremidade do campo visual da imagem, e os homens, do outro. No entanto, a presença de seres celestiais é breve,

e rara, assim como é rara a imagem da torre sendo destruída. Em geral é a construção que se apresenta, e a destruição é uma possibilidade futura, ainda ausente, que será gerada pelo construir. Nos canteiros de obras da iconografia de Babel a partir do início do séc. XIV há composições que associam ao grupo de trabalhadores outro grupo de homens que observam e, às vêzes, parecem conversar a respeito da obra, apontam e gesticulam. Entre estes homens há sempre um personagem principal, que se coloca à frente do grupo. A caracterização do grupo e deste homem, na primeira metade do séc. XIV, é feita com barbas e mantos, e ele leva, às vezes, um cajado ou uma vara na mão. No início do séc. XV surge uma variação com o personagem principal coroado, e o grupo armado como soldados (Figuras 11 e 12).

Figura 11. Imagem de Michiel van der Borch na Rhimebible de Jacob van Maerlant, folio 9, Utrecht, 1332. Fonte: Disponível em <http:// babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

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Figura 12. Imagem na History Bible, KB 78 D 38 I, folio 16 v, Utrecht, c.1430. Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

No último quartel do séc. XV várias imagens retratam esta figura principal com mantos e capas luxuosos e exagerados, chapéus extravagantes, e sapatos pontiagudos em uma nítida caracterização oriental. A entrada em cena destes “Nimruds” aponta um deslocamento geográfico no imaginário de Babel 7. Uma guinada oriental, conjugada à ruptura na homogeneidade coletiva da obra arquitetônica. Afirma-se, agora, um indivíduo à frente do grupo que trabalha no canteiro de obras. E este é retratado como um homem mais alto que se veste de maneira exótica, e comanda os demais (Figura 13). Arquiteto, mestre-deobras ou empreendedor, Nimrud, personaliza o novo “filho dos homens” renascido. Herói ou anti-herói? A partir de 1500, a relação autoreferenciada da iconografia da torre com a

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arquitetura medieval da Europa ocidental se romperá, e seu reposicionamento geográficoespacial será concomitante ao ganho de profundidade nas imagens. As composições que, já desde a primeira metade do séc. XV, sugerem profundidade, ganharão com a perspectiva linear um aprofundamento do espaço da imagem, que acrescentará à cena da construção da torre uma paisagem. E sobre esta representação espacial a pintura a óleo dará à atmosfera envoltória da torre uma textura aérea densa e vibrante de brilhos e cores. Nas telas flamengas as ambigüidades e paradoxos de Babel ganharão espaço na vibração tensa da incongruência entre paisagem “natural” – ora típicas de Flandres, ora fantasia de outros lugares – e arquiteturas fantásticas – com formas próximo-orientais e até mesmo asiáticas – onde se encena o drama humano (Figura 14).

Parrot (1954, p.24) faz menção a uma imagem da associação entre Nimrud e a torre, pintada sobre madeira, em Veneza, atribuída a Jan Swart (1470-1535).

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Figura 13. Imagem no La Bouquechardière de Jehan de Courcy, MMW 10 A 17, folio 184r, Rouen e Carlat, anterior a 1477. Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09

Figura 14. Óleo I de Lucas van Valkenborch (1535-1612), Galerie de Jonckheere, Paris, 1568. Fonte: Disponível em <http://babelstone.blogspot.com> Acesso em 07/01/09.

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IMAGENS DE BABEL NA IDADE MÉDIA: ENTRE A ARQUITETURA REAL E O IMAGINARIO DA ARQUITETURA

Houve uma ruptura do eixo cultural que interligava a Europa medieval, a partir do Mediterrâneo, no sentido norte-sul, e uma afirmação, cada vez mais intensa, reforçada pelas navegações oceânicas, de um eixo leste-oeste, oriente-ocidente. Neste mundo novo de amplos espaços, a racionalidade e a imaginação aliam-se para o domínio estratégico do Atlântico, para a exploração das colônias, e para a reinvenção de Babel em um mundo ampliado na paisagem profunda e azulada das telas. Na região de Flandres, ao longo do séc. XV, o desejo de pintores e seus clientes construirá dezenas de imagens da cidadetorre mitológica que, desde então, existem em um lugar imaginário: no fundo dos nossos olhos. Babel, agora, é lá.

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“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

“Lápices sin punta” – Imagens da infância e da adolescência na Guerra Civil Espanhola

Carla Damêane P. de Souza Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Letras e Artes Performáticas (NELAP) – UFMG. Autora de, entre outros artigos, “A experiência metacrítica em César Vallejo: implicações sobre uma arte socialista, por uma nova poética”. Revista Litteris, v. 1, p. 1-14, 2008.

RESUMO Este artigo busca analisar os discursos alternativos sobre a história da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) a partir do poema España, aparta de mí este cáliz (1939), de César Vallejo, do filme El Espinazo del diablo (2001) de Guilhermo del Toro, e em alguns desenhos de crianças e adolescentes feitos na ocasião da guerra. O artigo apresenta que as imagens podem demonstrar diferentes situações da infância e da adolescência, vítima e testemunha da história. PALAVRAS-CHAVE: história; memória; arquivos; Guerra Civil Espanhola.

ABSTRACT This article analyses history’s alternative discussions regarding the Spanish Civil War (19361939). The questions proposed regarding the discussions of the poem España, aparta de mí este cáliz (1939), by César Vallejo, in the movie El Espinazo del diablo (2001) by Guilhermo del Toro and in the some of the designs the children made during the war. The article attempts to demonstrate that these images have the ability to portray different circumstances of childhood and the adolescence depicts as victims and witnesses in history. KEYWORDS: history; memory; files; Spanish Civil War.

Recebido em: 09/05/2009

Aprovado em: 05/09/2009

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CARLA DAMÊANE P. DE SOUZA

“Lápices sin punta” – Imagens da infância e da adolescência na Guerra Civil Espanhola1

Em um texto bastante curioso sobre a experiência de Marcel Duchamp quando vivia em Buenos Aires, logo depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1919), o pesquisador Raúl Antelo empreende a tarefa de explicar a obsessiva idéia do artista francês em executar uma obra que trouxesse à arte contemporânea uma perspectiva tetradimensional, uma pluridimensionalidade espacial que expressasse simultaneidade temporal como se fosse uma espécie de palimpsesto memoralístico. Tratava-se de o Grande Vidro ou, A noiva desnudada por seus celibatários. Antelo considera que neste objeto, em cada fração de duração dos quadros de vidro, encontra-se o exemplo do que seria a durée

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bergsoniana. Na medida em que todas estas pequenas partes relacionam-se a fraturas passadas e futuras, constrói-se uma espécie de presente com múltiplas durações. Sobre o Grande Vidro de Duchamp, Raúl Antelo nos diz que “laberinto [espacial] y palimpsesto [temporal] son así las imágenes de un pensamiento de lo plural que juzga aislar en lo infraleve el pasaje de lo uno a lo otro” (ANTELO, 2006, p.12). A reflexão de Raúl Antelo está ainda associada ao pensamento de Nietzsche, ao que se refere à Teoria da História, desenvolvida pelo filósofo alemão, em que são enfatizadas as idéias de “hiperhistoricismo” e “eterno retorno”. Antelo alude, singularmente, à

Fotografia do Natal de 1938 em um abrigo para meninos em Valencia. Disponível em: “La derrota Republicana”. In: Imágenes de la Guerra Civil Española. Memória Republicana. Sociedad Benéfica de Historiadores, Aficcionados y Creadores. Acesso em: 11 de fev. 2009. Disponível em: <http://www.sbhac.net/Republica/Imagenes/FotoDerrota/FotoDerrota.htm>.

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“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

metáfora do inseto preso em uma massa viscosa a que considera como sacrifical. O raciocínio de Antelo é pertinente à idéia de que podemos, de maneira analógica, referirmo-nos a objetos artísticos diferentes que amparam um tema comum. Algo como se, inseridos neste labirinto de memórias da Guerra Civil Espanhola, pudéssemos aproximar as imagens de pensamentos plurais que se encontram individualmente, e temporalmente, separados. No entanto, são imagens que podem trazer alguma outra interpretação sobre a história. Desta forma, referimo-nos ao tema de nosso trabalho e aos objetos que trazem tais imagens emaranhadas cada qual, em seu específico “presente de múltiplas durações”. Diante da aproximação de objetos distintos pretende-se refletir sobre os discursos alternativos da história demonstrados tanto pelo registro memoralístico da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) no momento de sua emergência, como é o caso do poema España, aparta de mí este cáliz (1939) escrito por César Vallejo, tal como, pela ficcionalização de uma situação específica daquele conflito através do filme El Espinazo del diablo (2001) de Guilhermo del Toro, e através da exposição “Apesar de Todo dibujan: la Guerra Civil vista por los niños” organizada pela Biblioteca Nacional da Espanha entre os dias 29 de novembro de 2006 a 18 de fevereiro de 2007.2

¿Qué es un fantasma? O personagem Carlos interpretado por Fernando Tielve, em El Espinazo del diablo 2

(2001), é um órfão da Guerra Civil Espanhola. O garoto é levado por seu tutor a um orfanato em Santa Lucía, local de resistência republicana protagonizado pelo Professor Casares, personagem de Federico Lupi, e pela diretora Carmen (Marisa Paredes). Carmen carrega em seu corpo sequelas da guerra visivelmente demonstradas pelo uso de uma prótese mecânica em lugar da perna. Leva consigo um molho de chaves entre as quais está aquela que abre o cofre que se encontra no refeitório e é onde está o ouro responsável por financiar a resistência republicana em Barcelona. O ouro escondido é motivo de cobiça para Jacinto (Eduardo Noriega), porteiro e ex-interno do orfanato. Homem de índole misteriosa, durante todo filme junto com Jaime (Iñigo Garcés) também interno, é o único que sabe o que aconteceu a Santi (Andréas Muñoz), criança que desaparece na mesma noite em que é lançado um míssil no pátio do colégio. A chegada de Carlos no orfanato marca o início do esclarecimento sobre o mistério em torno de Santi que vive uma realidade paralela ao mundo dos vivos, e tenta se comunicar com Carlos, sensível aos seus chamados. O que nos chama atenção durante todo o filme diz respeito a esta manifestação do fantástico como princípio esclarecedor de algo real. Além de que, o mistério que envolve Santi serve de metáfora metonímica para algo que acontecia na própria Guerra Civil Espanhola. Internamente, sabemos que se trata de um evento complexo onde focos de ideologias diversas entraram em choque. A sociedade espanhola estava dividida entre nacionalistas e republicanos, e vários países tiveram uma participação decisiva desde o início do conflito. Entre os mais evidentes,

A exposição até hoje pode ser visitada através do site da Biblioteca Nacional da Espanha no endereço <http://www.bne.es/esp/ actividades/apesardetododibujan8.htm>. Acesso em 10 de fev. 2009.

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podemos citar a Alemanha, a Itália, a ex União Soviética,3 além da participação de voluntários estrangeiros, que movidos por uma sinergia específica relacionada à possibilidade de uma revolução marxistalenista na Espanha, foram às frentes e lutaram em defesa da República. España, aparta de mí este cáliz (1939), é livro póstumo de César Vallejo (1898-1938). Escritor peruano, Vallejo viveu em exílio político e de certa forma também compulsório, durante 15 anos na Paris das décadas de 1920 e 1930. Diverso ao projeto literário inicial de sua carreira, a influência do partido comunista exerceu uma forte mudança na sua forma de escrever, tornando sua poética caracterizada internamente por uma dialética entre o estético e o ético. Sua aproximação com a Segunda República Espanhola fez com o que, diante do conflito que se iniciou em 1936, se posicionasse em favor da resistência antifascista e na defesa da República, a exemplo de outros artistas estrangeiros, como Pablo Neruda, Alexis Tolstoy, Tristan Tzara.4 Consideramos que España, aparta de mí este cáliz (1939), pode ser lido segundo considera Paul Ricœur em seu livro, A memória, a história, o esquecimento (2007), como um tipo de arquivo memoralístico operante junto à constituição historiográfica da Guerra Civil Espanhola. Operante porque através deste tipo de arquivo podemos adquirir conhecimentos sobre variadas versões e discursos da história em questão. Distinto dos rastros cerebrais ou afetivos, o 3

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arquivo memoralístico escrito ocupa para Ricœur, além de um lugar físico e espacial, também um “lugar social” (RICŒR, 2007, p.177). Este “lugar social” é que norteia a relação estreita do arquivo com a epistemologia historiográfica. Ainda que não façam parte da historiografia oficial, muitos arquivos literários tornam-se importantes na construção de novas perspectivas históricas, na medida em que suscitam memórias recalcadas e discursos de atores sociais que não possuem um lugar de enunciação legitimado. Ao romper com a tradição de testemunhos orais, o testemunho arquivado de acordo com Ricœur (2007, p.178), “assume em primeiro plano a iniciativa de uma pessoa física ou jurídica que visa a preservar os rastros de sua própria atividade; essa iniciativa inaugura o ato de fazer história”. A curadoria da exposição “Apesar de Todo dibujan: la Guerra Civil vista por los niños” explicou que entre 1.127 desenhos infantis tiveram que escolher os que melhor representassem as impressões de crianças e de adolescentes diante de tal emergência histórica. Foram, por isso, classificados de acordo com os temas a que remetem, por exemplo, “La politización de los niños” “La guerra en Madrid” “La vida antes de la guerra”. Ao resgatar estes desenhos, a Bliblioteca Nacional da Espanha, embora tenha exposto um número restrito dos tantos trabalhos que possui em seu acervo, permite que este arquivo venha se não iluminar, pelo menos indicar-nos um caminho de segurança

Ver em THOMAS, Hugh. A guerra civil dentro da Guerra Civil. In: THOMAS, Hugh. A Guerra Civil Espanhola. Vol. 2. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964. Entre outros conflitos internos apontados por Thomas, as negociações com os nacionalistas, entendemos como a participação dos estados totalitários italiano e alemão foram decisivos no decorrer da Guerra Civil Espanhola, tal como, o Pacto não Agressão entre Alemanha e União Soviética que mudou decisivamente a participação da União Soviética que passou a restringir a atuação das milícias tornando-as ilegais quando não, reprimindo violentamente, os civis espanhóis. Aqui fazemos alusão à participação de César Vallejo no Segundo Congresso Internacional de Escritores Antifascistas para a Defesa da Cultura, celebrado em Madri em julho de 1937. Na ocasião do Congresso, César Vallejo leu seu célebre texto “La responsabilidad del escritor”. Entre muitos escritores presentes, Pablo Neruda, Alexis Tolstoy, Tristan Tzara, citados em nosso texto, também estiveram presentes no Congresso.

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no qual podemos compreender o passado por meio de olhares que estão suspensos em relação à consciência sobre a guerra. Sobre estes desenhos, eles são documentos históricos que fazem parte das memórias da Guerra Civil Espanhola dentre tantas outras manifestações que não podemos dizer que foram realizadas com intuito de resistir ao esquecimento, mas que são atualmente tratados por pesquisadores como arquivos. Resistem ao tempo e através deles, podemos adquirir conhecimentos sobre variadas versões e discursos da história em questão. No poema España, aparta de mí este cáliz (1939), por exemplo, além de o escritor registrar ficcionalmente um testemunho sobre sua experiência na Guerra Civil Espanhola – assumir um posicionamento intelectual enquanto aquele que se posiciona responsavelmente diante da história, – apresenta-o de maneira dialética, escrevendo-a como indivíduo que faz parte deste ato de fazer história, enquanto que as crianças registram-se na história por meio de seus desenhos, atribuindo a eles testemunho de que viveram naquele momento. El Espinazo del diablo (2001), por outro lado, vem a serviço de um trabalho que posterior a escrita da história da Guerra Civil Espanhola, suscita debates ao referir-se ao passado através da construção de discursos e projeções de imagens que trazem a baila memórias não hegemônicas, ou, aquilo que não foi visto, mas passível de interpretação graças aqueles que sobrevivem para contar ou seja, graças as marcas que são deixadas pelos arquivos como acontece no caso das fotos e desenhos. Daniel Muchnik (2004) em seu livro Gallo rojo, Gallo negro. Los intereses en juego en la Guerra Civil Española, nos diz que 30.000

crianças espanholas tiveram que deixar o país durante o conflito, sendo que outras 70.000 também deixaram o país após o fim oficial da guerra e a vitória do fascismo. Fatalmente órfãs, a maioria destas crianças foram levadas às casas de abrigo ou antigos seminários emergentemente transformados em colégios nos vários países que as receberam, desde o México até a Rússia. No filme de Guilhermo del Toro, a situação da criança e do adolescente no contexto da Guerra Civil Espanhola é demonstrada pela relação constituída entre elas e estes abrigos para onde eram levadas, ainda que em El Espinazo del diablo (2001), o orfanato está em território espanhol. A presença do míssil fincado no pátio do orfanato é durante toda narrativa a incisão de que a Guerra está lá dentro junto à tensão produzida pelas relações entre os adultos que ali vivem. Enquanto Professor Casares e a Diretora Carmen se preocupam com a situação da Guerra, – fazem comentários sobre a ocupação de Barcelona, e sobre o assassinato de republicanos perto da região onde se encontra o orfanato, por homens do exército nacionalista –, Jacinto preocupa-se em encontrar o ouro que Carmen usa para financiar a resistência republicana. Neste mesmo contexto temos os garotos que entre uma ou outra aula, reconhecem-se sozinhos, entendem e sofrem a situação mas, a exemplo de Carlos, encaram o momento bravamente enfrentando todo e qualquer fantasma. Santi, que é o fantasma da história, é a metáfora viva, o inseto preso em âmbar, ou na massa viscosa a que se referia Nietzsche aliada a fala inicial e final proferida pelo Professor Casares: ¿Qué es un fantasma? ¿Un evento terrible condenado a repetirse una y otra vez? ¿Un

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CARLA DAMÊANE P. DE SOUZA instante de dolor quizá? ¿Algo muerto que parece por un momento vivo aún?... Un sentimiento suspendido en el tiempo como una fotografía borrosa… como un insecto atrapado en ámbar.5

A própria memória podemos considerá-la a partir desta relação fantasmagórica quando a lembrança se demonstra pelas ruínas, se lemos as relações problemáticas entre esquecimento e história no contexto das recentes guerras do século XX. Reflexões já exploradas por Walter Benjamin6 em textos como “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Vale salientar aqui uma consideração de Walter Benjamin (1994) referente à produção e popularização, no começo do século, dos livros infantis, tal como os brinquedos e todo tipo de artifício que inventado pelo adulto, de alguma maneira serviu e serve até hoje para familiarizar a criança ao seu mundo. Benjamin (1994) diz que, desde o Iluminismo os pedagogos se esforçavam por criar meios de distração para as crianças posicionando-as diante das imagens de um mundo de gente grande já pronto, mas que por outro lado, estas sempre foram seduzidas por algo que – diverso do que já encontram nos livros e brinquedos – elas mesmas pudessem construir. Daí, a explicação dada por Benjamin (1994), com relação ao prazer da criança em frequentar oficinas de produção: Elas se sentem atraídas irresistivelmente pelos detritos, onde quer que eles surjam – na construção de casas, na jardinagem, na carpintaria, na confecção de roupas. Nesses detritos, elas reconhecem o resto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos

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e os resíduos em uma relação nova e original. Assim, as próprias crianças constroem seu mundo de coisas, um microcosmos no macrocosmos (BENJAMIN, 1994, p.238).

Pensando na consideração de Benjamin (1994) pergunto-me se o desenho destas crianças e adolescentes não seriam também uma forma de apresentar um “microcosmos no macrocosmos”? Os desenhos expostos constituem restos de um tempo passado, restos porque não foram considerados, naquele momento, como uma apresentação “macro” – filme, fotografia, relatos, todas as fontes canônicas da história da guerra civil – que regiam os discursos ecoados dos acontecimentos. De que lugar falava esta criança? Sob qual céu acompanhavam os bombardeios? Como podemos conferir a estes desenhos, se não por sua qualidade de arquivo, o status de monumento e ou construção de uma consciência da criança e do adolescente a respeito da guerra? Se Vallejo o faz através da projeção de seu ideal revolucionário nestas criança e adolescentes que sobrevivem à guerra, no poema eles são interlocutores junto ao texto: Niños del mundo, si cae España, – digo, es un decir – si cae del cielo abajo su antebrazo que asen, en cabestro, dos láminas terrestres; niños, ¡qué edad la de las sienes cóncavas! ¡qué temprano en el sol lo os decía! ¡qué pronto en vuestro pecho el ruido anciano! ¡qué viejo vuestro 2 en el cuaderno! (VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.285).

No filme de del Toro fica a sugestão de que as crianças e adolescentes são aqueles para os quais é dada a chance de sobreviver

Transcrição minha. Fala inicial e final do Professor Casares em El Espinazo del Diablo. Ambos os textos citados encontram-se em BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. VOL. I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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ao conflito. Estes garotos fariam parte da geração que construiria a narrativa bélica pós Guerra Civil Espanhola. Buscar Espanha O poema que dá título ao livro de César Vallejo é escrito como uma carta. Ligeiramente cuidadoso o poeta vem falar às crianças do mundo, e não somente às crianças espanholas. A preocupação, o receio e o aviso, “si cae España” refere-se à Guerra Civil Espanhola. Diante das crianças do “mundo enfermo” resta para Vallejo lamentar em seu poema a sina de cada uma delas “las de las sienes cóncavas” as crianças que envelhecem pela obrigatoriedade de enfrentar tempos difíceis à custa de sua própria educação. Podemos perceber que cada um dos desenhos, foi feito sob residências infantis ou orfanatos. Se de um lado temos o poeta ciente do que acontece com estas crianças – sua condição de orfandade – por outro lado os desenhos respondem de que forma cada uma delas compreende o que está acontecendo. No desenho de Rafael Cerillo, um adolescente de 13 anos, tarefas rotineiras como ir comprar o leite torna-se uma aventura catastrófica.

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Ameaçado pelos bombardeios aéreos, seu desenho, “Bombardeio na fila do leite”7 é o modo de referenciar a guerra civil, onde ele e seus compatriotas tinham que lidar com situações de risco. O desenho independe de qualquer explicação. Mas Vallejo, em seu poema, explica as crianças diagnosticando o que acontece na Espanha: ¡Niños del mundo está la madre España con su vientre a cuestas; está nuestra madre con sus férulas, está madre y maestra, cruz y madera, porque os dio la altura, vértigo y división y suma, niños; está con ella, padres procesales! (VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.286).

O escritor lamenta a efeito de prognósticos, as possíveis consequências advindas com a queda da República Espanhola: o envelhecimento precoce junto à falta de perspectiva para as crianças e adolescentes que sobrevivessem ao conflito, a desilusão por tê-lo experienciado e se tornarem sobreviventes, a busca de um lugar para onde pudessem seguir em exílio. Continuar na Espanha poderia significar este prognóstico vallejiano de não poder parar no tempo, “¡cómo vais a cesar de crecer!” e ainda, a impossibilidade de, com a queda da Espanha, seguirem vivendo em um mundo mais justo. A queda de Espanha Republicana significa, afinal, retroceder aos velhos dogmas e tradições. Os personagens do filme de del Toro passam por transformações semelhantes. Lembremos que a ameaça que Jacinto representava a eles, fez com o que desenvolvesse certa desilusão, por parte de Jaime e de Carlos mais precisamente. Os dois

Desenho de Rafael Cerillo. 13 años. Bombardeio na fila do leite. Teruel. Colônia escolar Germán de Araujo, Alcañiz. Encontra-se na sessão “A ruptura do mundo da infância”. Faz parte da exposição na Biblioteca Nacional “A pesar de todo dibujan.” Acesso em 10 de fev. 2009. Disponível em: <http://www.bne.es/esp/actividades/apesardetododibujan8.htm>.

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decidem tomarem armas e se defenderam junto aos outros garotos quando Jacinto passa a representar perigo. Juntos, as crianças acabam também se tornando criminosas, cai por terra à imagem desta Espanha que é mãe e também mestra. Pensa-se na figura da professora Carmen, que para os meninos poderia assumir a função desta mãe mestre fisicamente debilitada que inclusive, possui relações viciosas com Jacinto. Como mestre, os garotos vivem uma situação onde aprendem uma lição que excede, já em palavras de Vallejo, “as grades do alfabeto”. Si cae – digo es un decir – si cae España, de la tierra para abajo, Niños ¡cómo vais a cesar de crecer! ¡cómo va a castigar el año al mes! ¡cómo van a quedarse en diez los dientes, en palote el diptongo, la medalla al llanto! ¡Cómo va el corderillo a continuar atado por la pata al gran tintero! ¡Cómo vais a bajar las gradas del alfabeto hasta la letra en que nació la pena! (VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.286).

Ao mesmo tempo o escritor declina sua fala e parece murmurar, como se o medo, como se a ameaça “si cae España” fosse, porque era real. Todo o futuro estaria nas mãos das crianças, filhos de milicianos que sofriam sua tragédia. Crianças como Hamlet a conversar com uma caveira, tentando apaziguar sua dor pela esperança de um possível triunfo: Niños, hijos de los guerreros, entre tanto, bajad la voz que España está ahora mismo repartiendo

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la energía entre el reino animal, las florecillas, los cometas y los hombres. ¡Bajad la voz, que está con su rigor, que es grande, sin saber qué hacer, y está en su mano la calavera hablando y habla y habla, la calavera, aquélla de la trenza, la calavera, aquélla de la vida! (VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.286).

A referência feita a Shakespeare, já havia sido apontados por Júlio Vélez (2000, p. 286), como proposta de leitura e interpretação da presença da caveira falante. Mas diferente da caveira com quem Hamlet dialoga a do poema vallejiano, apesar de representar um mau presságio, é ela quem presentifica a vida, ou seja, é uma personificação da morte que fala às crianças sobreviventes como um fantasma. Este caráter oracular existe também em El Espinazo del Diablo (2001). Santi havia já feito um prognóstico a Carlos sobre a explosão causada por Jacinto e que foi responsável pela morte de muitos dos internos, da morte de Carmen e conseqüentemente, da morte de Conchita e do Professor Casares. Sem deixarmos de considerar ainda, que a presença do míssil seja um indicativo de tensão, como se qualquer coisa pudesse acontecer dentro do orfanato. O poemário de guerra de César Vallejo, em suma, não nos deixa uma mensagem pessimista diante da guerra, como acontece nos desenhos, cujas imagens são temerosas. Acontece por exemplo, nos bombardeios desenhados em sua emergência por Luis Aparicio Alonso:8

Desenho de Luis Aparicio Alonso. 10 anos. Valencia. Escuela Hogar Antella. Apresentado no tema “La presencia de la guerra” na exposição “Apesar de todo dibujan.” Acesso em 10 de fev. 2009. Disponível em: <http://www.bne.es/esp/actividades/ apesardetododibujan8.htm>.

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“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA si tardo, si no veis a nadie, si os asustan los lápices sin punta, si la madre España cae – digo, es un decir – , salid, niños del mundo; id a buscarla!... (VALLEJO in: VÉLEZ, 2000, p.16).

Nos poemas de Vallejo há uma mensagem positiva: é nas crianças e adolescentes que o poeta consegue enxergar uma forma de por fim a guerra, de apaziguar a tragédia, de ver a Espanha derrotada e seu “lápis sem ponta” como metáfora viva de ruína e perda das ilusões, tal como a relação que podemos perceber entre o Professor Casares e os meninos que ao fim da película, sobrevivem à explosão e deixam o orfanato: !Bajad la voz, os digo; bajad la voz, el canto de las sílabas, el llanto de la materia y el rumor menor de las pirámides, y aún el de las sienes que andan con dos piedras! ¡Bajad el aliento, y si el antebrazo baja, si las férulas suenan, si es la noche, si el cielo cabe en dos limbos terrestres, si hay ruido en el sonido de las puertas,

A presença da guerra na infância e adolescência além de acarretar na interrupção de um processo natural de aprendizagem institucional, vem de forma abrupta, por meio do terror, requerer seu precoce amadurecimento. É, como escreve Vallejo, “tornar tão cedo ancião, o ruído de seu peito”. Arthur Nestrovski (2004) desenvolveu um raciocínio muito pertinente sobre representações da Shoah, partindo de um estudo comparado entre o filme Shoah, de Claude Lanzmann e alguns poemas de Paul Celan. Para nós, importa refletir sobre as inferências que podemos fazer a partir do que Nestrovski diz com respeito à construção dos significados que um determinado evento histórico pode adquirir no poema, e sobre que papel caberia à imagem em um filme que referenciasse esse mesmo evento histórico. Sabemos que se trata de um terreno bastante pantanoso este de aproximar dois objetos que mais sugerem que apresentam qualquer idéia, o cinema e poesia. Por isto, aludir ao texto de Nestrovski. Para ele, sendo a imagem cinematográfica construída por um espectador tal como a literária por um leitor, fica claro que o filme de Claude Lanzmann dialoga “à possibilidade ou legitimidade de uma construção metafórica daquele evento” (NESTROVSKI, 2004, p.165). Não queremos comparar o estudo de Nestrovski com o nosso, entretanto partilhamos do mesmo consenso, a partir dos poemas de César Vallejo e do filme de Guilhermo del Toro, ou seja, construir metaforicamente o que historicamente está para ser referenciado como manifestação de

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uma memória que vem ao nosso encontro. Se imaginarmos que durante os anos de ditadura franquista na Espanha, o cinema espanhol durante 35 anos foi controlado pela vigilância estatal 9 não teríamos muito que rememorar sobre a história dos vencidos. Contemporaneamente, o cinema nos tem presenteado com produções que nos dizem um pouco mais desta história. Filmes inteligentes, a exemplo de El Espinazo del Diablo, 2001, temos ainda El Laberinto del fauno, 2006, também dirigido por del Toro e La Lengua de las Mariposas, 1996, de José Luís Cuerda. Todos reverenciando a presença de crianças junto a tramas que amparam a Guerra Civil Espanhola. Outras produções como Land and Freedom, 1995, de Ken Loach, Silencio Roto, 2001, de Montos Almedáriz, e Soldados de Salamina, 2004, de Davi Trueba, ainda que não tragam discussões sobre a situação da criança frente à Guerra suscitam debates que também podem ser aliadas às alusões feitas nos poemas de Vallejo que referenciam temas como a participação de milicianos, a guerra dentro da guerra, entre outros. Em geral, artistas de todos os gêneros, da música às artes plásticas, do cinema ao teatro, utilizam meios de dialogar com a posterioridade e intervir no campo cultural por meio da catalogação de imagens afecções, e de descrições de sensações que são reproduzidas em quadros, músicas, filmes, peças de teatro, livros. Por outro lado, de que maneira os desenhos infantis, a exemplo dos feitos pelas crianças espanholas, são transformados em monumentos, expostos em museus e bibliotecas? De que forma

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compreender de fato, a importância do arquivamento para a atualização de novos discursos sobre a história buscando como exemplo desenhos infantis? Aproximando texto, desenho, cinema e poesia o trabalho pretendia demonstrar formas distintas de discursos da história representados por imagens. Objetos artísticos e arquivos históricos que apresentam a emergência de um evento, – Guerra Civil Espanhola – e que nos trazem ecos desta guerra transmitidas pelas imagens em movimento, seja nos versos de Vallejo, seja nas cenas reproduzidas por del Toro, ou, pelos desenhos e fotografias que nos ajudam a construir uma interpretação mais ampla sobre esta história a partir do olhar sobre a infância e a adolescência em tempos graves. Referências Bibliográficas ANTELO. Raúl. Maria con Marcel. Duchamp en los Trópicos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol. I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. MONTEDER, José Enrique. A olhada interior: A Guerra Civil Española nas telas da Espanha (1939-96). In: Olho da História. n. 2. Universidade Federal da Bahia. Disponível em: <http:// www.olhodahistoria.ufba.br/o2monter.html>. Acesso em: 02 de out. 2008. MUCHNIK, Daniel. Gallo rojo, Gallo negro. Los intereses en juego en la Guerra Civil Española. 1ª ed. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004. NESTROVSKI. Arthur. Shoah: Catástrofe e Representação. In: MACIEL, Maria Ester e SEDLMAYER, Sabrina. (Org.). Textos a flor da tela: relações entre literatura e cinema. Belo Horizonte: Núcleo de Estudos de Crítica Textual/ Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

Ver MONTEDER, José Enrique. A olhada interior: A Guerra Civil Española nas Telas da Espanha (1939-96). In: Olho da História. Nº 2. Universidade Federal da Bahia. Disponível em: <http://www.olhodahistoria.ufba.br/o2monter.html> . Acesso em: 02 de out. 2008.

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“LÁPICES SIN PUNTA” – IMAGENS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA RICŒR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François [et al.]. – Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2007.

VÉLEZ, Julio. César Vallejo: Poemas en Prosa, Poemas Humanos, España, aparta de mí este cáliz. 1ª ed. Madrid: Cátedra, 2000.

THOMAS, Hugh. A Guerra Civil Espanhola. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.

Filmografia:

______. A Guerra Civil Espanhola. Vol. 2. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.

EL Espinazo del diablo. Direção de Guilhermo del Toro. México e Espanha, 2001. DVD. 143. min.

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IMAGENS DA CIDADE, IMAGENS CONSTRUÍDAS: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE

Imagens da cidade, imagens construídas: as contradições da modernidade

Edilaine Custódio Ferreira Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Educadora social da Prefeitura Municipal de Maringá. Autora de, entre outros artigos, “Raízes do Brasil: uma interlocução entre Simmel, Weber e Sérgio Buarque de Holanda”. Revista Urutágua (Online), n. 5, 2004.

RESUMO O objetivo deste artigo é analisar o discurso produzido pelo jornal “O Diário do Norte do Paraná” a partir do estudo da imagem fotojornalística, observando o papel da fotografia utilizada pelo jornal, compreendendo-a enquanto produtora de sentido. Contempla-se uma discussão metodológica atrelada à imagem veiculada pelo jornal e a notícia a ela relacionada. O recorte temático privilegiará uma breve discussão a respeito de uma imagem publicada no referido periódico. PALAVRAS-CHAVE: fotojornalismo; metodologia de análise; Jornal “O Diário do Norte do Paraná”.

ABSTRACT This article aims to analyze the discourse produced by the local newspaper “O Diário do Norte do Paraná” from the study of the photojournalistic image, considering the photograph role in the newspaper and understanding it as a meaning producer. A methodological approach is pondered regarding the image and the new observed on the newspaper. The mentioned theme focus a brief discussion about a picture published in the journal. KEYWORDS: photojournalism; methodology of analysis; newspaper “O Diário do Norte do Paraná”.

Recebido em: 19/07/2009

Aprovado em: 15/09/2009

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EDILAINE CUSTÓDIO FERREIRA

Imagens da cidade, imagens construídas: as contradições da modernidade Olhar apenas para uma coisa não nos diz nada. Cada olhar leva a uma inspeção, cada inspeção a uma reflexão, cada reflexão a uma síntese, e então podemos dizer que com cada olhar atento, estamos teorizando. Goethe

Utilizar o fotojornalismo como recurso para o trabalho do historiador implica em reconhecer esta documentação enquanto portadora de discursos, que traz em si a necessidade de decodificação. Faz-se necessário a utilização de metodologias específicas que possibilitem um olhar além das representações midiáticas, identificando os desvios e distorções no documento (ZANIRATO, 2005, p.16-17). Zanirato (2005, p. 18-19) observa que a leitura da imagem é um processo criativo. Ler a imagem significa dispor da informação cultural de que o leitor porta. Este usará todo o repertório destas informações. O trabalho de leitura da imagem deve levar em conta uma gama de competências e habilidades: sensoriais, perspectivas, psicológicas, culturais, históricas, cognitivas, entre outras. São necessárias algumas convenções para aprofundamento da análise da fotografia para decodificação de uma imagem fotográfica. Neste artigo, inicialmente, serão feitas algumas considerações teóricas a respeito do tratamento metodológico que tal fonte requer e, em seguida, a análise propriamente dita. No texto A Teoria da Imagem Periodística, Lorenzo Vilches chama a atenção para a necessidade de aprofundamento e de sistematização dos estudos sobre a imagem, principalmente a relação imagem/leitor. O autor atribui a falta de estudos a dois fatores:

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O primeiro situa-se no vazio interdisciplinar onde a semiótica e a retórica da imagem ainda estão buscando autonomia e consolidação teórica e por outro lado, a dificuldade de se produzir nessas disciplinas, trabalhos que sejam acessíveis a um público amplo, que reduzam ao mínimo a terminologia e a explicação teórica, e que ao mesmo tempo possam assentar-se sobre bases solidamente científicas (VILCHES, 1993, p.15).

Por conseguinte, a fotografia deve ser tratada como um “material” carregado de informações, símbolos e idéias que chegam até nós a partir de nossa concepção das questões sociais. Para Vilches, cada leitor entende a mensagem imagética de uma determinada forma, identifica-se com ela de acordo com suas experiências de vida. Por isso é que em alguns casos a emoção pode até mesmo causar ilusões ópticas, pois, “o que vemos, nem sempre é o que o nosso olho registra” (VILCHES, 1993, p.16). De acordo com Lorenzo Vilches (1993, p.169) o jornal é um veículo de discurso social, portador de opiniões e idéias, é, portanto, um veículo do “saber” sobre o meio social, que se encontra modalizado por diversas estruturas discursivas, entre elas as de “fazer crer”, o que constitui a base da persuasão. Além disso, segundo esse mesmo autor, o periódico representa e transmite escala de valores e modelos de comportamento social,

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IMAGENS DA CIDADE, IMAGENS CONSTRUÍDAS: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE

moral, político, etc., “pelo que também se pode caracterizar como um discurso sobre o “saber fazer”. Por detrás de toda notícia registrada há uma “visão de mundo” dos jornalistas e dos proprietários do jornal, de modo que as reportagens precisam ser avaliadas enquanto linguagens produtoras de significados em relação a uma situação contextualizada historicamente (CAPELATO, 1989). Embora a fonte jornalística não possa ser tomada como verdade, não significa que possa ser classificada como um documento falso em si, mas “como uma construção que pretende ser verdadeira” (ALVES, 1996, p.34). Para isso é importante perceber como e por que a notícia foi produzida, quais foram as condições de sua produção, qual a conjuntura em que esta aconteceu. O jornal é um meio de comunicação social, portador de estratégias comunicativas e persuasiva que se manifestam através da articulação texto/imagem, de modo que as fotografias que acompanham as reportagens não são meramente ilustrativas, mas narrativas que clamam pela eficácia do convencimento (ESSUS e GRINBERG, 1994, p.141). Essa questão remete a necessidade de se conhecer também os procedimentos metodológicos para o trato com as fotografias em geral e com as fotografias jornalísticas, em particular. Segundo Vilches, a aparente mecanicidade da câmera fotográfica acaba reforçando as “possibilidades de ficção e ilusão” da realidade, “[...] porque a máquina fotográfica é um objeto privilegiado para produzir sentido, para dar significado às coisas; é também um instrumento semiótico, como a palavra, como a escrita” (idem, p.20).

Nesse sentido, um estudo a respeito só é

possível através de um trabalho que leve em consideração não apenas a imagem fixada no material fotográfico, mas também que se faça leitura da fotografia como um texto ligado ao contexto de sua produção, ou seja, a fotografia pode cristalizar um discurso produzido pelo poder oficial. De acordo com Jacques Aumont, o estudo da relação espectador/imagem, de forma alguma pode ser abordado a partir de uma concepção universal, pois os sujeitos vivem em tempos e espaços construídos historicamente. Desse modo: além da capacidade perceptiva entram em jogo o saber, os afetos, as crenças que por sua vez, são muito modeladas, pela vinculação a uma região da história (a uma classe social, a uma época, a uma cultura). Entretanto, apesar das enormes diferenças que são manifestadas na relação com uma imagem particular, existem constantes consideravelmente trans-históricas e até interculturais, da relação do homem com a imagem em geral (AUMONT, 1995, p.77).

É a partir da possibilidade dessa perspectiva geral que Aumont analisa o espectador, partindo de um questionamento que nos é essencial: “O que as imagens nos trazem? Por que elas existiram em quase todas as sociedades humanas? Como são olhadas?”. Para Aumont, a imagem nunca é produzida sem finalidade, porém com um determinado fim, seja para uso individual ou coletivo. Procurando entender mais profundamente a produção das imagens, o autor a vincula ao “domínio” do simbólico, pois acredita que a simbologia sirva de mediadora entre espectador e a realidade. Procurando responder as três questões acima, Aumont atribui três características à imagem: a simbólica, a epistêmica e a estética. A respeito do campo simbólico (e aqui o autor é um tanto quanto incisivo), argumenta que

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“inicialmente” as imagens teriam sido utilizadas apenas como símbolos religiosos. No campo epistemológico, a imagem situa-se como portadora de “informações sobre o mundo, que pode assim ser conhecido, inclusive em alguns de seus aspectos não visuais”. No que se refere à estética, acredita que a imagem seja destinada “para agradar seu espectador, ao oferecer-lhe sensações específicas”. Desse modo, o caminho trilhado por Aumont é o de que, imagem e espectador são parceiros e atuam juntos num jogo duplo, em que “o espectador constrói a imagem” e em contrapartida, “a imagem constrói o espectador”. É justamente a partir desse ponto de vista inspirado na teoria proposta por Gombrich (1965), sobre as formas de investimento psicológico que atuam na imagem: reconhecimento e rememoração, que Aumont desenvolve sua concepção de imagem, acreditando que ela tenha “por função primeira, garantir, reforçar, reafirmar e explicitar nossa relação com o mundo visual”. Assim sendo, a dicotomia entre reconhecimento e rememoração: coincide com a distinção entre função representativa e função simbólica, de que é uma espécie de tradução em termos psicológicos; uma, puxando mais para a memória, logo para o intelecto, para as funções de raciocínio, e a outra para a apreensão do visível, para as funções mais diretamente sensoriais (AUMONT, 1995, p.81).

do espectador é tão central para toda a teoria de Gombrich: é ele quem faz a imagem (AUMONT, 1995, p.90).

Segundo Boris Kossoy, a análise mais aprofundada da fotografia requer que se faça uma divisão em dois campos: o técnico e o iconográfico. Todavia, adverte que tal divisão dá-se apenas para fins didáticos. Na verdade, tanto a análise técnica, quanto a iconográfica são importantes recursos de um mesmo processo de pesquisa, processo esse que nos possibilita obter alguns elementos do passado, para que possamos criar hipóteses a respeito de um determinado lugar ou época. No entanto, essa “confirmação”, só é possível através de um cruzamento de informações, de fontes de teorias. Utilizando os estudos de Pierre Bourdieu (1965), Leite entende que é possível captar informações que não são visíveis na fotografia. Assim: Um conhecimento preexistente da realidade representada na imagem mostrou-se indispensável para o reconhecimento do conteúdo da fotografia. Essa apreensão requer, além de aguçados mecanismos de preservação visual, condições culturais adequadas, imaginação, dedução e comparação dessa com outras imagens para que o intérprete possa se constituir um receptor competente. É que, entre a imagem e a realidade que representa, existe uma série de mediações que fazem com que ao contrário do que se pensa habitualmente, a imagem não seja restituição, mas reconstrução – sempre uma alteração voluntária ou involuntária da realidade que é preciso aprender a sentir e ver [...] (LEITE, 1998, p.40).

Em síntese, para Gombrich: o papel do espectador é extremamente ativo: construção visual do reconhecimento; emprego dos esquemas de rememoração, função de uma com a outra para a construção de uma visão corrente do conjunto da imagem. Compreende-se porque esse papel 62

Segundo Miriam Leite, a fotografia permite que se lhe atribua diferentes significados “que interferem na codificação e nas possíveis decodificações da mensagem transmitida”. De acordo com a autora, a análise da prática fotográfica e dos

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IMAGENS DA CIDADE, IMAGENS CONSTRUÍDAS: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE

significados da imagem podem revelar comportamentos coletivos e experiências de vida, portanto, esse recurso enriquece em grande parte a pesquisa na área das Ciências Humanas. Maria Sylvia Porto Alegre acredita que um dos problemas centrais que ainda precisa ser enfrentado pelo pesquisador se refere à questão da objetividade/subjetividade. Muitos pesquisadores utilizaram esse recurso de forma positivista, ao conceber a fonte imagética enquanto “documento-verdade”. Porto Alegre ressalta a importância do estudo semiológico para o tratamento da imagem. Desse modo entende que: Precisamos dominar melhor a problemática visual do símbolo e sua linguagem para alcançar uma compreensão mais adequada do lugar da imagem na consciência humana e na cultura [...] das funções ícones na vida social (ALEGRE, 1998, p.79).

Análise da imagem A imagem que analisarei a seguir foi publicada no jornal O Diário do Norte do Paraná no dia 17 de abril de 2004, em um

final de semana (sábado). A fotografia é de um jovem que se encontrava apreendido e, segundo o jornal, seria dependente de substâncias psicoativas (Thinner). É o destaque maior da primeira página acompanhado da manchete: Viciado fere vítima para se drogar, logo abaixo, aparecem duas fotografias menores, uma abordando a questão dos acidentes de trânsito, que vem tornando-se um grave problema na cidade de Maringá, resultando num crescente número de vítimas (fato bastante noticiado no momento). A foto ao lado aborda protestos de motoristas que no momento estavam enfrentando demasiada demora para descarregar a carga de soja no Porto de Paranaguá. A manchete principal “Vacina previne gripe em idosos”, aparece sem destaque, seguida pela foto aqui analisada. O ângulo escolhido pelo fotógrafo dá destaque às mãos do jovem que aparecem em primeiro plano entre as grades da cela. As mãos apresentam-se bastante feridas e queimadas, devido ao uso contínuo de Thinner, segundo a reportagem. O rosto do jovem aparece em segundo plano, com uma

Fotografia publicada em 17 de abril de 2004. Fotógrafo Walter Fernandes

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expressão sonolenta, cabisbaixo, causando a impressão de ainda estar sob efeito do solvente. A temática da fotografia, reforçada pelo ângulo em que essa foi produzida e pela submanchete (olho da notícia), causa-nos a impressão da imagem ter sido posada, sob orientações do fotógrafo. Note-se que o destaque refere-se às marcas que o Thinner teria deixado nas mãos do jovem, segundo informa a reportagem: “Nas mãos de Luiz Carlos.” As marcas evidenciam o consumo diário de Thinner – ele diz que começou a se drogar aos dez anos de idade”. A afirmação de que a foto pode ter sido posada fundamenta-se no fato de que as mãos do jovem ainda que apareçam em primeiro plano não escondem seu rosto. Na verdade essas deixam sua face no centro da imagem, porém no fundo, uma vez que as marcas mais aparentes que reforçam a expressão “viciado” encontram-se cravadas nas mãos. As mãos também aparentam ser muito grandes. A imagem, além da manchete e do olho da notícia, vem acompanhada de algumas informações a respeito do fato que teria levado à prisão do jovem, salientando que este teria ferido um mecânico em um bairro da cidade de Maringá para roubar uma lata de Thinner. Enfatiza ainda que após o mesmo ter sido apreendido na 9º Subdivisão de Delegacia Policial, estaria temendo ser morto por rivais, finalizando com a seguinte frase: “Apesar das mãos queimadas pela droga, faz planos de voltar ao vício assim que deixar a cadeia”. Na reportagem do sábado seguinte, 24 de abril de 2004, a foto foi novamente publicada pelo jornal, porém, no interior deste, em tamanho menor, em preto e branco (a fotografia publicada na semana anterior, destaque da primeira página é colorida, como podemos ver acima), acompanhado da manchete: “Consumo de Thinner aumenta 64

com fácil acesso. Logo abaixo da fotografia apresenta-se a seguinte frase: “Luiz Carlos de Souza mostra as mãos queimadas pelo Thinner”. Como se tal atitude fosse um ato espontâneo, o que não parece ocorrer de fato. A reportagem é iniciada salientando a respeito do aumento de ocorrências policiais envolvendo adolescentes e adultos usuários do solvente. Esta reportagem expõe a história de um jovem de 22 anos que teria ferido seu genitor após fazer uso da substância. Logo abaixo expõe novamente a história do jovem de 31 anos, da manchete do dia 17 de abril, afirmando que o mesmo seria viciado em drogas desde os 10 anos de idade. No entanto, a reportagem não menciona outro tipo de droga em momento algum. A ênfase atribuída pela reportagem relaciona o uso desta substância à crescente marginalidade na cidade de Maringá, praticada por adolescentes e jovens. Destaca-se que as imagens foram publicadas em dois finais de semana, para chamar a atenção para o fato de que a tiragem deste jornal ser maior nos finais de semana, e a possibilidade de propagação de idéias e valores pretendidos pelo jornal ter um maior alcance. Grande parte das reportagens do jornal, desde março de 2004 até o fim do referido ano, questionaram o aumento de população em situação de rua na cidade de Maringá, como a manchete do dia 28 de março destaca: “Mendigos estão mais visíveis”. Trazendo ainda o subtítulo: “A presença de mendigos tem incomodado a população...” Nessa mesma página (logo abaixo) há uma reportagem sobre a eleição para escolha dos novos conselheiros tutelares da cidade. Nessa reportagem o destaque principal é dado à crise entre este órgão deliberativo e a Secretaria de Assistência Social de Maringá (SASC). Nessa reportagem há uma imagem que mostra um adolescente

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descalço, sentado próximo ao que demonstra ser (pela movimentação dos carros), um sinaleiro, ponto em que crianças e adolescentes passam parte do dia pedindo dinheiro ou vendendo doces (fato também muito anunciado pelo jornal em questão). Fazse importante considerar que este é um ano eleitoral e o grupo proprietário do jornal defende um grupo político oposto ao que está no poder e que vai tentar a reeleição na cidade. Dessa forma, neste período, convém divulgar notícias como a de aumento da marginalidade, de crise entre órgãos públicos, de aumento de população em situação de rua, dentre diversas outras possibilidades de reforçar idéias manipuladas. Não está se afirmando que tal agravamento de problemas sociais não esteja ocorrendo, mas o que está em pauta é que essas idéias somente serão divulgadas ao público leitor se for de interesse do grupo ao qual pertence o jornal, sejam estes interesses políticos, econômicos ou outros. Os meios de comunicação têm esse poder de controlar e manipular as notícias e o farão de acordo com seus interesses. No entanto, há de se considerar que este jornal, desde a sua criação, (década de 1970), vem relacionando pobreza e marginalidade, independente da política partidária, conforme comprovam os estudos de Crishna Mirella de Andrade Correa, que analisou o processo de desfavelamento na cidade na década de 1970. Nesse sentido, cabem ainda algumas considerações a respeito da cidade, para que se compreenda esse contexto mais amplo, no qual as questões aqui discutidas encontramse inseridas. Fundada em 1947 pela Cia Melhoramentos Norte do Paraná, a cidade de Maringá foi planejada para ser um grande núcleo urbano, deste modo cresceu

rapidamente. A fala a seguir reflete bem essa intenção: A empresa colonizadora reservava a zona central de sua extensa gleba, um local privilegiado para o estabelecimento de uma cidade que polarizaria a parte mais ocidental de suas terras, dividindo com Londrina a liderança regional; serviria dessa forma, como centro propulsor de progresso para uma vasta e promissora área agrícola (LUZ, 1999, p.10).

A crença na modernidade, na industrialização que constrói cidades planejadas e ordeiras, acaba por traçar também o perfil a quem se destina essa cidade, com certeza não é para um usuário de Thinner, infrator. O espaço desse jovem está delimitado no discurso do jornal, ao sistema prisional. Veja que o jovem, segundo informações do periódico, teria sido apreendido devido ao fato de ter ferido outro jovem para furtar um frasco de Thinner. Ainda conforme a síntese da notícia que acompanha a fotografia, logo na primeira página, a vítima teria sido socorrida, porém, não apresentava “risco de morte”. No entanto, o jornal reforça que “Xiru foi preso e agora teme ser morto por rivais”. Como quem induz que tal pessoa seria perigosa para o convívio em sociedade, embora essa idéia não esteja explícita no jornal, mas é construída na relação texto/ imagem, afirmando ainda que: “Apesar das mãos queimadas pela droga, faz planos de voltar ao vício assim que deixar a cadeia”. Diante dessa questão é importante destacar que o jornal não consiste em um veículo que narra os fatos de uma maneira imparcial, mas “como um agente a olhar e registrar o cotidiano social a partir de valores definidos”. Todo jornal tem uma perspectiva que orienta o modo de produzir a notícia, de veicular a informação, de propagar idéias e

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valores culturais, “os fatos registrados não se constituem em verdades, mas sim em construções humanas, onde há toda uma subjetividade implícita” (ZANIRATO, 1999, p. 327). Portanto, as imagens da cidade, a modernidade urbana, seja a representada por fotógrafos ou pintores, são construções humanas, compostas a partir de determinadas visões de mundo. Essas representações fazem parte do contexto em que pessoas que registram tais imagens estão inseridas. Assim, as imagens da cidade, a modernidade urbana não estão apenas restritas ao registro do patrimônio arquitetônico, mas também ao registro da imagem dos sujeitos históricos que vivenciam a confusão dessa modernidade (como é o caso do jovem que teve sua imagem divulgada em “O Diário”). Bibliografia ALVES, Paulo. Experiência de investigação: pressupostos e estratégias do historiador no trabalho com as fontes. In: DI CREDDO, et al. Fontes históricas: abordagens e métodos. UNESP: Assis, 1996. AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 1995. ESSUS, Ana Maria Mauad de S. A.; GRINBERG, Lúcia. “O século faz cinqüenta anos”: fotografia e cultura política em 1950. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol.

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14, nº 27, 1994. CORREA, C. M. A.; ZANIRATO, Silvia Helena. Imagens do desfavelamento: discursos e olhares da imprensa maringaense. In: VIII Encontro Regional de História da ANPUH-Paraná. 150 anos de Paraná: história e historiografia, 2004, Curitiba. Anais do VIII Encontro Regional de História da ANPUH-Paraná: história e historiografia. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2004, v. 1. FELDMAN-BIANCO, Bela e LEITE, Miriam Moreira (orgs). Desafios da Imagem. Campinas, São Paulo: Papirus, 1998. GROMBRICH, Ernst H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986. KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989. LUZ, France. O fenômeno urbano numa zona pioneira: Maringá. Maringá: s/e, 1997. MARTINS, Sílvia Helena Zanirato. Imagens da Pobreza Urbana na Imprensa Paulista. O Estado de São. Paulo. 1933-1942. Diálogos: Maringá. Pr., v. 3, n. 3, p. 323-340, 1999. VILCHES, Lorenzo. La Teoria de la Imagen Periodistica. Barcelona, Paidos, 1993. ZANIRATO, Silvia Helena. A documentação fotojornalística na pesquisa histórica. Trajetos: Revista de História UFC. Fortaleza: UFC, vol. 2, nº 4, 2005.

Fonte: Jornal O Diário do Norte do Paraná: edições dos dias 28 de março, 17 e 24 de abril de 2004.

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NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

Novo Realismo e Internacional Situacionista: um estudo do questionamento da imagem pictórica pelas neovanguardas francesas

Gabriel Zacarias Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de, entre outros textos, “Abertura sob a mira de canhões”. In: FUSER, Igor.. (Org.). História Viva - Japão: 500 anos de História, 100 anos de Imigração. 1 ed. São Paulo: Duetto Editorial, 2008.

Tiago Machado Mestre e doutorando em História Social pela FFLCH-USP. Atualmente desenvolve pesquisas sobre a crítica da arte moderna e contemporânea.

RESUMO: Em meados da década de 1950, o campo da arte conheceria um novo fenômeno com o surgimento daquilo que Peter Bürger batizou de grupos de “neovanguarda”. Segundo o autor, as neovanguardas recuperavam a luta das vanguardas históricas contra a obra de arte “orgânica” e a autonomia da “instituição arte”. Nosso objetivo é o de resgatar o sentido histórico de algumas destas experiências, principalmente na França com o Novo Realismo e a Internacional Situacionista. Trata-se, sobretudo, de salientar como estas experiências buscam atualizar o campo da visualidade contemporânea nas artes plásticas, recolocando em xeque a autonomia putativa do plano pictórico através do uso de elementos que passam a integrar a vida cotidiana no capitalismo avançado. PALAVRAS-CHAVE: Neovanguarda; Novo Realismo; Internacional Situacionista

ABSTRACT: In middle of the decade of 1950, the field of the art would know a new phenomenon with the sprouting of what Peter Bürger baptized of groups of “neo-avantgarde”. According to author, “neovanguardas” recouped the fight of the historical vanguards against “the organic” work of art and the autonomy of the “institution art”. Our objective is to rescue the historical direction of some of these experiences, mainly in France with the New Realism and the Situacionism International. It is treated, over all, to point out as these experiences search to bring up to date the field of the visuality contemporary in the plastic arts, appointmente in scene the putative autonomy of the pictorial plan through the use of elements that start to integrate the daily life in the advanced capitalism. KEYWORDS: Neo-Avantgarde; New Realism; Situacionism

Recebido em: 09/04/2009

Aprovado em: 25/08/2009

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GABRIEL ZACARIAS; TIAGO MACHADO

Novo Realismo e Internacional Situacionista: um estudo do questionamento da imagem pictórica pelas neovanguardas francesas

Introdução: sobre o conceito de neovanguarda Em 1974, com a publicação de seu livro “Teoria da Vanguarda”, Peter Bürger introduz nas análises da arte contemporânea um termo muito influente: “neovanguarda”. Com este termo ele procurava dar conta de explicar os movimentos artísticos que retomam, a partir do fim dos anos 50, alguns dispositivos típicos das vanguardas da primeira metade do século XX, que procuravam alterar os modos de produção consagrados nas artes visuais, tais como os monocromos, os readymades, as colagens e as performances. Contudo, para compreendermos devidamente o peso de seu diagnóstico, seria conveniente, antes de enveredarmos pelo texto de Bürguer propriamente dito, analisarmos primeiramente uma influente definição de arte de vanguarda fornecida por aquele que pode ser considerado como o mais influente crítico da segunda metade do século XX, estamos falando de Clement Greenberg. Isto porque sua definição de vanguarda reorganizou a produção artística no imediato pós-guerra ao influenciar diretamente e de forma decisiva tanto o campo artístico norteamericano quanto o europeu, funcionando como um divisor de águas após a interrupção forçada das experiências radicais efetuadas entre 1917 e 1936. Em linhas gerais, sua definição de arte de vanguarda procurou ligar de forma indissociável a arte de vanguarda com a forma crítica de organização da obra. Para Greenberg a forma crítica consagrada pela 68

estética modernista norte-americana, pode ser resumida em duas características fundamentais. Primeiramente destaca-se a recusa ao caráter mimético da arte. A arte modernista teria por princípio não reproduzir imagens retiradas da natureza, mas se pautaria pela criação de um sistema de valores autônomos, ou seja, valores perceptíveis a partir da própria organização interna ao plano da pintura. Isto, por sua vez, implicou para o modernismo norte-americano numa orientação de pesquisa voltada para seu próprio meio, seguido pela essencialização das divisões categoriais das artes plásticas (pintura e escultura). Em segundo lugar, mas não menos importante, o modernismo, segundo Greenberg, se apoiaria sobre a constatação histórica deste movimento progressivo rumo à forma crítica, movimento este empreendido, sobretudo, pelo artista de vanguarda, cujo aparecimento dataria de meados do século XIX. Tal narrativa redundou em um modo peculiar de organização das múltiplas tendências da pintura de vanguarda. A história da pintura de vanguarda, escreve Greenberg, é a de uma progressiva rendição à resistência de seu meio; resistência esta que consiste sobretudo na negativa categórica que o plano do quadro opõe aos esforços feitos para atravessá-lo em busca de um espaço perspectivo-realista. (GREENBERG, 2001, p.51) Deste modo, no conjunto de sua obra Greenberg fez algo até então inédito. Ele ligou

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o conceito de vanguarda com a perseguição da arte pela arte, isto é, com a investigação própria ao meio no qual determinada arte opera. Em outras palavras: A marca distintiva dos movimentos modernos que ele chamou de vanguarda [...] seriam a constante busca por uma autonomia ou independência cada vez maior [...]. Isto é o que foi entendido como ‘modernismo’, ou tradição de ‘vanguarda’, onde estes dois nomes foram tomados efetivamente como sinônimos (WOOD, In: EDWARDS, 2004, p.3).

O esforço de Greenberg visava, sobretudo, manter a arte separada do campo das experiências cotidianas, uma vez que o autor já havia detectado em seu famoso texto “Vanguarda & Kitsch”, escrito em 1939, a impossibilidade da revolução socialista conjugada com a tendência totalitária do capitalismo avançado (Cf. GREENBERG, 2001). A tentativa de elaboração de um solo de legalidade própria para as obras de arte, com a clara intenção de dissociar a arte de vanguarda, com a ênfase em seus mecanismos internos de produção de sentido, de seu antípoda o Kitsch, que emula os efeitos da obra de arte em um ambiente mercantil, resultou na imposição de uma narrativa unívoca sobre o desenvolvimento da arte modernista. As pesquisas visuais estariam, segundo este esquema, limitadas pelo próprio meio consagrado pelo sistema artístico, e especificamente a pintura estaria limitada à suas convenções (tela esticada, chassi, tinta, etc...). O caráter problemático e redutor de tal organização certamente ficará mais claro se retornarmos à definição de Peter Bürguer. Segundo o autor alemão os movimentos artísticos de vanguarda atingiram seu ápice na Europa durante a primeira metade do século XX. Cada uma das diversas tendências

vanguardistas trabalhou com práticas peculiares de formalização do material artístico. Tanto assim que numa primeira aproximação seria difícil juntar na mesma categoria movimentos como o Dada Zurique, o Construtivismo Russo ou Neoplasticismo. A diferença específica instaurada pelas vanguardas, o elemento comum a todas é, segundo Bürger, melhor compreendida pela entrada em cena de uma noção nomeada “instituição arte”: Com o conceito de instituição arte, refirome, escreve Bürger, tanto ao aparecimento de produção e distribuição da arte quanto às idéias dominantes em arte numa época dada e que determinam essencialmente a recepção das obras. A vanguarda dirige-se contra ambos os momentos: contra o aparelho de submissão a que está submetida a obra de arte e contra o status da arte na sociedade burguesa, descrito pelo conceito de autonomia (BÜRGER, 1993,p.52).

Deste modo, as vanguardas históricas estariam, segundo Bürger, orientadas não apenas para uma reflexão autocrítica, mas, – e esta seria sua grande distinção – estariam atentas para o processo de significação que fundamenta a determinação da própria obra de arte como tal. Em última análise, as vanguardas se posicionariam contra a autonomia que coordena a recepção da obra na sociedade burguesa via “instituição arte”. Assim, as principais vanguardas históricas nas primeiras décadas do século XX, ao levarem a experiência modernista à suas últimas conseqüências, questionaram o conceito idealista de obra de arte (como portadora de categorias como autonomia, autoria e originalidade) – visariam, em última instância, o fim da obra de arte orgânica, e conseqüentemente o fim da instituição arte e a reintegração revolucionária da arte com a práxis vital.

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Todavia, curiosamente, sua análise não se furta a um duro juízo em relação a estas experiências, quando realizadas no território da Arte contemporânea, vinculando-as a mera reprodução de expedientes já inofensivos: A restauração da instituição arte e a restauração da categoria de obra indicam que hoje a vanguarda já passou à história. Naturalmente, verificam-se na atualidade tentativas de continuar a tradição dos movimentos de vanguarda[...]; tais tentativas, porém como por exemplo os happenings – que poderíamos designar como neovanguardistas – já não podem atingir o valor de protestos dos atos dadaístas, independentemente de poderem ser concebidos e realizados com maior perfeição. A razão disto está em que o meio proposto pelos vanguardistas perdeu desde então, uma parte considerável de seu efeito de choque. [...]. A recuperação das intenções vanguardistas e dos próprios meios de vanguarda já não pode, num contexto diferente, voltar a atingir o efeito restrito das vanguardas históricas. Enquanto o meio através do qual os vanguardistas esperam alcançar a superação da arte obteve com o tempo o status de obra de arte, a sua aplicação já não pode ser legitimamente vinculada à uma pretensão de uma renovação da práxis vital (BÜRGER, 1993, p.105).

Assim, para Bürger, os meios utilizados pela arte neovanguardista não seriam suficientemente críticos, ou seja, não estariam suficientemente distanciados, para desmontar o aparato da “instituição arte”, e integrá-la, dissolvendo-a em uma práxis vital renovada. Em outras palavras, a forma crítica tende a esgotar-se, pois a realidade, que neste 1

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caso específico é composta pelos diferentes fatores da instituição arte, internalizou as estratégias da crítica. O que é detectado aqui poderia atender pelo nome de declínio da forma crítica como modo privilegiado de organização das obras.(Cf. SAFATLE, 2008, pp.179-200) Bürger entende a arte de vanguarda do século XX como um modo de crítica à ideologia, na medida em que o objeto artístico é compreendido como um fenômeno que se mostraria a si próprio, recusando um sentido reificado, o que significa dizer, negando-se a assumir um papel ideológico. Ao invés de se apresentar como modo de naturalização da representação dos entes, a obra revelaria antes a sua estrutura de composição. A arte moderna seria um ponto importante de crítica à ideologia, pois exigiria de seus produtores e observadores uma busca pelo sentido construtivo da obra, movimento cuja culminância é o ato vanguardista que passa a questionar a sua própria recepção na sociedade burguesa. Por analogia a obra de arte assumiria, assim, um caminho similar ao da crítica. Apesar da narrativa de Bürger apresentar um maior grau de complexidade em relação a Greenberg, ela desvaloriza o retorno do questionamento do sistema da Arte, através de instrumentos já utilizados pelas primeiras vanguardas do século XX 1. Algo que passa a surgir graças às pesquisas plásticas do final dos anos 1950 e que atravessam toda a década de 1960, as quais em sua maioria já não se utilizam mais das grandes narrativas organizadoras do modernismo e do primado da divisão categorial das obras de arte 2.

Para o caso de Greenberg, Cf. BOIS. Yves-Alain. As emendas de Greenberg. Revista da Gávea, nº 12. Dezembro de 1994. Já para o caso Bürger Cf. FOSTER, Hal. The return of the real. Massachusetts: MIT Press,1996. p.8-15. Entrementes, vale a pena lembrar que ambos são ou foram (Greenberg) considerados críticos de esquerda, inspirados na teoria do funcionamento da ideologia desenvolvida por Karl Marx. Donald Judd, um dos maiores expoentes daquilo que viria a ser conhecido como minimalismo, chega a afirmar em seu texto/ manifesto: “Agora a pintura e a escultura são menos neutras, menos continentes, mais definidas, não inegáveis. [...] Grande parte da motivação subjacente aos novos trabalhos é livrar-se de tais formas.” “Não é como um movimento; de qualquer modo, movimentos já não funcionam mais, além disso, a história linear de algum modo se desfez.”. JUDD, Donald. Objetos Especificos. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (org.). Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p.96-97”

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A condenação de Bürger está baseada em uma posição bipolar que oscila entre a autenticidade e a farsa. Se por um lado ele compreende a diferença contida nesta repetição neovanguardista, por outro lado parece incapaz de se confrontar com a diferença implicada neste retorno aos dispositivos utilizados no entre guerras frente a uma relação histórica profundamente modificada. Segundo seu esquema explicativo as obras neovanguardistas ao não produzirem mais o efeito do “choque” estariam afastadas de suas posições críticas, e fatalmente condenadas a reproduzir as vanguardas históricas como mero entretenimento. Este veredicto, durante muito tempo impediu, e talvez ainda impeça, um exame mais adequado do que realmente esteve em jogo nas experiências neovanguardistas. Conforme afirma Hal Foster: Este tropo da tragédia seguida pela farsa é sedutor [...] mas dificilmente resiste como um modelo teórico, sem falar de uma análise histórica. Além disto, ele permite atitudes muito difundidas em relação à arte contemporânea, onde primeiro se constrói o contemporâneo como pós histórico, um mundo-simulacro, de falsas repetições e pastiches patéticos, e então condena-se este mundo como tal a partir de um mítico lugar da crítica posto além de todas estas questões (FOSTER, 1996, p.14).

Segundo Foster, o mero ato da repetição dos dispositivos criativos, típicos do surrealismo, dadaísmo ou do construtivismo, efetuado pelas neovanguardas merece análise cuidadosa, pois, se por um lado ele pode servir para a estetização do não-estético, através da adaptação das condições

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institucionais contemporâneas que já fazem um uso controlado do “choque ”; por outro lado, as intervenções acontecem em um tempo histórico muito diferente, ou seja, confrontando uma sociedade e uma “instituição arte” profundamente modificadas em relação à primeira metade do século XX. (Cf. BUCHLOH, 2002, pp.xii-xxiii) Assim, o gesto repetido, neste segundo momento da compreensão, implica relações qualitativamente diferentes e muitas vezes reflexivas. Neste sentido, Foster chega a detectar diferentes correntes neovanguardistas – que incluem a pop art, o minimalismo, a arte conceitual, o Grupo Fluxus nos Estados Unidos; o nouveau réalisme e a institutional critique, na Europa, entre outras – que trabalhariam na coordenação de dois eixos. Em primeiro lugar, no nível diacrônico, as neovanguardas propõem uma recuperação experimental dos dispositivos das primeiras vanguardas do século. Em segundo lugar, no nível sincrônico, procuram atualizar a sua questão fundamental, cujo eixo gira em torno do problema do estatuto da obra de arte na contemporaneidade. Neste modelo teórico, não se trata em absoluto de imputar um fim pré-estabelecido para as pesquisas artísticas contemporâneas, ou estabelecer uma simples relação de continuidade, ou ainda defender a originalidade das neovanguardas. Antes, tais práticas nos forçam a repensar essas categorias, pois, em última análise, a repetição dos dispositivos utilizados nas pesquisas das vanguardas históricas – readymade, monocromo, colagens, etc. – nada tem a ver com reprodução.3

“Eu quero defender, contra Bürger, que a suposição de um momento de originalidade histórica na relação entre vanguarda histórica e a neovanguarda não permite uma compreensão adequada da complexidade desta relação, pois, nós somos confrontados aqui com práticas de repetição que não podem ser discutidas somente em termos de influência, imitação ou autenticidade. Um modelo de repetição que poderia descrever melhor esta relação é o conceito freudiano de repetição que se origina na repressão e denegação”. BUCHLOH, Benjamin. Primary Colors p. 43. apud. FOSTER, Hal. The return of the real, p.237-238. Ainda sobre esta delicada questão metodológica V. FOSTER, Hal. Psychoanalysis in modernism and as method. In.: idem; et al. Art Since 1900. London: Thames & Hudson, 2004. pp. 15-21.

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Desta forma um modo de compreender algumas das mudanças nos materiais e métodos na produção da Arte no pós-guerra é vê-la como uma seqüência interna de investigações, por vezes sucessivas ou simultâneas. Num primeiro momento é conduzida uma investigação dos meios tradicionais da pintura, tal como elaborada pela forma crítica defendida por Greenberg; depois sobre as condições perceptivas de um objeto de arte como na Minimal Art; sobre as bases materiais de tais fazeres e percepções, como na Art Povera, Process Art e Body Art e o trajeto paralelo da Arte Conceitual que desviou sua atenção dos meios específicos da pintura e da escultura para questões gerais da “arte-enquanto-arte” ou da arte como vinculada ao lugar institucional onde se apresenta. (Cf. FOSTER, 2004, p.624) Em suma, é possível dizer que o questionamento da obra modernista da qual a pintura americana (defendida por Greenberg) é um caso modelar, dá ensejo à retomada múltipla e sistemática das pesquisas efetuadas no período de entre guerras (que por sua vez é condenada por Bürger), em um momento de profunda alteração do campo artístico e das práticas culturais no final da década de 1950, nos dois lados do Atlântico. Assim, frente às modificações de longo alcance nos padrões de sociabilidade no pósguerra, principalmente entre os paises capitalistas avançados, em quase todos os casos, estes paradigmas (o monocromo, o readymade, etc) aparecem agora como voltados para articular a experiência fundamentalmente diferente dos objetos e dos espaços públicos sob uma recém formada sociedade de espetáculo, controle e consumo (idem, p.434) .

Portanto, trata-se de investigar exatamente a ambigüidade inerente à posição ocupada pelas neovanguardas. A 72

articulação da experiência contemporânea não pode ser formulada pelo distanciamento da forma crítica que, entre outras coisas, dependia implicitamente do caráter da autonomia relativa do campo artístico. As neovanguardas ocupam antes uma posição intermediária entre a crítica de seus pressupostos, através da utilização dos expedientes antiestéticos apresentados pelas vanguardas históricas, e a agenda afirmativa da Indústria Cultural que passa a se expandir de modo a englobar todas as esferas da circulação cultural no cenário contemporâneo. (Cf. BUCHLOH, 2002). É exatamente esta posição que seria importante investigar, pois é dela que emergem as experiências mais radicais da visualidade nascente. Os novos realistas “Nós somos mesmo os vampiros da sensibilidade do mundo” Yves Kein, 1960

Um estudo de caso desta posição de ambigüidade poderia ser feito a respeito do Novo Realismo francês. O movimento foi criado de forma oficial em 1960 mediante a assinatura da seguinte declaração: “Os novos realistas se conscientizaram de sua singularidade coletiva. Novo Realismo = novas abordagens perceptivas do real. Assinado: Arman, Dufrêne, Hains, Klein, Raysse, Restany, Spoerri, Tinguely e Villeglé”. Rapidamente, o núcleo inicial do movimento é expandido, ganhando a adesão dos artistas César (1921-1998), Gérard Deschamps (1937), Mimmo Rotella (1918), Niki de SaintPhalle (1930 – 2002) e a simpatia do búlgaro Christo (1935). Esta definição sintética é de responsabilidade do crítico Pierre Restany, que trabalhou arduamente na divulgação do grupo, procurando coesão em meio a uma experiência com múltiplos materiais. Talvez

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seja possível ir além desta formulação sintética dada pelo crítico francês, na medida em que se pode verificar em todos os artistas vinculados ao movimento a consciência da crise dos meios tradicionais da arte e, principalmente, do esgotamento da pintura abstrata (lírica, informal, geométrica, expressionista-abstrata, gestual etc.), com sua forma crítica, sendo este diagnóstico do estado da Arte o ponto do qual o movimento parte e no qual fundamenta sua ação. Os novos realistas reclamam a criação de uma expressividade, à altura de uma realidade sócio-cultural caracterizada pela hegemonia norte-americana no pós-guerra, pela máquina, pela cultura de massa e informação, pela publicidade, pelos avanços tecnológicos que modificam o ambiente mais prosaico da vida cotidiana como os novos objetos que invadem a vida privada tais como os eletrodomésticos, por exemplo, e, politicamente, pela realidade da Guerra Fria e pelos movimentos anticoloniais. Tomando como ponto de partida a “antiarte” dadaísta, os artistas ligados ao movimento buscaram se desvincular da necessidade de uma proposta estética de fundo modernista, o que tornou possível a entrada, no campo do estético, de novos materiais próprios à sociabilidade cotidiana. Os novos realistas advogavam, então, a necessidade de um novo passo: O espírito dadá se identifica com um modo de apropriação da realidade exterior do mundo moderno. O ready-made já não é o cúmulo da negatividade ou da polêmica mas o elemento de base de um novo repertório expressivo.4

4

As atividades do grupo não acontecem apenas no espaço consagrado do circuito artístico. Apesar de não desconsiderá-lo apostam em algo mais do que a via de mão dupla entre a galeria e o estúdio. Isto aparece de maneira clara em uma declaração de Yves Klein, ao comentar a obra do artista norteamericano Rauschenberg, ainda considerado por ele como preso à lógica da forma-pintura, numa entrevista concedida em 1960, junto com Arman e Martial Raysse: KLEIN: Esse foi um dos pontos que desde o início me inspirou, pois eu cheguei a pegar um rolo para me distanciar do pincel; um rolo muito mais anônimo, a cor estava em si mesma. ARMAN: Eu também, com meus ‘carimbos’ ou minhas ‘espécies de objetos’, tentei suprimir o pincel. KLEIN: Como Martial também, que vai ao Uniprix [supermercado] e saqueia as prateleiras...(In.: FERREIRA, 2006, p.56)

Assim, os novos realistas procuram atuar em ambientes ampliados, utilizando o próprio espaço modificado pelas instituições do capitalismo tardio como um meio ou como manancial de materiais. A produção inclui colagens, instalações e happenings, num claro desenvolvimento da uma releitura de Duchamp e Schiwitters, entre outros. Hains, Villeglé e Dufrêne, dilaceram grandes cartazes publicitários encontrados na rua e aplicam seus resíduos na composição das obras. Através de uma utilização não ortodoxa da colagem (décollage) desfazem o sentido expresso das campanhas publicitárias, restando delas sua pura materialidade, pronta para ser retraduzida ou reutilizada.

O excerto é do segundo manifesto do grupo, de maio de 1961, intitulado Quarenta graus acima de dadá. Cf. RESTANY, Pierre. Os novos realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979, pg.146.

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Arman, em 1958, inicia a sua série Accumulations, composta de um grande número de um mesmo tipo de objeto envolvido em plexiglas. O ponto culminante destas pesquisas é sua “exposição” de 1960 Le Plein na galeria Íris Clert em Paris, cujo espaço é preenchido por completo por objetos acumulados e oriundos da cidade. Os objetos são amontoados de tal forma que parecem forçar as janelas, único ponto de visibilidade da “obra”, em direção ao exterior. Os passantes não podem deixar de associar o espaço, antes organizado e organizador da galeria, com um enorme depósito de lixo. Resíduos absolutamente incongruentes se não fosse pela presença de um continente, nova função da galeria, que lhe assegura um sentido, que impede que todos aqueles objetos acumulados simplesmente desabem sobre eles. Já Christo opera diretamente sobre a paisagem urbana, não entende a cidade apenas como manancial de materiais, mas como um cenário para intervenções. No capitalismo intensificado do pós-guerra, o espaço das ruas, monumentos, prédios que compõem a cidade por onde o sujeito transitava e vivia se transformam, eles próprios num campo ampliado para as especulações do processo de valorização do capital, que acontece às costas dos habitantes, envolvidos que estão pela normalidade aparente da vida cotidiana. Frente a este cenário Christo “envolve em plástico monumentos e até trechos de paisagem, quase recriando um estado de curiosidade em relação a fatores ambientais que haviam se tornado costumeiros e, portanto, desinteressantes” (ARGAN, 1992, p.589). Além dos “empacotamentos”, com suas ressonância com o modo como os produtos são apresentados/velados no universo do consumo contemporâneo, Christo também 74

utiliza o “empilhamento”. Modo através do qual faz uso de barris encontrados nas docas de Paris para reutilizá-los em outros pontos da cidade. Tal como na célebre instalação na Rue Visconti, epicentro dos movimentos anticoloniais empreendidos pelos imigrantes argelinos em Paris. Feita em parceria com sua esposa Jeanne-Claude, a instalação de 1962 foi intitulada “Cortina de Ferro”, na qual uma parede de barris foi erguida impedindo por horas a passagem dos transeuntes. As relações desta instalação com o clima político da época são evidentes. Sob a liderança de Gaulle, o homem símbolo da resistência antifascista durante a II Guerra, a França perseguia interesses petrolíferos na Argélia, acionando todo o mecanismo de dominação colonial. Ao passo que do outro lado do muro de Berlim, erguido na calada da madrugada de 13 de Agosto de 1961, Moscou endurecia seu regime no Leste Europeu. (Cf. KODDENBERG, In: NEUBURGER, 2005) Neste mesmo contexto, vale lembrar que em 1956 a União Soviética já havia invadido e ocupado Budapeste, cidade natal de Christo. Para todos estes artistas trata-se, em suma, de uma ampla tentativa de religar a esfera da arte ao mundo fora dela, ou seja, as instituições, espaços e lugares que a circundam, baseando-se na introdução dos elementos da realidade cotidiana nos trabalhos de arte. Com isso a esfera da visualidade não está mais vinculada ao primado do meio específico, a imagem não adquire sentido pleno somente a partir de sua própria esfera autônoma de valores, com se pensava no modernismo greenbergniano. A imagem suporta propostas multisensoriais que, no limite, ao transformarem-se em objeto, investigam o regime de consumo, circulação e divisão das coisas, dos lugares públicos e as funções das galerias, revelando limites políticos e institucionais antes fora do alcance da Arte.

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Contudo, poderíamos afirmar que as experiências do Novo Realismo francês ao se desfazerem da negatividade inerente às pesquisas das vanguardas históricas se comprometem, mesmo sem o saberem completamente, com as instituições vigentes ao mesmo tempo em que as evidencia como elementos essenciais na determinação da visualidade. As placas de publicidade ainda estarão lá no dia seguinte às intervenções, estas inevitavelmente dependem das primeiras para gerar a sua proposição. Neste sentido, mesmo repleta de entulho uma galeria ainda é uma galeria, a obra depende desta tautologia para gerar o seu próprio sentido. Lembremos também que o termo “novo realismo” já havia sido utilizado por Fernand Léger em 1936 para designar o mundo moderno, repleto de objetos industrializados, de máquinas, aberto às modificações permanentes do progresso técnico. A Internacional Situacionista: experiências de Guy Debord

as

A Internacional Situacionista é, certamente, um dos exemplos mais intrigantes das neovanguardas francesas. Estudá-lo não é tarefa das mais fáceis, dado o caráter ainda incipiente das pesquisas a respeito de sua produção, iniciadas com mais ênfase apenas na última década. Insuficientemente problematizado é ainda o pensamento de Guy Debord, figura central cujos gestos delinearam os contornos unificadores do grupo. Deste modo, nosso objetivo será apenas o de salientar as respostas oferecidas pela Internacional Situacionista aos problemas já levantados, marcando sua proximidade e distanciamento

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para com as alternativas repisadas pelos Novos Realistas. Antes de tudo, convém retomar um pouco da trajetória de Debord e seu grupo. A trajetória de Debord inicia-se mais precisamente em 1951, com sua adesão ao Letrismo, grupo vanguardista parisiense que se reunia em torno do autor romeno Isidore Isou. Ainda garoto, residente em Cannes, Debord assiste à intervenção do grupo de Isou no Festival de Cinema. Prontamente identifica-se com estes jovens “si résolus dans leur volonté de détruire le cinéma” (BOURSEILLER, 2001, p.66). A partir daí, o cinema guardaria um lugar privilegiado na motivação das reflexões de Debord. Em 1952 Guy Debord realiza sua primeira obra, que é justamente um filme: Hurlements en faveur de Sade. No mesmo ano, uma discordância sobre Chaplin motiva sua ruptura com Isou, seguida da fundação da Internacional Letrista. Debord e seus colegas estavam longe de ter o ator inglês em alta conta, como Isou que lhe pagara tributo em seu filme “Traité de Bave et d’Éternité” (1951) 5. O primeiro escândalo da Internacional Letrista foi, assim, um ataque publico à Chaplin quando este estava na França para lançar Limelight (idem, p.79). O manifesto dos acusadores, “Finis les pieds plats”, agradou tanto a René Margritte que acabou por motivar algumas contribuições de Debord na revista editada pelo pintor belga, La carte d’après nature (DUWA, 2008, p.57) . A aproximação com Margritte, embora tenha durado apenas dois anos, demonstrava uma opção estratégica do grupo recémfundado por Debord. Tratava-se, em suma, de buscar pontos de apoio que o permitisse guardar distância do grupo surrealista de

O filme de Isou encontra-se disponível na internet através do seguinte endereço: http://www.ubu.com/film/isou.html

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André Breton. O surrealismo parisiense reconstituíra-se no pós-guerra, mas não contava mais com a mesma radicalidade política, sendo agora reconhecido no interior das instituições artísticas. A juventude letrista entendia como sua a missão de retomar aspirações que os surrealistas haviam abandonado. Desta forma, a ação letrista se abre à exploração do espaço urbano através da deriva e da psicogeografia, noções que guardavam relações diretas com experiências anteriores do surrealismo (Cf. ANDREOTTI e COSTA, 1996, p.40). Ao mesmo tempo, a prática dos escândalos que tinham como alvos privilegiados a arte oficial, tão pertinente ao Dadá e ao Surrealismo do entre-guerras, era atualizada pelo grupo de Debord. Agora, porém, os próprios surrealistas tornavam-se alvos, compreendidos como incorporados aos cânones estéticos. Neste primeiro momento, Debord buscou afastar-se da figura de André Breton através de uma aproximação com os surrealistas belgas que haviam rompido com o escritor francês. Assim foi com Margritte, quando este rompeu temporariamente com Breton. Mais duradoura, porém, foi a aliança com o grupo de Les lèvres nues. No periódico homônimo editado por Marcel Mariën foram publicados alguns dos textos fundamentais que Debord produziria com a Internacional Letrista. Textos como “Mode d’emploi du détournement”, escrito em 1956 com Gil Wolman, no qual Debord apresentava aquela que seria sua principal proposta de ação estética, o détournement 6. Como veremos mais adiante, o détournement continuaria a ocupar um papel central na produção artística da

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Internacional Situacionista, grupo que, formado pouco depois, partia de novas alianças, marcando o afastamento entre Debord e o grupo belga – o qual foi dissolvido em 1958 (DUWA, 2008, p.79). A Internacional Situacionista (IS) foi fundada em 1957 com a união dos grupos artísticos que à época se reuniam em torno de Asger Jorn e de Guy Debord, o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (MIBI) e a Internacional Letrista (IL), respectivamente. Nos primeiros periódicos da IS encontramos importantes referências e textos destes e outros grupos precedentes, como o grupo CoBrA animado por Jorn em fins da década de 1940. Até a década de 1960, a atuação da IS esteve quase que circunscrita ao campo da arte, e outros grupos e artistas viriam a aderir ao movimento, como o arquiteto holandês Constant e o grupo alemão Spur. Porém, em 1962 o grupo teve uma última debandada de artistas e, com a entrada de Raoul Vaneigem, o debate político tornou-se o eixo de suas publicações. Neste mesmo ano, Jorgen Nash, irmão do pintor Asger Jorn, tentou ainda reagrupar os exsituacionistas em torno de uma dissidência voltada para a produção artística. A “Segunda Internacional Situacionista” durou até 1966, produzindo uma publicação em inglês a “Situationist Times”. As exposições que, desde fins dos anos 1980, tem revisitado a obra dos situacionistas costumam incorporar o trabalho de Nash e seu grupo. Enquanto isso, Guy Debord e seu grupo voltaram-se decididamente ao pensamento político. A Internacional Situacionista se envolveria então em debates com os grupos de Arguments de Edgar Morin, e Socialisme

O artigo foi publicado em maio de 1956 no oitavo número de Les lèvres nues. Na capa do periódico o texto era anunciado como de autoria de Breton e Aragon. Cf. DEBORD, Guy. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2006, p.221.

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ou Barbarie de Cornelius Castoriadis7. Esse caminho resultaria na publicação dos trabalhos mais célebres de Debord e Vaneigem – La société du spectacle e Traite de savoir-vivre à l’usage des jeunes generations, respectivamente – e na conseqüente importância do grupo nos acontecimentos do Maio de 68. Alguns anos mais tarde, e em parte por conta da notoriedade adquirida em 68, Debord optaria pela dissolução do grupo. O autor voltaria, então, à atividade cinematográfica, a qual havia interrompido no início da década de 1960. No que diz respeito, mais especificamente, a relação entre o grupo de Debord e o Novo Realismo, é pertinente acreditar que situacionistas e novos realistas, atuantes na década de 1950, cruzaram-se por diversas vezes nos meios da avant-garde parisiense. É o caso de Debord e François Dufrêne, que pertenceram ao grupo letrista de Isidore Isou, ou ainda de Debord e o mais notável membro do Novo Realismo, Yves Klein. Segundo Bourseiller, houve um período em que Debord e Klein nutriram certa afinidade. Klein chegou a pedir a Debord que prefaciasse uma de suas exposições dos Monocromos, enquanto este teria cogitado a integração de Klein na IS. Porém, o misticismo militante de Klein parece ter sido o ponto de impasse. Em “L’absence et ses habilleurs”, texto de 1958, Debord esclarece suas diferenças com as posturas místicas de importantes personagens do cenário artístico como o crítico Michel Tapié, o músico californiano John Cage e o próprio Yves Klein (Internationale Situationniste, p.38). A diferença é tanto mais necessária se

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pensarmos na aproximação possível entre as telas monocromáticas de Klein, a música silenciosa de Cage e o filme letrista de Debord, Hurlements en faveur de Sade, realizado em 1952 (mesmo ano em que Cage apresentava 4’33'’). Mas a questão que se colocaria, então, seria a seguinte : como intenções distintas poderiam determinar, todavia, experimentos artísticos semelhantes? Seria necessário buscar categorias capazes de dar conta desse mesmo movimento geral da arte do pós Segunda Guerra, mas que não incorressem numa qualificação universal que suprimisse a diferença específica dos diversos intentos. Nesse sentido, teríamos que notar a incongruência patente entre as proposições gerais formuladas por Peter Bürger a respeito das “neovanguardas” e o que há de mais notável na experiência situacionista. Parece bastante evidente que toda reflexão situacionista, notadamente aquela formulada por Guy Debord, coloca-se como uma reflexão atenta ao momento histórico que lhe é específico. As proposições de Debord sobre a arte tomam como ponto de partida a constatação de um processo de alteração radical nas formas de sociabilidade, a partir do segundo pós-guerra. É em meio a essas transformações que Debord assinala a centralidade da cultura como novo “campo de batalha” do político, o que significava que uma tomada de posição política deveria ser então compreendida como uma tomada de posição frente à produção cultural, quer àquela ainda confinada aos limites de uma arte institucionalmente reconhecida, quer àquela validada a partir das intenções

Debord esteve próximo ao grupo de Socialisme ou Barbarie entre 1959 e 1960. O resultado desse encontro foi o escrito conjunto com Daniel Blanchard, Préliminnaire pour une définition de l’unité du programme révolutionnaire. Porém, mais voltado às preocupações estritamente políticas, o restante do grupo, ao contrário de Blanchard, parece não ter se animado muito com o pensador situacionista. Cf. BLANCHARD, Daniel. Debord dans le bruit du caractère du temps / suive de Prélimiaires pour une définition de l’unité de programme révolutionnaire. Paris, Sens & Tonka éditeur, 2000.

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utilitárias da Indústria Cultural. Tudo isto marcará as opções estéticas do grupo, bem como a formulação teórica de Debord, a qual acabaria por se sobressair com A sociedade do espetáculo. Entrementes, vale observar ainda mais um ponto no que concerne ao trabalho de Bürger. Este e Debord conservam algumas premissas afins no que diz respeito a suas bases teóricas. Ambos encaram o campo do estético a partir da atualização de questões caras ao marxismo ocidental. E é quando deixam entrever as ressonâncias de uma filosofia da história que os autores incorrem no risco de apreciação indevida do objeto. Ávido leitor que fora das obras de Marx, Debord ficaria surpreso ao saber que o “18 Brumário de Luís Bonaparte” forneceria o modelo para que Bürger desqualificasse os intentos situacionistas como “farsa”. 8 De toda forma, Debord também não deixou de, por vezes, descartar os intentos de seus contemporâneos a partir de uma atualização do “fim da arte” hegeliano. Seu gesto, porém, era mais claro que o de Bürger, já que se tratava de formular argumentos vivos para uma disputa em jogo, e não uma teoria acadêmica retrospectiva. Além disso, as proposições teóricas de Debord a respeito da arte não podem ser tomadas isoladamente, compondo na verdade um conjunto com as propostas experimentais dos situacionistas, bem como com a teoria do espetáculo. É preciso ter em conta que as neovanguardas francesas não ignoravam a distância que as separavam das vanguardas históricas. Isto é verdade tanto para a Internacional Situacionista quanto para o Novo Realismo. Enquanto aqueles adotaram como postura fundadora uma relação 8

conflituosa com o Surrealismo, estes optaram por enunciar um laço problemático com o Dadá. Em outros termos, os passos iniciais de ambos os grupos tinham sido marcados justamente por um acerto de contas com o passado das vanguardas históricas. Mas nenhum dos dois o fizera descuidadamente. Assim, como os grandes filósofos da repetição insistem em nos mostrar, a repetição não é nunca o retorno do idêntico, implica necessariamente numa mudança qualitativa. Tal mudança era explicitada nos propósitos dos grupos, e é justamente aí que podemos vislumbrar suas diferenças de pressupostos. Para os novos realistas, tratavase de recuperar o gesto Dadá, gesto originalmente negativo, e torná-lo uma possibilidade positiva. Eles entendiam, então, que a crítica dirigida pelas vanguardas à instituição arte havia cumprido seu papel, a saber: permitir a renovação das possibilidades expressivas exigidas pela modificação material da sociedade. Os situacionistas, sem dúvida, também guardavam relações de continuidade para com os procedimentos do Dadá. As fotomontagens e filmes de Debord são disso testemunhas. Mas sua proposta de apropriação de materiais diversos era distinta daquela dos novos realistas. A medida dessa diferença pode ser dada justamente pela distância que o grupo tentou marcar para com o Surrealismo. Se os novos realistas tinham uma proposta de atualização dos procedimentos estéticos do Dadá, os situacionistas queriam retomar justamente o gesto antiarte de negação da instituição. E enquanto os novos realistas espelhavam-se numa vanguarda que se perdera no passado e que era, em suas próprias palavras, um

É bom deixar claro que o termo “farsa” não é empregado por Bürger, que tampouco faz qualquer referência direta aos situacionistas. Tomamos aqui a já mencionada interpretação tópica que Foster faz de Bürger, colocando-a em relação com nosso objeto de análise.

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“mito”, os situacionistas tentavam acertar suas contas com um surrealismo atuante. Reconhecido nos meios culturais parisienses, o grupo dirigido por Breton era, para os situacionistas, protagonista de uma “amarga vitória” (Internationale Situationniste, 2004, p.3). As críticas situacionistas tinham por objetivo reavivar a demanda da realização da arte que o grupo de Breton abandonara. IS vs. NR Podemos dizer que para os situacionistas, a reconversão da arte em direção à práxis vital – apenas para ficar nos termos de Bürger – era ainda o problema central, uma vez que este objetivo vanguardista não havia sido atingido. Neste sentido, os situacionistas estavam na contramão dos novos realistas que levavam a “realidade exterior do mundo moderno” para dentro das galerias. Realmente na contramão, se lembrarmos que o Novo Realismo se articulou alguns anos depois que a Internacional Situacionista e, com experiências passadas em comum, acabou significando uma experiência institucionalmente bem-sucedida de propostas já ensaiadas anos antes pelos situacionistas.Talvez por isso a ascensão do Novo Realismo seja contemporânea do afastamento da Internacional Situacionista da arte institucional, com sua guinada para o debate político. Essa abertura para além dos limites da arte fora já o motor das atividades internacionalletristas nos anos 1950, período em que Debord formula as concepções que dariam base às atividades posteriores dos situacionistas. Seu grupo tinha por objetivo principal desenvolver uma nova relação com o espaço urbano. Crítico da arquitetura funcionalista que tinha em Le Corbusier seu expoente, o grupo entregava-se à “deriva”:

uma longa deambulação casual que tinha por fim repensar uma organização afetiva do espaço urbano, capaz de romper com a lógica utilitária das comunicações. Esse deambular casual pela cidade, embora de clara inspiração surrealista, não apostava, porém, na revelação do inconsciente. Pelo contrário, tratava-se da tentativa de estruturar aquilo que seus praticantes entendiam mesmo uma nova ciência, a qual chamaram de “psicogeografia”(Cf. BERENSTEIN, 2003). Mais tarde, a psicogeografia seria a noção de base para os trabalhos de Raymond Hains, outrora membro de uma dissidência letrista, que como membro do Novo Realismo notabilizou-se por suas colagens elaboradas com cartazes extraídos das ruas. Esse movimento de deslocamento de material, como o dos cartazes das ruas, era também aparentado a outra proposta elaborada por Debord ainda em 1956, a qual receberia o nome de “détournement” (desvio). O détournement tornou-se, para a IS, o elemento unificador de trabalhos diversos como os de Pinot-Gallizio, Constant, Asger Jorn e Guy Debord. Este simples procedimento de desvio consistia no esvaziamento do sentido original de um produto cultural seguido de sua ressignificação a partir da inserção num novo contexto. Logo, em comparação com aquela “apropriação dos elementos da realidade exterior”, advogada pelo Novo Realismo, o détournement situacionista apresentava uma diferença. Como bem notou Hal Foster, enquanto o détournement pregava uma dialética de desvalorização/revalorização do elemento artístico desviado, o Novo Realismo se pautava apenas por uma acumulação de produtos (FOSTER, 2005, p.390). Para a Internacional Situacionista, a liberação do material proporcionada pela crítica vanguardista – o que os novos realistas

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chamaram de o “não” Dadá – fazia de todo produto cultural um material esteticamente válido, de acordo com sua ressignificação. Jorn podia então construir novas obras – ou “modificações” – sobre quadros baratos comprados em mercados urbanos, bem como Anna Karina podia ser desavisadamente deslocada de um anúncio de sabonetes para um filme de Debord (trata-se de Sur le passage de quelques personne à travers une assez courte unité de temps de 1959). A partir daí, a proposição fixada por Jorn era simples e contundente: “tous les élements du passé culturel doivent être “réinvestis” ou disparaître”. (Internationale Situationniste, 2004, p.78) Percebemos, então, um conjunto de questões comuns no debate estético francês desta época, que permeavam as ações dos grupos aqui analisados. O Novo Realismo, como movimento articulado por um crítico de arte em ascensão, Pierre Restany, tendia a apresentar tais questões sob a forma de ações artísticas institucionalmente válidas. Assim, a mesma idéia de “deriva”, tão importante para Debord e os grupos estéticos que capitaneara nos anos 1950, reapareceria em grandes ações coordenadas por galerias, como aquela organizada pela Galerie Légitime na cidade de Paris em 1962, ação que contava ainda com obras de outros artistas renomados como Cage, Higgins, Brecht e La Monte Young (Cf. NEUBURGER, 2005). O objetivo situacionista, porém, não era o da constituição de obras de arte, mas o emprego experimental de elementos artísticos. A proposição central da Internacional Situacionista era a “situação construída”, uma unidade espaço-temporal marcada pelo emprego experimental e unitário de todos os meios artísticos. Às obras de arte era novamente restituído seu valor de uso. Aparecia aqui uma nova pintura cujos limites não eram mais o da tela – basta pensar 80

nos imensos rolos de pintura industrial de Pinot-Gallizio – e cuja autonomia era negada: toda arte deveria ser apenas “cenário” para um “jogo de acontecimentos”. (Internationale Situationniste, 2004, p.11) Conclusão Nas “neovanguardas” francesas aqui analisadas (Novo Realismo e Internacional Situacionista) aparece claramente a tendência à destituição da potência da imagem como portadora única de sentido. Apesar dos desacordos entre os dois movimentos, a questão central que envolveu as pesquisas girou em torno de um tema vanguardista semelhante: qual seria o sentido de uma obra de arte e qual o seu lugar no mundo contemporâneo. Enquanto o Novo Realismo tendia cada vez mais a introduzir um solo de legalidade para os novos materiais e procedimentos dentro da esfera da instituição arte, a Internacional Situacionista, por sua vez, passou a se afastar das experiências estéticas em favor de uma atuação política mais contundente. Todavia, em ambos os casos, as pesquisas apontaram para um alargamento na compreensão da função da imagem numa sociedade cada vez mais dominada pelos massmedia. No caso mais específico das formas estéticas, e sobretudo da pintura, após as constantes inversões entre as séries de objetos da vida cotidiana e do sistema artístico, tornou-se claro que a imagem não poderia mais ser tratada de maneira autônoma. Mesmo a forma crítica consagrada pelo modernismo estaria alicerçada sobre uma instância produtora de sentido, um invisível que produz suas condições de visibilidade. A imagem produzida no campo da arte surge, então, como uma prática material dotada de sentido provisório.

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NOVO REALISMO E INTERNACIONAL SITUACIONISTA: UM ESTUDO DO QUESTIONAMENTO DA IMAGEM PICTÓRICA...

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Imágenes gráficas y fotografías en una experiencia escolanovista (Rosario, Argentina: 1935-1950) María del Carmen Fernández Magíster en Educación, con Mención en Historia y Prospectiva por la Universidad Nacional de Entre Ríos (Argentina). Docente en la Escuela de Ciencias de la Educación, Facultad de Humanidades y Artes, UNR – Argentina y Núcleo Histórico Epistemológico de la Educación. Autora de artículos publicados en revistas especializadas referidos a Historia de la Educación.

María Elisa Welti Magíster en Educación por la Universidad Nacional de Entre Ríos (Argentina). Profesora Adjunta en el Núcleo Histórico-Epistemológico de la Educación y en la cátedra de Curriculum y Didáctica de la Escuela de Ciencias de la Educación de la Universidad Nacional de Rosario (Argentina). Autora de artículos referidos a la Historia de la Educación.

Rubén Biselli Profesor de Enseñanza Media y Superior en Letras por la Universidad Nacional de Rosario (Argentina). Profesor Adjunto de la Cátedra de Lenguajes I de la Carrera de Comunicación Social de la Universidad Nacional de Rosario. Co-autor del libro Introducción a los lenguajes: la fotografía y de artículos sobre tecnologías comunicacionales y dispositivos mediáticos.

RESUMEN Este artículo presenta parte de una investigación centrada en la actividad educativa de Olga y Leticia Cossettini en la ciudad de Rosario (Argentina) entre 1935 y 1950. Tomamos aquí un aspecto singular y destacado de esta experiencia desarrollada en la Escuela Dr. Gabriel Carrasco de la ciudad de Rosario durante el período analizado: el registro fotográfico – y gráfico – de las actividades educativas cotidianas. Las numerosas fotografías que dan cuenta de la experiencia no son ajenas, desde nuestra perspectiva, a la singular articulación entre imagen y enseñanza que se evidencia en otros aspectos de la propuesta pedagógica. El avance efectuado en esta investigación nos permite además reflexionar acerca de cuestiones teórico-metodológicas relativas al análisis de fuentes gráficas – imágenes o fotografías – en la investigación histórico-educativa y evaluar el aporte de diversas disciplinas como la semiótica de las imágenes o la historia de las tecnologías comunicacionales en la apreciación de dichas fuentes.

ABSTRACT This paper can be interpreted as part of the investigation on Olga and Leticia Cossettini’s educational activity in Rosario (1935-1950). In this article, we will focus on a particular and prominent aspect of the experience that took place at “Dr. Gabriel Carrasco” School in Rosario during the period of analysis: the photographic record of daily educational activities. From our point of view, the many photographs that account for the experience are not free from the singular articulation between images and teaching, also evident on other aspects of the pedagogic proposal. The progress in this investigation also allows us to reflect on several theoretical and methodological problems concerning the analysis of graphic sources – photographs, images in general – in the field of History of Education Research. Recebido em: 08/05/2009

Aprovado em: 25/08/2009

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Imágenes gráficas y fotografías en una experiencia escolanovista (Rosario, Argentina: 1935-1950)1

Introducción Este artículo presenta parte de una investigación centrada en la actividad educativa de Olga y Leticia Cossettini en la ciudad de Rosario (Provincia de Santa Fe, Argentina) entre 1935 y 1950. Tomamos aquí un aspecto singular de esta experiencia desarrollada en la Escuela Dr. Gabriel Carrasco de la ciudad de Rosario durante el período analizado: el registro fotográfico – y gráfico – de las actividades educativas cotidianas. Las numerosas fotografías producidas durante el desarrollo de esta experiencia no son ajenas, desde nuestra perspectiva, a la singular articulación entre imagen y enseñanza que se evidencia en otros aspectos de la propuesta pedagógica: la presencia de imágenes de diverso orden constituyó, sin lugar a dudas, un elemento ineludible de la misma. En este peculiar contexto se destaca la imagen que funciona como registro, como huella de la experiencia escolar: nos referimos a las imágenes producidas por los alumnos en cuadernos o láminas que remiten a acontecimientos vividos en la escuela (tales como bailes, actos, visitas, etc.) y a las fotografías tomadas en diversas escenas de la vida institucional2.

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La importante cantidad de fotos de la Escuela Serena puede ser pensada e interpretada de diversos modos. Por un lado, parece extenderse al ámbito escolar la práctica de fotografiar instantes de lo cotidiano, o de lo extraordinario en lo cotidiano, que comenzaba a generalizarse entre las clases medias y las populares, y que puede relacionarse con la vocación de la Experiencia por articular la escuela con su entorno y su época. Por otro lado, se evidencia una clara intención de registro sistemático de las actividades escolares; intención que reafirma la cualidad fundacional que caracterizaba la puesta en marcha de las innovaciones pedagógicas que se implementaban. La escuela y sus protagonistas en el contexto y la época A mediados de la década del 30 Olga Cossettini 3 es nombrada Directora de la Escuela Nº 69 Dr. Gabriel Carrasco, en ese mismo año se otorga al establecimiento el carácter de “escuela experimental”. Este ensayo pedagógico se conoce con el nombre de Escuela Serena. Es importante señalar el marco en el que se desarrolla esta experiencia: poco antes, en

Una primera versión de este artículo fue presentada como ponencia en las V Jornadas De Investigación En Educación “Educación y Perspectivas: Contribuciones Teóricas y Metodológicas en Debate”, Córdoba (Argentina), Julio de 2007. A este análisis se refiere el proyecto de investigación “La experiencia de la Escuela Serena en Rosario: la fuerza de la articulación entre imagen, historia y pedagogía” desarrollado entre 2004 y 2006 por los autores de este artículo. Olga Cossettini (1898 – 1987) fue una maestra y pedagoga argentina reconocida por sus ensayos y experiencias escolanovistas desarrollados entre 1930 y 1950 en las localidades de Rafaela y Rosario de la Provincia de Santa Fe.

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el año 1934, se aprueba la Ley Nº 2364 que tenía como propósito regular la educación en la Provincia de Santa Fe. Esta nueva ley establecía algunas disposiciones y principios que interesa destacar por su implicancia para el desarrollo de esta experiencia: en primer lugar, la obligatoriedad de neutralidad religiosa, con el declarado objetivo de asegurar “la libertad de conciencia del niño”4; en segundo lugar, la imposición de la educación común mixta, que rompe con la tradición provincial de crear escuelas separadas para niñas y niños; por último, la búsqueda de una enseñanza “conforme a los métodos activos” que contemple las “actividades recreativas y estéticas, juegos, deportes, cantos, música y declamación”. Por otra parte, esta ley prescribe también la descentralización en el gobierno de la educación. En ella se postulan dos niveles de conducción: el provincial, a cargo del Director General de Escuelas, designado por elección popular, y el local, a cargo de los Consejos Escolares de Distrito: cuerpos colegiados integrados por entre 3 y 5 miembros, elegidos por el voto popular cada dos años. Entre las funciones de los Consejos se encontrarían el nombramiento de maestros y directivos de acuerdo a una nómina enviada por la Dirección General, la creación de nuevas escuelas y la administración de los recursos propios y los asignados por la Dirección General5. Es dentro de esta normativa que Olga Cossettini es designada por el Consejo Escolar de Distrito correspondiente como

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directora de la Escuela “Dr. Gabriel Carrasco” de la ciudad de Rosario. Más adelante, y una vez que se deja de lado la reforma educativa implementada durante el breve gobierno de Molinas, el Consejo General de Educación ratifica la autonomía didáctica de la escuela y dispone su dependencia de la Inspección General de Escuelas. La escuela continúa como experimental hasta 19446 en que se le quita esta condición. Finalmente, en agosto de 1950, Olga Cossettini es separada de la dirección del establecimiento. Ideas estéticas y escolanovistas en la propuesta pedagógica La experiencia cuenta con una notable abundancia de imágenes en diversos formatos y soportes (cuadernos, láminas, fotografías, filmaciones) producidas en el marco de su implementación; cuenta también con una gran cantidad de imágenes desarrolladas a posteriori sobre ella7. Creemos que esta abundancia de imágenes se inscribe en una peculiar articulación entre estética y pedagogía que sostienen Olga y Leticia Cossettini8. En las ideas de estas pedagogas se advierte, por ejemplo, una particular preocupación por la articulación entre lenguaje, ciencia y arte infantil: “En la ciencia incipiente estaba el ejercicio de la libertad y el ejercicio de las manos que hacen, construyen e inventan”9. Rechazan, además,

Esta disposición marca un quiebre con la ley anterior vigente desde 1886 que establecía la enseñanza religiosa como contenido obligatorio. Ver Pérez, A. Navegar contra la corriente: la Ley de educación común, normal y especial (Santa Fe, 1934), en Boletín de la Sociedad Argentina de Historia de la Educación, Rosario, Laborde Editor, 2000. Se encontraba entonces a cargo del Consejo General de Educación el escritor Leopoldo Marechal. Nos referimos particularmente a los documentales que se han elaborado sobre la experiencia: La Escuela Serena: un modo de escuela activa, IRICE, Rosario, 1988; Querida Leticia, IRICE, Rosario, 1989; La Escuela de la Señorita Olga, dirigida por Mario Piazza, Rosario, 1991. Leticia Cossettini (1904 – 2004), hermana de Olga, fue maestra de la Escuela Carrasco durante el período en que Olga se desempeñó como directora, destacándose por su sensibilidad estética.

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la educación tradicional, entendiendo que el positivismo había penetrado en la cultura y en la escuela a través no sólo de los programas, sino también de los libros y los métodos, reduciendo el conocimiento estético a una simple distracción o juego. A ello contraponen el espíritu como actividad: “Ese hacer espiritual significa vida, creación, emoción, ciencia, arte y moralidad”10. En la propuesta pedagógica se diluyen los límites entre la ciencia y el arte. Para esto se torna necesario transformar rutinas y prácticas escolares: horarios, programas, temas, métodos11. En el marco de un proyecto educativo para el cual “los valores estéticos están íntimamente ligados a los valores morales, físicos e intelectuales”12, la enseñanza y la práctica del canto y del dibujo dejan de ser una cuestión menor: contribuyen de manera esencial a la formación del “niño artista”. Por un lado, conducen a la consolidación de hábitos de belleza; por otro, permiten, junto a la palabra escrita, la expresividad de los “estados de alma” peculiares e irrepetibles de cada uno de los niños y niñas, fundamento esencial de su “expresividad creadora”. Dicha “expresión creadora” infantil será precisamente el tema del libro El niño y su expresión que se publica en 1940. El libro incluye una conferencia pronunciada por Olga Cossettini y trabajos de los alumnos de la Escuela Experimental “Dr. Gabriel Carrasco” expuestos en el Museo Castagnino

de la ciudad de Rosario: poemas, reproducciones de acuarelas, dibujos y trabajos prácticos de los alumnos13. En dicha conferencia, Olga señala que la expresión creadora del niño es el resultado de una inspiración espontánea, que no emana de un orden, que está cargada de un potencial afectivo, que tiene como fin una imagen a realizar, una idea, que es el elemento intelectual de la creación, que se expresa mediante una actividad del espíritu y del cuerpo, y que es una expresión relativamente nueva, no una imitación.

Es por ello que la escuela nueva debe actuar en sentido estrictamente contrario a la manera en que lo hiciere la escuela tradicional, y transformarse, por ende, en un espacio ideal que posibilite, incentive y concrete el desarrollo: cuando el medio didáctico ejercita la actividad imaginativa ayudándola simplemente a crecer y a manifestarse, sabemos de cuánto es capaz el alma del niño, abierta a la emoción y a la belleza del mundo. Los claros dibujos que ilustran sus trabajos, sus canciones, la danza y el juego, la música con que alegran sus paseos, los libros serenos, poesía fresca, ciencia amena, dan a la infancia savia de crecimiento, sin turbarla, sin ajarla, ayudándola a crecer14.

Las páginas de los cuadernos escolares de los alumnos de la Escuela Serena evidencian la importancia que la expresión gráfica tuvo en la experiencia. En todos los cuadernos relevados aparece una sobreabundancia de

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Entrevista a Leticia Cossettini, Novedades Educativas nº 91, Buenos Aires, Julio de 1998, p. 52. Cossettini, O. Sobre un ensayo de Escuela Serena en la provincia de Santa Fe (1935) en Olga Cossettini y Leticia Cossettini, Obras Completas, AMSAFE, Santa Fe, 2001, p. 22. 11 Ya en la Escuela Normal Provincial de Rafaela Olga y Amanda Arias habían adaptado los horarios fijados por la Dirección de Escuelas Normales a las actividades escolares que allí desarrollan 12 Cossettini, O. Op. cit, 2001, p. 66. 13 La publicación corre por cuenta del gobierno de la provincia y el prólogo lo escribe el entonces Ministro de Instrucción Pública y Fomento Juan Mantovani, quien señala que la iniciativa partió de la Dirección Municipal de Cultura y de la Dirección del Museo Municipal de Bellas Artes “Juan B. Castagnino” de Rosario, luego de comprobar el interés que entre los educadores y los artistas había generado una muestra de dibujos, ilustraciones y pinturas de los niños. Mantovani señala allí que el trabajo realizado en la Escuela muestra “la libre expresión del quimérico mundo interior del niño y de su fértil y animada fantasía”. 14 Ibídem, p.198. 10

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imágenes que presentan, además, originales características. Por ejemplo, se puede señalar que las imágenes realizadas por los alumnos en sus cuadernos de clase, además de pretender representar gráficamente contenidos escolares, asumen la función de registrar las actividades escolares. Algunas imágenes constituyen una forma gráfica y sistemática de registro de prácticas de observación desarrolladas por los alumnos. Éste es el caso de los calendarios mensuales en los que se asienta el estado del tiempo, la orientación del viento o las fases de la luna. O el de aquellas imágenes que registran paso a paso la secuencia de los experimentos realizados. Otras imágenes, en cambio, registran pormenorizadamente las actividades escolares desarrolladas fuera del edificio escolar: paseos por el barrio, visitas a diferentes lugares, entrevistas con personajes de la zona. Finalmente, se encuentran imágenes que suponen el registro de actividades institucionales como bailes, representaciones teatrales, títeres o visitas de personas ilustres a la escuela (como Gabriela Mistral, Javier Villafañe, Juan Ramón Jiménez, etc). En general estas imágenes se presentaban acompañadas de relatos acerca de las impresiones subjetivas vividas por los alumnos en el evento al que se alude. A partir de lo dicho, podemos pensar que la imagen deviene en los cuadernos de clase de la Escuela Serena – y en la experiencia misma – un operador privilegiado tendiente tanto a reforzar la función de registro de las actividades escolares diarias, como a consolidar una experiencia que liga la escuela con el barrio, su gente y el entorno natural con su fauna y su flora.

Esta cualidad de las imágenes se encuentra directamente relacionada, sin dudas, con la declarada intencionalidad de favorecer la expresión libre y creativa del niño, intencionalidad inscripta en los principios escolanovistas que animan la experiencia. El niño es reconocido y alentado como autor15. Además, los cuadernos de clase de los alumnos de la Escuela Serena evidencian alteraciones en las pautas de uso promovidas tradicionalmente por la escuela16. La ruptura de la frontera que representan los márgenes es un claro ejemplo de ello. Las imágenes interrumpen, en buena parte de ellos, la noción y la función del margen, se constituyen en el núcleo organizador de las páginas de los cuadernos. En muchos casos son las mismas imágenes las que operan como límite para la escritura, las que se constituyen en margen irregular de la palabra escrita. La escritura se extiende en los espacios libres que las imágenes dejan en las hojas de los cuadernos, la escritura envuelve de este modo a las imágenes, las acompaña y no a la inversa. Por otra parte, cabe señalar que las imágenes de los cuadernos carecen de “marco”, no se encuentran encuadradas ni cercadas por líneas divisorias. Las imágenes habitan los cuadernos libremente. Ahora bien, en esta experiencia la fuerza pedagógica de la imagen no alcanza por igual a todos los tipos de ilustraciones: la potencialidad de la imagen tiene que ver, en este caso, con el hecho de que sea producida por los mismos alumnos, es precisamente este “hacer la imagen” lo que parece asumir una función pedagógica. Esto ofrece una clara vinculación con la preponderancia que la actividad del niño ocupa dentro de las ideas

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Este lugar de autor es reconocido también en la obra “El niño y su expresión” - a la que nos hemos referido antes - que, como indicamos, presenta precisamente textos escritos por los niños de la escuela, e imágenes desarrolladas por ellos. 16 Cfr. Gvirtz, El discurso escolar a través de los cuadernos de clase. Argentina 1930 - 1970. Buenos Aires, Eudeba, 1999.

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pedagógicas de las Cossettini y del movimiento Escuela Nueva en general. Además de las imágenes presentes en los cuadernos de clase, la experiencia de la Escuela Serena ofrece otro nutrido grupo de imágenes: láminas realizadas por los mismos niños. En ellas encontramos paisajes del barrio y de la ciudad; dibujos realizados después de haber escuchado alguna pieza de música clásica o después de escuchar lecturas, cuentos, relatos, leyendas; impresiones de color luego de haber asistido alguna actividad organizada por la escuela, a una obra de teatro, o para la escenografía de ella. La importante cantidad de láminas, relacionadas con estas actividades institucionales, da cuenta del valor otorgado a la imagen en la propuesta educativa, pero además ratifica la función que en el marco de esta experiencia se le otorgaba a la imagen como forma privilegiada registro de las actividades escolares a la que nos refiriéramos más arriba. En esta centralidad asumida por las imágenes e ilustraciones confluyen la preocupación por la formación estética, la espontaneidad y libertad infantil, la idea del aprendizaje basado en la actividad; en suma, diversos aspectos relevantes en las propuestas escolanovistas de la época. Al mismo tiempo las láminas constituyen una forma de registro sistemática e intencional de las innovaciones pedagógicas que en la Escuela Serena se desarrollaban. El relato fotográfico Las numerosas fotos que registran la experiencia nos muestran también – al igual que las láminas y los cuadernos – las diversas 17

actividades de la escuela: obras de teatro, visitantes ilustres, teatro de títeres, festejos, concurso de barriletes, recreos, elecciones del Centro Cooperativo de la Escuela, Misiones Culturales, Coro de Pájaros e inclusive la autorrepresentación del mismo hecho de fotografiar estas actividades.17. En general no se trata de retratos, sino de fotos que dan cuenta de un instante de lo cotidiano o de lo extraordinario en lo cotidiano. Por su naturaleza icónica e indicial, por su posibilidad de transmitir acontecimientos, momentos, sucesos, la fotografía desarrolla una relación singular con el tiempo: se vincula con el tiempo pasado devolviéndole a la imagen una historia y con el tiempo presente armando el relato que las imágenes permiten. Ahora bien, podemos preguntarnos cómo apreciar este segmento de imágenes de esta singular experiencia pedagógica. En primer lugar, las fotografías de la Escuela Serena pueden ser reconocidas como documento y testimonio en la medida que registran las diferentes actividades escolares, fundamentalmente aquellas consideradas innovadoras. También pueden ser consideradas como una forma peculiar de modelar una memoria de la experiencia en tanto que narran hacia el futuro los acontecimientos de un modo particular. Podría pensarse que la escuela entrega a la fotografía su propuesta innovadora con la intención de eternizarla y de reafirmar de este modo el sentimiento de unidad (Bourdieu, 1980) en este caso de corte institucional. En este sentido, estas fotografías tomadas en pleno desarrollo de una propuesta pedagógica renovadora son algo más que el testimonio gráfico de ellas en su devenir cotidiano, son ellas mismas algo histórico (BURKE, 2005, p. 28).

Hemos encontrado en el archivo una singular fotografía de uno de los fotógrafos que han ejecutado estas escenas de registro en el acto mismo de tomar una foto.

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Además, la fotografía siempre remite a lo público, en la medida que en ella se posará la mirada de los otros. La fotografía es entonces una imagen de sí para los otros, una imagen privada volcada hacia el afuera y por lo tanto expuesta a la mirada ajena y a lo social. Seleccionar qué fotografiar supone elegir una manera de dar cuenta de la historia y supone también elegir una estética, un estilo, proponer un modo de lectura determinado. Las imágenes son tomadas para ser vistas, examinadas, comparadas: de ello tenían total conciencia los protagonistas de esta experiencia al decidir establecer un registro institucional y personal que diera cuenta de las innovaciones presentes en su propuesta pedagógica. De este modo, creemos que dirigieron su mirada hacia algunos aspectos de la vida escolar y los seleccionaron para transformarlos en imágenes fijas. Eligieron un punto de vista desde el cual narrar la experiencia escolar a través de la fotografía. Esta elección le otorga carácter de acontecimiento a la escena, al espacio y al momento que se fotografía, le otorga un significado y un modo de ser visto. Si realizamos un recorrido por las numerosas fotos que guarda el archivo de esta experiencia podemos identificar tres grandes relatos que muestran esta selección: el primero alude a las producciones artísticas de los alumnos, el segundo concierne al registro de actividades escolares realizadas dentro y fuera de la escuela y, el tercero, remite a otras experiencias pedagógicas o vitales que, por diferentes motivos, intersectan con la Escuela Serena.

Las fotografías de producciones artísticas de alumnos presentan láminas, dibujos y esculturas realizadas por ellos, en suma, dan cuenta de diferentes expresiones gráficas. Hay numerosas fotos también que muestran representaciones teatrales, de títeres y espectáculos de música y danza protagonizados por los niños. Buena parte de estas presentaciones se llevaban adelante en el escenario del Museo Castagnino de la ciudad de Rosario y quedaron registradas en fotos tomadas por fotógrafos profesionales18. Probablemente esto no sea ajeno a los debates de los años 30 y 40, que hacían foco en la relación problemática y enriquecedora a la vez entre arte y fotografía19. Además, encontramos numerosas fotografías que dan cuenta de diferentes actividades realizadas en el marco de la experiencia tanto dentro como fuera del edificio escolar. El universo temático de estas fotos remite a las “misiones culturales” desarrolladas en el barrio de Alberdi, a fiestas de la escuela, a visitas ilustres efectuadas por personajes destacados de la cultura de la época, a actividades de los alumnos innovadoras para la época. Un último grupo de fotos alude a un conjunto de actividades vinculadas con la experiencia y con sus protagonistas que no se llevaron a cabo en el marco espacio-temporal de la misma. Entre ellas se destacan la importante cantidad de fotos de viajes realizados por Olga Cossettini, particularmente a Estados Unidos, Latinoamérica y Europa. Algunas de estas

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Todas las fotografías de la experiencia tomadas por fotógrafos profesionales pertenecen al Estudio y Galería Renom, que anteriormente era Witcomb. La Galería Witcomb, que funcionaba en la ciudad de Buenos Aires desde fines del siglo XIX, instala una filial en Rosario en la segunda década del siglo XX, en calle San Martín 874. En la década del 40 Witcomb transfiere su estudio y galería, que toma el nombre de Galería Renom con domicilio en calle Córdoba 916. Así como en Witcomb expusieron en la década del 20 Pettorutti y Xul Solar, por ejemplo, en Rosario expondrán en su local Berni, Vanzo y Spilimbergo. 19 En tal sentido cabe recordar las exhibiciones fotográficas que Horacio Coppola y Grete Stern (amigos de Walter Peterhaus, director del Departamento de Fotografía de la Bauhaus en Berlín) en los salones de Editorial Sur en 1935, invitados por Victoria Ocampo. En esa exposición se presenta un manifiesto que postula la fotografía como un nuevo modo de conocimiento.

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fotos registran visitas de Olga a lugares e instituciones en los que se desarrollaban también propuestas escolares alternativas e inclusive algunas de ellas son fotos de difusión, explícitamente tomadas con el propósito de dar a conocer estas experiencias. Podemos decir que la abundancia de fotos de la Escuela Serena y sus actividades la distingue simbólicamente de otras experiencias educativas de la época de las que apenas quedan registros visuales. Cabe interpretar esta cuestión, creemos, en dos direcciones simultáneas. Por un lado, reafirma una vez más la ruptura de límites entre escuela y entorno social que la experiencia no cesa de proponer en todos los niveles. De manera sin dudas cotidiana y gozosa, la Escuela Serena incorpora una práctica que recién comienza a generalizarse entre los sectores medios: la práctica de la fotografía instantánea ejercida por aficionados para registrar su cotidianeidad20. Por otro, torna evidente la clara intención de las protagonistas de registrar sistemáticamente la vida escolar; intención que da cuenta de la clara conciencia que ellas seguramente tenían de su labor al mismo tiempo pionera y fundacional. De hecho creemos que este minucioso registro es consecuente con las numerosas publicaciones y presentaciones realizadas por Olga y Leticia Cossettini en diversos ámbitos culturales y académicos que tenían como finalidad difundir masivamente las innovaciones que la escuela implementaba. Así, las imágenes producidas en el marco de esta experiencia – nos referimos tanto a las que fueron por entonces elaboradas por

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los alumnos como a las fotografías o filmaciones – se constituyen en corpus fundamental del análisis de esta propuesta pedagógica, en portadoras de sentido y de materialidad que abren nuevas dimensiones en la construcción de su historia. Bibliografía BARTHES, R. La cámara lúcida. Nota sobre la fotografía. Buenos Aires, Paidos, 2003. BENJAMIN, W. La obra de arte en la época de la reproductibilidad técnica, en Discursos Interrumpidos I. Madrid, Taurus, 1973. BIANCO, A. La escuela Cossettini. Santa Fe, Ediciones AMSAFE, 1996. BISELLI, R. Tecnologías comunicacionales y procesos culturales modernizadores: El lugar de la fotografía en la revista Sur durante la década del ’30, en La trama de la comunicación (Anuario No7 del Dpto. de Ciencias de la Comunicación de la UNR). Rosario, Laborde Ed., 2002. BOURDIEU, P. (comp.) La fotografía, un arte intermedio. México, Nueva Imagen, 1980. BURKE, P. Visto y no visto. El uso de la imagen como documento histórico. Barcelona, Crítica, 2005. CLARKE, G. The Photograph (Oxford History of Art). Oxford, New York, Oxford University Press, 1997. COSSETTINI, O. – Cossettini, L. Obras Completas. Santa Fe, AMSAFE, 2001. CUARTEROLO, M.; LONGONI, E. El poder de la imagen. Buenos Aires, Zoom, 1996. DUBOIS, Ph. El acto fotográfico. Barcelona, Paidós, 1994. DURAND, R. El tiempo de la imagen. Ensayo sobre las condiciones de una historia de las formas fotográficas. Salamanca, Ed. Univ. de Salamanca, 1999.

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MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

Figura 1. Cuaderno de un alumno de la Escuela Serena, 1943. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

Figura 2. Cuaderno de un alumno de la Escuela Serena, 1940. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

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IMÁGENES GRÁFICAS Y FOTOGRAFÍAS EN UNA EXPERIENCIA ESCOLANOVISTA (ROSARIO, ARGENTINA: 1935-1950)

Figura 3. Fotografía de la Escuela Serena: Alumnos en la Huerta, Sin fecha. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

Figura 4. Fotografía de la Escuela Serena: Alumnos trabajando en el patio de la escuela, Sin fecha. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

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MARÍA DEL CARMEN FERNÁNDEZ; MARÍA ELISA WELTIN, RUBÉN BISELLI

Figura 5. Fotografía de la Escuela Serena: Fiesta en el Barrio Alberdi. Fotógrafo tomando una foto. Sin fecha. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

Figura 6. Fotografía de la Escuela Serena: Juegos rítmicos en una Misión Cultural en la Plaza del Barrio Alberdi. Sin fecha. Archivo Cossettini, IRICE, Rosario, Argentina.

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DE BRAÇOS ABERTOS NUM CARTÃO POSTAL? DUAS FAVELAS DA ZONA SUL CARIOCA NA ERA DAS REMOÇÕES ...

De braços abertos num cartão postal? Duas favelas da zona sul carioca na era das remoções pelas lentes do Correio da Manhã Mauro Henrique de Barros Amoroso Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). Autor de, entre outros artigos, A favela faltou na foto: a cobertura do desmonte do Santo Antônio pelas lentes do Correio da Manhã . Cantareira (UFF), v. 14, 2009.

RESUMO:

Este artigo analisa representações sociais sobre favelas do Rio de Janeiro, principalmente Ilha das Dragas e Praia do Pinto, na cobertura fotojornalística do Correio da Manhã , ao longo da década de 60. Dentro desse contexto, a percepção social das favelas veiculadas pelo periódico através da linguagem da fotografia de mídia remete a noções de fragilidade, com fortes associações do elemento humano com a precariedade dessas áreas de habitação. Esse tipo de construção deve ser focada sob a luz do viés ideológico intrínseco à atividade jornalística, inclusive em sua vertente visual, enquanto importante meio de transmissão de visões de mundo e juízos de valor de setores específicos da sociedade. PALAVRAS-CHAVE: favelas; fotografia; Correio da Manhã .

ABSTRACT

This article analyzes social representations on slum quarters of Rio De Janeiro, mainly the Ilha das Dragas and Praia do Pinto slums, in the Correio da Manhã photo covering, throughout the decade of 60. Inside of this context, the social perception of the slums propagated for the periodic one through the language of the media photograph sends the fragility slight knowledge, with strong associations of the human element with the precariousness of these areas of habitation. This type of construction must be focus under the light of the intrinsic ideological bias to the journalistic activity, also in its visual source, while important half of transmission of visions of the world and judgments of value of specific sectors in our society. KEYWORDS: slums; photograph; Correio da Manhã .

Recebido em: 19/05/2009

Aprovado em: 05/09/2009

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MAURO H ENRIQUE DE B ARROS A MOROSO

De braços abertos num cartão postal? Duas favelas da zona sul carioca na era das remoções pelas lentes do Correio da Manhã

O presente artigo tem por objetivo debater representações produzidas pela mídia de favelas localizadas na zona sul do Rio de Janeiro durante os anos 1960. Para tanto, foram selecionadas duas delas não mais existentes: Ilha das Dragas e Praia do Pinto. Ambas foram erradicadas no final do período aqui abordado, cuja conjuntura foi marcada pela política de remoções, então adotada como solução para a problemática habitacional das favelas. A escolha dessas para análise se deu pela sua localização em espaços de alta valorização imobiliária, em meio a célebres cartões postais da cidade, como a Lagoa Rodrigo de Freitas e os bairros Leblon e Ipanema, além de episódios polêmicos a elas relacionados. O veículo de imprensa selecionado para análise foi o Correio da Manhã. A justificativa para tal escolha foi o papel de vanguarda desempenhado pela equipe de repórteres fotográficos desse periódico, que ao longo de sua história sempre se esforçou pela construção de uma auto-imagem de defensor dos interesses do povo . Esses profissionais utilizaram o caráter polissêmico da imagem fotográfica como ferramenta estratégica de crítica ao regime e à censura imposta à imprensa. Com relação à cobertura das remoções de favelas, o que se nota muitas vezes é a construção de representações negativas de fragilidade e promiscuidade moral, devido às condições de moraria relativas aos moradores dessas áreas.

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A erradicação das favelas da zona sul pelas lentes do Correio da Manhã: o caso da Praia do Pinto Durante o regime militar, foi criada em 1968, por decreto federal, a Companhia de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio de Janeiro (CHISAM). A princípio, conforme J. Perlman e os Leeds, a função da CHISAM, subordinada ao Banco Nacional de Habitação (BNH), seria apenas coordenar as Companhias de Habitação Popular (COHAB) da Guanabara e do Rio de Janeiro, dentre outros órgãos, sendo que, porém, todos esses passaram a adotar a política remocionista da CHISAM. O objetivo desta foi erradicar todas as favelas do Rio de Janeiro até 1976, e sua ideologia pregava a recuperação humana do morador de favela pela recuperação físico-espacial, ou seja, pela remoção, sem notar que a ameaça de erradicação desestimularia o investimento em sua própria moradia e que a ausência de condições existenciais dignas para a cidade como um todo se dava por inoperância, incompetência e manipulações políticas por parte do Estado e da sociedade (PERLMAN, 1977). Os métodos utilizados pela CHISAM eram totalmente arbitrários, uma vez que o país vivenciava um estado de exceção, utilizando-se de repressão policial e tratores para derrubadas dos barracos cujos donos não estivessem de acordo com as remoções. Igualmente, embora não haja provas

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concretas que os liguem a um responsável específico, não podem deixar de ser citados os incêndios acidentais (como o trágico caso da Praia da Pinto, em 1969). As famílias atingidas por essa política foram realocadas em locais isolados e de acesso dificultado, devido à problemática cobertura da área pelo serviço de transporte público, como Guaporé e Cidade Alta. Os critérios adotados não consideravam as relações e laços de cooperação mútua, um dos principais fatores de utilização da favela como meio de resistência à exploração estrutural em diversas esferas, sendo, inclusive, famílias consangüíneas separadas (LEEDS & LEEDS, 1978). De 1968 a 1975, ano em que foi abandonada por inviabilidade financeira, a política das remoções teve um saldo de mais de 60 favelas destruídas e cerca de cem mil pessoas removidas (PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002, p. 245), e se revelou um fracasso na medida em que não impediu o crescimento nem erradicou a favela da paisagem urbana carioca e, segundo Janice Perlman, ao promover a segregação sócio-espacial do favelado apenas contribuiu para formar o marginal que se pretendia eliminar 1. A justificativa para a política remocionista possuía vários tópicos, como a inserção social e cultural pela promoção de uma moradia digna e os benefícios estéticos e urbanísticos para a cidade. Porém, motivos menos humanitários, como a especulação imobiliária, deram a tônica, uma vez que, conforme abordado por Perlman, a pretensa teoria de exclusão do favelado não era integralmente válida, pois este participava das várias esferas, econômica, cultural e eleitoral, do cotidiano da cidade, porém não como marginal, mas como explorado e 1

oprimido. O planejamento da política remocionista ignorava qualquer interesse relativo ao seu pretenso principal beneficiário, uma vez que o isolava das oportunidades de emprego e da agitação sócio-cultural que ele tanto estimava. Também criava gastos que ultrapassavam seu orçamento, como excedentes com transportes para o agora distante local de trabalho, acarretando desgaste psicológico e contas relativas a condomínio, água, luz, esgoto, além das prestações das moradias que, diga-se de passagem, eram entregues em péssimas condições. Todos esses fatores levaram a um alto grau de inadimplência das prestações dos apartamentos dos conjuntos habitacionais, o que, posteriormente, acabaria por selar o destino da política de remoções. As favelas da Praia do Pinto e da Ilha das Dragas foram enfatizadas no debate aqui realizado por conta dos dois acontecimentos que marcaram sua erradicação: um incêndio de causas inexplicadas e um desaparecimento político, respectivamente. A Praia do Pinto, à época, era uma das mais famosas e mais populosas da cidade, já fazendo parte de um imaginário urbano. Ilha das Dragas, porém, não passava de uma favela pequena, a qual a mídia não costumava delegar muita atenção. Sua presença nas páginas do Correio, não muito comum em períodos anteriores, pode ser justificada pela mobilização contra sua erradicação e pelo desaparecimento das principais lideranças responsáveis pela articulação dessa resistência. Tomemos como exemplo a reportagem encontrada no Gerico , de 5 de agosto de 1967. Tal reportagem não possuía lugar central na edição, encontrando-se no canto

Uma prova do fracasso em impedir o crescimento da favela habita no fato de que a população favelada passou de 16%, em 1960, a 32%, em 1970, da população carioca (PERLMAN, 1977, p. 41).

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da página à direita de quem lê. O recorte que nos chama a atenção se refere aos dois últimos parágrafos embaixo da fotografia de um menino, no trecho inferior à direita. Tal fotografia é o elemento que chama a atenção do leitor que, após fitar a imagem, é direcionado para o texto abaixo dela. É importante, mais uma vez, atentar para o fato da matéria localizar-se na coluna Gerico , o que por si só já revela um juízo de valor sobre tal favela, enquanto problema a ser erradicado pela cidade 2. Deve ser chamada atenção, igualmente, para a relação entre a foto e o texto, sendo que a primeira ocupa uma área consideravelmente maior que o segundo, o que revela a preferência pelo elemento visual da construção da notícia. Essa hierarquia também pode ser percebida pelo fato da fotografia encontrar-se acima da parte escrita, o que, além da já citada proporção, leva à sua percepção primeiro que a parte escrita. Também é interessante notar a posição privilegiada da fotografia, que ocupa a 3ª área de preferência para localização de

fotografias, conforme esquematizado por Lorenzo Vilches (VILCHES, 1987, p. 62). Seguem, abaixo, a fotografia, a imagem da página onde se localiza a notícia e o que vem escrito na coluna: Triste, muito triste é a paisagem. No primeiro plano vemos lixo em abundância na fase de fermentação (o que constatamos no local), exalando insuportável odor. No segundo um menino. Menino da favela criado no lixo. Como êles (sic), centenas de crianças são criadas no lixo da favela da Praia do Pinto e milhares no lixo de outras favelas. Senhor governador, acabemos com paisagens iguais a que divulgamos para, infelizmente, nosso pesar e vergonha. O Estado tem grandes áreas territoriais em disponibilidade, onde grandes núcleos residenciais poderão ser construídos e abrigados os pais dos meninos do lixo. Acabemos de uma vez por todas com a favela da Praia do Pinto, vigoroso depoimento contra a nossa obrigação e testemunha da inatividade governamental. Senhor governador, vença as dificuldades e acabe de vez com os meninos criados no lixo, como os vermes que nele se reproduzem por ocasião da fermentação. Vamos, senhor governador, menino-lixo também é gente...

Foto: Arquivo Nacional, Fundo/Coleção: Correio da Manhã, Data: 27/07/1967 Fotógrafo: Bueno

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Essa coluna teve por objetivo denunciar problemas de diversas espécies relacionados à cidade do Rio de Janeiro, cobrando das autoridades públicas soluções.

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A Praia do Pinto, que se localizava próxima à Lagoa Rodrigo de Freitas, surgiu no início da década de 1940, com o arrendamento do terreno da Chácara do Céu, na Gávea. Com esse arrendamento, os moradores desse local migraram para o núcleo que se tornaria a favela, que chegou a ser uma das maiores do Rio de Janeiro, até seu fim em 1969. A foto debatida retrata um menino que não aparenta ter mais de cinco anos próximo a bacias com roupa e lixo. O lixo, que ocupa grande parte da área retratada, chama bastante atenção para quem observa a imagem, englobando a criança e reforçando a idéia de fragilidade passada pelo contraste entre o ela e o lixo abundantemente presente. Essa imagem é reforçada pelo texto e as diversas alusões à convivência de crianças com lixo em fase de fermentação, terminando com o apelo às autoridades para que seja realizada a salvação dos meninoslixo . Assim, nota-se um esforço de associação direta entre o indivíduo em sua fase mais frágil (infância) e a miséria completa, representada pelo lixo. Luiz Antonio Machado da Silva, discorrendo sobre a questão da favela no tempo, afirma que esta teria vencido , ou seja, alude ao fato que apesar das inúmeras tentativas de erradicação pelo poder público, a favela continua presente em nossa paisagem urbana3. Porém, logo depois ele alude à fragilidade do convívio social de seus habitantes em nossa sociedade. Para entendermos tal situação, é preciso buscar as raízes históricas da construção da percepção social dos habitantes de favelas, bem como os agentes e interesses envolvidos nesse 3

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processo. Machado da Silva percebe a favela como expressão da desigualdade social e de uma cidadania excludente, restrita, fragmentada e hierarquizada. Dentro desse processo, esse espaço é definido por diversos atores unicamente pelo foco de suas carências, embora seja um espaço complexo com uma rede social que interage com a sociedade de maneiras diversas, não possuindo unicamente carências e nem sendo estas um corpo homogêneo (SILVA, 2002). Ou seja, nota-se um esforço de perceber o morador de favela por uma via de mão única, o que constitui uma dificuldade séria para a resolução de seus problemas mais básicos, desde infra-estrutura habitacional até inserção no mercado de trabalho 4. E essa construção simbólica unívoca peca principalmente por ignorar a pluralidade de um universo amplo. Como pode ser observado, há algumas semelhanças entre a tipologia das representações abordada no acervo fotojornalístico do Correio da Manhã e a concepção da problemática habitacional da favela que embasou as políticas de remoções. O cerne comum das abordagens reside na constituição de um sujeito socialmente frágil, em uma situação de marginalidade sóciopolítica, econômica e cultural. Há, igualmente, uma associação entre a precariedade da infra-estrutura do espaço habitacional aqui debatido e os sujeitos que nele habitam. A partir dessas concepções, foi realizada uma política de segregação espacial que excluiu do processo decisório de elaboração de diretrizes os principais interessados: os habitantes de favelas (PERLMAN, 1977 e LEEDS & LEEDS, 1978).

A tendência à consolidação da favela em nossa cidade ocorre no final dos anos 1970 e início dos 1980, com o abandono das políticas remocioonistas e a permissão, no primeiro governo de Leonel Brizola, da construção em alvenaria. Embora deva ser feita uma diferenciação entre conjunturas históricas, pois atualmente, enquanto a favela é socialmente apreendida pela ótica da criminalidade e da metáfora da guerra , sobretudo pela mídia (LEITE, 2000), no período por mim pesquisado tal percepção caracterizava-se muito mais pela fragilidade social, moral e incapacidade de autonomia decisória, conforme será aprofundado ao longo do texto.

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Raymond Williams define como uma das principais características do sistema social as inter-relações imbrincadas entre práticas sociais, culturais e econômicas (WILLIAMS, 2000). Dentro dessa perspectiva encontrase o foco de análise necessário de embasamento para a comparação entre as justificativas da política remocionista utilizada pelo poder público e as representações sobre favelas e seus moradores veiculadas pelo fotojornalismo do Correio da Manhã. O fato de haver semelhanças entre tais subjetividades sublinha as inter-relações apontadas por Williams, bem como a importância do estudo da atuação da mídia nesse processo de construção de subjetividades 5. No caso da favela como objeto de estudo, a análise de tais interrelações se faz necessária devido à sua força no imaginário coletivo, pois ela é articulada como fato, representação e problema público (SILVA, 2002). Pode ser abordado o caso do incêndio da Praia do Pinto, episódio que entrou para o imaginário da cidade por sua dramaticidade. O incêndio ocorreu em 10/05/1969, começando de madrugada e indo até de manhã, sendo que, segundo estipulou o jornal, cerca de 4 mil pessoas ficaram desabrigadas. Não se sabe ao certo a causa do incêndio, embora a reportagem afirme que o incêndio tenha começado acidentalmente por

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negligência de algum morador (CORREIO DA MANHÂ, 1969d). Porém, deve-se levar em consideração que a favela encontrava-se em área valorizada e havia certo receio que houvesse resistência dos moradores em sair da favela, ocorrendo mobilização semelhante ao caso de Ilha das Dragas (CORREIO DA MANHÂ, 1969e)6. Com relação à cobertura fotojornalística do incêndio, ela tomou a capa da edição do Correio da Manhã. Seguem, respectivamente, a capa da edição e a fotografias recorrentes, de autoria de Milton, no dia do incêndio. Tal imagem mostra um homem andando por entre escombros do incêndio segurando seu instrumento, um cavaquinho. Pela seriedade do incidente ocorrido, tal figuração acaba assumindo um tom pitoresco e surreal, reforçado pela legenda da foto: Instrumento do fogo: depois de perder tudo que tinha, o favelado sente-se satisfeito de encontrar seu velho amigo, o cavaquinho . O viés pitoresco que retrata a chamada de um acontecimento grave envolto em possibilidades suspeitas para sua origem é a característica dessa foto. Assim, mais uma vez reforça-se a imagem de fragilidade remetente a completa incapacidade de superação dessa adversidade por iniciativa própria. Afinal, segundo o juízo de valor realizado pelo binômio fotografia/legenda, o cavaco satisfaria a perda da casa e a quaseperda da vida.

Tal interpretação do sistema social aumenta ainda mais o escopo de análise, uma vez que relaciona os interesses por trás de diferentes práticas pertencentes a esferas social, econômica e cultural. Desse modo, privilegia-se a complexidade da atuação de diferentes atores sociais, propiciando uma análise rica da problemática do estudo histórico da sociedade e da problemática das favelas. Entretanto, o próprio jornal relatou a estranheza da rapidez com a qual tentou-se vender o terreno onde ficava a Praia do Pinto.

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Foto: Arquivo Nacional, Fundo/Coleção: Correio da Manhã, Data: 11/05/1969 Fotógrafo: Milton

Também é interessante notar a relação espacial entre a fotografia e o elemento escrito concernente à matéria. Primeiramente, a área da capa dedicada ao incêndio da favela é a segunda maior, só atrás da notícia internacional. Tal situação revela a importância dada ao acontecimento no discurso do periódico, lembrando que só o fato da reportagem estar na capa já denota essa mesma importância. Depois, é necessário atentar para o título da chamada Incêndio liquida favela , cujo tamanho da fonte utilizada, assim como o posicionamento, deixa claro o que aconteceu, apesar de não especificar a localidade. A relação do título com a imagem também reforça o aspecto pitoresco da significação da matéria, pois ao deixar claro o tipo de situação ocorrida (incêndio), marcada pela gravidade, vê-se a foto do indivíduo, fora de um ambiente de risco, segurando seu instrumento. A fotografia possui um desempenho central para a construção da notícia, conforme pode ser observado pelo tamanho por ela ocupado,

consideravelmente maior que o texto, à exceção do título. Tal representação não condiz com a seriedade da situação e a gravidade com a qual tal evento consolidou-se na memória de moradores de favelas, mesmo os que não habitaram a Praia do Pinto. Como exemplo, temos o depoimento de Alberto Jacob, repórter fotográfico premiado e ex-morador da Catacumba: ... ali (Praia do Pinto) era uma grande favela que tacaram fogo e outra coisa, incendiaram a favela e os helicópteros que sobrevoavam a favela pra... que pareciam jogar água em cima pra... pra apagar o fogo, ao contrário, combustível pra queimar mais barracos ainda (Depoimento de Alberto Jacob, 2005). Tal caracterização, recorrente em outros depoimentos de moradores de favelas da zona sul da época, reforça a imagem de marginalização forçada do espaço urbano de sua própria cidade, construída a partir de agentes externos em uma situação social mais favorável. Como os habitantes de favelas não têm acesso a meios

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de resistência institucional, ele resiste através da construção de sua própria memória, uma memória subterrânea (POLLAK, 1989) sobre o acontecido, em contraponto à versão dita oficial. Outro fator que contribui para a criticidade do episódio do incêndio da Praia do Pinto é a série de interesses por detrás da erradicação dessa favela, que vinha sofrendo resistência por parte de seus moradores. Podemos destacar a especulação imobiliária, principalmente no que diz respeito à própria CHISAM, que utilizaria a verba obtida pela concorrência de licitações de construção de apartamentos luxuosos nesse valorizado terreno para oxigenar financeiramente seu programa: A liberação da valorizadíssima área onde existiu a favela da Praia do Pinto permitiu que o governo pusesse à venda os lotes do terreno ao público e esteja auferindo recursos para a construção de novos núcleos habitacionais populares. (GOVERNO DO ESTADO DA GUANABARA, 1969, p. 6).

O visto pelo não-visto: o caso de Ilha das Dragas Para melhor aprofundamento da discussão aqui realizada é necessário o entendimento dos mecanismos que possibilitam a diferenciação por meio de construção de subjetividades entre diferentes categorias sociais, bem como possíveis interesses por trás desse processo. Norbert Elias e J. L. Scotson caracterizam o principal

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elemento de estigmatização e segregação como sendo os diferenciais de poder, ou seja, bens materiais e simbólicos pertencentes a segmentos sociais hierarquicamente melhor posicionados na sociedade. Através da posse desses diferenciais de poder, os segmentos privilegiados, que Elias e Scotson denominam em seu estudo de caso de estabelecidos , conseguem dificultar e/ou barrar o acesso a bens sociais. Intrinsecamente a essa prática, é realizado um esforço de elaboração, por parte dos estabelecidos , de uma autoimagem de superioridade humana, moral e em termos de solidariedade inter-grupal. A partir dessa estigmatização, ocorre um processo de exclusão e tentativas de isolamento em um meio social, além de que o próprio segmento atingido por esse esforço tende a internalizar essa imagem negativa construída (ELIAS & SCOTSON, 2000) 7. Com relação à construção da percepção do habitante de favela, pode-se afirmar que esse não participou desse processo, justamente devido à situação social de subordinação e ausência de posse de diferenciais de poder. O resultado inicial dessa construção remetia à condição físico-espacial da moradia (ilegalidade e clandestinidade) e de crítica moral à promiscuidade das condições de vida (SILVA, 2002). Relacionado à questão da utilização de diferenciais de poder está a intencionalidade de seu uso. Observemos a fotografia, abaixo, frente e verso, de autoria de Pimentel em 21/09/ 1965, publicada no dia seguinte a esta data:

Embora tal fato não termine a relação de necessidade existente entre grupos de estabelecidos e outsiders. No caso das favelas da zona sul na década de 1960, tal necessidade é exemplificada pela utilização de seus habitantes como mão de obra na rede hoteleira, restaurantes e clubes locais, além das casas de família.

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Foto: Arquivo Nacional, Fundo/Coleção: Correio da Manhã, Data: 21/09/1965 Fotógrafo: Pimentel

No tocante a relações de trabalho e práticas cotidianas na esfera da produção cultural, Raymond Williams atenta para o imbricamento entre condições de propriedade dos meios de produção e de assalariamento dos produtores diretos, à exceção de casos especiais (como o jornalismo alternativo). Desse modo, tal fato condiciona essa produção à influência de fatores pertencentes à ordem política mais geral, econômicos e culturais. Há, assim, compatibilidade entre a produção e interesses dominantes da ordem social (WILLIAMS, 2000). Portanto, devemos chamar atenção para a relação entre os produtores diretos envolvidos na elaboração do acervo fotojornalístico do Correio da Manhã (repórteres fotográficos) e a equipe editorial. Esta última dava a palavra final sobre qual foto deveria compor as matérias, bem como sua posição na paginação final da edição, além das legendas. Deve-se ter em perspectiva a excelência do corpo de repórteres fotográficos do Correio da Manhã, bem como a utilização da fotografia como elemento para criticar o regime militar e, ao mesmo tempo, burlar a rigorosa censura à imprensa. Assim, a fotografia, sobretudo na década de 1960, exerceu um papel

estratégico central para o jornal, e possuiu uma valorização que geralmente não era comum entre seus concorrentes (OLIVEIRA, 1996). Dessa forma, as escolhas editoriais realizadas no campo das reportagens fotográficas constituíam uma esfera decisória importante no cotidiano do Correio da Manhã, com sua importância alcançando, igualmente, o caráter representativo e a construção de juízo acerca do objeto a ser abordado pelas reportagens. A foto (frente e verso) em questão é um belo exemplo da visão a ser passada pelas diretrizes editoriais do periódico sobre a favela. Como pode ser observado pelo carimbo de controle do material fotográfico, no verso da fotografia, tal foto diz respeito à cobertura de um incêndio na Favela do Esqueleto, em 21 de setembro de 1965 e publicada no dia seguinte. A foto retrata uma mulher e duas crianças pequenas em frente a ruínas e restos de tijolos e materiais de alvenaria espalhados, oriundos do incêndio. Os três estão próximos à sacola e parados, com as ruínas ao fundo. As crianças olham para o lado e a mulher leva uma das mãos à boca, em uma imagem que pode provocar interpretações ambíguas de inércia perante a situação adversa, ou de

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reflexão, esperando-se qual será o próximo passo a ser realizado. Os componentes visuais, ou seja, a mulher e as duas crianças, em situação de imobilismo e dúvida, ou reflexão e espera (mão à boca da mulher) perante uma situação adversa (incêndio), pode, dentre outros significados, reforçar a imagem de fragilidade e incapacidade de autonomia decisória, à espera de um agente pretensamente competente para dar solução à sua situação de risco e abandono social 8. Tal forma de representação repete-se constantemente na análise do acervo fotográfico do Correio da Manhã, embora ocorram algumas exceções atribuídas aos diferentes sujeitos e juízos envolvidos na elaboração direta dessas imagens. Porém, conforme anteriormente debatido, a esfera final de decisão é relegada à equipe editorial e, na foto em análise, está o elemento concreto que revela a preferência dessa escolha. No verso da fotografia existe uma série de anotações, realizada pelo responsável pela edição final do material que seria veiculado na edição do periódico. Algumas anotações são de ordem puramente técnica, no entanto, o que prende nossa atenção é um comentário localizado logo acima do carimbo de controle de autoria e de tema da fotografia: ótima! . Tal marca apregoada à fotografia pelo responsável por sua escolha e edição revela o padrão de seleção principal para o modelo de representação a ser veiculado sobre a temática das favelas e de seu habitante. Tal modelo acabaria por se constituir em um elemento que capta por um olhar unívoco um universo essencialmente complexo. E esse olhar caracteriza-se pela escolha arbitrária de elementos figurativos, como a figura feminina e das crianças, conforme a própria 8

quantificação dos componentes visuais vem conformando. Sendo que não deve ser ignorada a tendência à transferência da precariedade do espaço físico para o elemento humano, reforçando representações de fragilidade e incapacidade de autonomia decisória. Um caso emblemático ocorrido durante a política remocionista do período militar, mas que, entretanto, não entrou para o imaginário urbano do Rio de Janeiro como o caso da Praia do Pinto, foi a remoção da favela de Ilha das Dragas. Essa favela constituía-se em uma pequena faixa de areia localizada ao lado do Clube Caiçaras, quando por volta da década de 1930, começou a sofrer um processo de alargamento por meio de aterros realizados por iniciativa própria de seus futuros moradores. Muitos destes trabalhavam nos clubes da região. A remoção dessa favela ocorreu em fevereiro de 1969, em meio a vários protestos e uma tentativa de resistência organizada por parte de sua associação de moradores, com participação ampla de seu presidente, Carlos de Jesus, e foram feitas várias cobranças referentes às promessas de campanha de Negrão de Lima de não dar prosseguimento às remoções (CORREIO DA MANHÂ, 1968a e 1968b). Os moradores de Ilha das Dragas acabaram sendo removidos para conjuntos como Cidade de Deus e Cidade Alta. É interessante observar que todas as fotografias presentes no arquivo fotográfico do Correio da Manhã sobre Ilha das Dragas foram realizadas entre setembro de 1968 e fevereiro de 1969. Isto revela que essa favela não era visada pela mídia, a não ser a partir de sua complicada remoção, que ocorre nesse período. Cada remoção específica foi um episódio conflituoso, geralmente precedido

Porém, é interessante notar que tal esforço de caracterização ocorre de uma forma menos agressiva do que a do menino-lixo .

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de protestos e mobilização política dos habitantes das favelas visadas. Esse exemplo é potencializado no caso de Ilha das Dragas, em que a mobilização pela resistência capitaneada por líderes comunitários levou a uma dura repressão e ao desaparecimento político dessas principais lideranças. Tal situação acabou se tornando um marco do decréscimo dos protestos e mobilizações mais sólidas de resistência a remoções, uma das principais diretrizes do congresso da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), realizado em 1968 (PERLMAN, 1977). Tal situação deve ser vinculada à relação entre os produtores diretos dessa imagem e a equipe editorial, bem como as escolhas dessa última sobre o material fotográfico a ser veiculado. A exemplo disso, nota-se mais uma vez o exemplo da preferência de veiculação de juízos de valor de precariedade e fragilidade, extrapolando tais características do espaço físico para o âmbito do indivíduo,

conforme fotografia de Luiz Pinto tirada em 1/02/1969 e publicada no dia seguinte, com a seguinte legenda: Mudança de favelados foi até de manhã e as reações não foram ao despejo . Essa matéria pode ser considerada como possuidora de considerável importância no periódico, pois localiza-se em uma página ímpar (p. 3), um dos espaços mais valorizados de um jornal até pelos anunciantes (FAUSTO NETO, CASTRO & LUCAS, 1994). A reportagem, como pode ser observado na página, ao lado da fotografia, está posicionada na área preferencial para alocação de fotografias, segundo caracterização de Lorenzo Vilches. A matéria foi publicada com o título Favelado acorda às 3h para ter casa em fonte do tamanho da fotografia, ao lado da mesma. Desse modo, quando o leitor percebe o título, há uma associação direta com a criança chorando na foto, de acordo com a diagramação da reportagem.

Foto: Arquivo Nacional, Fundo/Coleção: Correio da Manhã, Data: 01/02/1969 Fotógrafo: Luiz Pinto

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A ausência da crítica no campo da cultura visual não deve ser ignorada. Conforme abordado por Renato Ortiz, as décadas de 1960 e 1970 são o período em que a indústria cultural se consolida de fato no Brasil. Com isso, ocorre, concomitantemente, a solidificação de um público consumidor para essa indústria em diversas esferas, inclusive a da áudio-visual. Tal fato pode ser averiguado pela progressão do número de fotógrafos (dentre os quais se incluem os repórteres fotográficos) em nosso país: em 1950, tínhamos 7.921 fotógrafos, passando tal número para 13.397, em 1960;

para 25.453, em 1970, e para 48.259 em 1980 (ORTIZ, 1991, p. 143). Assim, em um quadro mais amplo de consolidação da indústria cultural no Brasil e de seu público consumidor, encontra-se inserida a esfera da cultura visual, tanto com relação à sua produção quanto ao seu consumo, bem como sua constituição como campo de significação. Outra foto que pode ser inserida nessa mesma discussão acerca da cobertura da remoção de Ilha das Dragas é a seguinte, também de autoria de Luiz Pinto, em 11/02/ 1969:

Foto: Arquivo Nacional, Fundo/Coleção: Correio da Manhã, Data: 11/02/1969 Fotógrafo: Luiz Pinto

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Tal fotografia é uma carteira, como podemos observar, de membro da Confederação Espírita Umbandista, possuindo a assinatura e a foto do seu presidente, Carlos Santos de Jesus. Ou seja, a mesma pessoa que presidia a associação de moradores de Ilha das Dragas, vítima de desaparecimento político junto com outros líderes comunitários locais. O Correio da Manhã não seguiu em silêncio perante tal fato, sendo que à época já se posicionava como crítico do regime militar e de seus excessos. Foram realizadas reportagens denunciando tal situação e cobrando uma solução por parte do poder público (CORREIO DA MANHÃ, 1969a, 1969b, 1969c) 9 . Porém, a veiculação de tal fotografia, que não ocorreu, traria um componente simbólico de crítica muito mais sólido, uma vez que daria um rosto ao nome Carlos Santos de Jesus, humanizando ainda mais a situação para além de um nome escrito no jornal. Desse modo, a foto de sua carteira de membro-presidente da Confederação Espírita Umbandista acarretaria em um maior potencial de comoção com relação ao seu desaparecimento. Mas, conforme dito, tal foto nunca chegou a ser veiculada. A atuação rígida da censura nesse período talvez fosse uma desculpa plausível, se não fosse pelo fato do Correio da Manhã, enquanto opositor do regime militar, publicar outras fotografias de conteúdo tão ou mais crítico com relação aos excessos da ditadura. A fotografia chegou mesmo a ser um importante e estratégico instrumento para tentar burlar a censura imposta e manter a crítica ao regime (OLIVEIRA, 1996). Com análise das fotografias realizadas, pode-se observar que a cobertura fotojornalística realizada pelo Correio da 9

Manhã no tocante às favelas Praia do Pinto e Ilha das Dragas é predominantemente centrada no elemento humano, assim como a cobertura das demais favelas realizada ao longo da década de 1960. Nota-se, em uma concepção semelhante à vigente pelos técnicos estatais atuantes na elaboração da política habitacional, um esforço de articulação entre representações de precariedade, de infra-estrutura urbana e de higiene, referentes ao espaço favela e ao seu habitante, moralmente precário, promíscuo, frágil, incapaz de exercer uma cidadania autônoma e positiva, para si e para a sociedade. Desse modo, há uma tendência à construção homogeneizadora de representações sobre as favelas e seu habitante, focada na precariedade moral e incapacidade de autonomia social. Assim, quando comparada à cobertura realizada pelo desmonte do Santo Antônio, centrada majoritariamente na veiculação de representações de progresso e no privilégio do elemento espacial e técnico, o que se observa é o outro extremo: a utilização do elemento humano para a veiculação de uma cobertura do atraso através da transmissão de representações de precariedade resultantes das opções realizadas pela equipe editorial do periódico. Bibliografia AMOROSO, Mauro. Nunca é tarde para ser feliz? A imagem da favela pelas lentes do Correio da Manhã. Dissertação de mestrado em História. PPGH-UFF Niterói, 2006. ABRANTES, Paulo Roberto de A. Novo período de redemocratização: política de urbanização. O novo e o velho, 1974-1980. In: VALLA, Victor (org.) Educação e favela: políticas para as favelas do Rio de Janeiro (1940-1985). Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1986. p. 91-135.

Junto com Carlos Santos de Jesus também desapareceram Laureano Martins, João Ribeiro de Almeida e Nicanor Rios.

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MAURO H ENRIQUE DE B ARROS A MOROSO CORREIO DA MANHÃ. Favela finca o pé e não quer mudar. Rio de Janeiro: 05/09/1968. ______. Moradores de Ilha das Dragas reagem ao plano da CHISAM. Rio de Janeiro: 04/09/ 1968. ______. Favelado a Negrão: remoção para a zona norte não é a solução. Rio de Janeiro: 04/09/1968. ______. Sumidos os 4 favelados que polícia levou. Rio de Janeiro: 9/02/1969. ______. Negrão vai fazer força para achar líderes favelados. Rio de Janeiro: 11/02/1969. ______. Favelados querem seus chefes livres e apelam a Negrão. Rio de Janeiro: 12/02/1969 ______. Incêndio liquida favela. Rio de Janeiro: 11/05/1969. ______.GB vende logo área da favela. Rio de Janeiro: 13/05/1969. DEPOIMENTO de Alberto Jacob, 4/08/2005. ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. FAUSTO NETO, Antonio, CASTRO, Paulo César & LUCAS, Ricardo J. de L. Mídia-tribunal. A construção discursiva da violência: o caso do Rio de Janeiro. Comunicação & Política. Rio de Janeiro: v. 1, n. 2, 1994. p. 109-140. GOVERNO DO ESTADO DA GUANABARA. Rio operação favela. Guanabara: Secretaria de Estado da Guanabara, 1969.

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A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR

A fotografia numa pesquisa sobre a história do Carnaval de Salvador

Milton Araújo Moura Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Associado do Departamento de História da UFBA. Autor de, entre outros artigos, “Notas sobre a presença da música caribenha em Salvador, Bahia”. Revista Brasileira do Caribe, v. IX, 2009.

RESUMO Abordam-se questões metodológicas acerca da utilização da fotografia como documento numa pesquisa sobre o Carnaval de Salvador. Inicialmente, tomam-se de Le Goff, Kossoy e Mauad algumas pistas de reflexão. Em seguida, desenvolvem-se itens diretamente relacionados à investigação, destacando-se a relatividade da fotografia como documento, entre o registro do momento vivido no passado, a recriação do momento pela lente do fotógrafo e as interpretações possíveis do pesquisador. PALAVRAS-CHAVE: fotografia; Carnaval; Salvador; metodologia; diversidade.

ABSTRACT Through research on Carnival in Salvador, Brazil, this paper explores methodological questions concerning the use of photographs as historical records. It starts with some brief reflections based on the work of Le Goff, Kossoy, and Mauad. It then develops a line of argument directly related to this investigation, highlighting the relativity of photographs as historical records, as they are at the same time representations of moments lived in the past, recreations of those lived moments through the lens of the photographer, and possibilities for later interpretations by researchers. KEYWORDS: photography; Carnival; Salvador; methodology; diversity.

Recebido em: 29/04/2009

Aprovado em: 14/08/2009

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A fotografia numa pesquisa sobre a história do Carnaval de Salvador

Introdução O Carnaval de Salvador tem sido tratado por dezenas de pesquisadores, tanto de instituições locais quanto de outros centros do Brasil e do exterior. Nos últimos trinta anos, os estudos sobre a emergência do afro e a montagem da axé music tomaram o proscênio da reflexão. Neste cenário, podemse destacar o trabalhos de Marcelo Dantas (1994) sobre a constituição do Olodum como instituição moderna, bem como o de Ari Lima (1997) e Goli Guerreiro (2000) sobre o explosão do fenômeno afropop em Salvador. Michel Agier (2000) concentrou-se sobre a criação e consolidação do bloco afro Ilê Aiyê. Um número crescente de pesquisas acadêmicas vem se debruçando sobre o Carnaval dos últimos vinte anos, destacandose Marilda Santana (2007) com seu estudo sobre as estrelas da axé music. Em contrapartida, as experiências anteriores não somente têm sido menos estudadas, como permanecem reféns de suposições que passaram a compor um discurso “oficial” acerca da história da maior festa soteropolitana, praticado freqüentemente pela imprensa, por organizações não-governamentais e por não poucos intelectuais, de forma mais ou menos associada a essas referências institucionais. Em se tratando das décadas anteriores à de 1970, destacam-se os trabalhos de Raphael Vieira Filho (1995;1997), sobre os blocos negros do período da Velha República, e Fred

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de Góes (1982), sobre o surgimento do trio elétrico. Esta contribuição, por sua vez, coloca algumas possibilidades de pesquisa ligadas aos registros imagéticos. Desenvolve problematizações sobretudo de ordem metodológica, agrupadas em alguns itens que podem sinalizar encaminhamentos de solução tanto de questões de construção conceitual quanto de problemas técnicos diretamente ligados a procedimentos de pesquisa. A interrogação de que se nutre seu desenvolvimento se deve a Jacques Le Goff (1994). Trata-se de sua conhecida afirmação de que o documento é monumento, no sentido de que as sociedades históricas erigem algumas informações em lembranças e instruções que alcançam se perenizar. Le Goff distingue entre este tipo de documento, que tem uma conotação testamentária, e aquele outro tipo constituído enquanto tal pelo próprio trabalho do historiador. Referindo-se ao questionamento original de Foucault (2002) sobre a “segregação dos desviados”, o autor insiste em que cabe ao pesquisador uma desconfiança radical com relação a todo registro, seja aquele herdado como tal, seja aquele “descoberto” pelo profissional do desvendamento do passado. Cada sociedade – ou melhor, cada setor social que reúne suficiente poder para fazer lembrar a si próprio pelos presentes e futuros – elabora um acervo de imagens e registros acerca de si. Estes monumentos são testemunhos de poder.

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A FOTOGRAFIA NUMA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE SALVADOR O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 1994, p. 545).

Nesta reflexão, tomamos também como interlocutores Ana Maria Mauad e Boris Kossoy. A partir de olhares (inter)disciplinares distintos, esses autores oportunizam uma problematização radical da utilização da fotografia como documento de pesquisa, sobretudo de pesquisa histórica. Boris Kossoy chama freqüentemente a atenção sobre o caráter da fotografia ao mesmo tempo fixo (no sentido de momento fixado) e relativo a distintas possibilidades de temporalidades. A fotografia é memória: [...] enquanto registro da aparência dos cenários, personagens, objetos, fatos: documentando vivos ou mortos, é sempre memória daquele preciso tema, num dado instante de sua existência/ocorrência. É assunto ilusoriamente re-tirado de seu contexto espacial e temporal, codificado em forma de imagem” (2007, p.3).

Desdobrando esta premissa, o autor insiste sobre o caráter ficcional da fotografia, que convive com seu caráter indiciário. O fotógrafo é criador, no sentido de que sua imaginação e sua posição única, irrepetível e irreversível como o próprio momento e a própria cena fotografados, constituem o ato de fotografar e, assim, participam do delineamento de contornos das fotografias. Assim, afirma que se pode tomá-las: 1

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[...] como objetos de pesquisas históricas e teóricas e [...] como fonte de informações referentes a diferentes áreas de conhecimentos. Objeto e fonte são desconstruídos e reconstruídos em camadas interpretativas, abrindo-se muitas possibilidades de articulação e análise (idem, ibidem, p. 33).

Segundo ainda Kossoy (2002), dentre os muitos aspectos da fotografia, apenas um é explícito e chega a parecer evidente: a face iconográfica. Entretanto, a partir de um cuidadoso trabalho de rememoração a partir da fotografia objeto, como insiste Mauad (2008), é possível situar a fotografia numa dinâmica complexa de atitudes, posturas e interesses. Na obra da autora, o fascínio diante do documento fotográfico é transparente, constituindo-se como um guia na ânsia de perscrutar as entrelinhas das figuras retratadas e tomadas como objetos de pesquisa. Colocadas estas observações iniciais, passamos a algumas problematizações sobre o uso da fotografia numa pesquisa sobre o Carnaval de Salvador; trata-se de “Beduíno com Ouvido de Mercador – um documentário multimídia sobre o Carnaval de Salvador dos anos 50 aos 80”1. O corpus que referencia esta reflexão corresponde ao acervo da Fundação Gregório de Matos – FGM 2, que, no contexto da pesquisa, destaca-se pela riqueza de sua documentação fotográfica relativo ao período da pesquisa, como da qualidade técnica de seu conteúdo. Inclui as coleções referentes à própria produção fotográfica da Prefeitura Municipal do Salvador, do Diário de Notícias e do Estado de São Paulo. A pesquisa considera outras fontes imagéticas, como os periódicos A Tarde e

Pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia e realizada pelo Grupo de Pesquisa O Som do Lugar e o Mundo, sob a coordenação do autor. Apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB. Órgão da Prefeitura Municipal de Salvador encarregado da guarda de arquivos históricos e da organização de festejos cívicos e populares, entre outras atividades.

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Tribuna da Bahia, bem como inúmeros registros de entidades carnavalescas e de memória oral. Não têm menor importância alguns registros fílmicos, alguns deles ainda não publicados. Entretanto, para efeito do presente estudo, toma-se como corpus apenas as fotografias mantidas nos arquivos da FGM. As problematizações seguem distribuídas por eixos temáticos tomados como operacionais na condução dos trabalhos. Música As práticas especificamente musicais estão no centro de todo tipo de festa carnavalesca. A presença dos diversos tipos de instrumento e o posicionamento das pessoas com relação a estes assume importância fundamental. De início, é praticamente impossível discernir, em boa parte das fotografias, o que as pessoas estão dizendo ou cantando. Torna-se difícil distinguir se as pessoas estão rindo, cantando, gritando ou simplesmente extasiadas (o que pode corresponder à abertura da boca), lançandose sobre o pesquisador o risco da conjetura ou grosseira inferência. Neste sentido, então, o acionamento dos instrumentos musicais que se torna visível na fotografia deixa esse pesquisador mais próximo da cena capturada na fotografia. A centralidade da combinação entre sopros e percussão, que dominou o período correspondente aos anos 1950 e 1960, resulta evidente nas séries fotográficas. Por outro lado, nos tipos de bloco carnavalesco que se desenvolveram a partir do final dos anos 50, como as escolas de samba; a partir do final dos anos 60, como os blocos de índio; e a partir dos anos 70, com os blocos afro, os instrumentos de percussão chegam a dispensar o uso daqueles de corda e sopro. É 112

interessante notar que, mesmo que os instrumentos de percussão fossem fundamentais na música de compasso binário bem marcado – boa parte das vezes uma marcha ou um samba de batucada –, estes instrumentos não são exaltados na fotografia; simplesmente ocorrem. Com o ressurgimento e consolidação do modelo musical, iconográfico e coreográfico do bloco afro, os instrumentos de percussão são realçados na sua aparição em fotografias. Isto pode ser matizado conforme se trate de uma ocasião mais oficial e formal, como o próprio cortejo nos dias do Carnaval, ou se trate de um festejo menos controlado pelas lideranças e autoridades, como é o caso das lavagens, gritos e batucadas. Pode-se ver uma combinação mais frouxa entre os diferentes naipes, além de uma improvisação interessante, sobretudo no caso da percussão, com a incorporação de latinhas, xequerês, chocalhos, etc. Entretanto, no cortejo oficial dos blocos afro, os tambores reinam no centro das fotografias, associados a coreografias emblematizadas como africanas e a um determinado tipo atlético e altivo de negro/ negra. No que diz respeito ao trio elétrico, observam-se diferentes montagens, com menor ou maior quantidade de instrumentos de percussão. A própria disposição destes instrumentos varia consideravelmente no tempo. De início, vinham no andar inferior do trio; a partir dos anos 1970, começam a ganhar o andar superior, inclusive pela iniciativa inovadora dos Novos Baianos. Aos instrumentos acústicos, vêm-se somar, nos anos 80, os eletrônicos. Os trios variam também de tamanho e observam-se montagens especiais com motivos comemorativos, como a famosa Caetanave, homenagem do trio elétrico Tapajós a Caetano Veloso no seu retorno de Londres,

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no Carnaval de 1972. O que se pode observar, a partir dos anos 1980, é a difusão dos instrumentos eletrônicos e a inclusão, nas bandas mais poderosas e associadas aos intérpretes e vocalistas mais famosos, de instrumentos de sopro que passam também a executar solos e vinhetas, a diminuir a importância relativa dos instrumentos de percussão. Tais constatações abrem caminho para a compreensão de uma série de mudanças na composição das bandas, na montagem do repertório e na sucessão das modas rítmicas. Indumentária e alegorias Nos dias do Carnaval propriamente ditos, a indumentária é o elemento que, junto com as alegorias do bloco, o identificam perante a multidão. Mesmo os blocos mais pobres e menos especializados internamente, em termos de cargos e desempenhos, têm pelo menos um membro que se encarrega da concepção das fantasias e das alegorias. Revela-se aí, de forma menos problemática que quando se trata da dimensão musical, o motivo fantástico. Esta noção assume importância central na pesquisa. Trata-se da visibilização, de forma recriada e necessariamente circunstancializada pelas condições econômicas e técnicas de realização, das referências de mundos fantásticos sem as quais o Carnaval não poderia acontecer como uma festa de descontinuidade, que permite irromper no cotidiano elementos de outro(s) mundo(s). Pode-se ver o vigor e o brilho das referência dos filmes de inspiração orientalista nas fotografias de blocos como Mercadores de Bagdá, Cavaleiros de Bagdá, Filhos de Gandhi, Filhos do Mar e Filhos de Obá, bem como nos afoxés Filhos do Congo e Império de África. Algumas constantes na imagética

deste tipo de cinema, a exemplo dos guardasóis que protegem as autoridades, dos turbantes, dos sapatos com bico volteado, das calças folgadas e pregueadas presas com elástico nos tornozelos, são recriadas seja sobre o chão, seja sobre os carros alegóricos. Em alguns casos, sobretudo nos blocos Mercadores de Bagdá, Filhos de Obá e Cavaleiros de Bagdá, algumas cenas eram cuidadosamente recriadas, como a corte dos paxás, com serviçais e odaliscas e, às vezes, figurações de animais exotizados, como cisnes, elefantes, serpentes e camelos, intensificando o clima de realeza e distinção desse ambiente, como num paraíso onírico. As escolas de samba procuravam copiar as entidades congêneres do Rio de Janeiro, como dizem com freqüência os cronistas do Carnaval dessa época. Isto se faz evidente nos trajes que lembram os protótipos da corte francesa dos séculos XVII e XVIII e em mesuras e gestos de vassalagem, deferência e reverência. As figuras do mestre-sala e da porta-bandeira são emblemáticas deste aspecto. Entretanto, na periferia dos destaques, vêem-se figuras originais, apontando a intenção de particularizar a escola. Observam-se inovações como sambistas de tubinho nos anos 1960 ou pandeiristas fazendo evoluções circenses num estilo bem distante do rigor do modelos performáticos de diversos tipos. É possível perceber que alguns fotógrafos preferiram captar as cenas mais “corretas”, quais sejam, as exibições mais afinadas com o modelo carioca. Outros fotógrafos, por sua vez, mantêm-se atentos a cenas especiais e singulares. Os blocos de índio procuram insistentemente recriar a figura do índio chamado “norte-americano”, que aparecia abundantemente nos filmes de cowboy – os westerns – nas décadas de 1960 e 1970.

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Elementos como as franjas das calças, os cocares, os machados, os adereços em vidro e metal, os esparadrapos fazendo as vezes de pinturas tribais, trazem também para as ruas do centro da cidade os motivos fantásticos do cinema. A diferença maior é a cor predominante de cada bloco, junto com o branco. Esta semelhança aparece nitidamente quando se comparam as fotografias de diferentes blocos da mesma categoria. 0 Ilê Aiyê, o bloco afro que primeiro se notabilizou e que plasmou o próprio nome do gênero, apela para uma África ancestral, emblematizada por escudos de pele, torços cuidadosamente trabalhados, objetos de cerâmica, sisal e palha. Este modelo é seguido quase sempre pelos blocos afro que surgem até o início dos anos 1980. Somente com o crescimento e explosão do Olodum, em 1986, é que se observam modificações nos padrões das indumentárias e adereços. As coreografias, contudo, permanecem aquelas do início, com ênfase nos movimentos dos joelhos, ombros e braços. Este tipo de dança é conhecido, normalmente, como dança afro. Até o final dos anos 1980, os blocos de embalo, quais sejam, aqueles que não se remetem a uma temática específica, investem em mortalhas, traje de duas peças com poucas costuras que deixa o corpo mais livre para evoluir e facilita o movimento dos braços, resultando numa sensação de leveza e liberdade. A partir de então, alguns blocos começam a trocar as mortalhas por uniformes como macacões e outros, numa concepção mais esportiva e mais afinada com o figurino da época, em que se divisava um compromisso com a liberdade do gesto e a influência de padrões mais urbanos e universalizados pelo cinema norte-americano. Este tipo de indumentária não dura mais que alguns anos. No final dos anos 1980, todos 114

os blocos de embalo, já então chamados blocos de trio, aderem ao short com abadá, traje esportivo, mais econômico e rentável. Segundo os figurinistas desses blocos, o abadá “deixa os movimentos mais livres”; ora, movimentos semelhantes àqueles praticados nas academias aeróbicas. É significativo que, a partir desse momento, as próprias academias passam a ministrar sessões de um ritmo que se passa a chamar de swing baiano, oferecidas especialmente nos meses do verão e freqüentadas com notável excitação pelos turistas e pelos estudantes de classe média em férias. Pode-se perceber, em algumas fotografias, a prática de modas coreográficas que duravam um, dois ou mais anos. Este tratamento demanda um tratamento comparado entre as notícias associadas às fotografias. Além disto, uma fotografia apenas de uma determinada cena não permite visualizar a coreografia. É preciso, então, recorrer ao estudo serial da mesma cena, o que raramente é possível no caso das fotografias de arquivos. Padrões de beleza Os padrões que demarcam o que seria ou não o belo variam muito conforme a época e o tipo de bloco. O que se verifica, no estudo atento das fotografias das escolas de samba e blocos de índio, bem como dos blocos de inspiração orientalista, é uma acentuada independência com relação aos padrões ocidentais convencionais propagados pelas revistas e pelo cinema, como a esculturalidade do corpo correspondente a tais referência, a “boa” altura e a “integridade” do rosto. Vêemse homens e mulheres de dentição incompleta como destaques de escolas de samba, homens e mulheres com gorduras à mostra, homens e mulheres de baixa estatura

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e de rosto muito comum, o que jamais aconteceria entre nós, hoje, em quase todos os modelos de bloco carnavalesco. Os padrões da beleza ostentada no carro alegórico do bloco e sobre o palanque da Praça da Sé ou da Praça Municipal eram mais próximos da gente comum dos bairros de Salvador, podendo-se destacar aí indivíduos comuns nas ruas destes bairros. A partir dos anos 1970, dois tipos de entidade carnavalesca vão selecionar seus destaques pela aparência politicamente correta, o que se evidencia no cotejamento de fotografias. Um desses tipos corresponde aos blocos afro – sobretudo o Ilê Aiyê –, que escolherão entre seus membros destacados aqueles que apontam um negro altivo, forte, figurando um rei, um guerreiro, um sacerdote africano. Suas dançarinas mostram quase sempre a mesma indumentária, os mesmos adereços, as mesmas posturas coreográficas. Não se verifica uma continuidade entre estes aspectos e uma iconografia anterior, como no caso dos blocos de inspiração orientalista, das escolas de samba e dos blocos de índio, permanecendo impreciso o conhecimento da origem e padronização desses movimentos. Outro tipo de bloco carnavalesco irrompe na história do Carnaval de Salvador com as duas dissidências do Fantasma no final dos anos 1960, quais sejam, os Internacionais e os Corujas; ambos selecionam homens de pele clara, procurando colocar nas coreografias e performances apresentadas no palanque, bem como nos carros alegóricos, indivíduos que sinalizam um modelo de eurodescendência matizada; não chega a ser um arianismo, mas uma distinção de membros mais claros e da

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famosa “boa aparência”. Isto resulta evidente nas fotografias, sobretudo naquelas que trazem alegorias e coreografias especiais, quase sempre desempenhadas no palanque da Praça da Sé 3. Espacialização O estudo das fotografias desse período evidencia uma diferença fundamental com relação ao período atual: a densidade de foliões por metro quadrado era muito menor. Isto se vê tanto no interior dos blocos como nos lados externos às cordas, e mais ainda nas praças e outras áreas adjacentes. Em inúmeras fotografias, pode-se ver o chão enquanto um bloco se apresenta na rua, inclusive nas fotografias do Campo Grande e da Praça Castro Alves, o que a um jovem de classe média pareceria hoje bizarro, indesejável ou inviável; quem sabe, algo pouco higiênico. Relacionado a este aspecto está o registro do movimento com deslocamento. Havendo espaço, o folião pode evoluir como deseja, pode deslocar-se. Este aspecto da espacialização no Carnaval se remete diretamente às práticas coreográficas. Dois movimentos podem ser verificados aí, recursivamente: a elevação dos braços e a impulsão pelos tornozelos, com a flexão dos joelhos para a frente. Isto resulta mais nítido se compararmos estes movimentos àqueles próprios das coreografias criadas nos anos 1980. As modas coreográficas inventadas a cada ano, a partir dos sucessos de Luiz Caldas, Gerônimo e Sarajane, se apresentavam como uma solução para a carência de espaço que já se fazia sentir. O folião passa a movimentar-

Epicentro da apresentação dos blocos em geral nos anos 1960-1970, enquanto a Praça Castro Alves tinha a mesma função no que se refere aos trios elétricos.

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se com pouco deslocamento, ou mesmo nenhum. O eixo desse movimento, então, passa para o giro dos joelhos e da cintura. Este tipo de observação é especialmente delicado, e necessita a verificação comparativa de um bom número de fotografias, já que se trata de movimentos. A observadores que experimentaram este período, a coreografia parece evidenciar-se na imagem parada, enquanto outros percebem a necessidade de um cotejamento mais cuidadoso de fotografias da mesma cena. Intertextualidades e interseções A abundância de trabalhos sobre o Carnaval de Salvador, seja de pesquisadores, seja de jornalistas, seja ainda de produtores culturais da iniciativa privada ou do próprio aparelho estadual de governo, fixou certas constantes que, ao longo das últimas décadas, adquiriram o status de “realidades”, passando a integrar uma narrativa com aromas de sagrado que, ao invés de problematizar, apresenta como simplesmente factual a sucessão dos modelos de organização das entidades carnavalescas. Por exemplo, tornou-se lugar comum afirmar que todos os trios elétricos descendem de alguma forma da velha fobica de Dodô e Osmar, que saiu à rua pela primeira vez em 1950, assim como afirmar que o primeiro bloco afro foi o Ilê Aiyê, cujo primeiro cortejo aconteceu em 1975. Uma contextualização mais cuidadosa, bem como um resgate mais exigente de informações, permite matizar estas máximas. Um aspecto em que esta postura se revela fecunda é a percepção de diferentes matrizes estéticas, sociais e tecnológicas nos diferentes modelos. O próprio trio elétrico era, desde 1950, um automóvel eletrizado. Ora, a cidade do 116

Salvador começava lentamente a modernizarse; o trio elétrico pode ser pensado como a alegoria da rodoviarização e da eletrificação da cidade. Uma análise de fotografias das décadas de 1920-1940 permite compreender a centralidade dos automóveis nos cortejos. O próprio desfile das grandes sociedades, sobretudo o Fantoches da Euterpe, o Cruz Vermelha e o Innocentes em Progresso, se baseava no brilho e na criatividade de carros alegóricos que consistiam em caminhões e automóveis reconfigurados para o Carnaval. Até os anos 1940, usavam-se as pranchas, ou seja, carros alegóricos para o desfile de moças das elites construído sobre o tabuado dos bondes. Tratamentos assim das fotografias permitem enxergar em cada modelo, e mesmo em cada entidade, elementos de diferentes matrizes estéticas, de diferentes recursos tecnológicos, enfim, diferentes inspirações originais. As “invenções absolutas” passam a soar como descontinuidades de ritmo e intensidade de determinados aspectos ou características em processos contínuos de desenvolvimento. Alguns blocos de índio traziam seus componentes usando o cabelo black power, elemento que se tornou emblemático dos primeiros cortejos dos blocos afro. Pode-se traçar, a partir também de fotografias, interfaces muito interessantes entre os dois modelos de bloco carnavalesco. Pode-se verificar – e isto é especialmente instigante – que um mesmo traço de comportamento, indumentária ou iconografia é reportado pelo fotógrafo ou pelo legendador da fotografia (às vezes o editor do jornal ou do caderno, outras vezes o autor da matéria) como emblemático de um modelo e não de outro, ou mais de um modelo que de outro. Outra cena em que é possível perceber acentuada intertextualidade é a homenagem que um bloco rende a outro, ou a um aspecto

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relacionado a outro bloco. No início dos anos 1970, os Internacionais tomaram como motivo fantástico a nação Apache. Ora, nada mais distinto, enquanto extração social, que os componentes dos Internacionais e dos Apaches do Tororó. Entretanto, a força do motivo fantástico correspondente aos índios “norte-americanos”, num momento em que os filmes de cowboy eram a principal atração da juventude de Salvador, interfaciou os dois modelos. Assim, os Internacionais ostentaram um imenso cavalo malhado no seu cortejo, enquanto seus componentes envergavam um traje de certa forma semelhante ao dos blocos de índio. Isto veio evidenciar a força dos Apaches do Tororó, mediante a louvação de sua referência fantástica justamente pelo seu pólo antitético. Em contrapartida, os Internacionais também assimilavam, ao seu acervo de tipos, um ícone relevante da cultura cinematográfica. Os modelos que parecem se prestar mais a esta leitura são os blocos de inspiração orientalista e os afoxés. Os primeiros não hesitavam em misturar referências a diferentes mitologias cinematográficas, constituindo uma imagem ao mesmo tempo difusa e nítida do Oriente no Carnaval da Bahia. Referências ao mundo árabe, à Índia e à África se mesclavam sem problemas, tanto entre si como ainda com motivos iconográficos de outros mundos, como, por exemplo, um barco viking apresentado em miniatura. Este processo se dava ao sabor da freqüência de seus foliões às casas de exibição. Os afoxés, ao contrário do que de vez em quando ainda se ouve afirmar, não se referiam apenas às origens africanas da maioria da população de Salvador e seu Recôncavo, ou à tradição dos orixás. Pode-se ver, nas fotografias encontradas, associações entre adereços de orixás e elementos

emblemáticos do mundo oriental ou mesmo de outras matrizes fantásticas veiculadas pelo cinema. A partir de 1949, com a fundação dos Filhos de Gandhi, os afoxés não estavam mais necessariamente ligados a uma determinada casa de santo, embora permanecessem ligados à tradição dos orixás. Isto provavelmente favoreceu uma maior plasticidade deste modelo carnavalesco, como se pode visualizar nas fotografias. O exame das fotografias permite verificar ainda o vigor de algumas modas que, por não serem tão passageiras como normalmente se costuma pensar uma moda, podem ser pensadas como uma onda temática. É o caso do mundo hippie, com sua estética de despojamento e relaxamento. Inúmeras fotografias dos anos 1970 permitem afirmar que boa parte dos foliões mais jovens transformava o Carnaval numa ocasião especial de afirmação de uma estética e uma ética de inspiração hippie. Isto pode ser verificado na indumentária como no gestual. Esta influência não se faz notar nos blocos propriamente, mas nos grupos de foliões jovens que se aglutinavam em locais como o Campo Grande e, mais que todos, a Praça Castro Alves. A presença vigorosa de elementos da estética hippie nas apresentações dos Novos Baianos no Carnaval não parece motivo de discordância. Uma questão de ótica Retomando os questionamentos cultivados na interlocução com os autores citados na introdução deste artigo, podemos então arrematar algumas reflexões sobre a utilização da fotografia numa pesquisa sobre o Carnaval de Salvador. Deve-se, de antemão, advertir para que estas reflexões só fazem sentido enquanto as fotografias são devidamente contextualizadas e

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consideradas no seu conjunto, e que o pesquisador deve ampliar ao máximo o universo de fontes consultado, no sentido de escolher como objeto operacional propriamente dito aquelas fotografias que mais se prestam à discussão da problemática da pesquisa, sem perder, contudo, a atenção ao todo. Um passo a ser dado nas nossas pesquisas sobre o Carnaval de Salvador é a constituição de um banco de imagens provindas de arquivos pessoais ou familiares, o que poderá ampliar consideravelmente o próprio corpus da investigação, bem como a sua diversidade, considerando que as fotografias tomadas num clima de espontaneidade, galhofa e brincadeira não precisam corresponder às exigências do politicamente correto, ou mesmo às exigências técnicas da fotografia de “boa qualidade”. Registros em que transborda a comicidade, boa parte deles constando de homens travestidos e embriagados, são dos mais encontradiças em arquivos particulares, soltas em caixas de camisa ou misturadas a outros documentos em gavetas de cômodas. Continua fazendo sentido a pergunta pelo caráter “reflexivo” ou “consciente” do ato de fotografar ou seu caráter “espontâneo” ou “casual”. Alguns fotógrafos dirigem a cena, sugerindo posturas dos indivíduos para “sair melhor na foto”. Outros afirmam que captam a cena na forma como se oferece. Ora, o próprio fotógrafo que captura cenas “espontaneamente” costuma fazer, logo depois da revelação ou ainda quando na memória da câmera, sua seleção, descartando o que “não ficou bom” e elegendo, inevitavelmente, as fotografias “boas” e “pertinentes”. Uma discussão que se coloca cada vez mais como exigência, na nossa pesquisa, diz respeito à relação entre o ponto de vista do 118

fotógrafo – o que vem equivaler ao que está tomado como imagem – e a interpretação que podemos fazer da fotografia. O próprio fotógrafo, ao escolher entre seus resultados aqueles que vai publicar, está realizando uma interpretação e condicionando as possibilidades de interpretação a partir desta seleção. Isto pode ser desdobrado na cadeia completa que leva – ou não – a fotografia desde o momento de sua tomada até sua visibilização pelo leitor do jornal ou pelo folião que guarda uma lembrança daquela folia. A seleção das cenas desejadas – ou desejáveis – não é apenas do fotógrafo, cabendo também ao editor do caderno, ao programador gráfico e, finalmente, ao redatorchefe. Se uma fotografia não parece apropriada aos efeitos do perfil do jornal, não chegará ao público. Quem sabe vai parar em alguma pasta de arquivo, cabendo ao pesquisador, então, desvelar sua existência e, assim, a existência daquele momento capturado pelo obturador. É uma oportunidade preciosa de desvendamento da trama da eleição de fotografias “cabíveis” o cotejamento entre as fotografias que chegaram a ser publicadas no periódico e aquelas que adormecem no arquivo, à espera de que um pesquisador venha despertá-la. Algumas coleções guardam apenas o nome da instituição que as encomendou. Em inúmeras situações, não se registrou o nome do fotógrafo. O que levou a que aquelas fotografia, e não outras, fossem publicadas ou guardadas nos arquivos? Uma pista de solução deste problema pode estar no teor das legendas. O que nos perguntamos, algumas vezes, é até que ponto recolhemos – tanto nós pesquisadores como os profissionais da imprensa – das fotografias elementos que nos intrigam e até que ponto, em contrapartida, atribuímos a estas fotografias frases que “parecem” servir como

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legendas não escritas. No intuito de “compor” a reportagem, o autor confere contornos ao conjunto composto pelas fotografias e pelo texto. É possível que este seja o problema mais sutil do tratamento das fotografias como fontes visuais para o estudo do Carnaval de Salvador. O próprio processamento do registro fotográfico, em suas diversas etapas e por diversos tipos de profissional, contribui para a plasmação de uma tipologia das agremiações carnavalescas, fixando-lhe ou pelo menos imputando-lhes características, através de uma reiterada emblematização que se baseia, em boa medida, na iconografia associada a um ou outro tipo. Por fim, cabe afirmar a validade permanente da advertência de Foucault (2002) com relação à “segregação dos desviados”, o que se aproxima freqüentemente da eleição do “politicamente correto” e “esteticamente nobre”. Entrevistas com foliões do Carnaval de Salvador que contam hoje mais de 70 anos apontam para uma festa escassamente fotografada. Por vezes, é possível chegar a estes foliões atentando para as bordas das fotografias, para as expressões faciais daqueles circunstantes que estão ali pelas beiradas. Em fotografias dos anos 1920 a 1940, pode-se perceber mulheres mercadoras de frutas e comidas, bem com homens e mulheres prestadores de todo tipo de serviços, olhando a passagem das pranchas e cordões. Parecem distantes, sendo que sua postura física quase nunca é a mesma daquela dos foliões que passam. Trata-se de considerar, como contrapartida do acervo montado, a possibilidade frustrada das fotografias que não chegaram a ser realizadas, mesmo que os fotógrafos estivessem presentes quando

estes foliões “desviantes” faziam seu Carnaval. Por que não se fotografou o Carnaval dos pobres e negros da primeira metade do século XX, ao qual se tem acesso mediante os depoimentos dos mais idosos e os registros de polícia? Esta contribuição passou em revista apenas alguns aspectos da utilização de fotografias na pesquisa histórica. Dificilmente faria sentido sem a visualização de seu objeto propriamente dito, a fotografia. Trata-se de motivar a reflexão sobre esta vertente da utilização de fontes imagéticas na pesquisa em História, inclusive a partir do diálogo com a bibliografia especializada, que tem crescido nos últimos anos, e que a brevidade do presente texto não permite abordar. Referências Bibliográficas AGIER, Michel. Anthropologie du carnaval. La ville, la fête et l’Afrique à Bahia. Marseille: Ed. Parenthèse, 2000. 252 p. DANTAS, Marcelo. Olodum – de bloco afro a holding cultural. Salvador: Grupo Cultural Olodum/Fundação Casa de Jorge Amado. 1994. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2002. GÓES, Fred de. O país do carnaval elétrico. Salvador : Corrupio, 1982. Coleção Baianada, 4. GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores. A música afro-pop em Salvador. São Paulo: Ed. 34, 2000. Prefácio de José Carlos Capinam. Coleção Todos os Cantos. KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. ______. Os tempos da fotografia. O efêmero e o perpétuo. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão, 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.

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Fundação Gregório de Matos / Prefeitura Municipal de Salvador. 1975.

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OS SÍMBOLOS DO CNPq E SUA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA

Os símbolos do CNPq e sua construção imaginária

Nancy A. Campos Muniz Doutora em História pela Universidade de Brasília (UnB). Analista em Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Autora de, O CNPq e sua trajetória de planejamento e gestão em C&T: histórias para não dormir, contadas. 1. ed. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2009. v. 1.

RESUMO: O artigo tem por objeto de análise as imagens que se constituíram como símbolos do CNPq, no período dos governos militares, a partir de reflexões apoiadas no referencial teórico sobre leitura de imagens, imaginário social e análise de discurso. O trabalho ora apresentado é sustentado em extensa pesquisa documental, bem como em entrevistas elaboradas a partir da metodologia de história oral, envolvendo técnicos, gestores e pesquisadores do CNPq. PALAVRAS-CHAVE: símbolos, CNPq, imaginário social

ABSTRACT: The article analysis the pictures that stockpiling as symbols CNPq during military governement from reflections supported in referential theoretical read images, imaginary social and analysis speech. The work now presented is sustained in extensive desk research, as well as interviews done from one of the methodology of oral history, involving technicians, managers and researchers CNPq. KEYWORDS: symbols, CNPq, social imaginary

Recebido em: 29/05/2009

Aprovado em: 25/08/2009

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Os símbolos do CNPq e sua construção imaginária

Introdução Na virada para o século XXI, o CNPq completou 50 anos de serviços prestados à sociedade brasileira incentivando e fomentando a formação de recursos humanos e apoiando o desenvolvimento de pesquisas em todas as áreas do conhecimento. Essa trajetória, aparentemente linear, foi constituída por rupturas e descontinuidades advindas dos embates políticos, econômicos e sociais que caracterizaram o Estado brasileiro no período compreendido entre 1951 e os dias de hoje. Paradoxalmente, foi durante o regime militar (1964-84) que o CNPq recebeu as atribuições mais importantes de sua história, em virtude de ter sido transformado no órgão central do planejamento nacional de C&T, incorporando efetivamente em sua missão, além do apoio à ciência, ações voltadas para o desenvolvimento da tecnologia. Grandes programas e projetos foram executados nesse período, marcando o avanço de diversas áreas do conhecimento. Pela primeira vez, o Estado brasileiro reconheceu a ciência e a tecnologia como elementos determinantes do desenvolvimento nacional. Grandes somas de recursos foram investidas no setor, com vistas a estabelecer uma base sólida para o desenvolvimento de pesquisas e a produção de tecnologias nacionais. Em meio a euforia dos discursos desenvolvimentistas, produzidos sob a inspiração da doutrina de segurança nacional,

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surgiram os símbolos institucionais do CNPq como chancelas legitimadoras do progresso nacional. Partindo do pressuposto de que toda imagem é produtora de sentidos, tomei os símbolos que representaram o CNPq no período dos governos militares até os dias de hoje, como objeto de análise do presente trabalho. Tal empreitada reflete parte de minhas andanças pela história cultural e expressa também alguns avanços pessoais na compreensão desse campo fantástico que é a leitura de imagens. O corpus de minha pesquisa foi constituído pelos discursos oficiais, de onde emergiram as falas dos governantes que fundamentaram ideologicamente as atividades de planejamento das políticas de C&T fazendo significar as ações do CNPq, e pelas entrevistas empreendidas com gestores e técnicos do CNPq, num recorte temporal relativo ao período 1975-1985. O presente trabalho está estruturado a partir de uma seqüencia de enfoques que julguei complementares. A partir de um referencial teórico sobre imagem desenvolvi algumas reflexões relacionando perspectivas abertas pela leitura de imagens e o estudo das representações sociais, com ancoragem na teoria do imaginário social e no campo da história cultural. Finalmente, apresento a análise de duas imagens que representaram o CNPq, contextualizada no solo histórico dos governos militares, destacando a importância da história oral na reconstrução da história do símbolo da instituição através das falas de

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personagens que atuaram em sua criação, bem como na captura de seus sentidos e significados percebidos por técnicos, gestores e pesquisadores do CNPq. As imagens que se tornaram os símbolos do CNPq A maior parte da bibliografia percorrida tendo por tema a leitura de imagens está voltada para a análise da imagem fotográfica, principalmente no que se refere ao desenvolvimento de metodologias que possibilitaram articulações teóricas e análises criativas dos objetos estudados – ou seja, as fotografias. Diante da proposição de trabalhar com a análise de símbolos que representaram e até hoje representam uma instituição pública – o CNPq – recorri a um arranjo metodológico com a perspectiva de adaptar alguns procedimentos recomendados às fotografias, ao caso dos símbolos. No entanto, constatei que a análise dos símbolos guarda certas especificidades. De acordo com as reflexões anteriores, as imagens são interpretadas a partir do olhar do leitor. Por manterem-se impassíveis, as imagens são apropriadas de diversas maneiras, admitindo toda a pluralidade de leituras possíveis, qualquer atribuição de valores, sempre relacionados com a experiência de quem as lê. Isso ocorre com a fotografia, com as gravuras, com os desenhos, etc., mas nem sempre com as imagens tomadas como símbolos. No caso das imagens de símbolos institucionais os significados atribuídos a elas são dados previamente através dos discursos orais e escritos. No caso do CNPq, em análise, trata-se de uma instituição pública, vinculada ao governo federal, criada com o objetivo de apoiar a formação de recursos humanos para

a pesquisa, mediante a concessão de bolsas de estudos de mestrado e doutorado, no Brasil e no exterior. Tal missão institucional encontrase definida em lei, bem como suas atribuições e competências para exercê-las. Portanto, a imagem tomada como símbolo do CNPq foi elaborada a partir de alguns princípios particulares: 1) trata-se de uma imagem elaborada para representar a missão da instituição na sociedade, de acordo com as suas atribuições previstas em lei; 2) a escolha do símbolo que constitui a imagem recaiu sobre um pequeno grupo de indivíduos, ou ainda, sobre um idealizador ou projetista que, a partir do conhecimento das atribuições delegadas à instituição, em seus estatutos, idealizou a imagem que lhe dá representatividade; 3) o projetista, ou o grupo idealizador do símbolo, imprime nele a sua percepção particular do que será representado como instituição. Sem dúvidas estamos diante de um constructo, resultante da representação de determinados indivíduos. Mas o que tornará esse constructo um símbolo, uma vez que o símbolo deve significar a mesma coisa, pelo menos, para um grande grupo de indivíduos? Neste caso específico, estamos tratando de um desenho impresso, que estabelecerá a base fundamental da identidade visual da instituição. No primeiro símbolo analisado, identificamos uma figura sem qualquer significado especial, um círculo contendo um mapa do Brasil. Qualquer indivíduo pode fazer leituras dessa imagem, interpretá-la como bem entender. Mas, a partir do momento em que é acrescentada a essa imagem a sigla do CNPq, ela torna-se diferente, particular (ainda que desconheçamos o seu significado) e, portanto, mais difícil de ser lida. A identificação da sigla nos impede de elaborar

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uma leitura livre, descomprometida, porque ela está ali sinalizando sua particularidade, reivindicando um conhecimento específico para a sua leitura. Mas o que tornará essa imagem um símbolo? Para quem essa imagem simbolizará algo? Para que essa imagem seja elevada à categoria de símbolo é necessário que seja impregnada por um sentido que a faça significar. Esse poder de conferir sentidos às imagens, fazendo-as significar como símbolos, emana da palavra oral e escrita ou, melhor dizendo, dos discursos. Somente o discurso tem a faculdade de conferir valor, dar sentido, fazer significar. Portanto, é o discurso oral e/ou escrito que imantará a imagem com um sentido único, fazendo-a representativa do conceito ligado à atividade desenvolvida pela instituição. A imagem simboliza, segundo a força política e social de seu discurso fundador. Esse processo não ocorre com a leitura da imagem fotográfica. Mesmo considerando a interferência do fotógrafo na definição da paisagem, da moldura, das poses, etc., a partir do momento em que a fotografia é revelada ou impressa, ela se torna impassível, congelando suas características. E a partir daí, qualquer indivíduo pode ler a imagem, de acordo com os seus valores, sua vivência, sua percepção, sem a necessidade de um discurso que a faça significar. Aprofundando ainda a questão do “para quem” o símbolo significa, é fato que no caso em análise, os símbolos do CNPq não “representavam” para os cidadãos comuns. Uma vez conhecida a missão da instituição apreende-se a direção que o estabelecimento dos sentidos indica – as comunidades científicas e tecnológicas. Esses grupos possuem os requisitos que permitem a captação desses sentidos e, portanto, a leitura 126

de significados mais próxima da concepção do símbolo. Para os cidadãos comuns, o símbolo funciona como um elemento que estabelece identificação visual. Portanto, é possível que os mais informados consigam fazer a relação: sigla CNPq = Ciência. No que diz respeito àqueles incapacitados da leitura textual, o desenho poderia significar “n” leituras. Portanto, a recepção do símbolo de uma instituição concebida para atender a uma comunidade de elite, apresenta uma série de especificidades que complexificam em muito a sua leitura. Mesmo considerando que a leitura de imagens se estabelece a partir da visão pessoal do receptor, uma vez que cada um interpreta de acordo com a sua capacidade. Os símbolos do CNPq foram construídos para significar preferencialmente, para uma categoria de receptores, a partir dos discursos orais e escritos dos governantes. Neste caso observo que, enquanto a recepção do símbolo é universal, sua concepção é absolutamente direcionada. Tendo em vista estas colocações, tomarei como premissa para esta análise, a existência de um pequeno grupo de indivíduos a quem coube a idealização das figuras que, através dos discursos governamentais, passaram a significar os sentidos representativos da instituição e transformaram-se em seus símbolos. Como conseqüência dessa premissa, minha análise contempla, além das imagens relativas aos símbolos, a atribuição de sentidos que os discursos dos governantes proporcionaram aos desenhos gráficos produzidos, elevando-os à categoria de símbolos do CNPq. Para tanto, apresentarei: 1) os procedimentos metodológicos utilizados para a datação da criação dos símbolos;

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2) a definição do contexto histórico específico ao surgimento dos símbolos, caracterizando dois momentos, assim considerados: 1ª. Fase: a criação do Conselho Nacional de Pesquisas e sua estruturação – período 1951-1963; e 2ª. Fase: a transformação do CNPq no órgão central do Sistema Nacional de C&T, no contexto dos governos militares – período 1964-1985; 3) a identificação dos sentidos que os discursos dos governantes fizeram significar nas imagens dos desenhos gráficos, como símbolos da instituição. Procedimentos metodológicos de análise Embora não exista registro documental sobre a criação dos símbolos do CNPq, identifiquei no decorrer de minha pesquisa a existência de duas imagens que caracterizaram os documentos da instituição, a partir de 1964. No início da pesquisa, além do símbolo que atualmente distingue o CNPq, tínhamos conhecimento de outra imagem que aparece aposta em documentos antigos, anteriores a 1975. De ambas as imagens as datas de criação eram desconhecidas, mas havia um dado que balizava a identificação do período aproximado da criação do símbolo atual do CNPq, que era o seu reconhecimento como logomarca. Assim, a partir de uma pesquisa junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI identifiquei a data de protocolo do primeiro pedido de registro de marca, referente ao símbolo atual – 09 de junho de 1978; o que nos informava que sua criação teria sido anterior a 1978 e que, a concepção da outra imagem, teria ocorrido numa data ainda mais distante.

Para realizar o trabalho de datação e análise dessas imagens, procurei me guiar por algum documento institucional importante, de periodicidade regular, com circulação interna e externa ao Órgão, que exigiria uma imagem como chancela institucional. Ocorreu-me então, tomar a série histórica de Relatórios de Atividades do CNPq publicada desde 1952, por fio condutor. No período compreendido entre 1951 e 1959, o símbolo que aparece na capa e na apresentação da contra capa dos Relatórios é o das Armas da República; fato plenamente justificável por estar o CNPq, nesse período, diretamente subordinado à Presidência da República. Portanto, nesses oito anos cobertos pelos Relatórios não encontrei nada de novo no que poderia se referir à adoção de um símbolo específico do CNPq. Considerando as lacunas deixadas pela inexistência de Relatórios de Atividades no período 1960-1963, foi somente na capa do Relatório relativo ao ano de 1964 que constatei, pela primeira vez, a impressão de uma imagem constituída pelo desenho de um círculo vazado, contendo o mapa do Brasil, cuja dimensão ocupa quase toda a área do círculo, trazendo justaposta a inscrição “CNPq”, em letras estilizadas retas, ligadas por traço contínuo. A figura apresenta-se no canto esquerdo superior da capa, como uma chancela, embora na contracapa de apresentação encontre-se ainda, as Armas da República.

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Tal modelo se repete no Relatório relativo a 1965 que evidencia uma curiosidade, a cor da figura impressa passa a acompanhar a cor adotada na capa do Relatório; neste caso, laranja. A figura estampada no Relatório anterior, 1964, apresentava a cor azul claro, seguindo a mesma tonalidade da capa da publicação. Essa característica pode ser observada em outros documentos originais produzidos nesse período, nos quais também encontramos a mesma imagem. Tal constatação induz à percepção de que até então, não existia qualquer preocupação dos administradores com o estabelecimento de uma imagem gráfica definitiva para o Órgão, que o representasse institucionalmente. 1ª. Fase do CNPq: criação e estruturação Inicialmente marcado pelas contingências advindas do grande desenvolvimento da energia atômica, durante a II Guerra Mundial, a criação do Conselho Nacional de Pesquisas – CNPq, pela Lei 1310/51, foi resultado de proposições de um grupo de militares e da pequena comunidade de cientistas brasileiros existente à época, composta em sua maioria por físicos. Sua missão visava o desenvolvimento de uma infra-estrutura razoável de pesquisa e a formação e capacitação de um contingente de pesquisadores de alto nível, através da concessão de bolsas e a criação de unidades de pesquisa, com o objetivo de desenvolver uma maior autonomia científica e tecnológica no País. O Estado reconhecia institucionalmente a importância da ciência para o desenvolvimento nacional, numa década em que a implantação da organização racional do trabalho já havia se consolidado enquanto técnica de controle do processo de trabalho industrial (ANTONACCI, 1993). 128

Nesse quadro, o planejamento assumiu a mais alta função no estabelecimento de políticas governamentais, a partir das idéias precursoras do taylorismo, consagrando-se na década seguinte com a instauração do regime militar, como um instrumento de alteração e consolidação de uma estrutura de poder, na medida em que se configurava como uma forma de ideologia que justificava as políticas estabelecidas pelo Estado (MANNHEIM, 1972). O período 1951-54, pode ser identificado como de uma primeira aproximação à política de desenvolvimento, estabelecendo-se várias medidas que estimularam o desenvolvimento econômico e a industrialização, abrindo passagem, a partir de 1956, para o governo de Juscelino Kubitscheck formular seu ambicioso Plano de Metas voltado para o setor industrial, encontrando os elementos e as condições favoráveis à prática do planejamento como o principal instrumento de política econômica do governo. A atuação do CNPq nesse período voltouse basicamente para a formação de recursos humanos. Constata-se, de maneira geral, a ausência de uma orientação explícita, formalmente elaborada nos planos governamentais, para a área de ciência e tecnologia no País, o que de alguma forma acabou por comprometer e/ou condicionar o desenvolvimento. Tal fato parece ter ocorrido devido ao pouco interesse dos dirigentes governamentais, representado pela diminuição de recursos financeiros alocados destinados às atividades de pesquisa científica e tecnológica, provavelmente pela dificuldade em se vislumbrar resultados práticos imediatos. Durante a década de 1960, em especial no período pós 64, com a ascensão dos governos militares, a atividade de planejamento assume importância central

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passando a integrar todas as atividades do Estado, dando origem a uma estrutura tecnocrática que, segundo Motta (1994), envolvia formas de conhecimento altamente codificadas e sistematizadas. A partir desse período, e até o final da era militar, se assiste à consolidação de um modelo de gestão pública que passa a atribuir às instituições de planejamento uma grande parte da responsabilidade pela condução das atividades econômicas, tendo sempre como objetivo o aprofundamento do processo de industrialização. Esse período correspondeu, portanto, ao ápice do planejamento governamental no Brasil, no qual o Estado assumiu um forte papel interventor, criando grandes projetos de integração nacional, oficializando ambiciosamente o conceito de “modelo brasileiro”e definindo-o como o modo brasileiro de organizar o Estado e moldar as instituições para, no espaço de uma geração, transformar o Brasil em nação desenvolvida. Nesse contexto, o desenvolvimento científico assumiu importância fundamental, como revelam os planos especiais elaborados nessa área, com volumosos recursos alocados à formação de recursos humanos e ao desenvolvimento de novas tecnologias. No discurso dos governantes militares, “ciência e tecnologia” permaneceu vinculada ao desenvolvimento nacional como elemento fundamental à construção de um “Brasil, grande potência” e a formulação das políticas para o setor permanecerá ligada a idéia de permitir ao País dar o “salto tecnológico”. Nesse sentido, o uso do planejamento e a valorização da técnica são concebidos como “razão técnica”, na qual o discurso dos 1

governantes deixou de ser fundado em valores e em idéias convertendo-se em discurso impessoal, fundado na racionalidade dos fatos, na divulgação sistemática dos índices de crescimento nacional e na eficiência administrativa do sistema. Tal recurso teve por vistas a despolitização da população através da demonstração de racionalidade dos fatos que passa a envolver as falas de tecnocratas e governantes numa aura de neutralidade, passando o discurso instituído a ser o “discurso competente”, “o discurso neutro da cientificidade e do conhecimento” (CHAUÍ, 1981). Fundamentando-se na Lei de nº 4.533, de 08 de dezembro de 1964, foram reformuladas e ampliadas algumas das competências do CNPq como, por exemplo, o papel de formulador e articulador da política científica e tecnológica. Nessa época, parte da estrutura formal do CNPq também foi modificada e a razoável expansão de suas atividades foi considerada essencial para o desenvolvimento e a consolidação da pesquisa no País. Durante a década de 1970, ocorreram algumas redefinições nos rumos do CNPq consoante à política governamental de valorização do setor de C&T nacional. A mudança política ocorrida com o golpe militar de 1964 1 promoveu profundas transformações no modelo econômico adotado até então. Uma nova elite composta por militares, industriais e intelectuais colocam em prática o projeto de restauração da economia fundado na supremacia do grande capital, sob a égide do lema “segurança e desenvolvimento”. No que se referia à “segurança” entenda-se a repressão a qualquer tipo de resistência ao governo e,

“Seria mesmo um truísmo repetir-vos que, hoje, nenhum país consegue atingir a prosperidade sem os alicerces da ciência e da técnica. Isto é, se não contar com um quadro de cientistas e técnicos capaz de atender às crescentes exigências do progresso. Estabeleceu-se mesmo íntima relação entre a riqueza nacional e a proporção de técnicos e cientistas existentes em qualquer coletividade” (CASTELLO BRANCO, 1964).

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por “desenvolvimento”, a expansão econômica fundada na pesquisa científica e tecnológica e na formação de cientistas e técnicos de alto nível. Nesse sentido, o projeto de criação de um “Brasil, grande potência” estava sendo colocado em execução. Iniciou-se então, nesse momento histórico, a montagem de um grande aparato de financiamento e implantação de programas de pós-graduação nas universidades brasileiras sob os princípios da “doutrina de segurança nacional” com base na integração nacional.

seus projetos e ela age pelo Estado, sendo impossível encontrar ou fazer uma distinção real entre Estado e Nação. 3) o conceito de bipolaridade: fundamento sobre a divisão do mundo em dois campos: o Ocidente e o comunismo, onde o Brasil estaria engajado no campo do Ocidente, por motivos geográficos e morais. Serve de postulado para a adesão da Nação à luta anticomunista no interior da segurança nacional. É colocado como um fato – está colocado como guerra total (Idem, p. 29-307).

Análise da imagem relativa ao CNPq no período 1964-1974 Considerando que o regime militar incorporou os princípios ideológicos da Doutrina de Segurança Nacional em todas as atividades do Estado, e que o presidente do CNPq em exercício no período 1970-74 foi o General Arthur Mascarenhas Façanha, até então Comandante do Instituto Militar de Engenharia-IME, considerei os princípios ideológicos da doutrina de segurança nacional como o pano de fundo de nossas análises. A Doutrina de Segurança Nacional foi estabelecida sobre três conceitos básicos: 1) a geopolítica: concebida pelos idealizadores da doutrina como “a ciência que estuda a influência dos fatores geopolíticos sobre a vida e a evolução dos Estados, com a finalidade de obter conclusões de ordem política...orienta o homem de Estado na condução política interna e externa...orienta o militar no preparo da defesa nacional...” (COMBLIN, 1980, p.25) 2) o conceito geopolítico de Nação: desejo de ocupação e do domínio do espaço. A Nação é o poder para impor aos outros 130

O círculo. Figura geométrica incomensurável, que pode estar representando geograficamente “o mundo”, portanto, a expansão do Brasil “no mundo” ou ainda, a proteção proporcionada pelo regime militar, que envolvia todo o país contra o comunismo. O mapa do Brasil. Perspectiva geográfica da segurança nacional, na qual Estado e Nação se fundem num mesmo princípio. Integração nacional promovida pelo desenvolvimento advindo dos recursos investidos na ciência. Nacionalismo ufanista que projeta a expansão do Brasil no mundo, através do desenvolvimento científico e tecnológico “O Brasil, grande potência”. A sigla CNPq – Conselho Nacional de Pesquisas. A força produtiva do conhecimento científico, como fator de desenvolvimento e segurança nacional. A ciência servindo de base para a sustentação do projeto de país.

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mencionada figura, apenas os dizeres “Relatório de Atividades do CNPq 1971”, em letras brancas sobre um fundo cor de vinho. A figura analisada será encontrada apenas na contra capa, impressa em preto e branco, no canto esquerdo superior da folha, apresentando em acréscimo, na base inferior do círculo, os dizeres “Presidência da República”. No ano de 1974 não houve publicação do Relatório de Atividades, pois a instituição estava passando por profundas transformações.

É preciso destacar que o Relatório de Atividades referente ao ano de 1966, apresenta, excepcionalmente, a mesma figura contida numa alegoria cujo tema pode ser compreendido como o desenvolvimento industrial. A figura representativa do CNPq aparece projetada como componente de uma engrenagem mecânica, sugerindo os elementos de uma máquina, na qual o emblema avança em sincronia com uma base sustentada pelo tempo, o ano 1966. Uma leitura provável seria: o Brasil industrializado avançando rumo ao desenvolvimento sustentado pela ciência e tecnologia. Ou ainda, um Brasil industrializado que se desenvolve em ordem e em segurança, nos trilhos do progresso. Outra constatação é que, a partir desse ano (1966), as Armas da República deixam de ser impressas nas contra capas dos Relatórios, induzindo à interpretação de que certa identidade e autonomia foram adquiridas pela instituição. A seqüência de Relatórios volta a apresentar a imagem originalmente descrita, colorida segundo a cor da capa, até o ano de 1970. Em 1971 identifiquei outra inovação, a capa do Relatório não apresenta mais a

A 2ª. Fase do CNPq: transformação em órgão central do Sistema Nacional de C&T A importância da ciência nesse período é destacada pela Lei nº 6.036, de 01/05/74, que transforma o Ministério do Planejamento em Secretaria de Planejamento (SEPLAN), órgão de assessoramento direto ao Presidente da República na coordenação da política de desenvolvimento científico e tecnológico. A referida lei vinculava à SEPLAN o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), a Fundação Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA) e a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Lei 6.129, de 06/11/1974, transformou o CNPq numa fundação de direito privado, o que lhe assegurou autonomia administrativa e financeira, com a denominação de Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Sua missão passou a ser a de auxiliar o Ministro de Estado chefe da Secretaria de Planejamento, na elaboração e coordenação do Plano Básico de Desenvolvimento Científico e TecnológicoPBDCT e na análise de planos e programas

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setoriais de ciência e tecnologia, assim como na formulação e atualização da política de desenvolvimento científico e tecnológico, estabelecida pelo governo. Posteriormente, o Decreto nº 225/75, de 15/01/75, criou o Sistema Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (SNDCT) integrado por todas as instituições vinculadas à pesquisa científica e tecnológica, usuárias de recursos governamentais, através da constituição de órgãos setoriais nos ministérios sob a forma de secretarias de tecnologia. A integração do SNDCT ficou a cargo do PBDCT, cujo principal instrumento financeiro seria recursos provenientes do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). O CNPq passou a ser o órgão central do SNDCT através de atribuição estatutária – Decreto nº 75.241, e sua sede foi transferida, em 1975, do Rio de Janeiro para Brasília. Tais atribuições e competências foram mantidas até 1985, quando foi criado o Ministério de Ciência e Tecnologia pelo primeiro governo civil, no âmbito da Nova República. A criação do símbolo que identifica atualmente o CNPq e seus documentos institucionais ocorreu nesse período, cujo contexto procurei apresentar sucintamente. O símbolo atual do CNPq Identificamos o surgimento do símbolo atual do CNPq, que substituiu definitivamente a figura do mapa contido em um círculo, no Relatório de Atividades referente ao ano de 1975. O ano de 1974 foi paradigmático na existência do CNPq, como já comentamos, pois marca a reformulação política e administrativa do Conselho, transformado em Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, mantida a sigla 132

CNPq. Agora como fundação de direito privado, sua missão é coordenar uma política global de ciência e tecnologia, vinculada à política de desenvolvimento econômico e social do país, servindo de orientação comum a todos os órgãos do Sistema Nacional de C&T – SNDCT e à previsão dos recursos que propiciassem sua implementação (CNPq, 1984). No período 1975-1985 o CNPq, de fato, alcançou a maior soma de competências e de prestígio em toda a sua história. A redefinição da missão do CNPq ocorreu como uma etapa da estratégia de legitimação dos governos militares, após Costa e Silva, através da comprovação de critérios de eficiência e racionalidade, importantes para a despolitização da sociedade civil. A política de C&T foi priorizada numa vinculação direta com o crescimento econômico, que comprovava a eficiência dos governos militares, e que revelava a base tecnocrática que lhe dava sustentação. É a partir desse contexto político que surge o símbolo do CNPq, que vem identificando a instituição até o presente. A cabeça estilizada em linhas retas de cor azul, em fundo branco, com sobreposição do mesmo desenho, de modo a proporcionar o efeito de quatro camadas, ou quatro cabeças contidas uma dentro da outra que, do exterior para o interior tornam-se mais finas, culminando numa pequena esfera em azul, localizada dentro da última cabeça, sugerindo fortemente a localização do cérebro. O desenho estilizado da cabeça em linhas retas coloca em evidência o perfil de um homem, ou ainda o perfil de um homem tecnológico do futuro, permitindo a leitura de que o binômio ciência e tecnologia seria indissociável para o desenvolvimento do País. Ou ainda, a ciência como base da formação

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de uma inteligência, capaz de gerar o progresso tecnológico para o homem pertencente às sociedades modernas. A partir de 09 de junho de 1978 foi efetuado o pedido de registro da marca, junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial, com o acréscimo da sigla CNPq ao lado da cabeça, configurando uma marca mista, ou ainda uma logomarca.

Dessa forma, esse passou a ser o símbolo do CNPq, agora numa formatação definitiva e obrigatória, não podendo ser utilizado em cores diferentes, nem em documentos ou acontecimentos que não sejam oficiais. Uma alteração foi promovida na logomarca, acrescentando-se abaixo da sigla CNPq, a escrita em extenso Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico , pelo fato de, até hoje, passados mais de trinta anos da reformulação do Órgão, algumas pessoas ainda se referirem ao CNPq como Conselho Nacional de Pesquisas. No âmbito da pesquisa realizamos uma série de entrevistas, a partir de procedimentos metodológicos da História Oral, entre os técnicos e gestores do CNPq que atuaram na instituição no período compreendido entre 1975 1985 2. Dentre as abordagens dos narradores surgiu a questão de como o símbolo do CNPq representava naquele período. Na fala de Cabmigo, o símbolo do CNPq é relacionado à instituição que transpirava o sentido de elite . 2

[...]Mas o primeiro contato com o CNPq foi com o símbolo... O símbolo do CNPq me chamou muito a atenção, eu não entendi aquela sopinha de letras, mas a figura das cabeças sobrepostas...me pareceu muito interessante, muito instigante... Mil novecentos e setenta e nove para oitenta. A casa transpirava de alguma forma o sentido de elite, a percepção que eu tinha é de que eu estava ali dando um passo efetivamente em direção a elite, no seu sentido mais amplo, que eu pelo menos conseguia formar naquele momento. Eram pessoas muito bem vestidas, era tudo uma aparência de integridade, de profissionalismo, de seriedade, de eficiência, de... enfim, prédio novo, bons salários, parecia algo efetivamente próspero (CABMIGO, 2006, grifos nossos).

O símbolo da instituição é representado a partir do sentido de elite; uma elite vinculada ao saber científico e tecnológico, cuja importância era cultivada pelos discursos governamentais daquele momento político. O símbolo das cabeças sobrepostas marcadas pelo ponto central, representando o cérebro, a inteligência, permite a vinculação imediata da imagem com a pesquisa e a ciência, atividades distantes dos cidadãos comuns. A utilização do termo aparência , pelo entrevistado sugere que as qualidades inicialmente percebidas não conferiram, após o conhecimento do funcionamento da instituição.

Para conhecer o detalhamento da metodologia empreendida, ver CAMPOS MUNIZ, Nancy. O CNPq e sua trajetória de planejamento e gestão em C&T: histórias para não dormir, contadas pelos seus técnicos (1975-1995). Tese de doutorado, Depto História, UnB, Brasília, novembro, 2008.

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No relato do entrevistado Cabajk emerge a vinculação do símbolo com o cérebro, a ciência e a tecnologia. Falavam na época que, “olha, é uma instituição que coordena todas as ações para o desenvolvimento da ciência e tecnologia do País.... Então, essas pessoas falavam “vem esse cérebro para Brasília”...e eu associei. Falavam de pesquisadores que vinham para Brasília, aí eu via o símbolo do CNPq que era uma cabecinha, então eu associava isso (risos). [...]Então, a gente associava mesmo aquela bolinha ao cérebro [...] do pesquisador, às pessoas que pensam, que pesquisam para desenvolver a ciência e a tecnologia no País. Isso foi uma das coisas que me motivou a vir para o CNPq. Eu ia trabalhar em uma instituição que ia formar pessoas para o desenvolvimento do País, para o desenvolvimento da ciência e tecnologia. Então eu achei isso muito interessante, motivador. Era um desafio para mim, que ajudava a organizar uma área, que eu nem conhecia direito, mas eu achei aquilo muito interessante. Fui para o Rio de Janeiro para conhecer o CNPq, em 75... quando fui entrevistado pela área de gestão de pessoas lá, na verdade eles falavam área de pessoal... de pessoas é mais hoje, não é? [...] O emblema do mapinha do Brasil [...] desse eu não me lembro não, devia ser lá do Rio mesmo... Já veio com esse [da cabeça], não é? (CABAJK, 2007, grifos nossos).

A fala reforça o que havia sido constatado na pesquisa dos Relatórios de Atividades, remetendo a existência da figura do mapa contido no círculo ao CNPq anterior a 1975. Na perspectiva dos principais beneficiários do CNPq, os pesquisadores, o símbolo é associado à idéia de excelência. Desde o meu ingresso na Universidade, como estudante, em 1965, tive direta ou indiretamente contato com o CNPq. Aprendi, desde cedo, que a Agência, mesmo em períodos de grandes dificuldades políticas e 3

financeiras, tinha como preocupação principal a qualidade da produção científica e a defesa de padrões acadêmicos. É claro que nada é perfeito e existiram momentos e situações de falhas e desencontros. No entanto, a marca CNPq remete sempre à idéia de excelência. Gilberto Cardoso Alves Velho (Museu Nacional, UFRJ, 1996). 3

A entrevista, com o presidente do CNPq no período 1975-1979, José Dion de Melo Teles nos proporcionou as informações que me levaram à origem do símbolo do CNPq, que compõe hoje sua logomarca. A logomarca, registrada no INPI foi doada pelo bom amigo Roberto Muylaert (expresidente da TV Cultura), em homenagem à nova fase do CNPq. A interpretação é de que o foco da atenção do CNPq seria centrado, sobretudo, na inteligência do homem e o mais seria conseqüência. Os inconformados ou “do contra” apelidaram jocosamente de “caveira e chumbinho”. [...]Depois, ele me corrigiu informando a autoria, que era de uma colaboradora dele na empresa... (José Dion de Melo Teles, 2007).

E foi a partir do depoimento de Roberto Muylaert que chegamos à artista que concebeu o desenho que se consagrou como o símbolo da instituição. O símbolo do CNPq foi criado por Cláudia Scatamacchia, paulistana, descendente de imigrantes italianos, aluna de Yoshiya Takaoka ainda na adolescência. Formada em Comunicação Visual, sempre trabalhou com pintura, design, projetos gráficos, direção de arte e ilustrações. Artista plástica consagrada, foi premiada várias vezes no Brasil e no exterior, ilustrando clássicos e autores de renomada importância: Ilka Brunhilde Laurito, Odette de Barros Mott, Goethe, Lewis Carrol, Virgílio, Andersen, Irmãos Grimm, Perrault, Fernando Pessoa,

Pesquisador, em depoimento à equipe responsável pela elaboração do trabalho “CNPq 45 anos”. CNPq/SUP, dez 1996. (não publicado).

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Érico Veríssimo, Walmir Ayala, Maria Dinorah, Lúcia Pimentel Góes e outros. Cláudia reside em São Paulo e sobre a concepção do símbolo do CNPq ela me relatou: [...] penso que, a criação do logotipo do CNPq, tenha sido mais simples do que você imagina. Não tenho boa memória e, sinceramente, não guardei nenhuma referência desse trabalho que, deve ter ocorrido no final dos anos 70. O desenho foi sim uma encomenda do Dr.Roberto Muylaert e a idéia de ciência e tecnologia já estava vinculada à pesquisa. A solução de “ uma cabeça pensante” com um pólo central que se difunde em outras cabeças e se desdobra em ondas me pareceu uma solução figurativa simples, de fácil percepção, e de entendimento imediato. [...] A inteligência, a concentração, as ondas do pensamento, a repercussão do saber. Uma idéia simples, de fácil compreensão, apoiada numa solução gráfica sóbria, harmônica e eficiente, acredito que tenham mantido o logotipo do CNPq intacto até hoje. (Cláudia Scatamacchia, 2008).

A eficácia da criação é ressaltada por Roberto Muylaert (2008) 4: Em relação à concepção do logo, a Claudia deve ter falado que nós saímos da idéia da inteligência que emana da cabeça de um homem. Foi ela que desenvolveu o desenho que foi aprovado pelo Dion, com quem tínhamos maior contato na época. Eu não tinha maior ligação com tecnologia, a não ser nas revistas especializadas que sempre editei, seja na Abril, seja na minha própria editora, indiretamente ligadas ao assunto. Mas eu acompanhava o trabalho do Dion, sempre criativo e inteligente, nos lugares por onde passou. O fato de o logotipo ter se mantido inalterado mostra que a Claudia fez um trabalho adequado.

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Assim, através da pesquisa documental e da história oral foi possível reconstruir a história da criação do símbolo do CNPq, até então desconhecida, que ora se incorpora à história da própria instituição, tendo por base o estudo das imagens e o contexto histórico da época de sua criação. As análises permitiram a compreensão das dimensões ideológicas vinculadas à criação do Órgão bem como o fortalecimento dos grupos que se procurava promover. Conclusão A pesquisa apresentada partiu do pressuposto de que a imagem é ineuxarível, uma vez ser fonte de reinterpretações permanentes reconstruídas pelo olhar de quem a lê, atribuindo-lhe novos valores e significados no decorrer do tempo. No entanto, ao empreender a análise de imagens tomadas como símbolos constatei que os significados a elas atribuídos são advindos de discursos orais e escritos, previamente existentes. Os símbolos do CNPq, enquanto constructos produzidos por alguns indivíduos apresentam significados previamente induzidos pelos discursos dos governantes, que no período dos governos militares, consideraram a ciência e a tecnologia como forças propulsoras do progresso e condição para o desenvolvimento nacional. A vinculação da sigla ao desenho, perfazendo o símbolo atual da instituição, dificulta uma leitura livre, descomprometida, pois ela está ali sinalizando sua particularidade, reivindicando um

Publisher, editor, e fundador da RMC Editora de São Paulo que publica a revista Varig; é vice-presidente da ANER. Presidiu a TV Cultura por 9 anos e foi ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da presidência da República, no primeiro mandato de FHC. Começou sua carreira na Editora Abril onde lançou a revista Exame. Foi publisher da Veja, editor da revista Visão e presidente da Fundação Bienal de São Paulo, em 1985. Publicou vários livros, entre eles: Barbosa, A História do Goleiro da Copa de 50 no Brasil; China, Chá e Cheng e recentemente lançou o romance histórico: Alarm!

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conhecimento específico para a sua leitura. Trata-se de um constructo, resultante da representação de poucos indivíduos, que passa a se relacionar com um grande grupo de indivíduos refletindo aspirações, ideais, utopias, produzindo sentimentos de pertença, enfim, produzindo identidade. No caso das imagens de símbolos institucionais os significados atribuídos a elas são dados previamente através dos discursos orais e escritos. Na primeira imagem analisada percebemos a ausência de uma definição quanto a sua coloração, tamanho, localização no documento (ora na capa, ora na contracapa) enfim, quanto ao seu estatuto institucional. Na segunda imagem, que se tornou o símbolo do CNPq, constatamos que ela já nasce pronta, definida. O símbolo do CNPq é criado para significar e representar a sua missão institucional, determinada pelos discursos governamentais, transformados em leis e decretos, uma vez que somente o discurso tem a faculdade de conferir valor, dar sentido, fazer significar. E neste caso, a imagem passa a simbolizar, segundo a força política e social de seu discurso fundador, com maior representatividade para os grupos dotados de características específicas, relacionadas com a missão da instituição, ou seja, aqueles vinculados às atividades de C&T. A construção de um dispositivo analítico fundado em abordagens teóricas e metodológicas complementares, na perspectiva da história cultural, me proporcionou o aporte necessário para a fundamentação das análises, em parte, aqui apresentadas, e a reconstrução histórica de

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fatos não documentados, principalmente no que respeita a concepção e autoria artística da imagem que se transformou no símbolo de uma grande instituição nacional, o CNPq. Nesse sentido, espero que os resultados da pesquisa venham a contribuir substancialmente para a reconstrução histórica da trajetória do CNPq, numa perspectiva mais ampla, para além da história oficial, onde as vozes daqueles que dela participaram em algum momento possam ser ouvidas e consideradas democraticamente, enquanto ecos de memórias vivas de um passado em permanente atualização. Referências Bibliográficas CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO (CNPq). Série Histórica dos Relatórios de Atividades do CNPq (1952-1985). Rio de Janeiro/Brasíllia: CNPq. Biblioteca do CNPq Lygia Portocarrero. ANTONACCI, M. A. A vitória da razão: o Idort e a sociedade paulista. São Paulo:Marco Zero, 1993. MANNHEIM, K. Liberdade, poder e planificação democrática. São Paulo: Mestre Jou, 1972. MOTTA, F. C. P. O que é burocracia. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHAUÍ, M. Cultura e democracia. São Paulo: Moderna, 1981. CASTELLO BRANCO, H.A. Discursos. Brasília: Imprensa Nacional, 1964. COMBLIN, J. A Ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. CNPq: Origens e perspectivas. SEPLAN/CNPq, Brasília: CED, 1984.

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A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ...

A imagem de ou)rano&v e o providencialismo moralizante: platônicos, estóicos e epicúreos no último terço do século IV

Rafael Virgílio de Carvalho Mestrando em História pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP / Assis). Professor do Serviço Social da Industria. Autor de, entre outros textos, “A crise da pólis, migrações de saberes e a transformação do ethos político no jardim”. In: ROSSI, Andréa L. D. O. C.. (Org.). Migrações e Imigrações entre Saberes, Culturas e Religiões no Mundo Antigo e Medieval. Assis: FCL Assis - UNESP - Publicações, 2009.

RESUMO Na Grécia Antiga a imagem do céu era objeto de devoção. Dessa forma, sua representação era valorizada pelos vários campos da sociedade, entre eles o filosófico. Em fins do século IV, a partir do impulso platônico, estóicos e epicuristas discutem sua representação. Aquilo que estava em pauta e que vai esclarecer o interesse de todos pela imagem celeste é a questão do providencialismo. PALAVRAS-CHAVE: imagem; representação; providencialismo.

ABSTRACT In Old Greece the image of the sky was devotion object. Like this, his representation was valued by the several fields of the society, among them the philosophical. In the end of the century IV, starting from the platonic pulse, stoics and epicuriens discuss his representation. That was on the staff and that will explain the interest of all for the celestial image it is the subject of the providencialism. KEYWORDS: image; representation; providencialism.

Recebido em: 24/05/2009

Aprovado em: 25/08/2009

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O poder da imagem e seu “efeitorepresentação” Desde os primórdios da história a imagem se mostra atraente ao homem. Semelhante ao reflexo de Narciso, hipnotiza aquele que lhe está sujeito e cuja visão pode instaurar as mais diversas paixões no espírito humano. Há milênios que a usamos por incontáveis motivos de acordo com as condições existentes. Todos sabiam que fora Praxiteles (390-330 a.C.) que construíra a “Afrodite de Cnido”, contudo, foi o valor sagrado depositado naquele mármore esculpido que permitiu ao povo de Cnido fundar seu santuário. Conta a lenda que quando Praxiteles talhou a imagem da deusa nua e a enviou posteriormente a Cós, seus cidadãos não a aceitaram. Todavia, mais tarde o povo de Cnido, que cultuava a deusa em seu aspecto erotizado, a comprou. Para esses gregos era necessário mais que uma imagem para sacralizar um espaço, era preciso uma crença. Por toda história vemos a imagem ser símbolo de poder. No entanto, pensando na lenda acima citada, será que a crença na imagem de Afrodite não era, na verdade, o “crer de certo modo”? Ou será que era a própria materialidade da crença que fundava a fé? Paul Veyne faz a negação desta para se juntar àquela ao falar que “o objeto não é senão o correlato da prática, não existe antes dela”. O autor menciona que o próprio conceito de ideologia, como tentativa de

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intelecção que leva a “idealizar” as práticas sob o pretexto de descrevê-las, ajuda a esclarecer como a imagem, enquanto objeto natural, é reificada, ganhando uma ilusória vida própria (VEYNE, 1998, p.250 e 251). Na mesma direção caminha boa parte do trabalho de outro historiador. Em substituição ao conceito de “objeto natural”, de Veyne, Roger Chartier adota e desenvolve a idéia de representação social. Para ele, seguindo sua concepção de História Cultural, o mundo social é construído por classificações, divisões e delimitações que orientam a apreensão da realidade como categorias de percepção e apreciação (CHARTIER, 1988, p.17). São as representações que permitem a organização das práticas que estruturam os diversos espaços sociais a partir das relações distintivas efetuadas por seus agentes. O “conceito de representação”, dessa forma, “conduz a pensar o mundo social ou o exercício do poder segundo um modelo relacional” (CHARTIER, 1994, p.416417), ou seja, onde os campos de significados classificatórios, que levam às divisões e delimitações da sociedade, são confrontados com espaços vizinhos de modo a possibilitar a emersão dos sentidos sociais ou esclarecer as estratégias dos agentes que manuseiam tais significados. Em seu artigo, Pouvoir et limites de la représentation, Chartier discorre sobre “o poder da imagem”. Como qualquer signo, a imagem não tem existência por ela mesma. Entre aquilo que pode ser dito, enunciado, e

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aquilo que é visto há uma necessária correspondência. Comentando Louis Marin, o historiador fala que entre o visível e o textual realiza-se um lapso que deixa a imagem estranha à lógica da produção do discurso (CHARTIER, 1994, p.408). Toda representação é construída, contudo, quando esta está sedimentada sob um signo imagético, ou icônico, suas propriedades quase sempre escondem seu modo de construção. O ícone é um signo que se faz presente, sua relação com o objeto de referência se estabelece no nível da aparência e, levando em conta apenas os aspectos sociais do signo, é a isso que se deve o efeito de representação da imagem (SANTAELLA, 2005, p.18). O chamado “efeito-representação” que a imagem exerce acontece em uma dupla direção, da “presentificação da ausência” e da “auto-representação que informa o sujeito do olhar” (CHARTIER, 1994, p.408). Na medida em que a imagem tem a capacidade de tornar presente os diversos elementos representativos de uma coisa qualquer, pelo fato dos vários enunciados de um discurso perpassarem sua simples materialidade, esse mesmo signo também executa o poder de instituir afetos e sentidos nos sujeitos que a observam. Ao mesmo tempo em que a representação em sua complexidade de significados e significantes se faz presente, ela constrange os sujeitos de modo a orientá-los nas suas percepções e apreciações do mundo social e da própria imagem. O ícone é a instrumentalização da força que em sua duplicidade se torna o meio de exercer uma potência e funda o próprio poder 1. A isso se

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liga a análise da imagem da esfera celeste grega na Era Pós-Alexandrina. O espaço de representação de ou)rano&v na cultura grega O céu (ou)rano&v), na Grécia, estava no cume da genealogia divina. Desde seus primórdios esse elemento da natureza é observado com espanto e devoção. Em Homero já se observa uma cultura repleta de precauções astronômicas. Françoise Bader (2003, p.97-150) analisando os vestígios encontrados por todo o episódio do funeral de Pátroclo do poema Ilíada, atesta que há indícios que demonstram uma forte influência da astronomia mesopotâmica já na Grécia Arcaica. A criptografia desvelada desse episódio levou a compreensão da apropriação feita por Homero da astronomia babilônica e sumeriana. Através de análises comparativas entre os conhecimentos astronômicos existentes nestas regiões e as interpretações dos enunciados de alguns trechos do poema de Homero, percebeu-se descrições de proto-agrupamentos estrelares, alguns deles zodiacais e que tradicionalmente sempre foram importantes para a cultura grega, de modo que é possível afirmar, em certa medida, uma rica e técnica astronomia grega no período arcaico. Havia muito, a astronomia fora enraizada na cultura grega. Outra evidência que temos sobre isso é aquela concernente à figura de Órion na mitologia. Também em Homero, na Ilíada 2 e Odisséia 3, vemos a menção de um Órion heróico e cuja moral lhe valeu a elevação junto aos astros 4. Jean-Michel

“[…] o poder simbólico não reside nos sistemas simbólicos em forma de uma illocutionary force mas que se define numa relação determinada — e por meio desta — entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos” (BOURDIEU, 1989, p. 14). Parte 18, versos 483-489 e 22, versos 25-32. Parte 5, versos 121-124 e 271-275; parte 11, versos 309-310 e 572-575. Vemos também o registro da constelação de Órion em Os trabalhos e os dias de Hesíodo (versos 597-599, 609-611 e 614-621).

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Renaud (2003, p. 150-168) conta qual foi o caminho dessa trajetória. Segundo o historiador, os mitos que envolvem a figura de Órion caminharam na contramão de outros mitos ligados às constelações, pois são posteriores à origem e uso de seu signo pelos gregos. Os textos ligados ao mito de Órion são dos mais tardios que se tem notícia (RENAUD, 2003, p.159) e sua antiguidade remete mesmo a um período anterior ao Arcaico, já que a morfologia de seu nome (0Wri&wn ou 0Wari&wn) remonta à pré-história da língua grega (RENAUD, 2003, p.166). Portanto, o desenvolvimento do saber mitológico sobre Órion é posterior ao conhecimento e uso de sua constelação pelos homens, já que a relação entre o homem, este signo e o meio natural é anterior às estórias do personagem mitológico. A cultura grega de modo geral, desde remota época havia incorporado e disseminado inúmeros significados à representação da esfera celeste. Não foi Homero que motivou o uso das estrelas e signos meteorológicos na Grécia, mas os próprios sujeitos que pelo uso feito desse recurso – como a periodização das estações e sua relação com o trabalho no campo – difundiram as mais variadas significações por entre toda a civilização grega, todas as quais contribuíram para a produção de representações do céu helênico e de seus diversos elementos. Foi com os ditos pré-socráticos – principalmente com a escola de Pitágoras (570-496 a.C.) – que a astronomia penetrou no espaço filosófico. Em busca do entendimento sobre a origem do cosmo através de um novo método que não era mais o mitológico, esses filósofos trouxeram para o plano do filosófico, questionamentos e 5

teorias referentes aos saberes qualificados como astronômicos. A partir daí, muitas escolas filosóficas disputariam o status de verdade em relação a esses objetos. Nos períodos socrático e, principalmente, pós-socrático foi que a astronomia ganhou novo pulso. Eminentes filósofos como Demócrito de Abdera5 (460-370 a.C), Platão (428-347 a.C.) e Eudoxo de Cnido (390-338 a.C.) foram responsáveis, em diferentes vertentes, por ampliar os setores em que os conhecimentos referentes à astronomia fincavam seus conceitos. Digno de nota é que em todas essas escolas, no que tange aos conhecimentos astronômicos, percebem-se influências mesopotâmica, caldéia e egípcia, notabilizando, inclusive, que esses três filósofos mesmo se distinguindo em seus pensamentos – respectivamente, um era materialista, o outro idealista e o seguinte hedonista – comungaram em algum momento de suas vidas a doutrina pitagórica. Foi a partir dessas principais escolas que a astronomia ganhou força na Grécia. Na segunda metade do século IV, quando Aristóteles (384-322 a.C.) estava no auge de sua maturidade intelectual, vemos aparecer duas de suas obras chamadas Sobre o Céu e Meteorológicos. Costuma-se colocar a segunda como complemento da primeira, pois Aristóteles, respectivamente, procurou construir sua cosmologia homocêntrica desenhando a estrutura do universo cujo vértice é a Terra e analisou aquilo que ele chamou de fenômenos sublunares. A meteorologia era entendida por Aristóteles em um sentido mais amplo do que aquele que a entendemos hoje e é sobre esse senso que Christophe Cusset (2003, p. 7-10) se refere quando fala em fronteiras incertas entre meteorologia, astronomia e uma

Sobre o envolvimento de Demócrito com a astronomia ver, LAËRCE, 1965.

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terceira classificação moderna para essa espécie de saber, a astrologia (2003, p.08). Em seu intento, a ciência da natureza, Aristóteles percorre da esfera celeste aos fenômenos que a acompanham, desde o movimento dos astros e aparição de cometas até o soprar dos ventos e origem do arco-íris, os quais na Antigüidade grega estavam vinculados a um mesmo plano do conhecimento. Com a compreensão mais larga daquilo que poderíamos chamar, por falta de uma melhor conceituação moderna, de “astronomia-meteorologia” 6 (sendo que a astrologia se situava no limite do campo filosófico, mais próximo ao setor popular), podemos vincular às influências sobre o campo filosófico aquela escola mais antiga dos físicos milésios. Tales (625-556 a.C.), Anaximandro (610-546 a.C.) e Anaxímenes (585-528 a.C.) se lançaram, já no século VII, à edificação dos fundamentos de uma ciência meteorológica, cuja preocupação era tanto a de explicar seus fenômenos, como a de estudar as relações entre o homem e seu meio (CUSSET, 2003, p.07-08). Ao contrário àquela investigação minuciosa realizada por Françoise Bader, citada mais acima, vemos explicitamente nas epopéias de Homero e Hesíodo episódios contendo observações de fenômenos meteorológicos, porém, sempre com fins vatídicos. Mesmo antes do Arcaico, como o caso de Órion demonstrou, os gregos mantinham precauções com prognósticos obtidos através da averiguação de signos naturais que preenchiam o céu. Por conseguinte, mais próxima à meteorologia –

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que na Antigüidade levava em consideração, inclusive, o comportamento dos animais – estava esse gênero de ciência divinatória da natureza, mais conhecida por nós como “astrologia natural”, e que tinha a incumbência de prever e anunciar as mudanças das estações, as chuvas, os ventos, o frio, o calor, entre outros fenômenos dessa qualidade. Entretanto, é difícil descrever o trajeto exato pelo qual caminhou esse setor do conhecimento antigo, mas muito provavelmente essa astrologia natural que, sob o influxo de elementos orientais caldeus e mesopotâmicos, transformou-se em outra espécie designada como “astrologia judiciária” 7 . Esta, em essência mais individualista, submete os homens ao poder dos astros. Diferentemente da astrologia natural, a astrologia judiciária acabou formando sistemas de pensamentos elaborados a partir de influências filosóficas e mitológicas e que, por afinidade ao espírito religioso popular, sempre muito supersticioso, acabou se disseminando por entre a massa da população grega (BAILLY, 1801, p. 268). Portanto, foi assim que, no período helenístico, principalmente a partir do século III, o segundo tipo de astrologia ganhou vulto. Na ascendência daquilo a que chamamos astrologia, encontramos os poemas de Homero e Hesíodo que possibilitaram a formação de uma austera paidéia grega que, sob a afluência dos saberes caldeus e mesopotâmicos sobre a influência dos astros e dos fenômenos celestes na vida dos homens, preencheu o espírito da população com preocupações referentes às vontades dos deuses.

O signo que normalmente designava tal conceito e que mais aparecia por entre o meio filosófico era mete&wra, o qual fazia referência aos “fenômenos ou corpos celeste”, e que remetia ao adjetivo mete&oroj (tudo aquilo que estaria no ar). Ver: CASEVITZ, 2003. p. 27-34. Os termos “astrologia natural” e “astrologia judiciária” usados por Bailly em 1801, podem ser substituídos por aqueles usados por Hervé Drévillon – respectivamente, “astrologia natural” e “astrologia sobrenatural” (Lire et écrire l’avenir: l’astrologie dans la France du Grand Siècle, 1610-1715. Seyssel : Champ Vallon, 1996, 282p.).

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Entretanto, por outro lado, observamos a partir do nascimento da filosofia, com os milésios, uma crescente inquietação sobre as observações meteorológicas que exibia a finalidade de elaborar técnicas favoráveis aos trabalhos dos homens no campo e no mar. Foi assim que houve um desenvolvimento das técnicas de navegação e dos calendários sazonais, este chamado por Germaine Aujac (2003,p. 13-26) por seu conceito francês, parapegme 8. Possivelmente, foi a adjunção de elementos apropriados junto aos milésios, somados àqueles dos pitagóricos, que as escolas filosóficas do período socrático e póssocrático estruturaram seus saberes a esse respeito. A difusão dos conhecimentos astronômicos por todo o território grego confeccionou as mais diversas representações não só do céu, mas de inúmeros elementos que compunham sua imagem. Tão vasta gama de representações, construídas sob o influxo de normatizações culturais divididas e organizadas em espaços dentro da sociedade, acabou por se precipitar nos mais diversos usos feitos pelos agentes e, assim, estruturou alguns setores do mundo social. A noção de “representação coletiva”, representação confeccionada por indivíduos que tendem a uma certa e mesma identidade, permite articular, como diz Roger Chartier (1989, p. 1513-1514), três modalidades de relação com o mundo social: […] de início, o trabalho de classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, 8

a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais ‘representantes’ (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe

Quando se pensa em qualquer espécie de representação (sua “configuração intelectual”) em uma cultura qualquer, como o da esfera celeste na Grécia Antiga, na qual esses significados foram trabalhados em diferentes e inúmeros campos, determinar o período e a localidade onde foram trabalhados e, principalmente, por quem foram trabalhados se mostra tarefa imprescindível para que seja possível obter uma análise social da imagem visando um sentido que a esclareça. Contudo, para que se alcance tal sentido é necessário adentrar às “práticas” que permitem reconhecer aspectos de dada identidade social afirmada, além de reconstruir as “formas” pelas quais os indivíduos firmam sua existência perante o restante do mundo. Assim, para uma análise da representação da esfera celeste grega, entre fins do século IV e começo do III, é indispensável tratar das relações significativas entre os discursos daqueles campos que a confeccionaram e desenredar as formas de inculcação das convenções representativas pelas quais os sujeitos praticavam sua maneira de enxergar e apreciar a realidade. Por conseguinte, Chartier prossegue em seu argumento: Uma dupla via abre-se assim: uma que pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas pelos que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de aceitação ou de resistência, que

Aujac cita parapegmes por entre meados do V e IV séculos a.C., destes, alguns autores são Demócrito de Abdera, Euctémon o atenience (viveu por volta da primeira metade do século V) e Eudoxo de Cnido.

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A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ... cada comunidade produz de si mesma; outra que considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito conferido à representação que cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua existência a partir de uma demonstração de unidade (1989, p. 1514).

São os discursos proferidos e colocados perante outros que encarnam as relações de força citadas mais acima. Entretanto, quando recorremos à pesquisa historiográfica, principalmente quanto mais recuamos no tempo, tais discursos são reduzidos em suas séries e ficam restritas a documentos que demonstram, quando muito, apenas vestígios de suas relações específicas. Diante disso, o historiador precisa dispor de tempo e de largo conhecimento intertextual sobre as condições que possibilitam a realização das relações de poder para que consiga atingir esclarecimentos satisfatórios. Para recompor as relações específicas e ampliar os horizontes de entendimento do historiador é preciso situar os documentos no interior de seu campo de produção e posicioná-los perante outros tantos que rivalizam com ele o poder de atribuir significado a algum objeto. É nesse sentido que a análise da esfera celeste grega ganha maiores delimitações em seu recorte. A moral socrática e Platão: um interlúdio O período socrático, caracterizado pela influência do filósofo Sócrates (470-399 a.C.) sobre a filosofia grega, é considerado um marco para o pensamento grego de forma geral. Este ateniense viveu em uma época de grande prestígio político de sua cidade, prestígio que trouxe consigo a corruptibilidade à conduta de alguns, dos quais muitos tinham enorme influência no governo da polis. Temos

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a imagem de um Sócrates engajado na contenda contra os sofistas, contudo, tal crítica, na verdade, possuía um arcabouço muito mais complexo e denunciava o crescente individualismo de boa parte daqueles homens da apoteótica e muitas vezes conturbada Atenas. Grosso modo, o pensamento de Sócrates trouxe um moralismo que imbuiu à juventude de então e que não mais deixaria de inquietar os espíritos racionais da Grécia. Um dos mais fiéis discípulos do “sábio que nada sabia”, Platão, aderiu quase que completamente a moral de seu mestre. Incorporando a teleologia socrática, usou-a em seu engajamento político e na construção de sua cidade ideal. Quando averiguamos a composição do pensamento platônico, interpondo-o perante suas intenções políticas como demonstra as cartas a Dion de Siracusa e aos parentes e amigos deste, em meados do século IV, conseguimos compreender como se realizou tal incorporação 9. Platão, pela longa linhagem de políticos da qual descendia, não poderia ter tido outro objetivo em sua vida que o de transformar a vida da polis de seu tempo. Sabemos algumas tentativas que sua escola, a Academia, experienciou através de seus discípulos e por ele mesmo (como o caso da Sicília). Contudo, tal missão tinha uma base moral que fundamentava o comportamento platônico e de todos aqueles que residissem em sua utópica cidade. A moral socrática, cuja ética era orientada pelos dai&monev de cada indivíduo, era uma introspecção do sujeito sobre sua própria potencialidade. A máxima délfica inúmeras vezes levantada por Sócrates – “conhecer-te a si mesmo” – era a indicação oracular que o

Nestas cartas Platão expõe muitas de suas intenções políticas.

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filósofo vivia para cumprir e ajudar os outros a realizarem. Auxiliado por sua maiêutica, não só ajudava a juventude a parir idéias, mas buscava a purificação de toda uma sociedade a partir da transcendência em direção à Idéia de Bem. No entanto, mesmo sendo o fundamento da moral socrática, o filósofo não conseguiu descrever o que tal idéia seria. Porém, vemos essa noção traduzir um complexo de conceitos que alicerçavam a ética pregada por Sócrates, a qual ele morreu defendendo. Viver para cumprir a vontade divina por meio da orientação daimoníaca e da dialética (maiêutica) nos apresentada por Platão, essa era a máxima comportamental segundo Sócrates. Os dai&monev eram seres da idade de ouro grega, os quais pela “sabedoria e inteligência” (dah& m onev) que possuíam tinham a incumbência de serem os intermediários entre a divindade e a humanidade (PLATON, Cratyle, 397e-398d). Através da dah&monev que exprimiam, esses seres seriam responsáveis pela boa conduta dos indivíduos. Toda pessoa teria a capacidade inata de se relacionar com tal gênio cuja característica sempre benéfica exprimiria a própria sabedoria (sofi& a ). Portanto, a boa conduta era a realização dessa voz interior daimoníaca. No entanto, conforme a dualidade platônica “espírito-matéria” ou ousiavpa&qov, a realização da vontade divina, cuja orientação primeira está ancorada na essência dos sujeitos e aponta sempre em direção ao Bem, enfrenta um problema que é a ancoragem do homem no mundo sensível, mundo corruptível e nebuloso à razão. A idéia de Bem está no ápice do mundo inteligível, no plano das puras idéias. Dessa forma, a importância da dialética na moral 10

socrática, na medida em que o impulso em direção ao Bem encontra entraves no mundo material, estava em seu uso como meio de purificação, ou de alcançar a virtude, dos sujeitos filósofos ante a existência para se chegar às verdades universais inteligíveis, as quais seriam os critérios daquilo que constituiria o “deves fazer” socrático. Nisso consistiria o exercício da justiça e é a isso que se poderia chamar de ética do comando divino 10. Juntamente com essa ética, Sócrates, no último ato de sua Apologia e de maneira não muito convicta, demonstra uma intuição que sossegava sua alma. Em direção aos seus condenadores fala sobre o destino que o aguarda com a efetivação de sua pena de morte, destino bem-aventurado junto aos virtuosos e injustiçados da Terra. Daqueles cujo merecimento estava em seguir a voz da alma que realizava a vontade divina. Mesma vontade que o retribuiria pelos anos que passou a questionar os homens sobre seus maus comportamentos e opiniões equivocadas. Como vemos no trecho que se segue: Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, [...] Vós também juízes deveis esperar da morte e considerar particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu não é conseqüência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim morrer agora e ficar livre de fadigas. [...] Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 41-42).

Para uma melhor compreensão ver, GOMES-LOBO, 1996, p. 57-70.

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São esses elementos – a ética da vontade e do julgamento divino – que Platão incorporou a seu pensamento até o ponto onde quase não se podia mais conceber em qual lugar terminava a moral socrática e começava a platônica. Entretanto, o trabalho de interpretação platônica não aconteceu de maneira simplista. A chave para esse entendimento está no livro X de As Leis 11 e em seu “apêndice”, o Epinomis. Aí se encontra a forma pela qual Platão pretendia usar a imagem do céu de modo a permitir que seus alunos realizassem suas práticas contemplativas. Ou)rano&v e a moral platônica: uma relação de apropriação A harmonia das esferas apresentada por Pitágoras, que conta como o cosmo é regido por relações matemáticas que dissimulam a ordem que domina o universo, encantou Platão. Foi a partir do olhar platônico em direção ao alto, e mais além, que um novo espaço para a observação astronômica proporcionou novas perspectivas para a construção de novas representações celestiais. Em sua grande obra, As Leis Platão organiza a polis a partir de um quadro territorial geométrico, como fizera Clístenes. Todavia, de modo contrário ao que fez este, orienta um novo espaço hierarquizado onde a cidade apareceria dividida e regrada por um princípio divino (GONÇALVES, 2005, p. 62). Destarte, o ponto culminante nesse sentido é explicitado por Andréia Santana da Costa Gonçalves, mestre em filosofia pela PUC do Rio de Janeiro, que menciona que o espaço político construído por Platão era centralizado na acrópole e não mais a partir 11

da ágora. Isso quer dizer que a polis não se organizaria mais tendo em vista o humano, mas sim o divino. A cidade platônica, dessa forma, edificando-se ao redor de um espaço sagrado estaria religando o aspecto humano à divindade, organizando seus sujeitos e instituições “segundo um esquema circular que reflete a ordem celeste” (GONÇALVES, 2005, p.63). A preocupação em refletir a ordem celeste que a tudo ordena no universo fez Platão usar a imagem do céu como instrumento de fundamental importância para o constrangimento moral dos indivíduos, moldando assim os cidadãos à sua teleologia. O décimo livro de As Leis contudo, é o ponto crucial da apropriação da esfera celeste pela escola platônica. Lá, Platão começa a meditar sobre a evidência da existência ou não dos deuses. Parte, então, da constatação da existência da alma. Por ser dotada de potência, a alma figuraria como elemento capaz de proporcionar o movimento primeiro de um objeto, seja este o próprio corpo ou qualquer outra matéria segunda. Todo corpo que se move, se não movido por um corpo primeiro, é dotado de alma. Portanto, a “alma impulsiona todas as coisas no céu, na Terra e no mar por meio de seus próprios movimentos” (PLATÃO, p. 415). Entrementes, as almas podem ter duas naturezas: a benevolente e a oposta (PLATÃO, p. 414), dentre as primeiras, existem aquelas que se elevam acima das outras quanto mais próximas se encontram do Bem, que se confunde com a pura razão. Como se segue: [...] todo o curso e movimento do céu e tudo que ele contém, detêm um movimento semelhante ao movimento, à revolução e aos raciocínios do intelecto e se procedermos de

PLATÃO, 1999, 543 p.

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RAFAEL VIRGÍLIO DE CARVALHO maneira idêntica, claramente teremos que afirmar que a melhor alma governa a totalidade do universo e o conduz em seu curso, que é o do tipo descrito [e perfeito como ela] (PLATÃO, As Leis, p. 415).

Não obstante, Platão questionando qual a natureza do movimento da razão e respondendo que é a circular, conclui afirmando que tendo em vista a circunferência do céu, a revolução circular dos astros só poderia ser impulsionada pela força da melhor alma (PLATÃO, p. 417) e a respeito dos corpos celestes diz que suas almas são divinas, pois, organizam todo o céu (PLATÃO, As Leis, p. 418). Mais adiante, os interlocutores platônicos, investigando, mencionam que tudo está repleto de deuses e certificando-se que os deuses se interessam sim pelos assuntos humanos – já que “todas as criaturas mortais são propriedades dos deuses, aos quais pertence também o céu inteiro” (PLATÃO, As Leis, p. 423) – assentam que “os deuses tudo sabem, tudo ouvem e tudo vêem e que nada em tudo que é apreendido pelos sentidos e a ciência lhes escapa” (PLATÃO, As Leis, p. 421). Por essa forma, os discursos platônicos constroem acima das cabeças dos gregos olhos atentos às atitudes humanas. A regularidade matemática, mais especificamente geométrica, da esfera celeste é remontada a partir de saberes vindos das escolas pitagórica e socrática. A divindade, cuja vontade a tudo ordena e lhe dá a justa medida, distribui a sorte a cada homem de acordo com sua afinidade à virtude ou à iniqüidade. Colocando a ênfase cuja modéstia fez faltar a Sócrates, Platão consolida: [...] todas as coisas estão ordenadas sistematicamente por aquele que cuida de tudo com o olhar na preservação e excelência

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do todo no qual cada parte, na medida de sua capacidade, sofre e age o que lhe é apropriado. [...] Todos os seres animados se transformam já que possuem dentro de si mesmos a causa da transformação, e ao se transformarem se movem de acordo com a lei e a ordem predestinada; [...] e quando a transformação for acentuada e inclinada para a iniquidade, os seres se moverão às profundezas e às chamadas regiões inferiores [...] E sempre que a alma obtiver uma parcela grande de virtude ou vício, por efeito de sua vontade e a influência, e de familiaridade crescente, se isso ocorrer em uma fusão com a virtude divina, ela se tornará notavelmente virtuosa e se moverá a uma região eminente, sendo transportada por uma senda sagrada a uma outra região ainda melhor (PLATÃO, As Leis, p. 424 e 426).

Assim, nota-se como a astronomia de tendências pitagóricas foi incorporada ao espaço acadêmico a partir de ajustes pertinentes à teleologia política de Platão por meio de um providencialismo moralizante que remete a Sócrates. Conquanto, na segunda metade do século IV, quando Platão concluía seus trabalhos filosóficos A República e As Leis, possivelmente ele, escreveria uma espécie de apêndice desta última obra, Epinomis. Lá o filósofo desenvolveria ainda mais suas idéias que utilizavam a imagem do céu por meio da edificação da representação de ou)rano&v como objeto dotado de vontade divina que a tudo ordena de modo onisciente e onipresente, além das práticas que a interiorizavam baseadas na contemplação matemática. A conquista filosófica de ou) r ano& v : a imagem do céu e suas representações A filosofia nunca deixou de lado a abrangência do campo dos mete&orov (objetos suspensos no ar). Entretanto, as escolas

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filosóficas apenas usufruíam dos seus conceitos ou representações porque lhes eram convenientes às suas propostas, deixando de lado muitos outros saberes que orbitavam o campo. Foi este o caso de Platão, que tecendo observações apenas aos astros e suas revoluções, sempre enfatizando a matemática como método, pretendia fazer da imagem do céu uma apresentação das figuras dos deuses e do providencialismo divino. Isso presentificava a representação do ou)rano&v platônico, do mesmo jeito que o exercício de contemplação descrito pelo filósofo no livro X de As Leis: [...] o modo mais seguro de contemplar o objeto que concerne a nossa questão (a divindade) é olhar uma imagem dele (PLATÃO, p. 416).

Ao final do livro VI de A República, o filósofo, ainda pela voz de Sócrates, explica como talvez fosse possível tentar compreender a idéia de Bem a partir da observação da imagem do Sol. Fala que o astro é para os elementos sensíveis o que o Bem é para os inteligíveis. Descrevendo um trajeto que vai desde o elemento sensível imediato (domínio das imagens), passando pela formação do conhecimento objetivo e pela abstração do sensível (formação dos objetos matemáticos), até o domínio do inteligível, ou seja, das puras idéias (BENOIT, 1996, p. 76-79), Platão procura conduzir seu expectador à transcendência onde está a divindade, mostrando sua morada e construindo sua crença filosófica que conduzia a uma relação entre o homem e a divindade. Tal relação, por sua vez, era intermediada pela imagem do céu que, devido às suas características sígnicas, exercia certos poderes sobre aqueles que comungavam na Academia, constrangendo seus sujeitos e os adequando à moral estabelecida.

O signo celeste tornava presente a representação de ou)rano&v ao mesmo tempo que, pela ação da força desta “presença divina e providencial”, conformava à maneira de ser platônica o etos de alguns gregos, cujos olhares quando direcionados ao alto os instruíam com determinados afetos e sentidos que condicionavam seus comportamentos a uma vida reta e dedicada à matemática. Entrementes, a imagem do céu na Grécia Antiga não era apenas um instrumento de acúmulo de forças, mas também foco no qual diferentes forças disputavam o poder de inculcação das representações produzidas dentro de seus espaços discursivos. Disputas que, durante o final do século IV, após a morte de Platão (ano 347 a.C.), aguçaram as rixas entre duas escolas de Atenas, o Jardim e o Pórtico. Mesmo durante o período de tormenta política pelo qual a Grécia passou após a morte de Alexandre Magno, a conturbada Atenas não deixou de ser o pólo cultural de todo o mundo helênico. Epicuro de Samos (340-270 a.C.), mestre sereno do Jardim de Atenas, em meio ao caos político, dedicou-se de maneira apolítica a estimular pessoas de qualquer status social a alcançar o estado de a)taraci&a (imperturbabilidade da alma). Sua filosofia materialista muito devia a Demócrito e Leucipo. O filósofo de Samos passara pelas aulas de platônicos e aristotélicos antes de aderir firmemente à doutrina dos átomos (a1tomoi), enquanto Zenão de Cítio (340-264 a.C.), pensador também apolítico cujas aulas eram ministradas nos pórticos da cidade de Atenas, após dez anos ouvindo as aulas do platônico Xenócrates passou a vivenciar a realidade a partir de alguns preceitos acadêmicos. No entanto, contrariando Platão, o afastamento da política era marca daquelas escolas helenísticas que conseguiram sobreviver em meio ao caos perturbador.

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Igualmente em época de efervescência religiosa, ambos os filósofos aderiram a posturas teológicas contrárias uma a outra, as quais possuíam práticas balizadoras que acabaram fazendo os traços mais distintos de suas doutrinas. Esses traços, todavia, necessariamente atravessariam os elementos que compunham a noção de providencialismo moralizante, como as noções de vontade divina que a tudo governa e a todos compensa. Sendo alvo de crítica pelos epicúreos, foi isso principalmente que Zenão trouxe da Academia, o qual enxergava que a origem da justiça estava em Zeus e, da mesma forma, tudo viria a ser conforme sua vontade (FREDE, 2005, p. 213-214). Michel Frede comenta sobre as relações entre o Demiurgo platônico (Dhmiourgov) e o Deus (Qeo&v) estóico dizendo que a diferença mais marcante entre essas idéias sobre a divindade era que o primeiro figurava-se como um intelecto transcendente, enquanto o segundo como um lo&gov (razão) presente na matéria (2005, p. 221-222). Assim como o epicurismo, o estoicismo de Zenão acreditava que a natureza de todas as coisas era física. Entretanto, enquanto no Jardim pregava-se que a matéria primordial era composta por partículas indivisíveis, compactas e de variadas formas (Epicure, Lettre à Hérodote, 42), no Pórtico dizia-se que tudo é um corpo de fogo primordial identificado com os intelectos individuais ou aquele divino inerente à matéria inerte (FREGE, 2005, p. 227). Estes dois princípios materiais o ativo (poioun) e o passivo (pa& s xon) se diferenciavam imensamente daqueles de Epicuro. A alma para os dois filósofos era um yuxh_ swma& (sopro vital corpóreo), contudo o último a via como um leptomere&v (algo divisível formado por finas partículas). Era através do questionamento dos fundamentos do ser, como aquele no qual 148

aparece a discussão sobre a natureza do corpo e da alma, que a problemática do providencialismo era colocado em pauta. Semelhante a Platão que, em As Leis, começa analisar a idéia de alma antes de construir todo arcabouço conceitual em que a imagem de ou) r ano& v repousava, as respectivas representações se articulavam, contrariamente uma da outra, com o signo icônico do céu e acumulavam forças incorporadas quanto mais conseguissem convencer adeptos. Desse modo, ofereciam modelos de conduta virtuosa que qualificavam as pessoas com o adjetivo de “sábias”, transformando seus status ante seus pares e fortalecendo a notoriedade da devida escola. A presença do céu, dessa forma, era o estímulo para tal fato. O desenvolvimento da cosmologia estóica foi toda voltada para sua teleologia, isto é, à caracterização de um universo propulsado por uma razão criadora e ordenadora que possibilita, mediante a prática do sábio comportamento, o desenvolvimento das almas através da transmigração compensatória às regiões cuja existência parece ser cada vez mais perfeita. No entanto, tal teleologia era afirmada pela realização de diversas práticas, entre elas estava a composição de poemas que tomavam não só a mitologia, mas principalmente cingiam os mete&oroj como temática. Le Phénomènes, do poeta e astrônomo Aratos de Soles (315-245 a.C.) e o Hymne à Zeus, do segundo escolarca do Pórtico, Cleantes de Assos (330-230 a.C.) são documentos que ilustram bem a questão. Examinando esses documentos ante aqueles legados pelo Jardim, percebe-se as relações distintivas que uns mantém com os outros. Nas cartas enviadas a seus amigos, literalmente em uma ação de difusão doutrinal que tinha por fim refutar outras concepções de realidade, Epicuro critica os

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pensadores de tendências estóicas que levavam em consideração os saberes “astrometeorológicos”. Durante quase toda a leitura dos documentos, percebemos a preocupação do filósofo em demonstrar a real natureza física dos astros e dos diversos fenômenos celestes, além de trabalhar conceitos que giram em torno das questões providencialistas. Não se pode deixar de apontar que a epístola a Pítocles sobre os mete&orov nos leva a imaginar que a intenção de Epicuro era de responder ao poema de Aratos. Mesmo porque, muito provavelmente, seus ouvintes Pítocles, Heródoto e Meneceu residiam em alguma das cidades gregas do litoral da Ásia Menor onde o Jardim possuía ramificações – como em Cólofon, Mitilene e Lampsaco –, regiões onde a “astronomia providencialista” havia já algum tempo alcançado enorme influência. Outra carta, agora de Zenão destinada a Antígono, dá o testemunho da preocupação deste filósofo em relação à integridade dos costumes helênicos (LAËRCE, VII, 08 e 09), além também de Frege mencionar que a teologia estóica defendia e adotava, de certa maneira, a religião popular (2005, p. 232). De modo contíguo, Richard Goulet (2005, p. 93-120) escreve que havia certa vontade de se apropriar da autoridade de Homero e Hesíodo – mencionando que mesmo Zenão e Cleantes escreveram algumas obras sobre poesia –, pois este plano era peça incontornável da paideia grega. Continuando, comenta que havia assim um apelo à etiologia dos nomes dos deuses ou das figuras mitológicas por parte dos filósofos estóicos no objetivo de resgatar sub-repticiamente um ensinamento de natureza física (2005, p. 104, 106 e 109). No poema de Cleantes vemos vários elementos que podemos listar em consideração à discussão aqui elaborada:

[...] Deus todo poderoso, mestre do céu, [...] ordenador universal, [...] Ao redor de nós, sob teu olhar o firmamento e todos os mundos seguem obedecendo a linha traçada por sua batida. [...] é ti [...] Que faz tudo viver, e tudo anima, e tudo governa, [...] Alma do mundo onipresente, [...] Nada sobre a terra ou nos céus, sem teu querer nada pode ser, [...] Deus soberano, é tua justiça, – é para todos ordem eterna (Hymne à Zeus).

A concordância com as afirmações acima começa pelo próprio título, Hino a Zeus. Os hinos, na Grécia Antiga, eram textos feitos para serem recitados durante cerimoniais em homenagem a determinado deus, sempre voltado para a lógica do mito e estruturado poeticamente. Analisando a obra de Cleantes, percebem-se vários elementos que se direcionam ao vértice do providencialismo moralizante – noção que pode ser sintetizada apenas com o desfecho do poema. Simultaneamente, é mais que essencial enxergar que o sentido geral do poema revela a alma onipresente do universo sob o signo do céu, de cujo olhar nada escapa e cuja vontade é o destino dos mundos. Ou)rano&v, dessa forma, era o grande olho de Deus e o objeto a cujas devoções eram dirigidas. Nesse mesmo sentido, vemos o poema de Aratos se apropriar de diversos mitos no decorrer de sua exposição sobre os fenômenos e prognósticos da esfera celeste. Mais próximo da chamada “astrologia natural”, esta obra vai de encontro com o que fala Goulet sobre o resgate dos ensinamentos a respeito da natureza física. Cenas que contam situações de catasterismo, exposições sobre o elevar e esconder dos astros e sobre os prognósticos celestes, dão sentido ao entendimento das idéias estóicas diluídas no texto. Concomitantemente, são traduzidas nas noções relativas, respectivamente, à compensação por uma conduta considerada virtuosa (como acontece no mito de Órion), à

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idéia de ordenação do cosmo e à preocupação com o destino de maneira geral, além de carregar a todo momento a crença na divindade dos astros e, diferente de Zenão e Cleantes, descrevê-los com aspectos passionais. Epicuro, por sua vez, atrela o conhecimento sobre os metew&rwn à busca da a)taraci&a e à contestação da adesão aos mitos (EPICURE, Lettre à Pythocles, 84-87). Em sua carta a Pítocles vemos o desenvolvimento de um apanhado que busca, através da ciência da natureza epicuriana, desvendar as reais causas físicas de diversos fenômenos celestes, os quais muito curiosamente são quase que concomitantes àqueles descritos no Phénomènes de Aratos. Todavia o mais inacreditável é que o filósofo, ao final da carta, critica explicitamente a idéia de que todos os fenômenos acontecem graças a uma vontade divina e ordenadora: Dar a esses fatos uma só causa, [...] é insensato, e é prática inadequada dos zeladores da vã astronomia (a)strologian), que dão como vagos as causas de certos fenômenos, do momento que jamais liberam a natureza divina de tais funções (EPICURE, Lettre à Pytocles, 113).

Aumentando mais ainda as suspeitas e fortalecendo as relações de distinção firmadas entre os discursos, ao final desse documento Epicuro fala que os signos anunciadores dados por certos animais – fazendo referência aos prognósticos celestes – “são devido a um encontro de circunstâncias” (EPICURE, Lettre à Pytocles, 115). Epicuro parece direcionar todo o estudo sobre os átomos para evitar as más interpretações a respeito das causas dos fenômenos celestes. Na carta a Heródoto, após a exposição de toda sua física, critica que não se deve acreditar que a ordem do movimento dos astros possui uma natureza

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“bem-aventurada” e “imortal” e diz que é preciso preservar a “majestade do divino” de tais noções, pois essa crença é a origem dos maiores tormentos da alma e esclarece que tudo viria a ser segundo a “necessidade” e aquela revolução entendida desde a origem como aglomerados de átomos que deram nascimento aos mundos (76-77). Assim, aconselha Epicuro: [...] a perturbação maior para as almas dos homens tem sua origem nas opiniões de que esses corpos (celestes) são bem-aventurados e imperecíveis e que têm ao mesmo tempo vontades, [...] e no fato de entender ou supor qualquer pena terrível e eterna, em conformidade com os mitos, ou ainda temendo a insensibilidade mesma que há no estar-morto (Lettre à Herodote, 81).

É na carta a Meneceu, onde há a prescrição da moral epicúriana, que compreendemos o sentido apreendido pelo papel do signo celeste. O fim de todo ser humano é a felicidade (eudaimoni&av) e seu maior bem é a reta escolha dos prazeres, a realização da a)taraci&a. Para tanto, a tradição epicurista posterior fala do tetrafarmakon (os quatro remédios), e são eles os itens que primordialmente se chocam com aqueles do estoicismo em relação às noções que aderem à visão do céu: a não temeridade em relação aos deuses, já que não se interessam pelos homens; a não temeridade em relação à morte, que é a privação dos sentidos; que o limite dos bens (prazeres) é fácil de se atingir; e que o mal é breve e suportável (EPICURE, Lettre à Ménécée, 133). Logo em seguida questiona também a idéia de destino sustentada pelos “físicos”, os quais Jean Brun (1964, p. 134) assegura serem os estóicos: [...] se ridiculariza aquilo que certos apresentam como o mestre de tudo, o destino, dizendo que certas coisas são

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A IMAGEM DE ou)rano&v E O PROVIDENCIALISMO MORALIZANTE: PLATÔNICOS, ESTÓICOS E EPICÚREOS ... produzidas pela necessidade, outras pelo azar, outras, enfim, por nós mesmos, pois se enxerga que a necessidade é irresponsável, o azar instável, mas a nossa vontade não possui mestre, e que a ela se atam naturalmente a censura e o seu contrário (EPICURE, Lettre à Ménécée, 133-134).

O trecho vem de encontro a teleologia do pensamento epicurista, a conquista da eudaimoni&a. Esse termo faz referência à idéia de autodomínio, que dentro do campo filosófico desde Sócrates se identifica com o conceito de “liberdade” no sentido de autarquia, ou seja, auto-suficiência do homem a partir da sábia conduta (SALES, 2004, p. 22). Quando Epicuro afirma que “a necessidade é irresponsável, o azar instável, mas a nossa vontade não possui mestre”, está querendo dizer que as causas das ações humanas têm dois princípios, dois exteriores e um interior ao agente, no primeiro caso vemos a necessidade que é uma força imante à matéria e o azar que está ligado às circunstâncias que envolvem as pessoas, o tempo e o espaço, enquanto o princípio interior é a própria deliberação da vontade humana. Para Epicuro os deuses são apenas modelos de vida bem-aventurada a serem seguidas, cuja sabedoria deve ser imitada em sua paz inabalável. “Sobre essas coisas, [...] medite-as dia e noite”, diz Epicuro a Meneceu, “e tu viverás como um deus por entre os homens” (135). A autarquia epicúrea, dessa forma, combateria aquela capacidade de escolha que vinha do alto. Conclusão A imagem do céu, portanto, figurava-se por entre a Academia, Pórtico e Jardim como objeto de disputa para a realização do fim de seus respectivos pensamentos. Cada um “a seu modo”, acreditava na presença de um

poder qualificado como divino, que exercendo sua força atuava dentro de seus espaços, fosse como providência moralizante ou como modelo de bem-aventurança. Mesmo com suas proximidades, platônicos e estóicos construíram suas representações da esfera celeste a partir das distinções entre os elementos de suas respectivas representações. Porém, o sentido das articulações de seus significados mostraram que ambas as escolas usaram seus saberes sobre ou)rano&v no intuito de orientar seus adeptos a se adequarem a certo padrão moral tido como sábio. Entretanto, no sentido inverso, Epicuro combateu tais visões por entender que tais representações do divino impediam a obtenção da a)taraci&a, criando assim condições para a efetivação das condutas impassíveis de seu Jardim. Organizando espaços sociais, as representações se articulam às imagens e fazem destas eixos pelos quais orbitam diversos discursos que se relacionam distintamente. Ao mesmo tempo em que a percepção do céu legitima e identifica um grupo, sua imagem associada à idéia de providência é objeto de conflito, de disputa pelo poder de significação, pois envolve interesses inerentes à adesão dos sujeitos a uma determinada moral. Como objeto historiográfico, a imagem abre à consciência a reflexão sobre as possibilidades de sua análise. Pois, sua realidade não se limita apenas aos elementos de seu signo aparente, mas excede às articulações de enunciados que possibilitam sua própria percepção e favorece a compreensão dos motivos do uso de sua simples presença. Imagem e representação são inerentes às realidades da sociedade e por este motivo “o crer em uma mesma deusa pode ter seus vários modos”.

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ENTRE O CONTEXTO E A LINGUAGEM: O DISCURSO FOTOGRÁFICO E A PESQUISA HISTÓRICA

Entre o contexto e a linguagem: o discurso fotográfico e a pesquisa histórica

Richard Gonçalves André Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP / Assis). Autor de, entre outros artigos, “Representações e Práticas Mortuárias na Cultura Popular Brasileira: Influências e Apropriações”. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 4, 2009.

RESUMO Este artigo tem por objetivo demonstrar como a fotografia pode ser objeto de análise histórica. Pretende-se sugerir que o documento imagético é uma representação, ou seja, uma construção de concepções a partir de espaços, tempos e lugares sociais perpassados de especificidade. Desta forma, é necessário compreender as fontes iconográficas tendo em vista os autores, sua posição no jogo social, a apropriação que realizam de convenções, os meios que utilizam para reproduzir os artefatos culturais e os públicos aos quais estes se destinam, que atribuem novos sentidos às obras. Além disso, é preciso compreender as articulações dos signos icônicos no interior da linguagem fotográfica. PALAVRAS-CHAVE: fotografia; história; representação.

ABSTRACT This paper intends to demonstrate how the photography may be an object of historical analysis. It intends to suggest that the imagetical document is a representation, i.e., a construction of conceptions since spaces, times and social places replete of particularity. Thus, it’s necessary understand the iconographic sources focusing their authors, their position in the social game, the appropriation that perform of conventions, the ways that utilize to reproduce the cultural artifacts and the publics for whom these artifacts are destined, that attribute new means to the works. Besides, it’s necessary to understand the articulations of iconic signs within the photographical language. KEYWORDS: photography; history; representation.

Recebido em: 06/06/2009

Aprovado em: 05/09/2009

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RICHARD GONÇALVES ANDRÉ

Entre o contexto e a linguagem: o discurso fotográfico e a pesquisa histórica

Da próxima vez que você segurar uma câmera, pense nela não como um robô, automático e inflexível, mas como um instrumento maleável que você precisa compreender para utilizar adequadamente. Uma câmera pode ser um milagre eletrônico e óptico, mas não cria nada sozinha. Tudo que ela pode representar em termos de beleza e encantamento está, a princípio, em sua mente e em seu espírito. Ansel Adams, A Câmera.

1. As imagens estão por toda parte no mundo contemporâneo. Basta percorrer as ruas de grandes cidades para perceber a profusão imagética à qual os indivíduos estão submetidos: outdoors, panfletos, painéis digitais, isso para não falar dos sinais e placas de trânsito. Entrando-se numa livraria ou banca de revistas, podem-se observar artefatos tais como cartões-postais, fotografias estampadas em revistas e figuras em histórias em quadrinhos. As galerias dos museus convidam os olhos a apreciar pinturas consagradas e objetos da cultura material, como cerâmicas indígenas e antigas cadeiras de dentista. As praças públicas são construídas em torno de monumentos dedicados aos heróis consagrados pela memória, como Tiradentes, pracinhas e autoridades públicas. Os cemitérios, por sua vez, são, no dizer do historiador francês Michel Vovelle (1997, p. 328), “florestas de signos”, ostentando cruzes, capelas, anjinhos, virgens e cristos. Assim, vive-se na civilização das imagens, como sugere a ensaísta norte-americana Susan Sontag, que recorre à alegoria da caverna para sugerir como os homens e 154

mulheres contemporâneos são fascinados pelas imagens tomadas pela realidade (SONTAG, 1981, p. 3). Diante da importância da imagem no mundo contemporâneo e das mudanças epistemológicas que ocorreram no campo da história ao longo do século XX, a linguagem iconográfica foi incorporada ao repertório de fontes disponíveis ao historiador. Não se trata, entretanto, de um processo acabado, uma vez que ainda persiste certo simplismo ao abordar historicamente essa tipologia documental, questão para a qual retornarei adiante. Tendo em vista tais questões, o presente artigo tem por objetivo sugerir como as fotografias podem ser compreendidas no âmbito da pesquisa histórica, demonstrando como as mesmas constituem representações construídas a partir de indivíduos situados em lugares, tempos e espaços sociais específicos, de modo que sua produção torna-se matizada pelos caracteres disponíveis em determinados contextos (CHARTIER, 1990, p.7). 2. De acordo com os historiadores da chamada Escola Metódica, campo historiográfico cujos conceitos e procedimentos constituíam a “lógica histórica” durante o século XIX e as primeiras décadas do XX, os documentos passíveis de análise deveriam ser aqueles oficiais e escritos, merecendo a crítica interna e externa das fontes (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 45 e 46). Intelectuais como Lucien Febvre e Marc Bloch, fundadores da revista dos

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ENTRE O CONTEXTO E A LINGUAGEM: O DISCURSO FOTOGRÁFICO E A PESQUISA HISTÓRICA

Annales em 1929, questionaram tal noção. Segundo Bloch, “É quase infinita a diversidade dos testemunhos históricos. Tudo quanto o homem diz ou escreve, tudo quanto fabrica, tudo em que toca, pode e deve informar a seu respeito [...]” (BLOCH, 1997, p. 114). Apesar da “caricatura” que os historiadores dos Annales fizeram sobre a Escola Metódica, reduzida à alcunha do positivismo (REIS, 1995, p. 49), o período representou uma mudança de paradigma no tocante à noção de fonte, que passou a abarcar todas as produções humanas. A chamada Nova História, herdeira da terceira geração dos Annales, prosseguiu ampliando o repertório documental, permitindo a apropriação das imagens ao campo histórico. Contudo, os historiadores continuam mais apegados aos documentos escritos, ainda que não somente aqueles de caráter oficial. Segundo Ivan Gaskell (1991, p. 237).: Embora os historiadores utilizem diversos tipos de material como fonte, seu treinamento em geral os leva a ficarem mais à vontade com documentos escritos. Conseqüentemente, são muitas vezes mal equipados para lidar com material visual, muitos utilizando as imagens apenas de maneira ilustrativa, sob aspectos que podem parecer ingênuos, corriqueiros ou ignorantes a pessoas profissionalmente ligadas à problemática visual [...]

De fato, em diversas obras históricas, inclusive dedicadas a documentos iconográficos, as imagens são inseridas apenas de maneira ilustrativa, dispensando tratamentos metodológicos de desconstrução mais rigorosos. De modo geral, os historiadores realizam explicações em torno do contexto de produção, procedimento fundamental relativo ao campo histórico, mas o discurso é elaborado tendo como base informações de natureza escrita e inferido à

imagem, e não construído a partir desta, valorizando suas linguagens específicas. Ou seja, o movimento vem de fora para dentro (da fonte), e não o contrário. Não ignoro que, para a elaboração de explicações históricas consistentes, seja necessário entrecruzar diversos tipos de documentos, uma vez que estes não constituem ilhas isoladas. Historiadores como Louis Marin (2001, p. 117-140) demonstraram como o texto escrito e a pintura, por exemplo, possuem relações profundas. Porém, mais que uma fonte reproduzida em papel couché para edições de luxo, as imagens devem ser compreendidas partindo-se de sua linguagem e contextualizadas, elemento que lhe confere historicidade (o que difere das posturas formalistas). O problema em questão é a autonomia relativa da imagem como documento histórico, isto é, o fato dela possuir uma linguagem passível de desconstrução, o que constitui um pressuposto quando o objeto são fontes escritas, tais como a literatura e os processos criminais. Concebendo o documento iconográfico como representação, ou seja, concepções de múltiplas naturezas (como idéias, ideologias e mentalidades) construídas a partir de contextos sociais, econômicos, políticos e culturais específicos, deve-se reconhecer que as imagens possuem uma linguagem que permite a leitura e interpretação. Afinal, não se trata de algo inscrito na natureza, mas de artefatos da cultura produzidos pelos homens e perpassados de visões de mundo que não são neutras, mas carregadas de subjetividade e condicionamentos ligados ao lugar de produção. Mesmo a fotografia, tradicionalmente considerada um registro realista e objetivo da realidade, representa determinados objetos em termos iconográficos, uma vez que o fotógrafo

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seleciona ângulos e enquadramentos, deixando de fora tudo o que não lhe interessar (o que se aplica a monitoramentos via satélite), pressupondo seleção e atribuição de significados. Além disso, por mais verossímil que seja uma foto, segundo Charles Morris, o próprio fato de transpor determinado fenômeno próprio a um universo tridimensional ao papel fotográfico plano já sugere que o signo arbitrário encontra-se presente (CARONTINI; PERAYA, 1979, p. 86). Ao conceberem que a imagem possui linguagem própria, os historiadores encontram-se em débito com a lingüística e, mais especificamente, com a semiótica, embora a dívida nem sempre seja reconhecida. Os conceitos semióticos são citados direta ou indiretamente, como signo, ícone, índice, símbolo e discurso, entre outros, geralmente sem notas de rodapé esclarecendo as fontes bibliográficas. O grande medo de pesquisadores no campo histórico que trabalham com fotografias é serem acusados, diante de bancas de mestrado ou doutorado, de terem utilizado abordagens semióticas. A chamada História Cultural, compreendida em suas várias vertentes, desde a História das Mentalidades à Nova História Cultural, assumem de bom grado a influência exercida pela antropologia de Claude Lévi-Strauss e Clifford Geertz, esquecendo ou ignorando o peso da lingüística para os antropólogos. No caso das imagens, os semióticos desempenharam papel significativo na medida em que assumiram que certos aspectos da estrutura lingüística aplicados à escrita poderiam ser repensados (e posteriormente reformulados in totum) em termos de documentos nãoescritos (Ibidem, p. 1 e BARTHES, 1987, p. 12-13), de modo que o signo iconográfico possuiria regras mais ou menos recorrentes 156

num determinado contexto, podendo ser lido a partir de sua especificidade discursiva, conferindo-lhe autonomia relativa. A divisão do signo, de acordo com o filósofo norteamericano Charles Sanders Peirce, em três categorias é particularmente significativa e operacional para os historiadores: o símbolo, o índice e o ícone, o último guardando relações de semelhança com os objetos representados (CARONTINI; PERAYA, D. op. cit., p. 19-25). Partindo das proposições semióticas, Roland Barthes escreveu sobre a linguagem da moda, mais especificamente voltada para os vestuários (BARTHES, 1999), e também acerca da fotografia, em “A Câmara Clara” (BARTHES, 1984), obra de referência para os historiadores que trabalham com registros fotográficos, mas cujas implicações conceituais são relativamente evitadas. Desta forma, creio que a questão não é evitar falar de semiótica e seus conceitos temendo a “excomunhão” do campo, mas assumir as implicações e aprender a lidar com elas. 3. Como proceder diante da imagem? Deve-se ter em mente que, mesmo possuindo uma linguagem específica, o signo iconográfico é um documento ligado ao espaço, tempo e lugar social de produção, ou seja, não se pode ignorar o contexto de elaboração para a sua leitura. Desta forma, nem todos os documentos imagéticos possuem as mesmas linguagens, que podem variar de acordo com o período, lugar e grupo social, as convenções artísticas às quais podem submeter-se e outras variáveis, como públicos aos quais foram destinados. O modo de compor e ler uma pintura impressionista é significativamente diferente daquele relacionado aos quadros acadêmicos e às composições abstratas. Nesse sentido, a obra de Monet é muito distinta da composta por Malevitch, ainda que ambas não possam ser

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discriminadas qualitativamente e possuam linguagens decodificáveis. A fotografia de Eugene Atget deve ser desconstruída de modo diverso quando comparada aos cartões de visita que se tornaram populares na segunda metade do século XIX, quando do barateamento dos materiais fotográficos. As histórias em quadrinhos de Frank Miller são diferentes dos mangás de Kazuo Koike e Goseki Kojima. Desta forma, assim como qualquer outra fonte, as imagens estão submetidas aos condicionamentos e ao repertório de informações disponíveis em situações históricas mais ou menos definidas. Sem a contextualização, o historiador corre o risco de ler na imagem sentidos anacrônicos atribuídos posteriormente, já que, como sugere Sontag em torno da foto, esta é “... apenas um fragmento, e com o passar do tempo suas amarras se desprendem. A deriva, vai-se transformando em passado difuso, aberto a qualquer tipo de leitura...” (SONTAG, op. cit., p. 71). Ao realizar o recorte de determinado corpus documental, o pesquisador deve compreender como a fotografia foi condicionada pelo contexto de produção. Em primeiro lugar, deve-se referenciar o autor que, ao fotografar, por exemplo, uma paisagem, escolhe ângulos e enquadramentos adequados, pressupondo uma desvalorização de todo o restante, que pode ser um lixão ou uma porção desflorestada; seleciona áreas favorecidas pelas fontes de luminosidade, dependendo do efeito que deseja criar; regula a máquina com o intuito de controlar a entrada de luz (diafragma) e a velocidade do disparo (obturador); dispõe os motivos imagéticos, como pessoas posando para a lente, pedelhes para que ergam a cabeça, dêem um 1

sorriso e digam “x”, entre outros aspectos (ANDRÉ, 2006, p. 20-21). Desta forma, como sugere Phillipe Dubois, o processo fotográfico é um ato (DUBOIS, 1993, p. 15), isto é, o fotógrafo não permanece passivo diante de uma câmera que “faz tudo”, mas opera um conjunto de procedimentos mecânicos, óticos, químicos e, principalmente, intelectuais para conseguir determinado resultado (ADAMS, 2002, p. 15). Assim, não há nenhuma passividade: os profissionais da National Geographic embrenham-se na floresta e esperam eventualmente horas para captar o bote de determinado predador. Mesmo uma fotografia via satélite, por exemplo, das queimadas na Amazônia selecionam determinadas áreas e excluem outras, o que remete à criação de representações. Portanto, mais que uma quantidade absurda de megapixels nas câmeras modernas, há um operador que transforma os motivos em imagens impressas em papéis fotográficos ou em arquivos de computador. O fotógrafo possui, além disso, um lugar social específico, o que condiciona os sentidos que insere em sua produção. Há matizes significativos ao se pensar em indivíduos trabalhando, por exemplo, para grandes empresas que fotografam com o objetivo de propagandear determinados objetos. As fotografias de condomínios residenciais representam espaços neobucólicos perpassados de bosques, recursos hídricos e segurança, excluindo o mundo extramuros, perpassado de devastação e violência1. Nas décadas de 1920 e 1930, os fotógrafos contratados pela Companhia de Terras Norte do Paraná, responsável pela comercialização de lotes fundiários em regiões como Londrina e Cambé, criaram imagens publicitárias do ambiente regional enfocando a fertilidade do

Agradeço, nesse item, às considerações de Gilmar Arruda.

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solo, as grandes árvores e os rios caudalosos, remetendo a lugares-comuns edênicos com a finalidade de promover a venda de terras (ANDRÉ, op. cit.). Por outro lado, no mesmo contexto, operadores não vinculados profissionalmente à instituição, como o colono japonês Haruo Ohara, produziram clichês em torno das geadas e da melancolia do trabalhador agrícola (Idem. 2005, p. 75-94). Os fotógrafos podem ter, também, vinculações políticas, tecendo apologias a governantes, como nas imagens de Getúlio Vargas discursando para multidões, ou criticando certos regimes. Podem desempenhar funções institucionais de coerção e repressão, como nas fotos de pessoas fichadas pela polícia, segurando a identificação e posando de frente e perfil, de acordo com as regras de composição de imagens criminais convencionadas ao longo do século XIX. Desta forma, o fotógrafo (assim como a fotografia) não é neutro e, ao fazer escolhas, permite entrever iconograficamente o lugar que ocupa no jogo social, político e econômico. Além dos elementos de ordem social, econômica e política, é necessário, também, perceber as regras de composição imagética que os fotógrafos apropriam em determinados contextos. O conceito de campo proposto pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu pode ser útil a esse respeito, compreendido enquanto conjunto de convenções que podem ser aplicadas a diversos fenômenos (da religião à música), sistematizadas, reproduzidas e constantemente defendidas por indivíduos que, detentores de capital cultural (isto é, reconhecida autoridade sobre o assunto), incluem ou rechaçam aqueles que se alinham ou não aos elementos convencionados. Assim, o campo é perpassado por relações e conflitos sociais na esfera do simbólico, 158

operando divisões como “profissional” e “amador”, “erudito” e “popular”, “sagrado” e “profano”, entre outras (BOURDIEU, 2000, p. 64-73). Aplicando o raciocínio de Bourdieu, podese falar em campo fotográfico, já que em diferentes momentos e situações, foram criadas regras de composição. Por exemplo: nos cartões de visita, o fotógrafo deveria representar o modelo ao estilo da burguesia do século XIX, posando triunfalmente, bem vestido, com o cenário repleto de adornos, como cadeiras tendo apoio para cabeça, entre outros quesitos (FABRIS, 2004, p. 30). Nas imagens criminais sugeridas anteriormente, o réu deve segurar sua identificação e posar de frente e de perfil. A fotografia experimental do século XX começou a adotar procedimentos avessos às regras tradicionais, como inserir objetos contra forte luminosidade, a chamada contraluz, criando um efeito de silhueta, e manter o obturador da câmera aberto, captando o movimento e “borrando” a imagem final. Isso pareceria uma contra-regra, mas expressa as convenções de diferentes campos fotográficos, o que remete à questão das linguagens: mesmo a fotografia possui, como sugerido, diversas formas de codificação que devem ser contextualizadas. Além do fotógrafo e seus condicionamentos, deve-se ter em mente que, em certos casos, o resultado final da fotografia é uma operação influenciada, também, pelo fotografado. Este, tal como o operador, não permanece passivo diante das lentes, mas fabrica uma segunda imagem de si, uma auto-representação que não pertence à natureza, mas à cultura. A questão fica clara ao se pensar, por exemplo, em cerimônias como casamentos, nas quais os convivas são surpreendidos eventualmente por uma câmera de vídeo que os grava enquanto à

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mesa comendo seu risoto: ninguém permanece natural, esboçando reações variadas de constrangimento ou caretas por parte das crianças. Os noivos, por sua vez, devem ser registrados de maneira bela, de modo que as imagens possam ser encadernadas em álbuns e revistas ao longo dos anos. Por isso, são contratadas empresas especializadas que devem seguir todas as regras convencionadas relacionadas à fotografia matrimonial, desde o lançamento do buquê aos bafões da noiva (a foto desempenha, então, função ritual, como sugere Sontag, op. cit. p. 8-9). Cito Barthes: [...] a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. Essa transformação é ativa: sinto que a Fotografia cria meu corpo ou o mortifica, a seu bel-prazer [...] [Uma] imagem – minha imagem – vai nascer: vão me fazer nascer de um indivíduo antipático ou de um “sujeito distinto”? Se eu pudesse “sair” sobre o papel como sobre uma tela clássica, dotado de um ar nobre, pensativo, inteligente, etc.! Em suma, se eu pudesse ser “pintado” (por Ticiano) ou “desenhado” (por Clouet)! (BARTHES, op. cit. p. 23-24).

O princípio aplica-se, inclusive, aos cartões de visita: nestes, o representado, como sugerido, deveria assumir uma imagem burguesa. Mesmo após a popularização da fotografia e a expansão para outros públicos na segunda metade do século XIX, as convenções imagéticas permaneceram burguesas, de modo que o desejo do fotografado manifestava-se nas fotos, influenciado pelo conhecimento do operador. Desta forma, o signo iconográfico pode ser compreendido também como forma de alguns indivíduos e grupos sociais ostentarem determinada identidade (mesmo que

imaginária). Era comum, por exemplo, entre os senhores brasileiros serem fotografados juntamente aos escravos, um dos principais índices de riqueza (KOSSOY, 2002, p. 67). Atualmente, por intermédio do Orkut e do Youtube, que permitem a divulgação de imagens e vídeos de modo rápido e fácil, a questão da construção da auto-imagem tornou-se mais complexa, lembrando que o operador/modelo tornou-se praticamente a mesma pessoa. Não casualmente, o slogan do Youtube é broadcast yourself. Outra variável importante a ser considerada pelo historiador é o suporte concreto por intermédio do qual a imagem é reproduzida, uma vez que pode atribuir novos significados à fotografia. Como sugerido, nas primeiras décadas do século XX, os fotógrafos contratados pela Companhia de Terras Norte do Paraná produziram fotografias da região com o objetivo de constituir material publicitário para a venda de terras, sendo reproduzidos em panfletos e cartazes. Porém, em 1944 a empresa de capital britânico perdeu seu poderio político e econômico, sendo nacionalizada e desenvolvendo atividades fundiárias em outros locais, como Maringá e Cianorte. Mesmo com a derrocada da Companhia, as fotografias começaram a ser utilizadas como mecanismo para a construção da memória oficial da cidade, de modo que, em 1959, foi construído em Londrina um painel em azulejos com a reprodução de algumas imagens panorâmicas da cidade (ARRUDA, 2005, p. 3-4). José Juliani, fotógrafo da Companhia em sua época áurea, começou a comercializar os seus clichês organizados em álbuns adornados com decoração oriental, associados a outras fotografias, criando uma narrativa do olhar sobre o processo de ocupação da terra: a derrubada das árvores,

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o transporte dos materiais, o trabalho nas serrarias, a expansão das estradas de ferro e da malha urbana, etc. Ou seja, a combinação de imagens permitiu a elaboração de sentidos a posteriori que não existiam quando de sua produção. Hoje, as mesmas fotos são estampadas em cartões de moto-taxi, em mouse-pads e paredes de shoppings, o que remete a novos significados (ANDRÉ, cit., p. 156-177). Por isso, na análise icônica é necessário perceber quais são os suportes nos quais as imagens foram veiculadas para a compreensão de seu discurso num contexto preciso. 4. A investigação de tais elementos (o fotógrafo, seu lugar social e intelectual, o público para os quais as fotografias destinamse e os suportes nos quais são reproduzidas) são fundamentais para a compreensão do contexto no interior do qual os documentos são produzidos, procedimento próprio ao campo (ainda no sentido que Bourdieu aplica ao conceito) historiográfico. Porém, como sugerido, é preciso desconstruir as imagens, também, a partir dos caracteres que compõem o seu discurso interno. Erwyn Panofsky propôs um método para a desconstrução baseado, em primeiro lugar, no levantamento iconográfico da imagem, isto é, na discriminação dos elementos icônicos que a integram. Trata-se de uma etapa descritiva, na qual é preciso separar cada um dos itens de determinada fotografia: ângulo, enquadramento, luminosidade, local, objetos, pessoas, posição dos motivos, cenário, etc., que podem variar de acordo com a fonte. Quanto mais pormenorizada a descrição, melhor (KOSSOY, 1989, p. 65). Por isso, Kossoy sugere a elaboração de fichas catalográficas descrevendo tais itens e outras informações técnicas. Pode-se dizer, em termos lingüísticos, que esses aspectos 160

constituem os significantes iconográficos que, combinados de determinados modos, geram significados específicos. Como a maioria dos tipos de linguagem é baseada nas repetições, o que lhes permite em parte tornarem-se convenções, uma possibilidade analítica é serializar as informações no interior de determinado corpus, percebendo a recorrência de alguns caracteres em detrimento de outros. Esta é uma forma, além disso, de perceber como o fotógrafo alinhase às regras de campo sugeridas. A segunda etapa, após a descrição iconográfica pormenorizada, é a interpretação iconológica (Ibidem, p. 65). A partir da percepção dos itens que compõem a fotografia e a sua inter-relação, tendo em vista o contexto no qual foi produzido o documento, é possível ler significados (correlacionados aos significantes) que remetem ao signo imagético, isto é, ao sentido atribuído. É importante perceber que não são os elementos isolados que compõem o sentido, mas as suas múltiplas combinações. De modo mais amplo, mesmo uma fotografia pode ser entendida como signo e associada a outras imagens, tecendo uma linguagem mais complexa. A partir da imagem a seguir, é possível esboçar o procedimento iconográfico e iconológico proposto por Panofsky. No enquadramento vertical da imagem, podese verificar, em posição central, a figura de D. Pedro II sentado, levemente inclinado, mas com o rosto voltado para o operador, trajando roupas civis, envolto por falsa vegetação própria a ateliês. A iluminação artificial provém do próprio estúdio. Na fotografia, há a associação de dois significantes icônicos: a mata e o indivíduo (desconsidere-se, por ora, que seja o imperador brasileiro). Por que combiná-los? Neste quesito, entra a necessidade de conhecimento do contexto

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histórico brasileiro: a natureza possuía no Brasil uma conotação edênica bastante acentuada, ressaltada pelos relatos de viajantes, pela literatura romântica alencariana e pelas pinturas produzidas sob os auspícios da Academia Imperial de Belas Artes, fundada em 1826. Por outro lado, tendo-se em mente que o indivíduo em questão é o imperador, buscando consolidar o seu poderio por intermédio da (re)criação e reprodução de elementos identitários brasileiros, compreende-se a associação entre natureza e poder imperial, conferindo a D. Pedro II a condição de imperador dos trópicos (KOSSOY, 2002, p. 80). Desta forma, o autor da fotografia, Joaquim Insley Pacheco, apropriou representações convencionadas e reconstruiu-as por intermédio do discurso fotográfico. Pode-se ir mais longe e perceber que todos os elementos presentes na fotografia em questão seguem padrões de composição próprios às imagens elaboradas em ateliês ao longo do século XIX, como os cartões de visita anteriormente sugeridos: o cenário artificial, o enquadramento vertical, a pose levemente inclinada, a cadeira (possivelmente com apoio de braço e cabeça), entre outros. Fica, portanto, clara a adequação de Pacheco ao campo fotográfico em questão. Entretanto, nem sempre o historiador dispõe de fontes e informações suficientes acerca das fotografias e de suas condições de produção. É freqüente lidar com imagens sem indicação de autoria e data, de modo que é difícil realizar de forma adequada a leitura iconológica. De maneira geral, é improvável encontrar corpus de documentações ideais, que disponibilizem os elementos necessários à pesquisa histórica. Mais comumente os acervos fotográficos são preservados (quando o são) fragmentariamente, devendo o pesquisador

estabelecer interpretações a partir de indícios, flexibilizar seus métodos e admitir mudanças de leme na pesquisa, num constante diálogo entre o objeto e os recursos epistemológicos disponíveis, o que constitui a lógica histórica, como sugere E. P. Thompson (1981, p. 49).

Joaquim Insley Pacheco. Retrato de D. Pedro II. Petrópolis (1883). 37,7 x 29,5 cm. Coleção do Instituto Moreira Salles. Reproduzido em KOSOY, B. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. SP: Instituto Moreira Salles, 2002, p. 248.

5. Após essas reflexões, pode-se concluir que as imagens foram apropriadas ao campo da história nas últimas décadas, embora as mesmas sejam utilizadas de modo simplista, ainda hoje, por diversos historiadores. De qualquer forma, as fotografias, para além de reprodução objetiva da realidade, constituem representações criadas a partir de lugares, tempos e condições sociais perpassadas de historicidade, inseridas em campos que convencionam elementos a serem reproduzidos ou rejeitados pelos fotógrafos. Portanto, são produtos históricos perpassados

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por linguagens específicas que exigem, por parte do pesquisador, não apenas um exercício de contextualização, mas a desconstrução dos signos iconográficos por intermédio de procedimentos próprios, como a iconografia e a iconologia propostas por Panofsky. No entanto, os debates em torno dos documentos imagéticos não se esgotam, dada a intensa presença da imagem no mundo contemporâneo e o fato de situaremse no limiar das discussões acerca da pósmodernidade, entre o realismo e a ficção, a substância e o simulacro. Referências Bibliográficas

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resenhas



RESENHA

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários do século XX. Rússia e Alemanha. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.

Renata Senna Garraffoni Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autora de, entre outros livros, Gladiadores na Roma Antiga: dos combates às paixões cotidianas. São Paulo : Annablume/ Fapesp, 2005.

Recebido em: 25/04/2009

Aceito em: 25/06/2009

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RENATA SENNA GARRAFFONI

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários do século XX. Rússia e Alemanha. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.

Vanessa Beatriz Bortulucce é doutora em História pela Unicamp (2005) com ênfase em História da Arte e futurismo italiano. Tendo estudado as obras de Umberto Boccioni no mestrado e doutorado, publicou artigos na área e, atualmente, tem pesquisado sobre arte e arquitetura durante o regime nazista. O presente livro, publicado pela editora Annablume com apoio da Fapesp, é parte do desenvolvimento desses novos trabalhos e, como destaca Luciano Migliaccio no prefácio da obra, vem preencher uma lacuna na bibliografia disponível no Brasil sobre historiografia da arte durante regimes totalitários. Embora seja um tema pouco explorado no Brasil, o livro é escrito em uma linguagem acessível aos que iniciam na área. Sem perder a profundidade necessária para uma boa abordagem crítica, Bortulucce nos apresenta um estudo do papel político da Arte no mundo contemporâneo e, afastando-se de uma visão maniqueísta ou simplista, procura estudar a estética totalitária, uma arte de massa que moldou a vida cotidiana de gerações de indivíduos na Alemanha e Rússia da primeira metade do século XX. Ancorada pelos aspectos políticos e ricamente ilustrada, Bortulucce apresenta um livro dividido em introdução, quatro capítulos e a conclusão, nos quais explora como as percepções de mundo e os modos de sentir são reconfigurados a partir de uma estética totalitária, baseada na organização, controle e manutenção da ordem.

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Dividindo o livro em dois capítulos acerca da arte alemã e dois sobre o universo russo da primeira metade do século XX, Bortulucce apresenta de maneira didática os contrastes da arte durante esse período. Partindo das principais vanguardas, os capítulos nos fazem pensar como a pluralidade das formas de pensar e experimentar foram silenciadas pelos regimes totalitários – nazismo e stalinismo – e a profunda relação que se estabelece entre arte e sociedade, desenvolvida em meio as proposições nacionalistas impostas a partir do estabelecimento de uma única ordem possível. No capítulo 1 Alemanha, 1900-1929: do segundo Reich à República de Weimar, por exemplo, Bortulucce comenta a Bauhaus e a Nova Objetividade para em seguida, no capítulo 2 Alemanha, 1930-1945: da ascensão do Nazismo ao fim do Terceiro Reich, contrapor a estética nazista delineada a partir das concepções de Hitler. A monumentalidade, as releituras do passado greco-romano e o constante uso da Arqueologia, resultaram na construção de uma estética própria, eivada de propaganda ideológica da nova ordem estabelecida, que definia os parâmetros da arte aceita e perseguia a considerada degenerada. Já nos capítulos 3 e 4 somos introduzidos no universo russo. A contraposição estabelecida aqui segue a mesma lógica dos capítulos sobre a arte alemã. Assim, o capítulo 3, Rússia, 1900-1924: do Estado Czarista à

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RESENHA

União Soviética, trata das vanguardas russas, a produção de cartazes, fotomontagem e o cinema revolucionário, enquanto que o capítulo 4, URSS, 1925-1939: da ascensão de Stalin ao início da Segunda Guerra Mundial, temos uma análise do culto à imagem de Stalin. Os dois capítulos mencionados são bastante instigantes na medida em que contrapõe as vanguardas russas, pouco estudadas e conhecidas no Brasil, ao Realismo Socialista, arte oficial durante o período stalinista. Os cartazes apresentados pela autora permitem uma análise do discurso imagético no qual arte, ideologia política e estética se contrastam e ajudam a compor a um complexo quadro em que Stalin e os jovens indicam os caminhos da nova sociedade. Esses cartazes educariam os trabalhadores e imprimiriam elementos estéticos com claros apelos ideológicos, contrastando imagem e texto. A estratégia adotada, de contrapor as vanguardas com a arte oficial dos regimes totalitários ao longo dos capítulos, é perspicaz na medida em que não há nenhum prejulgamento da qualidade técnica das obras, mas ajuda a refletir sobre como o

campo das artes foi atravessado por políticas de expressiva repressão. O trabalho de Bortulucce permite ao leitor iniciante entrar em contato com as diversas formas de arte desenvolvidas na primeira metade do século XX e, também, colabora com uma reflexão sobre como regimes totalitários buscavam construir um ideal estético a partir do fortalecimento de determinados traços da identidade nacional. Nesse sentido, a materialidade das obras, nas suas diversas expressões – pinturas, cartazes, fotografias, fotomontagem – tornam-se um importante instrumento para se pensar o passado contemporâneo. A partir das imagens nas suas mais diversas dimensões e materialidade, a autora propõe uma reflexão sobre violência, estética e liberdade, sobre visões de mundo silenciadas e as hegemônicas, reconstruindo as complexidades e nuances desses momentos históricos que ainda nos deixam perplexos. Por essas razões, a leitura da obra é importante tanto para aqueles que gostariam de conhecer mais sobre arte alemã e russa do início do século XX como para aqueles que buscam abordagens alternativas para o estudo da História Contemporânea.

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MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da sociedade porto-alegrense: vida pública e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). São Leopoldo: Oikos, 2009. Zita Rosane Possamai Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de, entre outros artigos, “Fotografia e cidade”. ArtCultura (UFU), v. 15, 2008.

Recebido em: 20/05/2009

Aceito em: 25/06/2009

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ZITA ROSANE POSSAMAI

MACHADO JUNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da sociedade portoalegrense: vida pública e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). São Leopoldo: Oikos, 2009.

O ano de 2009 marca os oitenta anos do lançamento da primeira edição da Revista do Globo, em janeiro de 1929. Sem intenções comemorativas, Cláudio de Sá Machado Junior traz a público livro que descortina a primeira década desta revista gaúcha, cuja circulação chegou até o ano de 1967. Tanto a edição, quanto a pesquisa realizada pelo autor foram financiados pelo Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural – FUMPROARTE –, agência que há mais de uma década subvenciona projetos de âmbito cultural em Porto Alegre. A publicação é modesta e sem o requinte acompanhado das edições compostas por imagens fotográficas, não raras vezes, privilegiando o visual em detrimento de análises mais detidas. Esse aspecto, de forma alguma, diminui a importância do livro, pois este já é de consulta obrigatória para os pesquisadores especializados na história visual brasileira, por trazer informações relevantes sobre a revista e as imagens fotográficas nela publicadas. A obra subdivide-se em quatro capítulos. O primeiro capítulo, História com fotografias e cultura visual, considerado de leitura mais árdua pelo próprio autor, é de interesse do público especializado nos estudos sobre a cultura visual. Aqui, um percurso teórico aborda diferentes perspectivas dos estudos sobre a cultura visual, em especial sobre as fotografias, na cena acadêmica, sobretudo, brasileira. O autor traça seu quadro de mirada na perspectiva dos estudos históricos que

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utilizam as fotografias. Nessa perspectiva, a fotografia é vestígio do passado e, através dela, pode-se alcançar o social, foco privilegiado da análise histórica. Nas suas palavras, as fotografias só possuem sentido enquanto objetos de estudos sobre a sociedade. Entretanto, lidar com o visual e com as fotografias, conforme ressalta o autor, impõe buscar as formas de ver de outras disciplinas, como a Antropologia, a Literatura, a Semiótica, as Ciências da Informação. A multidisciplinaridade é um imperativo aos estudos da cultura visual e, quem sabe esta possa ser uma aproximação da tão propalada transdisciplinaridade. O segundo capítulo, A década de 1930 e Porto Alegre, constitui-se em panorama histórico, no qual o autor parte dos aspectos econômicos, políticos e sociais mundiais, passando pela história do Brasil, até chegar ao contexto regional e da cidade de Porto Alegre. As páginas da Revista servem de fio condutor para a elaboração de um quadro histórico, no qual estão presentes acontecimentos como a ascensão dos regimes nazi-fascistas na Europa; a Guerra Civil Espanhola; o crack de 1929, nos Estados Unidos; a Revolução de 1930; o Estado Novo; a intervenção política no Rio Grande do Sul; as transformações urbanas na capital. Esse rol de acontecimentos apresentados pela Revista do Globo mostra o quanto um periódico auto-definido como de Variedades e de cultura e de vida social, no contexto investigado, não prescindia de oferecer aos

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leitores matérias jornalísticas de cunho econômico, político e social. Embora esta não seja preocupação do autor, essa característica vem indicar a pluralidade de seu público leitor. O terceiro capítulo, A Revista do Globo e sua visualidade, pretende apresentar aspectos da conformação visual do periódico. O livro equilibra texto escrito e conteúdo das imagens trazidas pela revista, tornando a leitura muito agradável e, de alguma forma, oferecendo uma possibilidade de exposição dos conteúdos visuais interpretados pela linguagem escrita. Analisando por amostragem um conjunto de 266 exemplares, foi objetivo do autor abordar a forma de composição do conteúdo e de sua diagramação. São analisadas as capas, várias delas criadas por artistas gaúchos, como Sotero Cosme, ou trazendo imagens emblemáticas do contexto de circulação do periódico, como a imagem de Mickey Mouse ou de Getúlio Vargas; os anúncios publicitários; as charges; as histórias em quadrinhos. O quarto capítulo trata das imagens fotográficas, sendo intitulado Tipologias Fotográficas: um perfil. Conforme refere o título, o autor optou por agrupar em conjuntos com conteúdo recorrente as imagens fotográficas de modo a poder apresentá-las de forma organizada. Nessa perspectiva, estão expostas imagens de personagens políticos; personalidades; eventos sociais e culturais; clubes; escolas; crianças; mulheres. Não se constitui em pretensão do autor, uma análise das imagens fotográficas propriamente ditas. O quarto capítulo é muito mais uma apresentação, acompanhada de descrição e breves inserções nas problemáticas que as imagens poderiam suscitar, tais como representações do feminino e questões de gênero, por exemplo.

Distanciando-se de obra puramente acadêmica, a proposta preocupa-se em apresentar um leque de possibilidades para aqueles desejosos de seguir as investigações em cultura visual. Para o grande público, certamente, é obra de prazerosa leitura e que dá a conhecer um importante veículo editorial que marcou época. Pautando-se pelas informações contidas na própria revista, o autor furta-se de oferecer informações valiosas sobre o surgimento da Revista do Globo, empreitada editorial levada a contento pela Livraria do Globo, denominada Editora Globo a partir de 1956, e considerada a mais importante editora do Brasil, fora do eixo Rio e São Paulo, nos anos 1940. A Revista foi dirigida, inicialmente, por Mansueto Bernardi e, posteriormente, por Erico Veríssimo. Seus idealizadores pretendiam que esta fosse um periódico de maior perenidade em relação a outras iniciativas que haviam naufragado nas primeiras décadas do século XX, como Kodak, Máscara e Madrugada. A Revista deveria ser moderna e afinada com o ambiente cosmopolita e cultural da capital do Rio Grande do Sul no final dos anos 1920. Constituía-se em periódico quinzenal com conteúdo de leitura relacionado às variedades. Cultura e vida social faziam parte do universo a ser explorado pela revista, através de matérias versando sobre literatura, artes, cinema, principalmente. A Revista do Globo também se tornou veículo de divulgação literária, seja das traduções de contos e artigos feitos pelo próprio Érico, seja das obras editadas pela Livraria, seguindo filão explorado por Monteiro Lobato na Revista do Brasil. A obra de Cláudio de Sá Machado Junior, ainda, assume relevância no contexto atual, em que o campo dos historiadores tomou

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conhecimento do desaparecimento de acervos públicos da cidade de exemplares das revistas Kodak e Kosmos. Quando documentos de inestimável valor histórico e cultural são subtraídos do acesso público, as

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iniciativas que visam preservar os acervos históricos e divulgar o conteúdo desses documentos, como o faz a obra em questão, resta-nos aplaudir e desejar que outras mais venham na mesma direção.

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Normas para Publicação

A Revista Domínios da Imagem é uma publicação dirigida pelo Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História – LEDI, um projeto integrado (pesquisa/extensão) do Departamento de História e está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná – Brasil. Tal iniciativa tem como objetivo difundir o diálogo intelectual entre pesquisadores que atuam em diferentes regiões do país e no exterior, bem como fomentar a interlocução entre distintas áreas que tratam dos domínios da imagem. A Revista Domínios da Imagem tem periodicidade semestral, com fluxo contínuo para o recebimento de artigos e resenhas. Conta com um Conselho Editorial e Científico e um Conselho Consultivo, compostos por pesquisadores ligados à várias universidades brasileiras e estrangeiras. Solicitamos aos nossos colaboradores que enviem seus trabalhos para o endereço abaixo mencionado atendendo as seguintes especificações: • Todo o material deve ser encaminhado em envelope contendo: 3 (três) cópias impressas em papel A4 (210x297mm), sendo 1 (uma) identificada e 2 (duas) sem identificação; • 1 (uma) cópia idêntica em CD-Rom; • 1 (uma) folha contendo os seguintes dados de identificação: seção para a qual envia o trabalho (artigos ou resenhas), título do texto, nome completo do(s) autor(es), instituição a que pertence, titulação, endereço completo, telefone, fax e endereço eletrônico; • Os textos devem ter a seguinte formatação: editor Word for Windows, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entrelinhas 1,5 cm. e com margens de 3 cm; • Todos os textos deverão ser apresentados após revisão ortográfica e gramatical; • Os artigos terão a extensão de 08 a 20 laudas, no máximo, incluindo imagens; • As notas deverão ser colocadas no final do texto, podendo nelas constar referências bibliográficas e/ou comentários críticos ficando as referências restritas exclusivamente ao espaço das notas. Da remissão deve constar, entre parênteses, o nome do autor, seguido da data de publicação da obra e do número da página, separados por vírgulas. Exemplo: (FRANCO, 1983, p. 114); • Os artigos serão acompanhados de título, resumo e abstract de, no máximo, 10 linhas e de 03 palavras-chave em português e em inglês; • Os artigos e as resenhas em inglês, francês e espanhol serão publicados na língua original, sem a necessidade de título, resumo e palavras-chave em português; • As resenhas poderão ter entre 03 e 05 páginas e deverão vir acompanhadas de 03 palavraschave em português e em inglês; • As fotografias, ilustrações e/ou gráficos deverão vir em preto e branco, com resolução mínima de 300 dpi, desde que as fontes sejam devidamente mencionadas e autorizadas, respeitando a legislação em vigor; • Abaixo do nome do autor deverá constar a Instituição à qual se vincula, bem como titulação máxima;

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• Caso o trabalho/pesquisa e/ou experiência didática tenha apoio financeiro de alguma agência de fomento, esta deverá ser mencionada; • Caberá ao Editor responsável, a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições recebidas. Normatização das notas: • SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico:subtítulo. Tradução. edição, Cidade: Editora, ano, p. ou pp. • SOBRENOME, Nome.Título do capítulo ou parte do livro. In: Título do livro em itálico. Tradução, edição, Cidade:Editora, ano, p. x - y. • SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico.Cidade: Editora, vol., fascículo, p. x-y,ano. • SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico:subtítulo. Tipo do trabalho: Dissertação ou Tese (Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do trabalho) – vinculação acadêmica, local e data de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver), página citada. • AUTOR(ES). Denominação ou título:subtítulo. Indicações de responsabilidade. Data. Informações sobre a descrição do meio ou suporte. (Para suporte em mídia digital) Obs: para documentos on-line, são essenciais as informações sobre o endereço eletrônico apresentado entre sinais < >, precedido da expressão “disponível em” - e a data de acesso ao documento, antecedida da expressão “acesso em”.

Os textos deverão ser enviados para o seguinte endereço: Revista Domínios da Imagem Departamento de História Universidade Estadual de Londrina Campus Universitário Cx. Postal 6001 Londrina – Paraná – Brasil CEP 86051-990

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LEDI FAEPE / UEL Programa de Pós-graduação em História Social Especialização em História Social e Ensino de História


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