Revista À Mostra 2016

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EDITORIAL Por Fernanda da Escóssia Jornalista e Professora de Redação Jornalística na ECo/UFRJ

O que une Comunicação e Teatro? Para escrever o editorial de apresentação da Revista À Mostra, enviei a pergunta aos autores desta edição. Do grupo fazem parte alunos-diretores, concludentes de 2016 do curso de Direção Teatral e responsáveis pelos espetáculos apresentados na Revista, e alunos-jornalistas, matriculados na disciplina de Redação Jornalística 2 do curso de Jornalismo e encarregados de, sob minha orientação, escrever sobre as montagens. Todos são alunos da Escola de Comunicação da UFRJ. Entre as respostas, uma palavra se repetiu: EXPRESSÃO. Comunicação e teatro surgem como formas de expressão privilegiadas, que os estudantes da ECo buscam dominar. A palavra DISCURSO também surgiu. É preciso construir a narrativa do que se quer contar, e neste caminho brilham CORPO e PERFORMANCE, destacam os jovens diretores e os repórteres em formação. Comunicação e teatro são também ESPELHO, num processo de busca pelo autoconhecimento, e INTERDISCIPLINARIDADE, num diálogo com outros saberes. Para fugir do discurso monolítico e antidemocrático, aparecem como qualidades fundamentais ATITUDE, PLURALIDADE e TROCA, a capacidade de aprender com o outro e ensinar o que se sabe. Os espetáculos de conclusão de curso trazem de Shakespeare a Beckett, passando por Hans Christian Andersen, Ana Maria Machado, Nelson Rodrigues e Pedro Almodóvar, além de autores contemporâneos e alguns estreantes, em textos originais ou livremente adaptados para os dias de hoje. Entre os temas encenados, destacam-se reflexões sobre gênero, racismo, espera, inclusão, automatismo da vida moderna e mobilização política. É a valorização do palco como lugar da catarse – papel que se renova ainda mais em tempos incertos como os que vivemos em 2016. A mostra com os espetáculos de conclusão do curso de Direção Teatral, dirigidos por alunos e orientados por professores, é uma tradição que vem desde 2001. A Revista “À Mostra” surgiu em 2008, inaugurando a parceria com o curso de Jornalismo. Parceria que se renova a cada ano e que aparece, com outras palavras, nas respostas dos alunos. Entre comunicação e teatro, a síntese é COMPARTILHAR, escreve um deles. Para uma aluna, a síntese é E, não a letra, a palavra, destaca, conjunção aditiva que traz a ideia de somar esforços. Entre comunicação e teatro, há, sobretudo, dizem os alunos, ENCONTRO, palavrinha que reúne tantas coisas... Encontro entre amores, entre a arte e sua linguagem, entre o diretor e seu público, entre o jornalista e seu texto, entre uma professora e seus estudantes, entre jovens e sua vocação. Como diria o poetinha, apesar dos desencontros, a vida é mesmo a arte do encontro. 3


SUMÁRIO -

04 ____ OCUPAR E RESISTIR Por Jacyan Castilho 08 ____ PROGRAMAÇÃO 12 ____ QUADRADINHOS Por Thaís Barros 13 ____ QUANDO PAREDES GANHAM VIDA Por Pedro Pessoa 16 ____ QUAL O TEU SEGREDO PRA SER TÃO PRETINHA? Por Beatriz Oliveira 17 ____ IDENTIDADE NEGRA EM CENA Por Suzana Devulsky 20 ____ REINVENTANDO SEM COMPLEXOS Por Danielle Câmara 21 ____ ENTRE O VAZIO DA ESPERA E A URGÊNCIA DA AÇÃO Por Irene Niskier 24 ____ SONHAR O SONHO IMPOSSÍVEL. ESSA É MINHA BUÇA? Por Mariah Valeiras foto: MÍDIA NINJA


25 ____ O MARAVILHOSO MUNDO DAS VAGINAS EMPODERADAS Por Ana Rosa Alves 28 ____ ENCENAAÇÃO 2016: VESTIDOS DE NELSON. O FEMININO E SEUS CORPOS Por Sander Machado 29 ____ DA ESCOLA PARA OS PALCOS DA VIDA Por Ana Carolina Barth e Marcio Raphael Rodrigues 32 ____ NÃO SE CALEM, GIRASSÓIS! Por Ana Carolina Mandolini 33 ____ DONAS DA PRÓPRIA HISTÓRIA Por Luísa Abreu 36 ____ ESTRADA ABERTA Por Bruno Marcos 37 ____ ACORDO DE CORAÇÕES Por Clara Wardi 40 ____ A ARTE DO ENCONTRO Por Silvia Galter 41 ____ DE OLHOS FECHADOS PARA SENTIR: A ARTE DA INCLUSÃO Por Ana Caroline de Melo 44 ____ PRIMEIRAMENTE #FORATEMER! Por Gabriel Morais 45 ____ ATRIZ, APRESENTADORA, MEGALOMANÍACA, OU SIMPLESMENTE PATTY DIPHUSA Por Cacau Farias e Helena Marques 48 ____ DIAGNÓSTICO BUFO Por Daniel Cintra 49 ____ EM TEMPOS SOMBRIOS, AS LIÇÕES DE UM SHAKESPEARE REVISITADO Por Julia de Cunto 52 ____ NELSON É O COMEÇO E O FIM Por Taís Feijó 53 ____ DE PERTO NINGUÉM É NORMAL Por Nadine Ximenes 5


OCUPAR E RESISTIR Por Jacyan Castilho Coordenadora do Curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação

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“Ocupar e resistir” tem sido o lema do movimento secundarista que, desde 2015, promoveu a ocupação de escolas públicas pelos próprios alunos do Ensino Médio, em uma tentativa de chamar a atenção da sociedade e cobrar dos governantes soluções em prol da melhoria das condições sempre degradadas destes prédios. A expressão deu também nome a um vídeo documentário realizado neste ano sobre o mesmo tema pelos estudantes da Faculdade de Educação da USP. O lema do movimento cai como uma luva para o momento atual para a classe artística brasileira, notadamente teatral, que, em iniciativa que grassou em todo o território nacional, ensejou a ocupação de prédios ligados ao Ministério da Cultura tão logo foi anunciada a medida, perpetrada pelo governo interino que depôs a Presidenta Dilma Roussef, de sua extinção (decisão rapidamente revogada, em parte possivelmente pela reverberação desta iniciativa em todos os estados brasileiros). A rigor, a classe artística brasileira – notadamente a teatral – sempre exercitou sua capacidade de resistir – à ditadura ideológica, à ditadura militar, à diminuição do público pagante, à concorrência com outras formas de diversão, à falta de segurança, à falta de patrocínio e de políticas públicas. À maneira do sertanejo, o fazedor de teatro é um forte. Porém, a iniciativa de ocupação dos espaços públicos é uma saída possível (talvez à única possível) que começa a se desenhar no horizonte há poucos anos. Não somente a ocupação de prédios, que tornem visível o estado de degradação das políticas culturais brasileiras, como também o de ruas, praças, espaços integradores de comunidades e grupos que, apartados pela polarização política e pelo fosso econômico, podem dialogar e se confrontar na construção destas novas políticas. O teatro sempre tem manifestado sua força de reação, todas as vezes em que é dado como morto. As artes cênicas tem um poder de infiltração, pelas frestas da democracia, dos orçamentos parcos, do cruzamento de linguagens, que tem garantido sua resiliência. Nossa “XVI Mostra de Teatro da UFRJ”, resultante de todas as limitações espaciais e orçamentárias que afligem hoje a Universidade pública brasileira (e que sofre a ameaça de aguçamento desta precariedade nos próximos anos) mostra muito mais do que trabalhos artísticos que se aventuram no cruzamento das fronteiras estéticas: mostra desejo de ocupação das ruas, mostra disposição para dramaturgias de nosso tempo e mostra a vitalidade deste curso de Direção Teatral que, a despeito de todas as adversidades, resiste e insiste no diálogo reflexivo com as artes cênicas nacionais. 7



foto: MAÍRA BARILLO

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PROGRAMAÇÃO 10/11 e 11/11 (QUI e SEX)

poderosa vida não orgânica que escapa

de diogo liberano direção: thaís barros classificação etária: 14 anos um edifício decide desabar. imagina quando as coisas que o homem inventou começarem a se desfazer?

22/11 e 23/11 (TER e QUA)

DONA QUIXOTA

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de Natã Lamego Direção: Mariah Valeiras Classificação Etária: 16 anos Dona QuiXota festeja a saga de uma heroína na descoberta da própria buceta. 24/11 e 25/11 (QUI e SEX)

15/11 e 16/11 (TER e QUA)

MENINA BONITA

criação coletiva a partir de contos e histórias populares Direção: Beatriz Oliveira Classificação Etária: Livre Cinco meninas se reúnem para contar a história de uma só – ou quem sabe de todas elas. Menina Bonita embarca em uma viagem sobre os seus antepassados para responder uma pergunta que não sai de sua cabeça: Qual o segredo pra ela ser, assim, tão pretinha? 17/11 e 18/11 (QUI e SEX)

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ATO VAZIO

livre adaptação de Esperando Godot, de Samuel Beckett Direção: Danielle Câmara Classificação Etária: Livre Três atores, um músico e uma marionete. Quatro personagens que esperam a salvação que nunca virá. A espera se transforma em ação. Jogo necessário à vida. Comicidade exposta pelo absurdo que é a própria existência humana. Ato vazio.

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VESTIDO DE NOIVA

adaptação da obra de Nelson Rodrigues Direção: Anna Padilha, Camila Simonin, Lilian Corrêa e Daniella Fiaux Classificação Etária: 10 anos Entre a vida e a morte, Alaíde oscila entre três planos: realidade, memória e alucinação. Em seus devaneios, encontra Madame Clessi, famosa cortesã assassinada 50 anos antes, enquanto descobre que sua irmã e seu noivo eram amantes e planejavam a sua morte. 29/11 e 30/11 (TER e QUA)

O SILÊNCIO DOS GIRASSÓIS de Isabelle Vasco Direção: Ana Carolina Mandolini Classificação Etária: 16 anos Marília e Claudio vivem um casamento falido. Berenice, a empregada do casal, é a alegria da casa. O que acontece quando um homem alimenta um desejo sobre uma mulher que não possui interesse algum nele e precisa do salário que ele lhe paga para viver? Essa peça é sobre medo, angústia, desconforto, mas também empatia e sororidade.


01/12 e 02/12 (QUI e SEX)

CONCÓRDIA, HORIZONTE INACABADO criação coletiva Direção: Bruno Marcos Classificação Etária: 16 anos Três atores vivem as dificuldades e os desafios de realização do trabalho em teatro político. 06/12 e 07/12 (TER e QUA)

Ô DE DENTRO

dramaturgia coletiva Direção: Silvia Galter Classificação Etária: 12 anos A peça Ô de dentro é um convite para que todos entrem e sintam histórias. Num ambiente aconchegante, uma atriz com características físicas muito especiais e um ator jovem pleno de seus recursos, usam o jogo que existe entre eles para superar suas diferenças e solidão.

15/12 e 16/12 (QUI e SEX)

DIABÓLICA

adaptação do conto homônimo e livremente inspirada em outras obras de Nelson Rodrigues Direção: Taís Feijó Classificação Etária: 16 anos Alicinha, de apenas 13 anos, comemora com a família o noivado de sua irmã mais velha, Dagmar. Através de flashbacks, a verdadeira história é contada pela ótica de Geraldo, o noivo. Seu confuso relato evoca imagens de um passado recente, marcado por ciúmes, ódio e um crime familiar.

08/12 e 09/12 (QUI e SEX)

eu_P@tty de Davi Giordano, livremente inspirado na obra de Pedro Almodóvar Direção: Gabriel Morais Classificação Etária: 16 anos eu_P@tty é um programa de televisão ao vivo.

13/12 e 14/12 (TER e QUA)

VENDEM-SE SHAKES PRA REIS criação coletiva Direção: Daniel Cintra Classificação Etária: 14 anos Uma família de bufões, vendedores ambulantes, vem anunciar o seu mais novo produto: qualquer um pode virar rei! Para mostrar a eficácia do produto, eles contam sua versão de Macbeth e suas desventuras como Rei da Escócia.

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Apresentações de TER a SEX, sempre às 20h, na Sala Oduwaldo Vianna Filho (Vianninha) | ECo/ UFRJ Distribuição de senhas 1 hora antes de cada apresentação – sujeito à lotação. Traga 1 Kg de alimento não perecível. Exceto: “Ato Vazio”: apresentação às 17h no Largo do Machado / “Dona QuiXota”: apresentação às 17h em frente à Escola de Comunicação, na rua dentro do campus da Praia Vermelha; ambas sem necessidade de senha. (Em caso de chuva, as peças serão apresentadas na Sala Vianninha, às 17h, mas com distribuição de senhas 1h antes).

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poderosa vida não orgânica que escapa de diogo liberano

Dentro de mim há um bocado de histórias que sinto necessidade de contar. São coisas que tenho visto e que me tocaram e espero que mais alguém as tenha visto do mesmo modo que eu. E sim, tenho raiva de tudo, assim como você tem, ao seu modo, mas minha raiva é parte do mecanismo que está direcionando a narrativa de minha história. Will Eisner

existe uma vida que as ciências vão declarar sem nunca terem sentido. uma poderosa vida que extrapola o cerne da questão, que chacoalha o eixo do sustento, posto não precise ser reconhecida. vida nua. poderosa vida sem finalidade que homem não vê, porque só vê homem aquilo que seus olhos entendem.

direção: thaís barros orientação: jacyan castilho assistência de direção: ana paula gomes elenco: andré locatelli, livs ataíde e pedro henrique müller iluminação: gabriela villela, gustavo dias, luiz buarque e pedro bretas cenografia: eduardo ferrera assistência de cenografia: ellen freitas orientação de cenografia: adriana milhomem figurino: bárbara faccioli e juliana valle orientação de figurino: suely gerhardt direção de arte: marcela cantaluppi produção: vitor emanuel preparação corporal: gabriela souza e renata araújo orientação de preparação corporal: lígia tourinho e maria inês galvão direção de movimento: andrêas gatto e natássia vello arte sonora: josé ricardo co-realização: teatro inominável imagens: diogo liberano e thaís barros 13


quadradinhos Por Thaís Barros Era fácil me encontrar nas manhãs de domingo dos anos 90. Com absoluta certeza eu estaria sentada no chão da sala, compondo a paisagem ao lado dos meus pais – cada um concentrado o bastante na leitura de sua parte preferida do jornal – com alguma revista da Turma da Mônica que seria lida novamente pela octogésima quarta vez. Com o passar do tempo conheci Alan Moore, Frank Miller e Will Eisner. Descobri que existia um mundo nas HQs que ia muito além de histórias voltadas ao público infantil não apenas pelos temas abordados, mas também por serem capazes de explorar ao máximo a capacidade literária e gráfica desse modo de contar histórias. A linguagem dos quadrinhos sempre me entusiasmou, principalmente por imergir o leitor no universo particular de cada narrativa e ao mesmo tempo fazer com que sua própria imaginação complete todas as lacunas que ficaram em branco. Está longe de ser uma história com figuras. As cidades mostradas nas HQs, muitas vezes fictícias, são parte fundamental para o desdobramento das histórias. E foi lendo o prefácio de “O edifício” (1987), de Will Eisner pela enésima vez – hábito que não me abandonou mesmo passada a infância – que percebi do que gostaria de falar no meu projeto de formatura. Presente numa coletânea de obras de Eisner que se passa numa mesma cidade, a graphic 14

novel coloca um edifício no centro da narrativa, onde a questão principal é o que acontece com a alma dos prédios quando são demolidos. Afinal, não é possível que “tendo feito parte da vida, eles não absorvam de alguma forma a radiação proveniente da interação humana”1. Nossa criação foi movida por esse ponto de partida. Dividi minhas inquietações e descobri o que aqueles que trilhariam esse caminho comigo pensavam sobre aquele prefácio. Partimos para a cidade observando de que forma a vida dos prédios que não estavam mais lá ainda resistia, enquanto Liberano e eu nos encontrávamos para descobrir como isso viraria dramaturgia. O trabalho – que acontecia em paralelo de forma proposital – nos foi surpreendentemente repleto de coincidências e mostrava dessa forma que algo de muito forte nos habitava. Talvez fossem os prédios que assistiam isso tudo acontecer. Em três meses fizemos perguntas a um prédio, tentamos imaginar o que ele nos perguntaria, criamos narrativas coletivamente (mas também sozinhos), escrevemos nas paredes, dançamos palavras. E principalmente, resolvemos dar voz a quem nem sabíamos que tinha coisas a dizer.

1 EISNER, Will. O Edifício. São Paulo: Editora Abril, 1989.


Quando paredes ganham vida Por Pedro Pessoa Se estivesse vivo, o cartunista “Will” Eisner ficaria lisonjeado ao assistir à peça poderosa vida não orgânica que escapa, escrita pelo dramaturgo fluminense Diogo Liberano. Se tivesse a oportunidade de sentar na plateia, o popularizador do conceito de Graphic Novel veria que, hoje, histórias em quadrinhos não são tão marginalizadas quanto na sua época e serviram de inspiração para um espetáculo de teatro. Uma das obras mais famosas de Eisner, “O Edifício”, de 1987, mostra como um prédio que desaba após 80 anos de existência ainda é capaz de deixar uma espécie de alma ou energia única naquele local da demolição. Durante todo esse tempo, pessoas se relacionavam com essa construção de diferentes formas. Quando o edifício deixa de existir, o valor objetivo de sua arquitetura desaparece, mas o subjetivo permanece. É notável perceber que isso acontece em outras referências urbanas, e não somente em um romance gráfico. Foi exatamente essa proposta que motivou a criação de poderosa vida. Na peça, três personagens circulam pelo ambiente hostil de três apartamentos. Reclamam do mau cheiro, das paredes sujas... Para entender melhor a história, os atores se lançaram em uma imersão na cidade a fim de contemplar estruturas urbanísticas que sofreram incêndios ou foram desgastadas e, posteriormente, reinventadas pelo ser humano. O Arco do

Telles e a antiga Torre Almirante, ambos no centro do Rio, são exemplos de locais modificados pelo tempo e pelo homem, mas onde ainda resistem memórias e narrativas de um passado presentificado para sempre. Quando um prédio é implodido, seja ele obsoleto ou novo, é comum pensar que aquilo foi uma tragédia, levando em consideração apenas a perspectiva do indivíduo. Mas e se esse prédio resolvesse cair por vontade própria? Seria algo ruim? Ou seria uma forma de este prédio, cansado de “conviver” com humanos, se livrar de tudo e todos e entrar em um movimento de libertação? É este edifício de vontades próprias que substancialmente caracteriza a temática da peça, que, por sua vez, consegue fazer o público mergulhar em uma onda reflexiva de muitos pés. Seguramente, quem assistir ao espetáculo passará a olhar para palácios, hotéis e museus sob uma ótica menos focada na qualidade material desses arcabouços e mais na memória desses espaços. E saberá que, mesmo que um dia eles deixem de existir fisicamente, suas essências continuarão vivas.

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MENINA BONITA

CRIAÇÃO COLETIVA A PARTIR DE CONTOS E HISTÓRIAS POPULARES

Direção: Beatriz Oliveira Orientação: Lívia Flores Assistência de Direção: Isabel Sanche

Elenco: Isabour Estevão, Juliana França, Rafaela Garcez, Ulli Castro e Yas Fiorelo.

Daí a alguns dias, voltou à casa da menina e

perguntou outra vez: - Menina bonita do laço de fita, qual é o teu segredo pra ser assim tão pretinha? A menina que não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada, quando a mãe dela resolveu meter-se e disse: - Artes de uma avó preta que ela tinha...

Iluminação: Anna Padilha e Silvia Galter Cenografia e Figurino: Thuanny Reis Assistência de Cenografia e Figurino: Mariana Neves Orientação de Cenografia e Figurino: Gilson Motta Produção: Anna Padilha Preparação Corporal: Cíntia Jocas, Leandro Marron e Taciana Moreira Orientação de Preparação Porporal: Lígia Tourinho e Maria Inês Galvão Imagens: Ashley Hafstead, Choppington, GIE Ernst & Young, Ian Winstanley, Pascal Maitre, Ruud Van Empel e Zena Kruzick 17


Qual o teu segredo pra ser tão pretinha? Por Beatriz Oliveira Menina Bonita nasceu da necessidade de visibilidade. A proposta de reunir uma equipe completamente formada por mulheres negras precisava ser posta em prática e experienciada – com todas as suas descobertas e dificuldades. O projeto foi feito para entender e mostrar um espaço que ainda está sendo conquistado que é o do negro (e principalmente da mulher negra) dentro do campo das artes, da universidade e, sobretudo, da cultura brasileira – espaços em que a influência do negro é constantemente ignorada. Como forma de ocupá-los e experenciá-los, construímos a história de uma criança negra que não sabe por que e nem o quê significa ter a cor da pele que ela tem, livremente inspiradas pelo conto de Ana Maria Machado, Menina bonita do laço de fita, e por lendas e narrativas da cultura afro-brasileira. Junto às mulheres da sua família e da comunidade em que vive, Menina Bonita embarca na aventura que é ouvir as histórias de seus antepassados para finalmente compreender partes do seu passado que não foram plenamente contadas. O espetáculo se classifica como livre para todos os públicos e é direcionado de forma especial para as crianças, por entender a infância como o melhor momento para introduzir e despertar o interesse de uma pessoa em um assunto tão importante e complexo. Cinco atrizes contam histórias baseadas em 18

lendas, mitos, contos e em alguns fatos recolhidos do que insistimos em chamar de cultura africana e/ ou afro-brasileira. Todas as atrizes se dividem entre personagens de cada história, que representam sempre algum momento da evolução da figura do negro na história do Brasil – e do mundo. Esses espaços são preenchidos e complementados pelo som da percussão e dessa música e ritmo que se originam do próprio corpo, que impulsiona as atrizes por essa linha do tempo, conduzindo as crianças até os dias atuais; expondo as belezas, as complexidades e o peso que é se entender negro. Contando histórias, as atrizes convidam o espectador à cena e se permitem experimentar formas variadas de representar personagens complexas, que muitas vezes são alegorias para significados muito maiores. Menina Bonita é a esperança de levar as crianças e cada espectador a uma caminhada de autoconhecimento, aceitação e compreensão de complexidades em torno do ver-se negro e reconhecer essa influência dentro de seus próprios costumes diários.


Identidade negra em cena Por Suzana Devulsky A atriz Yasmin Fiorelo se lembra da cena até hoje: brincava no parquinho com uma amiga de cabelo liso, a colega desceu no escorrega e uma das professoras notou que o cabelo dela arrepiava. “A professora me disse para descer; desfiz a trança e desci, mas meu cabelo não arrepiou. A decepção da professora era nítida. Meu cabelo era como uma piada ruim depois de uma piada muito boa”, conta. Histórias assim ajudaram Yasmin e outras quatro atrizes negras a encenar Menina Bonita, peça dirigida por Beatriz Oliveira e livremente inspirada no livro infantil “Menina bonita do laço de fita”, de Ana Maria Machado. No início da peça, cinco crianças negras encontram um velho mapa e lendas africanas. A partir daí, tentam entender suas raízes. O espetáculo é estruturado em cinco partes, num formato que remete à contação de histórias. Na primeira parte, “A Criação do Mundo”, é apresentado ao público o mito Iorubá do surgimento do mundo e dos seres vivos, além de uma explicação sobre tipos de cabelo e pele. Em “A princesa, o fogo e a chuva”, narra-se um conto de princesas africano. “Não pode ser só Cinderela, só Branca de Neve. Sempre senti falta de me sentir representada”, diz a diretora. O terceiro conto, “Felipa” ou “Bom Sucesso dos Pretos”, aborda a escravidão no Brasil e a resistência quilombola. “A menina e o Samba”, já mais recente,

trata da cultura negra no Brasil pós-abolição. Na quinta parte, as atrizes contam histórias autobiográficas. Beatriz quer levar a peça para escolas e ONGs, pois diz que a representatividade é importante sobretudo na infância. As crianças estão acostumadas a brincar com Barbie e assistir às princesas da Disney, e, quando não se reconhecem nessas imagens, não se sentem parte do “padrão de beleza” – exatamente como a menina do parquinho. O processo de criação foi coletivo. As atrizes pesquisaram lendas, participaram de dinâmicas para relatar vivências como mulheres negras, criaram as identidades de seus personagens e tiveram preparação corporal com dançarinos afro. O espetáculo mistura brincadeiras infantis, danças africanas e capoeira. Além da diretora e das atrizes, toda a equipe do espetáculo (com exceção do responsável pela produção e iluminação) é formada por pessoas que se identificam como negras. A diretora deixa claro, porém, que a peça é para qualquer um como brasileiro: “Quero mostrar que lugar de negro é no teatro sim, é na universidade sim”.

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ATO VAZIO

Livre adaptação de Esperando Godot, de Samuel Beckett

Direção: Danielle Câmara Orientação: Daniel Marques Assistência de Direção: Gabriella Vilella Adaptação: Danielle Câmara Colaboração artística: Carlos Eduardo Diaz

DIDI - O evidente é que o tempo, nestas condições, passa devagar e leva-nos a enchê-lo com ações que à primeira vista podem parecer razoáveis; e às quais estamos acostumados. Dir-me-á que é para impedir que nossa razão se nuble. Segue meu raciocínio?

GOGO - Todos nascemos loucos. Alguns continuam sendo.

Elenco: Alexandre Paz, Thiago Enoque e Thiago Ribeiro Direção de Arte: Anne Carestiato e Uirá Clemante Assistência de Direção de Arte: Julia Faria e Alessandra Almeida Produção: Gustavo Ciupryk Corpo e Movimento: Thiago Enoque Direção Musical: Felipe Tupinambá Músico: Raphael Gaspar Preparação Vocal: Eliana Buyatti Imagens: Anne Carestiato, Blog [conjunto vazio], Darshana Bühler, Emmanuel Buchot, Paulo Siqueira, René Magritte e Van Gogh. 21


Reinventando sem complexos Por Danielle Câmara Exatos dois meses desde a data do primeiro ensaio à data da primeira apresentação. E hoje, dia da escrita desse texto, me dou conta que estamos precisamente no meio do processo. Metade da unidade que representa um ciclo que se fecha ou se (re)transforma dentro da universidade e nasce para outras infinitas possibilidades relacionais com o mundo. Dois homens que esperam. Esperam por alguém, por uma salvação que não chegará. Absurdo! Ato vazio. Ato cheio. Ato cheio de vazio. Tempo. O absurdo desmascara o ridículo da existência humana e a comicidade aparece para nós como motor do próprio viver. “O tempo nessas condições passa devagar, e leva-nos a enchê-lo com ações...”, é o que diz o próprio Beckett, através de um de seus personagens. Assim, desde o nosso primeiro disparar, que iniciou com um SIM de toda equipe, estamos envolvidos em um jogo de ação e riso. Um processo coletivo, desafiador e inquietante que revela potencialidades, limitações e nos faz sentir que o jogo cômico é a chave para dialogar com esse clássico que nos inspira. A pintura expressionista é uma forte referência visual para esse jogo. Descreve exatamente os primeiros esboços de cena. Uma (des)forma, quase caricatural da existência desses personagens que, ligada à experimentação musical ao vivo, cria outras presenças. Esta montagem se pretende na rua. O chamado 22

da rua surgiu não só do meu desejo pessoal de experimentar nesse espaço criador de trabalho, que foi fundamental em minha formação acadêmica, mas também pela característica marcante que a rua apresenta de intensificar as teatralidades do cotidiano. Assim, ela se mostra necessária nesse processo, onde o risco é desejado. Os ensaios na rua, que acontecem desde agora, têm criado contornos específicos para nossas investigações. Têm nos ajudado a identificar novas possibilidades relacionais com o espaço e com os transeuntes/ espectadores. Sem falar, na potência política que revela rupturas no modo usual de habitar o tecido urbano. Além da rua, e da experimentação musical ao vivo, inesperadamente durante o processo uma marionete começou a ganhar vida. Sua manipulação chegou ampliando o campo do real, provocando ficcionalidades e estados de presenças no espaço-cena. A um mês da estreia, posso dizer que estamos imersos nessa aventura, brincando, descobrindo nossa forma de fazer. Desafiando o tempo. Reinventado Esperando Godot, sem complexos e fazendo da nossa espera um grande jogo cômico.


Por Irene Niskier

Entre o vazio da espera e a urgência da ação

Uma pausa no ensaio para recuperar a concentração. “Posso acender um cigarro?”. A diretora consente. Dois atores fumam. A luz do sol entra pela janela do segundo andar numa casa na Glória. Silêncio. “É difícil mesmo esse lugar da espera”. Com uma escaleta na mão, o diretor musical completa: “Agora vocês estão esperando de fato”. É isso que fazem em cena os dois protagonistas de Esperando Godot, de Samuel Beckett: esperar; esperar por um terceiro que nunca chega. A adaptação da obra por Danielle Câmara surge como Ato Vazio e pretende desconstruir o icônico texto do Teatro do Absurdo, preenchendo o vazio com ação. A inspiração veio de Vladimir, personagem da peça, que divaga sobre como ocupar o tempo que transcorre lentamente. Para Danielle, jogos cômicos de corpo foram o caminho encontrado. O jogo cumpre um duplo papel: descolar a narrativa da “não-ação” e preencher espaço e tempo, retirando a centralidade da palavra, “para não fazer dela a coisa mais importante”. Quando se joga com o corpo e com o cômico, emergem disputa e competição, e com elas escuta e abertura ao outro. O que se busca é a comunicação, que transmite os sentidos sem precisar enunciá-los. A abordagem é minimalista: espelhar ou reagir ao movimento do par, marcar “pequenas fotografias”; repetir à exaustão poses estáticas, acompanhadas ou

não do texto; concentrar-se no sapato que aperta o pé do personagem ou simplesmente ensaiar a espera. Os exercícios são o meio e o fim do estudo do desenho narrativo desse Godot. Se sobrar dele o bastante para discutir a condição humana, a missão terá sido cumprida, como resultado de um processo de investigação de linguagem onde houve lugar até para uma marionete. O desconforto de um processo de experimentação é latente, não bastasse o peso de encenar um clássico. Câmara acalma os atores: “Às vezes é pé no chão e às vezes tá no ar. Esse é o desafio para vocês. Esse é o desafio da peça”. Tudo aqui é desafio. Da escolha do texto à opção por transformar a rua em palco. Ato Vazio emerge em pleno Largo do Machado. Que outro espaço, senão a praça, poderia proporcionar o olho no olho necessário para falar de vazio, desespero e Humanidade em tempos difíceis como os nossos? Como disse um dos atores numa conversa do elenco, “talvez esse teatro que a gente está fazendo não seja mais do Absurdo, em vinte anos podem estar chamando de Teatro Apocalíptico”. Para tempos de barbárie, teatro como salvação.

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DONA QuiXota

de Natã Lamego

Direção: Mariah Valeiras Orientação: Adriana Schneider Assistência de direção: Ana Paula Gomes e Isabel Sanche Elenco: Anna Clara Carvalho, Fernanda Arrabal, Gustavo Ruggeri, Isabel Sanche, Júlia Carvalho, Mayara Yamada, Renan Guedes, Rúbia Rodrigues e Victor Newlands

Dona QuiXota - Você também se sentiu usadx, impotente, lixo, quando passaram com uma carroça sobre a tua escolha? Tatu tava em cima ou embaixo da carroça? Foi sangrento esse mar de pedras? Lavar a boca com sabão pra tirar o gosto do barro. Mudar o mundo não é loucura. Não é utopia. É justiça.

Cenografia e Figurino: Fabiana Mimura Direção de Arte: Renan Guedes Direção de Produção: Luiza Toschi Produção: Júlia Carvalho Preparação Corporal: Tarso Oliveira Orientação de Preparação Corporal: Ligia Tourinho e Maria Inês Galvão Pesquisa Musical: Bel Baroni Colaboradorx do olhar: Maíra Barillo Colaboradorxs dramatúrgicos: Gustavo Ruggeri e Thainá Moura Amigxs parceirxs: Anna Duran, Cassia Lyrio, Daniel Cintra, Diogo Villa Maior, Filipe Duarte, Gaya Rachel e Giulia Del Penho e Rafael Turatti Co-realização: Companhia Volante e Coletivo CASAVAZIA Imagens: Maíra Barillo (fotos) e Cassia Lyrio (grafite) 25


Por Mariah Valeiras

Sonhar o sonho impossível. Essa é minha buça?

Louvadas sejam todas as Deusas! Dona QuiXota: Para sempre Xanas Louvadas! Vagina. Babaca. Buceta. Xana. Xereca. Xota. Xoxota. Xiri. Pepeca. Popoca. Palala. Titita. Cabaça. Katchanga. Esfihuda. Fenda. Rachadura. Peludinha. Barracuda. Bacalhau. Bacurinha. Buça. Buçanha. Tabaca. Racha. Tchaca. Pombinha. Florzinha. Coisinha. Menininha. Sonia. Pixoca. Sirica. Concha. Cona. Beição. Cachuleta. Lindinha. Pamonha. Triângulo. Borboleta. Gulosa. Perereca. Taturana. Nhanha. Prexeca. Passarinha. Tchonga. Quentinha. Tixé. Ximbica. Velcro. Xavasca. Xulipa. Periquita. Tchutchuca. Vulva. Aranha. Banguela. Xampola. Barata. Taioba. Xoroxota. Pastel de cabelo. Levanta Astral. Cláudia Ohana. Leona. Chiquita. Neide. XereQui. Cecetoráculo. Emburacada. Dona QuiXota. Bora falar com elas?

apologia, guerrilha e dedicação - daquelas que só param quando gozam. DT: QuiXoteira, sabemos que há muita gente para contar sua história. Como se explica a presença dos desbucetados na equipe do espetáculo? DQ: É só pronunciar meu nome que o raio bucetizador se presentifica e agrega. Uma tanta de gente foi chegando, fazendo junto, massagrelando... Se tiver respeito e resmamilos, eu acolho. Agora, se quiser falar mais alto Qui eu, pica de fora mesmo... DT: E por que uma peça grotesca na rua falando sobre a tabaca? DQ: Porque é bonita ser feia! Dona Qui chegou assim já – pedindo Espaço! E espaço público... Nada de siririca batida embaixo do cobertor. Tem pêlo sim, tem cheiro sim, tem dente, tem kung fu,

Bate-se uma siririca. Racha o tabuceta. No corpo, criaturas atingidas pelas águas claras e grudentas ganham vida. DT: Dona Qui, você pode falar um pouQuinho da relação entre fazer teatro e um orgasmo vaginal? DQ: Tesão. DT: Hmmm... E como foi sua descoberta da siririca? DQ: Um chamado Xanático. Dona Qui chegou como a filha da raiva e da alegria. Uma dor imensa. E um prazer imenso. Nasceu em uma, mas cresceu no encontro de várixs. Virou bagunça, liberdade, revolução, grito, ode, treme rito, celebração,

tem aparelhagem. É Festa! AQui se fala alto, grita até. DQ: EU QUERO VER TU ABRAÇAR O CHEIRO DA TUA BACURINHA E SER FELIZ! Dona QuiXota conta com muitas presenças pra atualizar uma Festa esquecida. Fenda aberta na rua. Rachadura no chão. Barraca de esfiha, pastel de cabelo, bacalhau, pamonha e ostra. Toca música e Bate palminha. Levanta Astral que a pombinha voou. A taturana queima. Quem vai pegar na própria periquita?! O sangue da Vagina tem poder. DQ: Xaném!

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Por Ana Rosa Alves

O maravilhoso mundo das vaginas empoderadas

Há um quê religioso em Dona QuiXota – um caráter ritualístico, de adoração. Não é à toa que o espetáculo é montado como uma festa popular, daquelas que contam com mitologias próprias e que comovem gerações. Aqui, entretanto, o objeto de adoração é outro. Não se celebram santos ou folclores, mas vaginas. Dona QuiXota é um universo paralelo em que o falocentrismo, a hegemonia simbólica do órgão sexual masculino, dá lugar ao seu antônimo. A peça carrega em seu nome uma homenagem ao clássico de Cervantes. Do original, mantém a comicidade, a irreverência e a fantasia, inspirando-se nele para construir o mundo novo de QuiXota e sua parceira, Fancha Pança. A nova narrativa, porém, não trata de cavaleiros, mas da celebração do órgão feminino e da desconstrução (e destruição) dos estigmas que a sociedade lhe força a suportar. “É um ‘tabuzão’, e pretendo que a gente possa brincar um pouco com isso”, diz a diretora Mariah Valeiras. E ela brinca. No mundo em que construiu, ter uma vagina é motivo de orgulho e prazer – é formativo, sagrado. Se a mera menção ao órgão já é, em muitos casos, motivo de embaraço social, Mariah faz questão de abolir quaisquer constrangimentos desde o início. No aquecimento dos ensaios, os membros do elenco correm enquanto lançam entre si uma vara:

quem arremessa deve gritar um dos vários nomes que a vagina pode ter. Xota, xana, boceta – que todo mundo pronuncia como buceta, com “u”, mas se escreve boceta, com “o” mesmo –, designações escapatórias de um povo que sente medo de chamá-la pelo que ela é. Dona QuiXota busca transformar esta opressão em poder. A sacralidade do genital feminino no mundo de QuiXota reflete-se na montagem do espetáculo. Ao invés da sala Vianninha, a opção foi pela frente da Escola de Comunicação da UFRJ. Dona QuiXota transcende o palco e vai à rua contar sua história. Inspirada nos festivais que tomam praças, o espetáculo assume a forma de uma festa popular: a celebração de uma cultura que louva a vagina ao invés de escondê-la. Dona QuiXota é, assim, uma festividade. Tudo gira em torno da vagina e sua força, sobre seu mundo ainda pouco explorado. Alguns dirão que esta é uma jornada desconfortável. O empoderamento incomoda e revolta quem ainda, por tradição, cisma em tratar a vagina como um tabu e o prazer feminino como sujo e pecaminoso. Os desagrados, contudo, indicam que há uma nova narrativa despontando – e Dona QuiXota faz parte desta virada.

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VESTIDO DE NOIVA

Adaptação da obra de Nelson Rodrigues

MULHER DE VÉU - Nunca fiz o que você fez comigo: tirar o único homem que eu amei! (com a possível dignidade dramática) O único! Deu em cima dele, uma vergonha! ALAÍDE - (sardônica) Tenho culpa se você não sabe reconquistar um homem? Tenho?

MULHER DE VÉU - (agressiva) O que me faltou sempre foi seu impudor. ALAÍDE - (rápida) E quem é que tem pudor quando gosta?

Turma 22 A Direção: Anna Padilha Direção de Movimento: Thaisa Faustino Orientação: Andrea Pinheiro Elenco: Ana Carolina Barbosa, Camila Laeber, Giovanna Caruso, Ítalo Brenno, Luana Aguiar, Matheus Correia, Vinicius Barros e Yhan Monserrat

Turma 22B Direção: Camila Simonin Direção de Movimento: Maicon Lima Orientação: Celeia Machado Elenco: Caio Gondim, Daniel Norberto, Isabela Filardi, Karen Brêda, Lola Harrington e Rogério Sampaio Turma 22 C Direção: Lilian Corrêa Direção de Movimento: Emanuelle Dias Orientação: Andrea Pinheiro Elenco: Gustavo Vianna, Luan Machado, Manuela Parente, Maria Isabel Ferreira, Thales Fernandes e Yasmin Farias Turma 22D Direção: Daniella Fiaux Direção de Movimento: Bruno Damião Orientação: Celeia Machado Elenco: Adrielle Mont Serrat, Ana Mariza Passos, Eduarda Teodoro, Francesco Auditore, Glenda Mota, Isabella Loureiro, João Pedro Fassbender e Patrick de Assis Almeida Iluminação: Edney Paiva e S.U.A.T. Figurino: Maria Luísa Marques Orientação de Figurino: Fátima Novo Visagismo: Francisco Leite Identidade Visual EncenaAção e Texto: Sander Machado Produção Executiva: Giullia Luciano Imagens: Acervo do EncenaAção e Ana Carolina Barth. 29


EncenaAção 2016: Vestidos de Nelson O Feminino e seus corpos Por Sander Machado Há quase 30 anos atrás uma cena me enojou muito. Dentro do ônibus, um homem se esfregava em uma menina que visivelmente se constrangia e não sabia o que fazer. Não era só eu quem via, todos viam. Não era só eu quem não fazia nada, ninguém fazia nada. De lá pra cá, nada mudou? Mudou, sim. Não na velocidade que queríamos, mas na velocidade da luz: luz da consciência, da reflexão, da ação. As mulheres trocaram a palavra perdão, por luta. Trocaram a palavra piedade, por enfrentamento. Trocaram abuso, excesso, agressão e violência por “meu corpo, minhas regras”. Nelson Rodrigues escreveu Vestido de Noiva aos 31 anos de idade. Era sua segunda peça e ele certamente não imaginava que estava criando uma ruptura. Vestido de Noiva coloca o dedo na ferida das relações femininas no espaço familiar. Vida e morte, razão e loucura. No entra e sai de nossas vidas, nos tornamos “Alaídes”. Esperançosos de entender a faca que corta os nossos destinos. Alguns vão dizer que esse mundo está de cabeça para baixo, mas essa gurizada vai dizer que mulheres são pessoas e que pessoas merecem ser tratadas umas iguais às outras. O machista vai dizer que mulher tem que ganhar menos mesmo e assim, o Brasil apresenta um dos maiores níveis de disparidade sa30

larial, com as mulheres ganhando 30% menos que os homens. Já esse tablado vai mostrar que querer igualdade é querer igualdade para todos. Datada de 1943, Vestido de Noiva é uma representação do subconsciente da protagonista: passado, presente e futuro, sem tempo e sem agora. Um liquidificador de momentos que rompem com a linearidade. Aqui, você vai ver que cada personagem tem dentro de si o fim da Eva, da Amélia, da santa castigada. Descarregar o que nos dá vazio é permitir se carregar do que nos preencherá. O EncenAção 2016: Vestidos de Nelson é feito por meninas que amam e meninos que percebem que meninas amam. Quando as cortinas se abrirem, lembre-se: eles e elas não querem mais que mulheres sejam tratadas como produtos, como estereótipos do próximo comercial de TV, como iscas, moedas, nem que sejam espancadas, violentadas e absurdamente assassinadas por serem mulheres. Fazem do palco seu manifesto: Encontraram na arte o jeito revolucionário de expressar suas contradições contra desumanas tradições. Quando o que se passa não passa como ponto final, é aí que criamos pontos de partida.


Da escola para os palcos da vida Por Ana Carolina Barth e Marcio Raphael Rodrigues Dentro de uma sala de aula, um grupo de jovens se reúne para debater uma peça. Em suas mãos, não apenas o script, mas uma ferramenta para mudar o mundo. A mensagem deles é clara: “A gente existe!” E não só existe como escolheu a obra Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, para mostrar isso. O espetáculo é o resultado do EncenaAção, parceria entre o curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação e o CAp (Colégio de Aplicação) da UFRJ. Reúne quatro bolsistas de Direção Teatral, quatro de dança, um de figurino e outro de produção. O elenco é formado por 29 alunos do CAp-UFRJ. Muito se escuta que é preciso apenas estudar para conseguir o pão de cada dia. Mas os integrantes do EncenaAção discordam disso com uma frase de Nelson Rodrigues: “a liberdade é mais importante que o pão”. Nas paredes do Colégio de Aplicação, mensagens dão os recados de uma parcela mais engajada da juventude brasileira: chega de violência, preconceito, machismo… “A arte é essencial. Principalmente no Brasil, país em que a gente tem uma política totalmente injusta. A arte engloba tudo, a matemática, física, filosofia. No teatro, é a hora de canalizar nossa vivência. Isso é necessário na escola”, aponta Lilian Corrêa, estudante de Direção Teatral e co-diretora do EncenaAção 2016. Encenada pela primeira vez em 1943, Vestido

de Noiva é uma trama que gira em torno da figura da mulher. Começa com a história de Alaíde, uma jovem que iria se casar, mas é atropelada. Outras mulheres vão surgindo, e estas personagens serviram de inspiração para uma abordagem da questão feminina na sociedade atual. No decorrer da história são apresentados três planos: memória, alucinação e realidade. Para deixar claro ao espectador quando cada um deles está em cena, os atores realizam um jogo de luz com lanternas. Para Daniella Fiaux, também co-diretora do projeto e estudante de Direção Teatral, o teatro se propõe a dar voz a uma crítica social, a uma causa. “É isso que nos faz querer montar essa peça. Ela tem tudo pra gente falar sobre o que está acontecendo, essa questão do feminismo e do papel da mulher na sociedade atual”, completa. Em meio à crise na educação, a “XVI Mostra de Teatro da UFRJ” irá acontecer esse ano apenas durante os dias da semana. Por falta de verbas e pessoal, a Escola de Comunicação não está abrindo as portas aos sábados e domingos. Mas a luta que começa em sala de aula continua no teatro. O show tem que continuar.

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O SILÊNCIO DOS GIRASSÓIS de Isabelle Vasco

Direção: Ana Carolina Mandolini

Orientação: Andrea Stelzer Assistência de Direção: Beatriz Santa Rita Elenco: Isabelle Vasco, Mathias Bildhauer, Tathiana Loyola e Thiago Torres

Todo dia os dois tomavam café da manhã juntos, independente das circunstâncias. As mesas estavam sempre com flores, os dias eram sempre alegres. Ou pelo menos eu achava. Até que um dia tudo isso mudou. Uma cena que eu nunca imaginei que fosse acontecer comigo, aconteceu...

Iluminação: Laís Patrocínio, Larissa Guimarães, Paula Malheiros e Paloma Palácio Cenografia: Anna Catharina Assistência de Cenografia: Lívia Charret e Miriam Guilarducci Figurino: Clara Garritano Assistência de Figurino: Luísa Ferrari Orientação de Cenografia e Figurino: Gilson Motta Produção: Giullia Luciano Preparação Corporal: Carol Oliveira Orientação de Preparação Corporal: Ligia Tourinho e Maria Inês Galvão Pesquisa Musical e Trilha Sonora: Rebecca Nora Imagens: Andrés Kal, João Gabriel Mandolini, Noell S Oszvald e Thomas Saliot 33


Não se calem, girassóis! Por Ana Carolina Mandolini Falar sobre esse processo não é fácil. Fazer esse projeto acontecer não foi fácil. É uma mistura de sentimentos que nunca senti na minha vida. É ansiedade todo dia, e é alegria todo dia. É também muita nostalgia, afinal estou me formando em Direção Teatral. Quando entrei aqui, em 2011, eu não tinha a menor noção de tudo que eu ia viver dentro dessa faculdade, de tudo que eu ia aprender. E agora, quase seis anos depois, aqui estou eu, com um espetáculo que me orgulha e me emociona muito. É todo um pensamento de vida posto em cena. É o ideal de um mundo menos machista, menos abusivo, e mais igualitário. É a esperança de mudá-lo um pouquinho que seja. É o meu jeito, e o de todos os envolvidos, de fazer a nossa parte. Aliás, toda gratidão e amor do mundo aos envolvidos (que não são poucos). Nada sairia do papel se não fosse por eles. Tive a sorte de encontrar pessoas maravilhosas, que me ajudaram muito ao longo desses últimos meses. Devo tudo isso a eles. Este é um espetáculo que luta por uma sociedade mais empática, que luta pelo empoderamento feminino e pela sororidade, afinal só uma mulher pode realmente entender o que a outra passa nesse mundo machista, só uma mulher pode entender o sofrimento da outra. É uma luta diária. É sair de casa torcendo para que nada de ruim aconteça naquele dia. É nunca se sentir totalmente livre para ser quem desejamos ser. 34

É se preocupar constantemente com os homens ao seu redor, e seus olhares, seus toques “desintencionais” e seus comentários inapropriados a respeito de seu corpo. É se sentir um pedaço de carne a ser observado na vitrine de um açougue. É você mudar de calçada como recurso para não passar por esses constrangimentos. É você acabar se culpando por achar que poderia ter evitado algum tipo de abuso sofrido. Essa peça também é para eles. É para que eles reflitam, repensem suas atitudes e mudem. Que as mulheres não se sintam culpadas. A culpa não é sua. A sociedade precisa aprender a parar de culpar a vítima. A culpa de um abuso sexual é do agressor e sempre será. Que todas as mulheres possam dar as mãos e caminhar juntas. Que possamos sempre nos unir e nos ajudar. Que os girassóis não se calem. Que os girassóis não se deixem murchar e denunciem os abusos que testemunham. Essa peça é sobre opressão e abuso, mas também sobre encontrar forças em si mesma e nos que te rodeiam para a superação. É saber que você não está sozinha. Você não está sozinha!


Donas da própria história Por Luísa Abreu Quando começou a pensar no projeto de conclusão do curso de Direção Teatral, Ana Carolina Mandolini sabia que queria falar de mulheres. Deparou-se com um problema: “Eu não estava achando, no contexto brasileiro, textos teatrais sobre feminismo em que as mulheres fossem autoras”, relembra. Decidida a dirigir uma peça sobre feminismo e sororidade, a solidariedade entre mulheres, Ana Carolina optou por um texto novo e levou a ideia à amiga Isabelle Vasco – que, apesar de nunca ter escrito uma peça teatral, não pensou duas vezes diante da proposta. A peça O Silêncio dos Girassóis começou a sair do papel. “Quando a Ana Carolina me mandou a ideia principal do projeto, escrevi uma cena no bloco de notas do celular mesmo. Daí todas as outras cenas foram surgindo rapidamente. Eu me inspirei nos textos que já li sobre o assunto e em todos os casos que conheci de mulheres que relataram relacionamentos abusivos”, conta Isabelle. A trama se passa em um ambiente familiar na Zona Sul do Rio, onde vivem Marília (Tathiana Loyola) e Cláudio (Thiago Torres), um casal classe média que tenta ter um filho, mas não consegue. Ele é cardiologista e ela é professora universitária. Quando estão juntos, há entre os dois um silêncio enorme e uma sensação de tédio. Com esforço, Marília tenta manter

o casamento de pé, enquanto Cláudio parece viver em um mundo à parte. A relação é marcada por um sentimento de culpa constante que ele coloca nas costas dela. A jovem Berenice (interpretada pela própria autora, Isabelle Vasco) trabalha como empregada doméstica para o casal e vive com medo da presença do patrão Cláudio, que não esconde o seu desejo por ela, até o dia fatídico do abuso sexual. Na contramão de todo o drama e sofrimento, está o inocente e apaixonado Pedro Antônio (Mathias Bildhauer), aluno de Marília que tenta conquistá-la. Para Ana Carolina, é difícil transformar uma sociedade construída nos moldes patriarcais em uma sociedade igualitária, mas a diretora não esconde o desejo de causar um sentimento de identificação, reflexão e, por fim, mudança no espectador. “Talvez seja utópico, mas nossa ideia é, através de um texto crítico e reflexivo, tentar mudar, pelo menos um pouco, essa sociedade machista, contribuindo para o empoderamento das mulheres. Todo mundo conhece ou conheceu alguém que vive em um relacionamento abusivo. Os nomes são Berenice, Marília e Cláudio, mas poderiam ser outros. Somos todos nós”, explica.

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CONCÓRDIA, HORIZONTE INACABADO Criação Coletiva

Direção: Bruno Marcos

Orientação: Carmem Gadelha Assistência de Direção: Ian Calvet Coordenação de Dramaturgia: Bruno Marcos

Os acordos são provisórios, as bases precárias, os caminhos estão por um fio e as forças de atuação por vezes são invisíveis. É preciso ver o que se vê com cuidado, observar se o mísero corpo em cena está com algum coelho na cartola, ou mesmo se é de carne a sua constituição.

Elenco: Dieymes Pechincha, Juliana Caetano e Natalia Conti Iluminação: Laís Patrocínio, Larissa Guimarães, Paula Malheiros e Paloma Palácio Equipe de Dramaturgia: Anita Ayres, Bruno Marcos, Dieymes Pechincha, Felipe Eugênio, Ian Calvet, Juliana Caetano e Natalia Conti Cenografia e Figurino: criação coletiva Produção: Felipe Valentim Preparação Corporal: Douglas Lopes Orientação da Preparação Corporal: Lígia Tourinho e Maria Inês Galvão Imagens: Henri Cartier Bresson 37


Estrada Aberta Por Bruno Marcos As consequências dos desarranjos sociais são estragos que se sedimentam nas lacunas da história, feito rochas paleolíticas. De nosso passado recente experimentamos na carne um processo disjuntivo entre teatro e política. Quer encontremos felizes ou infelizes dissonâncias, esta disjunção ressoou nas múltiplas cenas produzidas e configurou-se como tendência. A tendência que apresento como hipótese teve um abalo quase sísmico com as agitações políticas dos últimos anos. Aquilo que se vê nas ruas, nas praças, no Congresso, nas redes sociais, não mais poderia passar ileso, ou seja, a dimensão pública e política convoca os cidadãos e, neste caso, os artistas, a tomarem partido nesse processo de acirramento da luta de classes. Concórdia, Horizonte Inacabado, portanto, engendra-se a partir dessa pressão social. A ficção desenvolve-se a partir das dificuldades de realização de um trabalho no campo do teatro político. Três atores estão às voltas com a realização de uma peça e constatam as possibilidades e impossibilidades do projeto. O caráter metalinguístico do espetáculo pretende usar as próprias discussões e situações no âmbito do teatro como farol para possíveis reflexões sobre a conjuntura social que extrapola os limites da cena. Em Um grito parado no ar, texto de Gianfrancesco Guarnieri, um grupo de atores atormentados 38

pela Ditadura Militar vive intensamente os limites daquilo que pode ser dito num regime de exceção. Embora não vivamos numa conjuntura idêntica, centelhas de cerceamento começam a brotar no seio de nossa frágil democracia burguesa e a nebulosidade do futuro próximo carece de debate. Além da peça de Guarnieri, o trabalho orientase pelas fundamentais influências de Bertolt Brecht, Teatro de Arena e Cia do Latão, procurando assim conjugar uma pesquisa com bases no realismo crítico, na formação social brasileira e nas contradições do mundo de hoje. A feição ensaística da peça pretende fundir teoria e prática para estabelecer uma relação dialética e inacabada com as imagens postas em cena. Deste modo, tentamos ensaiar algumas perguntas e formular precárias respostas para a contribuição que a linguagem teatral pode dar para tempos sombrios. Espero que o trabalho se configure como um pontapé inicial para a formação de um núcleo de pesquisas cênicas acerca de uma possível estética de teatro político nos dias de hoje. Portanto, que a minha conclusão do curso, como todo o acúmulo que aqui obtive, seja parte fundante da estrada que se prefigura.


Acordo de corações Por Clara Wardi Concórdia quer dizer acordo de corações, alguma circunstância em que existe harmonia ou entendimento. É também o título do espetáculo de conclusão de curso de Bruno Marcos, numa montagem que aborda o conteúdo e o processo do teatro político a partir da improvisação e imitação da vida dos atores. Cal, Eli e Mia, personagens centrais na história, são ativistas políticos que tentam montar uma peça com o pouco de figurino, estrutura e apoio que têm. A vida imita a arte e vice-versa. Os atores Dieymes Pechincha, Natalia Conti e Juliana Caetano tentam fazer o mesmo a partir de condições igualmente desmotivantes: falta de espaço, verba e incentivo. Enquanto na ficção os personagens usam um vestido feito de sacola plástica para compor o figurino, o som das obras do Palácio Universitário da Praia Vermelha invade o ensaio na Sala Vianninha, cheia de buracos no piso e com iluminação precária. A peça, com seu caráter político, critica as condições da produção teatral vigentes e discute o papel da arte, mais especificamente do teatro, nas transformações sociais. “Mas fazer teatro político com três atores?!” É a pergunta que surge na trama e, provavelmente, surgirá na plateia. “Por que não?”, indaga Bruno. O elenco zomba desse engessamento e tenta fugir da cartilha do teatro político. “Queremos colocar mais beleza, poesia e liberdade nas formas”, diz o diretor. Apesar

de ter Bertolt Brecht (principal formulador da dramaturgia política) como inspiração, o grupo não quer imitá-lo, mas tomá-lo como referência e, sobretudo, entendê-lo. O processo democrático de produção da peça faz jus ao acordo de corações proposto por Bruno, a partir da liberdade e da autonomia dada à equipe para o trabalho. Entretanto, a desarmonia entre os três personagens entra em contradição com essa proposta. Segundo Bruno, essa oposição é proposital à medida que “o pacto de corações passa por cima das desavenças, mantendo viva a chama dos acordos”. O teatro fala de si durante a peça, despertando a sensação de mistura entre realidade e ficção. O estranhamento, sentido de outras formas, provoca o espectador a não aceitar tudo o que vê, fazendo-o refletir sobre o que está presenciando de fato. No palco, os poucos objetos em cena ganham significados diferentes ao longo da peça. Quem disse que um guarda-chuva só serve como tal? Em busca de um novo caminho em que todos entrem em acordo, Concórdia explora a infinidade de lugares por onde a linguagem da dramaturgia pode andar.

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Ô DE DENTRO

Dramaturgia Coletiva

Direção: Silvia Galter Orientação: Jacyan Castilho Assistência de Direção: Lorena Rodrigues Elenco: Alexandre Marzullo, Bruno Parisoto e Paulina Maria

Como é grande a minha dor e a minha solidão, quem pode viver senhor sem ouvir uma canção? […] Como a vida é forte em suas algemas. Como dói a vida quando tira a veste de prata celeste. Como a vida é bela sendo uma pantera de garra quebrada. Como a vida vale mais que a própria vida sempre renascida em flor e formiga

Iluminação: Fernanda Arrabal, Jocianne Carvalho, Lilian Corrêa e Lucas Massano Cenografia: Renata Moreira e Márcio Rosa Assistência de Cenografia: Lulu Carvalho Figurino: Lorena Rodrigues Assistência de Figurino: Ana Ferraz e Lanna Eugênia Pires Orientação de Cenografia e Figurino: Gilson Motta Produção: Issacarla Arts e Luiz Fernando Picanço Preparação Corporal: Rodrigo Patriota Orientação de Preparação Corporal: Ligia Tourinho e Maria Inês Galvão Pesquisa Musical: Alexandre Marzullo Preparadora Vocal: Verônica Machado Imagens: Clara Castañon 41


A arte do encontro Por Silvia Galter Em Minas Gerais, assim que as visitas chegam à casa de alguém chamam desde o portão: “Ô de dentro!” E quem está dentro, logo responde: “Ô de fora!” para indicar que quem está fora pode entrar. Isso vem de uma tradição antiga e ainda hoje quando você está em algumas cidadezinhas de Minas, ouve as pessoas gritando: “Ô de dentro!” Fruto do aprendizado coletivo, este espetáculo, nasceu do desejo de se pensar em acessibilidade/ inclusão e da reflexão sobre o papel dos sentidos em nossa vida. Sabemos que por causa da correria diária raramente prestamos atenção aos pequenos detalhes e nossa percepção seletiva nos faz ignorar muitas coisas. Todavia, quando diminuímos as passadas, respiramos fundo e nos permitimos parar para sentir, damos novas possibilidades para estas experiências. Ao se referir à vida, Carlos Drummond de Andrade, diz: “Como a vida é forte em suas algemas. Como dói a vida quando tira a veste de prata celeste. (...) Como a vida é bela sendo uma pantera de garra quebrada. Como a vida é louca estúpida, mouca e, no entanto chama a torrar-se em chama. (...) Como a vida vale mais que a própria vida sempre renascida em flor e formiga em seixo rolado peito desolado coração amante.” (“A palavra mágica”, 1997). Ele nos mostra que a vida é feita de relações, diferenças, medos, angústias, sorrisos, alegrias, etc.; 42

cada ser tem sua forma única de vivenciá-la e somos quase uma extensão do outro que nos cerca. Sentir um pouco do que ele sente e refletir sobre as diferenças (neste caso, a deficiência visual), nos faz entender que a falta de convivência gera o medo, o distanciamento e a ignorância. Por isso, além da visão, neste espetáculo, queremos aguçar os outros sentidos: tato, olfato, audição e paladar no intuito de sensibilizar o público à potência destes canais de percepção e imaginação. Na verdade, a peça Ô de dentro é um convite para que todos entrem e sintam histórias. Num ambiente aconchegante, uma atriz com características físicas muito especiais e um ator jovem pleno de seus recursos usam o jogo que existe entre eles para superar as diferenças e evidenciar que o mais importante é perceber as potencialidades das pessoas, ao invés de suas limitações, para que possamos aprender com elas e com nós mesmos a arte do encontro.


De olhos fechados para sentir: a arte da inclusão

Por Ana Caroline de Melo

Imagine que você, sem enxergar, tem apenas olfato, audição, tato e paladar para perceber o mundo. Imaginou? Ô de dentro! nasceu do desejo de pensar em inclusão nos palcos e da reflexão sobre o papel dos sentidos. Silvia Galter escolheu o imponente Imperador da China e o gracioso Rouxinol, personagens de um conto de Hans Christian Andersen, livremente adaptado para seu espetáculo de conclusão do curso de Direção Teatral. Ambientada em uma casa de campo, a peça conta a história de Dudu (Bruno Parisoto) e dos percalços vividos por ele e sua avó Zenólia (Paulina Maria), que é a única cega da cidade. O conto de Andersen embala a relação entre os personagens em forma de músicas e fragmentos. Repleta de detalhes e reflexões, a narrativa, esclarece Silvia, é para ser sentida: “Historicamente, teatro é lugar para ver e ouvir. Mas, nessa peça, os sentidos além da visão serão explorados”. A equipe de produção atua como orientadora do público, que será convidado a vendar os olhos e sentir como é a experiência no teatro para um cego. “Através da voz, vamos fazer a descrição dos personagens e sua casa. Depois, os não deficientes terão a opção de continuar ou não vendados”, explica Silvia. Orientada por Jacyan Castilho, doutora em Artes Cênicas e coordenadora do curso de Direção

Teatral, a aluna-diretora vem pesquisando a estética teatral inclusiva desde 2015, quando participou da Oficina Criativa para crianças deficientes visuais no Instituto Benjamin Constant (IBC). Silvia conta que uma das motivações para projetos assim é o fato de sentir os reflexos do preconceito em família. “Minha irmã tem 21 anos e um problema na fala. Tivemos que aprender a lidar com a discriminação em diversos aspectos. Isso influencia minhas escolhas. Na primeira peça que dirigi na UFRJ, falei sobre deficiência física, na segunda sobre saúde mental, agora a deficiência dos sentidos. Sou muito chamada por isso”, afirma. “Nada sobre nós, sem nós”, lema de movimentos que cobram inclusão e acessibilidade, move o projeto. No palco, o músico Alexandre Marzullo cuida da trilha sonora; o ator e aluno da Direção Teatral Bruno Parisoto e a deficiente visual Paulina Maria, de 76 anos, contracenam e superam diferenças, construindo juntos uma narrativa, além de quaisquer limitações. Convite que se estende a quem vê o espetáculo: entrar e sentir histórias.

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eu_P@tty

de Davi Giordano , livremente inspirado na obra de Pedro Almodóvar

Direção: Gabriel Morais Orientação: Daniel Marques Assistência de Direção: Fernanda Arrabal

O mais difícil para uma pessoa como eu, que tem tantas coisas para dizer, é começar. Me chamo P@TTY DIPHUSA e faço parte do tipo de mulheres que protagonizam a época em que vivem. Minha profissão? Sex-symbol internacional, ou estrela internacional de filmes pornôs, como preferirem ou quiserem me chamar.

Estrelando: Pina Elenco: Beatriz Pizarro, Gabriel Pardella e Luana Garcia Iluminação: Fernanda Arrabal, Jocianne Carvalho, Lilian Corrêa e Lucas Massano Cenografia: Clariana Touza Figurino: Laiza Soares e Mariana Pedro Produção: Lucas Massano Preparação Corporal: Beatriz Pizarro e Luana Garcia Orientação de Preparação Corporal: Lígia Tourinho e Maria Inês Galvão Pesquisa Musical: Coletivo Operação de Câmera: Fernanda Arrabal Treinamento de Bufonaria: Daniel Cintra Colaboração: Marianna Mugnaini Imagens: acervo Gabriel Pardella 45


Primeiramente #FORATEMER! Por Gabriel Morais O mais difícil para uma persona como EU - que não tem nada e, ao mesmo tempo, tem tudo para dizer – és começar! Me chamo: eu_P@tty e soy destes tipos de espetáculos que não tem a menor pretensão de protagonizar a época em que vive. Antes de mais nada e faça o que fizer, YO soy un programa de televisión ao vivo. Por que haveria de esconder isso? E digo mais: soy uma mistura de deseos e devaneios de e por Pedro Almodóvar; de chuva de purpurina, perucas, trucagem e Pina; de português com español; de teatro, televisão, cinema y gêneros; de ficção e realidade; de filosofia, deboche, mistério y gozo. EU sou um programa de televisão que habla sobre la atualidade. Atualidad és la capacidad de atuar e Patty tem uma boa dose desta capacidade. Quando Almodóvar escreveu Patty Diphusa, na década de 80, a Espanha saía de um longo período de ditadura franquista e renascia culturalmente, a partir do movimento chamado La Movida. Una verdadeira explosión de cor, de liberdad y irreverência, de sexo e drogas, na qual no existia o menor compromisso político ou social. Patty nasce, cresce e reflete este tiempo. Una das personagens favoritas do cineasta espanhol, ela nunca dorme, és ingênua, fofa e grotesca, invejosa e narcisista, amiga de todo mundo e de todos los prazeres. eu_P@tty pede licença a Pedro Almodóvar, 46

rouba a sua personagem, tenta personificá-la em una apresentadora de televisión para refletir sobre la sociedade de consumo e espetáculo. Sobre padrões de beleza y de conduta instaurados e impostos. Patty és un símbolo. Una paródia da imagem padronizada e comercializada. eu_P@tty és sensacionalista, precisa vender e se vender! Buscamos la “estética do Paint”. Paintbrush, sabe? Aquele programinha que tem no seu computador. Aqui, nossos relatos estarão envolvidos por colagens toscas, pelo inacabamento, pela sujeira. A cafonice impera na iluminação, no cenário, no estúdio de televisión e na cena. O erro e o fracasso são bienvenidos! Pero, és necessário levar este programa de televisão até o fim. O show do entretenimento tem que continuar – siempre! Hoy: 08 de outubro de 2016. Faltam exatos dois meses para que YO possa acontecer! Quando penso no meu futuro, penso – obviamente – no número de (tele)espectadores que terei o prazer de receber. Pienso também nos aplausos, nas críticas, nas perguntas, nas problematizações e – claro – na festa! Mas, peço: assistam este espetáculo com la mesma falta de pretension com o qual ele foi concebido.


Atriz, apresentadora, megalomaníaca, ou simplesmente Patty Diphusa Por Cacau Farias e Helena Marques Essenciais nos filmes de diretor espanhol Pedro Almodóvar, sentimentos à flor da pele fazem parte da construção de Patty Diphusa, personagem-título de um livro do cineasta pouco conhecido do público. O livro compila textos da revista em que o diretor escrevia semanalmente nos anos 1970. A história da atriz pornô multifacetada que vira celebridade traz muito da biografia de Almodóvar e revela o que seria seu alter ego feminino. Trash, marcante e única, Patty chega aos palcos na montagem assinada pelo diretor Gabriel Morais. É interpretada por “Pina”, drag queen criada pelo ator Gabriel Pardella, numa abordagem que tenta provocar uma nova discussão sobre gênero. O espetáculo é estruturado em blocos, numa adaptação do livro feita pelo escritor Davi Giordano (ex-aluno de Direção Teatral), e simula um programa de TV, com assistentes de palco vividas por Beatriz Pizarro e Luana Garcia. A peça mantém a estética kitsch de Almodóvar, provocando reflexões sobre fama, dinheiro, poder e relações humanas. No entanto, se a Patty literária vive na Espanha pós-Franco dos anos 1980 e desfruta de uma Madri libertária, a de 2016 é, como ela mesma diz, “pós-líquida, pós-moderna e pós-conceitual”. Patty ama criar tendências para mostrar seu sucesso, se auto reverencia em caixa alta, adora usar redes sociais

e esbanjar a sua “originalidade”, resultado de várias plásticas e muito dinheiro gasto para alcançar o corpo dos sonhos. Segundo o diretor, a ideia é brincar com padrões, e um dos modos de fazê-lo é pecando pelo excesso ao alcançar o grotesco em situações que a priori seriam absurdas, mas que, no contexto, integram a realidade da personagem. Em “portunhol”, a montagem tem caráter experimental e opta por um teatro do real, no qual a apresentadora bebe de verdade e será entrevistada ao vivo por alguém da plateia – que deve estar aberta a surpresas. A peça traz múltiplas referências de outros filmes de Almodóvar, como “Tudo Sobre sua Mãe” e “Pepe, Luci, Bom”, transitando entre gêneros teatrais como a comédia, o melodrama e o musical. A trilha sonora, um show à parte, mescla “24 horas”, da funkeira Ludmilla, com o clássico bolero “Quizás, quizás, quizás”. No palco, o ambiente é “poluído”, sem pretensões de acabamento perfeito, em um mosaico underground – a cara de Patty Diphusa. Diante de tantas releituras já realizadas de Almodóvar, o resultado é um espetáculo ousado e inovador.

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VENDEM-SE SHAKES PRA REIS Criação Coletiva

Direção: Daniel Cintra Orientação: Adriana Schneider Elenco: Kailani, PH Silva, Victor Leal e Thais D’Castro

Podem até não querer a gente aqui, mas lembrem-se... Vocês precisam. Se arrependeram do produto? Viram que estava estragado? Não querem mais? Querem tirar o filho da puta? Deixem conosco, que destroçamos com prazer e com fome!

Iluminação: Camila Simonin, Daniela Fiaux, Elisa Toledo e Julia Carvalho Cenografia e Direção de Arte: Uirá Clemente Figurino: Tallyson Ramon Assistência de figurino: Jessyca Alexandre Ugolini e Kelly Andrade Richter Produção: Filipe Leon Preparação Corporal: Daniele Noronha e Mateus Paiva Orientação de Preparação Corporal: Ligia Tourinho e Maria Inês Galvão Pesquisa Musical e Trilha Sonora: Duda Bastos Imagens: Daniel Cintra, Matteu Abati, Shootthatklown e Wallaceknight 49


Diagnóstico Bufo Por Daniel Cintra Tudo é um ato político. É necessário entender ato político como tudo aquilo que afeta uns aos outros. É afetar e ser afetado. Toda ação, todo gesto, toda palavra, toda imagem tem um poder imenso. O estrondoso poder de afetar. É o afeto que dita as relações. Portanto, enquanto formos seres que afetam e são afetados, somos figuras políticas, e estamos exercendo esse poder. Agora vivemos momentos onde essa compreensão se faz cada vez mais necessária e pulsante. Vivemos em uma sociedade bombardeada por “afetos seletivos”. Diferentes qualidades de afetos são bombardeados para diferentes setores da sociedade escolhidos com muita atenção. Como num organismo, uns setores sofrem uma sobrecarga de afetos, e outros sofrem da falta deles. Assim, o organismo-sociedade se deforma. Uma parte dele incha desproporcionalmente, enquanto outras murcham até cair. O organismo-sociedade é moldado e ganha contornos grotescos, jorrando pus, sangue e indignação. Como indícios dessa má distribuição, o organismo-sociedade tem demonstrado vários sintomas: cegueira parcial; insensibilidade às dores de partes específicas; cortes que impedem a circulação do livre pensamento; palavras que rapidamente se transmutam em linchamento e agressão. Os indivíduos que compõem esse organismo têm sido tomados por sentimentos de revolta, medo e incerteza. O que fazer? 50

Eis então que surge uma família de bufões, que nos momentos de maior necessidade, aparece para diagnosticar e (tentar) tratar desses sintomas. O bufão veio neste projeto como uma resposta aos sintomas sofridos por esses “afetos seletivos”. Vieram para escancarar essas deformidades. As intrigas da corte, um general decorativo que virou rei ilegítimo com o apoio de seus fiéis seguidores, ou a subida sistemática ao poder de um Macbeth sedento servem como suporte aos bufões para o escracho, para fazerem o seu diagnóstico e oferecerem o tratamento necessário aos problemas enfrentados pelo organismo-sociedade. Vamos nos esbaldar e assumir essas feridas, escancarar as veias abertas! Em resposta a tempos de deformidade do organismo-sociedade, de fome pelo poder, os bufões estão aqui pelo desejo de subversão. É hora de subverter os paradigmas! É hora de subverter valores. De subverter as relações patriarcais. É hora de bagunçar. É hora de subverter as relações de opressão. É hora de subverter os poderes. De subverter um sistema que sofre de falta de representatividade. É hora de fazer uma zona.


Em tempos sombrios, as lições de um Shakespeare revisitado Por Julia de Cunto Se você procura uma peça fiel às nuances da tradição shakespeariana, veja outro espetáculo. Em Vendem-se Shakes pra Reis, os bufões, criaturas grotescas e disformes, encenam “Macbeth” despidos de qualquer conservadorismo formal. Você, caro espectador, se encontrará diante da obra mais sombria de William Shakespeare embalada em risadas e perplexidade, uma vez que a trama do general escocês que recebe de bruxas dúbias previsões parece cada vez mais próxima e atual (ganância e usurpação de poder lembram algo?). Clássico dos clássicos, o autor inglês é atemporal em sua imaterialidade, em versões cômicas ou trágicas, e tornou-se um refúgio para manifestações contra-hegemônicas. Dirigido por Daniel Cintra, o espetáculo alcança uma cadência que ecoa em versos de funk e discursos corruptos, produtos genuinamente brasileiros. O resultado não vem apenas de um texto cuidadosamente decupado, mas também da atuação dos atores, que se alternam entre os papéis de bufões-narradores e personagens do século XVII. Esse empolgante tributo ao bardo se apropriou – com muito proveito – do texto clássico, utilizando inventivas soluções cênicas. A montagem faz referência a cenas de outras peças do dramaturgo, artifício amplamente utilizado até nas montagens do Shakespeare Globe Theatre.

As façanhas do general Macbeth para chegar ao trono tiveram diversas interpretações em vários cantos do mundo e compõem uma antologia que redesenha fronteiras da influência shakespeariana. Segundo pesquisa do British Council, órgão britânico para relações culturais, 89% dos indianos, 84% dos brasileiros e 68% dos chineses afirmam que Shakespeare é importante para o mundo hoje. No Reino Unido, onde é cultuado, o número cai para 57%. De qualquer maneira, onde quer que esteja a plateia, o bardo anima gerações em cenários austeros de crise política e instabilidade econômica, mesmo que os finais não sejam, de certa forma, assim tão felizes. Vendem-se Shakes pra Reis é inebriantemente grotesco e faz jus ao cânone literário construído por William Shakespeare quando critica o poder instituído e a prepotência dos governantes. Honoráveis habitantes de nosso subconsciente, os bufões, com suas peripécias, nos oferecem a chance de reinventar de forma tosca e zombeteira nossa visão sobre os pútridos reinados contemporâneos, ilegítimos e golpistas. Sim, estes mesmos que você está pensando.

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DIABÓLICA adaptação do conto homônimo e livremente inspirada em outras obras de Nelson Rodrigues

Direção: Taís Feijó Orientação: Guilherme Delgado Assistência de Direção: Wesley Calcanho Adaptação: Coletivo

O PAI – E agora, com que cara teu noivo vai olhar para a tua irmã? Vocês mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: uma irmã está acima de qualquer suspeita! Família é família, Dagmar!

DAGMAR – Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e outros bichos. Mas intimidade com cunhado, não. Nunca!

Elenco: Bárbara Monteiro, Carol Pita, Daniel Bartholomeu, Otávio Tardelli, Perla Mello e Whiverson Reis Iluminação: Camila Simonin, Elisa Toledo, Julia Carvalho e Daniella Fiaux Cenografia: Nathália Moscovici Orientação de Cenografia: Maurício Ferreira Figurino: Lana Cristina, Luna Vicente e Raiane Ribeiro Orientação de Figurino: Ângela Leite Lopes Direção de Arte: Diogo Rosa Produção: Giovan Bueno Preparação Corporal: Jefferson Maciel Orientação de Preparação Corporal: Ligia Tourinho e Maria Inês Galvão Pesquisa Musical e Trilha Sonora: Otávio Tardelli Preparador Vocal: Felipe Valle Imagens: Taís Feijó e Luna Vicente (croquis) 53


Nelson é o começo e o fim Por Taís Feijó Chegamos no fim de um ciclo. Digo no plural, porque acredito que teatro não se faz sozinho. Nunca fiz – e acho que nunca farei. Difícil falar sobre este espetáculo de formatura sem mencionar ou, pelo menos, recordar, toda a minha trajetória no curso de Direção Teatral. Quantas ideias, sonhos, projetos, pesquisas serviram de degrau, mesmo que sem a menor pretensão, para impulsionar o nascimento de Diabólica? E quanta dúvida, medo, insegurança e ansiedade não vieram acompanhados desses ideais? De fato, preferi segurar a coragem pelo braço e encarar a responsabilidade de fechar um dos ciclos mais importantes da minha vida dirigindo uma peça de Nelson Rodrigues, do que deixar esse desejo para trás. Tudo começou em Nelson, então, que “termine” em Nelson. Entre aspas, claro, porque nada termina por aqui. Há exatos 12 anos, quando iniciei meus estudos no teatro, fui presenteada com as obras de Nelson. E me apaixonei. Mergulhei nos livros e passei a sonhar com o dia em que encenaria qualquer peça dele. Quis ser Silene, Glorinha, Alaíde, Sônia, Guida, Lígia…e Alicinha. Finalmente esse dia chegou. Agora, posso ser todas elas. Mesmo ocupando um lugar do outro lado da cortina, sinto-me parte dessas personagens. É uma honra findar minha formação em teatro na UFRJ com um conto do autor que me traz tanto afeto e memória. 54

Diabólica é uma peça sobre as peças Rodriguianas. A partir do conto homônimo, baseado no filme Traição, de Cláudio Torres, acrescido de trechos de todas as 17 peças de Nelson Rodrigues, nasce este espetáculo. É, então, uma pesquisa sobre o universo tragicômico dos dramas familiares. Reúne, no seu íntimo, a essência do autor. E, chegando ao fim de um processo, gostaria de fazer um grande agradecimento. Antes de mais nada, a uma pessoa muito especial, responsável por me apresentar ao mundo do teatro, à Nelson e ao mundo, propriamente dito: muito obrigada, Mãe. E depois, a todos que, de alguma forma, contribuíram para que eu chegasse até aqui: aos atores e equipes que, desde a minha primeira direção, toparam participar na base do amor e da vontade de fazer teatro; aos amigos, que sempre estiveram por perto, como pilares de sustentação, mandando luz e amor para que tudo desse certo; aos professores e orientadores, que repassaram seus ensinamentos e nos indicaram o caminho; aos funcionários da universidade e a todos os envolvidos nas Mostras, aos Deuses do teatro e ao Universo – toda a minha gratidão. Muito obrigada! Tenhamos todos um bom espetáculo! MERDA!


De perto ninguém é normal Por Nadine Ximenes Olhe-se no espelho. A imagem refletida pode ser tão real a ponto de provocar identificação com a realidade. A representação nos faz encarar o espelho como reflexo da verdade, mas, ao colocar algo escrito frente ao espelho, vemos que ele produz distorção. O teatro, em suas silhuetas e faces, retrata o reflexo do que vivemos, com doses de ficção e drama. Nelson Rodrigues, reconhecido por representar o cotidiano sem máscaras, imprime “a vida como ela é” em contos e diálogos, dá tom e voz a personagens tão verossímeis que podemos enxergar nosso mundo nas palavras, telas e palcos. Em uma montagem rodrigueana, a aluna-diretora Taís Feijó criou cenas que reúnem elementos de diversas peças do autor em uma única peça. Diabólica resulta de um texto costurado de forma colaborativa pela diretora, seu assistente de direção e o elenco. Cada ator escolheu duas peças do autor e, a partir daí, o grupo criou cenas estruturadas num roteiro. O desafio de Taís era trazer para os palcos elementos do cinema por meio de obras do maior dramaturgo brasileiro. Conhecido por personagens complexos e dilemas de uma falsa estrutura de família tradicional, Nelson invade a consciência do leitor com temas como incesto, traição e assassinato. Na montagem, uma família está prestes a casar sua filha mais velha, Dagmar. O noivo Geraldo se vê encantado pela cunhada de 13

anos que o provoca. O contraste entre o ar angelical e o apelo sexual da menina Alicinha gera conflito e quebra os tabus da época, revelando o “teatro do desagradável” das encenações de Nelson. Entre a relação de adoração e ódio, sinceridade e máscaras, casamento e traição, todos os personagens revelam seus podres em meio a arrepiantes atuações. Com diversas referências de filmes, situações quase factuais e cenas inéditas, a trama foi resolvida sem tempo cronológico, em flashbacks. O jogo de luzes e a sonoplastia conferem ao enredo um fluxo cinematográfico. Contudo, os elementos do teatro permanecem. A direção optou por cenários estáticos com fundo negro, cenas bem marcadas e poucas trocas de figurino. Os personagens garantem a força do espetáculo, e os diálogos evocam no público sensações de similaridade com o mundo atual. A obra transcende os anos 70 e, como se estivéssemos diante de um espelho, faz com que vejamos em nós mesmos imagens nunca percebidas.

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ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretor Amaury Fernandes

Diretora-Adjunta de Graduação Chalini Torquato Barros Diretora-Adjunta de Administração Sheila Camlot Carneiro Administradores da ECo Adriano Costa e Paulo César Marinho

UFRJ Reitor Roberto Leher Pró-Reitor de Graduação – PR-1 Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2 Leila Rodrigues da Silva

Coordenação de Jornalismo Cristiane Costa Coordenação de Rádio/TV Maria Teresa Ferreira Bastos Coordenação de Produção Editorial Mário Feijó Coordenação de Publicidade e Propaganda Lucimara Rett Coordenação de Direção Teatral Jacyan Castilho

Pró-Reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças – PR-3 Roberto Antônio Gambine Moreira Pró-Reitora de Extensão – PR-5 Maria Mello de Malta Decana do CFCH Lilia Guimarães Pougy

CO-REALIZAÇÃO CAp – Colégio de Aplicação da UFRJ Diretora: Maria Cristina Miranda da Silva Escola de Belas Artes (EBA) Diretor: Carlos Gonçalves Terra Coordenação de Artes Cênicas – Indumentária e Cenografia: Larissa Elias Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) Diretora: Katya Gualter Chefe do Departamento de Arte Corporal (DAC): Frank Wilson

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XVI

Mostra de Teatro da

UFRJ

EQUIPE XVI MOSTRA DE TEATRO DA UFRJ Coordenação Geral e de Produção Érika Neves Coordenação Técnica e de Iluminação José Henrique Moreira Comissão Pedagógica Carmem Gadelha e José Henrique Moreira Bolsistas de Produção (bolsistas Cultura I / Cultura II PR-5) Bruno Parisoto, Davi Palmeira, Isabel Sanche e Thaís Barros / Danielle Câmara Suporte Técnico e de Iluminação (bolsistas PIBIAC) Equipe S.U.A.T. - Sistema Universitário de Apoio Teatral Eletricista Joel de Souza Fotografia Clara Castañon Filmagem Kepler Jofre Programação Visual (revista, banners e senhas) Davi Palmeira

CORPO DOCENTE Adriana Milhomem (EBA) Adriana Schneider (ECo) Alessandra Vannucci (ECo) Andréa Pinheiro (CAp) Andréia Resende (ECo) Ângela Leite Lopes (EBA) Carmem Gadelha (ECo) Celeia Machado (CAp) Fátima Novo (CAp) Fernanda da Escóssia (ECo) Gilson Motta (EBA) Jacyan Castilho (ECo) José Henrique Moreira (ECo) Lauro Góes (ECo) Lígia Tourinho (EEFD) Lívia Flores (ECo) Maria Inês Galvão (EEFD) Maurício Ferreira (EBA) Rodrigo Cruz (ECo) Suely Gerhardt (EBA) APOIO - Brechó da Tetê - Escola de Artes Técnicas Luís Carlos Ripper/FAETEC Mangueira - IATEC – Instituto de Artes e Técnicas em Comunicação - Café Três Corações - Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro Centro Municipal de Artes Calouste Gulbenkian

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- EXPEDIENTE

Revista programa sobre a XVI Mostra de Teatro da UFRJ. Uma publicação laboratorial da Escola de Comunicação ECo/UFRJ, fruto da parceria entre os cursos de Ciclo Básico da Comunicação, de Jornalismo e de Direção Teatral. Publicação sem fins lucrativos. Produção, editoração e revisão Érika Neves Orientação dos alunos de Jornalismo Fernanda da Escóssia (ECo) Projeto gráfico e diagramação Davi Palmeira (Laboratório de Linguagem Gráfica) Orientação do projeto gráfico Andréia Resende (ECo) Foto da Capa Maíra Barillo (Circulação “A Jornada de Kim” Espetáculo oriundo da XIII Mostra de Teatro da UFRJ)

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XVI MOSTRA DE TEATRO DA UFRJ 10 novembro . 16 dezembro | 2016

realização

co-realização

apoio

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