Revista À Mostra 2017

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Foto: Clara CastaĂąon eu_P@tty XVI Mostra de Teatro da UFRJ 2


___ EDITORIAL Por Fernanda da Escóssia Jornalista e Professora de Redação Jornalística na ECo/UFRJ

– Mãe, tô com fome. – Aperta o lençol bem forte na barriga que passa. E assim as crianças iam dormir, lembrava minha avó. Diante da mesma fome, outra mãe chorou por não ter como alimentar as filhas. Já avó, contou a história à neta, e a agora diretora teatral usou-a como elemento cênico em seu projeto de conclusão do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação – um dos 15 dirigidos por formandos e exibidos na “XVII Mostra de Teatro da UFRJ”. O evento traz ainda um espetáculo do projeto EncenaAção, com alunos do CAp/UFRJ, e outro da pós-graduação em Artes da Cena (PPGAC) da ECo/UFRJ. A revista À Mostra oferece uma visão geral das produções, apresentadas por seus diretores e por alunos de Redação Jornalística, estes sob minha orientação. Os espetáculos exibidos agora nesta mostra vão de Shakespeare a criações coletivas, passando pela tragédia grega, pela ópera cômica e por adaptações livres de autores contemporâneos. Um dos efeitos do teatro é, assim como a fome, revirar as entranhas da gente. Teatro é fazer doer e fazer curar, é arte e política mesmo em tempos sombrios – principalmente em tempos sombrios. Principalmente em 2017. Os espetáculos falam de amor e guerra, opressão e desejo, violência e alegria, morte e esperança. Textos clássicos e vivências dos atores entram em cena para contar nossos dramas públicos, como o horror da guerra e as migrações forçadas. Ao longo da uma hora de duração da peça sobre refugiados, 1.440 pessoas em todo o mundo deixarão suas casas. Teatro é fome de fazer e viver coisas novas, é refletir sobre o mundo e sobre o próprio lugar no mundo. Achar o próprio eu no espelho não é fácil, alerta o espetáculo cujo nome um dia foi ofensa – Bichas. Drags saem para tomar suco no shopping, mas sucos se transformam em socos num Brasil que agride e mata LGBTQs. O eu mulher também grita pelo seu lugar. São mulheres ancestrais, lobas, adolescentes, salomés, feministas negras, hécubas. Personagens maiores que a própria vida, mulheres que assumem o feminino como um papel que rasga, mas também corta. Em tempos de muros, golpes, ódios e censura, o teatro de novo revira as entranhas e indaga: e você, antes de morrer quer fazer o quê? Como quer ser lembrado? Em meio a perguntas, este editorial brinca com uma colagem de frases dos textos presentes na revista. Fica à plateia o desafio de encontrá-las, encontrar-se, cadê eu que não me acho? Afinal, teatro é tudo isso mesmo, e tudo isso é bem mais que um espetáculo de conclusão de curso. 3


___ SUMÁRIO

04 06 12 13 16 17 20 21 24 25 28 29 32 33 36 37 40 44

. . . . . . . . RESISTÊNCIA OU RESILIÊNCIA? . Por Jacyan Castilho . . . . Programação . . . PAPEL: RASGA, MAS CORTA . Por Felipe Valentim . . . A DESCONTRUÇÃO DO ORIGAMI COR-DE-ROSA . . Por Jaques Lucas Cavalcanti e Lavinya Andrade . . . METAMORPHOSIS . . Por Suellen Casticini . . . OPRESSÃO COTIDIANA . Por Pedro Umberto . . . . DA VIDA QUE GERAMOS JUNTOS . Por Anna Duran . . . DE ENCONTRO MARCADO COM A VIDA . . Por Fábio Marinho . . . O DESPERTAR DA PRIMAVERA COMO POTÊNCIA DE DIÁLOGO . . Por Isadora Giesta, Reinaldo Machado e Vinícius Andrade . . . DORES DO CRESCIMENTO . Por Gabriel Costa . . . . “MAS ELE AINDA É RELEVANTE HOJE?” . Por Antonio Ventura . . . A ORIGINALIDADE DOS CLÁSSICOS . . Por Mariana Fontes . . . UM MANIFESTO CONTRA AS AUSÊNCIAS . . Por Bruno Parisoto . . . A VIDA FORA DOS TRILHOS . Por Maria Júlia Albuquerque . . . . UMA SENHORA BICHA! . Por Gabriel Pardella . . . ARTE CONTRA A OPRESSÃO . . Por Fernanda Casagrande . . . O DIÁLOGO NECESSÁRIO . . Por Victor Newlands . . . QUEM CRIA AS BOMBAS? . Por Lorena Morais . . . . . . .


45 48 49 52 53 56 57 60 61 64 65 68 69 72 73 76 77

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A VIDA SOB OS ESCOMBROS DA GUERRA Por Gabriela Silva

REVER: UM PROCESSO DE ESPELHOS Por Marianna Mugnaini MANIFESTO PELO (DES)ENCONTRO Por Yasmin Santos A ARMA VEM DO “LIXO” Por Ian Calvet MAR DE GENTE Por Scarlett de Mattos A ETERNA CONTENDA Por Manuel Thomas É MÚSICA OU TEATRO? OS DOIS Por Paulo Vitor Marien NARRAR É INTERCAMBIAR EXPERIÊNCIAS Por Dieymes Pechincha ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA Por Ana Betriz Ribeiro NA TRAVESSIA DA FOME Por Ana Paula Gomes É PRECISO FAZER TEATRO Por Raphaela Ramos DESPERTANDO PARA O FEMININO Por Isabel Figueira Sanche

EM BUSCA DA LOBA INTERIOR Por Gabriela Morgado “É O FIM DO MUNDO! É O FIM DO MUNDO!” Por João Bernardo Caldeira ATAFONA, VILA DE AREIA Por Carolina Merlo ELETRICIDADES – METAMORFOSES DE FULLER E SALOMÉ Por Isabela Raposo MAIORES QUE A VIDA Por Hugo Daflon

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Foto: Clara Castañon poderosa vida não orgânica que escapa XVI Mostra de Teatro da UFRJ

RESISTÊNCIA OU RESILIÊNCIA? Por Jacyan Castilho Coordenadora do Curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação 6


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“XVII Mostra da UFRJ” tem

de Teatro o prazer de

Não é difícil suspeitar de quando e por que começamos a nos tornar tão adaptáveis às

apresentar os trabalhos de conclusão dos alunos do Curso de Direção

intempéries, altamente resilientes – justamente por considerar “natural” um horizonte em que as

Teatral desta Universidade no ano de 2017. No difícil ano de 2017. Em sua décima sétima edição, a

intempéries estão sempre presentes. Mas revelo o que nem todos suspeitam: muitos resistem, mesmo que na esfera micropolítica

Mostra confirma o fôlego destes jovens artistas, dos professores orientadores, do

do quarteirão de casa. Aqui se inclui esta Mostra, como local assegurado de pesquisa estética,

corpo de funcionários e da própria Escola de Comunicação, que a abriga, para resistir como local de experimentação e arte em tempos incertos como os nossos, em que até a Arte parece

experimentação viva e contato com o maior responsável pela formação do artista – o público. As montagens dão pistas da urgência destes jovens em falar de seu tempo: em dramaturgias

incompreendida em sua função social.

colaborativas surgem os que sofrem violência,

Até bem pouco tempo, a palavra mais usada em salas e corredores universitários era “resistência”. À ditadura política, à restrição no orçamento, à apatia da sociedade, à degradação

ambulantes, refugiados, trabalho escravo, identidade de gênero, exibicionismo das redes; por outro lado, há o debruçar-se sobre formas e gêneros teatrais, a pesquisa sobre as fronteiras das artes

da arte como mercado, à morte lenta dos sonhos. Hoje, provavelmente a palavra mais

cênicas, a revisitação dos clássicos. Um amálgama entre passado, presente e futuro, que lança olhares

ouvida é resiliência – segundo os dicionários, a “capacidade de se recobrar facilmente ou

revitalizantes para futuro, presente e passado. Esta Mostra é possível graças ao esforço

se adaptar à má sorte ou às mudanças”, ou a “habilidade de se adaptar às intempéries”. Em que momento paramos de resistir

cotidiano de uma equipe e aos recursos do “1º Edital - Apoio aos Grupos Artísticos de Representação Institucional - PROART/GARIN/UFRJ”. Por

e nos conformamos em sobreviver, nos adaptar à degradação do sistema de ensino, do

acreditarmos que ela é necessária à construção do diálogo, tão ameaçado e combalido, oferecemos ao

mercantilismo excludente, do golpismo político, da submissão da arte ao gosto estético ditado pelos “formadores de opinião”?

público este trabalho e agradecemos sua presença.

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___ programação 8 6

07/11, 08/11, 09/11 (TER a QUI) | 20h Mulheres de Papel, de Felipe Valentim Direção: Felipe Valentim Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 16 anos Sinopse: Após o desaparecimento da obsidiana, um amuleto de proteção, uma aldeia de mulheres vive as ameaças de uma invasão. 10/11, 11/11, 12/11 (SEX a DOM) | 20h

A Metamorfose, de Franz Kafka

Direção: Suellen Casticini Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: Livre Sinopse: “Numa manhã ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”. Assim, começa “A Metamorfose”, de Franz Kafka. Em cena: três atores, oito personagens, uma arena e uma estória fantástica. 14/11, 15/11, 16/11 (TER a QUI) | 20h Para adiar a morte, criação coletiva Direção: Anna Duran Local: Laguinho da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 16 anos Sinopse: Um encontro de iguais tão distintos para celebrar os caminhos que a dor, a perda e a fatalidade nos dão para o riso, o gozo e a plenitude. Em palavra, ação, canto e imagem, a morte nos corteja para que nos apaixonemos pela vida. 17/11, 18/11, 19/11 (SEX a DOM) O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind Três turmas do Segundo Ano do Ensino Médio do CAp/UFRJ, sob a direção dos alunos do quarto período do Curso de Direção Teatral, apresentam “EncenaAÇÃO 2017” Direção: Vinícius Andrade, Isadora Giesta e Reinaldo Machado Horário: 20h (SEX e DOM), 16h (SAB) Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 12 anos Sinopse: Alemanha, século XIX. Um grupo de estudantes de 14 anos, inseridos numa sociedade patriarcal e altamente repressora, descobrem as delícias, as dores e as consequências da travessia entre a infância e a vida adulta.


21/11, 22/11, 23/11 (TER a QUI) | 17h Romeu e Julieta, de William Shakespeare Direção: Antonio Ventura Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 16 anos Sinopse: A guerra civil entre os Montéquios e os Capuletos destroça Verona. É a paixão avassaladora que nasce entre dois adolescentes, filhos únicos dos inimigos, que finalmente vai trazer paz à cidade – embora não da forma que o casal espera. 21/11, 22/11, 23/11 (TER a QUI) | 20h

Trilhos Invisíveis, de Bruno Parisoto

Direção: Bruno Parisoto Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 14 anos Sinopse: Central no Brasil, espaço de transição de milhares de pessoas diariamente: uma moradora de rua que perde seu filho nos trilhos, dois vendedores de balas, uma menina e dois jornalistas costuram narrativas que apresentam o submundo desse sistema ferroviário e precário. 24/11, 25/11, 26/11 (SEX a DOM) | 20h

Bichas, de Livs Ataíde

Direção: Gabriel Pardella Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 18 anos Sinopse: Depois da turnê de sucesso ao lado de nomes como Britney Spears, Zeca Pagodinho e Eliana, o avião da Close Air Lines faz escala na UFRJ e apresenta alguns de seus mais famosos números ao lado de uma convidada surpresa 27/11 (SEG) | 20h Garatéa, criação colaborativa Direção: Victor Newlands Local: Itinerante pelo campus da Praia Vermelha, saindo do Palácio Universitário (em frente ao CCJE/CFCH) Classificação indicativa: 16 anos Sinopse: “Garatéa” é uma cidade... uma cidade multidimensional. “Garatéa” é um labirinto. “Garatéa” é um jogo. Futurismo Arcaico. Torre de Babel. Senso Comum. “Garatéa” é o Dissenso. É um sonho de consumo. “Garatéa” é uma moeda virtual. “Garatéa” tá na “deep web”.

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___ programação

28/11, 29/11, 30/11 (TER a QUI) | 17h Por que Hécuba, de Matéi Visniec Direção: Lorena Morais Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: Livre Sinopse: Em “Por que Hécuba” assistimos à perda de todos os filhos pela mãe; vemos as fogueiras que ela acendeu serem apagadas. Vemos a árvore secar quando os seus frutos morrem. Na guerra, o drama é também dos refugiados. 28/11, 29/11, 30/11 (TER a QUI) | 20h

Cuidado, espelho. Uma exposição de pessoas, criação coletiva

Direção: Marianna Mugnaini Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 18 anos Sinopse: Qual sua relação com a sua auto-imagem? A partir deste mote, convidamos o público a se relacionar com obras (vivas) que acontecem num espaço híbrido entre sala de exposição e sala de teatro, interagindo com o ambiente instalativo ali proposto. 01/12, 02/12, 03/12 (SEX a DOM) | 20h

Estamos aqui, criação coletiva

Direção: Ian Calvet Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 16 anos Sinopse: A peça é sobre corpos humanos descartados, refugiados que vagam no último dos lugares possíveis para sobreviver: o mar. Onde tudo é água e o corpo é lixo, a luta é por derrubar as fronteiras e reiterar, como em um berro, as suas presenças no mundo. 05/12, 06/12, 07/12 (TER a QUI) | 18h

Gianni Schicchi, de Giacomo Puccini

Direção: Manuel Thomas Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: Livre Sinopse: Buoso Donati morre e deixa em testamento toda sua fortuna para igreja. Cobiçando a herança, a família chama Gianni Schicchi para se passar pelo morto e alterar o testamento. Imitando o falecido, Schicchi dá um golpe em toda a família. 05/12, 06/12, 07/12 (TER a QUI) | 20h

Cícero, criação colaborativa

Direção: Dieymes Pechincha Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 16 anos Sinopse: A partir de um mosaico, composto por relatos, imagens e sons, o espetáculo narra histórias de trabalhadores que vivenciaram e vivenciam condições de trabalho escravo na contemporaneidade.

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08/12, 09/12, 10/12 (SEX a DOM) | 20h Jacinta, de Newton Moreno Direção: Ana Paula Gomes Local: Rua interna do campus da Praia Vermelha, em frente à Escola de Comunicação Classificação indicativa: 14 anos Sinopse: Uma trupe falida de palhaços famintos conta a trajetória da actriz Jacinta Maria Magalhães Dornelas e Canto em busca de aplauso e reconhecimento em terras brasileiras. 12/12, 13/12, 14/12 (TER a QUI) | 18h

Santuário das Andarilhas, criação colaborativa

Direção: Isabel Figueira Sanche Local: Jardim interno da Escola de Comunicação Classificação indicativa: Livre Sinopse: Em um tempo esquecido pelos homens, tempo que existe nos mistérios da terra, cinco mulheres contam suas histórias inspiradas no conto das Ia Mi Oxorongá. Em espaço aberto, elas saúdam suas ancestrais e se conectam com as forças da natureza. 12/12, 13/12, 14/12 (TER a QUI) | 20h Atafona, relatos de fim, de João Bernardo Caldeira Direção: João Bernardo Caldeira Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: 16 anos Sinopse: Um povoado é lentamente engolido pelo mar e enormes dunas de areia. Moradores relatam e explicam os motivos do fenômeno e discutem o que fazer. 15/12, 16/12, 17/12 (SEX a DOM) | 20h Salomé Elétrica, de Oscar Wilde Direção: Isabella Raposo Local: Sala Vianninha da Escola de Comunicação Classificação indicativa: Livre Sinopse: Iokanaan, Salomé e Herodes se perdem em seus próprios delírios e projetam seus mais obscuros desejos, revelando suas limitações e contradições.

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MULHERES DE PAPEL

dramaturgia e direção: Felipe Valentim

Orientação: Daniel Marques Assistência de direção: Anna Padilha Elenco: Manu Mayrink Liris Naira Tairini Félix Renata Tedeschi Tiago Torres

Não se entra numa luta com a certeza da vitória, meu amor. A vitória é o processo da luta. É a força para ainda lutar, apesar de saber que eles estão em maior número e são poderosos”

Iluminação: Henrique Bueno e Wesley Calcanho Cenografia: Kelly Malheiros, Nícolas Gonçalves e Miriam Guilarducci Orientação de cenografia: Michele Augusto Figurino: Isaac Neves, Rafaela Cascaes, Bianca Oliveira e Joyce Cristina Orientação de figurino: Samuel Abrantes Produção: Renata Tedeschi, Luiz Buarque e Bernardo Pimentel Preparação corporal: Flora Bulcão e Raquel Cukierman Orientação de preparação corporal: Lígia Tourinho Coreografias: Flora Bulcão Preparação vocal: Verônica Machado Pesquisa musical: Felipe Valentim Músicas e composições: Alexandre Marzullo Voz-off: Anna Padilha Imagens: Anna Padilha, Josephine Wall 13


Papel: rasga, mas corta

Por Felipe Valentim

Atravessado por memórias (e por violências), o corpo se coloca neste percurso cênico. A proposta parte da formação de um “eu” firmado em raízes flutuantes, que busca um pertencimento, um lugar, uma voz. O pensamento deleuziano nos apresenta corpo como produto e produtor de relações de forças dominantes e forças dominadas. É um território “movediço”, produto arbitrário das forças nele existentes, sejam elas de ordem química, biológica, social ou política. Neste fluxo, inserimos as próprias memórias do elenco, não como sinônimos de “lembranças” – vistas assim pelo senso comum muitas vezes – mas como um movimento múltiplo e contínuo que tece um grande emaranhado e que deforma, forma e “in-forma” corpos. Atrizes se transformam em personagens a partir da ficcionalização de si. Não se intenciona ler cenicamente a memória como algo a ser restituído, mas como um movimento em construção. O tom crítico da fantasia acentua seus contornos. Explorar o imaginário pelas metáforas que compõem a subjetividade nos reforça a formação do ser humano pelo seu caráter plural. O realismo fantástico, de vertente latino-americana no recorte de 1960 e 1970, foi a linha para costurar a dramaturgia Mulheres de papel, feita de retalhos e apropriações, de colagens de reportagens, letras de música, trechos de dramaturgias clássicas e suas releituras contemporâ14

neas, evidenciando nossa admiração pela prática ready made do grupo francês “Claire Fontaine”. O fantástico expressa um dos objetivos da proposta: demarcar diferenças na maneira de compreender o corpo como espaço e objeto em uma sociedade desigual e violenta. A prática ready made, outro: manifestar o interesse de manter uma infindável reflexão sobre as dobras que cercam arte e vida. Surgem possíveis atravessamentos que a potência artística pode promover; o “eu” pela arte e a arte “por mim”. O jogo se estabelece pelo reconhecimento de si e do outro, como resposta a uma comunicação perdida em tempos de extremos e de predominante violência contra “corpos estranhos”, resgatando as bases de um diálogo necessário ao convívio social. Mulheres de papel: “papel” porque a ficção dita suas regras e conduz todo o encaminhamento crítico; “papel” porque a explicitação de si é posta como estímulo para (re)criação cênica; “papel” porque reforça o papel do ser humano de subverter toda ordem imposta por um cultura opressora, que assujeita e violenta corpos, seguindo modelos patriarcais, cristãos e econômicos.


A descontruçÃo do origami cor-de-rosa Por Jaques Lucas Cavalcanti e Lavinya Andrade “Resistimos porque existimos”. É com esse grito que a peça Mulheres de Papel, escrita e dirigida por Felipe Valentim, parece resumir sua essência ao suscitar a esperança da construção de uma outra realidade feminina. Composta por fragmentos das obras Dreide of the sorrows, de John Millington Synge, A Dama do Mar e O Pato Selvagem, de Henrik Ibsen, Mulheres de Papel conta a história de uma tribo matrilinear (na qual só a ascendência materna é levada em conta para a transmissão de nome, privilégios e pertencimento ao clã) que está prestes a ser atacada por invasores bárbaros. Reunidas como uma irmandade, essas mulheres têm seu laço de confiança abalado pela chegada de um estrangeiro. Ambientada em um mundo imaginário, a peça de Valentim traz questões contemporâneas para o debate. Violência contra mulher, contestação aos papéis de gênero, feminismo, travestilidade e ideal de liberdade são temáticas que perpassam os corpos das atrizes e sua subjetividade, acompanhadas de músicas, coreografias e narração de trechos de reportagens. Longe de ser panfletária, “Mulheres de Papel” tece uma trama de forte teor político sem, no entanto, perder sua aura de fantasia e misticismo. Utilizando o realismo fantástico como forma de desenvolvimento dramático, Valentim trabalha a linguagem como denúncia. Para ele, metáforas

são aliadas no combate às opressões. “O teatro é fingimento, ele evoca essa imagem do fingir. Mas nesse processo, também denuncia, acusa e convida a co-construir significados”, afirma o diretor. A fantasia faz referências a animais para orientar os movimentos do elenco. Desde a preparação corporal, repleta de alusões ao xamanismo, cada ator é instigado a descobrir seu animal interior, que o ajudará na interpretação de sua personagem. Ao conectar o cenário primitivo no qual está inserida a aldeia com os relatos atuais de violências, a peça evoca tempos de barbárie. Segundo o Mapa da Violência, entre 2005 e 2015, o número de homicídios de mulheres no Brasil cresceu 18,9%. Outro dado preocupante é que o país teve um estupro coletivo a cada duas horas e meia em 2016, de acordo com o Ministério da Saúde. Em um ambiente hostil, não há outra alternativa a não ser adotar novas formas de resistência ao patriarcado e aos padrões impostos pela sociedade. E assumir o feminino como “um papel que rasga, mas também corta”.

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A METAMORFOSE

de Franz Kafka direção: Suellen Casticini

Orientação: Jacyan Castilho Adaptação: Jacob El-mokdisi e Suellen Casticini Elenco: Igor Benhuy Maria Gabi Yago França

Aquela foi a maior decepção que Gregor tivera em toda sua vida. Não só o pai o retirou à vassouradas, como ouviu da própria Greta que seria melhor se estivesse morto. A mãe de Gregor não disse nada, apenas confirmou com a cabeça o que ia no íntimo de todos: que Gregor estaria melhor se estivesse morto. Não um inseto, mas morto. Morto. Morto...”

Iluminação: Antonia Menezes Cenografia e direção de arte: Anne Carestiato Orientação de cenografia e direção de arte: Gabi Chagas Figurino: Hera Telles Assistência de figurino: Thainá Teixeira Orientação de figurino: Samuel Abrantes Produção: Lilian Corrêa e Beatriz Costa Preparação corporal: Emanuel Verçosa e Valéria Santos Orientação de preparação corporal: Ligia Tourinho Pesquisa musical: Jefferson Placido Trilha sonora: Jefferson Placido e Thiago Barboza Imagens: Beatriz Costa 17


Por Suellen Casticini

Metamorphosis

Metamorfose significa mudança, transformação de um ser em outro, de uma forma em outra. No sentido figurado, metamorfose é a mudança considerável que ocorre no caráter, no estado ou aparência de uma pessoa. É a transmutação física ou moral. A Metamorfose, de Franz Kafka, escrita em 1912, mostra a história de Gregor Samsa, caixeiroviajante que, em determinada manhã, acorda transformado em um gigantesco inseto. Gregor, até então pilar sustentador de sua família, fica impossibilitado de exercer funções simples do cotidiano, causando transtornos a todos. Embora a mãe e o pai de Gregor relutem em compreender sua transformação, a irmã mais nova, Grete, é mais solícita. No entanto, seus sentimentos mudam quando ela passa por sua própria metamorfose – da infância para a idade adulta. A adaptação da obra para peça teatral vem da minha parceria com o escritor Jacob El-mokdisi. Composta por três atos, a peça apresenta três atores que se revezam nas funções de narradores e inseto. Todos são Gregor, porém em momentos distintos na estória. Cada ato apresenta um ator na função do inseto. Os outros dois fazem, além de um dos narradores, as demais personagens. O espetáculo é apresentado em formato arena, com desníveis no espaço cênico que dificultam a movimentação dos atores, no intuito de revelar novos corpos e ações. 18

Há mais de um ano estudando e pensando em A Metamorfose, pude notar que, apesar de escrita no início do século XX, os temas levantados na obra continuam atuais, evidenciando-se a crise existencial, a desesperança do ser, o pessimismo, a ausência de respostas, a solidão, a impotência e a fuga. Todos estes pontos, inerentes aos dias atuais, muitas vezes são desconsiderados. Este espetáculo não tem a pretensão de tomar partidos morais, mas mostrar as coisas como são. O que se propõe é que o espectador confrontado com uma determinada situação se posicione e analise. Quem nunca se sentiu deprimido ou angustiado diante de alguma decisão a ser tomada? Quem nunca teve que mudar de opinião e sofrer a metamorfose que resulta dessa escolha?


OpressÃo Cotidiana

Por Pedro Umberto

Imagine um dia acordar e se ver transformado num inseto gigante. Por dentro, você é o mesmo, mas seu corpo agora provoca asco nas pessoas. Quem é você quando sua aparência muda? Essa é história da complexa e intrigante A Metamorfose, novela publicada em 1915 por Franz Kafka, e o desafio da diretora Suellen Casticini em seu projeto de conclusão do curso de Direção Teatral foi adaptar ao palco, de forma clara e compreensível, o texto kafkiano. A novela conta a história de um caixeiro-viajante, Gregor Samsa, que, com um emprego que detesta, garante o sustento financeiro de sua família de classe média. A montagem de Suellen, apresentada em formato de arena, é dividida em três atos para narrar a transformação de Gregor; sua vida como inseto e as mudanças na vida de sua família; e por fim, sua morte. Três também são os atores – Yago França, Maria Gabriela e Igor Borhuy – que se revezam entre o Gregor em forma de inseto (sempre no centro da cena), os personagens (Sr. Samsa, Ana Samsa, Grete e o gerente do escritório) e o narrador. E um dos principais méritos de Suellen como diretora foi escolher três estudantes que nunca haviam participado de uma peça e transformálos em atores. “Não me importo se as pessoas não comprarem a ideia da minha peça. O que importa para mim é que isso tudo é uma grande descoberta para eles (atores), e eu sei que eles já compraram a ideia”.

Suellen, que estuda a obra há um ano, diz que a arena permite aproximar o espectador da cena, provocando o questionamento e o debate. “Bertolt Brecht chama o espectador do teatro épico de espectador questionador”, explica. Segundo a diretora, o espetáculo não tem a pretensão de tomar partidos morais, mas mostrar as coisas como são. “O que se propõe é que o espectador, confrontado com determinada situação, se posicione e analise”, afirma Suellen. Encenar A Metamorfose é falar de solidão, fuga, depressão e egoísmo. É abordar o automatismo no mundo do trabalho, a crise existencial, a opressão e o desespero – temas tão atuais em 1915 quanto hoje, mais de um século depois.

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PARA ADIAR A MORTE criação coletiva direção: Anna Duran

Amor, lhe escrevo daqui onde tudo é risco e cor. Não conto-lhe as coisas que vi, porque sinto-me mil vezes mais ter sido vista por elas. Daqui, onde a perda, o parto e as portas abertas se confundem, posso lhe garantir: há ainda alguma coisa desconhecida que nos motiva a andar, a dançar, a cantar e a pedir por mais”

Orientação: Adriana Schneider Assistência de direção: Victor Newlands Elenco: Anna Benchimol Lívia Laso Rahely Lopes Iluminação: Gustavo Ciupryk Direção de arte: Fabiana Mimura Produção: Anna Duran Imagens: Aaron Pinchevski, Anna Duran, Laura Vilella e Maria Ionova Gribina 21


Da vida que geramos juntos

Por Anna Duran

Fazer teatro tem um tanto de desacato à autoridade. A gente se veste do desejo de fabular pra criar alguma coisa concreta aqui no suposto “mundo real”, alguma coisa que dure mais do que o momento em que o encontro palco-plateia se aviva com a chegada dos corpos que ocupam suas funções naquele pacto implícito de olhar e ser olhado mutuamente. Percebe, leitor, a petulância da gente de teatro? Passar a vida desafiando a autoridade do real com o sensível e o impossível, para provar que a força do mundo vive naquilo que ele pode se tornar, não naquilo que ele é. Para adiar a morte é o nosso modo de acionar o tal pacto pra erguer na universidade, na cidade, no mundo, um monumento invisível aos caminhos que a dor, a perda e a fatalidade nos oferecem para o riso, o gozo e a plenitude. Um assentamento dos desejos que nos movem individualmente e nos entretecem como coletividade. É uma busca por experiências que suspendam a morte com as pequenas coisas que nos fazem nascer de novo, juntos. E isso tudo surge das Ofélias que morreram em cena comigo e daquelas com as quais eu vivo, com as quais convivi. Surge dos Van Goghs incógnitos que despejaram genialidade na mesa de bar, os quais perdi de vista nos campos de girassol-arranha-céu da cidade. É o jeito que encontramos de dar sentido para a Morte que nos cerca e atravessa, através da experiên22

cia cênica; para viver por mais tempo, com mais força. Quando nos encontrarmos, estaremos sós na companhia de outras dezenas de pessoas. Estaremos falando intimamente com desconhecidos, buscando segurança e abrigo no risco que há do lado de fora da caixa preta. Vamos nos sentar no chão esburacado, tomar um chá. Vamos falar da vida como se ela fosse pouco importante. E da morte como se o desconhecido dela trouxesse consigo alguma grandeza intangível para nós enquanto vivos. Uma grande besteira, obviamente. Tem Morte aqui na vida o tempo todo, dos modos mais bonitos e brutais. A Vida, do mesmo modo, segue perfurando o estar vivo para nos dar à luz mais uma vez, antes que as nossas sombras nos alcancem. Essa tentativa de adiar a morte é uma cria concebida com os fluidos de muitos corpos. Um bilhete de adeus, uma carta de amor e uma certidão de nascimento para aquilo que o encontro cênico ainda puder tocar em nós quando nos tocarmos uns aos outros.


De encontro marcado com a vida

Por Fábio Marinho

Se você quer só assistir a uma peça, procure outro espetáculo, pois este não pode ser definido como tal. É assim, pelo menos, que a aluna-diretora Anna Duran encara seu projeto de conclusão de curso. Para Adiar a Morte é, segundo ela, um encontro entre as atrizes e cada integrante do público para refletir sobre a morte e sua relação com a vida e a arte. O suicídio é o ponto de partida do espetáculo para discutir o poder da arte de preencher vazios e pessoas – fazendo com que estas olhem para os momentos de dúvida e medo “com um pouco mais de confiança no que a vida tem para apresentar”, analisa a diretora, para quem a morte revela duas dimensões, uma individual e uma coletiva. Para tocar no tema da morte, a opção foi se distanciar do teatro tradicional, buscando aproximar público e cena em uma experiência colaborativa que produza efeitos na própria obra. A primeira medida foi desfazer as noções de palco e plateia, e por isso o espetáculo foi idealizado para acontecer no “laguinho”, como é chamado um dos pátios internos do Palácio Universitário da ECo/UFRJ. É a aposta na horizontalidade, entendida como a falta de hierarquização e separação entre elenco, diretor e plateia. Como boa representante da geração Y, Anna resolveu desmanchar as estruturas hierárquicas não somente no momento cênico, mas também na

construção do texto. A obra parte de alguns escritos iniciais da diretora, mas se consolida com o acréscimo de colaborações das atrizes durante ensaios e encontros para formulação de roteiro. Por tudo isso, Para Adiar a Morte extrapola as noções convencionais de teatro. Sua concepção explora intensamente outras formas de expressão artística, como a performance e a música, em especial, além de uma instalação que reproduz o projeto Before I Die, da artista norte-americana Candy Chang. A montagem original era constituída por painéis posicionados em espaços públicos onde transeuntes completavam a frase “Antes de morrer, eu quero...”. Ao longo do projeto, peças inspiradas na obra de Chang foram produzidas pela equipe e dispostas em locais públicos frequentados pelo grupo, para que eles pudessem imergir no tema da morte, excedendo os limites das próprias vivências e travando contato com experiências alheias. E você, antes de morrer quer fazer o quê?

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O DESPERTAR DA PRIMAVERA de Frank Wedekind

Três turmas do Segundo Ano do Ensino Médio do CAp/UFRJ, sob a direção dos alunos do quarto período do Curso de Direção Teatral, apresentam “EncenaAÇÃO 2017”

Tradução: Sheila Ewert Adaptação: Zé Henrique de Paula Turma 22A Direção: Vinícius Andrade Direção de movimento: Aline Rosa Orientação: Celeia Machado Elenco: Ana Clara Camargo, Breno Flegner, Davi Queiroz, Fernando O. Vieira Neto, Gustavo Ariel, Igor Godinho, Leandro Marinho, Letícia Braga e Mariana Fernandes Turma 22B Direção: Isadora Giesta Direção de movimento: Karla Nogueira Orientação: Andréa Pinheiro Elenco: Cléo Ribeiro, João Victor Costa Velho, João Gabriel Lobão, José Eduardo Gonçalves, José Gramático, Michel Alarcon, Rômulo Oliveira, Samuel Stoliar e Victória Mariana.

Ernst – Quando eu saí de casa hoje, tudo o que eu pensava era conversar com você. Hanschen – Eu também estava esperando isso. Sabe, a virtude é uma roupa bonita que os homens comuns não podem vestir. Ernst - Em nós, ela ainda fica grande demais”

Turma 22C Direção: Reinaldo Machado Direção de movimento: Karla Nogueira Orientação: Andréa Pinheiro Elenco: Amanda Henriques, Ana Fátima Brandão, Daniel Mendes, Gabriel Amorim, Gustavo Aquino, Mariana Messere, Larissa Valente e Laura Machareth Cenografia e figurino: Thuanny Reis Orientação de cenografia e figurino: Sunshine Pessanha Iluminação e produção: Priscila Manfredini Imagens: Beatriz Santa Rita, Iuri Cunha, Sander Machado 25


O Despertar da Primavera como potência de diálogo

Por Isadora Giesta, Reinaldo Machado e Vinícius Andrade Século XXI, 2017: feminismo, movimento negro, movimento LGBT. Lutas que hoje nos são tão caras nas discussões do tecido social vigente. Século XIX, 1890: “O Despertar da Primavera”, texto do alemão Frank Wedekind. Estaria o autor à frente de seu tempo? Ou estaríamos nós, hoje, estagnados? Será que ainda estamos presos às mesmas discussões que levantara Wedekind? Estudando o texto, percebemos que tais questões, que para nós parecem apenas ter sentido hoje em dia, na verdade sempre estiveram presentes: são humanas, latentes, essenciais. Mesmo assim, impressiona a sua presença na dramaturgia de Wedekind, uma vez que naquela época quase não se falava desse conceito “novo” chamado adolescência. Tampouco se falava de descoberta. De desejo. De sexo. De aborto. De morte. Esse é um dos motivos que nos fez desejar encenar este texto. Falar do que não se falava em 1890. Falar do que ainda precisamos (e muito!) falar em 2017. Durante o processo de encenação, tecido com tantos corpos e tantas vozes, surgiu a necessidade de colocar em diálogos os jovens personagens de Wedekind com os jovens atores do CAp. Todos protagonistas, não apenas da cena, mas também do debate. Afinal, quem melhor do que eles, adolescentes do nosso tempo, para contar da perplexidade e do 26

desafio de ocupar o seu próprio lugar no mundo? Nossa questão, como diretores, era: como fazer ouvir e emergir os anseios desses guris e gurias de 17 anos, estudantes do segundo ano do Ensino Médio do CAp, cursando o último ano da disciplina Artes Cênicas? O que se apresentaria de contato entre a sociedade daquela época e a sociedade atual? Construir um espetáculo que aborda a relação entre os jovens e a escola, realizado pela escola e na escola, nos permitiu, como diretores, estarmos sempre inseridos no contexto rico e tenso em que se encontra a peça. Assim, percebemos a riqueza que se dá quando a sala de ensaio, que no caso também é a sala de aula!, trava uma íntima relação entre dramaturgia e encenação, em que não basta decorar falas e executar marcações. Há que se colocar como ator, como adolescente, investigando as relações entre o texto e o seu cotidiano. Não basta ser diretor: há que se colocar, a cada instante, em estreita e precisa conexão com as questões trazidas pelos atores. Não basta levar à cena conflitos familiares e escolares. Há que se falar, refletir e confrontar tudo aquilo que permanece entranhado e estagnado: patriarcado, violência, sexualidade, religião e poder.


Dores do crescimento

Por Gabriel Costa

Uma pequena cidade numa região montanhosa da Alemanha, com uma comunidade extremamente enraizada em morais cristãs e conservadoras. Final do século XIX. Não seria equivocado classificar O Despertar da Primavera como uma peça de época, um daqueles espetáculos que nos transporta para outro tempo e nos faz acompanhar a história dos amantes improváveis, do embate entre monarcas pela coroa, ou qualquer outro ângulo cujo desfecho exalta a importância da coragem, do amor e de todas as virtudes. Mas para os atores que encenam esta montagem da obra de Frank Wedekind, a história vivida pelos personagens no começo de sua adolescência ecoa questões muito mais reais e presentes. A peça conta a história de estudantes de uma escola rígida e religiosa no desabrochar de sua adolescência (um conceito praticamente não usado no tempo em que o trabalho foi escrito). Os protagonistas são Moritz, um garoto perturbado com a descoberta de seus instintos sexuais e que periga ser expulso da escola; Melchior, seu amigo estudioso, que lhe ensina sobre essas questões; e Wendla, uma menina recatada cuja mãe encobre a verdade sobre de onde vêm os bebês – questão que não sai da cabeça da jovem. Além destes três, outros personagens trazem para o enredo questões que expõem o conservadorismo da sociedade em que vivem, como um casal de amigos

que descobre uma afeição homossexual mútua e uma garota abusada pelos pais. A trama é ancorada em imagens prontamente polêmicas: sexo, abusos físicos e mentais, homossexualidade, masturbação, estupro, suicídio. É complicado conceber que um texto que ainda causa esse nível de desconforto no público tenha sido escrito e representado há mais de 120 anos. Tão impressionante quanto a atemporalidade do trabalho do dramaturgo alemão é a maneira natural e genuína pela qual os alunos do CAp/UFRJ inspiram essas questões para si e expiram aflições, medos e inseguranças, numa atuação sensível e bem preparada pelo trio de direção Isadora Giesta, Reinaldo Machado e Vinicius Andrade. Os diretores realizaram um excelente trabalho para conter a densidade do texto numa menor duração e manusear o extenso elenco, que se reveza a cada troca de ato. Numa época em que assuntos como saúde mental e suicídio estão em debate, especialmente nessa faixa etária, o espetáculo montado pelo projeto EncenaAção mostra mais uma vez essa função tão importante do teatro: a denúncia dos preconceitos e a exposição das questões mais sensíveis da sociedade.

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ROMEU E JULIETA

de William Shakespeare direção: Antonio Ventura

Orientação: José Henrique Moreira Elenco: Bernardo Pimentel Lucélia Pontes Marlon Vares Patrícia Bello Paula Serra Pedro Mussi Vinícius Silveira Vinícius Varela

Justo do ódio meu amor foi nascer? Vi cedo, tão tarde fui conhecer! Amor estranho é o que tenho comigo, Que me faz amar meu pior inimigo!”

Iluminação: Nadia Oliveira e Victor Carvalho Cenografia: Raphael Elias Assistência de cenografia: Ricardo Júnior Orientação de cenografia: Ronald Teixeira Figurino: Dandara Almeida Produção: Ana Carolina Magioli Preparação corporal: Bárbara Saraiva, Ronábio Lima e Thais Cristina Orientação de preparação corporal: Ligia Tourinho Tradução, adaptação e pesquisa musical: Antonio Ventura Imagens: Artemisia Gentileschi, Caravaggio, Freedom II Andres. 29


“Mas ele ainda é relevante hoje?”

Por Antonio Ventura

Costumo dizer, entre sério e brincalhão, que receber esse tipo de pergunta é a parte mais difícil de dirigir uma peça de Shakespeare. Principalmente quando é tão conhecida — e, dizem, esgotada — quanto a história de Julieta e seu Romeu. Talvez perguntas desse tipo sejam, se o leitor me permite a ousadia, mais baseadas numa certa má vontade para com um dramaturgo “clássico” (que, me parece, subiu nesse pedestal muito a contragosto) do que numa leitura, de olhos e coração aberto, das peças de um homem que — para usar as palavras do seu rival e amigo Ben Jonson — não foi de um tempo, mas de todos. Shakespeare já sabia, quatrocentos anos atrás, que a humanidade costuma trocar de roupa, mas não de hábitos. Uma pergunta mais interessante é até que ponto a atualidade de Shakespeare é um resultado do seu gênio, que sem dúvida soube mirar em nossos aspectos mais profundos, ou da teimosia humana, que repete as mesmas tragédias e comédias nesse palco do mundo. Acho que a História que precedeu Romeu e Julieta pode nos ajudar com a resposta. Pouco mais de um século antes da tragédia ser escrita, terminava a Guerra das Rosas, longa guerra civil pela sucessão ao trono inglês, tema de outras oito peças shakespearianas. Assim como em Verona, foi uma disputa entre “duas famílias, de situação igual”, as 30

casas de York e de Lancaster. O trauma histórico que esse conflito deixou na Inglaterra foi com certeza um ingrediente essencial dessa criação de Shakespeare. Hoje, a tragédia em cartaz no Brasil é, mais uma vez, a de Verona e a daquela Inglaterra, devidamente adaptada ao século XXI e ao clima tropical: é a tragédia da falta de diálogo, do extremismo em todo o espectro político, da dicotomia. A tragédia de uma sociedade que se parte à menor discordância ideológica, na qual quem não é meu amigo é meu inimigo. A diferença é que, em vez de espadas, as armas são discussões (virtuais ou presenciais) que têm por objetivo principal não o fomento do debate, e sim a reafirmação da própria visão de mundo, quando não uma tentativa de catequese. Romeu e Julieta oferece um eterno lembrete de como a falta de escuta entre os diferentes lados de um conflito é destrutiva em qualquer sociedade, seja ela um ducado no século XVI ou uma república no XXI; e, de quebra, traz alguns dos versos mais bonitos já escritos. Versos que, espero, façam com que o espectador, ao ver e ouvir, sinta a mesma inquietude que tive ao traduzir e dirigir.


A originalidade dos clássicos

Por Mariana Fontes

Entre Montéquios e Capuletos, uma rivalidade e uma paixão enaltecidas durante cinco séculos de encenações. Não é uma história sobre um amor, muito menos um amor purificado e sublimado, é uma trama permeada por risco, conflito e paixão: assim o diretor Antonio Ventura apresenta sua releitura do clássico shakespeariano. Em sua peça, Romeu e Julieta passam longe de românticos incorrigíveis. São representados como dois jovens apaixonados e apressados em meio à Guerra Civil de Verona. “Eles correm tanto que tropeçam”, comenta uma das atrizes durante o ensaio, em referência a uma fala do frei Lourenço, amigo e conselheiro de Romeu. “Tudo para eles tem que ser agora”, analisa o diretor. O desejo por imediatismo é explicitado quando Julieta lamenta o tempo que passarão distantes. “Porque um minuto vai ser vários dias. Ai, desse jeito vou ser uma velha antes de voltar a te ver!”, lamenta-se a personagem. Em Shakespeare, a analogia entre noite e dia, luz e sombra; nessa montagem, a pressa do casal se opõe ao tempo de dedicação de Antonio Ventura ao que chama de “nada mais nada menos do que o projeto da minha vida”. Tempo investido em um mergulho no texto original, com dois anos dedicados a uma tradução livre de Shakespeare. Enquanto foge do

fantasma da originalidade, do inédito, Ventura busca ir ao encontro do que já foi feito para achar algo que não tenha sido explorado. Tamanha dedicação resulta numa nítida intimidade com o texto e seus detalhes, e nada passa desapercebido. O tom de diálogo atravessa a peça e as soluções para cada cena são pensadas e debatidas entre atores e diretor. É justamente o diálogo uma das questões centrais que Ventura busca levantar, conectando a narrativa aos dias atuais por meio de um paralelo traçado com o momento de polarização política no Brasil. “Talvez Capuleto e Montéquio não pudessem ser amigos, mas pudessem ser aliados. Tem coisas maiores, como a paz em uma cidade, a ordem política em um país, que são mais importantes que uma divergência ideológica”, diz. Corpos e vozes aquecidos, é hora de deixar os riscos – da paixão e físicos – entrarem em cena. “Se eu tivesse que definir Romeu e Julieta em uma palavra, seria hormônios”, conclui Ventura. A peça explora o não-superficial presente no texto de Shakespeare, põe os clichês de lado, e é exatamente desta imersão que aflora sua originalidade. Há muita surpresa na releitura empenhada de um clássico – e por isso ele é um clássico.

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TRILHOS INVISÍVEIS dramaturgia e direção: Bruno Parisoto

Orientação: Jacyan Castilho Assistência de direção: Silvia Galter

Todo dia os dois tomavam café da manhã juntos, independente das circunstâncias. As mesas estavam sempre com flores, os dias eram sempre alegres. Ou pelo menos eu achava. Até que um dia tudo isso mudou. Uma cena que eu nunca imaginei que fosse acontecer comigo, aconteceu...

Elenco: Anderson Barreto Christina Galli Elton Sacramento Mayara Tenório Thaísa Violante Iluminação: Clara Castañon e Kepler Jofre Direção de arte: Anne Carestiato Assistente de figurino: Giovana Santoro Produção: Homero Ferreira Preparação corporal: Luana Garcia Orientação de preparação corporal: Lígia Tourinho Direção musical e trilha sonora: Estela Manfrinato e Saulo Ligo Imagens: Antonio Nery, Bruno Parisoto, Frank Augstein/AP Photo, Leandro Neuman Ciuffo, Wolmin Dahgrota 33


Um manifesto contra as ausências

Por Bruno Parisoto

“- Hey, psiu! Olha a bala que só vai pagar um real! Vai um aí, freguesa? Vai um aí, freguês?” Vai aí um espetáculo de teatro que fala de violência sexual infantil, machismo, racismo, corrupção, manipulação midiática, descaso, falta de segurança nos transportes públicos carioca? Opa! Ô se vai! Vai ter até a Central do Brasil dentro da sala Vianinha. Você já se perguntou o que representa a Estação Central do Brasil para você? E o teatro? O que nos move produzir uma obra de arte nesse momento? Para mim, a Central não representa somente essa estrutura arquitetônica que abriga 12 linhas de trens, levando diariamente milhares de pessoas de um ponto ao outro no Grande Rio. Ela subverte sua própria lógica histórica: um prédio construído no século passado, com 135 metros de altura, que já foi conhecido como a estrutura de concreto armado mais alta do mundo. Hoje, esse espaço revela uma arquitetura social de descaso, precariedade, falta de segurança e caos. Segundo o filósofo russo Jacob Klatsin, “Uma das principais tarefas da cultura é fazer da necessidade, liberdade”1. O teatro, nesse momento, entra na pauta como urgência. É como o barulho das sirenes 1 BONFIM, Benedito Calheiros. Pensamentos Selecionados. 3ºEdição. Editora Impetus, 2013, p.64.

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de uma ambulância levando um ferido até o hospital; é preciso levar, questionar, expor a tempo as fraturas socioeconômicas que trilham essa cidade. Afinal, somos uma multidão invisível que sofre as consequências desse caos da beleza de suas praias, diariamente sufocadas pela podridão de seus alicerces políticos. Nesse sentido, liberdade é necessidade. Necessidade do outro, do questionamento, da subversão, do poético. Trilhos invisíveis se apresenta como uma proposta cênica que vai além da Central do Brasil. Trata-se de expor esse corpo colonizado, maltratado, barato, manipulado, impróprio e subversivo. Esse corpo que respira a fumaça tóxica dos nossos governantes atuais, que tão pouco nos representam e muito nos prejudicam. Que a nossa arte não produza ausências.


A vida fora dos trilhos

Por Maria Júlia Albuquerque

Violência sexual, machismo, racismo, corrupção, manipulação midiática, descaso e falta de segurança. Falar de mobilidade urbana no Rio de Janeiro é passar obrigatoriamente por temas como esses, e o diretor Bruno Parisoto aproveita seu espetáculo de fim de curso para debater questões fundamentais para o cotidiano da população brasileira. Há cinco anos no Rio, Parisoto usa histórias inspiradas em relatos reais no espetáculo “Trilhos Invisíveis”, que toma a vida de seis personagens na Central do Brasil como ponto de partida para falar de uma sociedade cada vez mais excludente. O diretor sabe que a Central é uma representação que vai além da estrutura arquitetônica e usa isso para tirar a plateia de sua zona de conforto. “Um prédio construído no século passado, com 135 metros de altura, já foi conhecido como a estrutura de concreto armado mais alta do mundo. Hoje, esse espaço revela uma arquitetura social do descaso, precariedade, falta de segurança e do caos. Todo mundo fala da Central, mas todo mundo teme a Central”, resume. Dessa forma, a Central do Brasil se transforma em símbolo de uma das caras da realidade sociocultural carioca, e o espetáculo aposta em cenas fortes para representar as experiências de medo e descaso. Beleza e caos, amor e medo, e a contradição evidencia o resultado dos abismos sociais brasileiros que serão expos-

tos através de uma moradora de rua, dois vendedores de bala, um segurança e dois jornalistas. Por acreditar que o teatro tem a missão de alertar e libertar a sociedade, o diretor trabalha para desnormalizar, na vida de cada um, as “catracas invisíveis” com que convivemos. Relembra também o significado de medo que as plataformas conquistaram com o passar dos anos. “É preciso questionar, expor a tempo as fraturas socioeconômicas dessa cidade, afinal, somos uma multidão invisível que sofre as consequências desse caos”, conta Bruno. Nos trilhos da Central, a metáfora de uma sociedade contraditória, ora decadente, ora esperançosa. E assim o espetáculo convida o público a, por trilhos invisíveis, mergulhar no centro da desigualdade social brasileira.

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BICHAS de Livs Ataíde (com e para BICHAS) direção: Gabriel Pardella

Orientação: Eleonora Fabião Assistência de direção: Júlia Helena e Taís Trindade

Comandante Pina falando. Seja bem viados ao vôo 6924 da Close Airlines, com destino à Bichas. (...) Em caso de preconceito máscaras de tolerância cairão automaticamente. Ajuste o conteúdo em volta da cabeça e depois auxilie os outros, caso necessário. (...) Como medida preventiva, os atores são orientados a não revidar intolerância com violência. Lembramos que respeito é bom e eu gosto”

Elenco: Augusto Semensatti Brenda Monteiro Fernanda Abi-Ramia Gustavo Ciupryk João Cappelli Johnny Ferro Lidia Guerrero Marina Nagib Taís Feijó Taís Trindade Ulli Castro Iluminação: Beatriz Santa Rita e Reinaldo Machado Cenografia: Leonardo dos Santos e Alexandre de Moura Figurino: Adler Franco Preparação corporal: Amanda Santana Orientação de preparação corporal: Ligia Tourinho Produção: Wesley Calcanho Direção musical e arranjos: André Sigom Colaboração: Luiz Fernando Dias Tavares Imagens: Heitor Muniz e Maíra Barillo 37


Uma senhora Bicha!

Por Gabriel Pardella

Era difícil imaginar que um dia eu sairia do armário. Era difícil imaginar que eu me tornaria a bicha que sou. Mas graças a todo o glitter liberado no planeta, aqui estou! Um pouco menos normativo, momentaneamente homossexual, e muito, muito mais que muito BICHA. Para os homofóbicos de plantão me apresento: sou uma SENHORA BICHA! Não me venha com o papo de que o mundo mudou, de que está tudo incomparavelmente melhor, de que as pessoas estão mais livres. Estão, de fato estão. Estou. Porém, enquanto houver um homofóbico na rua, a minha vida e a de milhões de pessoas está em risco. É o risco real de ser agredido por seis homens na praia, como eu fui, de ver o assassinato de uma travesti gravado, compartilhado e louvado. É o perigo de ser tratado como doente, como um degenerado que precisa receber a oferta da “cura gay”.

Te conto que comecei o caminho que me trouxe até aqui como Drag Queen. Botei salto, peruca, cílios, unhas, saí pelas ruas do Rio. Meu nome é Pina. Ao mesmo tempo, iniciei uma pesquisa sobre o universo Drag dentro da academia – me pesquisei, pesquisei as manas e as monas, li e debati sobre as nossas questões. Ao longo desse processo venho escrevendo textos e um diário da Pina. Em 2015 escrevi assim: “Saio de uma festa. Maquiagem ainda sobrevivendo ao calor e sem descer do salto. Caminho até uma lanchonete na Lapa, centro do Rio, com uma amiga, Victoria. Lindas e belas entramos. Peço um suco. Ouço risadas e comentários sussurrados. Alguém grita: PRA QUE ISSO TUDO? Respondo: PRA TOMAR UM SUCO, UÉ!” Pina sai para tomar um suco. Gabriel sai e leva um soco. Pina precisa sair para tomar suco para que Gabriel possa sair sem tomar soco. BICHAS precisa

Para o menino de 16 anos que ingressou em 2012 na faculdade de Artes Cênicas, curso de Direção Teatral da UFRJ – oprimido sexualmente pela família e amigos, silenciado pela religião e pela sociedade –, é mais que necessário estar hoje se formando com um

acontecer para que muitxs saiam sem tomar socos. Va-

espetáculo que leva o nome do que um dia foi uma ofensa. Sou bicha, bichona, bichérrima, bicherrérrima. Para fechar esse ciclo de muita trucagem1, BICHAS me parece ser o lacre2 certo.

Agradeço também à minha família, aos meus amigos, à minha turma, às bichas, fanchas, estranhas. Agradeço à

1 Termo Drag para esconder o pênis. 238Gíria que tem como sinônimo, “mandar bem”, “arrasar”.

mos tomar um suco com as Bichas? Por fim, gostaria de agradecer às pessoas que foram essenciais nessa jornada e na criação de BICHAS. Primeiro, às Deusas e todo o axé que venho recebendo.

terra. Obrigado arco-íris. Obrigado professoras. Obrigado close coletivo. Obrigado Pina.


Arte contra a opressÃo

Por Fernanda Casagrande

Atrás da porta de uma das salas do Palácio Universitário, jovens varrem e passam pano no chão. Não parece, mas começa ali mais um ensaio teatral do espetáculo Bichas, e a faxina foi uma das formas que o elenco encontrou para se traduzir como um coletivo. Dirigido por Gabriel Pardella a partir de um texto escrito por Livs Ataíde, o musical aposta na representação de performances drags para falar da falta de diversidade. Durante os ensaios surgiu o nome do grupo, Close Coletivo. A equipe também levou o tema para além dos palcos e, em sua página no Instagram, se manifesta em defesa da causa LGBTQ. A página é ao mesmo tempo fórum de debates e diário de campo dos ensaios, e lá é possível acompanhar, em vários vídeos, a evolução das performances até a apresentação. Para viver drags, 11 homens e mulheres do elenco passaram por um processo extenso de aprendizado. Foram cinco meses de ensaio, com treinamento de corpo e linguagem a partir de jogos de improvisação, preparação de voz, canto e dança, além da discussão de figurino. Cada personagem foi pensado individualmente. Os ensaios resultaram em um programa performativo, com apresentações em locais públicos para que, a bordo de saltos e cílios postiços, o elenco vivesse a experiência de ser drag. Para muitos atores, foi a primeira vez como drag. Uma das performances

aconteceu no shopping Rio Sul, em Botafogo. A apresentação e a reação do público foram filmadas e postadas na página pública do Close Coletivo. Até a reta final dos ensaios, os jovens atores mantiveram o estranho costume de limpar a sala. Para eles, era como se a faxina representasse a opção pelo trabalho em equipe, mostrando a vontade e união do grupo em todos os processos que envolveram a realização do espetáculo, “com todo mundo junto e no mesmo barco”. Outro desafio que Bichas oferece ao público é entrar em um universo pouco explorado pela sociedade, o das drags, para discutir que espaços elas podem e conseguem atingir. Segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (ILGA) e o Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil é o país que mais comete homicídios por homofobia na América, com uma taxa de 1,05 mortes por dia. O número é o maior já registrado desde 1980. Num país que mata LGBTQs, o recado de Bichas é usar a arte como forma de combater a opressão.

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GARATÉA

criação colaborativa direção: Victor Newlands

Diretora assistente: Nina Balbi Orientação de pesquisa: Adriana Schneider Dramaturgia em processo colaborativo: Nina Balbi e Victor Newlands Atuantes: Ana Miramar, Anna Clara Carvalho, Ma Ma Horn, Pedro Nunes, Rafael Peña Turatti e Samia de Souza Iluminação: Márcio Newlands, Nina Balbi, Rafael Peña Turatti e Victor Newlands Direção de arte, direção de animação, cenografia e figurino: Rita Spier e Marcio Newlands Adereços: Marcio Newlands, Rita Spier e Rafael Peña Turatti Direção e pesquisa musical: Miguel Mermelstein e Victor Lemos Músicos, arranjos e criação musical: Miguel Mermelstein, Pedro Zisman e Victor Lemos Preparação corporal: Dani Saad HQ, desenhos, cartaz e imagens: Paulo Damásio Intervenção urbana, grafite, pixação, lambe, bomb: Tarso Gentil Zines: Aline Vargas Filmagens: Pedro Freitas e Eduardo BP Produção: Samia de Souza Colaboração artística: Déo Luiz, Hadi Bakkour, Júlia Carvalho, Júlio dos Santos Castro, Lucas Inácio Nascimento, Manu Libman, Mayara Yamada, Pedro Pedruzzi, Raquel Messina Cukierman, Thaíssa Klotz e Tomás Braune Co-realização: Companhia Volante Imagens: Maíra Barillo e Will Eisner 41


O diálogo necessário Por Victor Newlands

Garatéa é uma pesquisa em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Arte da Cena (PPGAC/UFRJ) sobre as fricções entre os conceitos “sociedade” e “indivíduo”. Desenvolvida a partir das obras gráficas de Will Eisner (“Nova York - a vida na 42

grande cidade”) e Moebius (“InCall”, “Caos”, “Arzach” e “Crônicas Metálicas”), Garatéa é a necessidade de dialogar com o espaço universitário, urbano e relacional. O ineditismo na presença de uma pesquisa oriunda da pós-graduação dentro da Mostra de Teatro é significativo se atentarmos para as inúmeras dificuldades nos campos da Educação e das Artes, entre diversos cortes, calotes, parcelamentos de salários e bolsas, passando inclusive por barreiras de moralismos e catequeses. Garatéa é uma realização da Companhia Volante, surgida do encontro no espaço universitário em seus dois primeiros trabalhos, “Panidrom” (2014) e “Baladas Mortais” (2015). O grupo vem desde então ganhando ruas, praças, parques e espaços alternativos em diferentes cidades. Estreando na direção em teatro de rua, sinto imensa alegria e responsabilidade em aprofundar nossa pesquisa. Trata-se de uma peça itinerante dividida entre seis criaturas, cada uma correspondendo a uma tribo de Garatéa, e o público decide a qual tribo pertencerá. Encontro de tribos em um futurismo arcaico, onde realidades paralelas coexistem na concretude do espaço, Garatéa é um jogo primitivo, uma pulsão de nossos conflitos cotidianos, a aleatoriedade do choque entre diferentes trajetórias... Para nós, um chamado dos espaços a serem ocupados.


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POR QUE HÉCUBA

de Matéi Visniec direção: Lorena Morais

Orientação: Carmem Gadelha

No entanto, alguma coisa não fecha no universo... Se tudo é engendrado pelo Amor, então, por que existe tanta crueldade, tantas guerras, tanta tristeza? Tem aí alguma coisa que eu não entendo... Por que tanta dor, se tudo brota do Amor?”

Elenco: Hikari Amada Pablo Pêgas Ricardo Rocha Tainá Lasmar Thaís Mazzoni Iluminação: Marianna Mugnaini Direção de arte: Marcela Cantaluppi Produção: Gabriela Villela Preparação corporal: Igor Capanema Orientação de preparação corporal: Lígia Tourinho Preparação vocal, pesquisa e direção musical: Leo Bahia Imagens: Nilüfer Demir, Massimo Sestini, Vedat Xhymshiti e Willy Verginer 45


Quem cria as bombas?

Por Lorena Morais

“O papel do artista é passar adiante o que lhe cega ele não existe para servir nem para mandar mas para transmitir Toda grande obra de arte instaura um extremo deleite com a existência e um desespero cruciante em raras intensidades de ambivalência.” Roberto Alvim

Uma mulher, na rua, só com a roupa do corpo. A mãe? Já se foi. O pai? Ela não sabe se está vivo. O irmão? Foi achado nos escombros da casa, já sem vida. O marido? Degolado. O filho? É só o que resta nos braços. A Guerra não bate na porta, ela invade a sua casa pelos buracos de bala e tira você lá de dentro. Para ela pouco importa se você matou alguém, se você tem um filho de dois anos ou se sua família só está rezando; ela ENTRA. Na sua casa, na casa dos seus amigos, dos seus vizinhos, seus familiares. O horror se espalha na velocidade de uma bomba, com aquele mesmo som. Quem cria os refugiados são as bombas. Quem cria as bombas são os homens. Agora, quem criou os homens? Quem criou as trevas? A troco de quê? Culpar os deuses pelas nossas imperfeições. Culpar os deuses pela nossa comodidade frente ao 46

horror. Culpar os deuses pelo rumo que a Terra está tomando. Culpar os deuses pelas mães que perdem seus filhos. Mas quem são os deuses, senão seres cheios de Luz e Trevas? Quem são os deuses, senão o princípio do horror? Quem são os deuses, senão aqueles que assistem às guerras do sofá de seus templos? Quem são os deuses senão Nós mesmos? Quando li Por que Hécuba pela primeira vez foi arrebatador. No texto nós assistimos a uma mãe perder todos os seus filhos na guerra, vemos as fogueiras que ela acendeu serem apagadas pelas mãos dos homens. Vemos a árvore secar quando os seus frutos morrem. Como numa narrativa do que seus olhos vivem, o autor Matéi Visniec traz de maneira poética a realidade do mundo, mas sem deixar de lado a sua face cruel. De maneira satírica, o autor coloca em cena personagens que se deleitam com a tragédia do outro, expondo assim, seu (nosso) lado mais perverso, trazendo um tom cômico e ácido ao texto. A descoberta do texto e a concepção da montagem foram processos muito solitários para mim. Foi uma alegria ser recebida pela minha orientadora, ouvir pela primeira vez o elenco ativar as palavras do texto, tão cuidadosamente. A soma fez a diferença. O Amor é importante e o mundo é um ciclo.


A vida sob os escombros da guerra

Por Gabriela Silva

Os deuses não poupam ninguém do sofrimento. Pelo contrário, servem-se dele para zombar dos homens. Só aqueles que perdem alguém vivem as dores da tragédia. Por que Hécuba, do romeno Matéi Visniec, não é uma pergunta, mas a resposta a tantas questões; é atemporal e nos desperta do torpor em um momento de mazelas acumuladas. Por que somos tão atacados por conflitos e a quem eles atingem? O autor escolhe usar a tragédia grega para falar do sofrimento humano, e a peça retrata a dor de uma mãe que perdeu seus filhos na guerra de Troia. A mesma dor que mães sentem todos os dias até hoje, em tantas guerras sem fim. Mulheres destroçadas em terras destroçadas, guardando para si os espólios de guerra – para Hécuba, as cinzas de seus 19 filhos mortos em combate. O espetáculo conta a história de quem fica, de quem lida com os escombros das guerras. A aluna-diretora Lorena Morais já tinha escolhido abordar, em sua peça de formatura, a temática dos refugiados e procurava um texto que se enquadrasse nele. “Eu acredito muito no texto, ele é o grande guia do meu processo de ensaios, então precisava de um já pronto para a montagem”, lembra. Para encontrá-lo, passou por um processo longo e solitário que terminou quando, passeando em uma

livraria, Lorena se deparou com o texto de Visniec. “Resolvi sentar ali mesmo para ler e tive certeza de que era ele”. A obra original sofreu algumas mudanças. A peça se realiza por uma construção entre diretora, preparador corporal, atores e trilha sonora, que conta com duas músicas de Elza Soares, retiradas do álbum “A Mulher do Fim do Mundo”. Quando a canção “Comigo”, quase um testamento de filhos para a mãe, começa a tocar, as emoções vêm à tona e os atores em cena são tomados pelo sofrimento que permeia a história. Hécuba - interpretada pela atriz Hikari Amada - entoa “Coração do Mangue”, como resposta ao seu vazio interior. Assim começa o espetáculo. Mas, se o sentimento inicial é o de vazio, o futuro tem por ofício trazer esperança. A mensagem final, se podemos ter esperança, é de reconstrução. A natureza do ser humano, voltada para a sobrevivência, se sobrepõe ao sofrimento. Seguimos nossa trajetória transformando dor em narrativas e assim nos constituímos como Humanidade através dos tempos.

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CUIDADO, ESPELHO. Uma exposição de pessoas criação coletiva direção: Marianna Mugnaini

O corpo é o espelho da Alma. Antes que me julguem, eu devo lembrar que vocês não podem, vocês não têm condições e nem permissões pra fazerem isso, porque vocês não estão aqui dentro. - Ou estão?”

Orientação: Livia Flores e Gabriela Lírio Assistência de direção: Marília Gurgel Elenco: Adriana Bellonga Camila Scorcelli Davi Palmeira Iluminação: Issacarla Arts Direção de arte: Camila Scorcelli Figurino: Karoline Pereira, Luanna Amâncio e Julyana Dias Produção: Aline Nascimento Imagens: Capa single Adam Shure/Richie Hawtin, Eugène Ionesco, Marília Gurgel 49


REVER: Um processo de espelhos

Por Marianna Mugnaini

“A consistência está em construir um corte no caos, não se perder nele” Rafael Trindade.

Espelhos são objetos capazes de gerar reflexão ou reflexo. Espelhamento ​é o nome que encontramos para nomear os momentos em que descobrimos algo sobre nós a partir da nossa relação com xs outrxs.

Nós queremos ser espelho porque é no reflexo que entendemos quem podemos ser. Para o espelho funcionar, ele precisa de alguém que se mova dentro dele. E eu preciso de você.

Temos um desejo em comum: investigar o ser humano e seus afetos. Escolhemos o espelho como tecnologia e analogia para nossa investigação. É só mais uma jornada.

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Nós queremos falar de afeto Nós queremos ser o espelho desses afetos um reflexo, uma imagem, uma versão De tudo o que os afetos nos causam

É uma expedição sem lugar de chegada, uma aventura sobre nós, todxs nós. Escolhemos a autoimagem como ponto de partida para essa nossa investigação-expedição artística sobre espelhos e espelhamentos. Nessa primeira apresentação do processo desejamos partilhar reflexões e insights sobre relações com nossa própria imagem e como isso pode interferir na nossa potência de vida. Convidamos você para uma pequena expedição de autoconhecimento e de processo criativo. Vamos juntos?


Manifesto pelo (des)encontro

Por Yasmin Santos

“Cadê eu que não me acho?”, indaga o ator Davi Palmeira num dos ensaios de Cuidado, espelho. Uma exposição de pessoas. Autoimagem e autoestima, espelhos e espelhamentos, encontros e descaminhos de si. O espetáculo, uma construção coletiva dirigida por Marianna Mugnaini, trabalha com o desconforto de cada participante, numa encenação que tem a vulnerabilidade como base. A cada ensaio os atores constroem estruturas para se proteger do furacão que é ser. A diretora observa, faz anotações em seu caderno e provoca. Em resposta, vigas e tijolos desmoronam. A peça é sobre deixar-se doer, e sobre curar. Cuidado, espelho. Uma exposição de pessoas é híbrida: exposição artística e teatro. Não há cadeiras para a plateia. Num primeiro momento, não há nem interação entre os três atores. Separados por frágeis paredes de tecido, eles expõem suas inquietações. “Eu me exponho para que você possa se refletir em mim e aprender sobre você”, analisa Marianna. Para a diretora, incluir mais ativamente o público na obra é uma necessidade num espetáculo que sugere o olhar para si. O primeiro ato é uma exposição de cenas construídas a partir das imagens que os atores têm ou acham que têm de si. O segundo se inicia com o cair dos tecidos, das barreiras que nos separam, e representa a comunhão entre atores e público.

“Gozar é bom”, sorri a personagem de Adriana Bellonga. Seus olhos se voltam, amargurados: “20, 30 minutos depois passa, a dor volta”. Seu texto é autobiográfico, e a atriz foi convidada a integrar o elenco quando passava por um episódio traumático com seus olhos. Adriana busca a essência de alguém através do olhar. Seu desafio é se permitir mostrar que doeu. Ainda dói. A atriz Camila Scorcelli norteou sua pesquisa em mulheres que têm rosto e corpo deformados por ácido. Enquanto a personagem conta como a substância corrói o corpo, a atriz se expõe e se oculta. Sem deformações em seu rosto e corpo, Camila se corrói não por fora, mas internamente, com palavras e ações. A crueldade do homem é exposta por Davi Palmeira. Sua pesquisa foi baseada no que a sociedade lhe tolhe, enquanto homem e gay. No palco, raiva e o ódio entram em cena e, perto de explodir, Davi posiciona o espelho. Diante do eu fascista, é você, espectador, que o espelho reflete. O homem torna-se, na ficção, seu próprio algoz. Como dizia Guimarães Rosa, “sim, são para se ter medo, os espelhos”. Por isso, cuidado, espelho.

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ESTAMOS AQUI

criação coletiva direção: Ian Calvet

É impossível amar a cidade sem ‘bejácu’ de imperador, sem ter sinhá e sem sinhô, só sendo cá, o meio do mar, vento frio, corpo dor. Eu vi de fora melhor do que de dentro, eu mudo o centro, eu sou o centro. Eu traço a linha aonde eu sempre quis, a fronteira é de giz, é a minha cicatriz. Quero queimar o mundo para fazer o meu país!”

Orientação: Jacyan Castilho Assistência de direção: Mariana Machado Criação dramatúrgica: Elisa Otonni, Giovanna Infante, Ian Calvet, Julia Ribeiro, Mariana Machado, Mariana Nomelini e Paula Santa Rosa Elenco: Elisa Otonni Giovanna Infante Júlia Ribeiro Iluminação: Louise Cyrillo e Sofia Vargas Direção de arte: Paula Santa Rosa Produção: Ian Calvet e Hadi Bakkour Preparação corporal: Mariana Nomelini Orientação de preparação corporal: Ligia Tourinho Imagens: Mathieu Willcocks e Daniel Berehulak 53


A arma vem do “lixo”

Por Ian Calvet

Para construir uma cidade, quantas toneladas de entulho são jogadas fora? Pra onde vai aquilo que sobra? O entulho não some, ele é jogado à margem para não atrapalhar o caminho, para não frear a “ordem e o progresso de uma nação”. Esses entulhos são pedra, madeira, aço, plástico, lama tóxica; esses entulhos são corpos humanos, ou aquilo que resta de um corpo. Ao ser descartado, não sobra mais nada, apenas corpo. Corpo se desfazendo na imensidão azul. Corpo que boia diante de um mundo que parece não querer a sua presença. Os corpos refugiados são peças descartadas na engrenagem capitalista - não é nenhuma novidade esse lixão de humanos a céu aberto. O problema é que a quantidade desses “entulhos” cresceu ao longo dos anos a ponto de colocar em cheque o falacioso discurso ideológico capitalista de “união entre as nações”. Diante de uma crise humanitária sem precedentes, as fronteiras se fecham e os muros crescem; revelase que a lógica econômica impera sobre as demandas imediatas dos corpos que passam fome. A causa humanitária e o acolhimento do diferente, dentro do sistema capitalista, têm fins lucrativos e de autopromoção. No fundo, basta cair uma agulha indevida no chão para que todas as armas do mundo fiquem apontadas umas contra as outras. No fundo, o mundo está prestes a se explodir, e isso não é de hoje. 54

Esse trabalho coletivo é sobre os restos, sobre a margem, os detritos humanos, refugiados que boiam – neste momento – em um barco no meio do oceano. Estamos – no plural – atuando, dirigindo e escrevendo dentro de um barco sem rumo e sem âncora; o barco é a sala de ensaio. Não existem mapas, nem roteiros. Não sabemos ao certo onde foi o ponto de partida, apenas suspeitamos que, conforme o tempo passa, chegaremos a algum lugar. O que fica, e isso ninguém nos tira, é a busca cotidiana para construir corpos, vozes, discursos tão afiados quanto facas, tão mortais como armas, e apontar contra a cabeça dos poderosos chefões desse império destrutivo. A escrita, portanto, é coletiva: “O corpo não pertence, o mar é uma valsa que dança a justiça própria. A existência não muda nada nesse mundo, um homem só não deixa pegadas. E se o corpo é 70% água, somos eternos navegantes... Como é a terra que nossos pés pisam? Como me agarro quando não tem onde pegar? Onde é o Norte de quem não tem leme?...”


Por Scarlett de Mattos

Mar de gente

Imagine a seguinte situação: você é perseguido por sua raça, religião ou posicionamento político, passa fome, sofre ameaças, tem seus direitos violados e está em meio a um conflito armado, uma guerra declarada que faz com que sua única escolha seja a fuga como caminho para a sobrevivência. Esse é o “caminho” trilhado hoje no mundo por mais de 60 milhões de pessoas que, neste momento, marcham por quilômetros de distância ou remam em meio ao oceano lutando por suas vidas. São detritos de seres humanos agora fragilizados, distantes de suas casas, muitas vezes sem suas famílias, nômades, corpos à deriva oriundos de um sistema que os exclui, massacra, expulsa e, no momento de uma possível acolhida, rejeita. Vive-se hoje a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), a agência da ONU que cuida do assunto, uma em cada 113 pessoas no mundo solicita asilo, sendo deslocado interno ou refugiado. Em 2016, cerca de 65,6 milhões de pessoas deixaram à força seus países de origem, o que equivale à população da França ou Itália. Números que chocam, assustam, incomodam. Mas incomodam a quem? Os países com maior número de refugiados são Síria, Somália e Afeganistão, regiões da África e do Oriente Médio. Nações de renda média ou baixa são as que mais

acolhem refugiados, entre elas a Turquia e o Líbano. Os dados apontam que a cada minuto, vinte e quatro pessoas são deslocadas de forma compulsória em algum lugar no mundo. Ao longo da uma hora de duração do espetáculo Estamos aqui, 1.440 pessoas irão abandonar suas casas e se tornar refugiadas. Os números também são de mortes, incontáveis, daqueles que encontram fronteiras fechadas, muros erguidos e ondas fortes – fugindo de armas e bombas, miséria e caos, muitos se lançam em travessias marítimas, seguindo o fluxo dos oceanos. Estamos aqui traz a multidão para o palco da Sala Vianinha: o “mar de gente” em meio ao mar é composto por três personagens que têm consigo a coragem, o medo, a fome e também a esperança. Corpos que flutuam na imensidão do azul – da água e do céu –, na vastidão do oceano, onde a pequenez do ser humano se engrandece em busca de nova vida. E, ao vencer a correnteza, terra à vista! Mas terra de quem?

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GIANNI SCHICCHI de Giacomo Puccini direção: Manuel Thomas

Orientação: Alessandra Vannucci Assistência de direção: Conrado Cerqueira Tradução: Manuel Thomas Elenco: Andressa Inácio (Mezzo-soprano), David Rasga (Barítono), Jessé Bueno (Barítono), Júlia Requião (Mezzo-soprano), Loren Vandal (Soprano), Marcelo Inagoki (Barítono), Marianna Lima (Soprano), Patrick Oliveira (Baixo), Rafael Siano (Barítono), Rodrigo Sammarco (Tenor), Santiago Villalba (Barítono), Tiago Teixeira (Baixo/Barítono), Pedro Rodriguez (Criança) e Leonardo Nogueira.

Lauretta - O mio babbino caro, mi piace è bello, bello; vo’andare in Porta Rossa a comparar l’anello! Sì, sì, ci voglio andare! e se l’amassi indarno, andrei sul Ponte Vecchio, ma per buttarmi in Arno! Mi struggo e mi tormento! O Dio, vorrei morir! Babbo, pietà, pietà! Babbo, pietà, pietà!

Direção musical e regência: Evandro Rodriguese Músicos: Piano: Cláudio Ávila; Violinos: Alexandre Azevedo/Oseias Rodrigues; Viola: João Reis; Violoncelo: Diogo Moura; Clarinetas: Gabriel Dellatorre / Nikolas Pereira; Trompa: Jhonatas André; Flauta: Alexandre Santiago; Trombone: Matheus Luiz Iluminação: Isadora Giesta, Priscila Manfredini e Taís Trindade Figurino: Marcelo Moianno Assistência de figurino: Andressa Damascena Orientação de figurino: Michele Augusto Produção: Issacarla Arts Assistente de produção: Leonardo Nogueira Preparação corporal: Mariana Nomelini Orientação de preparação corporal: Lígia Tourinho Pianista Acompanhador: Cláudio Ávila Imagens: Bartolomeo Di Fruosino, Ken Holmes e Stolen Chair Theatre Company. 57


a eterna contenda

Por Manuel Thomas

Antes de entrar para o curso de Direção Teatral, por muitas vezes passava em frente ao prédio da Escola de Comunicação, e me emocionava, pois era ali (aqui) que sempre sonhei em estudar. Eu me encantava com o fato de poder pesquisar, investigar ou até mesmo dirigir um gênero de espetáculo que é minha grande paixão: a ópera. E cá estou! Em 2011, um ano após ter entrado na faculdade, tive a felicidade de estagiar como Diretor Teatral na Cia Lírica, uma companhia de ópera independente que tinha a intenção de ampliar o mercado de trabalho no cenário operístico do Rio de Janeiro. Durante minha estada na Cia Lírica, estagiei em três óperas: Madamme Butterfly (G. Puccini), La Boheme (G. Puccini) e Atilla (G. Verdi), que me colocaram diante de questões envolvendo a expressividade do cantor/ator na encenação teatral. Mal sabia que estava entrando num antigo ringue de luta, onde o teatro e a música sempre se digladiaram! Num artigo intitulado O Corpo na Ópera: alguns apontamentos, Marília Velardi pondera: “(...) Ainda é comum encontrarmos comentários publicados ou declarados que justificam e valorizam a ideia de que o corpo do cantor deve mover-se de modo a não prejudicar o canto, a tal ponto que muitos críticos tendem a condenar as encenações nas quais o corpo

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do cantor é, na verdade, um corpo cênico”1. É sob esse viés que resolvi calçar as luvas e entrar nessa luta, buscando investigar os limites entre a ação corporal e o canto. Dar ao ator-cantor ferramentas de construção de um corpo mais expressivo, ou quem sabe, mais teatral. A ópera Gianni Schicchi se revela um farto celeiro de possibilidades cênicas que poderiam gerar desafios interessantes para os envolvidos no projeto. Sua dramaturgia é objetiva, sem os “rocambolismos” e repetições textuais comuns do gênero, principalmente nas óperas do período clássico. Esse trabalho pretende discutir o equilíbrio entre canto e encenação. E o resultado esperado: um elenco capaz de cantar e executar as cenas sem prejuízos a nenhum dos dois aspectos. A ópera é um espetáculo híbrido, que envolve teatro e música, e qualquer tentativa de vê-la unicamente através de um destes focos pode significar simplificação e má compreensão deste gênero artístico.

1 https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/ view/57464/60452


É música ou teatro? Os dois

Por Paulo Vitor Marien

Investigar os limites entre a ação corporal e a música. Dar ao ator-cantor ferramentas de construção de um corpo mais expressivo, ou quem sabe, mais teatral. Esse é, nas palavras do diretor Manuel Thomas, o ponto de partida, a questão-base para a montagem da ópera cômica Gianni Schicchi, de Puccini. A história se passa em Florença, após a morte do rico comerciante Buoso Donati. Sua família se surpreende e se irrita ao saber que o morto não citou os parentes no testamento. Rinuccio, parente de Donati, está noivo de Lauretta, mas sem recursos para se casar com a jovem. Convence a família a chamar Gianni Schicchi, pai de Lauretta, para solucionar o caso. Como a notícia da morte ainda não se espalhou, Schicchi toma o lugar de Buoso e refaz o testamento de modo peculiar. Após trabalhar em montagens de La Bohème e Madamme Butterfly, ambas óperas de Puccini, o diretor Manuel Thomas não se prende ao autor. “Parece um desleixo, mas tanto faz a ópera porque o foco é essa relação do ator com a cena. Lógico que o Puccini é importante, mas o fundamental para mim é que é uma obra muito teatral e engraçada. Isso me proporciona trabalhar bem a questão corporal”. A ópera não é só música. É um teatro musicado. O diretor ressalta que essa duplicidade não é uma questão iniciada agora, pelo contrário, mobiliza há

tempos encenadores e atores operísticos. “Isso é um papo de mais de século. Sempre tem essa questão. O que é mais importante numa ópera? É a cena ou é a música? Quem é músico puxa para a música, quem é do teatro puxa para o teatro”. A procura de uma relação harmoniosa entre um corpo mais teatral e o canto se reflete em todo o projeto que resultou na apresentação de Gianni Schichi. Para isso, o diretor apostou em exercícios de preparação corporal e improvisação. Durante um desses trabalhos, nos ensaios, era possível observar a tentativa do elenco de expressar emoções sem o uso das mãos, de costas para o público ou com os pés. O que se pode esperar do Gianni Schicchi de Manuel Thomas é uma récita que explora os elementos teatrais presentes na história com grande intensidade. Não será o fim do embate sobre o que é mais importante em uma ópera. No entanto, mais interessante que concluir a discussão é explorar as possibilidades dessa disputa. A montagem de Manuel Thomas, nesse sentido, é uma iniciativa que merece atenção.

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CÍCERO

criação colaborativa direção: Dieymes Pechincha

Orientação: Marília Guimarães Martins Assistência de direção: Priscila Manfredini Dramaturgia: Bruno Marcos e Dieymes Pechincha, em processo colaborativo com a equipe. Relatos retirados dos livros: “Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para a sua análise e denúncia”, de Ricardo Rezende Figueira (Org.) e “Vidas Roubadas: A escravidão moderna na Amazônia brasileira”, escrito por Binka Le Breton. Elenco: Ana Karenina Riehl Luiza Loroza Reinaldo Machado Vinicius Andrade Wesley Calcanho

Sabe, trabalhei a vida inteira, e o que é que ganhei com isso? Não tenho nem uma rede! Terra? Nunca tive terra nenhuma. Tudo o que eu tenho é a terra debaixo de minhas unhas. É tudo que eu tenho” – Felix, trabalhador rural.

Iluminação: Isadora Giesta, Priscila Manfredini e Taís Trindade Direção musical: Thiago Kobe Direção de arte: Pamela Peregrino e Vinicius Andrade Produção: Daniella Fiaux Preparação corporal: Dandara Ferreira Orientação de preparação corporal: Ligia Tourinho Imagens: Livro de fotografia “Retrato Escravo”, de João Roberto Ripper e Sérgio Carvalho, publicado pelo Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Brasília, 2010 61


Narrar é intercambiar experiências

Por Dieymes Pechincha

A história da humanidade nos é contada como uma odisseia por mares e oceanos, em busca de novos ares, bons temperos, tecidos e novas tecnologias. Na ânsia por novas mercadorias que sustentem a dinâmica de um consumismo calcado em confortos inúteis, constroem-se narrativas que justifiquem os processos de dominação e submissão de povos “atrasados”, no caso brasileiro, africanos e ameríndios. Em 2017, tudo isso pode nos parecer um passado distante. Mas, diante de relatos, reportagens, teses e documentários, essa cortina turva e densa cede timidamente, e a narrativa da liberdade assinada em cartas se desmascara enquanto mito. Ao compreender a necessidade de abrir frestas numa história dita oficial, apresento um projeto de encenação baseado em relatos, documentos e múltiplas vozes que contestam a narrativa oficial de que existem igualdade e liberdade numa sociedade dividida em classes. Escolhi contar uma história estruturada a partir da sucessão de quadros, com narrativa não linear e sem o compromisso com a (ideia de) trajetória de uma personagem. Parto do pressuposto de que não se trata da ação sofrida por um indivíduo, mas, sim, das condições extremas de miséria, exploração e desumanização que sustentam cadeias de produção. “Eu tenho certeza que no governante eu não confio; eu confio na sociedade organizada, confio nos 62

trabalhadores organizados, porque se nós fôssemos esperar por políticos, nós estaríamos dentro d’água. Se fosse esperar pelo presidente dizer assim: ‘Cícero, você será assentado’, eu estava dentro d’água”1. Dirijo o espetáculo a partir de operações entre o teatro épico e o documentário. Acredito tanto no potencial narrativo dos documentos presentes na pesquisa como no caráter ficcional que também se faz presente na elaboração da dramaturgia, na medida em que me interesso pelo atrito do espectador em relação à noção de real e ficcional na cena. Em “O Narrador”, Walter Benjamin afirma que narrar é “a faculdade de intercambiar experiências”. Não existe uma forma correta de contar uma história, existe a tentativa de estabelecer comunicação. No nosso caso, o exercício se dá a partir da investigação coletiva que culmina numa produção dramatúrgica colaborativa. Partimos da ideia de que o espetáculo é produto do que aprendemos juntos.

1 Relato de Cícero Guedes, Líder do MST-RJ


EscravidÃo contemporânea

Por Ana Beatriz Ribeiro

Acordava com fome, trabalhava com fome e dormia com fome. Sua principal fonte de alimentação era a cana seca que sobrava da plantação. Era assim a vida de Cícero Guedes dos Santos, um alagoano de 42 anos que dá nome ao espetáculo dirigido por Dieymes Pechincha. Histórias como a de Cícero não são exceções. Segundo dados mundiais do Ministério do Trabalho, apenas em 2016, 40 milhões de pessoas foram vítimas da escravidão moderna. No Brasil, até hoje milhares de trabalhadores deixam suas casas em busca de novas oportunidades ou atraídos por falsas promessas, mas acabam sendo submetidos a jornadas de serviços abusivas e ao confinamento por supostas dívidas que viram um ciclo vicioso. A partir do relato de Cícero e de outros citados no livro “Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil”, publicado pela editora UFRJ, Dieymes percebeu que contar essas trajetórias era um “ato revolucionário” – e isso o motivou a escrever um espetáculo. Assim nasceu Cícero, uma peça teatral amarrada, pensada e sonhada a muitas mãos. Além de tratar sobre a exploração do trabalho no campo, o espetáculo aborda também as condições de serviço na indústria têxtil e nos barracões das escolas de samba. O processo de criação é coletivo. Em parceria com Bruno Marcos, a dramaturgia do espetáculo

ganhou formas. Para Dieymes, a proposta de criação em sala de ensaio tem um sentido transformador, no qual se rompe com a lógica de que o diretor é o detentor de todo estímulo criativo, enquanto os atores apenas executam. “Eu gosto de pensar que a cena é apenas fruto de um processo de aprendizado coletivo”, afirma ele. A partir de contribuições do elenco e da equipe de produção, a história será contada em quadros, por sete intérpretes, no formato de uma arena. As cenas apresentam camadas de sentido, de forma que as imagens, que aparentemente expõem uma narrativa, aos poucos vão sendo desmontadas, provocando a reação do público. Não há personagens. O espetáculo propõe que os atores conheçam profundamente os relatos dos trabalhadores para, assim, terem condições de narrá-los. A proposta do diretor é sempre usar de relatos individuais para falar de toda uma estrutura de sociedade. Dieymes reconhece que não será uma tarefa fácil, mas o desafio de Cícero é exatamente este: pesquisar mecanismos de contar uma história e abrir o debate sobre assuntos que precisam ser discutidos. Partir das vidas de algumas pessoas, das experiências particulares, para debater todo um sistema de exploração.

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JACINTA

de Newton Moreno direção: Ana Paula Gomes

Já comi fome com vento Provei fome com farinha Sopa de fome no orvalho Crua, mal-passada, cozida Assada ao sol do meio-dia. Fome servida na calçada Fome e de sobremesa, nada Fome que deu dor de barriga (...) Mas de todos os alimentos Fome com desespero Temperada com medo Foi o prato mais sustento Me fez mais forte lá dentro Me deu fome de vida.”

Orientação: Adriana Schneider Elenco: Celo Miguez Daniel Cintra Maria Eduarda Magalhães Tamara Innocente Iluminação: S.U.A.T Cenografia, figurino e direção de arte: Uirá Clemente Orientação de cenografia, figurino e direção de arte: Samuel Abrantes Produção: Fernanda Arrabal Preparação corporal: Thábata Ribeiro da Motta Orientação de preparação corporal: Lígia Tourinho Direção e Pesquisa musical: Grasiela Müller Preparação vocal: Tamara Innocente Imagens: Ana Paula Gomes e Gardi Hutter 65


Na travessia da fome

Por Ana Paula Gomes

“No mundo só existem dois tipos de pessoas: as que nunca passaram fome e as que já a viram de frente. Quem aqui já dormiu com a fome? Já a sentiu? Já a enfrentou? Você conhece ‘quem’ pelo olhar que já desfrutou de sua companhia. Está escrito no branco dos olhos. Estas pessoas não olham o mundo do mesmo jeito. Olham o mundo com pavor e orgulho. Terror daqueles que lhe deixaram nas garras da fome e orgulho de terem vencido a crueldade que os cerca.” (Jacinta, cena 01 de Como Jacinta enfrentou a fome e a venceu)

Começa assim a trajetória da actriz portuguesa que persegue o aplauso como um cego persegue a luz. Ela já comeu a fome com farinha, fome com vento, fome e de sobremesa nada. Guerreou com a fome em incansáveis batalhas. Ela é Jacinta Maria Magalhães Dornelas e Canto. A fome não a derrotará. Ela há de ser a maior actriz dos palcos lusitanos. Jacinta nasce do desejo de falar sobre a necessidade de fazer teatro. Assumimos a fome como mote da trajetória desta heroína. Fome de comida, fome de arte, fome de aplauso. Do que você tem fome? A partir de agora eu sou Jacinta. Os caminhos se misturam, se atravessam aqui nesta folha de papel, na universidade, na rua. Esta escrita é uma tentativa de expressar, colocar em palavras a minha fé no teatro, sustentada por corpos inquietos que creem na potência da arte. 66

Vivemos com sede de experiências completas, inteiras, que nos mobilizem do nosso lugar cinza desse tempo-espaço, mas não damos crédito às possibilidades de sair da linha. Neste sentido, Jacinta é memória de caminho trilhado buscando alternativas de sobrevivências, novos modos de troca. É busca incessante de si, do outro, da comunicação. Eis então que surge neste projeto uma trupe de palhaços falidos tentando dar conta da história desta actriz. Estas figuras abraçam e evidenciam o próprio ridículo. Uma companhia que funde sua história à dramaturgia de Jacinta em resposta a tempos de sucateamento e calote cultural. Reação a tentativas incessantes de silenciamento do sensível. É abocanhar um naco de carne da fome. Toma, fome danada! Acredito no teatro como um serviço social, como resistência. Tentativa de resposta a toda violência que nos é desferida goela abaixo. Se a arte continua a questionar e segue com perguntas, eu desejo que Jacinta seja riso, resistência e movimento, seja travessia inteira, atravessamento. E pra quem ainda não entendeu, Jacinta é a força das esquinas e dos palcos que há de se conquistar!


É preciso fazer teatro

Por Raphaela Ramos

Fome: de arte e de comida. Qual fome você sente? São esses os temas que regem o espetáculo teatral Jacinta, baseado na peça escrita por Newton Moreno em 2012. A obra conta a história da pior atriz do mundo, que vem de Portugal para buscar reconhecimento por seu trabalho em terras brasileiras. Quem assiste às suas interpretações morre, de tão ruim que é seu teatro. A trama é narrada por uma companhia falida, formada por palhaços, que, assim como a atriz, estão famintos. Além de Jacinta, mais quatro atores se revezam entre os papeis. “Os personagens são quase máscaras, foram adaptados para se aproximar da nossa sociedade”, explica a aluna-diretora Ana Paula Gomes. Num ano em que a Prefeitura do Rio de Janeiro tomou a decisão de não repassar verbas de fomento às artes, o tema da necessidade dessa arte se torna ainda mais pertinente. A decisão de realizar a peça em local aberto, no campus da Universidade, se relaciona com a questão da cidade, da rua, da urgência de ocupar espaços. A encenação usa a técnica chamada de viewpoints, que nada mais é que um exercício de atenção de si, do outro e do espaço, criando uma conexão constante entre os atores. A trajetória de Jacinta em busca de aplausos, enquanto delira de fome, se encontra com o percur-

so de Ana Paula. A ideia de tratar esses temas em sua peça surgiu em um exercício em aula no qual sua dupla teve dificuldade em encontrar um verbo que definisse o que sentiam. Para definir tal sentimento foi preciso uma frase: necessidade de fazer teatro. “Entendo o teatro como um ofício de resistência, um ato de serviço social”, afirma Ana Paula. A diretora partiu de uma imagem construída em uma conversa com sua avó, na qual ela lhe contou que chorava no quarto por não ter como dar de comer à mãe e à tia de Ana Paula, que brincavam e riam enquanto preparavam farinha com café. A aluna-diretora quer agora instigar o questionamento. O que é essa fome? Que fomes são essas nossas? “Partimos da fome como o principal mote do curso da personagem”, diz ela. “É uma necessidade de comida, de fazer teatro, de um ofício, e a gente quer discutir quais são essas nossas fomes possíveis”. Quem assistir ao espetáculo irá passar por uma experiência na qual será levado a esses questionamentos. Afinal, não é esse o papel do teatro? Proporcionar uma interrupção, um momento de reflexão. Em tempos de total desvalorização da arte e da cultura, essas são questões que precisam ser postas em cena.

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SANTUÁRIO DAS ANDARILHAS criação colaborativa direção: Isabel Figueira Sanche

Orientação: Marília Guimarães Martins Assistência de direção: Cássia Lyrio e Gustavo Ciupryk Dramaturgia criada em processo colaborativo: Figueira e Lyrio Elenco: Beatriz Oliveira Flaviane Damasceno Lu Varello Tainá Mattos Vanessa Nhoa

Estou invocando as forças da natureza, faço dessa força o pilar que sustenta meu poder. Grito para o tempo! Meu grito chega aos quatro cantos do mundo e cria uma onda de ecos. Ele soa como puro ruído, mas ali existe uma mensagem, entendida apenas por aquelas que estão na mesma freqüência.”

Iluminação: S.U.A.T Cenografia: Raphael Elias Assistência de cenografia: Lelarel Albuquerque e Karla Catalão Figurino: Clara Garritano e Igor Avelino Orientação de cenografia e figurino: Ronald Teixeira Produção: Gustavo Ciupryk e Renata Tedeschi Preparação corporal: Flora Bulcão e Victor Pinto Orientação de preparação corporal: Ligia Tourinho Preparação vocal: Carolina Sanches Direção musical e percussão: Bernardo Tambelini Imagens: Cássia Lyrio, Jessica Perlstein, Leah Dorion e Nils Gleyen. 69


Despertando para o feminino Por Isabel Figueira Sanche

Era um domingo de manhã ensolarado. Eu estava em um estado de consciência alterado, quando invadi um território que eu não podia ultrapassar. De alguma forma, ali tinha uma força que me atraía, e, mesmo sabendo que não era permitido, continuei a caminhar na direção de uma grande árvore que de longe me chamava a atenção. Não fui até muito longe quando ouvi uma voz dentro de mim dizendo que era para voltar, que eu não estava pronta para avançar e não tinha permissão para estar ali. Foi quando parei e retornei pelo caminho que vim... O tempo passou e esse dia ficou grudado em mim de maneira que, no meu caminhar, fui desvendando os mistérios daquele momento. Em 2015 tive outro encontro que me proporcionou uma conexão com uma força parecida com aquela. Era a Floresta me fazendo enxergar o que havia dentro de mim. Entendi ali a necessidade de falar sobre essa força. Percebi com esse encontro, que há muito tempo vinha negando, uma parte de mim que gritava por escuta. Era a força feminina todo esse tempo se manifestando. Bebi em Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés, que vem motivando minha autodescoberta, colocando em palavras as angústias que me despertavam medo. A descoberta da mulher selvagem me faz retornar ao meu centro para, junto 70

com as mulheres desta cena, construir um espetáculo que tenha a força das nossas ancestrais. No decorrer das pesquisas, cruzei com a pintura feita pela artista Cássia Lyrio, As Andarilhas. Esta obra apareceu para coroar o projeto, e foi só depois de bater os olhos nela que o Clã emergiu do fundo da minha imaginação. Defendo que a intuição é a primeira chave do nosso projeto, e só através dela é que tem sido possível concretizar as ideias e firmar as parcerias. No Santuário das Andarilhas, fiz a escolha de reunir em cena um coletivo formado apenas por mulheres negras. Dar voz a essa história através da força da mulher negra é assumir nosso lugar de fala e ocupar territórios onde o negro é pouco reconhecido. Falamos sobre um espaço sagrado, destinado às Grandes Mães, ou as Iá Mi Oxorongá, divindades pouco conhecidas da Mitologia Iorubá. Elas, as Iá Mi, são a força da natureza em sua essência, e é a essa força que dedico esse trabalho. Um trabalho que está sendo construído no ritmo das grandes descobertas. Um trabalho dedicado às nossas mães, à força que nos nutre e motiva.


EM BUSCA DA LOBA INTERIOR

Por Gabriela Morgado

Parque Lage, quinta-feira. Feriado da independência do Brasil. Duas lobas andam perto de famílias e amigos que fazem piquenique. De repente, as lobas viram mulheres. São mulheres fortes, que não foram domesticadas pela sociedade e guardam sua essência selvagem. O cenário do ensaio do Santuário das Andarilhas é exatamente o que Isabel Figueira Sanche, de 24 anos, quer mostrar em sua peça. O espetáculo gira em torno de um clã formado por cinco mulheres, todas negras: Anciã, Guerreira, Mestra, Visionária e Curandeira. “Eu gosto de pensar que o clã é formado por mulheres sacerdotisas, guardiãs de um espaço sagrado, regido e protegido pelas feiticeiras Iá Mi Oxorongá. É delas que nasceu tudo e para elas que tudo volta”, explica Isabel. A peça valoriza elementos místicos, destacando a ancestralidade e a busca pelas raízes. Fala do papel da mulher e da feminilidade, associada à origem de tudo. Também enaltece os espaços abertos como locais nos quais as mulheres podem ser livres, longe da pressão exercida sobre elas na cidade. A ideia é mostrar a relação do clã com a terra em que suas integrantes vivem. A ideia é que o cenário possua uma árvore central, elemento de referência para as atrizes. Por isso, a proteção das florestas é também, de forma indireta, um dos temas abordados

no espetáculo. O roteiro final ainda está sendo construído de modo coletivo: nos ensaios, as atrizes apresentam cenas para toda a equipe, e a peça vai tomando forma. As intérpretes contam suas histórias de vida, experiências boas e ruins de ser mulher. A preparadora corporal da equipe trabalha a parte física das atrizes, para que elas possam se soltar e encontrar sua “loba” interior – que toda mulher tem, diz a diretora, é só procurar. Vanessa Nhoa, uma das atrizes, conta que o processo de criação é intenso e destaca a importância de incorporar suas vivências à personagem. “Gosto que ele tenha essa questão autobiográfica, porque a personagem me fez alcançar um universo dentro de mim que estava adormecido”, afirmou, depois de relatar à equipe um relacionamento abusivo vivida por uma conhecida. E assim, das experiências reais de mulheres reais, vão surgindo as histórias de cada personagem. Por tudo isso, Santuário das Andarilhas é bem mais que um espetáculo de conclusão de curso. É uma peça política que busca dar voz às mulheres e aos negros, além de discutir questões ambientais. Para o público e para a equipe, é uma peça de autodescobrimento.

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ATAFONA, RELATOS DE FIM dramaturgia e direção: João Bernardo Caldeira

Orientação: Andréa Stelzer Assistência de direção: Catarina Veneroni

Um dia, eu estava andando pela ilha, e eu tive um insight: eu conhecia aquele lugar. Era ali que meu pai me levava, na minha infância. Como um déjà vu, sabe? (...) Não vejo como um castigo, porque Deus não é carrasco. Nós mesmos somos os causadores do nosso mal. Esses terremotos: obra do homem. Deus é amor”

Elenco: Ana Clara Hibner Andréa Drummond Couto Jorran Souza Rogério Klein Iluminação: Homero Ferreira Cenografia e figurino: Anne Carestiato Orientação de cenografia e figurino: Ronald Teixeira Caracterização: Lívia Guimarães Produção: João Bernardo Caldeira Trilha sonora original: Borealis Videoarte: Coletivo Barril Dobrado e Rodrigo Simões Imagens e entrevistas: João Bernardo Caldeira e Fernando Codeço Apoio de pesquisa e produção: Casaduna – Centro de Arte Pesquisa e Memória de Atafona Co-realização: Coletivo Cosmogônico 73


“É o fim do mundo! É o fim do mundo!”

Por João Bernardo Caldeira

Oito em cada dez contempladores regulares do céu estrelado de Atafona juram identificar objetos voadores não identificados. Bolas de fogo também. O lugar está situado num campo eletromagnético, garantem os moradores. Atestado por ninguém menos que Chico Xavier. A areia monazítica cura doenças. Graças ao alto teor radioativo, pode servir também de combustível para naves espaciais. Certa vez, era noite, o cinema em frente à padaria lotado, um imenso clarão se viu no céu, seguido de um forte nevoeiro. Desespero, corre-corre, confusão: “É o fim do mundo, é o fim do mundo!”. As aparições de Nossa Senhora da Penha, a padroeira local. A Capelinha dos Navegantes, construída de costas para o mar. Este mesmo mar que avança por sobre a foz do rio e já destruiu mais de 400 casas, desde a década de 1970. Dos tempos áureos da inauguração do Cassino e da Avenida Atlântica, até chegar a essa experiência coletiva de um tsunami homeopático. A cada rua submersa, a cada quarteirão. Todo o mangue do Pontal soterrado. As Ilhas do Peçanha e da Convivência, hoje pequenininhas. Nos muros (uma explicação?): “Jesus está voltando. Juízo final.” Para reconstituir essa matéria e memória corroída, em estado de putrefação, temos relatos. Um ambientalista, uma fiel religiosa, um cientista, uma moradora na rota da destruição. Só que ninguém sabe 74

exatamente o que fazer. E nem as verdadeiras causas dessa tragédia anunciada. Estes depoimentos nos chegam até nós, primeiramente, até a sala de ensaios. Os ensaios realizados com cada ator, individualmente, como um antídoto desesperado contra a irrealidade e a desmaterialização. “Isto não é uma peça! Isto é Atafona!”. Mas isto é uma peça. Cercada de ruínas por todos os lados. Na duração de uma onda que bate lentamente no muro da casa. De tijolos dissolvidos pela ação do vento. Centenas de milhares de ondas. Sem parar. Corroídos e soterrados. Eles ou nós?


Atafona, vila de areia

Por Carolina Merlo

Imagine um moinho de madeira movido à força d’água para produzir montanhas de farinha. E se essas montanhas fossem dunas de areia, e ao invés de surgirem por ação de uma atafona (moinho antigo), brotassem na praia, por força das águas do mar? O cenário acima não é apenas fruto da imaginação. Quando se fala em Atafona, a primeira impressão é que se trata de um nome grego, mas Atafona fica em São João da Barra, no litoral Norte Fluminense. Desde a década de 70, a vila sofre com a fúria das ondas, que arrastaram casas, igrejas, bares, lojas e hotéis. Já submergiram mais de 200 residências e cerca de 15 quarteirões da cidade, que em seus tempos áureos era uma terra de usineiros, com cassino e festas badaladas. O mar vem engolindo a vila – o que, na tradição local, é visto como um dos sinais que antecederiam a segunda vinda de Cristo, como prevê o Apocalipse. Em São João da Barra, era comum reunir a comunidade à noite para avistar naves interplanetárias. A partir de 1960, a cidade passou a ser conhecida graças a relatos de moradores, amedrontados com “bolas de fogo” vistas a olho nu. Em 1968, o jornal “O Sanjoanense” informava sobre uma revoada de discos voadores, e até hoje ufólogos citam o balneário como portal de entrada de óvnis. Os acontecimentos envolvendo a cidade e seus habitantes serão narrados no espetáculo Atafona, re-

latos de fim. Para o diretor João Bernardo Caldeira, Atafona pode reviver Atlantis, “cidade perdida” que teria sido engolida pelo mar. Em cena, as agonias de Atafona serão o foco dos quatro personagens: um morador que presenciou os gloriosos tempos da cidade, a fiel religiosa, um cientista e um ambientalista. A peça discutirá a temática ambiental, mostrando o clamor da cidade por soluções diante do avanço do mar e as alternativas mirabolantes propostas, como a construção de uma muralha para proteger Atafona-Atlantis. “A mescla entre ficção e a realidade remete a este clima de final dos tempos e esgotamento de paradigmas. O descaso com Atafona é o descaso dos políticos com todos nós, abandonados, despedaçados, arrancados de nossa memória, nosso passado e nosso futuro”, afirma o diretor João Bernardo. Até agora não se sabe se a cidade sobreviverá, quantas vidas serão atingidas ou até quando o povoado continuará a ser engolido pelas ondas. Em Atafona, seja na da realidade, seja na da ficção, há muita água para rolar.

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SALOMÉ ELÉTRICA

de Oscar Wilde direção: Isabella Raposo

Iokanaan – (...) O Senhor disse: deixa que o povo lhe atire pedras... Deixa que os capitães inimigos lhe retalhem a carne à espada, que a esmaguem ao peso dos escudos! Então apagarei toda a perversidade da terra não haverá mais abominações como esta! Salomé – Ouve o que ele diz contra mim? Permite que me ofenda assim? Herodes – Não pronunciou o teu nome!”

Orientação: Gabriela Lirio e Daniel Marques Adaptação: Isabella Raposo Elenco: Flôr Vicentina Rodrigo Lima Pinto Luiz Alfredo Montenegro Iluminação: Carlos Alberto Noel e Marcéu Pierrotti Cenografia e direção de arte: Uirá Clemente Figurino: Julio Cesar Lourenço Produção: Camila Simonin Preparação corporal: Muryell Dantie Orientação de preparação corporal: Ligia Tourinho Imagens: Arthur Rice, Benjamin J Falk ,Frederick Glasier e Isaiah West Taber. 77


Por Isabela Raposo

Eletricidades - Metamorfoses de Fuller e Salomé

O interesse inicial por Salomé aconteceu ao longo do curso de Direção Teatral, ao fazer parte do grupo de pesquisa “A teatralidade cinematográfica e o uso de novos dispositivos na produção de imagens”, coordenado pela professora Gabriela Lirio. Ao pesquisar sobre o tema da cena expandida, me deparei com a obra da artista norte-americana Loïe Fuller, precursora da dança moderna e criadora da famosa “dança serpentina”, filmada por Thomas Edison no ano do nascimento do cinema, em 1895. Iniciei a pesquisa sobre a vida e obra de Fuller e me apaixonei pelas experimentações que realizava com o próprio corpo, através de movimentos e luzes coloridas projetadas em seu figurino, proporcionando uma experiência sensorial unindo o teatro, o cinema, a dança e a performance. Também em 1895, Fuller realizou uma adaptação da dança de Salomé, uma das personagens mais recorrentes na arte do fim do século XIX, pela qual os artistas simbolistas e decadentistas possuíam enorme fascínio. Retratavam-na de diferentes formas em suas obras. Ao ler sobre sua adaptação, imediatamente me veio a peça de Oscar Wilde e comecei a pesquisar a fundo o mito de Salomé, representado pela primeira vez no Novo Testamento, passando por diversas obras do fim do século XIX, como as de Gustave Moreau, Stéphane Mallarmé, Gustave Flaubert, J.K Huysmans e Richard Strauss. 78

Na peça de Oscar Wilde, me instiga a atmosfera e a maneira com que o autor retrata a personagem da Salomé, além de seu caráter transgressor para a época – censurada diversas vezes por questões morais e religiosas –, onde estão presentes a força do desejo feminino, o poder, a sensualidade e o erotismo atrelados à ideia de morte, terror, violência e monstruosidade. Mesmo Wilde vivendo em um contexto distinto do nosso, algumas questões e contradições presentes no texto são bem atuais. Em tempos tão sombrios como os que vivemos hoje, com esta adaptação proponho uma reflexão sobre como o Brasil lida com a diferença. Estas são algumas questões que ando me debatendo ao longo do processo de criação, onde me inspiro em Loïe Fuller para criar uma Salomé que não se adequa aos padrões morais da sociedade atual e está em constante transformação, enquanto Herodes e Iokanaan tentam lidar com um ser humano que não compreendem e, logo, com eles mesmos.


Por Hugo Daflon

Maiores que a vida

O ano é 1892. Em Paris, uma jovem atriz vinda de Illinois parece ter revolucionado o teatro e a dança para sempre. Segundo os boatos, a americana Loie Fuller conseguira um feito: criar uma exibição combinando coreografia, figurino, luzes e cores em uma experiência tão múltipla e hipnotizante que não podia ser comparada a nada antes visto na Paris de então. Loie Fuller viria, em 1895, a performar sua própria adaptação da dança de Salomé, personagem bíblico que já preenchia o imaginário criativo do universo artístico durante todo o século XIX. Seria o primeiro encontro de duas personagens que, por essência, não se encaixavam no padrão (artístico ou moral) da sociedade em que viviam. Oscar Wilde completa a lista de influências da Salomé contemporânea adaptada por Isabella Raposo. Na peça do escritor britânico, que foi por diversas vezes censurada e teve sua exibição proibida, estão presentes de forma muito explícita o caráter transgressor de uma personagem que, por não ser aquilo que dela se espera, faz-se maior que a sua época. Mais de 100 anos depois, Salomé continua atual e pertinente em uma sociedade que insiste em apontar críticas ao diferente, podar liberdades e limitar o desejo feminino, o erotismo e a sensualidade – o que torna ainda mais necessário o ressurgimento de narrativas capazes de colocar em cena essas questões.

Loie Fuller e Wilde serviram de ponto de partida para buscar uma Salomé ainda mais impactante. No projeto de Isabella Raposo, Salomé, a personagem, e Loie, a coreógrafa, se encontram mais uma vez para

criar uma nova experiência artística que traz para a contemporaneidade a discussão do moral e do “socialmente aceito”. Nessa adaptação, a diretora pretende trazer ao palco a reflexão sobre uma sociedade que, apesar de toda sua diversidade e multiplicidade, tem dificuldade em aceitar tudo o que lhe é diferente, tudo aquilo que foge à norma. Com um texto que mescla o contemporâneo com o arcaico e antiquado, o espetáculo denuncia uma sociedade que se mantém acorrentada a pensamentos ultrapassados. Para isso, nada melhor do que a inspiração de figuras e personagens que não cabiam na sociedade em que viviam – e cujas ações se perpetuaram ao longo da história. Personagens maiores que a própria vida.

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ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Diretor Amaury Fernandes

Diretora-Adjunta de Graduação Chalini Torquato Barros

UFRJ Reitor Roberto Leher Pró-Reitor de Graduação – PR-1 Eduardo Gonçalves Serra Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2 Leila Rodrigues da Silva Pró-Reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças – PR-3 Roberto Antônio Gambine Moreira Pró-Reitora de Extensão – PR-5 Maria Mello de Malta

Diretora-Adjunta de Administração Sheila Camlot Administradores da ECo Adriano Costa, João Carlos Rosa Lima e Paulo César Marinho Coordenação de Jornalismo Cristiane Costa Coordenação de Rádio/TV Maria Teresa Ferreira Bastos Coordenação de Produção Editorial Mário Feijó Coordenação de Publicidade e Propaganda Lucimara Rett Coordenação de Direção Teatral Jacyan Castilho CO-REALIZAÇÃO

Decana do CFCH Lilia Guimarães Pougy

CAp – Colégio de Aplicação da UFRJ Diretora: Maria Cristina Miranda da Silva

Fórum de Ciência e Cultura

Escola de Belas Artes (EBA) Diretor: Carlos Gonçalves Terra Coordenação de Artes Cênicas – Indumentária e Cenografia: Larissa Elias

Coordenador Carlos Bernardo Vainer

Superintendente de Difusão Cultural Patrícia Dorneles Gerenciamento dos Espaços Culturais Karina Nunes

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Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) Diretora: Katya Gualter Chefe do Departamento de Arte Corporal (DAC): Frank Wilson


EQUIPE XVII MOSTRA DE TEATRO DA UFRJ

Coordenação Geral e de Produção Érika Neves Coordenação Técnica e de Iluminação José Henrique Moreira (ECo) e Luciana Liège (EEFD) Comissão Pedagógica Carmem Gadelha, Eleonora Fabião e José Henrique Moreira Bolsistas de Produção (bolsistas de extensão III / PROFAEx e bolsas FCC/ PR5) Anna Padilha, Gabriela Villela, Lilian Corrêa, Vítor Emanuel e Wesley Calcanho Assistente de Produção Daniella Fiaux Suporte Técnico e de Iluminação Equipe S.U.A.T. - Sistema Universitário de Apoio Teatral Calvin Fernandes (Engenharia Ambiental, PBPDI), Diego Assis (Cenografia, PIBIAC), Laís Patrocínio (História da Arte, Monitoria), Larissa Guimarães (Arquitetura, PIBIAC), Nádia Oliveira (Rádio e TV, PIBIAC) e Wilker Lacerda (Engenharia Elétrica, PIBIAC) Eletricista Joel de Souza Fotografia e Filmagem (bolsa PROART/ FCC/ UFRJ) Clara Castañon Programação visual - revista, banners, busdoor, flyers e senhas (bolsa PROART/ FCC/ UFRJ) Davi Palmeira

XVII

Mostra de Teatro da

UFRJ

CORPO DOCENTE Adriana Schneider (ECo) Alessandra Vannucci (ECo) Andréa Pinheiro (CAp) Andréa Stelzer (ECo) Andréia Resende (ECo) Carmem Gadelha (ECo) Celeia Machado (CAp) Daniel Marques (ECo) Eleonora Fabião (ECo) Fernanda da Escóssia (ECo) Gabi Chagas (EBA) Gabriela Lírio (ECo) Jacyan Castilho (ECo) José Henrique Moreira (ECo) Lauro Góes (ECo) Lígia Tourinho (EEFD) Lívia Flores (ECo) Luciana Liège (EEFD) Marília Guimarães Martins (ECo) Michele Augusto (EBA) Rodrigo Cruz (ECo) Ronald Teixeira (EBA) Samuel Abrantes (EBA) Sunshine Pessanha (CAp) APOIO - Astériu’s Bar - Casaduna Centro de Arte Pesquisa e Memória de Atafona - Casa Quintal de Artes Cênicas - IATEC – Instituto de Artes e Técnicas em Comunicação - IPUB Instituto de Psiquiatria da UFRJ - Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro Centro Cultural Municipal José Bonifácio

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___ EXPEDIENTE

Revista programa sobre a XVII Mostra de Teatro da UFRJ. Uma publicação laboratorial da Escola de Comunicação ECo/UFRJ, fruto da parceria entre os cursos de Jornalismo e de Direção Teatral. Publicação sem fins lucrativos. Produção, editoração e revisão Érika Neves Bolsista de Jornalismo (disciplina Redação Jornalística II 2017/2) Raphaela Ramos (bolsa PROART/FCC/UFRJ) Orientação dos alunos de Jornalismo Fernanda da Escóssia (ECo) Projeto gráfico e diagramação Davi Palmeira (bolsa PROART/FCC/UFRJ) Orientação do projeto gráfico Andréia Resende (ECo) Foto da Capa Clara Castañon “Menina Bonita” Espetáculo oriundo da XVI Mostra de Teatro da UFRJ

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Foto: Clara CastaĂąon ATO VAZIO XVI Mostra de Teatro da UFRJ

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XVII MOSTRA DE TEATRO DA UFRJ 07 novembro . 17 dezembro | 2017 realização

PROGRAMA DE APOIO ÀS ARTES

FCC/UFRJ

co-realização

apoio

Este projeto foi financiado pelo “1º Edital - Apoio aos Grupos Artísticos de Representação Institucional PROART/GARIN/UFRJ”, do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ e apoiado pelo edital “PROFAEx – Programa Institucional de Fomento Único de Ações de Extensão 2017”, da Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ (PR-5)

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