Copyright© 2016 by Simone Mari Rocha & Renato Luiz Pucci Jr. Editor: Gelson Santana Projeto gráfico: Livre Design Studio - Mauro Teles Revisão: Editora a Lápis Foto da Capa - “Designed by visnezh / Freepik”
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) R672t P977t
Rocha, Simone Maria. Pucci Jr., Renato Luiz.
Televisão: entre a Metodologia Analítica e o Contexto Cultural / – São Paulo – Editora a lápis, 2016.
180 p. : II 23
Vários autores. ISBN: 978- 85-906623-7-2
CDD: 700 Índices para catálogo sistemático: 1. Televisão. 2. Cinema. 3 Cultura. I. Autores. II. Título
CDU: 778.5
Sumário
Introdução....................................................................................................9 O realismo maravilhoso: uma matriz estética e cultural latino-americana e sua manifestação no estilo da telenovela brasileira..............................19 Simone Maria Rocha, Matheus Luiz Couto Alves e Regiane Lucas de Oliveira Garcêz Discussões acerca do pós-moderno, da contemporaneidade e da (proto) transmidiação em Twin Peaks....................................................................37 Rogério Ferraraz e Maria Ignês Carlos Magno Um bocadinho de chão: estilo televisivo, terra e figurações de mando em Renascer e O rei do gado................................................................ 53 Reinaldo Maximiano Pereira O roteiro seriado: a estilística intermidiática no piloto de Mad Men..... 73 Marcel Vieira Barreto Silva “A cara do Brasil” segundo o SBT.............................................................93 Rafael Barbosa Fialho Martins Thriller à brasileira: ficção televisual transmídia na faixa das 23h........113 Melina Leal Galante e Daniela Zanetti Humor de qualidade no audiovisual brasileiro: proposta metodológica de análise..................................................................................................133 Gabriela Borges Conversação no estúdio do Bem Estar: a construção do apresentadorespecialista em saúde...............................................................................147 Marialice Emboava e Simone Maria Rocha A experiência audiovisual de uma transmidiação de La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares................................................................165 Vicente Gosciola 7
Introdução
Este livro tem sua origem no anseio de enfrentar uma dificuldade central para os Estudos de Televisão: como associar a metodologia analítica dos produtos televisivos com o conhecimento de aspectos contextuais? Análise e síntese – a combinação desses dois procedimentos cognitivos nunca é tão fácil quanto parece. Mais difícil ainda configura-se no caso dos Estudos de Televisão. O universo da televisão, ou seja, tudo o que envolve não apenas o produto, mas também produção, transmissão e recepção televisiva, é tão vasto que necessita amplas operações de síntese, a propor conexões que normalmente estariam para além do olhar desavisado ou não fundado em referenciais teóricos capazes de sustentar avanços no conhecimento. Por outro lado, a multiplicidade de objetos específicos, em sua variedade infinita, exige a operação analítica, a paciência do exame meticuloso em busca de indícios reveladores e de diferenças do que, num passado nada longínquo, era visto como produção em fluxo, com produtos tão diferenciáveis entre si quanto gotas d’água a sair de uma torneira. De fato, quanto mais se pesquisa, mais fica claro que não é de hoje que a produção televisiva apresenta uma rica variedade, em todos os sentidos da palavra. Uma facilidade e uma dificuldade são criadas pelo fato de os Estudos de Cinema, ao longo de décadas, terem desenvolvido a perspectiva analítica. Por um lado, o pesquisador da televisão não precisa partir do marco zero no que diz respeito à metodologia de análise, pois muito do que é praticado pelos pesquisadores de cinema pode ser transposto para o estudo dos programas televisivos ou, pelo menos, experimentado com larga chance de sucesso. Afinal, são duas mídias audiovisuais, que operam com imagem em movimento e som, que têm como tendência relevante a produção de narrativas, ficcionais ou não. São meios afins, como em outros tempos o foram o afresco e a pintura em tela. Nos termos daquilo que o filósofo Imre Lakatos denominou heurística negativa de um programa de pesquisa científica, ou seja, as regras metodológicas que indicam os caminhos a serem evitados (1978: 47-52), a relação entre cinema e 9
televisão pode, por exemplo, alertar os pesquisadores da segunda mídia contra o descritivismo, tendo em vista o evidente desperdício de tempo e energia dos que, no âmbito dos Estudos de Cinema, confundem análise com descrição. Ainda assim, entre análise fílmica e análise televisual há diferenças não desprezíveis. A televisão possui uma particularidade que, se por um lado é uma de suas riquezas, por outro oferece as mais sérias dificuldades metodológicas: a longa duração dos produtos seriados. Quando se tomam filmes como referência, a comparação é simples. Nestes cada objeto possui duração média entre 90 e 120 minutos. Mesmo nos casos de trilogias e tetralogias fílmicas (que, diga-se, não são tão frequentes), multiplica-se o tempo de exibição por três ou quatro (por vezes, um pouco a mais nas serializações de maior sucesso), o que resulta em tramas com um total de poucas horas de duração. No âmbito dos Estudos de Televisão, os objetos são, em comparação, quase sempre gigantescos. A raridade está na existência de produtos unitários, isto é, que não sofrem nenhuma espécie de serialização. Minisséries chegam com frequência a mais de quarenta capítulos, telenovelas têm hoje em dia cerca de 170 capítulos (mas é bom não esquecer que em outros tempos chegavam a 400 ou mais). Séries podem ter mais de dez temporadas, ultrapassando a casa das centenas de episódios e outro tanto de horas totais de exibição. Há programas televisivos que perduram por décadas, em exibição diária, ou quase isso, como as soap operas e os telejornais. Eis o problema: como analisar produtos descomunais como esses? A análise de uma cena curta de um filme pode ser o suficiente para resolver um problema de pesquisa. O mesmo talvez seja verdade para um produto com centenas de capítulos, cada qual com cerca de quarenta ou quarenta e cinco minutos, caso das telenovelas. Talvez... É lícito indagar o que pode significar uma cena de, exemplificando, um minuto, num produto exibido em 150 horas, isto é, 9.000 minutos? Mesmo que a validade dos resultados da análise tenham credibilidade e possam mesmo ajudar na solução de relevantes problemas de pesquisa, como localizar a cena num produto tão imenso caso ela não tenha sido detectada ao assisti-lo pela primeira vez? Seria uma tarefa inglória assistir a tudo novamente apenas para localizar uma cena curta. Outra metodologia é necessária. 10
Ao menos desde meados da primeira década deste século, têm sido realizadas tentativas mais bem sucedidas, no sentido de estabelecer os fundamentos da metodologia analítica de produtos televisivos. O nome de maior destaque é Jeremy Butler. Em Television style (2010), além de fazer o levantamento dos embates de pesquisadores e críticos diante dessa problemática, ele efetua análises que têm servido e ainda servirão de modelo. No entanto, Butler não responde à questão central, acima levantada: qual o peso heurístico, isto é, capaz de proporcionar conhecimento, da análise de cenas pertencentes a um produto de dimensões colossais? Ainda pesam sobre os pesquisadores as consequências dessa lacuna e de questões que lhe são afins. Não bastassem tantas dificuldades, como não perceber que são infinitas as conexões culturais/históricas/sociais levantadas por uma massa tão grande de capítulos, episódios ou apresentações? As relações entre essas duas perspectivas, quanto a qualquer desses ou de outros produtos televisivos, mostram-se ao mesmo tempo muito promissoras e a exigir esforço metodológico para dar conta dos aspectos envolvidos. Em relação às operações de síntese, a questão principal é: como estabelecer conexões entre quaisquer aspectos contextuais e elementos constituintes dos produtos em foco? Embora muitas tentativas nesse sentido tenham sido feitas na história do audiovisual, em se tratando de televisão muito poucas chegaram a um resultado plausível. Para conectar modo narrativo, construção de personagem, enquadramentos, iluminação, movimentos de câmera, ângulos de câmera ou qualquer outro elemento narrativo ou estilístico com a cultura, a vida social, a política, que constituem o contexto do produto, é preciso mais do que o associacionismo, a analogia ou supostas metáforas e alegorias. Não é tão recente a tradição de pensamento nessa direção, a relacionar objeto e contexto, embora, obviamente, não nos Estudos de Televisão. Ela é formada, exemplificando, por aquilo que o historiador da arte Erwin Panofsky chamou de iconologia, na primeira parte de Significação nas artes visuais: de forma bastante convincente, detalhes de pinturas e esculturas do Renascimento eram relacionados com elementos históricos (1979: 52-54). Os Estudos de Cinema, por sua vez, se lançaram inesgotavelmente à mesma empreitada, com resultados desiguais, ao menos desde a publicação do livro De Caligari a Hitler: uma história 11
psicológica do cinema alemão, de Siegfried Kracauer, em 1947. Eis o que precisa ser tentado em relação à imensa produção televisiva, descontadas as inevitáveis diferenças em relação às artes e à mídia indicadas. É nesse quadro que surgiu o interesse comum a dois grupos de pesquisa: o COMCULT – Comunicação e Cultura em Televisualidades (Programa de Pós-graduação em Comunicação, da UFMG, em Belo Horizonte) e o grupo Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (Programa de Pós-graduação em Comunicação, da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo). Como em geral acontece quando há grupos de pesquisa em cena, tratava-se de enfrentar um problema de pesquisa que realmente exige mais do que a energia e a dedicação de pesquisadores isolados. Talvez ninguém domine sozinho campos tão vastos como os acima descritos, que exigem a análise microscópica e a síntese de larga amplitude. Durante as sessões dos Seminários de Televisão, realizados nos encontros anuais da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema, e do GT de Estudos de Televisão, da Compós, o interesse comum resultou em contatos que propiciaram a realização da I Jornada Intergrupos de Pesquisa, que recebeu o subtítulo “Análise Audiovisual e Aspectos Culturais na Produção Televisiva”. A data era 26 de setembro de 2014, na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. Desse evento resulta a maior parte dos capítulos a seguir. Ambos os grupos tinham em sua respectiva proposta a conexão entre análise audiovisual e aspectos contextuais. O COMCULT expressa o interesse em sua ementa, que assume a ideia de que a perspectiva estética e as interrogações culturais e políticas não se opõem como enfoques contraditórios entre si, mas confluem na medida em que os produtos televisivos são constituídos por esses dois aspectos: de um lado, estilos, poéticas, modelos narrativos; de outro, matrizes históricas e políticoculturais, estético-populares e relações com a audiência. Por sua vez, o grupo Inovações e Rupturas possui a mesma dualidade inscrita no DNA, uma vez que os seus pesquisadores derivam das duas linhas de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Comunicação: Análises de Produtos Audiovisuais e Processos Midiáticos na Cultura Audiovisual. Nesse caso, o entendimento é o de que a colaboração de 12
pesquisadores de linhas diferentes é uma exigência para que a pesquisa ultrapasse limites. A justificativa para essa confluência de especialidades está num fato que a cada dia se torna mais claro: os problemas de pesquisa com que nos deparamos na área da Comunicação são grandes demais para uma só pessoa ou para uma só especialidade. A perspectiva ampla, como é típico dos estudos da cultura, precisa se juntar ao olhar microscópico, que efetua o corpo a corpo com os objetos de pesquisa. Sem isso, fica-se, na melhor das hipóteses, a aguardar que outros pesquisadores se aventurem a completar o trabalho já realizado, como se tornou clichê incluir ao final de artigos e livros voltados para somente um lado dos problemas. Eis por que os dois grupos de pesquisa decidiram unir forças. O primeiro resultado está nos capítulos que se seguem, entre os quais estão contribuições de pesquisadores não vinculados ao COMCULT ou ao Inovações e Rupturas, mas que estão às voltas com a mesma problemática. São os casos de Marcel Vieira, Gabriela Borges e Daniela Zanetti e Melina Leal Galante. No capítulo “O realismo maravilhoso: uma matriz estética e cultural latino-americana e sua manifestação no estilo da telenovela brasileira”, Simone Rocha e Matheus Alves partem das matrizes culturais latinoamericanas presentes na produção ficcional seriada da TV brasileira e de como elas se manifestam através das escolhas estilísticas. De modo específico, o autores pretendem evidenciar de que modo o realismo maravilhoso – entendido enquanto uma matriz estético-cultural – está presente na forma como as telenovelas inserem em suas narrativas, numa operação de ruptura na continuidade e na linearidade do realismo, eventos da ordem do insólito e do estranhamento, a fim de criar metáforas, fazer críticas político-sociais, gerar encantamento e despertar o interesse do espectador. Rogério Ferraraz e Maria Ignês, em seu texto “Discussões acerca do pós-moderno, da contemporaneidade e da (proto) transmidiação em Twin Peaks”, apresentam como objeto de estudo a série Twin Peaks (EUA, 1990-1991), criada por David Lynch e Mark Frost, a fim de compreender como o criador levou para televisão várias características pós-modernistas. Os autores buscam, também, apreender e demonstrar aspectos da 13
contemporaneidade já presentes naquela obra (proto)transmidiática, que, de certa forma, antecipou a era da internet e da cultura participativa dos fãs, típica de nossos dias. Em “Um bocadinho de chão: estilo televisivo, terra e figurações de mando em Renascer e O rei do gado”, Reinaldo Maximiano empreende um esforço de análise do estilo televisivo e sua contribuição para a tematização da terra e as figurações de mando nas telenovelas de Benedito Ruy Barbosa. Ao analisar as figurações presentes em Renascer (1993) e O rei do gado (1996) o autor pretende captar como tais operações visuais e sonoras contribuem para i) a construção de sentidos sobre as relações de poder e subjugação; e ii) o estilo televisivo, em si. Como ponto de chegada, tal investigação busca identificar quais seriam as possíveis estruturas sociais, políticas e culturais sob as quais essas figurações se assentam.
Marcel Vieira propõe em “O roteiro seriado: a estilística intermidiática no piloto de Mad Men” uma reflexão para entender a relação entre o roteiro e a obra audiovisual através de aproximações conceituais e metodológicas entre os estudos de intermidialidade, de literatura e de televisão. Com o objetivo de compreender “como considerar experiências estéticas diferentes a leitura do roteiro e o visionamento do filme/série?” Vieira encontra uma importante chave de entendimento, qual seja, o conceito de “produção de presença”, tal como desenvolvido por Gumbrecht, a partir do qual tenta transitar pelas zonas de fronteiras entre mídias, entre literatura e audiovisual. Com este instrumental em mãos, o autor analisa algumas cenas do episódio piloto da série de televisão norte-americana Mad Men e procura desvendar a relação que o texto do roteiro estabelece com o programa em sua materialidade audiovisual. No capítulo “’A cara do Brasil’ segundo o SBT”, Rafael Martins propõe um duplo movimento. Primeiro, o de captar qual é a proposta de interação entre o canal de televisão SBT e sua audiência através de uma análise estilística de vinhetas institucionais produzidas pela emissora. O segundo movimento tratou de perceber o quanto essa interação figurada pelas vinhetas está calcada numa certa “brasilidade” que foi forjada 14
particularmente pela televisão. Na análise empreendida o autor destaca a figura do proprietário do Canal, Sílvio Santos, cuja trajetória pessoal estabelece grande afinidade com o público da emissora, bem como um posicionamento institucional que se traduz em um “estilo SBT”, capaz de contribuir para a interação com o telespectador. O capítulo “Thriller à brasileira: ficção televisual transmídia na faixa das 23h”, de Melina Galante e Daniela Zanetti, propõe-se a explorar um gênero específico na TV brasileira, o thriller, na tentativa de captar e entender se e como a reconfiguração temática e narrativa das séries de TV norte-americanas, em conjunção com a cultura da transmidiação digital, estão afetando o desenvolvimento de obras ficcionais seriadas no contexto de nossa televisão, estabelecendo novos parâmetros de criação e produção. Para a investigação desse “thriller à brasileira” as autoras escolheram O canto da sereia, Amores roubados e O rebu. Gabriela Borges, em “Humor de qualidade no audiovisual brasileiro: proposta metodológica de análise”, retoma uma reflexão acerca da qualidade no audiovisual para, a partir dela, apresentar uma metodologia de análise que se dedica a avaliar tal característica em programas de humor tanto da TV brasileira quanto de canais disponíveis no YouTube. A autora elegeu dois parâmetros para proceder à investigação da qualidade, quais sejam, o modo de representação e a experimentação, cujos desdobramentos alcançam o plano da expressão, o plano do conteúdo e a mensagem audiovisual. Em “Conversação no estúdio do Bem Estar: a construção do apresentador-especialista em saúde”, Marialice Emboava e Simone Maria Rocha partem do princípio de que figuras centrais na construção e publicização dos fatores de risco, os profissionais da saúde, em particular os médicos, são tidos como expertos em estilo de vida. Neste capítulo, as autoras verificam como se constrói a interação especialistas-audiência no programa Bem Estar (TV Globo) utilizando modos de endereçamento e análise estilística televisiva como métodos. O discurso técnico, os recursos visuais e as vestimentas dos especialistas conferem-lhes lugar de autoridade e contribuem para que operem como tecnologias difusas de governo indireto, tentando influenciar a conduta e os hábitos do telespectador. 15
No capítulo “A experiência audiovisual de uma transmidiação de La invención de Morel de Adolfo Bioy Casares”, Vicente Gosciola apresenta uma proposta que abarca conceitos e características do processo de transmidiação, passando pelo seu planejamento e modos de execução até chegar a uma configuração dos princípios e da estruturação da narrativa transmídia em um exemplo concreto, desenvolvido na proposta de estágio pós-doutoral do autor, o da transmidiação como um desdobramento narrativo do livro La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares. Prosseguindo na linha de Jeremy Butler, do qual são devedores vários dos capítulos a seguir, esperamos que o livro contribua para a superação dos problemas apontados. Não se trata de uma obra com regras a serem seguidas, mas de trabalho analítico e de síntese, em ato. Quem sabe, levar outros pesquisadores a juntar-se em grupos e que aconteçam outras Jornadas Intergrupos de Pesquisa, com o mesmo objetivo. Simone Maria Rocha1 e Renato Luiz Pucci Jr.2
1 Professora Associada do PPGCOM/UFMG e líder do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT). rochasimonemaria@gmail.com 2 Professor do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, e líder do grupo de pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira. renato.pucci@gmail.com
16
Referências BUTLER, Jeremy. Television style. Nova York e Londres: Routledge, 2010. LAKATOS, Imre. Falsification and the methodology of scientific research programmes. In: WORRALL, John e CURRIE, Gregory (orgs.), The methodology of scientific research programmes. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 1978, p. 8-101. PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo da Arte da Renascença. In: Panofsky, Erwin. Significado nas Artes Visuais. 2.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 45-87.
17
O realismo maravilhoso: uma matriz estética e cultural latino-americana e sua manifestação no estilo da telenovela brasileira3 Simone Maria Rocha4 , Matheus Luiz Couto Alves5 e Regiane Lucas de Oliveira Garcêz6
Introdução Para o dramaturgo Dias Gomes, que escrevia a primeira versão de Saramandaia em 1976, em plena ditadura militar, o absurdo fazia parte do cotidiano do brasileiro e não era possível entender este país sem levar em consideração essa conotação insólita. Inquietava ao autor a forma com que um contexto alastrado de dominação interna e uma consentida submissão externa era tratado de forma naturalizada em alguns produtos culturais, inclusive os da televisão. Em suas palavras “o Brasil é o país que desmoraliza o absurdo, porque o absurdo acontece. E não é possível entender e espelhar a nossa realidade dentro das regras do realismo puro” (GOMES, 2012: 98). Para ele, retratos desse Brasil violento tinham que vir à tona para provocar nas pessoas uma reflexão, um questionamento, uma perplexidade que fosse, sobre o que se passava em seu país. Essa posição crítica conduziu o dramaturgo à escrita de seus textos televisivos sob um outro registro, aquele que adota procedimentos estilísticos e estéticos inovadores na linguagem, pois, numa conjuntura marcada por um regime político fechado, relações políticas corruptas e inescrupulosas, restava à crítica recorrer à metáfora, ao insólito, ao humor 3
Agradecemos ao CNPq e à Fapemig pelo incentivo financeiro à nossa pesquisa.
4
Professora Associada do PPGCOM/UFMG e líder do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT). rochasimonemaria@gmail.com
5
Graduado em Publicidade e Propaganda pela UFMG. matheus.coutoalves@gmail.com
6
Regiane L. O. Garcêz: Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social/UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Mídia e Esfera Pública do PPGCOM/UFMG. regiane.lucas@gmail.com
19
e ao exagero, em outras palavras, ao realismo maravilhoso entendido enquanto uma matriz estético-cultural definida por dimensões de ordem etimológica, lexical, literária e histórica que o legitima como identificador da cultura latino-americana. Diante disso, este capítulo tem como objetivo evidenciar as referências a essa matriz adotadas por vários autores para inserir em suas narrativas eventos da ordem do insólito e do estranhamento a fim de criar metáforas, gerar encantamento e despertar o interesse do espectador. Afinal, a partir de que, por que e como estão falando? Um exemplo inicial de como o realismo maravilhoso se fez presente na televisão aconteceu na telenovela O Bem Amado (1973) escrita por Dias Gomes. A história se passou na cidade fictícia de Sucupira, onde o pescador Zelão, depois de se salvar do mar revolto que quase o matou, fez à Iemanjá a promessa de que construiria um par de asas para voar pela cidade a partir da torre da matriz. Mesmo sendo dispensando pelo padre de cumpri-la, por tê-la feito a uma entidade do candomblé, Zelão – ao acreditar ter tido uma visão de Iemanjá – não quis voltar atrás; afinal, isso poderia custar a sua vida. Na última cena, a personagem cumpriu o prometido. Quando Tião Moleza anuncia que Zelão vai tentar voar outra vez, os moradores saíram correndo, aglomeraram-se em frente à Igreja, olharam para o alto e constataram, espantados, o homem prestes a saltar. Antes do feito, o narrador explicou que “Zelão fez o sinal da cruz, pediu proteção ao Pai Oxalá, a Bom Jesus dos Navegantes e a todos os orixás. E então, abriu as asas e saltou”. Nesse momento a imagem foi congelada em um plano conjunto dos moradores a olhar sem acreditar no que estava prestes a acontecer. A imagem recebeu uma coloração em tom sépia de modo a criar uma suspensão e um distanciamento da realidade do espaço-tempo da narrativa, e a voiceover do narrador nos disse que, dali em diante, “o que se passa é de ouvir contar e quem não acredita é um homem sem fé”. O voo pode ser interpretado como uma metáfora de liberdade e de luta. Zelão persistiu a trama inteira para realizar seu prometido. Sua luta foi pela liberdade de escolha religiosa, estabelecendo, assim, um diálogo com o sincretismo religioso, tão característico da América Latina mestiça e plural. Esse contexto dotou de sentido o fato de Zelão ter feito sua promessa na intenção de Iemanjá e querer cumpri-la na torre de uma Igreja Católica. 20
Aspectos inusitados como esses tornaram-se constantes em muitas telenovelas posteriores, não só nas de Dias Gomes. Conquanto nossa análise tome por base uma poética televisual, nossa visão do dispositivo não prescinde do terreno cultural. Em nosso entendimento o poético é sempre atravessado por conotações socioculturais e, assim, nosso estudo inclui as matrizes culturais de uma determinada construção estilística.
Metodologia: proposta de articulação entre análise estilística e análise cultural
Ainda que nossa análise pretenda voltar-se para elementos do estilo televisivo, torna-se relevante explicitar a premissa que fundamenta nossa investigação. Em nosso entendimento um produto como a telenovela deve ser apreciado enquanto uma produção artística, o que significa reconhecer marcas estilísticas próprias. Contudo, não devemos incorrer numa abordagem segundo a qual a forma adotada tende a obliterar o conteúdo compartilhado. Para evitar tal armadilha propomos um deslocamento que compreenda a telenovela como uma produção artísticocultural assentada em três pilares: 1) a arte, além de ser desenvolvida através de uma dinâmica social, está situada no interior da cultura; 2) a arte não é a única forma autorizada e legítima de experiência cultural; 3) a cultura não diz respeito às características imanentes ao objeto senão ao atravessamento de sentido que o objeto instaura e que o torna inteligível – em outras palavras, a cultura diz respeito à dinâmica comunicacional que o objeto, enquanto forma de mediação, aciona (MARTÍN-BARBERO, 2001). Conceber uma produção artística enquanto produto cultural significa reconhecer que a mesma é portadora de uma cosmovisão que remete a práticas e valores específicos no interior da dinâmica social, ou seja, a obra oferece um registro dos processos sociais do momento histórico em que foi gestada. Como forma de operacionalizar a análise audiovisual, contamos com a abordagem de Jeremy Butler (2010), realizada em Television Style, que apresenta um entendimento de estilo como sendo qualquer padrão técnico de som-imagem que sirva a uma função dentro do texto televisivo (BUTLER, 2010: 11). Essa definição tem uma dupla importância para os estudos do estilo em televisão: 1) rejeita concepções que o consideram 21
como a marca da genialidade individual em um texto ou como um floreio decorativo de camadas acima da narrativa (embora alguns estilos sejam decorativos); 2) possibilita concluir que todos os textos televisivos contêm estilo. Ou seja, o estilo pode ser visto como a manifestação física do tema e da narrativa e esses elementos estão sempre situados culturalmente. Por isso ele interroga o poder significante do som e da imagem na televisão. Butler afirma que o estilo existe na interseção de padrões econômicos, tecnológicos, industriais e códigos semióticos/estéticos. No exercício empreendido neste capítulo, daremos dois dos quatro passos da análise de Butler: a descrição do estilo e a função/análise do estilo. A análise histórica dependeria de um recuo nos programas do gênero a fim de identificar padrões. Até mesmo Butler entende a análise avaliativa como problemática pela falta de parâmetros mais específicos para se julgar a estética televisiva. A descrição seria o que o autor chama de passo básico. Para discutir estilo, deve-se primeiro ser capaz de descrevêlo. Embora pareça um passo óbvio, ele é um dos que têm causado muitas falhas analíticas e teóricas. A descrição do estilo exige que o analista opte por uma compreensão bem definida do que seja estilo e como ele funciona em televisão. Butler argumenta que a semiótica oferece o conjunto mais abrangente de ferramentas para se realizar uma descrição detalhada do estilo televisivo. O segundo passo, baseado nos estudos da “teoria funcional do estilo” no cinema, de Noël Carroll (apud BUTLER, 2010: 17), visa detectar os propósitos do estilo e suas funções no texto. O trabalho do estudioso do estilo, assim, constitui-se na desconstrução de como o estilo cumpre uma função. Butler aponta várias funções do estilo televisivo. Algumas herdadas do cinema, outras específicas que ele desenvolveu para este medium. São elas: denotar, expressar, simbolizar, decorar, persuadir, chamar ou interpelar, diferenciar e significar “ao vivo”. O estilo televisivo pode cumprir várias delas ao mesmo tempo, mas Butler sustenta que a pretensão de chamar e manter a atenção do telespectador é primordial em qualquer situação.
Corpus de análise Para a realização da análise promovemos o agrupamento das telenovelas nas quais o realismo maravilhoso revelou-se: 1) como fio 22
condutor do enredo; 2) como inspiração ou solução no desenrolar da narrativa e 3) como figuração nas novelas contemporâneas (a partir de 2010). Esses três grupos levam em conta, também, o período histórico e o contexto mais amplo de produção e exibição dos produtos.7 Ainda que mencionemos exemplos de treze novelas, nosso corpus é constituído por três delas, analisadas em mais detalhes. Todas foram produzidas pela Rede Globo de Televisão e muitas alcançaram consideráveis índices de audiência revelando uma grande penetração no país. Produziram cenas que se tornaram emblemáticas sendo, inclusive, as selecionadas para uma análise.
O real maravilhoso americano Entre os anos de 1940 e 1970, frente ao esgotamento da narrativa realista clássica, alguns autores (CARPENTIER, 2010; GARCIA MÁRQUEZ, 1979) seguiram uma trilha própria, por vezes chamada de realismo mágico, por vezes de realismo maravilhoso,8 para expor o choque cultural de uma América Latina encantada pela tecnologia vinda da Europa e dos Estados Unidos, bem como plural e diversa em virtude de sua origem múltipla, repleta de crenças e de fatos históricos surpreendentes. Para Vera L. Follain de Figueiredo (2013: 17) a vertente da ficção latino-americana que se convencionou chamar de “realismo maravilhoso” consistiu em uma afirmação identitária da Esse corpus foi constituído a partir de um levantamento realizado em sites especializados em teledramaturgia (cf. www.teledramaturgia.com; www.memoria.globo.com; www.supertvemais.blogspot.com.br), bem como em referências bibliográficas que se dedicam a esse tipo de categorização, cf. Caderno Globo e Universidade, Rio de Janeiro, n.º 3, 2013.
7
Sabemos das controvérsias que envolvem essas noções. Para Vargas Llosa o realismo mágico já não constitui o traço comum entre os escritores da América Latina: “Há escritores realistas, fantásticos, urbanos, mas também há alguns na tradição da literatura rural. Talvez um dos poucos denominadores comuns seja a rejeição do realismo mágico”, emblema da literatura da região. A ideia irrita os escritores mais jovens, algo que Vargas Llosa considera normal: “O parricídio simbólico é fundamental para que cada nova geração afirme a sua identidade”. O próprio conceito de realismo mágico sempre lhe pareceu, aliás, “vago” e de um conteúdo “pouco sólido”, quando sob a sua capa se colocam escritores “tão diferentes” quanto o são, entre outros, o argentino Jorge Luís Borges, o cubano Alejo Carpentier ou o colombiano Gabriel Garcia Márquez”. Disponível em http://www.publico.pt/ cultura/noticia/mario-vargas-llosa-admite-que-a-literatura-se-torne-marginal-no-futuro-1459876, acesso em 11 abr. 2015. Não negamos as divergências e convergências em torno dessas questões. Preferimos adotar uma posição que compreende o realismo maravilhoso como um gesto literário e, de algum modo, político de escritores latinoamericanos que romperam com a narrativa realista. Sendo assim, o realismo maravilhoso pode conter traços do mágico, do fantástico, do estranho, do sobrenatural e o vemos como uma tentativa de seguir uma nova trilha que assume certas especificidades.
8
23
América Latina e, ao mesmo tempo, numa revisão crítica da modernidade ocidental.
O termo “maravilhoso” já tão consolidado na literatura foi adotado como predicado do real americano, por ser o que melhor expressa o fato cultural América Latina, com suas especificidades e características que a diferenciavam do mundo europeu. Foi Alejo Carpentier (2010) quem propôs o termo “real maravilhoso americano” ao observar tanto a dificuldade de nomeação da complexidade deste Continente, por parte dos exploradores, quanto por desejar expressar uma visão e uma posição crítica em relação à modernização seletiva e desigual que ocorria no Continente, já que nesse contexto conviviam o moderno e o arcaico; a razão, a crença e a imaginação. Para o escritor, a força da cultura da América Latina estava justamente na sua capacidade de negociar os contrários, de operar com sua não disjunção, de se identificar em meio a efetivas misturas e sincretismos. Para Chiampi (1973: 32): a constituição do real maravilhoso americano, segundo Carpentier, assim se constitui: a união de elementos díspares, procedentes de culturas heterogêneas, configura uma nova realidade histórica, que subverte os padrões convencionais da racionalidade ocidental. Essa expressão, associada amiúde ao realismo mágico pela crítica hispano-americana, foi cunhada pelo escritor cubano para designar, não as fantasias ou invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que singularizaram a América no contexto ocidental.
O Iluminismo e suas promessas de emancipação humana através do uso da razão não conseguiu evitar, por exemplo, duas guerras mundiais nem o horror do holocausto. Isso colocou em xeque a suposta superioridade europeia e abriu o caminho para que a cultura latino-americana, que não compartilhava totalmente aquele modelo de racionalidade, pudesse se erigir sob outras bases, outras temporalidades e encontrar seu próprio valor, calcado na diferença e não na semelhança. Para Carpentier (1987:79): Pela virgindade da paisagem, pela formação, pela ontologia, pela presença fáustica do índio e do negro, pela revelação que propiciou sua descoberta, pelas fecundas mestiçagens, a história da América Latina seria uma crônica do real maravilhoso. 24
Esse foi o cenário de meados do século XX que levou à mencionada rejeição à narrativa realista europeia, sobretudo no que tange à sua causalidade e continuidade linear. Na narrativa realista maravilhosa é marcante a multicausalidade, a transitoriedade de tempos, a autorreferencialidade, a disjunção dos contrários e o estranhamento. Todas essas características assumem o propósito de contemplar a realidade sui generis da América Latina na qual convivem em condições de igualdade o acontecimento histórico e o mito, a lenda e o milagre. E esses aspectos poderiam ganhar forma em eventos encantadores, estranhos, insólitos; em metáforas que revelavam uma riqueza imaginativa que diz muito sobre a resistência desse povo diante dos fatos e acontecimentos muitas vezes absurdos. Ao tornar o insólito compreensível e possível, através da construção de metáforas, o realismo maravilhoso se tornou presente em nossa paisagem televisiva valendo-se de inúmeras possibilidades para resistir cultural e simbolicamente às limitações impostas ao Continente pelas mais diversas circunstâncias. Em que medida o realismo maravilhoso televisivo dá conta da diversidade cultural de uma América mestiça? O que queremos evidenciar, portanto, é que o realismo maravilhoso está presente em nossa televisão, quais seriam suas características e em que medida a articulação entre uma análise cultural e uma análise estilística detecta sinais de sua existência.
O realismo maravilhoso nos tempos da ditadura: O Bem Amado (1973), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985) Eventos insólitos como o de Zelão, no ano de 1973 em O Bem Amado, voltaram à televisão na primeira versão da telenovela Saramandaia (1976), também de Dias Gomes. A história se passou na cidade fictícia de Bole-Bole e girou em torno da disputa pela mudança de seu nome para Saramandaia. Envolvidos nessa questão disputavam, de um lado, um coronel que soltava formiga pelo nariz toda vez que se sentia irritado, uma mulher que explodiu de tanto comer, um lobisomem que há anos não dormia, um homem que expunha o coração pela boca, sempre que ficava nervoso e, de outro, um jovem rapaz que possuía visões do futuro e escondia sob um colete de gibão um enorme par de asas e uma jovem virgem que era mal vista porque se incendiava quando se excitava. 25
Essas escolhas por personagens estranhas não foi realizada de forma aleatória. Gomes admitiu que essa novela “tinha o duplo propósito de driblar a censura e experimentar uma linguagem nova na TV – o realismo absurdo” (GOMES apud SALIBA, 2013: 40). Essas personagens com características insólitas, aliadas à declaração de Gomes, permitem-nos vincular suas escolhas aos princípios do realismo maravilhoso nos quais os objetos, seres ou eventos gozam de uma probabilidade e de uma causalidade internas à diegese do texto.9 Todas elas são de tal maneira estranhas aos padrões vigentes que, para compreendê-las, consideramos pertinente associá-las a esse realismo predicado de maravilhoso e como ele opera no espaço-tempo das narrativas. Tomemos como exemplo a personagem João Gibão. Por possuir um par de asas e o poder de prever acontecimentos futuros, ele se viu obrigado a esconder sua natureza, por medo de enfrentar a não aceitação dos outros. Autor do projeto de mudança do nome da cidade, João liderou o movimento dos “mudancistas” que, na verdade, aspirava por transformações políticas mais amplas. Durante toda a telenovela ele se preocupou em aparar suas asas e ocultá-las sob um colete de gibão – acessório que dá origem a seu apelido. Ao final da trama ele revelou do que era feita sua corcunda e realizou um voo sobre a cidade. O voo foi a última cena da novela.10 Após descobrirem suas asas, João foi perseguido e encurralado pelo coronel Zico Rosado e seus capangas. Com medo de morrer, a personagem não hesitou, abriu suas asas e voou. A cena começou com um close do rosto amedrontado de Gibão que olhou em volta, soltou a arma da mão e, no momento em que a câmera fez um movimento de zoom out, preparou-se para voar. Sob olhares espantados dos seus perseguidores, João iniciou sua aventura. O que se seguiu foram planos mais fechados de Gibão, realizando seu voo, alternados com planos mais abertos dos capangas de Zico Rosado, atirando em sua direção, e com tomadas subjetivas expressando o ponto de vista de João sobre os moradores a admirar o seu feito. Essa alternância restrita “Diegese” é uma palavra de origem grega que significa “narração”. É utilizada para indicar a instância representada no filme e na ficção televisiva (além de outros campos da ficção). Assim, por exemplo, tempo diegético é o tempo representado, ou seja, o tempo vivido pelos personagens (e não o tempo de exibição do produto audiovisual).
9
Cena disponível em: http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/saramandaia-1a-versao-voo-de-joaogibao/2472998/ Acesso em 25 jul. 2016.
10
26
de planos abertos e fechados nos diz de uma impossibilidade técnica para operar em uma dimensão visual mais elaborada, fazendo da edição o recurso estilístico fundamental na construção dessas sequências. O cruzamento de sensações – da plenitude de João (Fig. 1) e da euforia da cidade (Fig. 2) – reveladas pela edição nos conduzem a uma interpretação desse voo como sendo uma metáfora de liberdade. Apenas a partir dessa articulação, somada aos diálogos enunciados durante o feito, é que nos foi possível engendrar os sentidos mencionados.
Fig. 1: a plenitude do voo de João Gibão
Fig. 2: a euforia da cidade de Saramandaia
É próprio do realismo maravilhoso evitar a contradição entre os elementos naturais e sobrenaturais. Nele, não faz sentido separar as esferas do real e do irreal. Seu valor não é referencial mas, sim, metafórico, pois ele oferece uma outra forma de cognição que se realiza muito mais pelo questionamento e pelo efeito de encantamento. O realismo maravilhoso encanta o espectador porque ele não rivaliza o insólito e o real. Porque maravilhoso, nas palavras de Chiampi (1973: 48), é o extraordinário, o insólito, o que escapa o curso ordinário das coisas e do humano (...) O maravilhoso recobre uma diferença não qualitativa, mas quantitativa com o humano; é um grau exagerado ou inabitual do humano, uma dimensão de beleza, de força ou riqueza, em suma de perfeição que pode ser mirada pelos homens. Assim, o maravilhoso preserva algo do humano em sua essência. A extraordinariedade se constitui da frequência ou densidade com que os fatos ou os objetos exorbitam as leis físicas e as normas humanas.
Para Chiampi (1973: 33) os modos de manifestação do realismo maravilhoso se realizam através de duas ações. Ele altera e amplia o 27
objeto real, bem como revela, ilumina e percebe através de uma operação mimética da realidade. E Gibão tem asas, o que pode ser visto como uma alteração do objeto real, pois é evidente que homens não têm asas. Podemos entender que tal manifestação contribuiu com a percepção do anseio do povo brasileiro de libertar-se das amarras da ditadura militar que vigorava neste País. Além disso, ao operar com a não disjunção dos contraditórios – o real e o irreal; o natural e o sobrenatural – a narrativa realista maravilhosa contribuiu para que Gomes pudesse trabalhar o modo pelo qual na realidade brasileira convivem o moderno e o arcaico – uma das expressões características de nossa mestiçagem. O ideologema11 da mestiçagem é caracterizado pela não disjunção dos componentes culturais da América Latina – enquanto recorte da combinatória etnossocial gerada pelo sistema de colonização e, em especial, enquanto modo de assimilação de modelos contraditórios. Assim como o Caribe de Alejo Carpentier (2010) ou a Macondo de Gabriel Garcia Márquez (1967), em que pesem as particularizações regionais ou as do tempo representado, em Saramandaia ultrapassaram-se limites geográficos e históricos para que os elementos trabalhados na narrativa soassem como síntese significante da totalidade de um universo cultural brasileiro. Se Macondo foi a aldeia cuja história condensa as transformações básicas das sociedades latino-americanas, Saramandaia foi o microcosmo de um Brasil (e de uma América Latina) aviltado pela ditadura militar, estruturado sob desigualdades profundas, e marcado pela contradição em diversos níveis, convivendo com todas elas. Sobre Gibão, Dias Gomes (2012: 46) afirmou que “sua determinação de deixar crescer as asas e voar era uma clara alegoria a nosso anseio de liberdade”. Para Gomes, era necessário tratar das nossas mazelas a partir de uma narrativa que inserisse uma ruptura na ordem aparentemente “normal” da época. Sua novela implicou num gesto político: identificar o Brasil como parte de uma América Latina marcada por um contexto de violência e repressão e por uma modernização seletiva e marcada pela contradição. A luta pela liberdade de expressão e pelo livre exercício da 11
A partir das elaborações de Altamirano Carlos, Beatriz Sarlo e Mikhail Bakhtin entendemos ideologema como “a representação, na ideologia, de um sujeito, de uma prática, de uma experiência, de um sentimento social. O ideologema articula os conteúdos da consciência social, possibilitando sua circulação, sua comunicação e sua manifestação discursiva (...). Sendo parte da realidade social e, como representação, elemento do horizonte ideológico, o ideologema é um significante, uma forma das ideologias sociais”. Cf. CARLOS E SARLO: 1983: 35.
28
política fazia-se urgente. Assim sendo, Saramandaia, mesmo imaginária, estava inserida naquelas territorialidade e temporalidade precisas. Saramandaia (1976) foi uma marco na TV brasileira. Ao adotar o realismo maravilhoso como uma matriz cultural a partir da qual se configuraram as estratégias de comunicabilidade do produto (MARTÍNBARBERO, 2001), surpreendendo em vários momentos, a telenovela mostrou-se rica de sentidos e conquistou público e crítica. Já na novela Roque Santeiro (1985) a marca mais forte do realismo maravilhoso se deu na figura do lobisomem. Professor e diretor do Centro Cívico da cidade fictícia de Asa Branca, Astromar passou a trama inteira escondendo sua condição dúbia na esperança de conquistar o amor de Mocinha. Todavia, as suspeitas sempre se recaíram sobre ele. Por fim, ao perceber que não terá chances com a eterna noiva de Roque Santeiro, Astromar acaba transformando-se no lobisomem, numa noite de lua cheia, no cemitério da Cidade. Assim, os autores deste continente buscavam novos caminhos, interpretações (mais do que análises) e compreensões (mais do que explicações) para esta complexidade da América Latina tecida por muitos fios como as heranças coloniais; os conflituosos processos de formação nacional e construção das nacionalidades; os contrastes internos; a modernização seletiva e as conturbadas relações com Europa e Estados Unidos.
O realismo maravilhoso na fase Aguinaldo Silva: Tieta (1989), Pedra Sobre Pedra (1992), Fera Ferida (1993) e A Indomada (1997) Embora as ditaduras militares tenham findado na América ao longo dos anos 1980, traços do realismo maravilhoso continuaram presentes em diversas produções. Em verdade, a matriz assumiu novas proporções tanto na literatura quanto na televisão. Todas as novelas selecionadas neste grupo foram de autoria de Aguinaldo Silva, e seus colaboradores, que iniciou sua carreira ao lado de Dias Gomes. Na esteira de seus trabalhos de coautoria com Gomes, Silva ajudou a desenvolver uma nova forma de adoção na qual o realismo maravilhoso é acionado em função de outros propósitos. Nossa hipótese é a de que nesse segundo grupo o realismo maravilhoso afastou-se de algum modo da matriz cultural que 29
lhe deu origem (a América Latina mestiça, maravilhosa e complexa) e foi privilegiado enquanto estilo, ao articular os elementos audioverbovisuais mais em função do desenrolar das tramas do que como forma de inserir questionamento ou ruptura no cotidiano dos telespectadores. Como exemplo podemos citar a telenovela A Indomada (1997), que se passou na fictícia cidade nordestina de Greenville, colonizada pelos ingleses mantendo tradições e costumes desse povo. O enredo tratou da disputa entre a mocinha órfã Helena e sua ambiciosa tia Maria Altiva pela herança deixada pelo patriarca da família Menezes de Albuquerque e perdida no jogo por Pedro Afonso, marido de Altiva. O detentor da fortuna era o forasteiro Teolbado Faruk que, tendo sido apaixonado pela mãe da protagonista, promete devolver-lhe o patrimônio. Tal promessa causou a ira de Altiva – uma vilã soberba, preconceituosa e temida – que tentou impedir que Helena recebesse o que é seu. Nesse folhetim o que guardou afinidade com realismo maravilhoso foi o modo como vários acontecimentos foram abordados. Citemos como exemplos o do delegado Motinha, que caiu num buraco, foi parar no Japão e reapareceu com uma gueixa; o de Emanuel, que se transformou em anjo e sobrevoou a Cidade; aquele em que apareceu uma lua cheia dupla, e o acontecimento que será objeto de nossa análise, a morte da vilã Maria Altiva. Tudo começou quando Altiva tentou matar Helena, incendiando uma cabana onde a mocinha estava. Antes que o fogo se alastrasse, Helena foi salva por Teobaldo enquanto a vilã ficou presa em meio às chamas, recusando ajuda, afirmando que era imortal. Diante do fogo e da recusa de Altiva, Teobaldo desistiu de socorrê-la e explicou para Helena sua reação. A cabana explodiu diante de policiais impotentes e, durante o incêndio, Altiva proclamou sua imortalidade por se considerar acima do bem e do mal. Enquanto a madeira ia sendo consumida pelo fogo, um dedilhar de piano nos anunciava que algo para além da realidade nos seria apresentado. Raios emanavam de dentro da cabana e gargalhadas da vilã ecoavam pelos ares. Aos poucos, uma fumaça roxa ia sendo formada e um movimento vertical de câmera em direção ao céu nos permitiu acompanhar a transformação dessa fumaça no espírito da vilã que, em 30
meio a sorrisos malévolos, toma o céus de Greenville. Os moradores começaram a sair de suas casas e se aglomerar na praça. Um plano geral se formou e, dentro dele, 2/3 foram tomados pela imagem da vilã dentro da nuvem de fumaça, evidenciando sua empáfia, oprimindo a tudo e a todos (Fig. 3). Diante de semblantes perplexos, Altiva promete: “I’ll be back. Me aguardem, eu voltarei”.
Fig. 3: Altiva sobre a cidade de Greenville
Nessa cena, podemos perceber que os realizadores optaram por representar visualmente uma desencarnação de modo a engrandecer a figura da personagem que pairava no céu da Cidade. Seu espírito ameaçador se espalhou sobre todos do mesmo modo com o qual sua arrogância e sua maldade se espalhavam enquanto ela era viva. O realismo maravilhoso foi adotado no sentido de exorbitar a dimensão da personagem, de mostrar que sua maldade estava para além dos limites humanos. Encarnar o espírito de Altiva numa grande nuvem foi a opção estilística encontrada para simbolizar sua soberba e prepotência. 31
As demais novelas dessa “fase Agnaldo Silva” também nos parecem adotar o realismo maravilhoso não em função de propósitos de uma crítica política, mas, sim, enquanto forma estilística a colaborar no desenvolvimento do enredo. Em Tieta (1989), a personagem Perpétua foi cegada pela heresia que presenciou: sua irmã na cama com seu filho que era padre. Em Pedra sobre pedra (1992), a personagem Sérgio Cabeleira, ao sentir forte atração pela lua, terminou literalmente sugado pelo satélite. Já em Fera Ferida (1993), Flamel transformava tudo o que tocava em ouro, inclusive sua amada Linda Inês.
Pode o realismo maravilhoso figurar temas da política contemporânea? Durante os anos 2000, o realismo maravilhoso sofreu uma retração na paisagem televisiva. Nesse período, o que pudemos perceber foi que algumas telenovelas apresentaram um ou outro elemento que guarda afinidade com essa matriz. Assim, tramas como Um anjo caiu do céu (2001), Porto dos Milagres (2001), Da cor do pecado (2004), Sete pecados (2008), Tempos modernos (2010) fizeram referência ao sincretismo religioso, ao onírico, às lendas e crendices para contar sua histórias, e analisá-las foge aos propósitos deste artigo. Em 2013, a TV Globo investiu numa segunda versão de Saramandaia. Escrita por Ricardo Linhares, a novela recente apresentou tanto as mesmas quanto novas alegorias. Mas seu sentido se revestiu de outras possibilidades frente ao contexto contemporâneo de sua produção. Acreditamos que essa última análise de nosso corpus é a que mais congrega as dimensões que definem o realismo maravilhoso enquanto uma matriz estético-cultural. Isso porque essa nova versão tanto tematizou questões do universo político, porém inseridas num contexto mais amplo, quanto procurou fazê-lo através de alegorias percebidas na configuração de elementos visuais. Em Saramandaia (2013) permaneceram as questões que motivaram as tramas e as personagens principais. O que houve de novo foi a inclusão de mais figuras cujas características geraram estranhamento. Um fazendeiro que, ao manter-se recluso e sentado durante todo o tempo em uma poltrona, criou raízes que se espalharam pelo chão; e uma senhora de quase noventa anos que conversava com galinhas 32
imaginárias que a acompanhavam por toda parte e que só eram vistas por ela e pelo telespectador. Sobre a nova versão, Linhares esclareceu que “se Dias Gomes usou a novela, na sua época, como metáfora da ditadura militar, eu a transformei na metáfora da ditadura da intolerância, na qual continuamos vivendo, e talvez ainda continuemos por muito tempo” (LINHARES, 2013: 60). Falar em intolerância nos remete à discussão contemporânea sobre o multiculturalismo (TAYLOR, 1994). Em linhas gerais uma política multicultural visa motivar o reconhecimento mútuo e, para tanto, envolve um misto de políticas universais e políticas da diferença. As pessoas que almejam sua autorrealização lutam tanto por sua dignidade quanto para que suas particularidades sejam reconhecidas. Diferença, portanto, nos conduz aos conceitos de pluralidade, multiplicidade e heterogeneidade e nos sugere que o encontro e a convivência respeitosa entre as diferenças são fundamentais para o exercício da tolerância mútua. Isso pode ser refletido através da sequência de análise que mostrou o voo de João Gibão. Ele namorava Marcina e sempre escondeu dela e dos demais sua condição diferente, apesar da insistência da moça em ver sua corcunda. A atitude de João de ocultar a todo custo sua “diferencice” demonstra que a intolerância ainda está presente em nossa sociedade em relação àquele que foge dos seus padrões. Por isso torna-se interessante ressaltar a importância de Marcina ter aceito e se encantando por seu namorado quando este decidiu lhe revelar sua esquisitice. Ao ser aceito, João deixou de ser “outro”, ou seja, aquele que foge dos padrões e que “está de alguma forma diferente significativamente da maioria – ‘eles’ em vez de ‘nós’” (HALL, 1997: 229). Numa sequência posterior, motivado pela aceitação de Marcina, Gibão correu feliz pelas ruas da cidade e, do alto de uma pedra, realizou seu primeiro voo na trama. Essa cena começou com um plano geral no qual estavam enquadradas a pedra, a lua cheia, as nuvens no céu e João, no instante do salto.12 Ao som de Pavão Mysteriozo, Gibão sobrevoou Saramandaia também com expressão de plenitude (Fig. 4). Cena disponível em: http://globotv.globo.com/rede-globo/saramandaia/v/gibao-voa-feliz-e-tem-uma-visaoassustadora-com-a-sua-morte/2793660/ Acesso em 25 jul. 2016.
12
33
Em virtude das possibilidades trazidas pelos novos recursos técnicos, foi possível construir essa sequência baseada predominantemente em planos gerais que, ao mostrarem a agilidade do voo em tela, valorizam os movimentos da personagem pelo céu da cidade simbolizando o sentimento de liberdade vivenciado naquele momento (Fig. 5).
Fig. 4: João Gibão sobrevoav Saramandaia
Fig. 5: Movimentos de João pelo céu
A aceitação de Marcina foi uma condição de possibilidade do voo de João. Em termos de uma política da diferença, o reconhecimento pelo outro é parte fundamental da garantia da plena realização das capacidades e da autorrelação íntegra de um sujeito, pois as identidades são construídas intersubjetivamente (HONNETH, 2003). Somente num ambiente em que as diferenças são respeitadas e mutuamente aceitas é que o indivíduo pode se desenvolver completamente. Nesse sentido, Charles Taylor (1994) concebe a democracia como a única via para que o reconhecimento recíproco seja efetivamente alcançado, oferecendo aos sujeitos condições para que consigam lidar com os dilemas entre igualdade e diferença.
Considerações finais É o valor metafórico do real maravilhoso americano que nos permite indagar sobre o modo pelo qual a linguagem narrativa tenta sustentar uma suposta identidade da América no contexto ocidental. E quais seriam as características dessa linguagem evidenciadas em nossa análise? Ao falar das características do realismo maravilhoso como uma renovação do instrumental do realismo, Chiampi (1973) enumera alguns traços que conformam as experiências técnicas mais frequentes. Embora a autora tenha em mente o texto literário, acreditamos ser possível 34
compartilhar de algumas quando se trata de pensar as inovações na linguagem televisiva. No conjunto de novelas do primeiro período, vislumbramos nas representações construídas algo da consciência da dimensão histórica tanto do Brasil quanto da América Latina, incluindo traços que compõem esse universo como a mestiçagem, o hibridismo e a resistência. Ademais, nesse e nos demais períodos analisados, foi possível identificar outras características inovadoras tais como a supressão dos nexos de causa e consequência; a fragmentação da pessoa narrativa e o diálogo com o telespectador (como foi o caso do narrador voiceover de O Bem Amado); as personagens que possuem características insólitas, mas não causam nenhum espanto nas demais; o tom de humor e ironia; e a língua marcada pelos neologismos, jogos de palavras e bordões. Enquanto gênero literário, o projeto do realismo maravilhoso era o de produzir um questionamento sistemático do romance e da atividade de escrita, além de exercer uma crítica contundente da tradição literária que visava estabelecer uma linguagem totalizadora da experiência cultural específica dos latino-americanos (CHIAMPI, 1973). Enquanto matriz estética e cultural, adotada pela televisão, ele tanto criou oportunidades de um questionamento do momento histórico e político do Continente dos anos de 1960 e 1970, quanto se mostrou fértil às inúmeras apropriações que os realizadores fizeram no desenrolar da trama também do ponto de vista da configuração visual, com a criação de cenas emblemáticas que ficaram na memória dos telespectadores brasileiros. O estilo contribuiu para o enriquecimento da percepção dos sentidos que cada metáfora quis trabalhar. Nesse ponto reforçamos nossa definição do realismo maravilhoso enquanto matriz cultural, mas também estética, que contribui para a configuração de representações do real na cultura latino-americana. A dimensão visual das cenas mostrou-se muito adequada ao propósito dessa narrativa. O insólito, o estranho, o exagero tornam-se muito mais potentes quando flagrados também em uma composição visual. O voo como metáfora da liberdade, o sincretismo religioso, as relações de opressão e poder, a intolerância, os gestos de resistência são algumas das marcas que se manifestaram em mais de uma obra aqui analisada. Ademais, algumas marcas ficcionais das telenovelas aqui analisadas guardam afinidade com outras narrativas midiáticas e não midiáticas, que são 35
identificadas como realistas maravilhosas. É possível estabelecer aproximações entre elas e a pintura de Frida Kahlo; a literatura de Gabriel Garcia Márquez, como Cem anos de Solidão (1967) e A triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada (1972) e os romances de Jorge Amado, como O sumiço da Santa (2010). Entre os elementos em comum citamos as cidades fictícias, os neologismos e as metáforas. Essas intertextualidades e afinidades nos permitem evidenciar a força e a presença de mitos antigos e recentes, lendas e crenças que estruturam o imaginário coletivo e as maneiras como dialogam com as instâncias reais, históricas, políticas e culturais às quais pertencemos e que sustentam uma noção de latinidade.
Referências AMADO, Jorge. O sumiço da santa. SP: Cia das Letras, 2010. BUTLER, Jeremy. Television style. New York & London: Routledge, 2010. CARLOS, Altamirano; SARLO, Beatriz. Literatura/sociedad. Buenos Aires: Libreria Edicial, S/A. 1983. CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. SP: Martins Fontes, 2010. CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. SP: Revista dos Tribunais, 1987. CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. SP: Perspectiva, 1973. FIGUEIREDO, Vera Lúcia Foullain. Realismo maravilhoso: o realismo de outra realidade. Caderno Globo Universidade, n.º 3, tema: Realismo Mágico no Século XXI. BETING, Graziella; JEBAILI, Paulo. (Eds). RJ: Globo, 2013. GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Fantasía y creación artística en América Latina y el Caribe. Texto Crítico, jul.-set. 1979, n.º 14, p. 3-8. Centro de Investigaciones Linguistico-Literarias. Universidad Veracruzana, México. Disponível em : http://bir.ly/14HQi5g, acesso em 11 abr. 2014. GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. A triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. RJ: Record, 1972 GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. RJ: Record, 1967. GOMES, Dias. O Brasil é um país que ridiculariza o absurdo. Entrevista publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 22.06.1982. In: GOMES, Luana e GOMES, Mayra (Orgs.). Encontros Dias Gomes. RJ: Beco do Azougue, 2012. HALL, Stuart. Representation. London: Routledge, 1997. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. SP: Editora 34, 2003. LINHARES, R. Entrevista concedida ao Caderno Globo e Universidade, n.º 3, tema: Realismo Mágico no Século XXI. BETING, Graziella; JEBAILI, Paulo. (orgs.) RJ: Globo, 2013. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. RJ: UFRJ, 2001. SALIBA, Elias Thomé. Os tons da comédia em Saramandaia. Caderno Globo Universidade, n.º 3, tema: Realismo Mágico no Século XXI. BETING, Graziella; JEBAILI, Paulo (orgs.) RJ: Globo, 2013. TAYLOR, Charles. (1994). The politics of recognition. In: GUTMANN, Any. (org.), Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton/Chichester: Princeton University Press, p. 25-73.
36
Discussões acerca do pós-moderno, da contemporaneidade e da (proto) transmidiação em Twin Peaks13 Rogério Ferraraz e Maria Ignês Carlos Magno14 A partir de uma conversa sobre diferentes narrativas envolvendo cidades nos romances e nos filmes e mais propriamente sobre as formas como a vida urbana era descrita por autores modernistas e pós-modernistas, acabamos enredados em uma discussão sobre o surrealismo. Logo, veio um questionamento que nos motivou: como os surrealistas estruturaram suas narrativas na literatura, no cinema e, por que não, na televisão? A partir daí, o centro de nossas discussões passou a ser a série televisiva Twin Peaks (EUA, 1990-1991), de David Lynch e Mark Frost, mais especificamente o universo lynchiano e a estrutura narrativa dessa série. Como o debate se ampliou para questão das narrativas transmídia, decidimos nos dedicar ao estudo ampliado da série expandida, além de propor uma análise de como Lynch trouxe para a televisão várias características pós-modernistas, mas com grande influência do surrealismo, em um programa narrativo ficcional, e tentar apreender também a contemporaneidade já presente naquela obra, especialmente aspectos ligados às experiências online e à chamada cultura participativa.
Do moderno ao pós-moderno Quando Lynch e Frost lançaram Twin Peaks na TV aberta, causando, como já demonstraram autores como Cássio Starling 13
Este capítulo é decorrente do trabalho “A contemporaneidade de/em Twin Peaks (1990-1991): a junção entre o moderno e o pós-moderno no jogo (proto) transmidiático do seriado criado por David Lynch e Mark Frost”, aprovado pelo Grupo de Trabalho Cultura das Mídias do XXIII Encontro Anual da Compós, ocorrido na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. O texto não chegou a ser apresentado porque os autores não puderam comparecer ao evento por razões médicas.
14
Rogério Ferraraz: professor do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), e-mail: rogerioferraraz@anhembimorumbi.edu.br. Maria Ignês Carlos Magno: professora do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, doutora em Ciências da Comunicação (USP), e-mail: unsigster@ gmail.com . Ambos os autores integram o grupo de pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira.
37
Carlos (2006), Jean-Pierre Esquenazi (2011), David Lavery (1995), entre outros, uma revolução nas narrativas seriadas no início dos anos de 1990,15 o pensamento teórico-acadêmico ainda andava às voltas com os acirrados debates sobre o novo cenário histórico que emergia e com uma de suas mais polêmicas temáticas: a discussão sobre os conceitos de modernidade e pós-modernidade nos mais diferentes campos do conhecimento, como a literatura, as artes plásticas, as ciências sociais, a música, a arquitetura, o cinema e a filosofia. Se a expressão “modernidade” era estudada, entre outros aspectos, na sua ambiguidade, uma vez que podia, segundo Haroldo de Campos (1989: 65), ser tomada tanto de um ponto de vista diacrônico, historiográfico-evolutivo, como através de uma perspectiva sincrônica, aquela que corresponde a uma poética situada, necessariamente engajada no fazer de uma determinada época, e que constitui o seu presente em função de certa “escolha” ou construção do passado, a expressão “pós-modernidade” também era buscada desde suas origens linguísticas e usos. Os estudiosos voltavam ao contexto dos estudos literários hispanoamericanos, desde o ano de 1934, e anglo-americano, a partir de 1940. O termo conheceu, a partir dos anos de 1960, uma difusão cada vez maior, primeiro nos EUA, sobretudo, segundo Michael Köhler: como termo da crítica literária, depois também como crítica da arte e da cultura. É expressão de uma compreensão transformada da nossa época, e neste sentido opõe-se ao conceito de Moderno na arte e àquele do que ‘pertence à idade moderna’ na historiografia em geral (KÖHLER, 1989: 9).
Das primeiras críticas ligadas à arquitetura modernista e o desejo de romper com aquele estilo e substituir o que consideravam de excesso de cimento por uma nova forma de pensar o espaço, escritores e arquitetos nos anos de 1960 optaram pelo uso do termo “pós-moderno”. No início dos anos de 1970, o conceito se cristalizou, conforme explica Steven Connor, quando: 15
Além dos autores mencionados, vale ressaltar que a importância da série Twin Peaks para a história da televisão norte-americana (e mundial), como marco de transformações estéticas e narrativas, foi analisada no artigo “O mundo estranho de Twin Peaks: um pequeno marco nos seriados de televisão” (FERRARAZ, 2007), decorrente de paper apresentado no GT Mídia e Entretenimento do XVI Encontro da Compós, em junho de 2007.
38
afirmações sobre a existência desse fenômeno social e cultural tão heterogêneo começaram a ganhar força no interior e entre algumas disciplinas acadêmicas e áreas culturais, na filosofia, na arquitetura, nos estudos sobre cinema e assuntos literários (CONNOR, 1993: 13).
Foi, no entanto, o texto de Jean-François Lyotard, A Condição PósModerna, de 1979, que inaugurou um espaço polêmico sobre a temática, principalmente, quando Jürgen Habermas respondeu a ele dizendo que o pós-moderno corresponderia a uma forma de neoconservadorismo. De acordo com Eduardo Campos Coelho, a discussão profunda e acirrada entre franceses e alemães seguiu até: Albrecht Wellmer, em 1985, distinguir entre um pós-modernismo conservador e um pós-modernismo libertador e acaba por propor uma espécie de síntese não necessariamente dialética entre o espírito da modernidade e o sentido afirmativo pluralista da pós-modernidade. (COELHO, 1989: 5)
Os anos 1980 fizeram, então, a passagem de um pós-moderno ligado a lances específicos da cultura contemporânea para um debate chamado de pós-moderno filosófico. O centro do debate estava na crítica da falência do projeto moderno constituído, segundo Sébastien Charles, com base em grandes narrativas, as metanarrativas (sociedade sem classes, felicidade universal, realização do espírito, emancipação dos indivíduos) que não funcionam mais e cujo esvaziamento gerou a crise de uma História concebida como um caminho único e universal (CHARLES, 2009: 19-20).
Embora a polêmica tenha contado com diferentes pensadores que orientaram os debates referentes à pós-modernidade nos seus aspectos políticos, econômicos e sociais, como Fredric Jameson e Jean Baudrillard, além do próprio Lyotard, muitos outros autores participaram das polêmicas até o momento em que, conforme aponta Coelho (1989: 5), as discussões e usos do conceito entraram numa “espécie de cansaço ou impaciência” por volta de 1986, quando o próprio Lyotard passou a ter maior precaução no uso do termo no texto A pós-modernidade explicada às crianças, para acabar por recusar o próprio vocábulo em O inumano (1997). A partir de 1989, propunhase o abandono puro e simples da palavra em função dos excessivos equívocos. De acordo com Eduardo Prado Coelho (1989), quem aponta 39
isso é Guy Scarpetta, em L’impureté, posteriormente corroborado por Omar Calabrese (1999), em A idade neobarroca, para quem havia pelo menos três acepções, assim resumidas: o pós-moderno como retorno ao passado na modalidade paródia ou pastiche; o pós-moderno como fim das grandes narrativas da história; o pós-moderno como revolta contra o Modernismo (e seu funcionalismo e racionalismo). É claro que cada uma dessas acepções comportava uma infinidade de outros debates, sendo um deles a necessidade de rever os excessos, as contradições e as fragilidades conceituais da pós-modernidade como, por exemplo, a do desaparecimento das grandes narrativas que bastava aos pósmodernos para falarem da liquidação do projeto moderno e que não levava em conta toda a complexidade da sociedade contemporânea. Ou o da marca representativa da modernidade, ou seja, a cultura da novidade e da mudança, que perdeu seu atrativo inicial: o culto que dedicaram os modernistas à arte praticamente não encontra mais adeptos, a fórmula “fazer da sua vida uma obra de arte” perdeu seu charme, os combates vanguardistas de hoje empolgam somente os especialistas da arte contemporânea (CHARLES, 2009: 20).
Nesse quadro quase de combate entre defensores e opositores do conceito de pós-modernidade, muitas vozes surgiram e se impuseram nos debates não pela oposição ou alinhamento, mas porque entenderam a pós-modernidade numa outra perspectiva. Um deles foi o crítico literário Ihab Hassan, cuja posição particular na discussão sobre a pós-modernidade foi fundamental para a compreensão do conceito. Segundo Connor: um dos problemas mais evidentes para quem quiser tentar extrair da obra de Hassan uma definição do que o pós-modernismo poderia ser é a sua resoluta insistência em que o “espírito pós-moderno está enrodilhado no grande corpo do modernismo” (CONNOR, 1993: 93-94).
Nesse pós-moderno “enrodilhado no grande corpo do modernismo”, é que podemos pensar o conjunto das obras de David Lynch e, particularmente, pensar a contemporaneidade de Twin Peaks no contexto da pós-modernidade. 40
Não se trata de pensar a produção de Lynch a partir de Hassan,16 nem de estabelecer relações da produção lynchiana com o que possa ser estritamente moderno ou pós-moderno, porque uma das características de sua obra está exatamente na ausência de hierarquia entre movimentos, modelos e escolas, mas propor uma análise, ou mesmo uma discussão, de como Lynch traz essas características para a televisão, e mais especificamente para uma rede aberta, a ABC, em horário nobre, 21h.
O universo lynchiano É claro que, à primeira vista, a explicação pode parecer simples, ligada ao fato da formação de Lynch,17 e de seu vasto conhecimento das vanguardas artísticas; quando centramos o olhar para essas ligações, é claro que percebemos afinidades e influências entre artistas que ele admirava e sua produção, não só artistas plásticos e literários.18 Ou, se vamos aos estudos dos movimentos e de suas propostas, também observamos que Lynch, embora tenha o surrealismo muito presente em 16
Em 1982, Ihab Hassan reviu suas primeiras posições sobre modernismo-pós-modernismo. De acordo com Steven Connor: “The Dismemberment of Orpheus contém um ‘Posfácio’ acrescentado na edição de 1982 que faz um movimento diferente. Embora continue a afirmar não haver ruptura absoluta entre o modernismo e o pós-modernismo, já que a ‘história é um palimpsesto e a cultura é permeável ao tempo passado, presente, futuro’ (TPL, 264), Hassan agora tem muito mais confiança para estabelecer os termos que permitam ver o pósmodernismo como oposto ao modernismo, e não como reformulação dele.” (CONNOR, 1993: 94).
17
Por volta dos dezoito anos, David Lynch decidiu estudar pintura no Corcoran School of Art, em Washington DC, e acabou dividindo um pequeno apartamento com seu amigo Jack Fisk, que posteriormente acabaria se tornando um colaborador frequente nos primeiros trabalhos audiovisuais do diretor. Eles moraram por pouco tempo juntos, pois Lynch mudou-se e foi estudar no Boston Museum School, onde ficou durante um ano. Decidiu viajar, junto com Fisk, para a Europa, onde pretendiam permanecer por três anos estudando artes plásticas. Ele tinha dezenove anos na época. Lynch conseguira uma carta de recomendação de um professor de pintura do Boston Museum School e iria estudar com o pintor Oskar Kokoschka. A viagem de Lynch e Fisk, no entanto, durou apenas quinze dias. De volta aos EUA, Lynch trabalhou em casas de arte, em lojas de molduras, enfim, teve vários empregos, mas não permanecia muito tempo em nenhum deles. Conseguiu, então, entrar para a Pennsylvania Academy of Fine Arts, na Filadélfia, em 1965, seguindo conselho de Fisk. Dois anos depois, em 1967, inspirado por artistas como Francis Bacon e Edward Hopper, Lynch concluiu o curso apresentando uma coleção de pinturas em que as cores escuras e pesadas predominavam. Sua única decepção era que, infelizmente, seus quadros, suas imagens não se movimentavam. Daí ao cinema foi um passo. Para outras informações, ver FERRARAZ (2003).
18
Lynch sempre declarou seu fascínio pelos cinemas de vanguarda, como deixou claro no documentário que escreveu e narrou para o programa Arena, da rede BBC, em 1987, por ocasião do impacto causado por seu filme Veludo azul (Blue Velvet, EUA, 1986), na Europa. No documentário, chamado David Lynch Presents Ruth, Roses and Revolver (título inspirado no episódio “Ruth Roses and Revolvers” escrito por Man Ray para o filme-coletânea Dreams that Money Can Buy, dirigido por Hans Richter, em 1947), Lynch citava alguns filmes que marcaram sua formação artística e acadêmica, feitos por alguns dos mais importantes artistas do século, segundo ele. Na lista de Lynch estavam Entreato (Entr’acte, França, 1924), de René Clair, Emak Bakia (Reino Unido, 1927), de Man Ray, Sangue de um poeta (Le sang d’um poète, França, 1932), de Jean Cocteau, o próprio Dreams that Money Can Buy (EUA, 1947), entre outros. Para outras informações, ver FERRARAZ (2003).
41
sua obra,19 escapa à total filiação a essa ou aquela escola, tanto no tocante aos estilos como às ideias ou mesmo às ideologias que sustentavam os diferentes movimentos da vanguarda. O que fica evidente na sua produção é a constante experimentação, característica essencial da modernidade e das vanguardas artísticas. Pensando nessa característica do movimento modernista em geral e das vanguardas em especial, pensamos que Twin Peaks pode ser discutido como um exemplo de experimentação artística em um dos meios de comunicação de massa ao qual “parece não existir um modernismo pré-existente satisfatório” (CONNOR, 1993: 109). Aqui está um dos aspectos interessantes e talvez uma das entradas para entendermos como e por que Twin Peaks revolucionou a forma de fazer programa para TV aberta. Ainda na esteira de Connor: a TV e o vídeo abrangem, tal como o filme, os dois mundos da cultura de massa da cultura minoritária de vanguarda. Outro modo de dizê-lo é que o vídeo exemplifica de maneira particularmente intensa a dicotomia pós-moderna entre estratégias disruptivas de vanguarda e os processos mediante os quais essas estratégias são absorvidas e neutralizadas. É a própria familiaridade da TV e a disseminação global do conhecimento da TV, tanto na produção como no consumo, que fazem essa questão da transgressão e incorporação ressurgir com tal persistência violenta (CONNOR, 1993: 129).
Mas, antes de continuarmos nessa discussão, vale resgatar um pouco o histórico e o enredo da série. Em 1990, mesmo ano em que recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, por Coração selvagem (Wild at Heart, EUA, 1989), o cineasta David Lynch criou, para a rede de televisão norte-americana ABC, a série Twin Peaks, em parceria com Mark Frost, que já havia trabalhado na TV nos anos oitenta, colaborando na série Hill Street Blues (1981-1987). Twin Peaks tornou-se logo um sucesso e uma mania nos Estados Unidos. Uma pergunta se espalhou rapidamente entre os telespectadores norte-americanos desde a noite de 08 de abril daquele ano, quando foi ao ar o episódio piloto: “Quem matou Laura Palmer?”. A série teve, em sua primeira temporada, oito episódios, incluindo o piloto. O sucesso da primeira temporada fez com que o programa tivesse continuação e os novos episódios começaram As relações entre os trabalhos de Lynch e a estética surrealista foram bastante estudadas e analisadas por FERRARAZ (1998; 2001) e apontadas por CAÑIZAL (2006), entre outros autores.
19
42
a ir ao ar a partir de 30 de setembro daquele mesmo ano – até ser encerrado em 10 de junho de 1991, no 30.º episódio, após perder público e entrar em declínio de audiência.20 A trama se passa na pequena cidade madeireira de Twin Peaks, próxima à fronteira com o Canadá, onde é encontrada morta, envolta por um saco plástico, a garota mais popular do lugar: a jovem Laura (Sheryl Lee, que também interpreta a prima de Laura, Maddy).21 Um agente especial do FBI, Dale Cooper (Kyle MacLachlan), é chamado para comandar as investigações, junto com o xerife local, Harry Truman (Michael Ontkean). A partir daí, tem início um verdadeiro desenrolar de fatos inusitados e sinistros e acontecimentos fantásticos, que acabam mostrando que todos ali têm algo a esconder. Assim, para solucionar o assassinato, o agente terá que descobrir o lado oculto e os segredos dos indivíduos de Twin Peaks – e também os seus próprios, iniciando um mergulho em sua subconsciência e inconsciência, marcado formalmente pelas suas gravações em fita cassete a uma suposta (e desconhecida) Diane. Dale Cooper contará com métodos incomuns, num caso que envolverá tanto personagens vivos quanto espíritos. Para se compreender a riqueza de Twin Peaks, deve-se buscar subsídios em diversas áreas, como, por exemplo, a História da Arte, a do Cinema e a da Televisão. Além disso, é importante observar também como a série liga-se a outras obras de Lynch, o que o insere num projeto criativo e complexo muito maior, que parece propor uma espécie de quebra-cabeça audiovisual em que as peças vão sendo espalhadas aos poucos por diversas mídias diferentes. Todo esse amalgama estético, artístico e narrativo foi um dos diferenciais que fizeram da série objeto de culto e de reflexão e que acabou, inclusive, influenciando programas posteriores, como Carnivàle (2003-2005), Bates Motel (2013-), entre outros.
20
Uma nova temporada de Twin Peaks, a ser escrita e dirigida por David Lynch, está anunciada para 2016 pelo canal norte-americano Showtime, vinte e cinco anos após o término abrupto da série.
21
A entrada em cena de Madeleine “Maddy” Ferguson, prima de Laura – que já está morta –, vivida pela mesma atriz, Sheryl Lee, faz lembrar tanto a reaparição da personagem Laura, interpretada por Gene Tierney, no filme noir Laura (EUA, 1944), de Otto Preminger, quanto a entrada em cena de Judy, que antes usava o nome Madeleine, vivida por Kim Novak, em Um corpo que cai (Vertigo, EUA, 1958), de Hitchcock. A escolha de Lynch de usar o mesmo nome para sua personagem é uma espécie de homenagem a Hitchcock, um de seus cineastas de referência – vale lembrar que Ferguson era também o sobrenome de Scottie, o personagem de James Stewart, amante de Madeleine/Judy, no mesmo filme.
43
Twin Peaks é parte da construção de uma obra maior, lynchiana.22 Trata-se de um conjunto de produções que estabelecem uma espécie de jogo, interno com as referências, e externo, com a cultura participativa (dos fãs) e a chamada inteligência coletiva na sociedade emergente. A importância da série para esse novo contexto da cultura midiática foi apontada por Henry Jenkins em nota de rodapé de seu livro Cultura da convergência (2008), denominada “Flashback de Twin Peaks”. Tratava-se, conforme Jenkins, do primeiro fenômeno da TV ligado às possibilidades que a era da internet criava. São vários os elementos constitutivos desse jogo lynchiano. Em suas obras, por exemplo, verificam-se experimentações com a fragmentação da língua, de forma análoga ao que ele faz com a própria linguagem audiovisual. No quadro So This Is Love (1992), observase a utilização das letras maiúsculas separadas formando o título da obra, desenhadas como se fossem datilografadas em pequenos papéis recortados. Um motivo linguístico recorrente em muitos quadros de Lynch, como Ants In My House (1990) ou Red Headed Party Doll (1990), foi também utilizado em obras audiovisuais, desde um de seus primeiros curtas, The Alphabet (1968), até, e principalmente, em Twin Peaks e em Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer, em que o espírito assassino BOB (Frank Silva), cujo nome original era Robertson, insere as letras R, B, e T (RoBerTson) embaixo das unhas de suas vítimas, numa macabra e narcísica forma de marcar a autoria de seus crimes. Nas obras de Lynch, acontece um retorno ao passado, que aparece quase sempre idealizado – mas uma idealização que parece falsa, envolvida em uma atmosfera quase sempre sinistra, acabando por causar angústia e inquietação. Assim ocorre também na série Twin Peaks. Lynch é fascinado pelos anos de 1950, e isso fica evidente em 22
Se ficarmos apenas com os longas dirigidos por Lynch para o cinema, até a exibição de Twin Peaks na televisão, temos: Eraserhead (EUA, 1977), O homem elefante (The elephant man, EUA, 1980), Duna (Dune, EUA, 1984), Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986) e Coração selvagem (Wild at heart, EUA, 1990). Após a exibição da série: Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks – Fire walk with me, EUA, 1992), A estrada perdida (Lost highway, EUA, 1997), História real (The straight story, EUA, 1999), Cidade dos sonhos (Mulholland Dr., EUA, 2001) e Império dos sonhos (Inland empire, EUA, 2006). Vale ressaltar que o longa Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer, filme posterior ao programa televisivo, conta com uma trama que se passa antes dos acontecimentos do enredo vistos na série. Essa estratégia também compôs o cardápio (proto) transmidiático do universo ficcional Twin Peaks.
44
suas obras. No entanto, a forma com que esse passado é inserido na diegese23 causa estranhamento, pois os elementos típicos daquele tempo idealizado são utilizados fora de seu contexto. As histórias, geralmente, passam-se no tempo presente, mas as paisagens imagéticas e sonoras não condizem com ele, pois fazem alusão a uma época passada. Essa verdadeira obsessão de Lynch pelos anos 1950 não é negada por ele, como mostra nessa entrevista a Ana Maria Bahiana: Sou louco pelos anos 50 e tudo o que se refere aos anos 50. Mas, para mim, quando eu me refiro aos anos 50, tanto em imagem quanto em som, estou me referindo na verdade a uma lembrança dos anos 50 (...) Uma coisa nostálgica (BAHIANA, 1996: 42)
Essa mistura de universos artísticos e estilísticos e de ícones de épocas distintas – com destaque aos anos cinquenta na obra de Lynch –, numa visão ao mesmo tempo nostálgica e crítica, pode ser vista, conforme vimos, como uma das características da chamada arte pósmoderna. É interessante observar a forma como o próprio Lynch, em junho de 1995, quando começou a trabalhar no roteiro de A estrada perdida (Lost highway, EUA, 1997), descreveu o que viria a ser o filme, evidenciando a mistura de gêneros e o jogo com a questão temporal: Um filme de horror noir do século 21. Uma investigação gráfica sobre crises de identidade paralelas. Um mundo onde o tempo está perigosamente fora de controle. Um passeio aterrorizante pela estrada perdida. David Lynch Junho de 1995 (LYNCH E GIFFORD, 1997: 3 – tradução dos autores)
23
Seguimos aqui o conceito trabalhado no livro A estética do filme: “A diegese é, portanto, em primeiro lugar, a história compreendida como pseudomundo, como universo fictício, cujos elementos se combinam para formar uma globalidade. A partir de então, é preciso compreendê-la como o significado último da narrativa: é a ficção no momento em que não apenas ela se concretiza, mas também se torna una.” (AUMONT et al., 1995: 114).
45
A mistura de gêneros observada em A estrada perdida e descrita pelo próprio Lynch não é exclusiva dessa obra. Em praticamente todos os seus filmes e particularmente em Twin Peaks, dada a natureza do programa televisivo, Lynch trabalha com temas e características de gêneros variados, adicionando, ainda, elementos intertextuais, como referências aos seus outros trabalhos e citações a filmes de outros cineastas e a programas de TV. A apresentação que Michael Atkinson faz de Veludo azul (mas que poderia muito bem ser sobre Twin Peaks também) atenta para essa complexidade das obras de David Lynch: um filme de estúdio hollywoodiano da década de 80 tão radical, visionário e cabalístico quanto qualquer produção de vanguarda; um filme cult misteriosamente simbólico e subterrâneo, que apesar disto conta com estrelas reconhecíveis e distribuição ampla; um “quadro de gênero” com a ambiência de um temível e hiper elaborado pesadelo; um “filme de arte” americano feito pelo único diretor conceituado de “filme de arte” de Hollywood (ATKINSON, 2002: 11).
É interessante observar que Veludo azul, com frequência, foi apontado como exemplo de filme pós-moderno. Autores como Arthur Kroker e Michael Dorland afirmam que “Veludo azul é a imagem cinemática perfeita para cultura pós-moderna” (KROKER & DORLAND, 1993: 11),24 apontando ainda que: “Veludo azul é o mundo pós-moderno. Aqui, apenas os predadores, como Frank [personagem de Dennis Hopper], tem energia e podem fazer as coisas acontecerem” (KROKER & DORLAND, 1993: 11).25 Não por acaso, Frank será comparado ao assassino BOB (Frank Silva) de Twin Peaks por Chris Rodley, no livro de entrevista que fez com Lynch em 1997 (LYNCH & RODLEY, 1997: 144). Sobre essas personagens extremadas e complexas (muitas vezes aproximando-se da fantasmagórica aparição do duplo, o doppelgänger) que habitam o universo lynchiano,26 vale ressaltar o que o próprio Lynch 24
Tradução dos autores. Texto original: “Blue Velvet is a perfect cinematic image for a postmodern culture.”
25
Tradução dos autores. Texto original: “Blue Velvet is the postmodern world. Here, only the the predators, like Frank, have energy and can make things happen.”
26
O caso de BOB e Dale Cooper em Twin Peaks talvez seja o mais intrigante, pois eles são, respectivamente, o vilão e o herói do programa. No entanto, são opostos que se completam. Nada mais pertinente que a série terminar com o espírito de BOB se apossando do duplo de Cooper. No trigésimo e último episódio, dirigido por Lynch e
46
falou sobre um de seus quadros. Na tela I See Myself (1992), o artista mostra duas figuras de mesmo formato e cores diferentes, divididas por uma linha diagonal, funcionando como uma espécie de fronteira especular entre elas.
Do culto à cultura participativa A construção de um universo próprio e particular, como essa feita por Lynch, é uma das características da chamada obra de culto, que pode, sem dúvida, ser aplicada aos trabalhos de Lynch. Na introdução do livro Full of Secrets: Critical Approaches to Twin Peaks (1995), que organizou sobre a série, David Lavery recorre às colocações de Umberto Eco sobre o assunto. Uma das regras apontadas por Eco, como um requisito para que uma obra se torne cultuada, é justamente sua capacidade de: proporcionar um mundo totalmente equipado para que seus fãs possam citar personagens e episódios como se fossem aspectos do mundo sectário privativo dos próprios fãs, um mundo sobre o qual se podem fazer testes e jogos de trívia para que os adeptos dos segredos reconheçam, uns através dos outros, uma experiência compartilhada (ECO apud LAVERY, 1995: 7).27
Twin Peaks talvez seja a peça central desse “mundo próprio” criado por David Lynch. Ele e Mark Frost acabaram também alimentando a paixão dos fanáticos seguidores, lançando um “guia turístico” chamado Welcome to Twin Peaks: access guide to the town (LYNCH, FROST, WURMAN, 1991), o livro O diário secreto de Laura Palmer: visto por Jennifer Lynch (LYNCH, 1996), escrito por Jennifer Lynch, filha do diretor, e Dale Cooper: minha vida, minhas gravações / como foram ouvidas por escrito por Mark Frost, Harley Peyton e Robert Engels (este último seria, posteriormente, autor, junto com Lynch, do roteiro de Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer), Cooper entra no Black Lodge (uma espécie de salão de outro mundo, um lugar habitado por personagens bizarros e atormentados que, possivelmente, são espíritos), para tentar salvar sua namorada, Annie Blackburn (Heather Graham), levada para lá por Windom Earle (Kenneth Welsh), inimigo do agente do FBI. Numa longa, bela e memorável sequência, Cooper entra e sai de diversos quartos, atravessando as cortinas vermelhas que os separam e encontrando diversos personagens da estória. Num desses momentos, o anão, ou o Man from Another Place (Michael J. Anderson) – que parece ser o comandante daquele lugar – anuncia: “Doppelgänger!” Vê-se, então, surgir outro Cooper, o seu duplo, que passa a perseguir o primeiro. É o doppelgänger que, ao final, sai do Black Lodge com Annie e é resgatado pelo xerife Truman (Michael Ontkean), que não percebe tratar-se de um duplo. 27
Tradução dos autores. Texto original: “provide a completely furnished world so that its fans can quote characters and episodes as if they were aspects of the fan’s private sectarian world, a world about which one can make up quizzes and play trivia games so that the adepts of the secret recognize through each other a shared experience.”
47
Scott Frost (FROST, 1991), as transcrições das fitas cassete do agente Dale Cooper, escritas por Scott Frost, um dos roteiristas de Twin Peaks. Essa estratégia, aliada ao fato de esse “mundo” ter sido exibido pela televisão, tornou a série justamente objeto de culto: por muitos anos foi editada uma revista sobre o programa, chamada Wrapped in Plastic – frase dita por Pete Martell ( Jack Nance), no início do episódio piloto, quando ele liga para a delegacia para afirmar que encontrou o corpo de uma garota morta envolta em um saco plástico, que vem a ser Laura Palmer; são feitas convenções anuais de fãs de Twin Peaks, na cidade onde a obra foi gravada, em que atores, roteiristas e diretores da série são convidados para dar conferências; até hoje, a série é citada e/ou homenageada por vários programas televisivos, como a série Psych (2006-2014) e o desenho animado Scooby-Doo! Mystery Incorporated (2010-2013), entre outros. Essa forte relação que se criou entre a série e os fãs é justamente a questão central daquela discussão iniciada por Henry Jenkins (2008).28 Naquele texto, Jenkins relata como foi sua introdução à internet e às comunidades de fãs através da alt.tv.Twin Peaks, em 1991, e o que representou a série tanto para a televisão aberta como para a entrada da sociedade e da cultura na era da internet e os debates sobre as comunidades do conhecimento, uma nova discussão que começava na época.29 Para Jenkins, porém, Twin Peaks não era importante apenas pela formação de grupos de discussão e fãs que criavam listas e se articulavam para trocar informações pela rede. Para o autor, o importante era o fato de a lista funcionar como um espaço onde as pessoas podiam, juntas, colher as pistas e examinar as especulações sobre o gancho central da narrativa – quem matou Laura Palmer? Importante também porque Twin Peaks era a obra perfeita para uma comunidade baseada no computador, combinando a complexidade narrativa de um mistério com os complexos 28
Jenkins já havia discutido o caso de Twin Peaks em texto anterior, “‘Do You Enjoy Making the Rest of Us Feel Stupid?’: alt.tv.Twin Peaks, theTrickster Author, and Viewer Mastery”, publicado no livro Full of Secrets: Critical Approaches toTwin Peaks (LAVERY, 1995).
29
Sobre este aspecto específico, da série Twin Peaks servir como uma espécie de embrião do que mais tarde se configuraria como narrativas transmidiáticas, os autores deste paper escreveram o artigo “Para além dos episódios, diários e fitas cassetes: a (proto) transmidiação em Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost”, para a coletânea resultante de projeto interdisciplinar e interinstitucional financiado pelo Edital CAPES/PROMOB e FAPITEC (MAGNO E FERRARAZ, 2014).
48
relacionamentos de personagens de uma soap opera,30 e uma estrutura serializada que deixava muita coisa não resolvida e sujeita a debates e, principalmente, pela descoberta do que era trabalhar em grupo, com a força conjunta de milhares de pessoas tentando desvendar o que viam na televisão. Enquanto a comunidade online estava fascinada com a descoberta da força do trabalho em grupo e com as possibilidades apresentadas pelo videocassete para o estudo detalhado da trama, dois acontecimentos colocaram a série à prova, segundo Jenkins: de um lado os críticos reclamavam que a série estava tão complicada a ponto de se tornar incompreensível à medida que a temporada avançava; de outro, os fãs reclamavam que Twin Peaks estava se tornando muito óbvio. Twin Peaks, portanto, ao mesmo tempo em que é parte de uma obra maior, lynchiana, é também uma produção dos anos 1990, sendo, dessa forma, parte de um conjunto de trabalhos que compunham a produção e as discussões sobre a chamada pós-modernidade ou da modernidade tardia, como querem alguns teóricos, bem como parte da nova era da internet e da emergência de uma sociedade em que as experiências online e a realidade virtual passaram a fazer parte de nossa vida e realidade. De acordo com Vicente Gosciola, apoiando-se em estudos de Hans Ulrich Gumbrecht: [...] três conceitos podem nos auxiliar a compreender essa realidade. O conceito da destemporalização que nos situa na diluição do passado, presente e futuro; o de destotalização que reconhece o fim das teorias que tentam individualmente explicar tudo, da globalização e dos etnocentrismos presentes em qualquer tipo de análise; e o de desreferencialização que nos explica a perda de referências, em que a objetividade na representação do mundo exterior é abrandada (GOSCIOLA, 2012: 7). 30
Expressão em inglês que designa esse tipo de narrativa seriada televisiva nos Estados Unidos, que se aproxima um pouco do formato da telenovela. Curioso observar que dentro do universo ficcional de Twin Peaks, os personagens também acompanhavam a trama de uma soap opera chamada Invitation to Love, que acabava dialogando com os acontecimentos amorosos, sexuais e criminosos da própria cidade de Twin Peaks, em uma espécie de construção metalinguística. Além disso, vale ressaltar que há uma recriação/homenagem no final da primeira temporada de Twin Peaks, quando o agente Dale Cooper leva um tiro na porta de seu quarto no hotel: trata-se de uma espécie de citação/homenagem ao final da terceira temporada da soap opera Dallas (EUA, 1978-1991), que apresentou um dos ganchos mais surpreendentes da televisão mundial, elevando o suspense ao máximo com o protagonista da história, J.R. Ewing (Larry Hagman), levando um tiro na última cena (não se sabe quem atirou, por qual motivo, o que acontece com J.R., se vive ou se morre, entre outras perguntas que ficam no ar, até o início da quarta temporada).
49
Se acompanharmos o texto de Gosciola sobre a narrativa transmídia e os três conceitos expostos e pensarmos em Twin Peaks a partir desses conceitos, podemos reconhecê-los em vários aspectos e momentos da série. Em Twin Peaks, embora não haja propriamente a diluição total dos tempos, eles aparecem embaralhados. Lynch trabalha com a simultaneidade dos tempos históricos, os três tempos (passado, presente e futuro) concomitantemente, reforçando uma vez mais uma ligação com o surrealismo, pois essa era uma das características daquela estética (ressignificada na contemporaneidade). Trata-se de uma forma de mostrar também que mesmo sabendo que a história tem uma linearidade, pois tem começo, meio e fim (ainda mais se tratando de uma narrativa seriada ancorada nos moldes da soap opera e das séries de mistério), a linearidade é atravessada por outros tempos narrativos. Já a destotalização pode ser percebida desde o enredo até as escolhas dramatúrgicas e narrativas. Como resume Ferraraz ao descrever o programa: Uma premissa intrigante, que serve como ponto de partida para um seriado marcado por diversas tramas que se entrelaçam. Vários personagens centrais, cada um com uma história pregressa secreta e repleta de passagens obscuras que, aos poucos, vai sendo revelada. Acontecimentos estranhos, bizarros, que se sucedem, envolvendo praticamente todos os personagens. Perguntas sem respostas; poucas certezas, muitas dúvidas (FERRARAZ, 2007: 1).
Twin Peaks trazia diversas tramas e personagens principais, o que favorecia os desdobramentos da história em múltiplas narrativas complementares, oferecidas nas mais diferentes mídias e telas. Essas relações com a narrativa transmídia e os conceitos de Gumbrecht (apud GOSCIOLA, 2012) são exemplos não só da contemporaneidade da série, mas uma marca característica da obra de Lynch, uma obra aberta, em que as questões podem ou não ser solucionadas, parte delas são e outras continuam indefinidas. Quanto à desreferencialização, a perda de referências e de objetividade na representação do mundo em Lynch não se relaciona não apenas à noção de falta de um mundo concreto, ideia diretamente ligada às 50
concepções de realidade virtual e comunidades online, mas é um dos universos sobre o qual Lynch constrói seus trabalhos. Lynch realiza obras audiovisuais limítrofes, que se encontram nas fronteiras do ilusionismo e do anti-ilusionismo, da narrativa clássica e das propostas de vanguarda, do cinema comercial e do filme experimental. Ele tanto explora as convenções narrativas quanto promove uma renovação da linguagem audiovisual.
Referências ATKINSON, Michael. Veludo azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. AUMONT, Jacques et al. A Estética do Filme. 2.ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1995. BAHIANA, Ana Maria. A luz da lente: conversas com 12 cineastas contemporâneos. São Paulo: Globo, 1996. CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1999. CAMPOS, Haroldo de. Poesia e modernidade: Da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico. In: Estéticas da pós-modernidade. Revista do Pensamento Contemporâneo. Lisboa: Editorial Teorema, n.º 5, maio de 1989, p. 65-88. CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. Surrealismo. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006. p. 143-155. CARLOS, Cássio Starling. Em tempo real: Lost, 24 horas, Sex and the City e o impacto das novas séries de TV. São Paulo: Alameda, 2006. CHARLES, Sébastien. Cartas sobre a hipermodernidade ou o hipermoderno explicado às crianças. São Paulo: Barcarolla, 2009. COELHO, Eduardo Campos. Limiar, Delimitação. In: Estéticas da pós-modernidade. Revista do Pensamento Contemporâneo. Lisboa, Portugal: Editorial Teorema, n.º 5, mai. 1989, p. 3-7. CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: Introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Loyola, 1993. ESQUENAZI, Jean-Pierre. As séries televisivas. Lisboa: Texto & Grafia, 2011. FERRARAZ, Rogério. O mundo estranho de Twin Peaks: um pequeno marco nos seriados de televisão. In: Rumores – Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídias. Ano 1. N.º 1. São Paulo: USP, jul.-dez./2007. ____ . O cinema limítrofe de David Lynch. [Tese de Doutorado – Comunicação e Semiótica] São Paulo: PUC, 2003. ____ . As marcas surrealistas no cinema de David Lynch. In: Revista Olhar. Ano 3, N.º 5-6. São Carlos/ SP: UFSCar, jan-dez/2001, p. 1-8.
51
____ . O veludo selvagem de David Lynch: a estética contemporânea do surrealismo no cinema ou o cinema neo-surrealista. [Dissertação de Mestrado – Multimeios] Campinas/SP: Unicamp, 1998. FROST, Scott. Dale Cooper: minha vida, minhas gravações / como foram ouvidas por Scott Frost. São Paulo: Globo, 1991. GOSCIOLA, Vicente. Narrativa transmídia: conceituação e origens. In: Carlina CAMPALANS; RENÓ, Denis e GOSCIOLA, Vicente (orgs.). Narrativas transmedia: entre teorias y prácticas. Bogotá: Universidad del Rosario, 2012. HASSAN, Ihab. The dismemberment of Orpheus: toward a postmodern literature. Nova York: Oxford University Press, 1982. JENKINS, Henry. A cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. JOHNSON, Steven. Complexidade urbana e enredo romanesco. In: MORETTI, Franco (org.). A Cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 865-886. KÖHLER, Michael. Pós-modernismo: Um panorama histórico conceptual. In: Estéticas da pósmodernidade. Revista do Pensamento Contemporâneo. Lisboa: Editorial Teorema, n.º 5, mai. 1989, p. 9-24. KROKER, Arthur & DORLAND, Michael. Panic cinema: sex in the age of the hyperreal. In: SHARRET, Christopher (org.). Crisis cinema: the apocalyptic idea in postmodern narrative film. Washington DC: Maisonneuve Press, 1993. p. 11-16. LAVERY, David (ed.). Full of secrets: critical approaches to Twin Peaks. Detroit: Wayne State University, 1995. LYNCH, David & GIFFORD, Barry. Lost Highway. Londres: Faber and Faber, 1997. LYNCH, David & RODLEY, Chris. Lynch on Lynch. London: Faber and Faber, 1997. LYNCH, David; FROST, Mark; WURMAN, Richard Saul. Welcome to Twin Peaks: access guide to the town. New York: Pocket Books, 1991. LYNCH, Jennifer. O diário secreto de Laura Palmer: visto por Jennifer Lynch. São Paulo: Globo, 1996. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. ______________________. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa, 1997. _______________________. O pós-moderno explicado às crianças – correspondências – 1982-1985. Lisboa: Dom Quixote, 1993. MAGNO, Maria Ignês Carlos; FERRARAZ, Rogério. Para além dos episódios, diários e fitas cassetes: a (proto) transmidiação em Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost. In: VERSUTI, Andrea C.; BERALDO, Rossana & GOSCIOLA Vicente. Formação de professores: transmídia, conhecimento e criatividade. Vol. 2: Novas linguagens, teorias e práticas para o professor contemporâneo. Recife: UFPE, 2014. p. 171-189.
52
Um bocadinho de chão: estilo televisivo, terra e figurações de mando em Renascer e O rei do gado 31
Reinaldo Maximiano Pereira32
Introdução teórico-metodológica Neste capítulo, o esforço de investigar as marcas do estilo televisivo se concentra na análise das operações visual e sonora para a construção de sentidos sobre as relações de poder e subjugação em cenas extraídas das telenovelas Renascer (1993) e O rei do gado (1996), assinadas por Benedito Ruy Barbosa, e dirigidas por Luiz Fernando Carvalho. Nosso objetivo é, por meio de análise estilística (Butler, 2010), interpretar como foram figuradas a temática da terra e as personificações de estruturas de mando nessas telenovelas, bem como a evocação de elementos da cultura popular e do melodrama. Compreendemos a tevê a partir do Circuito da Televisão, tal proposto por Jason Mittell (MITTELL, 2010: 9), que reúne seis dimensões: indústria comercial, instituição democrática, forma textual, representação cultural, prática cotidiana e meio tecnológico.33 Dessas, a dimensão das formas textuais enseja uma maior atenção no campo dos estudos da televisão, pois tem sido negligenciada. Pesquisadores, como Renato Pucci Jr. (2014) e Simone Maria Rocha, Matheus Luiz Couto Alves; Lívia Fernandes de Oliveira (2013) consideram a forma textual como fundamental para entender a televisão, hoje, uma vez que os produtos desse meio mostram-se cada vez mais elaborados em termos das estratégias de composição audiovisual. Nesse sentido, observar as telenovelas, especificamente, como produções artístico-culturais implica em reconhecer as marcas do estilo 31
Este capítulo é um recorte do projeto de tese cujo título é Um bocadinho de chão: uma investigação sobre o tema da terra na teledramaturgia de Benedito Ruy Barbosa e suas ramificações na cultura, a partir de uma análise televisual, e corresponde a um primeiro investimento de análise a partir da obra de Barbosa.
32
Doutorando do PPGCOM/UFMG, integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT).
33
Mittell analisa a função da TV na cultura dos EUA, mas essas dimensões podem ser observadas, também, na sociedade brasileira, respeitando-se as diferenças culturais.
53
decorrentes de um esforço coletivo, ou seja, a união de expertises em diferentes estágios da produção (fotografia, sonoplastia, cenários, figurinos) e as estratégias sincréticas de composição do produto televisivo, as mestiçagens (MARTÍN-BARBERO, 2009) e hibridismos que tornam mais complexas as ficções seriadas televisivas. Segundo Jeremy Butler (2010: 21), considerar o potencial artístico dos produtos televisivos e adentrar na análise estilística requer reconhecer que o estilo existe e deixa marcas nos textos televisivos que não são meros “adornos” na composição audiovisual, em determinados casos. Assim, é, pois, preciso a compreensão de que TV é texto (palavra-somimagem) e prática cultural; de que a TV tem operacionalizações próprias e é dotada de capacidade de reelaboração de seus padrões, processo produtivos e de construção de narrativas complexas, em dado contexto (MITTELL, 2012: 33). De acordo com Butler, o estilo na televisão diz da “rede que mantém juntos seus significantes e através do qual os seus significados são comunicados” (2010: 15).34 Assim, para discutir o estilo televisivo devemos ser capazes de descrevê-lo. Para isso, Butler enumera quatro dimensões de análise: 1) a descritiva, com a colaboração da semiótica; 2) a analítica, a partir da interpretação da análise fílmica; 3) a avaliativa, com auxílio da estética para avaliar a composição do texto (palavra-som-imagem); 4) a histórica que requer um recuo histórico para identificar marcos do estilo televisivo. Iremos nos concentrar na dimensão descritiva, pois segundo Butler, sobre ela podem ser construídas as dimensões interpretativa e a estética. Ainda de acordo com o autor, a análise histórica35 se estende para a investigação de padrões e para isso é preciso num recuo nos programas televisivos. Por ora, isso não se ajusta à economia deste texto. Ainda para efeito dessa reflexão, destacamos a vertente latino-americana dos Estudos Culturais, sobretudo as proposições de Jesús Martín-Barbero 34
Do original: “style is their texture, their surface, the web that holds together their signifiers and through which their signifiers are communicated.” Tradução do autor.
35
Destacamos a importância dessa dimensão, em termos do recuo histórico, para identificar marcos do estilo televiso e iniciamos um percurso, nesse sentido, ao tentar organizar e categorizar as obras de Barbosa, como aparece mais ao final do capítulo.
54
acerca do conceito de mediação e sua importância conceitual para os estudos de televisão. De acordo com Martín-Barbero (2009), para estudar o modo como os indivíduos interagem com as mensagens midiáticas, é preciso considerar suas interações no contexto cultural, as mediações entre a comunicação, a cultura e a política. Ao considerarmos as mediações, observamos a telenovela “por seu significado cultural” e por configurar um inventário de produções que permitem “entender a cultura e sociedade de que é expressão” (LOPES, 2004: 125). Martín-Barbero (2009) compreende a telenovela como um gênero latino-americano, derivado do melodrama dos teatros populares ingleses e franceses, do século 18, que aportou em Havana no século 19, converteu-se em radionovela no século 20 e vem, hoje, se caracterizando como uma instância de mediação cultural e mestiçagem. A telenovela, como os demais gêneros televisivos, alia a capacidade de hibridização (CANCLINI, 1999) ao aprimoramento técnico e artístico (MORIN, 2002). Em termos de experiência de sociabilidade, segundo Lopes (2009: 28), a telenovela “aciona mecanismos de conversação, de compartilhamento e de participação imaginária”. No que concerne aos cruzamentos de fronteiras entre as matrizes culturais populares, a telenovela circunscreve-se em um universo de significação e intervenção, onde a audiência, no processo de recepção, reconhece e reinterpreta hábitos e valores representados na trama (LOPES, 2002). Neste sentido, filiamos nossa perspectiva, também, às proposições de Mittell (2010) para compreender a televisão e seus produtos como categoria cultural caracterizada pela hibridização, em termos criativos e estilísticos. Segundo o autor, esse hibridismo complexifica as narrativas seriadas, e deve ser compreendido a partir das operações próprias da TV. Para Mittell, essa complexidade é potencializada pelo esgarçamento das práticas institucionalizadas do meio e pelo trânsito com outros regimes de narrativas audiovisuais. Dessa forma, nossa análise tenta se debruçar sobre os elementos do estilo televisivo (Butler, 2010) e o potencial artístico da televisão, em oposição à perspectiva, tradicional nos estudos de TV, que observa esse meio apenas como transmissivo. Ao filiarmo-nos às proposições de Butler, estamos ainda admitindo a existência do estilo na televisão e que 55
ele interage o contexto sociocultural. Assim, o estilo, em vez de ser uma marca individual do diretor ou do autor, seria proveniente de um esforço de equipe.
Análise das cenas: Quem manda e quem obedece? Para o exercício da análise descritiva foram colhidas duas cenas que confrontam uma personagem de posses e uma personagem sem posses em negociação que envolve concessão de terra. Os excertos são das telenovelas Renascer36 e O rei do gado37 que integram o grupo que nomeamos como Histórias de fazendeiros.38 A cena de Renascer reúne o coronel Zé Inocêncio (Antônio Fagundes) e Tião (Osmar Prado). Inocêncio é o protagonista, cujo passado é incerto. Inocêncio chegou à zona cacaueira de Ilhéus (BA), em algum momento do ciclo do cacau, onde toma posse de uma extensão de terra, elimina inimigos por meio de tocaia e prospera ao longo dos anos. Conhecido como “coronelzinho”, por ser o mais jovem dos mandões locais, Zé Inocêncio é visto como um homem justo. Na meia idade, sobre ele recaem lendas como a de ter sido costurado vivo, na juventude, de ter o corpo fechado e de possuir um Cramulhão a quem deve a prosperidade. Já a personagem Tião é um ex-catador de caranguejos que se transfere com a família, a mulher Joaninha (Tereza Seiblitz) e os dois filhos, para a zona do cacau na esperança de melhorar de vida. Ele se emprega na fazenda do coronel Teodoro (Herson Capri), rival de Zé Inocêncio. Na região, Tião toma conhecimento da mística que cerca Inocêncio: em época da florada do cacau, o coronel monta num bode preto que voa e urina sobre a plantação, aumentando a produtividade, lenda que Zé Inocêncio não rechaça. Iletrado e crédulo, Tião recorre à intercessão do coronel para que este lhe ensine a forma de criar um Cramulhão para ter “um bocadinho de chão”, como a personagem diz. Esse é o mote da 36
Exibida pela TV Globo entre 8 de março e 14 de novembro de 1993. A reprise foi exibida pelo Canal Viva (Canais Globosat) entre 7 de novembro de 2012 e 5 de setembro de 2013.
37
A telenovela Renascer foi exibida pela TV Globo entre 16 de junho de 1996 e 15 de fevereiro de 1997. A reprise foi exibida pelo Canal Viva (Canais Globosat) entre 9 de fevereiro de 2011 e 30 de novembro de 2011.
38
As temáticas relacionadas à terra (posse, propriedade, negociações, grilagens, herança, etc.) são mais que recorrentes na teledramaturgia de Barbosa, elas são transversais. Essa constatação nos permite categorizar a obra do dramaturgo e criar grupos específicos de acordo com a natureza da produção (roteiro original e roteiro adaptado), como veremos ao final do capítulo.
56
cena do capítulo 25, exibido em 5 de abril de 1993, cujos frames estão destacados na Imagem 1.
Imagem 1 – Telenovela Renascer, capítulo 25: No diálogo entre Tião e o coronel Zé Inocêncio, a alternância de planos fechados e médios e de perfis de personagens entre vítima e clown (Tião) e entre justiceiro e traidor (o coronel).
O cenário é sala da casa-grande da fazenda de Zé Inocêncio. A primeira linha corresponde aos primeiros 4 minutos da cena. Nela observamos a alternância de planos fechados e médios que mostram Tião em pé, segurando o chapéu junto ao peito, em posição de reverência ao coronel a quem ouve atentamente. Zé Inocêncio, por sua vez, está sentando em sua poltrona de patriarca, onde permanece dando as instruções, com o dedo indicador em riste denotando a postura de mando. No primeiro minuto, há uma trilha incidental, sons de instrumentos de percussão africanos que conferem tensão à cena e auxiliam na ambiência mística. Nos minutos seguintes o diálogo prossegue sem background (BG). O coronel enfatiza que o que está em cena é um negócio, uma troca, e que jamais o conteúdo da conversa deve ser revelado, pois isso comprometeria o pacto. A primeira recomendação é a de criar uma galinha preta que nunca tenha sido “galada”. Segundo o coronel, o primeiro ovo que ela botar será do diabo, numa noite de Sexta-feira Santa, e jamais poderá tocar o chão. As recomendações seguintes são: cortar o pescoço da galinha, fazer o sangue jorrar em torno da casa e chocar o ovo na axila esquerda, por 21 dias e 21 noites. Neste momento, o ingênuo Tião faz cara de espanto, e num gesto cômico, olha para a axila esquerda e profere com seu sotaque: “Debaixo do suvaco? Mas’ié?” 57
Há algo do maravilhoso que a cena deste diálogo enseja, pois o estatuto demiúrgico da posse é atribuído pela população local ao coronel, assim seu poderio não é questionado. A lenda local de que Inocêncio “plantou” seu facão aos pés de um jequitibá-rei e que ele não morrerá enquanto o facão e a árvore lá estiverem encontram respaldo no fato de o coronel ter sobrevivido ileso de diversas tocaias. De acordo com Irlemar Chiampi (1980), o realismo maravilhoso tem raízes que remontam à colonização e ao relacionamento que o europeu (espanhol e português) estabeleceu com o ambiente de flora e fauna consideradas insólitas; e com diversos nativos de diferentes mitologias e mestiçagens (talvez o aspecto mais notável em termos dessa matriz cultural). Poderíamos resumir esse estranhamento na forma como Pero Vaz de Caminha se referiu ao Brasil, por exemplo: “Nesta terra em se plantando tudo dá”. Um aspecto notável do maravilhoso é que ele convive com as personagens em um dado espaço, sem que elas estranhem a sua manifestação, ou seja, sua existência é observável e classificável, mas não questionada (CHIAMPI, 1980: 19). Assim, cremos, em concordância com Martín-Barbero (2009), que o popular sobrevive dentro do massivo por meio da mestiçagem. A telenovela Renascer mostra diversas estruturas sincréticas da cultura popular (BAKHTIN, 1993) inseridas no enredo. Já nos referimos ao pacto com diabo, ao facão aos pés do jequitibá-rei, mas há, ainda, as referências ao bumba-meu-boi, ao culto aos santos, às festas da colheita, o ritual de “beber o defunto”. Há, ainda, as formas orais pelas quais a lenda de que Zé Inocêncio tem um pacto com o diabo e, logo, pertence à outra casta de indivíduos, e as formas do vocabulário popular em expressões como “mas’ié”, “pr’a mode’que” e “vosmicê” que evidenciam os processos de formação de palavras (morfologia), por meio de justaposição e de aglutinação. Observamos, ainda, a sobrevivência do popular no melodrama39, quando notamos a sobrevivência de quatro possibilidades dramáticas baseadas em quatro sentimentos fundamentais (MARTÍN-BARBERO, 2009: 167-172): do medo emerge uma situação terrível, executada pelo arquétipo do traidor, típico dos romances; do entusiasmo, sobressai uma situação excitante, encenada pelo justiceiro, típico das epopeias; da dor, 39
Segundo Martín-Barbero (2009: 166-167), proveniente do teatro popular, do século 18, marcado pela censura, que se valia da expressão corporal, da pantomima e dos efeitos musicais para discutir os padrões morais da época.
58
advém a reação de identificação e piedade para com a vítima, típica das tragédias; do riso, emerge o burlesco, a farsa e a paródia, na figura do bobo, do bufão ou do clown, típicos da comédia. Esses elementos, hoje, estão presentes nas telenovelas. No caso de Renascer, ora Zé Inocêncio oscila entre a composição estrutural de justiceiro e ora como traidor. Já o seu interlocutor, Tião, ora é associado à posição da vítima, ora à identificação com o clown. É evidente, nesse primeiro momento, que Zé Inocêncio faz uma troça com Tião. Assim, ele não só endossa a lenda local, que ele mesmo sugestivamente “plantou”, como torna a receita, para ter o “diabinho” numa garrafa, complexa e difícil de ser executada. O coronel assim o faz, na medida em que seu interlocutor demonstra consentir com os termos da proposição. Desse modo, investido do poder de uma deidade, o coronel, novamente, com o dedo em riste, sentencia: ZÉ INOCÊNCIO – Tem mais uma coisa! No momento em que o diabinho quebrar o ovo e sair pra vida, um dos seus filho vai morrer. O Cramulhão é que vai fazer a escolha e alminha dele vai ta lá, nas profunda!
O primeiro frame da segunda linha corresponde ao momento dessa sentença, Zé Inocêncio é enquadrado em plano fechado. O BG retorna, desta vez com instrumentos de cordas conferindo suspense ao clímax do diálogo. Há um corte para Tião que é enquadrado em primeiríssimo plano. Não há fala, apenas expressão facial que denota o instante em que Tião reflete sobre a barganha e, ainda, em primeiríssimo plano, em perfil, profere: TIÃO – Eu vou sacrificar um pra sarvar o outro e o resto dos filho que eu vou fazer com minha Joana, depois que a gente enricar. Senhor coronel José Inocêncio, eu não vou dizê pra ninguém, eu não vou contá pra ninguém, essa prosa que nóis acabamo de ter aqui.
O último frame da segunda linha e o primeiro da terceira mostram Zé Inocêncio, em plano fechado, enquanto o BG prossegue, com a expressão de perplexidade diante do conformismo de Tião, este ainda enquadrado em primeiríssimo plano. A sequência termina, em plano conjunto ainda com o BG: o coronel se levanta, encerra a conversa e se despede de Tião, mas, antes, recomenda ao interlocutor que retire de casa todas as imagens 59
de santos para não atrapalhar o pacto. Zé Inocêncio caminha em direção à saída, abre da porta e trabalhador rural sai de cena. As operações visuais e sonoras desse diálogo constroem uma atmosfera mística que tem o protagonista da trama, Zé Inocêncio, como uma deidade, aquele que não morrerá, nem de “morte matada”, nem de “morte morrida”. Dessa forma, o coronel não é apenas um proprietário de uma vasta extensão de terras produtivas, visto que os demais fazendeiros da região estão em crise, mas uma divindade. As posições das personagens em cena expressam uma relação de reverência do sem posses diante desse potentado que, em seu trono, decide o destino do outro, reafirmando a estrutura de poder e de mando. É importante não lermos a personagem Zé Inocêncio, apesar da alcunha de “coronel”40 que ele ostenta, como uma expressão do coronelismo ou como uma personagem herdeira do coronelismo. De fato, a trama, apesar de ambientada em 1993, faz referência ao ciclo de produção do cacau, na Bahia. O ciclo cacaueiro foi deflagrado entre 1889 e 1930, período em que este produto passou a ser um recurso estratégico para a economia da Primeira República. É, justamente, neste período histórico que José Murilo de Carvalho (1997) e Vitor Nunes Leal (1997) localizam o coronelismo como um momento específico do mandonismo. Isto é, o coronelismo é um sistema datado, historicamente, teria iniciado com o federalismo implantado pela República (1889), em substituição ao centralismo do Império, e terminado com a implantação do Estado Novo. Para evitar a imprecisão é, pois, necessário um esforço para distinguir os conceitos de coronelismo, mandonismo e clientelismo. De acordo com Leal (1997: 40), o coronelismo é um “compromisso de troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”, ou seja, está relacionado à estrutura de poder agrário brasileiro e ao declínio das grandes fazendas de monocultura.41 40
O termo “coronel” deriva dos títulos da Guarda Nacional, criada no Império. De acordo com Carvalho (1997), essa instituição patrimonial foi um mecanismo de cooptação dos proprietários rurais que compravam suas patentes e tinham o controle da população local.
41
A progressão de uma série de fatores reduziu o poder da estrutura coronelística: o crescimento demográfico, a urbanização e a industrialização reordenavam a organização social e demandavam a criação de novas instituições públicas com trabalho especializado. No entanto, esses fatores se sucederam de maneira desigual em diferentes regiões do Brasil.
60
O mandonismo, de acordo com Leal (1997) e Carvalho (1997), se refere às estruturas oligárquicas e personalizadas de poder arbitrário. Há várias designações: mandão, potentado, chefe e coronel. Geralmente, qualifica o indivíduo que tem a posse algum recurso estratégico para o ciclo econômico. Historicamente, o mandonismo envolve detenção de cargos públicos, por representantes dos mandões locais, que tinham acesso ao erário e facilidades de crédito, pelo “voto de cabresto” e pelas disputas com outros mandões. Cumpre ressaltar, em concordância com Carvalho (1997), que o mandonismo não é um sistema, é uma característica da política tradicional existente desde colonização. Segundo o autor, a tendência é que o mandonismo desapareça à medida que os direitos civis se estendem para a população nos limites do território nacional. Já o conceito de clientelismo refere-se, de acordo com Leal (1997) e Carvalho (1997) às relações bilaterais de troca entre atores sociais e políticos de poder desigual. Segundo Carvalho, o clientelismo é um tipo de relação que envolve concessão de benefícios públicos, fiscais, de crédito, de isenções e de troca de apoio político. Os autores explicam que o clientelismo e o mandonismo são fenômenos mais amplos que o coronelismo, mas elucidam que é inegável que o coronelismo envolve relações de troca de natureza clientelística. Carvalho esclarece, ainda, que as expressões do mandonismo e do clientelismo mudam, historicamente, “de acordo com os recursos controlados pelos atores políticos, em nosso caso pelos mandões e pelo governo” (CARVALHO, 1997). Assim, cremos que Zé Inocêncio, nos momentos em que é enquadrado com o dedo indicador em riste, tem sua composição assentada numa estrutura de mando, pois esta é, em termos históricos e políticos, mais ampla e ostensiva. A dimensão do maravilhoso amplia a pretensa confiabilidade de suas palavras, pois alça o mandão ao pedestal das deidades. Não há comiseração, nem no instante em que ele percebe que Tião crê em suas palavras e o tem na conta de um justiceiro, em verdade um traidor que subjuga seu interlocutor. No dedo em riste não há apenas, ao que salta aos nossos olhos, uma expressão de instrução, mas de sentença. Tião, ao sair dali, dará consecução ao plano e criará, de fato, uma galinha preta dentro de uma gaiola, da qual não se separará nem para dormir, ou seja, ele se agarrará à possibilidade desesperada de tirar a família da miséria, sabendo que perderá um filho. A personagem passa 61
a ser conhecida e nomeada como Tião Galinha, carregará o estigma de louco, será apartado do convívio social (ele é preso acusado de assassinato) e morrerá no final da trama sem conseguir realizar o sonho de ter “um bocadinho de chão”. Observamos, ainda, que as personagens em cena oscilam suas composições estruturais. No caso de Zé Inocêncio, ele se assenta na posição de herói de um homem justo, mas se expressa numa postura de mando e de forma consciente trai seu interlocutor e admirador. No caso de Tião, a ingenuidade e a credulidade o arrebatam na estrutura de clown, mas esta ainda enseja outra dimensão que diz da piedade que o conduz à representação da vítima. A cena de O rei do gado, por sua vez, reúne o fazendeiro Bruno Mezenga (Antônio Fagundes)42 e Regino ( Jackson Antunes). Bruno é o protagonista da telenovela, um homem que possui terras no Sudeste, Centro-oeste e Sul do país. O pecuarista vive em Ribeirão Preto (SP), é criador de gado de corte e conhecido, popularmente, como o “Rei do gado”. Portanto, temos, novamente, o potentado. A personagem ostenta a obstinação capitalista de ampliação de suas propriedades e partidário da ideia que uma pessoa deve vencer por seus próprios méritos, ditar as regras e não estabelecer uma dependência com as ações do Estado, a não ser relações de concessão de benefícios fiscais e de crédito. Bruno Mezenga rejeita, veementemente, a alcunha de coronel: “Isto é coisa do passado” – ele diz, em certa altura do enredo, aludindo ao momento histórico de declínio das grandes fazendas de monocultura e o caráter arbitrário do poder político dos fazendeiros, na Primeira República. Mas, nem por isso, a sua composição deixa de se assentar numa estrutura de mando, ele tem a pretensa tendência conciliadora para tentar preservar “tudo como está”. Na trama, quando algumas de suas fazendas foram invadidas por trabalhadores rurais sem terra, Bruno evita confrontos e tenta, ainda no início da trama, retira-os para outros assentamentos do governo. O fazendeiro é amigo do senador Caxias (Carlos Vereza), um político honesto preocupado com a reforma agrária. Ambos estabelecem uma relação de apoio, embora Bruno não reconheça vigor no político. 42
É, pois, sugestivo que em ambas as obras, o mesmo ator, Fagundes, tenha sido escalado para os papéis de protagonista e potentado. Sabemos que o ator era proprietário de uma fazenda de três mil hectares fica próxima à Campo Grande (MS) e foi “garoto propaganda” das Fazendas Reunidas Boi Gordo. A empresa foi à falência, em 2001, após ser condenada pela justiça por prática de pirâmide financeira. Retornaremos ao tema em texto futuro.
62
Já Regino é o líder dos trabalhadores sem terra, na região de Ribeirão Preto. É um homem honesto, com vocação para o trabalho rural, sem filiação partidária e que entra em confronto com outras lideranças do movimento, na economia do enredo. Foi no acampamento de Regino que Bruno conheceu a segunda esposa, Luana (Patrícia Pillar), mulher cuja identidade verdadeira é desconhecida. Em retribuição aos cuidados que Regino e a esposa Jacira (Ana Beatriz Nogueira) – e seu filho – dispensaram à moça, Bruno se reúne com o líder dos sem terra para lhe propor um negócio. Esse é o mote da cena do capítulo 109, exibido em 11 de junho de 2011,43 durante a reprise no Canal Viva, cujos frames estão destacados a seguir, na Imagem 2.
Imagem 2 – Telenovela O rei do gado, capítulo 109: No diálogo entre Bruno Mezenga
e Regino a iluminação, o cenário e objetos de cena marcam o distanciamento entre as personagens.
O cenário é o escritório da casa de Bruno Mezenga, em Ribeirão Preto. A primeira linha corresponde aos 2min50seg iniciais da sequência. O primeiro quadro mostra o enquadramento de nuca, perspectiva pela qual visualizamos Regino de frente. O líder dos sem terra está em um ponto mais escuro do cenário, em tom azulado, e, relativamente distanciado de seu interlocutor. Ambos estão sentados, um de frente para o outro. No quadro seguinte, o plano conjunto permite observar, com mais clareza, as posições distintas que as duas personagens ocupam em cena. Bruno está posicionado no ponto mais iluminado e mais adornado do cenário. 43
Na exibição original na Rede Globo, esse capítulo foi ao ar no dia 21 de outubro de 1996.
63
Entre os interlocutores está a mesa de trabalho de Bruno, com papéis, pastas, envelopes e na extremidade da mesa (próximo a Regino) está uma escultura de carro-de-boi. Esses elementos decorativos dão a expressar, novamente, a natureza dos negócios do protagonista, a pecuária; e o volume de papéis denota a extensão desses negócios. A mesa metaforiza, ainda, o “abismo” que separa os interlocutores em termos de posses. Por sua vez, Regino está, nitidamente, constrangido naquele espaço. Nos quadros em que Regino está destacado, em plano médio, o fundo aparece escuro e desfocado, ou seja, a personagem está imersa num universo de dúvidas. No quarto frame da primeira linha, próximo à cabeça da personagem, está um abajur acesso, é a única fonte de luz desse enquadramento. Com frequência, o olhar de Regino fita o chão e, por poucas vezes, seu interlocutor. Cumpre registrar que a cena prossegue sem BG. Bruno inicia a proposição de negócio ressaltando as virtudes morais de Regino (a honestidade, o senso de justiça e sua índole pacificadora), mesmo em face das dificuldades de liderar os sem-terra para assentamentos. Em capítulos anteriores, houve um conflito entre o movimento e homens armados numa fazenda improdutiva. Não houve vítimas, mas a família de Regino ficou exposta e o movimento teve que ceder. O assunto é mencionado no diálogo. Interessante notar que, para oficializar a proposta de ceder terras para criação de gado ao acuado Regino, Bruno o retira do acampamento e o hospeda, com a esposa, na mansão, garantindo a eles toda comodidade que as posses permitem. O terceiro frame da primeira linha corresponde ao momento em que Bruno faz a proposta num diálogo de frases curtas: REGINO – Mas de que jeito? BRUNO – O jeito, eu ajeito. REGINO – Mas e as terra? BRUNO – As terra, eu arranjo. REGINO – Tá certo, seu Bruno. Mas e os boi? BRUNO – Os boi, eu forneço, pelo menos até ocês começarem. E, também, ensino o jeito de lidar com eles. No quarto frame, Regino expressa contentamento com a proposta entendendo que haverá, por parte de Bruno Mezenga, a cessão, a doação, de uma extensão de terra para ele e sua gente. Regino pergunta: “Pois, então, eu quero que o senhor me diga, o que é que a 64
gente tem que fazer, pra merecer uma bondade dessa?”. O fazendeiro é incisivo: “Não é bondade, não, Regino. Eu tô lhe propondo um negócio. Não vou lhe dar nada de graça, não. Nem as terra, nem os boi, nem a ajuda que vocês precisarem. Vocês vão me pagar tudo com trabalho.”. Na segunda linha, os frames correspondem ao clímax do diálogo, ou seja, ao momento em que Bruno elucida a natureza da proposta que envolve abandonar a causa dos sem-terra e trabalhar para o fazendeiro em regime de parceria de produção. Assim, o enquadramento alterna o primeiro e o primeiríssimo plano, pois as minúcias do negócio serão pormenorizadas por Bruno, com o dedo em riste, sendo ouvido atentamente por Regino: BRUNO – Veja só, as terra que eu vou dá pra vocês, eu não vou invadir, não. Eu vou comprar. Os boi, eu não vou tirar do meu rebanho porque isso não me custou barato. E nem a ajuda que vocês precisarem, eu vou dar esse dinheiro de graça pra vocês. Eu vou dar a vocês é um crédito que banco nenhum daria. E a única garantia que eu vou querer é a sua palavra. REGINO – Pelo que eu tô entendendo, seu Bruno, você quer que a gente seja vosso empregado. BRUNO – Não. Eu quero que vocês sejam meus parceiro.
Há, na sequência, um corte para outra cena, na sala da mansão de Bruno Mezenga, onde uma ansiosa Jacira espera o resultando da conversa do marido com o “Rei do Gado”, ao lado de Luana e o casal de filhos do fazendeiro. Há outro corte e retornamos ao escritório. A terceira linha corresponde, justamente, a esta parte e é, pois, a ocasião em que observamos a mudança mais sensível de enquadramento. O diálogo se reinicia com Regino, em pé, em primeiro plano, de costas para Bruno. Nesse momento, como os interlocutores não estão mais frente a frente, é possível observar no primeiro, segundo e quarto frames as reações e a postura de cada personagem em cena. Desta vez, Regino, em primeiro plano, está mais iluminado dando ênfase em seu momento de hesitação e o fato de estar de costas para o latifundiário prenuncia o seu desacordo. Bruno está ao fundo, ainda sentado à mesa de trabalho e, agora, fumando cachimbo. A sequência evolui destacando a postura emocional e grave de Regino, diante da postura racional de Bruno. O líder dos sem-terra 65
recebe a confirmação de que não poderá levar todo o seu grupo de trabalhadores rurais para a nova fazenda. Há um corte para Regino que é, novamente, enquadrado em primeiríssimo plano, em perfil, no momento em que ele pergunta: “Mas o que que eu faço com os outro?”. A câmera, então, deriva para esquerda e enquadra Bruno que responde, sem tirar o cachimbo da boca, de forma firme e racional: “Isso aí, você que vai ter que resolver, Regino.”. A câmera deriva, novamente, em movimento reverso e enquadra, em primeiríssimo plano, a reação de tristeza de Regino. O diálogo termina com BG de suspense. Novamente, observamos que o fazendeiro se assenta nas posições de justiceiro e traidor, pois assegura ao interlocutor uma benesse e prejudicará um movimento social organizado de trabalhadores rurais; já Regino está composto como vítima que se depara com um dilema ético e moral.
Considerações finais e a tentativa de agrupar a obra Analisar os enquadramentos e as operações visuais e sonoras das duas cenas mostra-se importante, pois revela a forma como na televisão e na telenovela esses recursos se integram como auxiliares do constructo não apenas da encenação, em seu aspecto técnico, mas da dimensão subjetiva e narrativa. Trata-se, em cada cena, de personagens reunidas, em um trato particular em que fica exposta a diferença em termos de poder. Em ambas, temos duas personagens sem posses em dilema ético que envolve a terra: para Tião, sacrificar um filho para enriquecer; para Regino, abandonar a liderança dos sem-terra em proveito próprio. As duas propostas envolvem, em certo sentido, um “apadrinhamento”. No caso de Tião esse seria o resultado de uma aliança com uma entidade que facilitaria o acesso à terra, visto que esse trabalhador está desiludido. Em Renascer, há esse aspecto do maravilhoso em relação à terra e à política em torno da discussão sobre mobilidade na estrutura das classes sociais. O próprio Tião Galinha, ao ser interpelado pela esposa sobre a obstinação em enriquecer, em cena anterior do mesmo capítulo, profere: “Mas eu quero ser patrão! Deus quando fez o mundo, Joana, não deu terra pra ninguém. Pegaram seus pedaços, os que foram mais espertos”. O aspecto político relacionado à distribuição da riqueza e à reforma agrária, nos anos 1990, na dimensão televisual, se erige, ainda, nas conjecturas 66
metafóricas e poéticas que esse trabalhador rural iletrado faz no decorrer da trama: “Quem trabalha e mata a fome, não come o pão de ninguém. Mas quem ganha mais do que come, sempre come o pão de alguém!”. Em O rei do gado, o aspecto do debate sobre a terra se distancia do maravilhoso e tem uma referencialidade mais política. Nessa telenovela, as personagens falam a favor da reforma agrária, tema dos discursos do senador Caxias que critica e desqualifica as ações do governo para resolver a distribuição de terra no país. Cremos que o momento histórico era oportuno, pois na época, 1996, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ganhou projeção na imprensa nacional com as ações de assentamentos e após o massacre de Eldorado dos Carajás (PA).44 Assim, num percurso histórico, observamos uma mudança na abordagem política do tema em obras de Barbosa, embora as estruturas de mando permaneçam inalteradas, ou pouco modificadas. Em O rei do gado, as duas vozes que discursavam em favor da reforma agrária foram silenciadas em momento de confronto, o senador Caxias e Regino, deixando, assim, aberta a discussão da terra como algo que no debate político brasileiro, este externo à trama da telenovela, permanece como uma ação em curso e não resolvida. O estilo televisivo, nesse caso, e a construção de sentido sobre as posições de mando, pelas vias da referencialidade com o real sóciohistórico compartilhado, revelam a potência da telenovela, no regime de sua autoria, de interagir com temas do cotidiano social e político, configurando-se, dessa forma, como uma produção cujo estilo se assenta numa experiência que é estética e cultural (LOPES, 2003). As ficções televisivas de Barbosa, ao partirem da terra evocam não apenas uma dimensão política, ainda mal resolvida em nosso país (como em demais países latino-americanos), como evocam, também, a cultura popular e a dimensão do sagrado que emana da terra e que integra o humano à natureza, no campo da vivência. A partir da análise de cenas de Renascer e O rei do gado, foi possível, ainda, observar que a terra se configura como tema transversal na 44
Em 17 de abril de 1996 trabalhadores rurais sem-terra (integrantes do MST) protestavam, na BR-155, contra a demora da desapropriação de terras da Fazenda Macaxeira. A Polícia Militar foi encarregada de desobstruir a via que liga Belém ao sul do estado. No confronto, 19 trabalhadores rurais foram mortos com tiros à queima roupa.
67
teledramaturgia de Benedito Ruy Barbosa, desde a década de 1960. Verificamos que esse tema, em sua visualidade, revela as estruturas de mandonismo e de clientelismo figuradas, em um determinado grupo, na personagem identificada por coronel. Essa personagem presente quer seja no protagonismo ou nas posições secundárias das tramas, na maioria das vezes, é masculina,45 e, obviamente, controladora de recursos estratégicos para um determinado ciclo econômico, em diferentes estágios da História da República Brasileira. Lopes caracteriza as telenovelas de Barbosa, especificamente, como as que mais trabalham “com a temática rural” (LOPES, 2003: 27). Concordamos, em parte, com essa perspectiva, mas sugerimos o acréscimo de uma componente notável46, em termos da observação da nossa realidade sociopolítica: a terra, não só como fonte de recursos e produção e, assim, catalisadora das relações de poder e mando; mas, também, como espaço simbólico em que emerge o estatuto demiúrgico da posse e as constantes manifestações do imaginário (DURAND, 2002) e do realismo maravilhoso (CHIAMPI, 1980). A teledramaturgia de Barbosa representa, ainda, a diversidade étnica e as identidades culturais que caracterizam o Brasil e, também, os demais países latino-americanos. De início, delineamos seis grupos temáticos47: Grupo 1: Histórias de fazendeiros – composto por dez telenovelas (entre 1971 e 2016) cujos protagonistas são os fazendeiros e destacam a posse da terra. Estão nesse grupo as telenovelas: Velho Chico (TV Globo, 2016); Meu pedacinho de chão (TV Globo, 2014 e 1971); Paraíso (TV Globo, 2009 e 1982); O rei do gado (TV Globo, 1996/97); Renascer (TV Globo, 1993); Pantanal (TV Globo, 1990); Voltei pra você (TV Globo, 1983/84) e Jerônimo, o herói do sertão (TV Tupi, 1972). Grupo 2: Histórias das imigrações – reúne quatro telenovelas (entre 1981 e 2003) cujos protagonistas são imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, notadamente. Estão nesse grupo as telenovelas: Esperança 45
Registramos as personagens femininas em: 1) Esperança, com Francisca “Mão-de-ferro” (Lúcia Veríssimo), viúva de um grande produtor de café no interior paulista; 2) Sinhá moça (1986 e 2006), em que a protagonista, Maria da Graça (Lucélia Santos/Débora Falabella) herda do pai, a fazenda de café, também, no interior paulista.
46
No sentido de digno de atenção.
47
Os grupos foram organizados, por nós, a partir das sinopses que oscilam entre a proposição de roteiros originais e de roteiros adaptados.
68
(TV Globo, 2003); Terra nostra (TV Globo, 1999), Vida nova (TV Globo, 1989) e Os imigrantes (TV Globo, 1981). Grupo 3: Adaptações literárias – abriga 13 produções (11 telenovelas, um seriado infanto-juvenil e uma minissérie), entre 1966 e 2006. Em parte, trata-se de obras ajustadas à lógica de produção dos anos 1970 e 1980, que consolidou no horário das 18h, e produções do período de consolidação da telenovela, nos anos 1960, nas emissoras de televisão da época. Estão nesse grupo obras como: Sinhá moça (TV Globo, 2006 e 1986); Mad Maria (TV Globo, 2004); Cabocla (TV Globo, 2004 e 1979), Sítio do pica-pau amarelo (TV Globo,1978/80) dentre outras. Grupo 4: Histórias urbanas – composto por apenas duas telenovelas (entre 1980 e 1986) que tratam da vida das classes trabalhadoras na cidade de São Paulo. Integram esse grupo as telenovelas: De Quina pra Lua (TV Globo,1985/86); Pé de vento (TV Bandeirantes, 1980). Grupo 5: Telenovelas pioneiras – concentra cinco telenovelas que remontam ao período em que Barbosa atuou como supervisor e produtor da Colgate-Palmolive: Simplesmente Maria (TV Tupi, 1970); Algemas de ouro (TV Record, 1969); A última testemunha (TV Record, 1968); O décimo mandamento (TV Tupi, 1968); O anjo e o vagabundo (TV Tupi, 1967). Grupo 6: Remakes – um grupo de quatro telenovelas (entre 2004 e 2014), já agrupadas em Histórias de fazendeiros e Adaptações literárias, mas que envolvem novas tecnologias de produção que reconfiguram o estilo televisivo. Reúne: Meu pedacinho de chão (TV Globo, 2014); Paraíso (TV Globo, 2009); Sinhá moça (TV Globo, 2006) e Cabocla (TV Globo, 2004).
A proposição desses grupos não almeja um caráter normativo, apenas facilita, no aspecto metodológico, a visibilidade dos eixos temáticos que conformam o protagonismo dos enredos assinados por Barbosa, bem como características ostensivas do traço autoral. Nos grupos 1 e 2, por exemplos, podemos observar um olhar insistente sobre os contextos socioculturais do Brasil, nos primeiros anos da República e no período da redemocratização. O viés da tematização da terra varia de acordo a vocação de cada obra (as tramas rurais, as tramas urbanas, as tramas históricas e as contemporâneas). As figurações de mando e de propriedade da terra atravessam a teledramaturgia de Barbosa e explicitam como essas questões estão, ainda, abertas em nossa agenda política. A terra, 69
em Barbosa, apresenta um caráter movediço: ora é o problema debatido nos diálogos das personagens, ora é o espaço de cena para a ação das personagens (conflitos, tocaias, massacres, grilagens, etc.) e ora alça a condição de quase personagem das tramas expressando certa relação de contiguidade com o humano. Terra e homem se entretecem no aspecto universal da existência, é fator de vida.
Referências BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. SP - Bsb: HUCITEC-EDUNB, 1993. BUTLER, Jeremy. Television style. New York: Routledge, 2010. CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual. Dados, Rio de Janeiro , v. 40, n. 2, 1997 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 1 de Maio de 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003. CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002. LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Nova Fronteira, 1997. LOPES, Maria Immacolata Vassallo et al. Vivendo com a telenovela: mediações, recepção e teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002. LOPES, Maria Immacolata Vassallo. A telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Revista Comunicação & Educação, n.º 25. São Paulo, jan/abr de 2003. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de (org.). Telenovela: internacionalização e interculturalidade. São Paulo: Loyola, 2004. LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Telenovela como recurso comunicativo. São Paulo: ECA-USP. MATRIZes, ano 3, n.º 1, ago./dez. 2009, p. 21-47. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. 2.ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. MITTELL, Jason. Television and American Culture. New York: Oxford University Press, 2010. MITTELL, J. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. MATRIZes, Brasil, v. 5, n.º 2, 2012. Disponível em: http://200.144.189.42/ojs/index.php/MATRIZes/article/view/8138. Acessado em 13 jul. 2016.
70
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2002. PUCCI JR., Renato L. Inovações estilísticas na telenovela: a situação em Avenida Brasil. Revista Famecos, vol. 21, n.º 2, 2014, Porto Alegre (RS), p. 675-697. Disponível em: http://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/16648 Acesso em: 20 out. 2016. ROCHA, Simone Maria; ALVES, Matheus Luiz Couto. O realismo maravilhoso: uma matriz estéticocultural latino-americana e sua manifestação no estilo da telenovela brasileira. Seminário – Ficção, Mídia e Política: Processos e intersecções. Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, 17 de maio de 2014. ROCHA, Simone Maria; ALVES, Matheus Luiz Couto; OLIVEIRA, Lívia Fernandes de. A História através do estilo televisivo: a Revolta da Vacina na telenovela Lado a Lado. Revista Eco Pós (Online), v. 16, 2013.
Telenovelas: O REI DO GADO. Novela de Benedito Ruy Barbosa. Escrita por Benedito Ruy Barbosa, Edmara Barbosa e Edilene Barbosa. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Elenco: Antônio Fagundes, Patrícia Pillar, Raul Cortez, Carlos Vereza e outros. Rio de Janeiro, 20h, 17 de junho de 1996 a 15 de fevereiro de 1997, 209 capítulos, cor. (acervo pessoal). RENASCER. Novela de Benedito Ruy Barbosa. Escrita por Benedito Ruy Barbosa, Edmara Barbosa e Edilene Barbosa. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Elenco: Antônio Fagundes, Adriana Esteves, Herson Capri, Osmar Prado e outros. Rio de Janeiro, 20h, 8 de março de 1993 a 14 de novembro de 1993, 213 capítulos escritos, 216 apresentados, cor. (acervo pessoal).
71
O roteiro seriado: a estilística intermidiática no piloto de Mad Men
Marcel Vieira Barreto Silva48
Introdução à intermidialidade do roteiro Olhar para uma série televisiva e pensar a sua estética não precisamente na análise expressiva dos programas ou na qualidade singular das emissões, e sim no movimento pendular entre o texto escrito no roteiro e a forma audiovisual empregada em imagens/sons, configura um desafio de pesquisa. Em primeiro lugar, é preciso observar o roteiro, esse documento de pré-produção a um só tempo fundamental para a prática e desprezado pela academia, sem incorrer em assertivas genéricas que apenas iluminem a sua evidente importância para o processo criativo em geral. Além disso, é necessário ter habilidade para identificar, no texto escrito, elementos de linguagem capazes iluminar a leitura do programa televisivo em sua mais vasta teia de significados? Isso implica que a análise do roteiro não se sustenta apenas como mais um índice da bisbilhotice espectatorial sobre o processo criativo - no limite mesmo em que a crítica genética evita se imiscuir em fofoca de bastidores. Estudar um roteiro, ainda por cima de um episódio piloto de uma série dramática, é perceber como o texto não apenas abre, mas também sintetiza, uma boa parte dos elementos que serão replicados durante os anos seguintes do programa. O fato é que o roteiro é uma peça do passado, uma lembrança caduca, um mobiliário empoeirado que decora com perfeição uma casa que a gente só consegue ver por fora. Ninguém, para além dos profissionais interessados no fazer prático ou dos fãs com a sua curiosidade insaciável, faz da leitura de roteiros um hábito enraizado de sua formação cultural. Isso é uma evidência que põe em xeque a capacidade que o texto dramático construído no roteiro possuiria de carregar consigo um potência estética imanente – visto que sua função originária é ser uma peça de 48
Professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba.
73
pré-produção que circula entre o processo de viabilização comercial do projeto e a própria realização audiovisual do programa imaginado. A escrita do roteiro, portanto, com os seus códigos bem delimitados em um formato rígido de organização sintagmática (capa, cabeçalho, rubrica, diálogos e transições), já impregna o texto com uma tecnicidade que difere, de cara, das configurações possíveis do texto literário: a linguagem verbal, para a literatura, é sempre autocentrada, sua matéria-prima se abre e se fecha nas próprias possibilidades da escrita de organizar ou reorganizar a experiência da linguagem. No roteiro, por outro lado, a linguagem verbal é quase sempre um meio-termo, uma ponte imaginada para o filme ou a série por vir. É enfim o código técnico através do qual, durante o processo produtivo da cadeia do audiovisual, os produtores, diretores, atores e demais técnicos engajados na realização conseguem visualizar de antemão a dramaturgia ficcional tramada no texto. Essa condição marginal do roteiro – não é “literatura”, nem é “cinema” ou “televisão” –, a um passo que sopesa a curiosidade em torno de sua natureza, coloca também obstáculos no desenvolvimento de qualquer pesquisa específica sobre o tema. Visto que não é “literatura”, não podemos simplesmente importar os referenciais teóricos dos estudos literários, tais como a análise do discurso, a narratologia ou mesmo os estudos de gênero, bem como suas rotinas metodológicas, sejam elas extrínsecas ou intrínsecas ao estudo do texto literário. Semelhantemente, visto que não é “cinema” ou “televisão”, não parece indicado recorrer a esse repertório teórico, com a preferência por pesquisas sobre a imagem, a montagem, a mise-en-scène e a autoria, de um lado, e de cunho sociológico e culturalista, do outro lado, nem mesmo às limitadas especificidades metodológicas desenvolvidas pelo campo, da análise fílmica à análise histórica, passando pelos estudos de recepção e das mediações. Portanto, qualquer percurso que desejemos traçar aqui não pode ser exclusivo. Isso significa que, dada a posição indeterminada que o roteiro ocupa para os estudos de cinema/televisão e de literatura, o caminho teórico-metodológico proposto para a sua análise nunca será satisfatoriamente desenhado tendo no horizonte ou só o cinema/televisão ou só a literatura. O desafio, portanto, consiste em pôr em perspectiva os estudos literários e cinematográficos/televisivos, a fim de pensar zonas de fronteira, que seriam também zonas de confronto, de desconforto, em que 74
o texto escrito projeta uma imagem e um som, ainda que essa projeção seja aparentemente metafísica: está naquele lugar nebuloso, vacilante, oriundo da semântica do texto, mas cuja potência estética só se manifesta adiante, nas imagens e sons cuja presença se produz, de fato, in absentia. Ao falarmos, portanto, de estudo do roteiro, uma seara teórica fecunda, que sintetize a preocupação com a estrutura sintática e com a semântica cultural, constitui um terreno ainda pouco desbravado.49 Isso, ao passo que impõe severas dificuldades teórico-metodológicas, também nos oferece um instigante desafio, uma página em branco em que podemos traçar novos caminhos, rotas imprevistas que poderão quiçá nos conduzir a uma leitura menos ortodoxa das relações entre imagem e palavra, entre literatura e audiovisual e, mais especificamente, entre a análise televisiva e as inúmeras possibilidades do roteiro seriado, enquanto texto específico de construção de dramaturgia contemporânea. Para isso, vamos propor aqui um diálogo com alguns conceitos que, julgamos, podem iluminar a nossa análise. Não se trata, pelo menos por enquanto, da elaboração de um modelo analítico particular para a análise de roteiros de séries – em um ponto ulterior de nossa pesquisa, poderemos talvez desenhar isso com mais clareza. Por ora, vamos ensaiar algumas aproximações conceituais e metodológicas entre os estudos de intermidialidade, de literatura e de televisão. Inicialmente, devemos aqui refletir sobre o conceito de intermidialidade, a partir do qual podemos pensar a relação entre o texto do roteiro e o episódio realizado como um complexo sistema de trocas e misturas de códigos, signos e sentidos. Isso significa que não estamos considerando mais, entre roteiro e programa, uma relação apenas “intertextual”, base para boa parte das pesquisas que investigam as relações entre literatura e cinema/televisão, sobretudo nos estudos de adaptação e de tradução. Adalberto Müller procura estabelecer com clareza essa distinção importante entre os estudos de intertextualidade e intermidialidade: Dentro desse processo, literatura e cinema devem ser entendidos como mídias que se interrelacionam de modos diversos, dentro de um universo midiático bastante amplo, que inclui mídias diversas como a oral, a 49
Uma importante referência nesse tipo de análise pode ser encontrada na tese de doutorado de Pablo Gonçalo (2015), em que ele estuda a relação entre cinema e literatura na colaboração entre Wim Wenders e Peter Handke.
75
popular, o rádio, a imprensa escrita, a televisão, as artes visuais, a internet, o videogame etc. O estudo dessas interrelações configura o campo da intermidialidade. Esse termo não deve ser confundido com certos campos teóricos, dos quais ele se alimenta, como o da intertextualidade, ou o campo dos estudos interartes. Em relação a esses últimos, devese observar que os estudos de intermidialidade, assim como os de teoria da mídia, não são necessariamente estudos de estética. (…) No que concerne o domínio da intertextualidade, a diferença dos estudos de intermidialidade está, a meu ver, relacionado a uma mudança de paradigma importante nos últimos anos. O conceito de intertextualidade parece-me estar ligado a uma vertente de pensamento, sobretudo francês, derivado da Linguística saussureana, onde o paradigma central é a relação entre significação, e os termos essenciais são o signo, o discurso, o texto. Trata-se, a meu ver, de um paradigma essencialmente ligado a questões de linguagem, quando não à cultura do livro. Ora, para a teoria da mídia, o livro - e consequentemente tudo o que a ele se relaciona, inclusive a literatura – é apenas uma etapa na história das mídias (MÜLLER, 2008: 48).
Isso implica que a relação entre o roteiro e o episódio, ou seja, entre a linguagem escrita e a linguagem audiovisual, não será compreendida apenas como uma relação “entre textos”, mas sobretudo como um processo “entre mídias”. No roteiro, o texto verbal é a força motriz de organização da dramaturgia, mas é importante perceber que se trata de um texto que agrega, na sua própria lógica interna de funcionamento, índices que procuram representar a materialidade da experiência audiovisual. Nesse sentido, buscaremos mostrar que planos, sequências, transições e mesmo enquadramentos, com a sua indicialidade específica, são incorporados – e aqui “corpo” é um termo cuja materialidade se anuncia também no texto – à linguagem do roteiro em diferentes modalidades. De maneira semelhante, o produto audiovisual também integra para si elementos textuais presentes no roteiro (o diálogo, sem dúvida, é sempre lembrado, mas não é o único) que demonstram como a intermidialidade, no caso da relação roteiro e filme/série, é uma via de mão dupla. Nessa linha, outro conceito que nos interessa é o de materialidade. Resultado de um demorado processo de reflexão teórica que buscou, nos estudos da linguagem e da comunicação, avançar para além da tradição hermenêutica ocidental – que costuma apregoar que a experiência da linguagem se dá sobretudo na dimensão do sentido, da decodificação 76
–, os estudos das materialidades, de origem primordialmente alemã,50 buscam entender como as mídias por meio das quais são transmitidos os sentidos contribuem ou atrapalham, organizam ou desorganizam, influem, modulam e interferem diretamente na produção do sentido. Trata-se de uma guinada teórica que busca atentar para a própria experiência concreta de contato, de toque, de manuseio da mídia, cuja tecnologia determina, diretamente, a relação que, por exemplo, leitor ou espectador estabelecem com uma obra literária ou audiovisual. Hans Ulrich Gumbrecht (2010), relembrando o processo que levou à definição dessa mudança epistemológica, nos mostra que “‘Materialidades da Comunicação’, foi então decidido, ‘são todos os fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido’” (2010: 28). Isso implica, avançando no destrinchamento do conceito, que: falar em “materialidades da comunicação” significa ter em mente que todo ato de comunicação exige a presença de um suporte material para efetivar-se. Que os atos comunicacionais envolvam necessariamente a intervenção de materialidades, significantes ou meios pode parecer-nos uma ideia já tão assentada e natural que indigna de menção. Mas é precisamente essa naturalidade que acaba por ocultar diversos aspectos e consequências importantes das materialidades na comunicação – tais como a ideia de que a materialidade do meio de transmissão influencia e até certo ponto determina a estruturação da mensagem comunicacional (FELINTO, 2001: 3).
Isso nos traz um importante ponto de reflexão para entender a relação entre o roteiro e a obra audiovisual: visto que ambos buscam contar a mesma história, mesmos personagens, mesma dramaturgia, mesma organização de cenas, sequências e transições, como considerar experiências estéticas diferentes a leitura do roteiro e o visionamento do filme/série? Uma importante chave de entendimento, aqui, é o conceito de “produção de presença”, desenvolvido por Gumbrecht (2010). Segundo ele, não se pode entender o relacionamento entre os sujeitos e as obras artísticas apenas no âmbito do sentido, do inteligível, do significado, visto que cada obra impõe determinadas condições materiais de existência, e 50
No Brasil, trata-se de um campo ainda recente de investigações, mas já com uma sólida tradição tanto no universo dos estudos literários, quanto no campo da comunicação. Sobre isso, cf. FELINTO, 2006.
77
essas condições trabalham diretamente para produzir efeitos específicos, que Gumbrecht chama de “efeitos de presença”. Ou seja, não se trata de uma superação do sentido pela presença, do significado pelo significante, mas de uma atenção renovada para o modo como as materialidades trabalham na produção da experiência estética, concebida então “como uma oscilação (às vezes, uma interferência) entre ‘efeitos de presença’ e ‘efeitos de sentido’” (GUMBRECHT, 2010: 22). O roteiro produz efeitos de presença muito diferentes do episódio exibido na televisão. Embora contem a mesma história, evoquem a mesma dramaturgia, roteiro e episódio promovem vivências diversas. O que constitui, portanto, os efeitos de presença produzidos pelo roteiro? Para tentar responder a essa pergunta, inserimos a nossa preocupação aqui com uma estilística do roteiro audiovisual dentro de um universo conceitual específico, que, assim o julgamos, pode contribuir determinantemente para a melhor compreensão desse fenômeno. Trata-se de uma guinada bastante significativa no próprio horizonte de preocupações dos estudos de televisão, visto que pretendemos trabalhar nos interstícios, nas zonas de fronteiras entre mídias, entre literatura e audiovisual. Talvez, só assim, possamos entender melhor o que caracteriza o roteiro como obra de passagem, uma presença oculta, de temporalidade indeterminada, a meio caminho entre a matéria e o desaparecimento.
Algumas hipóteses metodológicas Nosso objetivo neste artigo é analisar algumas cenas do episódio piloto da série de televisão norte-americana Mad Men, escrita por Matthew Weiner, e exibida entre 2007 e 2015 pelo canal a cabo AMC, tendo como foco o modo como o texto escrito no roteiro indica, inaugura e, em último caso, presentifica elementos de linguagem audiovisual que serão determinantes para o programa em sua longa vida. Para tanto, pretendemos conciliar – talvez com menos sucesso do que verdadeiramente desejado, mas com a certeza do risco da aposta – uma análise cotejada entre o texto e as imagens/sons, querendo com isso não apenas identificar os índices de uma tradução intersemiótica evidente, mas sobretudo compreender como o roteiro, textualmente, é capaz de produzir uma série de “efeitos de presença”, que funcionam em três níveis dinâmicos e inter-relacionados: o nível linguístico, o nível sensório e o nível dramático/narrativo. Nossa 78
hipótese, portanto, é que o movimento instável e tenso entre esses níveis – em que um contribui e atrapalha o outro, simultaneamente –, define em grande medida a relação que o texto do roteiro estabelece com o programa em sua materialidade audiovisual. Para iniciar, é importante estabelecermos um recorte para o problema da coleta do material. Dentro de um esquema produtivo em que o roteiro, muitas vezes, não se prolonga como um membro a mais da cadeia produtiva que cerca o filme ou o programa – através, por exemplo, de sua publicação na forma de livro –, como podemos ter acesso aos diferentes tratamentos que compõem o processo criativo de construção da dramaturgia seriada contemporânea? Mesmo no caso de uma publicação, sempre devemos levar em conta, exatamente, que versão do roteiro está sendo publicada: é a versão final antes de ser gravado, é a versão utilizada no processo de avaliação institucional do projeto, ou mesmo uma versão revista e atualizada feita especialmente para o caso da publicação? Já aí temos uma série de problemas a serem avaliados, mas podemos acrescentar mais um: muitas vezes, a publicação dos roteiros de séries não é feita na versão script, mas transcript, ou seja, uma transcrição em palavras das cenas e diálogos que aparecem nas imagens, o mais literalmente possível. Afinal, qual ou quais roteiros podemos tomar como referência para o tipo que análise que pretendemos realizar? Aqui nos vemos mais uma vez diante de escolhas de escopo e recorte metodológico que implicam, invariavelmente, limitações no horizonte da análise. No caso de Mad Men, o piloto fora escrito no início do ano 2000, como um spec pilot,51 mas sua produção só ocorreu seis anos depois, tendo a série estreado em sequência, em 2007. Há que se imaginar a quantidade de alterações, ajustes, acréscimos e supressões de cenas, diálogos e mesmo personagens, ocorridos durante esses anos. Por isso mesmo, ao invés de buscarmos definir uma versão específica do roteiro como aquela mais adequada para a análise, ou mesmo recuperar, em um esforço hercúleo de cartografia genética, todas as versões escritas durante o processo de roteirização, torna-se mais válido analiticamente, e mais 51
De acordo com William Rabkin (2011: 2. Tradução nossa), um spec script “é, com certeza, um roteiro escrito em especulação – ou seja, um roteiro que ninguém solicitou, ninguém vai pagar por ele, e ninguém quer de fato ler”. No caso de Mad Men, o roteiro era um piloto de especulação, escrito por Weiner inicialmente para servir como parte do seu portfólio para futuros empregos. Foi assim, na verdade, que David Chase, criador da série The Sopranos, contratou Weiner para ser parte do seu staff de roteiristas.
79
justo com as possibilidades de investigação, indicar quais tratamentos estão sendo estudados, como eles foram obtidos e, por fim, apontar, dentro do esquema de produção, a que distância cada versão do roteiro está para a realização concreta do programa. Em entrevista, junto com produtores e atores da série no The Paley Center for Media,52 Matthew Weiner explica que, no episódio piloto exibido na televisão, ele acrescentou apenas três situações pontuais em relação ao spec pilot escrito anos antes (um diálogo cômico para o personagem Roger Sterling sobre a campanha à presidência de Richard Nixon, o fato de Don Draper possuir uma medalha de guerra chamada Purple Heart – entregue pelos Estados Unidos àqueles mortos ou feridos em combate – e, por fim, a cena em que Don, deitado no sofá do seu escritório, observa, entre fascinado e apreensivo, uma mosca presa no plafon de acrílico que ilumina o ambiente). De resto, todo o episódio perfaz, quase literalmente, todas as sequências de cenas e diálogos previstas no roteiro do piloto apresentado para a AMC. Com isso em mente, podemos avaliar as duas principais versões do piloto de Mad Men que circulam em sites especializados na internet. A primeira, datada de 17 de fevereiro de 2006, se aparenta mais à primeira versão do roteiro, com mudanças pontuais de descrição de cena, de diálogos, mas com a mesma estrutura de concatenação da história que o episódio exibido na televisão. A segunda versão, datada de 20 de abril de 2006, já se aproxima com bastante precisão do que foi ao ar, mantendo a mesma estrutura da versão anterior, mas acrescentando mudanças importantes de diálogo e, sobretudo, as cenas que o próprio Weiner comentou ter acrescentado para a produção. Uma mudança fundamental, no entanto, deve ser comentada: o centro nervoso do episódio segue Don em sua sofrida tentativa de criar uma campanha nova para os cigarros Lucky Strike, depois de a Reader’s Digest, importante revista da época, imprimir uma matéria informando descobertas científicas que relacionavam o consumo de tabaco ao câncer de pulmão. Na primeira versão do roteiro, a campanha não é para Lucky Strike, mas para outro cigarro, chamado Old Gold. Tratase de uma mudança crucial, visto que Lucky Strike era, à época, uma 52
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q6oJJO3am5I. Acesso em: 09 fev. 2016.
80
marca mais valiosa e, portanto, trazia à agência Sterling Cooper, onde Don Draper trabalhava, um dado de distinção mais evidente que Old Gold. Atualmente, o Old Gold é um cigarro low-cost, enquanto o Lucky Strike continua uma das marcas mais conhecidas internacionalmente. Se lembrarmos bem, na primeira cena do episódio, Draper conversa com um busboy, um copeiro negro, tentando descobrir os seus motivos para fumar o seu cigarro. Enquanto Don, na segunda e definitiva versão do roteiro, fuma um Lucky Strike, o copeiro fuma um Old Gold. Na primeira versão do roteiro, é exatamente o contrário.
Fumaça que embaça a vista: intermidialidade no piloto de Mad Men Para analisar o roteiro do piloto de Mad Men, vamos restringir o foco na versão final do texto (chamada usualmente de Final Shooting Script), na tentativa de observar, precisamente, três elementos formais, talhados na própria escrita, que funcionam para caracterizar a natureza singular do roteiro e, mais especificamente, do piloto de série dramática televisiva: uma estrutura de linguagem capaz de produzir, através de uma estilística própria, traduções intermidiáticas de procedimentos audiovisuais (movimentos de câmera, transições etc.), sem recorrer necessariamente a uma codificação técnica (nível linguístico); uma iconografia particular, que busca construir o universo visual e auditivo da série, bem como uma atmosfera, um Stimmung53 de ambiguidade e indeterminação (nível sensório); e, por fim, uma determinada organização das cenas, dos atos e dos arcos com o objetivo de produzir uma dramaturgia da ambivalência, da incerteza, da dúvida (nível dramático/narrativo). Para discutir cada um desses elementos, vamos discutir algumas cenas do piloto de Mad Men que ilustram, tanto quanto escancaram, as dificuldades de uma efetiva leitura do roteiro que considere, por fim, o que lhe é específico. 53
Gumbrecht (2014) recorre ao conceito de Stimmung para argumentar que o efeito produzido pela experiência estética não se restringe à interpretação e à decodificação, mas aos modos como as obras acionam atmosferas, climas e mesmo afetos. O conceito de Stimmung nos parece muito interessante para o estudo de roteiros, tentando ir além das análises puramente literárias, em direção a uma leitura que busque entender, nos modos específicos de organização da escrita do roteiro, como ela é capaz de modular, de subsumir, de efetivamente evocar a atmosfera de uma época, o clima de um período histórico particular e, finalmente, os afetos provocados pela própria linguagem. O que Gumbrecht nos convoca a avaliar quando fala de Stimmung é menos a indicialidade da representação (ou seja, de que modo a linguagem de fato remete a elementos concretos do mundo histórico), mas a experiência física e sensória que a linguagem pode engendrar ao construir os mundos ficcionais, os personagens e as tramas narrativas do modo que o faz.
81
Nossa hipótese, em suma, é de que, em cada um desses níveis – e nos três simultaneamente –, o roteiro do piloto de Mad Men consegue edificar um sólido alicerce para a série, cujos noventa e dois episódios seguintes tentarão replicar. Ou seja, a fumaça que embaça a vista – Smoke gets in your eyes, como no título do piloto – é o único canal possível de entrar no programa, seja pela chuva que cai na estrada e esfumaça o para-brisas de um Buick 1958 verde-musgo, seja pela identidade confusa de Don Draper, a um só tempo um brilhante diretor de criação e um sobrevivente de guerra que roubara o nome de seu antigo superior, ou um pai devotado a sua família de subúrbio e um sex addict inveterado, justo e cruel, bemsucedido e miserável, dono do mundo e filho de uma puta. Para pensar o primeiro nível, o linguístico, devemos prestar atenção ao modo como se constroem as cenas no roteiro, mais detidamente, a própria escrita e sua utilização particular da linguagem verbal. De antemão, é importante dizer que o modelo de roteiro utilizado nas séries televisivas nos Estados Unidos é bastante codificado – escrito em softwares de edição no modelo master scenes –, tendo em vista a sua função dentro de um modelo industrial por excelência. Por isso, devemos sempre pensar no roteiro em sua relação com a cultura institucional em que está inserido, já que, além de passar por diversas etapas de configuração e reconfiguração (por produtores, diretores e mesmo outros roteiristas que produzem diferentes tratamentos no material), o roteiro carrega em si, na sua formatação, as marcas discursivas da estrutura organizacional dentro da qual é gerido. Portanto, a linguagem do roteiro pode ser compreendida como uma tentativa de equilibrar a sua formatação excessivamente codificada e o uso de uma linguagem verbal que descreva, narre e represente, através de um texto literário, uma encenação audiovisual que se performatiza em imagens e sons que as palavras, no roteiro, buscam traduzir. É aí, precisamente, que concebemos o roteiro como um produto intermidiático por excelência. Sua escrita é verbal, mas também é audiovisual. Como em uma equação quântica, matéria e energia parecem aqui perfazer o mesmo caminho de indeterminação característico do modelo intermidiático do roteiro. No caso de Mad Men, vamos apontar um momento específico em que a linguagem do roteiro busca colidir, tensionar ou mesmo implodir os limites que separam as mídias. Trata-se de uma sequência no 82
primeiro ato, em que acompanhamos os três personagens cujos arcos particulares montam a estrutura do episódio piloto: Don Draper, Pete Campbell e Peggy Olson. A sequência os acompanha no início de um dia aparentemente ordinário de trabalho: Don está preocupado com a campanha da Lucky Strike, Pete se prepara para a sua despedida de solteiro e Peggy segue o seu primeiro dia na agência como secretária de Don. A sequência é composta por seis cenas, que ocorrem em um fluxo de ações que atravessa diferentes espaços – desde a entrada do prédio, passando pelo elevador, pelos corredores do escritório e pelas salas de Pete e Don. Um primor de organização da narrativa, de apresentação dos personagens, dos espaços e dos problemas dramáticos que a série, em larga medida, enfrentaria pelos próximos oito anos. Assim começa a sequência, na cena 8: EXT. ARRANHA-CÉU EM MANHATTAN - DIA Do alto, vemos um prédio elegante, moderno, todo de vidro. Embaixo, os chapéus sobre as cabeças dos homens pululam como formigas atravessando portas-giratórias (WEINER, 2006b: 07).54
A primeira singularidade que nos interessa aqui é o uso do símile, uma figura de linguagem pouco indicada para a escrita do roteiro tal como apregoam os manuais mais famosos. Como coloca Robert McKee (2006: 368): “Pobre do roteirista, ele não pode ser poeta. Ele não pode usar metáfora e símile, assonância e aliteração, ritmo e rima, sinédoque e metonímia, hipérbole e mesóclise, os grandes tropos”. No entanto, essa cena, que funciona como o que Madeline Dimaggio (2008: 28) chama de establishing scene – ou seja, a cena que estabelece o espaço da ação –, usa a imagem de um enxame de formigas para representar, via comparação, a chegada ao trabalho de uma horda de homens e mulheres pela manhã. Se lermos o roteiro de modo objetivo, talvez haja a necessidade de transformar a indicação comparativa no roteiro em uma montagem por correspondência: um plano de formigas desordenadas se chocando e, em seguida, outro plano de Nova Iorque, com a sua população apressada correndo para chegar ao serviço. 54
Original em inglês: “8 EXT. TOWERING MANHATTAN SKYSCRAPER - MORNING From the air, we see an elegant modern glass building. Below, the hats on the tops of men’s heads swarm like ants through revolving doors”. Tradução nossa. As referências seguintes serão todas, portanto, por nós traduzidas.
83
Mas não é isso que acontece. O estilo da série, mais clássico e narrativo, não comporta esse tipo de montagem expressiva. O símile, portanto, funciona como uma operação estilística, que possui duas funções: a primeira, mais superficial, de comparar os indivíduos a animais que andam em bando – e aí, a montagem por correspondência poderia fornecer uma solução; a segunda, mais profunda, de promover o raccord espacial de fora para dentro do prédio. Isso porque a cena seguinte já se inicia, no roteiro, dentro do elevador, o que pode indicar um corte brusco, seco, no tempo-espaço da encenação. Porém, é precisamente a imagem das formigas atravessando portas giratórias que garante o movimento exigido pelo raccord para produzir a continuidade. No episódio exibido na televisão, a tomada de cima, em contraplongée, não é feita imóvel, mas em uma panorâmica que acompanha, pelo raccord, o giro da porta por onde passam as pessoas. Vejamos como isso ocorre:
Fig. 1: Movimento panorâmico de câmera, em contraplongée. Fonte: Mad Men, DVD da Primeira Temporada, AMC.
84
Fig. 2: Após um corte seco, tilt up da câmera. Fonte: Mad Men, DVD da Primeira Temporada, AMC.
Ou seja, não há formiga alguma na imagem. O símile então ocupa o lugar de um elemento tipicamente audiovisual, que é o raccord. Embora não indique, no texto, que a transição da cena 8 para a cena 9 será feita com um raccord de movimento, esse símile carrega, na linguagem verbal, a potência desse procedimento. É precisamente esse tipo de escrita que define a natureza intermidiática do roteiro. Para além da codificação verbal de um elemento da linguagem televisiva, esse estilo de roteiro gravita em uma órbita de intersecção, em que literatura e audiovisual se mesclam, se imiscuem, enleados em uma rede discursiva intermidiática por excelência. Sabemos que, com o passar dos tempos, o roteiro foi abandonando o máximo possível as codificações técnicas, como movimentos de câmera, enquadramentos, enfoques etc. No entanto, como a sua natureza intermidiática requer, essas indicações de procedimentos audiovisuais 85
foram se incorporando a uma linguagem verbal menos explícita, de modo a traduzir o audiovisual como literatura. Como bem explica Steven Price: O roteiro pode descrever uma locação ou personagem em termos literários que aparentemente excedam ou não possam ser representados na linguagem fílmica, mas a linguagem verbal pode levar a imaginação do diretor a fornecer uma imagem, um clima ou uma textura correlativa (PRICE, 2010: 117).55
Em outras palavras, o estilo do roteiro, por mais que requeira objetividade, clareza e precisão descritiva, muitas vezes recorre a outros artifícios para representar a sua proposta audiovisual. A descrição dos ambientes, com os seus detalhes de arquitetura e decoração, e a caracterização dos personagens, física e psicológica, também funcionam como um importante elemento de construção do mundo ficcional, indicando as cores, os sons, os gestos, os corpos em que os sujeitos na cena devem se presentificar. No caso especifico do roteiro de Mad Men, é nessa descrição que podemos ver também, de modo mais efetivo, como se constituem as relações de raça, gênero e poder institucional que a série encenaria nos anos seguintes, do episódio piloto ao series finale. A sequência que estamos analisando, portanto, é crucial para definir essas relações. O ascensorista do prédio é caracterizado, na cena 9, como um “homem negro de meia-idade”. Em seguida, “três jovens executivos, KEN, DICK e HARRY, vestindo ternos aparentemente idênticos, tiram os seus chapéus e se postam no fundo do elevador lotado” (WEINER, 2006b: 7). Aqui já temos relações sociais que se inscrevem na caracterização dos personagens. Ou seja, a descrição do ascensorista como um homem negro e a ausência de marcas raciais nos três executivos faz a gente subsumir, pelo período histórico em que se passa a série, que Ken, Dick e Harry são brancos. Essa omissão é uma maneira de inserir no subtexto, nas camadas mais fundas da escrita, a ordem social que impera entre os indivíduos. 55
Original em inglês: “the script may describe a setting or character in literary terms that apparently exceed or cannot be resolved into the language of film, but the verbal language may prompt the director’s imagination into providing a correlative image, mood, or texture”.
86
Fig. 3: Três executivos brancos e o ascensorista negro. Fonte: Mad Men, DVD da Primeira Temporada, AMC.
Em seguida na cena, “uma jovem e atraente secretária, segurando a bolsa à frente do peito, sobe no elevador e vira as costas para eles. Os três homens se entreolham e acenam a cabeça afirmativamente” (WEINER, 2006b: 7). Depois de um comentário malicioso de Ken, os outros rapazes olham de modo lascivo para a jovem secretária, que se contrai recatada e olha para baixo. Além de um ordenamento racial bem estabelecido – o homem negro precisa ser caracterizado, o homem branco é subentendido –, a cena rapidamente nos aponta que a questão de gênero estará no horizonte da série (nas temporadas seguintes, ainda que a questão racial tenha emergido com as lutas por direitos civis nos Estados Unidos, nenhum personagem negro vira protagonista ou mesmo coadjuvante de destaque. O mesmo não se pode dizer do papel que as personagens femininas desempenham até o final). Essa jovem secretária que entra no elevador é Peggy, figura central para a história. Além dessa caracterização mais direta, “jovem e atraente”, Peggy só será descrita de novo mais adiante, quando Joan Holloway a introduz ao novo ambiente de trabalho, fazendo comentários tanto sobre a estrutura organizacional da agência quanto sobre o melhor modo de agradar o padrão: “Eu não sei quais são os seus objetivos aqui, mas não exagere no perfume” (WEINER, 2006b: 11)56. E mais adiante explica para 56
Original em inglês: “I don’t know what your goals are, but don’t over-do it with the perfume”.
87
Peggy, com uma sutileza quase explícita, qual o seu papel enquanto secretária de Don Draper: JOAN Ele pode agir como se quisesse uma secretária, mas na maior parte do tempo eles procuram algo entre uma mãe e uma garçonete. O resto do tempo, bem –– (confidencialmente) Vá para casa, pegue um saco de papel, e corte dois furos. Ponha na sua cabeça, tire a roupa, e se olhe no espelho. Avalie realmente quais são os seus fortes e os seus fracos. E seja honesta. (WEINER, 2006b: 11)57
Essa e outras cenas, já posicionadas aí, no primeiro ato, quando pela primeira vez adentramos nos corredores da Sterling Cooper Advertising, tem uma série de funções na organização de um piloto. Primeiro, apresentam os personagens e os espaços que o programa vai repetir, semana após semana, na sua estrutura seriada. Além disso, constroem a atmosfera particular de uma grande corporação, com as suas disputas internas e a sua estratificação de gênero, em uma época de explosão da sociedade do espetáculo e da publicidade (antes mais relacionada ao seu uso político e social) como força motriz da expansão das indústrias de bens de consumo. É o American way of life atravessando uma década, os anos sessenta, em que o nacionalismo, a luta pelos direitos civis, a defesa do capitalismo durante a Guerra Fria, a transformação comportamental e mesmo o antibelicismo hippie são construídos através de modulações climáticas, que se presentificam em cores, sons, arquiteturas, corpos e performances que, em vez de endossar um possível ufanismo nacionalista, procura investir em uma atmosfera de dúvida, de crise subjetiva, quase contraditória. No roteiro do piloto, um elemento é crucial para estabelecer, no nível sensório, essa atmosfera de indeterminação: a fumaça, que serpenteia dispersamente pelo ar, saindo em baforadas das bocas ansiosas, mas que está nas cenas noturnas, em casas de show (como a que Pete e seus 57
Original em inglês: “He may act like he wants a secretary, but most of the time they’re looking for something between a mother and a waitress. The rest of the time, well – (confidentially) Go home, take a paper bag, cut eyeholes out of it. Put it over your head, get undressed and look at yourself in the mirror. Really evaluate where your strengths and weaknesses are. And be honest.”
88
amigos comparecem para a sua despedida de solteiro), em restaurantes (como o que Don leva Rachel no terceiro ato) ou mesmo no trem e no automóvel que levam Don para a sua mulher e filhos no subúrbio. Ou seja, a fumaça, para além de sua função no nível dramático/narrativo (a campanha do Lucky Strike como conflito central do episódio piloto) ou mesmo o mote para uma abordagem sociológica, que busque discutir o lugar do tabaco na vida dos norte-americanos, funciona como um efeito de presença, no nível visual, sensório, que muitas vezes embaça a visão que nós, espectadores, temos dos personagens.
Fig. 4: Don, Rachel e a fumaça. Fonte: Mad Men, DVD da Primeira Temporada, AMC.
Essa noção da fumaça como um elemento de criação de atmosfera, que estamos defendendo aqui, pode ser muito bem percebida no episódio exibido na televisão, endossado ainda pelo uso recorrente de chiaroscuro na fotografia, e mesmo do consumo indistinto, na narrativa, de maços e maços de cigarro tanto pelos homens quanto pelas mulheres. 89
No entanto, antes de aparecer materializada nas imagens e sons transmitidos na televisão, ou vistos em arquivos baixados da internet, ou ainda admirados na alta definição dos blu-rays com seu material extra, essa atmosfera de indeterminação, essa visão nebulosa que o vapor dos cigarros torna sempre muito ambígua, já estava construída nas páginas do roteiro. Estava, por exemplo, na descrição dos ambientes, já em sua primeira cena, no bar em que Don conversa com o copeiro negro: 4 INT. KNICK KNACK BAR Estofamento de vinil e paredes espelhadas, mas tudo muito novo. É depois do trabalho, mas as mulheres mantêm o cabelo arrumado, e o nó das gravatas está bem apertado no pescoço dos homens. Copos de uísque com soda e de Martini retinem sob uma música calma, e em todo canto há imagens e sons de pessoas fumando (WEINER, 2006b: 1) 58
É a primeira cena da série, a primeira imagem mais específica de um espaço e de corpos que transitam nele. Imagens e sons de pessoas fumando, como está na rubrica, seria então um tropo bastante recorrente na série – a ponto, por exemplo, de Betty Draper contrair, na última temporada, um câncer de pulmão. No entanto, o que o roteiro propõe não é apenas o cigarro e a fumaça como um elemento narrativo, que produz relações entre os personagens e determina, em larga medida, o arco dramático de Don Draper na primeira temporada. Junto a esse nível dramático/narrativo, o roteiro utiliza a fumaça para produzir, em nível sensório, um efeito determinado na materialidade da imagem. Talvez o momento mais evidente em que a fumaça desempenha essa função seja durante a despedida de solteiro de Pete Campbell: 27 INT. O Quarto Escorregadio. Notas de jazz chiam ao fundo. Uma STRIPPER loira e rechonchuda está no palco. Ela desabotoa o seu vestido nas costas e devagar o joga para o chão.
58
Original em inglês. Tradução nossa. “Vinyl upholstery and mirrored walls, but brand new. It’s after work, but the women have their hair done and each man’s tie is pushed to the top of his collar. Highballs and martinis clink under quiet music and everywhere are the sights and sounds of smoking”.
90
Através do ar cheio de fumaça nós vemos Ken, Dick, Harry, Salvatore e Pete sentados em uma cabine no canto. Eles estão bebendo e sorrindo, mas Pete não está no clima para participar (WEINER, 2006b: 42)59. Aqui, o ar cheio de fumaça e o clima de Pete na festa são indicações diretas de uma atmosfera, da criação de uma ambiência particular em que o visível, no nível sensório (a fumaça) está diretamente relacionado com o afetivo, no nível dramático (o espírito de Pete na própria festa), ambos mediados por um estilo de escrita específico (nível linguístico). Mad Men, enquanto narrativa seriada, buscou em sua longa vida replicar essa lógica de organização do mundo ficcional, até o último plano da série, quando Don Draper, mesmo iluminado por um sorriso discreto ao som de um sino meditativo, teria (ou não?) planejado a famosa campanha da CocaCola, Hilltop, ao som de uma canção louvando a humanidade, tão cínica quanto emblemática. É portanto ao usar a fumaça para produzir, sensorialmente, essa atmosfera de ambiguidade que tão bem define Mad Men, que o roteiro do episódio piloto desempenha com perfeição o seu ofício: define que é, e o que será, numa repetição que eternamente se inova, não só os personagens, o modelo episódico ou mesmo os conflitos que a longo prazo se tensionam, mas o próprio espírito seriado que tão fortemente afeta os seus espectadores e assim garante, para além de uma publicidade deslumbrada ou de fidelizações circunstancialmente emotivas, uma experiência estética de fato singular.
Referências DIMAGGIO, Madeline. How to write for television. New York: Touchstone, 2008. FELINTO, Erick. Passeando no labirinto: Ensaios sobre as Tecnologias e as Materialidades da Comunicação. Porto Alegre: PUCRS, 2006. ____________. Materialidades da comunicação: por um novo lugar da matéria na teoria da comunicação. Ciberlegenda, n.º 05, 2001. Disponível em: http://www.ciberlegenda.uff.br/index. php/revista/article/view/308 Acesso em: 11 jul. 2016.
59
Original em inglês. Tradução nossa. “Live jazz sizzles in the background. A buxom blonde STRIPPER is onstage. She unzips her dress in the back and slowly shakes it to the floor. Through the smoke-filled air we see Ken, Dick, Harry, Salvatore, and Pete sitting at a corner booth. They are drinking and laughing, but Pete is in no mood to participate”.
91
GONÇALO, Pablo Pires de Campos Martins. O cinema como refúgio da escrita: ekphrasis e roteiro, Peter Handke e Wim Wenders, arquivos e paisagens. Tese de doutorado. Escola de Comunicação – UFRJ, Rio de Janeiro, 2015. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2014. ______________________. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010. MCKEE, Robert. Story: Substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita do roteiro. Curitiba: Arte e Letra, 2006. MÜLLER, Adalberto. Além da literatura, aquém do cinema? Considerações sobre a intermidialidade. Outra Travessia, UFSC, n.º 7, Florianópolis, 2008, p. 47-53. PRICE, Steve. The screenplay: authorship, theory and criticism. Londres: Palgrave Macmillan, 2010. RABKIN, William. Writing the pilot. New York: moon & soon & whiskey inc., 2011. WEINER, Matthew. Smoke gets in your eyes. 2006a. Disponível em: <http://www.pages.drexel. edu/~ina22/splaylib/Screenplay-Mad_Men-Pilot.PDF>. Acesso em: 13 mai. 2015. _________________. Smoke gets in your eyes. 2006b. Disponível em: <http://goodinaroom.com/wpcontent/uploads/Mad-Men-pilot-script.pdf> Acesso em: 09 fev. 2016.
92
“A cara do Brasil” segundo o SBT
Rafael Barbosa Fialho Martins60
Breve contextualização da pesquisa Este trabalho é parte da pesquisa de mestrado intitulada “A TV mais feliz do Brasil: As vinhetas institucionais do SBT como proposta de interação com a audiência”, que pretende compreender a relação fortemente afetiva e passional dos telespectadores com o referido canal de televisão. Desde meados de 2010 encontramos, em sites e fóruns sobre televisão e audiência, uma participação expressiva de internautas defendendo o SBT – são os “SBTistas”, que, autodenominados, organizam-se em blogs e redes sociais desde 2005, interagindo e expressando sua admiração pelo SBT (MARTINS, 2013; MARTINS E TORRES, 2014). Assim, buscando esmiuçar essa “amizade” entre o público e o canal, focamos na dimensão estilística do SBT que, quando não ignorada, é apenas criticada por destoar do padrão estético estabelecido pela TV Globo. Este estudo vem, então, debruçar-se sobre as imagens das vinhetas do canal, tentando perceber como elas constroem um posicionamento institucional que se traduz em um “Estilo SBT” capaz de contribuir para a interação com o telespectador. O presente artigo é um excerto da análise de algumas vinhetas de nosso corpus principal e apresenta-se como um verdadeiro exercício inicial de contato com o objeto e a metodologia do estilo televisivo (BUTLER, 2010). As vinhetas aqui analisadas foram produzidas em 2008, com o mote principal “O nosso carinho é pra você”; o intuito das peças era agradecer a fidelidade do telespectador brasileiro com a Emissora, que afirmava que ela devia tudo a seu público – se a audiência devotava grande carinho ao SBT, era o canal que devia agradecer, e não o contrário. 60
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais; integrante do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT). E-mail: rafaelbfialho@ gmail.com.
93
Caracterização das vinhetas Para expressar tais agradecimentos, as vinhetas obedeciam a um roteiro simples: aparição dos artistas do SBT dentro da tela de uma televisão conversando com telespectadores de cada região/estado do Brasil. Sabemos que foram produzidos exemplares com vários membros do cast do SBT, mas serão analisadas apenas as peças com a presença de Silvio Santos; primeiramente porque foram as únicas encontradas na internet, porque são um raro momento em que Silvio Santos atua diretamente nas vinhetas e também porque acreditamos que elas têm representatividade sobre os elementos centrais do “Estilo SBT” que buscamos delimitar em nossa pesquisa de mestrado, acenando como uma oportunidade de aprofundamento e exercício de análise. Nosso corpus é composto por oito vinhetas (YOUTUBE, 2008) de 25 segundos cada, nas quais há a proposta de retratar alguns estados brasileiros e alguns sentimentos pelos quais o SBT agradece a quem o assiste. Descreveremos, abaixo, apenas a vinheta relativa ao estado da Bahia, mas ressaltamos que ela repete a estrutura narrativa de todas as outras peças. A vinheta começa com uma mulher vestida com trajes típicos da baiana vendedora de acarajé, com turbante e vestido brancos. Enquadrada em plano médio, ela usa vários colares, brincos de argola e segura uma espécie de pilão. O cenário retrata uma praia, onde vemos o mar, palmeiras e uma igreja. Devido ao guarda-sol e às comidas que vemos em primeiro plano (acarajé, feijoada, arroz e feijão), presumimos que ela é a responsável pela barraca. Ela está em pé, parada defronte a uma televisão e, quando a TV emite a imagem do mapa do Brasil composta com parte da bandeira brasileira, de onde surge a logomarca do SBT, ela diz “SBT, a nossa admiração é pra você!”. Logo em seguida, ouvimos um efeito sonoro que sugere mágica e, ao som incidental de Silvio Santos vem aí, Silvio Santos aparece na televisão e diz, em tom de ressalva: “Não, não, não, a nossa admiração é pra você!”. O apresentador estende as mãos, que ultrapassam a tela do televisor, e cumprimenta a mulher com um aperto de mão. O plano médio conjunto iguala as posições dos personagens dentro do quadro. A música muda para uma trilha instrumental de background que dá a 94
sensação de dinamismo. A baiana se surpreende e, animada, pergunta: “Ô meu rei, meu Nosso Senhor do Bonfim! É o senhor mesmo, seu Silvio?”. Ele responde: “Claro que sou eu, ora!”. Ela puxa Silvio levemente para fora da tela e convida-o: “Venha, venha provar do meu acarajé!”. Enquanto ouvimos o apresentador perguntar “Será que é bom?”, a imagem diminui de tamanho e dá lugar a uma composição gráfica com o mapa do Brasil, a logo do SBT, a bandeira do Brasil e um ponto turístico do local retratado (no caso, o elevador Lacerda). O letreiro diz: “A nossa admiração é pra você!”
Fig. 1 Frames da vinheta analisada. Reprodução.
Análise O que as vinhetas dizem? Ao lançar o olhar – ou melhor, os ouvidos – para nosso objeto, perguntamos o que as vinhetas dizem por meio do som, importante elemento estilístico. Isso porque consideramos “estilo televisivo” conforme a definição de Jason Mittell (2010: 176), para quem o estilo é a utilização sistemática de técnicas expressas em imagem e som de modo a cumprirem uma função dentro do texto; ou seja, uma variedade de elementos formais que são usados em todos os produtos televisivos para comunicar significados e obter respostas dos telespectadores. Os elementos do estilo – encenação, movimento de câmera, edição, som e artes gráficas – embora sejam os mesmos vistos no cinema, muitas vezes assumem usos e apropriações diferentes na televisão (MITTELL, 2010: 176). 95
O som, especificamente, divide-se em fala, música e efeitos sonoros. Embora apresente efeitos sonoros e músicas incidentais, as peças em análise têm como base principal o diálogo, o discurso verbal; se pensarmos que a situação retrata a proximidade entre o SBT e seu público, o diálogo torna-se uma escolha pertinente, uma conversa informal e descontraída. É interessante observar que nas peças analisadas, o SBT não agradece ao público pela audiência dada ao canal – até porque os números da época não eram tão dignos de comemoração –, mas exalta os valores provenientes da interação canal-público; por isso as vinhetas dizem: “O (A) nosso (a) amor/carinho/atenção/confiança/simpatia/admiração/ amizade/alegria é pra você”. Por isso, nas vinhetas em análise, a todo momento Silvio Santos tenta frisar, em tom de modéstia e humildade, que é o SBT que deve agradecer, admirar, amar, confiar, alegrar-se e dar carinho ao telespectador. O estilo – a fala de Silvio, especificamente – cumpre aqui a função de saudar/ interpelar o telespectador: Paraibana: – SBT, a nossa amizade é pra você! Silvio: – Não, não, paraibana, a nossa amizade é pra vocês que moram na Paraíba! Paraibana: – Silvio Santos, o povo da Paraíba te ama! Silvio: – Ah, eu é que agradeço o povo paraibano a atenção que dão a mim e aos programas do SBT!
Acreditamos que quando os personagens se colocam diante da televisão que transmite o SBT dizendo por exemplo “Nosso amor é pra você”, há aqui um exemplo claro daquilo que François Jost (2010: 51) chamou de “emissora como pessoa”. Segundo o autor, para a delimitação de sua identidade, uma emissora televisiva lança mão de duas instâncias: como “responsável pela programação” e “como pessoa”. A primeira diz respeito às escolhas da grade de programas, que criam sentido e forjam um diferencial do canal. Já a segunda refere-se à imagem de si mesma que a emissora projeta, uma personalidade construída aos olhos do telespectador que conta com operadores para que esse ethos seja comunicado: a publicidade, a autopromoção, a “vestimenta” (entendida por nós como a unidade gráfico-visual) e a logomarca. 96
Assim, ao dirigir sua fala ao SBT tratando-o como “você”, os personagens reforçam uma já consolidada identidade do canal que permite o reconhecimento e o tratamento de quem o assiste como se ele fosse uma pessoa. Se pensarmos que, no caso em questão, Silvio Santos é o próprio dono do SBT e influencia diretamente sua programação, a reflexão de Jost torna-se um caso literal em que a identidade de uma emissora ganha corpo. Fernanda Freitas (2011), em análise das vinhetas do SBT sob uma perspectiva das relações públicas, constata que, no caso de Silvio Santos, o que se vê é uma mitificação de sua figura, o que contribui para a mitificação do SBT como um todo, já que seu dono personifica a marca. Assim, a identificação do público é facilitada graças ao carisma de Silvio Santos, que acena com um discurso praticamente “evangelizador” – o que nos possibilita entender o fenômeno de adoração dos SBTistas à emissora e o endeusamento que proporcionam ao comunicador: este caráter disciplinar e evangelizador nos mostraram que não somente o Poder e o Carisma proporcionam isso à empresa, mas a maneira como a Marca foi construída definiu como ela se comunica com seus Públicos. Não obstante o Mito nos pareceu justificar este comportamento, esta personalidade do SBT, já que o mesmo acrescentou à Organização uma qualidade quase que intangível de fidelização (FREITAS, 2011: 140).
Nesse sentido, Silvio Santos acena como síntese da cumplicidade entre SBT e público, e, por se tratar de uma pessoa real, concretiza os bens simbólicos circulantes nesta amizade, como o amor, a confiança, a atenção e outros sentimentos que perpassam a história e a programação de seu canal.
O que as vinhetas mostram? Encaramos o estrato visual das vinhetas segundo a concepção de Jason Mittell (2010), que o classifica como a encenação, ou seja, a mise en scène, tudo o que aparece na frente da câmera: cenário, adereços, maquiagem, iluminação, figurino e performance dos atores (atuação). No que diz respeito à atuação dos personagens, que encarnam telespectadores do SBT, ela soa de certo modo artificial, afetada, excessiva, pouco natural ou realista, refletindo o tipo de atuação que se 97
vê, por exemplo, nas novelas da mesma Emissora, que apresenta forte tradição em novelas mexicanas dubladas e remakes nacionais de tramas latinas. De modo geral, os personagens se surpreendem com a presença de Silvio Santos, que desperta um afeto transmitido não só pelo texto do diálogo (que associa Silvio Santos à alegria do samba, por exemplo), mas também pela expressão corporal – a pernambucana fica empolgada, a paulistana leva a mão ao peito, o brasiliense se curva – e pela entonação de voz. Já Silvio Santos atua da mesma forma que em seus programas, demonstrando cordialidade, carinho, atenção e tentando frisar a todo momento que é o SBT quem tem que agradecer ao telespectador pela relação construída entre eles, e não o contrário. Embora a face dos telespectadores não seja enquadrada de frente, percebe-se que eles estão alegres ao assistir ao SBT e se deparar com sua figura mais importante.
Silvio Santos: a personificação do SBT A presença efetiva de Silvio Santos nestas vinhetas merece destaque não apenas por ser uma situação atípica (já que em outras peças ele costuma aparecer por meio de imagens de arquivo), como também pela maneira em que ele se apresenta. Como já dissemos, de modo geral, sua performance não destoa de sua atuação nos programas, pois Silvio Santos conversa com os telespectadores de forma bem humorada e simples, como se fossem realmente “colegas de trabalho”, como costuma dizer. Silvio Santos aparece com o visual que o consagrou, impecavelmente vestido e com o microfone atrelado ao peito, com o objetivo de deixar claro que, se o telespectador brasileiro agradece o carinho, a confiança, a amizade do SBT, é o Canal que deve esse agradecimento – nem que para isso seu próprio dono tenha que fazê-lo. Contudo, não bastariam palavras de Silvio Santos dirigidas ao público ou qualquer outra alternativa: é preciso sair da televisão, ir ao encontro do telespectador, pegar em sua mão e saudá-lo até que a vinheta acabe.61 61
Silvio Santos fica de mãos dadas com os personagens até o fim das vinhetas; as exceções são os casos da pernambucana e do carioca. Na vinheta da gaúcha, ela não chega a cumprimentar o apresentador porque segura um chimarrão com as duas mãos.
98
Talvez a principal função da presença de Silvio Santos em tais peças seja materializar e personificar o canal. Silvio Santos é o SBT porque, primeiro, surge na tela da TV que mostra a logomarca do canal e também porque agradece sempre no plural: “Não, não, o nosso amor é pra vocês, pernambucanos” – diz a frase levando a mão à região do peito. Logo, sua fala evoca não apenas sua pessoa, mas todos os profissionais do SBT representados em sua corporeidade; Silvio não é apenas um mascote, um símbolo ou um garoto propaganda do canal, mas ele é o próprio Canal, já que, além de ser o dono, atua diretamente nas escolhas de programação. Por isso o apresentador configura-se como um bom exemplo para discutir as categorias delimitadas por Jost – emissora como pessoa, como programação e como marca –, já que reúne as três. Podemos sugerir que a figura de Silvio Santos facilita a adesão ao SBT, constituindo sua “face humana”, que pode ser facilmente assimilada, se pensarmos no carisma, tradição e popularidade que ele representa.62
SBT: a cara do Brasil? Notamos uma característica inusitada: as atrizes que interpretam a paraibana e a pernambucana têm sotaque e entonação marcadamente semelhante àquele que pode ser ouvido em São Paulo. Embora o Brasil seja um país multicultural e diverso, soa incoerente, por exemplo, uma pernambucana com entonação de voz semelhante àquela falada por paulistas. Por outro lado, esse aspecto pode ser explicado pelo fato de o SBT concentrar sua produção de rede em São Paulo, e por isso é mais comum ver lugares, falas e sotaques daquela região; algo semelhante ocorre com a TV Globo, cujos artistas, locações de novelas e participantes de programas remetem ao Rio de Janeiro, onde o canal tem sua sede. Entretanto, mais do que denotar uma possível falha de escalação de elenco, que poderia ter primado por atores realmente nativos das regiões retratadas ou que pelo menos tentassem copiar traços de sotaques 62
A título de comparação, podemos citar o caso da Rede Globo, que não conseguiu empreender tão satisfatoriamente a estratégia de associar sua imagem à de seu proprietário, Roberto Marinho.
99
específicos, esse aspecto nos intrigou e ampliou em grande medida nosso percurso de análise pretendido inicialmente. Ao deixarmos nosso objeto falar, ele abriu nossos olhos para uma questão até então não enxergada nas vinhetas em tela; aparentemente “ingênuas”, percebemos que elas podiam ser pensadas como tentativas de representação e figuração do Brasil. Com esse viés de interpretação em mãos, vimos que a suposta identidade nacional encenada pelo SBT poderia e deveria ser alvo de reflexão. Afinal, qual é o Brasil que as vinhetas constroem? Quais são as “feições” do canal que já chegou a se autointitular “a cara do Brasil” e que se pretende ser o Sistema Brasileiro de Televisão? Tal discussão se faz importante dada a proeminência da televisão em nosso país: atualmente os brasileiros passam, em média, 4h31 por dia em contato com a televisão de segunda a sexta-feira e 4h14 nos finais de semana (BRASIL, 2014).63 Segundo informações contidas em seu site, o SBT opera em sinal aberto que abrange todos os estados do país, com uma cobertura de 97,7% dos lares com televisão, atingindo 204 milhões de telespectadores e 62 milhões de lares por meio de suas 114 emissoras (SBT, 2016). Essa exposição expressiva à televisão dá, então, inúmeros espaços para que as mais variadas representações sejam veiculadas e recebidas pelo telespectador; entre elas está a de “[...] um sentimento nacional, que articula incluídos e excluídos em torno de uma certa ideia básica de Brasil, e existe ao mesmo tempo como unidade e diversidade” (PRIOLLI, 2003: 15). Stuart Hall (2006) nos recorda de que as culturas nacionais são constituídas também por símbolos e representações, um discurso que influencia nossas práticas cotidianas e a concepção que temos de nós mesmos; ou seja, uma identidade da nação produzindo nossas identidades individuais. Seguindo o raciocínio do autor, as identidades nacionais não nascem conosco, mas são formadas a partir da representação. Uma certa “brasilidade” foi forjada em nossa sociedade e apresentada a nós por meio da literatura, dos costumes populares 63
Tais índices são superiores aos encontrados na Pesquisa Brasileira de Mídia referente ao ano de 2013, quando o brasileiro assistia a 3h29 durante a semana e 3h32 aos sábados e domingos.
100
e, particularmente, pela televisão – o que reitera a pertinência da presente discussão. Mittell (2010) reforça o potencial da televisão em influenciar comportamentos, crenças, atitudes e a ideia que concebemos de nosso país de origem, e, embora o autor analise a TV e a sociedade norte-americana, tal pensamento pode ser estendido ao contexto brasileiro. Isso porque Mittell considera que todos os significados veiculados no fluxo televisivo são visões que não se apresentam como um reflexo fidedigno do mundo, mas como se fossem aqueles espelhos de parque de diversões que alteram e distorcem imagens: alguns aspectos ficam maiores, outros menores, outros desaparecem. Há então o processo de representação, pelo qual a televisão apresenta o “mundo real” que, na verdade, é alterado com seleções e omissões. Acreditamos que no caso de nosso objeto, os aspectos relacionados à televisualidade nos ajudam a compreender as maneiras pelas quais uma certa ideia de Brasil é representada, e por isso exploramos agora a “imagem” que as vinhetas dão a ver. Partimos da análise estilística porque ela dá forma a essa representação – como Mittell atesta, “[...] tudo a que assistimos é moldado pelas técnicas de filmagens e edição, que destacam alguns aspectos do mundo e deixam outros para fora da tela” (MITTELL, 2010: 270).64 Atestando que as peças engendram e refletem representações acerca de nosso país, nosso objetivo central é explorar a maneira pela qual elas são figuradas no nível estético/estilístico no caso do SBT – sem, claro, desvinculá-las do contexto cultural a que pertencem – formando um regime visual sobre o Brasil.
Cenografia, objetos de cena e figurino Contribuem em maior medida para essa figuração a dimensão estilística da encenação, seja na atuação dos atores (como já abordamos), seja na cenografia e no figurino, elementos pormenorizados no quadro na página 102: 64
Tradução livre do trecho: “[...] everything we see is shaped by the techniques of camerawork and editing, which highlighting some aspects of the world while leaving others off-screen”.
101
102
carros
Bonfim”
plantas, pilão
Buggy, mesa
Chimarrão, saco de ervas
Lapa, bonde passando
Quiosque na praia
Campo, casa no estilo europeu, Maria Fumaça passando, borboletas passando
RJ
RN
RS
“Bah”, Sotaque gaúcho
Sotaque indefinido
Sotaque carioca
Sotaque paulista
Sotaque paulista
Sotaque indefinido
Quadro 2: O Brasil segundo o SBT. Elaborado pelo autor.
Holofote, caixas de som, microfone
Rua de paralelepípedos, bloco de frevo dançando
Guarda-sol
Cocos, máquina de extração de água de coco
-
Sotaque paulista
“Ô meu rei”, “Meu Nosso Senhor do
Panelas de barro, pratos de comida,
Cadeiras e mesas de restaurante
Sotaque/Expressões
Adereços de cena
PE
Quiosque de praia, mar com um barco passando
PB
Congresso
Paulista,
Fachada do Nacional
passando
Avenida
Praia com uma igreja
Cenário
DF
SP
BA
UF (vestes
brancas),
colares,
Vestido
Chimarrão, Monumento aos Açorianos
Dunas, Natal, Fortaleza dos Reis Magos
Samba, Pão de Açúcar
Traje do “malandro” (blazer e calça branca, chapéu)
Boné, camiseta, calça jeans
Frevo, carnaval
João Pessoa
Palácio do Planalto
MASP, Avenida Paulista, Catedral da Sé
Elevador Lacerda, acarajé
Referências (visuais/verbais)
Roupa de frevo, sombrinha
Biquíni, tanga, pulseira, brincos
Camisa e calça social, maleta, relógio
Blazer
brincos, pulseiras
Baiana
Figurino
O conteúdo do quadro revela que os objetos de cena, os cenários e figurinos escolhidos para representar os estados baseiam-se em estereótipos: a baiana vendendo acarajé, a gaúcha tomando chimarrão, a pernambucana dançando frevo e o carioca malandro são construções simbólicas já consagradas que apresentam visões limitadas da rica cultura brasileira, o que ocorre em outras vinhetas do SBT e dos demais canais:
Fig. 2: Frames de vinhetas do SBT: a baiana do acarajé, o frevo pernambucano, o nordestino vaqueiro e a sulista branco-europeia. Reprodução.
Fig. 3: Representação da baiana em vinheta da RedeTV! e da TV Cultura. Reprodução.
103
Parece-nos também que os cartões postais das cidades são uma espécie de “esquema” encontrado pelos produtores de vinhetas quando produzem peças que retratam o Brasil, o que pode ser visto em peças do SBT e de outras emissoras:
Fig. 4: O Brasil visto no SBT a partir de seus cartões postais: Av. Paulista (SP), Elevador Lacerda (BA), Congresso Nacional (DF), Cristo Redentor (RJ), Cataratas do Iguaçu (PR) e Jardim Botânico (PR). Reprodução.
Fig.5: Cartões postais em vinhetas. Cristo Redentor (Band), Pão de Açúcar (TV Brasil), Congresso Nacional (Record) e MASP (TV Cultura). Reprodução.
104
A recorrência das mesmas imagens, símbolos e referências tidas como “brasileiras” revela uma tentativa de incluir uma “iconografia” da identidade nacional que abarque todo o país por meio da televisão. Contudo, se a TV no Brasil nasceu regional, gradualmente as redes de micro-ondas e os satélites contribuíram para a consolidação de um modelo de produção centralizada no eixo RJ-SP que promoveu a circulação de um imaginário homogêneo pretensamente “brasileiro”. Tais aspas são explicadas por Gabriel Priolli (2003), que lembra que a televisão brasileira, assim como o próprio país, é controlada por uma elite majoritariamente branca, radicada na região sudeste mas exógena, voltada para a Europa e os Estados Unidos, de onde acredita provirem todo o progresso e a civilização que a espécie humana pode almejar. Essa elite, que vive de costas para o restante do Brasil, cria a sua peculiar imagem do país, quase sempre folclorizando e discriminando índios, negros e asiáticos, pelo ângulo racial; mulheres e homossexuais, pelo ângulo do gênero; e nordestinos e nortistas, pelo ângulo geográfico (PRIOLLI, 2003: 16).
Ana Lúcia Medeiros (2006) lembra que durante muito tempo na TV notava-se a ausência de sotaques variados, os quais foram homogeneizados para a consolidação de um padrão estético – uma “norma culta da televisão brasileira” que reduzia as características locais a uma prosódia pretensamente neutra, mas fortemente influenciada por sotaques paulistas e cariocas – um “carioquês paulistano”. Entretanto, a autora reconhece que esse padrão vem sendo flexibilizado, e hoje se dá mais espaço a outros sotaques. Porém, permanecem incongruências, já que, conquanto na telenovela haja tentativas de aproximação com falas locais, no telejornalismo ainda ocorre um distanciamento. Como consequência desse posicionamento excludente, Priolli (2003: 17) destaca a difusão, no plano cultural, de uma determinada imagem do Brasil – construída por um grupo de profissionais, redatores, produtores, roteiristas e artistas – influenciada por valores, mentalidade, expressões, gírias e inflexões das coloquialidades carioca e paulista: A “identidade nacional”, portanto, ou a visão que os brasileiros têm de si mesmos e do país passou a ser mediada fortemente pelo ponto de vista das duas maiores metrópoles. [...] Culturas regionais fortes, como a nordestina ou a gaúcha, perderam qualquer chance de uma 105
difusão nacional autônoma, a salvo da interpretação, em geral redutora e folclorizante, que lhes dão as emissoras paulistas e cariocas (PRIOLLI, 2003: 17).
Hall (2006: 54) destaca algumas estratégias para a construção de uma identidade nacional, tais como a criação de uma narrativa da nação, a ênfase nas origens, a invenção de tradições, a difusão de um mito fundacional e de uma ilusão de um povo “puro” representante genuíno daquela nação. Cientes das questões culturais envolvidas nessa disputa por representações, interessa-nos o modo pelo qual ela é codificada em escolhas estilísticas; nosso gesto de pesquisa principal está centrado na interseção estilo-cultura, buscando evidenciar marcas estéticas provenientes de dinâmicas culturais da sociedade e da produção televisiva. Como vimos nos exemplos e figuras acima, os padrões estereotípicos acerca da identidade brasileira são traduzidos em termos estilísticos principalmente nas escolhas de figurino, cenário, adereços de cena, efeitos gráficos e som (fala). Voltando a Hall (2006), poderíamos dizer que nas vinhetas o estilo serviria para dar voz, textura, cor, imagem e ação a “tradições inventadas”, “[...] um conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição [...]” (HALL, 2006: 54). O que notamos é um regime visual limitado sobre o Brasil, baseado nos mesmos personagens, lugares, falas e esquemas ou, nos termos do autor, “patrimônios” que ajudam a contar a “narrativa de nação” do Brasil – não é por acaso, por exemplo, que a figura da baiana apareça tantas vezes em vinhetas institucionais da televisão.
Silvio Santos e o mito da brasilidade Suzana Kilpp (2003), buscando compreender as maneiras pelas quais a televisão conforma imaginários, reconhece a tentativa de construção de uma brasilidade televisiva: Assim, se, de um lado, a brasilidade enunciada pela televisão torna-se a ethicidade dos brasileiros enunciada pela televisão – o que, obviamente, não é o mesmo que a ethicidade dos brasileiros –, também é verdade, de outro lado, que ocorre a conformação de um imaginário social – uma 106
enunciação de personas brasileiras, por meio das quais reconhecemos ou não, como espectadores, a nossa própria e singular brasilidade (KILPP, 2003: 207).
Acreditamos que, dentre as várias personas oferecidas a nós pela televisão, aquela construída por Silvio Santos parece ser aglutinadora dos sentidos referentes à brasilidade evocada nas vinhetas. Embora não haja qualquer tipo de fala em direção ao que é “ser brasileiro”, a própria figura do apresentador já suscita esse modelo. Recorramos à trajetória pessoal de Silvio Santos para explicar. Nascido Senor Abravanel, em 12 de dezembro de 1930, na cidade do Rio de Janeiro, Silvio é originário de família de classe média. Precocemente, passou a se dedicar ao comércio nas ruas do Rio de Janeiro, onde vendia bugigangas contando com seu indiscutível poder de persuasão e retórica; ou seja, era camelô. Depois de se dedicar a outras atividades profissionais e ganhar vários concursos de locução, foi para São Paulo trabalhar na Rádio Nacional, onde, a cada dia, angariava mais sucesso. Depois, com o “Baú da Felicidade” e outras empresas, Silvio comprou horários em diversas emissoras até conquistar a sua (SILVA, 2001). Assim, tal história de vida – amplamente divulgada em livros, revistas e programas – faz de Silvio Santos um “homem-narrativa”, personagem constituído por um conjunto de características que formam uma história virtual que, ou é a mesma vivida por muitos brasileiros, ou representa uma trajetória de sucesso pretendida por seu público – que na TV ou nos negócios, sempre foram as classes C, D e E. Queremos dizer que, nas vinhetas, a atuação de Silvio Santos aciona todo um imaginário consolidado do brazilian way of life que, no apresentador, encontra um modelo palpável: O Silvio que vemos é uma espécie de retrato do homem-médio brasileiro idealizado: trabalhador, honesto, simples e animado. Aliás, Silvio leva a sério a máxima criada por ele que diz que “domingo é dia de alegria”; como sua presença na televisão ocorre marcadamente no domingo, podese inferir que Silvio Santos também é sinônimo de alegria (MARTINS, 2011: 7).
É justamente por ser “gente como a gente”, um “brasileiro que não desiste nunca”, que nas vinhetas Silvio vem a nós, telespectadores, para 107
dizer que somos nós os principais responsáveis por seu sucesso (e do SBT).
SBT, a TV dos brasileiros Priolli (2003) expõe a fragilidade do conceito de identidade nacional, uma suposta entidade sociológica, linguística e histórica forjada ao longo de nossa história e que produziu um imaginário de tolerância racial, distensão social, alegria de viver e demais atributos pacíficos e positivos; nosso estudo sinaliza que essa “entidade” também tem fortes dimensões televisivas e televisuais que tentam dar uma “cara” à brasilidade. Percebemos que o SBT investe nesse ideal positivo de Brasil, quando diz, por exemplo, que O povo brasileiro é essencialmente alegre. A felicidade está sempre estampada no rosto, e ele quer ver na tela da TV a mesma alegria que ele sente no coração. E só por isso o SBT é feliz: por fazer uma televisão especialmente para o povo, especialmente para alegrar a vida, para trazer as estrelas mais perto de todos (YOUTUBE, 2009).65
Nossos estudos com os fãs do SBT já evidenciavam a vinculação entre o canal e a brasilidade: Assim, assistir à emissora evoca construções simbólicas de um ethos do brasileiro, como superação, força de vontade, alegria, popularidade; um “jeitinho brasileiro” que o SBT assume e exalta – já que é o sistema brasileiro de televisão (MARTINS E TORRES, 2014: 199).
Todavia, se de modo geral o SBT acaba repetindo padrões estilísticos utilizados pelas outras emissoras para enunciar uma brasilidade supostamente compartilhada por todos nós, ainda assim acreditamos que o “jeitinho brasileiro” do canal de Silvio Santos guarda algumas diferenças em relação às demais emissoras;66 essa singularidade já foi notada também por Kilpp (2008), que afirmou que as tentativas de representações brasileiras 65
Ao som da música instrumental incidental com a “Balada do louco” – Os Mutantes.
66
Vale recordar que a extinta TV Manchete apostou, durante algum tempo, na estratégia de divulgar uma certa brasilidade através de suas novelas como Pantanal e A história de Ana Raio e Zé Trovão. Com o slogan “A Manchete mostra o Brasil que o Brasil não conhece”, era claro um investimento na valorização das belezas naturais e riquezas culturais do país (BECKER, 2010).
108
[...] são também construções técnicas e estéticas que se mostram em panoramas televisivos das duas emissoras de maior audiência no país, sendo que o Brasil institucional, dos cidadãos e do presente moderno, aparece mais na Rede Globo de Televisão, e do compadrio, das pessoas e do passado atrasado, no SBT (KILPP, 2008: 79).
Assim, as dicotomias estéticas entre o “Padrão Globo de Qualidade” e o “Estilo SBT” seriam sintomas não apenas de posicionamentos institucionais distintos, mas também de um panorama televisivo complexo no qual [...] não existe um, mas dois brasis: um rico e outro pobre; um moderno e outro atrasado; um euro-americano e outro tupiniquim; um das elites e outro do povo; um da casa grande e outro da senzala, um que aparecia no Jornal Nacional e outro que era “real” (KILPP, 2008: 79).
Logo, o Brasil do SBT seria o Brasil dos pobres, atrasado, do povo, genuinamente tupiniquim e real; tal diferenciação pode ser vista em slogans como “SBT é Brasil, é sistema brasileiro de televisão”, “A cara do Brasil”, “SBT, a TV dos brasileiros” ou “SBT, a TV mais feliz do Brasil”. Kilpp (2008) considera que, se o brasileiro construído pela Globo é aquele moderno cidadão da sociedade brasileira, o SBT se destina a um indivíduo tradicional, enquistado e apadrinhado. Embora a autora conclua tal diferença a partir da análise de reality shows das duas emissoras, é possível inferir que nas vinhetas em tela essa afirmação também faça sentido. Isso porque a figura do “padrinho” Silvio Santos contribui para uma relação com a audiência que a trata como pessoa, e não como mero indivíduo; as vinhetas não conversam com uma massa de brasileiros, ou com os estados do país, mas com gente comum que poderia realmente viver neles. O que nos marca, à primeira vista, é literalmente o que as vinhetas mostram: Silvio Santos conversando com uma pessoa, e só depois, numa segunda camada de sentido, mais ao fundo, entende-se que é o SBT comunicando-se com o Brasil. Nas palavras da autora, Silvio Santos seria o “pai-patrão”, o “bom compadre”, figura tão comum em nossa cultura cotidiana do apadrinhamento. Se pensarmos no SBT como uma espécie de estabelecimento comercial no qual o grande vendedor é Silvio Santos, as vinhetas em 109
tela soam como aquelas ocasiões às quais estamos acostumados: a de comprar algo sempre no mesmo lugar, conversando diretamente com o dono do negócio. Pensando assim, inferimos que a relação que o canal propõe a nós não é a de público, telespectador ou fiel, mas de freguês; aquele que se habituou a “comprar” no mesmo lugar, embora saiba que nem sempre as opções serão boas. A analogia faz sentido se pensarmos na grade da emissora como uma “programação camelô”, que preza pelo que está vendendo – ou seja, dando audiência. Talvez isso explique a maneira como Silvio Santos trata sua empresa, tirando subitamente do ar o que não encontra muitos compradores, e buscando produtos que satisfaçam a clientela, repetindo-os se assim o público quiser – o que ele próprio confirma: “Não, eu sempre me vi como produto, um produto meu. Sou um bom vendedor. Sou um vendedor que usa a eletrônica para vender seus produtos, artistas, programas” (FOLHA, 2013 apud MARTINS, 2013: 55). Assistir ao SBT é então um ato de amor, confiança, carinho; um “trato” feito com o próprio dono e selado com um expressivo aperto de mãos. Logo, o personalismo talvez seja a principal característica do SBT ao se colocar diante do Brasil, instaurando uma relação afetiva de expressiva intimidade na qual circulam bens simbólicos como confiança, amizade, amor, carinho, atenção – e não apenas audiência –, e a ideia que se tem é que importam mais os afetos envolvidos e menos os números conquistados pelo canal; o telespectador do SBT não é mais um índice de audiência, um “brasileiro-indivíduo”, mas um “brasileiro-pessoa”, querido, responsável pelo sucesso do canal.
Conclusão Nossa análise mostra que, se conceitualmente o SBT sempre tentou ser uma alternativa popular, a figuração que ele faz do Brasil não difere muito do que se vê nas outras emissoras,67 o que o torna particular frente 67
Arlindo Silva (2001) lembra que desde sua gênese, o SBT se denominou um sistema e não uma rede justamente porque “rede” subentende uma programação rígida, imposta do centro para fora, obrigando as emissoras afiliadas a transmitir a mesma programação gerada pela matriz, ignorando as conveniências e as peculiaridades regionais. Ser um sistema significaria teoricamente maior liberdade de programação regional. Mira (1994: 76) expõe as palavras do próprio Silvio Santos a respeito disso: “Rede é, na minha opinião, uma fórmula arcaica de televisão... Eu sou contrário a você ter uma estação de TV no Ceará e não poder ser o dono dessa estação. – Ou você exibe toda minha programação ou não te dou nenhuma... O diálogo tem que ser outro: – Eu tenho estes
110
a elas é que essa representação é pincelada com forte verniz de afeto, chegando a um nível de proximidade com o telespectador e tentando induzi-lo a acreditar que só no SBT ele é fielmente retratado. Para isso, a Emissora lança mão de escolhas estilísticas relativas a cenários, figurinos e diálogos do telespectador com o dono do canal, e o excesso de afetividade é transmitido por um excesso visual. A busca por uma brasilidade, no caso do SBT, ainda é mais questionável se pensarmos que a Emissora historicamente sempre sofreu forte influência de programas e gêneros latinos, mexicanos e norte-americanos. Silvio Santos, por sua vez, age como uma espécie de corporificação tanto do SBT quanto do “ser brasileiro”, já que com sua história de vida ele torna-se um “homem-narrativa”, personagem constituído por um conjunto de características que formam “uma história virtual que é a história de sua vida”. Este fato também faz dele um “homem do povo”, já que sua história é semelhante à de muitos brasileiros, ou pelo menos simboliza o desejo da camada da população a que, como dito mais atrás, seus programas se destinam, as classes C, D e E. Logo, a “cara” do Brasil que vemos nas vinhetas do SBT é popular, paulista, simplista, caricaturizada e folclorizada, quase infantil; o brasileiro seria aquele que vive feliz num país rico de belezas naturais e pontos turísticos considerado “um grande auditório que faz acontecer”, como diz uma vinheta. Assim como Hall (2006), acreditamos que por mais que haja estratégias de unificação da identidade nacional, elas nem sempre logram êxito. Por isso, ao invés de pensarmos as culturas nacionais como algo puro, devemos enxergá-las como constituidoras de um dispositivo discursivo que preza pela diferença como unidade; ou seja, que as culturas sejam identificadas a partir das heterogeneidades que possuem. Estendemos a reflexão para o âmbito televisual, defendendo que, no caso da figuração acerca do Brasil, o estilo pode e deve servir para expressar não uma representação homogênea, mas diversa, longe do senso comum – talvez assim o SBT torne-se, de fato, “a cara do Brasil”. programas: tenho Golias, tenho Silvio Santos, tenho Aragão. O que é que interessa a você comprar?”. Se antes os programas de Silvio eram realmente vendidos por fitas cassete a outros canais, não sabemos em que medida atualmente essa diferença realmente é praticada; todavia, nossa análise mostra que, pelo menos no nível visual, essas particularidades regionais parecem não terem sido levadas em conta no canal.
111
Referências BECKER, Beatriz. O sucesso da novela Pantanal e as novas formas de ficção televisiva. In: Ribeiro, Ana Paula Goulart; Roxo, Marco; Sacramento, Igor. História da Televisão no Brasil, São Paulo: Contexto, 2010. BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia 2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. – Brasília : Secom, 2014. Disponível em http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-decontratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf. Acessado em 25 jan. 2016. BUTLER, Jeremy. Television style. New York: Routledge, 2010. FREITAS, Fernanda Lopes de. Comunicação e complexidade: o discurso mítico do SBT. 2011. 153 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, PUCRS, Porto Alegre, 2011. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. JOST, François. Compreender a televisão. Porto Alegre: Sulina, 2010. KILPP, Suzana. Ethicidades televisivas. Sentidos identitários na TV: moldurações homológicas e tensionamentos. São Leopoldo: Unisinos, 2003. ___. Audiovisualidades do voyeurismo televisivo: Apontamentos sobre a televisão. Porto Alegre: Zouk, 2008. MARTINS, Rafael; TORRES, Hideide. Memória e afeto como estratégia de fidelização da audiência televisiva: o caso dos SBTistas. Verso e reverso, São Leopoldo, v. XXVIII, n.º 69, set-dez 2014. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/versoereverso/article/view/ver.2014.28.69.05/4413. Acesso em: 2 fev. 2015. MARTINS, Rafael. Da tela à rede: a construção da identidade SBTista. Monografia (Graduação em Comunicação Social/Jornalismo) – Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2013. ___. Silvio Santos vem aí: uma análise barthesiana do mito televisivo. In: I SIMPÓSIO INTERNACIONAL - LITERATURA, CULTURA E SOCIEDADE, 2011, Viçosa. Caderno de Resumos do I Simpósio Internacional - Literatura, Cultura e Sociedade, Viçosa, 2011. MEDEIROS, Ana Lucia. Sotaques na TV. São Paulo: Annablume, 2006. MIRA, Maria Celeste. Circo Eletrônico: Silvio Santos e o SBT. São Paulo: Loyola, 1994. MITTELL, Jason. Television and American Culture. New York: Oxford University Press, 2010. PRIOLLI, Gabriel. Antenas da brasilidade. In: BUCCI, Eugênio (Org.). A TV aos 50: Criticando a televisão brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. RICCO, Flávio. Canal 1. Disponível em: <http://www.diariodonoroeste.com.br/colunista/flavioricco/7564-canal-1---televisao#.VOkxvyzvJxc>. Acesso em: 23 jan. 2015. SBT. SBT em números. Disponível em: <http://www.sbt.com.br/institucional/quemsomos/>. Acesso em: 27 jan. 2016. SILVA, Arlindo. A fantástica história de Silvio Santos. São Paulo: Editora do Brasil, 2001. YOUTUBE. SBT, nosso carinho é pra você. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=_0sBcZPeKIg>. Acesso em: 25 jan. 2016. ___. SBT - A TV mais feliz do Brasil 28 anos - PROMO. 2009. Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=lL-LkIJmz2Y>. Acessado em 25 jan. 2016.
112
Thriller à brasileira: ficção televisual transmídia na faixa das 23h
Melina Leal Galante68 e Daniela Zanetti69
Introdução Este capítulo traz alguns apontamentos para se pensar se e como a reconfiguração temática e narrativa das séries de TV norte-americanas (o que vem ocorrendo desde o final dos anos 90), em conjunção com a cultura da transmidiação digital (que se estabelece a partir dos anos 2000), estão afetando o desenvolvimento de obras ficcionais seriadas no contexto da televisão brasileira, estabelecendo novos parâmetros de criação e produção. Para tanto, tem-se como objeto de investigação obras de ficção seriada produzidas e exibidas pela Rede Globo de Televisão (RGT), principal emissora brasileira e também responsável pela criação e produção da maior parcela dos produtos de teleficção no Brasil. O estudo privilegiou produtos desenvolvidos para o horário das 23 horas, e que se caracterizam por se vincular a um gênero específico, o thriller, em diálogo com o folhetim e a novela policial, privilegiando o suspense em torno da resolução de um conflito que se estabelece a partir de um crime (ou desvio moral). As produções escolhidas para esta pesquisa foram O canto da Sereia (2013), Amores roubados (2014) e o remake de O rebu (2014), exibidas pela TV Globo, e que guardam em comum também o fato de estarem vinculadas a um mesmo núcleo dentro da RGT, no qual se destacam as figuras do diretor José Luiz Villamarim, do diretor de fotografia Walter 68
Bacharel em Direito, estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Aluna de iniciação científica do Grupo de Pesquisas em Cultura Audiovisual e Tecnologia (CAT).
69
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades e do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Grupo de Pesquisas em Cultura Audiovisual e Tecnologia (CAT).
113
Carvalho e do roteirista George Moura. Essas três obras foram escritas por George Moura (juntamente com outros colaboradores) e tiveram a direção-geral de José Luiz Villamarim. Esse aspecto é bastante relevante ao se considerar uma dimensão sociológica das obras, na qual se evidencia a relação entre autor/produtor, tipo de obra, gêneros narrativos, temas tratados e, por vezes, especificidades estéticas (BOURDIEU, 1996; SOUZA E WEBER, 2009). Ainda que o remake de O rebu tenha sido divulgado pela emissora como sendo uma “novela das 23 horas” – por ter se originado de uma telenovela de fato e talvez para não descaracterizar a obra original –, agregamos esta obra ao estudo para compor, juntamente com as minisséries O canto da Sereia e Amores roubados, um conjunto de produtos que, além dos aspectos elencados acima, também possuem em comum uma quantidade reduzida de episódios (36, 4 e 10, respectivamente), se comparados com as telenovelas tradicionais. Além disso, como critério de seleção desses materiais, considera-se que essas obras permitem fornecer elementos para analisar como ocorre a incorporação da complexidade narrativa e o investimento em fluxos de compartilhamento e intercâmbio de informações e conteúdos pela Web, demonstrando influências dos modelos de produções seriadas televisivas de sucesso internacional, porém sem desconsiderar as especificidades das matrizes culturais brasileiras. Dessa forma, também são produtos adequados às demandas relativas à incorporação de estratégias transmidiáticas, contando com elementos na internet vinculados à narrativa central que se desenrola na TV.
Inovações na narrativa seriada televisual As obras destacadas neste estudo poderiam se enquadrar num tipo de narrativa seriada constituído por uma única narrativa (ou várias entrelaçadas e paralelas) que se alterna(m) de uma forma quase linear ao decorrer dos capítulos. Os teledramas, telenovelas e algumas séries e minisséries são exemplos desta forma de serialidade teleológica, pois ela se resume fundamentalmente num (ou mais) conflito(s) básico(s), que propõe inicialmente desequilíbrio estrutural, e toda evolução dos acontecimentos consiste num empenho em restabelecer o equilíbrio perdido (MACHADO, 2005: 84). 114
No que diz respeito aos formatos seriados já consagrados na televisão brasileira, destaca-se a telenovela clássica, o formato mais extenso da TV, que em média possui 150 capítulos. Por sua extensão é, em geral, considerada uma obra aberta, passível de reformulações em função da audiência, por exemplo. A minissérie, por sua vez, é considerado o formato “mais completo do ponto de vista estrutural e o mais denso do ponto de vista dramatúrgico” (BALOGH, 2002: 96) e, no Brasil, é geralmente exibida após às 22h, pressupondo um público mais exigente. As mais longas chegam a ter mais de trinta episódios (BALOGH, 2002). Considerando que na televisão brasileira prevalecem as telenovelas e as minisséries, esses formatos já se apresentam como característicos de nossa tradição audiovisual. No contexto da TV norte-americana, contudo, o modelo que prevalece são as séries com capítulos semanais e divididas em temporadas que, se bem-sucedidas, podem durar anos70. Na tentativa de articular uma categorização das narrativas seriadas na TV, Esquenazi define como minisséries (na acepção americana) as ficções desenvolvidas e terminadas em poucos episódios, estando no limite do universo das séries: “o desfecho anunciado, a unidade de uma história mesmo que contada em várias histórias parecem incompatíveis com o projeto tanto cultural como econômico das séries televisivas” (ESQUENAZI, 2011: 29). É sabido que a TV norte-americana tem passado por uma nova fase, principalmente em função da renovação de suas séries ficcionais que, pelo menos desde o fim dos anos 90, trazem novas propostas estéticas, narrativas, temáticas e formais (ESQUENAZI, 2011; CARLOS, 2006; MARTIN, 2014). Tais mudanças vêm sendo protagonizadas especialmente pelos canais fechados, como a HBO, que atuam também como produtoras. A partir da década de 90, majoritariamente na indústria audiovisual norteamericana, observa-se claramente a intensificação de um fazer televisivo que incorpora experimentações e inovações, destacando-se dos modelos e tradições às quais produtores e consumidores estavam acostumados. As tramas se tornaram verdadeiros emaranhados, os arcos narrativos passaram a se desenrolar em camadas, os personagens se tornaram mais 70
Ainda que essa forma de consumo semanal esteja sofrendo modificações em função das novas plataformas digitais online de exibição de filmes e séries – um modo de consumo estabelecido por plataformas por demanda (video on demand – VOD), porém já iniciado pelos fãs por meio da prática dos downloads de arquivos – esse aspecto não será considerado aqui.
115
complexos e humanizados, distanciando-se do maniqueísmo. A televisão se reinventou, incorporou aspectos de linguagem, estilística e estética de outros meios audiovisuais (cinema, vídeo e internet) e entrou em uma nova era, a da complexidade narrativa, baseada em “aspectos específicos do storytelling que aparentemente são inadequados à estrutura seriada que diferencia a televisão do cinema e também a distingue dos modelos convencionais de formatos seriados e episódicos” (MITTELL, 2012: 3031). Segundo Esquenazi (2011), é nos anos 90 que as séries americanas se libertam de certas regras e modelos e, desde então, uma sequência de obras-primas – como as séries 24 horas, Lost e Família Soprano – foram sendo criadas, revolucionando a paisagem televisiva a partir do estímulo à inovação e à criatividade. Portanto, a ideia de inovação em produção seriada neste estudo pressupõe um conjunto de elementos relativos à estrutura formal, que tornam as narrativas mais complexas, tais como descontinuidade, não linearidade, embaralhamento (temporal e espacial) e fragmentação do conteúdo. Refere-se ainda a uma narrativa em estrutura modular, com profusão de personagens e de histórias que começam e não necessariamente terminam no mesmo episódio, podendo ser ou não retomadas posteriormente (CARLOS, 2006: 27). Outro fator de inovação decorre da abordagem de temas mais polêmicos ou mesmo ordinários, porém tratados de maneira menos óbvia. Também diz respeito à presença de personagens mais complexos do ponto de vista psicológico, coerentes em suas trajetórias pessoais, mas nem por isso previsíveis. Essas mudanças foram possíveis em função da efetivação de novas condições de produção, considerando que alguns canais inovaram ao possibilitar que seus roteiristas tivessem mais liberdade de criação (CARLOS, 2006: 22). Fundamental é ressaltar que as mudanças trazidas neste processo são, sobretudo, frutos de estratégias de mercado, pensando-se em como atrair mais público, mais audiência e mais patrocinadores, reconhecendo uma atividade econômica inserida na lógica das indústrias culturais. Considerando este cenário, como pensar a incorporação desses elementos às minisséries brasileiras? Todavia, antes de realizar essa verificação por meio das análises dos produtos, cabe ainda discorrer sobre outro fenômeno contemporâneo 116
que tem afetado diretamente o consumo de teleficção: a convergência das mídias e as estratégias de transmidiação.
Entre a TV e a Web: fluxos transmidiáticos A convergência entre televisão e internet agrega uma série de características que sintetizam o que Scolari (2008: 226-229) chama de hipertelevisão: a) multiplicidade de programas narrativos, que proporciona uma multiplicação de histórias e de narrativas; b) fragmentação das telas, que resultam em uma mutação da tela de televisão ao incorporar elementos da interface do computador; c) ritmo acelerado, resultante de um tipo de montagem/edição que incorpora maior volume de conteúdo em um tempo mais reduzido; d) intertextualidade desenfreada, uma característica pós-moderna que se amplia em ambientes virtuais, muito em função da própria cultura da remixagem; e) extensão narrativa, aspecto relativo à cultura da serialização; f) rupturas da sequencialidade, que se baseia na noção de não linearidade. Na Web, a descontinuidade da narrativa é favorecida pela lógica do hipertexto. A fragmentação potencializa a dimensão do acúmulo e da multiplicidade de conjuntos de conteúdos no ciberespaço – sob a forma de playlists, ou seja, listas de reprodução de vídeos, textos e imagens –, enquanto a serialização permite manter o interesse do espectador. Esses materiais integram estratégias transmidiáticas, ampliando as narrativas e compondo conjuntos de paratextos que potencializam os produtos principais. Para Duarte: Nessa interconexão entre a televisão e as novas tecnologias, há uma conversão dos espaços da internet em verdadeiras extensões dos programas. Hoje praticamente todos os produtos ficcionais experimentam o online, originando, com isso, todo o tipo de extensões, responsável pela produção de uma gama infinita de paratextos constituídos pelas modernas narrativas transmidiáticas (DUARTE, 2012: 336).
Diante deste contexto, defende-se que a TV não está esmaecendo por causa do fortalecimento da cultura audiovisual na internet, mas sim se “expandindo”, e talvez se tornando mais popular em certo sentido, uma vez que produtores de televisão tem encontrando na Web suporte para potencializar seus produtos, experimentar novos formatos e linguagens, 117
aferir a audiência e se aproximar dela. Miller (2009) defende que os usos do YouTube, por exemplo, tem impulsionado a TV norte-americana, considerando que “apesar de o conteúdo amador constituir a maior parte do que se encontra no YouTube, ele mal é assistido em comparação aos textos das indústrias culturais” (MILLER, 2009: 21). Para Fechine e outros, entende-se por transmidiação: Um modelo de produção orientado pela distribuição em distintas mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos associados entre si e cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas interacionais propiciadas pela cultura participativa estimulada pelo ambiente de convergência (2013: 26).
A convergência das mídias estabelece uma lógica comercial e uma forma cultural que implica novos modelos de negócios. Nesse contexto, emergem as ações transmídia, que incluem, entre outras, a construção de universos ficcionais que se desdobram em duas ou mais mídias, pressupondo ainda uma participação ativa do público ( JENKINS, 2008). O planejamento de operações transmídia se traduz como um conjunto de estratégias, conteúdos e práticas institucionalizadas por parte das chamadas indústrias de entretenimento, ou indústrias criativas ou, ainda, indústrias de conteúdo (LOPES E GÓMEZ, 2014: 72).
Pelo menos desde 2011, o Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (OBITEL) já traz em seus anuários dados relativos a estratégias e participação transmídia nas televisões latino-americanas. Segundo o anuário de 2011, por exemplo, as pesquisas empíricas mostraram que, na Web, a interação da audiência com as ficções aconteceu principalmente nos espaços interativos dos sites ou blogs das ficções criados pelos produtores e através de três redes sociais que mais se destacaram: Facebook, YouTube e Twitter (LOPES E GÓMEZ, 2011: 63).
No ano de 2013, dentre as estratégias transmídia implementadas pelos produtores (no contexto dos países que integram o Obitel),71 destacamse os sites oficiais de emissoras e sites dos produtos ficcionais, atuação 71
Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, México, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela.
118
nas redes sociais, outros formatos de ficção (como as webséries, por exemplo), estratégias para celular e estratégias offline (LOPES E GÓMEZ, 2014).
O gênero como unidade de referência: o thriller em evidência A partir de uma perspectiva mais cultural, o gênero pode ser compreendido como uma chave para a análise de textos massivos televisivos, como aponta Jesús Martín-Barbero (2013). Para este autor, é por meio dos gêneros que atua a dinâmica cultural da televisão. O gênero é “a unidade mínima do conteúdo da comunicação de massa (pelo menos no nível da ficção, mas não apenas)”, e a “demanda de mercados por parte do público (e do meio) aos produtores se faz no nível de gênero” (MARTÍN-BARBERO, 2013: 300). Essa compreensão de gênero contribui para refletir de que modo as especificidades dos produtos em destaque neste estudo deixam entrever novas dinâmicas textuais televisivas, como a própria criação de materiais narrativos capazes de trazer “inovações” para o público a partir de algo já conhecido (uma trama policial, porém numa atmosfera carnavalesca, por exemplo); ou ainda a articulação de diferentes plataformas de consumo de um mesmo produto, proporcionando novas ritualidades no processo de fruição da obra. O gênero funciona como uma estratégia de comunicabilidade, um dispositivo que ativa a competência cultural do público, dando conta das diferenças sociais a ela inerentes. Desse modo, estabelece-se a mediação fundamental entre as lógicas do sistema produtivo e as do sistema de consumo, entre a lógica do formato e a lógica dos modos de ler, dos usos. As regras dos gêneros configuram os formatos, e nestes se ancora o reconhecimento cultural dos grupos. Considerando que “cada gênero se define tanto por sua arquitetura interna quanto por seu lugar na programação” (MARTÍN-BARBERO, 2013: 304), e que articula narrativamente diferentes serialidades, este conceito funciona como chave para a análise dos textos massivos, em especial dos televisivos. Para Esquenazi (2011: 83), o gênero é a “ligação entre um esquema narrativo e um universo cultural”. Segundo o autor, essa aliança se efetiva pela “repetição de uma orientação” como, por exemplo, 119
o restabelecimento da ordem no policial ou o reconhecimento da inocência no melodrama. “Uma fórmula resulta da ancoragem do gênero: certos elementos são fixados, enquanto outros permanecem variáveis” (ESQUENAZI, 2011: 83). Os gêneros, nesse sentido, se valem de fórmulas, que representam a “expressão mais imediata da negociação entre o econômico e o cultural ou, mais exatamente, uma situação econômica, social e política e a história especificamente cultural da ficção popular” (ESQUENAZI, 2011: 83). Certas características, então, são bastante particulares de cada gênero, que também podem se diferenciar entre si caso ocorra uma mistura de gêneros (drama, policial, comédia etc.) num mesmo produto. O thriller de suspense se caracteriza por ser um gênero folhetinesco de narrativa seriada, principalmente pela lógica de seu encadeamento, e muitas vezes se articula a uma narrativa policial ou criminal. Para Esquenazi (2011), qualquer narrativa policial resulta da articulação da história da investigação com a história do crime, sendo que algumas giram em torno da identificação do criminoso, como é o caso das obras aqui estudadas. Na última década pode-se observar na televisão norteamericana um aumento considerável de séries cujos temas centrais envolvam investigações policiais, crimes com vários suspeitos, e os dramas pessoais dos envolvidos. Já na América Latina, segundo Lusvarghi – em estudo que teve como objetivo examinar “de que forma se dá o diálogo entre os formatos hollywoodianos do gênero e a tradição audiovisual latina” (2013: 11) –, a partir do sucesso de filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) e Tropa de Elite 2 ( José Padilha, 2011), surgiram diversas séries policiais e de ação na TV brasileira, como Força-Tarefa (Fernando Bonassi, 2009-2011), 9 MM: São Paulo (Roberto d’Avila, Newton Cannito e Carlos Amorim, 2008-2011), A Lei e o Crime (Marcílio Moraes, 2009) e Mandrake (Rubem Fonseca e José Henrique Fonseca, 2005-2007). Ainda segundo a autora, fenômeno similar ocorre em outros países latinoamericanos, com destaque para Poliladrón (Adrián Suar, 1995-1997), Epitáfios (Alberto Lecchi, 2004-2009), a franquia Hermanos y Detectives (Patrício Vega, 2006) e o mexicano Capadócia (Epigmenio Ibarra, 20082010). A autora sustenta que esses seriados trazem uma identidade visual própria e contribuem para “deixar de lado, definitivamente, a ideia de 120
ficção seriada latina como mera paródia de seriado americano ou ainda como sinônimo de telenovela e melodrama” (LUSVARGHI, 2013: 9), hipótese que também pode ser sustentada pela presente investigação.
O Brasil contemporâneo nas estruturas de superfície: experimentações no horário das 23 h Para Souza e Weber (2009: 82), é possível estabelecer relações entre a posição de autores de telenovelas em um dado contexto e “as estratégias textuais estilísticas associadas a temas recorrentes que demarcam o reconhecimento autoral de roteiristas-autores”, em especial aqueles vinculadas à RGT, maior produtora e distribuidora de telenovelas das últimas quatro décadas. Nessa cadeira produtiva, há autores-roteiristas associados a temas e faixas de horário específicos e que são distribuídos de acordo com critérios de audiência. Deve-se enfatizar que a presença do escritor George Moura e de diretor José Luiz Villamarim nessas três obras já estabelece, do ponto de vista das condições de produção, uma espécie de núcleo especializado no gênero aqui destacado. Pode-se inferir que a trajetória desses dois profissionais já indica não somente sua vinculação a determinados tipos de trabalhos – que podem apontar para certas recorrências estilísticas –, mas também o lugar ocupado por eles dentro da empresa e o tipo de reconhecimento e consagração já conquistados no campo da produção audiovisual brasileira. O pernambucano George Moura, seis vezes indicado ao Emmy International Awards, é um consagrado dramaturgo e roteirista, tendo assinado filmes como Linha de passe (2008) e Os últimos dias de Getúlio (2014), e as séries Cidade dos homens (2003) e Carga Pesada (2003). O mineiro José Luiz Villamarim dirige produções ficcionais da Rede Globo – RGT desde os anos 90, assumindo a direção geral de várias telenovelas, entre elas Mulheres apaixonadas (2003) e Bang Bang (2005), e a minissérie Mad Maria (2005), além de outros dois trabalhos considerados inovadores na emissora: a telenovela Avenida Brasil (2012) e a série Força-Tarefa (2011).
O canto da Sereia Baseada numa obra de Nelson Motta, a minissérie O canto da Sereia é de autoria de George Moura e Patrícia Andrade, escrita com a colaboração 121
de Sérgio Goldenberg, e supervisão de texto de Glória Perez. A direção de fotografia e de câmera é de Walter Carvalho e a direção geral é de José Luiz Villamarim. Foi exibida entre 8 e 11 de janeiro de 2013, totalizando quatro capítulos, cada um com cerca de 45 minutos. A história trata do misterioso assassinato de uma famosa cantora baiana de axé, Sereia (Ísis Valverde), durante o carnaval de Salvador. Na metade do primeiro episódio ocorre o assassinato e tal fato servirá de mote para o início do suspense em torno da descoberta do criminoso. A tensão é construída desde a primeira cena da cantora, quando Sereia é apresentada ao espectador num momento de instabilidade emocional. A trama é recortada por um vai-e-vem temporal que mostra a investigação particular do crime, realizada pelo chefe da segurança pessoal de Sereia, Augustão (Marcos Palmeira) e seu braço-direito, Vavá (Fábio Lago), a pedidos de Mara (Camila Morgado), empresária da cantora. A investigação vai desvendando as origens de Sereia, seus últimos passos e as relações por ela estabelecidas até se descobrir o assassino e sua motivação. O thriller se configura a partir de um mistério que vai sendo revelado aos poucos, trazendo suspense, excitações, tensões, pistas e twists ao longo da narrativa, pois já no primeiro episódio, após o assassinato de Sereia, deixa aos espectadores pistas (falsas) sobre quem poderia ser o autor do crime. A princípio, muitos dos personagens envolvidos com Sereia (o ex-namorado, a empresária, o marqueteiro, o governador etc.) são suspeitos potenciais aos olhos do espectador. A obra se aproxima das novelas de detetive (KOTHE, 1994), ao fazer com que os caminhos da resolução dos conflitos – neste caso, o principal, o assassinato de Sereia – sejam descobertos simultaneamente pelo investigador e pelo espectador, independente do trabalho da polícia. O tempo é contemporâneo, identificado também pelo fato de a história ter como pano de fundo a indústria do carnaval baiano. Constantemente, são citados os nomes das principais cantoras de axé hoje na Bahia (Ivete Sangalo e Cláudia Leite). Sua relação espacial se desenvolve quase que totalmente na capital baiana, explorando pontos turísticos como a Barra e o Pelourinho, além de mercados, feiras populares, bares e ruelas. No último capítulo há também cenas que remetem à região do Recôncavo 122
Baiano. Outra característica espacial é a permanente referência ao mar, que aparece em muitas cenas, às vezes compondo uma paisagem de fundo, e representando simbolicamente o universo da personagem Sereia. Esteticamente, a minissérie, ainda que seja uma trama policial, traz uma fotografia mais luminosa, diurna, com muitas cenas externas, o que de certo modo se vinculada a uma imagem mais disseminada de Salvador, uma cidade solar, normalmente associada à praia, carnaval, alegria, festividades, etc. A espacialização da obra se caracteriza, então, por alternar ambientes externos abertos, que mostram uma cidade histórica situada às margens do mar, e ambientes fechados com funções bem precisas: a casa de Sereia como espaço de intimidade; a casa de Augustão como lugar de trabalho e de descobertas acerca da investigação; a casa da Mãe de Santo Marina como ambiente místico, das confissões e dos conflitos espirituais. Destaca-se o fato de que a Mãe de Santo Marina, personagem forte na história, é a guia espiritual de Sereia, que, por sua vez, tem Iemanjá como entidade protetora, elementos simbólicos que indicam a presença do candomblé e da cultura afro-brasileira no universo ficcional. Outro aspecto que reforça a questão cultural de Salvador é a trilha sonora, composta não só por sucessos da axé music, como também por clássicas composições de cantores baianos. A música incidental é quase sempre marcada pelo som dos atabaques e por ritmos associados à música afro. O primeiro capítulo de O canto da Sereia começa de forma onírica, com imagens distorcidas de fogo e do que parece ser um homem queimando algo como um caderno, em que se pode ver o nome “Sereia” escrito na capa. Alguém chama pelo nome “Augustão” e a imagem se torna nítida, destacando em plano detalhe um caderno preto com um “S” impresso na capa. Vê-se, então, Augustão saindo de casa às pressas, carregando o caderno. Um fade out faz a transição para outra cena, que se inicia com o som de chuveiro ligado. Surge na tela o letreiro “uma semana antes”, pontuando um retorno ao passado e deixando em aberto o tempo da cena inicial. Em dado momento do capítulo final, esta cena inicial é retomada, e a conclusão da história parte deste ponto. Ao longo dos quatro capítulos, a construção da minissérie se dá por meio de flashbacks constantemente indicados por letreiros na tela (“três anos antes”, “duas semanas antes”, etc.), o que demonstra uma necessidade 123
de explicitar – e explicar – ao espectador o atravessamento no tempo da narrativa. É uma trama bastante entrelaçada, mas que se torna de mais fácil compreensão com esses indicativos temporais marcados na tela. Como estratégia transmidiática, o site da minissérie conta com um espaço dedicado exclusivamente à cantora – “Site da Sereia” – que traz detalhes da vida e da obra da cantora fictícia, incluindo um videoclipe e a letras de seu maior sucesso “No ouvido da Sereia”; vídeos com depoimentos de artistas reais do carnaval baiano sobre Sereia (Chiclete com Banana, Cláudia Leite e Carlinhos Brown); uma minibiografia de Sereia e uma entrevista em vídeo (dividida em quatro partes); uma página para solicitar o autógrafo da cantora; além de outras informações complementares sobre a artista. Grande parte do conteúdo produzido para a Web, relativo a esta minissérie, tem a função de fortalecer a imagem da protagonista como uma “celebridade da axé music”. Outros materiais também trazem curiosidades sobre o Candomblé, “a religião escolhida por Sereia na série”, como descrito no site72, além de fragmentos importantes para se compreender o mistério em torno da morte da cantora. O canto da Sereia se enquadra nos moldes de uma história policial, aproximando-se, nesse aspecto, da trama de O rebu, que também tem um assassinato como ponto de partida. Contudo, aquela traz um núcleo dramático mais enxuto, trazendo poucos personagens à trama de um modo que suas inter-relações fiquem muito evidentes. Por outro lado, destaca-se justamente pelo fato de que a proximidade que existe entre os personagens é o que dá um mistério maior ao assassinato de Sereia. Não à toa, Augustão elabora uma espécie de listagem de suspeitos de acordo com o relacionamento que Sereia tinha com outros personagens. Esse aspecto, o condensado rol de personagens, reforça ares de um thriller em que o “inimigo mora ao lado”. Também dá margens para uma descoberta de um crime passional, motivado pela vingança, pelo ódio ou pela paixão.
Amores roubados Minissérie de 10 capítulos, com cerca de 40 minutos cada, exibida entre 6 e 17 de janeiro de 2014, é de autoria de George Moura, que 72
Disponível em: http://gshow.globo.com/programas/sereia/Exclusivo-Web/noticia/2013/01/conheca-a-historia-docandomble-religiao-de-sereia-e-mae-marina.html Acesso em: 17 fev. 2016.
124
escreveu o roteiro em colaboração com Sérgio Goldenberg, Flávio Araújo e Teresa Frota, e supervisão de texto de Maria Adelaide Amaral. A direção geral é de José Luiz Villamarim. A obra foi inspirada no romance A emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela, e narra a história de Leandro Dantas (Cauã Reymond), um sommelier que deixou São Paulo para retornar à terra natal, no Sertão, e seu envolvimento com quatro mulheres: sua mãe, Carolina (Cassia Kiss Magro), e suas três amantes: Celeste (Dira Paes), Isabel Favais (Patrícia Pillar) e Antônia Favais (Ísis Valverde). Antônia é filha de Jaime Favais (Murilo Benício), dono da vinícola onde Leandro trabalha. Ao voltar de um período de estudos na Europa, Antônia se recusa a substituir o pai nos negócios. Leandro e Antônia vivem uma paixão intensa, interrompida pela descoberta do caso de Leandro com Isabel. O rapaz é assassinado a mando de Jaime. Toda a narrativa se passa em Sertão (um lugar fictício), numa região localizada às margens do rio São Francisco. É nesse cenário árido que as paixões e traições afloram em meio a questionamentos morais, pois Leandro, um conquistador, mantém casos com mulheres casadas, esposas de homens poderosos na região, mas que não aceita ser filho de uma prostituta e, por isso, renega a mãe. Celeste é casada com Roberto Cavalcanti (Osmar Prado) por visível interesse financeiro e o trai com Leandro. Cavalcanti ao saber da traição da mulher, se enfurece, mas está disposto a acobertar o fato e cede às chantagens de Carolina (Cassia Kis Magro), que descobre o caso. Isabel, insatisfeita em seu casamento, também é cortejada por Leandro e se apaixona por ele. Outro personagem importante é o ambicioso João (Irandhir Santos), afilhado e braço direto de Jaime, que mantém uma paixão obsessiva por Antônia e a pretensão de tomar o lugar de seu padrinho. A cultura nordestina, neste caso associada às tradições do sertão, com sua paisagem, sua música, suas crenças e festejos, são o pano de fundo de Amores roubados. Além da caracterização dos personagens (principalmente em função do sotaque e da linguagem adotados), as particularidades dessa cultura estão presentes na decoração das casas, no figurino e nos valores incrustados nos personagens. Assim como em O canto da Sereia, a história se inicia com uma cena de grande tensão que se passa num tempo presente, para, num 125
segundo momento, se fixar no passado: dois carros em perseguição numa estrada isolada no meio do sertão, em uma paisagem árida. Leandro, o protagonista, está no carro da frente, gravemente ferido, e tenta atirar em direção ao carro de trás. Em paralelo, cenas de Antônia se sentindo mal. Não se sabe quem são aquelas pessoas, nem onde estão. Entretanto, de antemão já se estabelece uma tensão que percorre boa parte da narrativa. Surge uma tela preta com a indicação temporal “quatro meses antes”. Essa sequência é retomada linearmente nos capítulos 5 e 6, quando se descobre o motivo da perseguição e seu desfecho. A série traz um desenvolvimento linear quase que completo após essa sequência inicial, salvo alguns flashbacks usados para explicar alguns pontos da história. Esses flashbacks aparecem de forma rápida, surgindo sem qualquer indicação verbal ou imagética. A fotografia de Amores roubados explora a aridez do sertão e traz a profundidade de campo até para as cenas internas, inserindo ainda imagens desfocadas. As cores bastante saturadas, o baixo contraste e o aproveitamento da luz natural reforçam a temperatura das paixões e do sertão. Outro destaque são as composições de quadro que, reforçadas pela direção de arte, dão ênfase aos conflitos internos dos personagens e às tensões de gênero e de classe que permeiam a trama. Com relação às estratégias transmidiáticas, o site oficial da minissérie traz, além das informações e curiosidades sobre a obra, elenco e bastidores, um álbum com “Fotos de Antônia”, contendo fotografias tiradas pela personagem em diversos momentos da história e que podem ser compartilhadas nas redes sociais. As imagens registram a realidade do sertão e reforçam o contexto cultural no qual se desenrola a trama. Também foi disponibilizado o quiz intitulado “O quanto você conhece sobre vinho?”, que ressalta um dos elementos que caracteriza o contexto da trama, ao mesmo tempo em que revela novas faces do Brasil contemporâneo: é em torno da indústria do vinho que conhecemos um sertão moderno, economicamente produtivo, representado por uma nova classe dominante – o empresário –, que assume os valores do “coronelismo” arcaico, porém “repaginado”. Esse conteúdo da Web contribui para reforçar as marcas contextuais da trama. O sertão da aridez e dos conflitos sociais – já bastante presente no imaginário e no contexto audiovisual brasileiro muito por conta das histórias de cangaço 126
–, continua presente, mas dá lugar a uma espécie de oásis, que se destaca pela riqueza natural e cultural das margens do rio São Francisco. Diferentemente de O rebu e O canto da Sereia, Amores roubados não se caracteriza exatamente como um thriller policial, com investigadores tentando elucidar um crime. A ruptura da normalidade se estabelece a partir do entrelaçamento de pelo menos três triângulos amorosos, combustível do romance (e também da tragédia), criando um clima de suspense que se inicia já na primeira cena, com o protagonista ferido. Daí decorrem os conflitos familiares, o desejo de vingança, os danos psicológicos. O que se sobressai é uma questão moral.
O Rebu O remake de O rebu foi exibido entre 14 de julho e 12 de setembro de 2014, contando com 36 capítulos de aproximadamente 35 minutos cada. Foi escrito por George Moura e Sérgio Goldenberg e colaboradores, com direção geral de José Villamarim e direção de fotografia de Walter Carvalho. A história se desenrola durante uma festa na mansão de Ângela Mahler (Patrícia Pillar), onde ocorre um assassinato misterioso, e se estende até o dia seguinte, enquanto se acompanha a investigação do crime. O grande trunfo narrativo de O rebu é recortar em 24 horas seu plot central e se valer de flashbacks para desenvolver suas subtramas, configurando uma narrativa complexa e sofisticada e revelando a profundidade de seus personagens em um emaranhado de histórias que se cruzam. A influência da nova era da televisão norte-americana na televisão aberta brasileira também pode ser observada na escolha dos enredos e temáticas. O rebu é claramente um thriller de suspense, envolvendo a investigação policial de um crime. Não obstante, para além de taxonomias e estruturas, o diálogo que a narrativa de O rebu criou com as mídias digitais e suas várias telas merece atenção por sua fluidez. Fazendo uso de ferramentas extradiegéticas, foram disponibilizados um vídeo de abertura que proporciona um passeio pela mansão Mahler no dia seguinte à festa; teasers convocando o público para a estreia; prévias dos capítulos seguintes e disponibilização de cenas, já exibidas, estendidas; um game de adivinhação, no qual pistas eram dadas 127
e os internautas podiam fazer suas apostas no personagem que julgavam ser o responsável pelo crime da trama, além de comentar o ranking de suspeitos e compartilhar suas escolhas; e vídeos com integrantes do elenco nos bastidores, fomentando o mistério do assassinato. Todo esse material está disponível no GShow, nas seções “Extra” e “O Rebu no ar”. Mas o grande destaque fica para a seguinte construção: no decorrer dos capítulos, as cenas dos personagens tirando fotos na festa e as divulgando nas redes sociais são acompanhadas por takes de telas de computadores, smartphones e tablets mostrando as referidas postagens e suas interações nas redes sociais, principalmente Facebook e Instagram, estabelecendo uma conexão entre a narrativa e as telas que lhes são, a princípio, externas. Esse recurso se inseriu fluidamente na montagem por meio de uma edição ágil e em articulação com os temas musicais da trama, chegando a um ponto em que não se conseguia identificar facilmente o que estava ou não na tela dos celulares dos personagens. Fato curioso é que os próprios atores foram encarregados de produzir essas fotos durante as filmagens.73 Outro elemento que caracteriza esse diálogo da obra exibida na TV com as redes sociais é a própria página da obra no GShow, seção que disponibilizou uma compilação das fotos “postadas” pelos personagens durante a festa da trama, legendadas, tratadas com filtros dos aplicativos de foto e tagueadas com “#FestaAngelaMahler”, havendo ainda a indicação do “autor” da foto.74
As matrizes culturais num contexto de convergência: mudanças em curso? Pelas análises apresentadas, infere-se que a transformação pela qual passa a produção ficcional na televisão aberta brasileira acompanha, a seu ritmo, as mudanças ocorridas no cenário audiovisual mundial. Ainda que não se possa detectar nessas obras, por exemplo, as narrativas modulares, em função do tamanho mais reduzido das obras, há um claro investimento num maior grau de complexidade narrativa, de modo a desenvolver novas estruturas, caminhos e modelos de experimentação, seja por força do mercado ou por demanda do próprio público. 73
Disponível em: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/06/25/redes-sociais-vao-ajudar-na-investigacaoda-morte-de-o-rebu.htm Acesso em: 17 fev. 2016.
74
Disponível em: http://especiaiss3.gshow.globo.com/novelas/o-rebu/a-festa/ Acesso em: 17 fev. 2016.
128
A velocidade da narrativa, a alternância temporal por meio de flashbacks e flashforwards, a continuidade do suspense, a opção pelo gênero policial e a não adesão ao melodrama (o que implica também uma maior complexidade dos personagens) se articulam a uma camada de “brasilidade” – especialmente em O canto da Sereia e Amores roubados – que se revela nos temas, sotaques dos personagens, cenários, trilha musical, figurinos e aspectos culturais que caracterizam o contexto (visões de mundo, costumes, tradições etc.). No que se refere às estratégias transmidiáticas (que se referem neste estudo a ações de comunicação relativas a uma obra de ficção que articule duas ou mais mídias), nota-se uma predominância da articulação entre TV e Web. O site de O rebu traz conteúdos interativos capazes de expandir o universo narrativo de modo mais criativo e inovador em relação aos outros dois produtos, com foco nas redes sociais. Na página de Amores roubados a oferta de conteúdo complementar se restringiu ao mínimo necessário, com ênfase nos conteúdos informativos. As ações desenvolvidas para O canto da Sereia, embora mais elaboradas, parecem ter seguido o mesmo modelo adotado na novela Cheias de Charme (2012), porém sem obter o mesmo efeito, considerando que os recursos de extensão diegética e vivenciais associados à esta novela das sete alcançaram grande repercussão, tanto pela inovação quanto pela coerência entre a obra exibida na TV e as ações desenvolvidas na internet.75 Martín-Barbero (2013: 304) afirma que para a abordagem dos gêneros faz-se necessário compreender seu sistema em cada país, uma vez que em cada contexto social e cultural distinto deve-se observar uma combinação de elementos: configuração cultural, estrutura jurídica de funcionamento da televisão, grau de desenvolvimento da indústria televisiva nacional e modos de articulação com a indústria transnacional. Segundo Souza e Weber (2009), um traço comum que perpassa as telenovelas iberoamericanas é o fato desses produtos serem sustentador por: Um sistema de comunicação oligopolizado transnacional que produz uma ficção seriada marcada pela continuidade num longo período de tempo, de acordo com estratégias ficcionais melodramáticas que enfatizam 75
Ver estudo mais completo em BACCEGA, TONDATO e outros (2013: 61-94).
129
temas, intrigas e personagens vinculados a realidades do cotidiano dos telespectadores (SOUZA E WEBER, 2009: 92) Reconhece-se que as obras destacadas nesta pesquisa são produzidas dentro deste paradigma, ou seja, no interior da um sistema de comunicação oligopolizado e transnacional (e não por produtoras independentes, por exemplo). Contudo, verifica-se nesses produtos uma tendência em se distanciar da matriz melodramática (e também da comédia) e permitir maior liberdade de criação dos autores. Entende-se que as transformações em curso decorrem do fato de que a Globo enfrenta uma forte concorrência não somente em relação às outras grandes emissoras de TV, mas especialmente em relação aos canais fechados e à internet. Num contexto de novas espacialidades e de novas territorialidades, a experiência doméstica se articula à televisão e ao computador, exigindo das produtoras novas formas de experimentação audiovisual. O conceito de mediações proposto por Martín-Barbero se faz ainda atual para se discutir as especificidades da comunicação na América Latina. Entendendo a comunicação como interação, o autor estabelece o conceito como sendo capaz de criar nexos entre diferentes dimensões de um mesmo processo comunicacional, no qual a produção é compreendida em diálogo com as demandas sociais. As indústrias culturais buscam atender às demandas que emergem do próprio tecido cultural e que se originam de novos modos de uso e de percepção (MARTÍN-BARBERO, 2013). Desse modo, a RGT (bem como outras emissoras da América Latina) estão se vendo impelidas a desenvolver, de modo permanente, conteúdo transmídia para garantir suas audiências.76 No sentido de reforçar a presença de seus produtos na web, a RGT lançou em janeiro de 2014 o portal GShow, uma plataforma interativa que 76
Um exemplo de como a RGT tem se preocupado em se alinhar a essas tendências internacionais foi a realização, em fevereiro de 2015, do evento “Intercâmbio de experiências”, promovido pela área de Desenvolvimento e Acompanhamento da empresa”. O evento consistiu em realizar, na sede da Emissora, palestras com profissionais consagrados no campo da televisão e do cinema – Cary Fukunaga, Steve Ince, Alexandra Clert, Barry Schkolnick e M. Night Shymalah –, que vieram ao Brasil para participar da Rio Content Market, um encontro internacional sobre televisão e mídias digitais do qual a Globo é parceira. O objetivo deste intercâmbio foi justamente possibilitar uma aproximação dos profissionais da Globo com as experiências de criação e produção de conteúdos televisivos (e também para outras telas) de repercussão mundial, o que de certo modo demonstra uma preocupação da emissora em incorporar certos “parâmetros internacionais” necessários para se garantir o desenvolvimento de produtos com potencial transnacional.
130
engloba todos os seus produtos de entretenimento, em especial aqueles produzidos pela própria emissora, como novelas, séries e reality shows.77 É pelo GShow que se tem acesso às páginas oficiais desenvolvidas para cada obra veiculada na TV, reunindo conteúdos que integram estratégias de propagação e de expansão (FECHINE e outros, 2013: 37). De todo modo, as ações transmidiáticas relativas às obras aqui estudadas visam garantir uma adesão do internauta ao produto principal, que é a obra exibida na televisão. Ainda que se trate de produtos voltados para o horário das 23 horas, verifica-se que a experimentação na teleficção brasileira (representada aqui pela RGT) preserva alguns elementos essenciais que garantem a adesão do público. Estes estão mais presentes nas estruturas de superfície (temas, contextualização, presença de atores consagrados e de grande identificação com o público da emissora, entre outros elementos), do que propriamente nas estruturas formais e na dimensão narrativa, que por sua vez incorporam inovações que escapam à tradição do melodrama, buscando ainda manter o interesse do público e agregar novos tipos de espectadores ao propagar e expandir as narrativas na internet.
Referências BACCEGA, Maria Aparecida; TONDATO, Marcia Perecin; e outros. Reconfigurações da ficção televisiva: perspectivas e estratégias de transmidiação em Cheias de Charme. In: LOPES, Maria Immacolata V. de (Org.). Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013. BALOGH, Anna M. O discurso ficcional na TV. São Paulo: EDUSP, 2002. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CARLOS, Cássio S. Em tempo real: Lost, 24 horas, Sex and the city e o impacto das novas séries de TV. São Paulo: Alameda, 2006. DUARTE, Elizabeth. Televisão: Novas modalidades de contar as narrativas. Revista Contemporânea Comunicação e Cultura, v.10, n.º 2, ano 12, 2012, p. 324-339. Disponível em: http://www.portalseer. ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/6015/4393. Acesso em 16 de fevereiro de 2015. ESQUENAZI, Jean-Pierre. As séries televisivas. Lisboa: Texto e Grafia, 2011.
77
Contudo, pelo menos desde 2006, a RGT desenvolve conteúdos interativos vinculados à ficção televisiva em seu site oficial. Sobre este tema cf. MÉDOLA E REDONDO, 2010.
131
FECHINE, Yvana e outros. Como pensar os conteúdos transmídias na teledramaturgia brasileira? Uma proposta de abordagem a partir das telenovelas da Globo. In: LOPES, Maria Immacolata V. de (Org.). Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. KOTHE, Flávio R. A narrativa trivial. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; GÓMEZ, Guillermo Orozco. Obitel 2011 – Qualidade na ficção televisiva e participação transmidiática das audiências. Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva. Rio de Janeiro: Globo Universidade, 2011. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; GÓMEZ, Guillermo Orozco. Obitel 2014 – Estratégias de Produção Transmídia na Ficção Televisiva. Porto Alegre: Sulina, 2014. LUSVARGUI, Luiza. Prófugos: novos formatos e regionalização na ficção seriada de TV LatinoAmericana. Revista Ciberlegenda. PPGCOM-UFF n.º 29, 2013. Disponível em: file:///C:/Users/ACER/Documents/CAT/Luiza%20Lusvargui%20Pr%C3%B3fugos.pdf Acesso em 2 de maio de 2015 MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 4.ª ed. São Paulo: Senac São Paulo, 2005. MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. 7ª edição. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. MARTIN, Brett. Homens difíceis: Bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. São Paulo: Aleph, 2014. MÉDOLA, Ana S.; REDONDO, Léo V. A ficção televisiva no mercado digital. In: RIBEIRO, Ana Paula G.; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco. História da televisão no Brasil. Do início aos dias de hoje. São Paulo: Contexto, 2010. MILLER, Toby. A televisão acabou, a televisão virou coisa do passado, a televisão já era. In: FREIRE FILHO, João. A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009. MITTEL, Jason. “Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea”. In: Matrizes, v. 5, p. 29-52, jan./jun. 2012. São Paulo. Disponível em: http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/ article/view/337 SCOLARI, Carlos. Hipermediaciones. Elementos para una teoría de la comunicación digital interactiva. Barcelona, España: Editorial Gedisa, 2008. SOUZA, Maria C. J.; WEBER, Maria H. Autoria no campo das telenovelas brasileiras: a política em Duas caras e em A favorita. In: SERAFIM, José Francisco. Autor e autoria no cinema e na televisão. Salvador: Edufba, 2009.
132
Humor de qualidade no audiovisual brasileiro: proposta metodológica de análise
Gabriela Borges78
Introdução Este capítulo apresenta a metodologia para a análise da qualidade que está sendo construída pelo projeto O Humor no Audiovisual Brasileiro, que se insere nas atividades do Observatório da Qualidade no Audiovisual, criado na Universidade Federal de Juiz de Fora em 2013.79 Propomos uma metodologia de análise semiótica de produtos humorísticos veiculados na televisão aberta e por assinatura brasileira no período de 1960 a 2014 e canais de humor do YouTube em atividade em setembro de 2015. Esta metodologia está pautada na definição de dois parâmetros para a análise da qualidade, os modos de representação e a experimentação, e na elaboração de fichas de avaliação relativas ao Plano da Expressão, ao Plano do Conteúdo e à Mensagem Audiovisual. O Plano da Expressão analisa os recursos técnico-expressivos e a produção de sentido dos produtos; o Plano do Conteúdo analisa os indicadores de qualidade Oportunidade, Diversidade de sujeitos representados, Ampliação do horizonte do público e Estereótipo. E a Mensagem Audiovisual analisa os elementos encontrados nos dois planos anteriores de forma conjunta. Os indicadores de qualidade da Mensagem Audiovisual são Originalidade/ Criatividade, Diálogo com/entre plataformas, Solicitação da participação ativa do público e Clareza da proposta. É importante ressaltar que esta proposta metodológica está em construção, uma vez que a análise dos produtos audiovisuais tem trazido 78
Professora do PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
79
Este projeto está sendo realizado em conjunto com os bolsistas de iniciação científica financiados pela Fapemig e pela UFJF. Agradeço a colaboração de Danilo Terra, Hugo Queiroz, Veronica Bernadino, Guilherme Freire, Luma Perobeli e Monalisa Soares de Lima e da mestranda Raiza Campos.
133
novos elementos que nos permitem repensar e, algumas vezes, refazer o percurso e questionar os pressupostos teóricos. A qualidade é um conceito controverso, que temos estudado há vários anos (BORGES, 2004, 2008, 2014) e neste trabalho nos propomos a discutilo em relação ao humor no audiovisual brasileiro. Percebemos que há uma lacuna na academia brasileira no que diz respeito aos estudos sobre o humor no audiovisual e, portanto, resolvemos estudá-lo sob o prisma da qualidade.
O humor Diversos autores se debruçaram sobre a definição do conceito de humor e suas diferenças em relação ao conceito de cômico. Croce (apud PIRANDELLO, 1996: 128) concorda com Baldensperger e afirma que o humorismo é indefinível e que não existe, o que há são escritores humoristas. Pirandello distingue entre o humorístico e o cômico, ressaltando o caráter reflexivo do conceito por meio do sentimento do contrário presente numa obra de arte. A reflexão, durante a concepção, assim como durante a execução da obra de arte, não permanece inativa: assiste ao nascer e ao crescer da obra (...). E, comumente, no artista, no momento da concepção, a reflexão se esconde e permanece, por assim dizer, invisível: é quase, para o artista, como uma forma de sentimento. À medida que a obra se faz, ele a critica, não friamente como faria um juiz desapaixonado, analisando-a, mas improvisadamente, segundo a impressão que dela recebe (PIRANDELLO, 1996: 131).
Na obra humorística a reflexão não se esconde nem permanece invisível como uma forma de sentimento, mas se mostra e analisa o sentimento como um juiz. Dessa análise, surge outro sentimento, o sentimento do contrário. Pirandello exemplifica com o texto de Dom Quixote, de Cervantes, em que nós gostaríamos de rir de tudo que há de cômico na representação de Dom Quixote, mas o riso não vem aos lábios de modo genuíno e fácil, sentimos que alguma coisa o impede, é um sentimento de comiseração e de admiração ao mesmo tempo. Temos uma representação cômica, mas dela emana um sentimento que nos impede de rir ou que torna o riso amargo. (PIRANDELLO, 1996: 134) 134
Segundo Pirandello, o humor renuncia à superioridade e ao distanciamento, e nos leva a refletir sobre a razão do riso, o porquê da piada, através do sentimento do contrário. Esse sentimento do contrário leva a uma das principais características do humor, a crítica em suas diversas escalas, não só procurando levar as pessoas ao riso, mas fazendoas discutir e refletir sobre as mais variadas situações. O humor ironiza uma realidade e, ao mesmo tempo, constrói uma nova, tendo como matériaprima a representação dos defeitos, erros e males humanos. As características mais comuns do humorismo são a contradição fundamental e o ceticismo. A contradição se mostra por meio do desacordo entre o sentimento e a meditação, a vida real e o ideal humano, ou entre as nossas aspirações e as nossas fraquezas e misérias; como principal efeito, temos a perplexidade entre o pranto e o riso. O ceticismo colore cada observação, cada representação humorística e se mostra por meio de um “procedimento minuciosamente, e também, maliciosamente analítico” (PIRANDELLO, 1996: 126). Sendo assim, a reflexão gerada pelo humorismo paralisa o fluxo de ideias para permitir a análise do que está sendo representado, mas esta reflexão é sempre ambígua, porque está entre o riso, a comiseração e outros sentimentos contrários. Através do riso, o humorismo reflete sobre a realidade e expressa a crítica e a denúncia, fazendo surgir o sentimento do contrário. Para Pirandello, o cômico se diferencia do humorismo ao promover apenas a advertência do contrário, ou seja, notamos que algo está fora de lugar, mas não somos levados a refletir sobre isso. O cômico se sustenta pelo simples fato de fazer rir, de consumir uma situação o máximo possível. O humor despretensioso, sem reflexão sobre o riso, suas razões e consequências, caracteriza-se, na opinião do autor, como o riso cômico.
O gênero humorístico no audiovisual brasileiro A partir dos anos 1980, a produção de programas humorísticos pela TV Globo é bastante prolífica, exibindo atrações que se diferenciaram no panorama audiovisual brasileiro, tais como Armação ilimitada (1985), TV Pirata (1988), Casseta & Planeta, Urgente (1992), entre tantos outros. Esses programas foram responsáveis, por um lado, pela renovação do 135
humor que era feito na TV e, por outro lado, pela inovação no uso dos recursos técnico-expressivos da linguagem audiovisual. Apesar do gênero humorístico na TV ter como herança o rádio e o teatro, Arraes (apud SILVA JUNIOR, 2001: 182) relata que o humor que faziam naquele momento ressaltava o visual, muito mais do que o texto. Eram paródias visuais, pois os humoristas cresceram assistindo televisão e estavam acostumados a contar histórias com imagens. Arraes foi influenciado pelas chanchadas de Sílvio de Abreu e Carlos Manga. Como diretor, juntamente com Jorge Fernando, Arraes abrilhantou um pouco as chanchadas trazendo as suas características estéticas para as novelas de humor do horário das 19h na TV Globo. Arraes (apud SILVA JUNIOR, 2001: 179-181) afirma que estava preocupado em experimentar com a linguagem na produção daqueles programas nos anos 1980. Fechine (2008: 28), ao estudar a qualidade na produção audiovisual de Guel Arraes, sugere que a intenção do grupo formado por atores, diretores, redatores e roteiristas era “desconstruir modelos de representação vigentes no teatro, no cinema, no vídeo, no jornalismo e na própria televisão, tendo o humor como anteparo crítico e irônico”. Neste sentido, Fechine (2008: 24) enfatiza que Programa legal e Brasil legal são dois dos formatos mais inovadores do Núcleo de Criação do diretor pernambucano, misturando documentário e jornalismo, humor e ficção. Nos anos 1990 e 2000 os canais da televisão por assinatura, com destaque para o Multishow, também investiram na produção de programas humorísticos que mesclavam a ficção, o jornalismo e o humor. Um pouco mais tarde, estes programas começaram a estabelecer um diálogo bastante profícuo com os humoristas que estavam surgindo nos canais de humor do YouTube ou nos blogs e vlogs na internet. Muitos desses humoristas atualmente criam conteúdos audiovisuais para serem exibidos tanto na televisão quanto na internet. Um dos formatos que é bastante utilizado é a stand up comedy, para o qual há até concursos de novos talentos, como o Prêmio Multishow de Humor, que está na sua quarta temporada e já revelou vários humoristas, tais como Gigante Léo, Paulo Vieira e Denis Lacerda. Em levantamento realizado para o Anuário da Rede Obitel Internacional (LOPES E MUNGIOLI, 2013: 128-9), constatouse um aumento da produção de conteúdos nacionais na televisão por assinatura, tendo o humorístico como gênero predominante. Os programas 136
ficcionais, incluindo os humorísticos, cresceram de duas produções em 2007 para vinte e duas em 2013 e trinta e três em 2014. Este crescimento deve-se, em parte, à aprovação da Lei 12.485/2011, conhecida como Lei da TV paga, que exige que os canais pagos veiculem durante o horário nobre, no mínimo, três horas e meia de conteúdo nacional por semana. Acrescente-se que metade dessa cota deve ser produzida por produtoras nacionais independentes, sem vínculo com os grupos de radiodifusão. Em 2013, do Top 10 da TV paga realizado pelo Obitel, oito programas eram humorísticos. No YouTube encontramos canais formados por coletivos tais como o Porta dos Fundos e Galo Frito; e também por humoristas profissionais, como o Filipe Neto e o PC Siqueira, que alimentam a plataforma com sketches e vídeos humorísticos e possuem milhões de visualizações. Com a convergência de mídias e o barateamento da tecnologia, ficou muito fácil produzir vídeos que podem se tornar virais. Alguns humoristas defendem que, devido ao modo de produção de vídeos para a internet se diferenciar bastante do modo de produção televisiva, os artistas podem ter mais liberdade criativa. Porém, percebemos que muitas vezes os artistas tornam-se conhecidos na internet e são contratados pelos canais, principalmente por assinatura, e podem até entrar na engrenagem da produção televisiva. Neste contexto de convergência midiática e cultural ( JENKINS, 2006; JENKINS, GREEN E FORD, 2014) no qual estamos vivendo, nossos estudos têm o intuito de mapear e analisar as especificidades das novas formas de expressão que surgem com o advento da tecnologia digital. Procuramos enfocar as narrativas e dramaturgias dos conteúdos audiovisuais humorísticos que, em alguns casos, podem requerer diferentes formas de participação do espectador/interator, tanto em termos interventivos quanto colaborativos. Scolari (2008) propõe o termo hipertelevisão para entendermos a dinâmica desse meio e as diferenças em relação à neotelevisão, termo cunhado por Eco (1984), que se caracteriza pela diluição das fronteiras entre ficção e informação e pela representação que a televisão começa a fazer de si mesma nos anos 1980. A hipertelevisão reflete as mudanças ocorridas tanto no comportamento do espectador, que aprendeu a 137
interagir com múltiplas mídias e especializou-se nas textualidades fragmentadas, quanto nas próprias formas narrativas que começaram a ser disponibilizadas também em decorrência dessas mudanças. Scolari ressalta que a especificidade da hipertelevisão se encontra na expansão narrativa em diferentes meios, muito mais do que na extensão das suas histórias. Neste sentido, o estudo sobre os produtos audiovisuais humorísticos tem o propósito de discutir as mudanças que aconteceram ao longo dos últimos 55 anos na televisão brasileira, pois percebemos uma mudança de tom do humor e também do cômico, considerando também que com o advento da internet surgiram novos produtos. Sendo assim, um dos nossos objetivos é investigar se estes novos produtos trazem novos modos de contar histórias e novas formas de comunicação. Considerando que o riso tem uma significação social, temos percebido que as formas de se fazer rir têm mudado e o que antes era socialmente aceito, hoje pode ter conotações politicamente incorretas. Isso traz uma reflexão bastante rica acerca do contexto cultural e social no qual o humor, que nos interessa especialmente, e o riso cômico estão inseridos.
A qualidade no audiovisual O tema da qualidade na televisão tem sido debatido desde os anos 1980 por acadêmicos e críticos e tem sido incorporado na legislação da mídia de diversos países, principalmente europeus, como tentamos demonstrar em estudo publicado recentemente a respeito da televisão pública portuguesa (BORGES, 2014). De fato, vários estudos procuraram mapear o conceito e propor parâmetros a respeito do serviço público de televisão e, no que diz respeito às televisões abertas e comerciais, o conceito de quality television passou a ser bastante debatido com a entrada dos programas ficcionais seriados da televisão por assinatura, tal como a HBO, nos anos 1990. Todavia, no que se refere ao gênero humorístico, encontramos uma lacuna nos estudos televisivos sob a perspectiva das discussões sobre a qualidade. A qualidade pode ser entendida a partir de diferentes prismas. Como já discutimos em outros estudos (BORGES, 2008, 2009), defendemos que o conceito pode ser definido objetivamente uma vez que o entendimento seja deslocado do simples julgamento de gosto e, portanto, de valor, para 138
a análise de elementos estilísticos intrínsecos ao produto audiovisual. Entenda-se que esses elementos se relacionam com os temas abordados, a criação de personagens, o uso dos recursos técnico-expressivos, o engajamento do público, a complexidade narrativa, entre outros. Na opinião de Pujadas (2002), que vem ao encontro deste estudo, a valorização dos elementos internos aos próprios programas contém uma quantidade significativa de parâmetros de avaliação que permitem sistematizar de maneira clara o discurso sobre a qualidade do programa televisivo. A autora ressalta que nos estudos sobre a qualidade dos programas individuais, os parâmetros de avaliação contemplam, em geral, os seguintes critérios: 1) o conteúdo dos programas (tais como tema, uso de linguagem vulgar, não trivialização); 2) a forma dos programas (como a estrutura narrativa, a construção dos personagens, as tramas argumentativas); 3) a mensagem audiovisual (referente à forma e ao conteúdo), e 4) as referências ao gênero, isto é, em que medida o programa cumpriu a sua função de acordo com o gênero em que se insere, ou então com respeito à dificuldade de classificar o programa num determinado gênero Ao propor a análise de programas individuais na televisão e estender a proposta para a análise de vídeos de canais de humor na internet, procuramos centrar o estudo no produto audiovisual e suas peculiaridades, sem contudo deixar de lado a contextualização cultural e social que faz parte das construções narrativas humorísticas e que no nosso entender estão interligadas com a questão da qualidade. O humor só se efetiva se o público entende a piada, por isso o repertório cultural é bastante relevante. Sendo assim, estes elementos podem ser articulados metodologicamente por meio de parâmetros e indicadores de análise da qualidade que contribuam para a reflexão sobre as produções audiovisuais. Estamos definindo como humor de qualidade aquele que leva à reflexão crítica, gera o sentimento do contrário e trata de temas que são relevantes para serem discutidos em nossa sociedade e que, muitas vezes, têm muito mais impacto quando discutidos de modo descontraído e sem conceitos pré-estabelecidos. Podemos perceber que muitos programas reforçam estereótipos e preconceitos sociais de modo recorrente, mas que 139
alguns produtos audiovisuais se diferenciam justamente por provocar um incômodo e propiciar a oportunidade do público dar asas à imaginação. Por outro lado, o riso cômico, conforme Bergson teoriza (1983), diz respeito às atitudes, gestos e movimentos do corpo humano, bem como às ações e situações do cotidiano. A comicidade está no terreno do que é propriamente humano, sendo a emoção o seu maior inimigo. Por isso, para que o riso cômico se efetive, não podemos ter piedade ou afeição e não podemos refletir sobre a situação. O cômico é casual e permanece, por assim dizer, na superfície da pessoa. Bergson (1983: 11) ressalta que “quando certo efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais natural a julgarmos tanto maior nos parecerá o efeito cômico. De fato, rimos do desvio que nos é apresentado como simples fato”. O riso é gerado se ações e situações cômicas são construídas de tal modo que nos transmitam a ilusão da vida e a sensação de uma montagem mecânica, seja por meio da repetição, da inversão ou da interferência de duas séries de fatos independentes (BERGSON, 1983: 36, 48). A comicidade surgirá assim a partir daquele aspecto da pessoa, pelo qual ela parece uma coisa, ou dos acontecimentos humanos, que imita o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim, o movimento sem a vida (BERGSON, 1983: 43). Para definir a amostra de produtos audiovisuais relevantes para o nosso estudo e operacionalizarmos a análise, categorizamos o gênero humorístico no audiovisual em humor-jornalismo e humor-ficção. O humor-jornalismo se caracteriza pela reprodução de fatos reais e de interesse público de forma bem humorada (valendo-se de traços do humor, como a ironia, o grotesco ou a sátira); pela apropriação da estética jornalística, seja com o intuito de desconstruir o discurso jornalístico ou de aproveitar a forma de levar “fatos reais” culturalmente conhecidos pela sociedade para mostrar suas idiossincrasias através de relatos fictícios. O humor-ficção requer a criação de situações ou cenas ficcionais. São narrativas que possuem um enredo com um conjunto de personagens principais que têm um desenvolvimento ao longo da trama. São normalmente verossímeis, como os sitcons, com situações bem humoradas do dia a dia. Essas situações podem tanto ser de comédia quanto de humor, uma vez que podem provocar o riso imediato e despreocupado (uma queda, algum ocorrido inusitado), ou podem apresentar caricaturas e paródias, gerando um riso ambíguo e a reflexão sobre a realidade. 140
Sendo assim, foram definidos parâmetros para a análise da qualidade dos programas humorísticos apresentados na televisão aberta e por assinatura e, principalmente, no trânsito e na interseção dos conteúdos divulgados nos canais de humor do YouTube. Esses parâmetros estão articulados a partir de dois conceitos: modos de representação e experimentação. Os modos de representação estão relacionados à criação e desenvolvimento dos personagens, na medida em que estes podem ser tanto caricatos, grotescos ou satíricos, independentemente das duas categorias estudadas. Além disso, os modos de representação estão ligados à reflexão sobre o papel desempenhado pelos personagens humorísticos em nossa sociedade, isto é, indagamos se reafirmam estereótipos e lugares-comuns; se criam bordões que se perpetuam; se criticam os costumes e/ou fazem algum tipo de crítica social; enfim, se contribuem para quebrar tabus e promover a diversidade em suas diversas acepções. Nosso interesse é perceber se a criação dos personagens humorísticos contribui de alguma forma para pautar temas relevantes socialmente e para deslocar a atenção da banalização social que a televisão e a internet reiteram incessantemente na maioria dos seus produtos. A experimentação está relacionada com a utilização dos recursos técnico-expressivos característicos da linguagem audiovisual de forma inovadora e criativa. Isto é, investigamos se os produtos humorísticos criam propostas audiovisuais originais ou apenas reciclam formatos já existentes; se os recursos técnico-expressivos contribuem para a construção de narrativas que promovem a diversidade e o debate de ideias e de pontos de vista. Discutimos também a forma como o produto incentiva a participação do público e dialoga com outras plataformas, principalmente na confluência entre a televisão e a internet.
Metodologia de análise da qualidade de produtos audiovisuais humorísticos O Observatório da Qualidade no Audiovisual foi criado em 2013 na UFJF com o objetivo de servir como um espaço de diálogo sobre a produção audiovisual contemporânea. O primeiro projeto desenvolvido foi sobre o Humor no Audiovisual Brasileiro. Nos primeiros anos do Observatório foi realizado o levantamento de 78 programas humorísticos e selecionada uma amostra de 26 programas da TV aberta e por assinatura no período de 1960 a 2014 para análise. De cada programa estão sendo 141
analisadas cinco emissões80. Foi realizado também, no mês de setembro de 2015, o levantamento de 47 canais humorísticos do YouTube com mais de 100.000 inscritos, com atividade nos últimos trinta dias e periodicidade de publicação definida. Destes, foi selecionada uma amostra de 18 canais e estão sendo analisados cinco vídeos de cada canal81. A produção é prolífica e o mapeamento tentou buscar narrativas que de certo modo levavam à reflexão e não apelavam ao riso cômico. Apesar de este ter sido um dos critérios para a seleção da amostra, na análise nos deparamos com uma infinidade de formatos e temos percebido que tanto o humor quanto o riso cômico estão bastante presentes. Nos produtos audiovisuais selecionados para análise encontramos sketches, formatos seriados e paródias, mas também aqueles que primam pela imitação fácil de personagens estereotipados e inúmeros outros formatos. A análise dos produtos audiovisuais está sendo realizada a partir do modelo de análise semiótica que elaboramos em estudo sobre a qualidade do canal 2, da TV portuguesa (BORGES, 2014), que foi testado no âmbito do serviço público e adaptado para este projeto. Trabalhamos a partir de dois parâmetros de análise, os modos de representação e a experimentação. A partir daí criamos fichas de avaliação para avaliar cada uma das emissões estudadas. Sendo assim, a ficha de avaliação é composta por três partes, a Análise do Plano da Expressão, que contempla a forma do produto, a Análise do Plano do Conteúdo, que é avaliado a partir de quatro indicadores, e a Análise da Mensagem Audiovisual, que também é composta por quatro indicadores. Os aspectos considerados na Análise do Plano da Expressão são os seguintes: produção de sentido a partir dos elementos estéticos; uso dos recursos técnico-expressivos (áudio, vídeo, edição e grafismo); atuação dos personagens, apresentadores, entrevistados, comentadores. Assim, a análise caracterizou os elementos estéticos do programa nos seguintes códigos: visuais (câmera, iluminação, cenário, atuação do elenco, guarda80
A amostra dos programas televisivos foi selecionada com base na disponibilidade de cinco emissões completas encontradas na internet e em DVDs publicados pela Globo Filmes, pois consideramos que era muito importante para a análise ter acesso a um episódio completo do programa televisivo. No entanto, alguns deles eram muito antigos, tornando-se muito difícil conseguir as cinco emissões.
81
Alguns resultados parciais da análise de programas e canais de humor podem ser encontrados no site do Observatório da Qualidade no Audiovisual disponível em <http://observatoriodoaudiovisual.com.br/ resultados/narrativas-humoristicas/analises/>. Acesso em 04 fev. 2016.
142
roupa e maquiagem, qualidade técnica da imagem); sonoros (tipos de áudio, qualidade técnica do áudio); sintáticos (edição, ritmo do programa) e gráficos (vinheta inicial, grafismos, rodapés, vinheta final). Para operacionalizar a análise, definimos indicadores de qualidade do conteúdo e da mensagem audiovisual a fim de permitir uma avaliação da qualidade com caráter empírico. Os parâmetros de análise qualidade (modo de representação e experimentação) nortearam o enquadramento das preocupações básicas a partir das quais os produtos são avaliados, enquanto os indicadores de qualidade foram criados para permitir a avaliação do conteúdo e da mensagem audiovisual. Para isso, cada indicador é avaliado a partir da seguinte escala: não consta, fraco, razoável, bom e muito bom. É importante mencionar que os indicadores de qualidade do Plano do Conteúdo discutem a qualidade em relação aos temas abordados seja na narrativa ou na caracterização dos personagens, enquanto os indicadores de qualidade da Mensagem Audiovisual atuam no intuito de refletir sobre os dados obtidos na análise do Plano da Expressão em conjunto com o Plano do Conteúdo. Para isso, a definição do formato e dos principais aspectos técnico-expressivos são tão importantes quanto a análise dos indicadores de qualidade do conteúdo, pois a mensagem audiovisual engloba os dois aspectos. No plano do conteúdo, os indicadores de qualidade definidos são os seguintes: Oportunidade: Nesse indicador de qualidade leva-se em conta se o produto audiovisual se pauta na agenda midiática para escolher os seus temas, e se esses temas são relevantes e agregam valores para o público. Sendo assim, procura-se aferir a pertinência e a relevância dos temas abordados em relação a uma dada conjuntura social, cultural e política. Ampliação do horizonte do público: procura aferir se as propostas são, por natureza, polêmicas, contraditórias e férteis, no sentido em que farão o público refletir sobre aquilo a que está assistindo. Tais propostas devem contribuir para ampliar o repertório cultural do público, dando a conhecer novas problemáticas e pontos de vista. Os temas levantados devem ter relevância ao ponto de ampliar a visão de mundo do público, contribuir na construção de valores éticos e estimular o pensamento e o debate de ideias. 143
Diversidade de sujeitos representados: refere-se à representação dos diferentes grupos sociais bem como opiniões e pontos de vista pelo programa/canal. Para esse indicador devemos levar em consideração os mais diversos fatores que caracterizam a diversidade temática, geográfica, política, socioeconômica, cultural, étnica, religiosa, de gênero e sexual. Estereótipo: verifica se as formas de representação adotadas reforçam ou desconstroem estereótipos. O produto audiovisual reforça o estereótipo por meio do deboche e de situações que beiram o ridículo, generalizações e banalizações usadas que acabaram se consolidando ao longo dos anos? Como exemplo podemos citar as generalizações da loura burra, dos gordos, dos gays, etc. No caso de desconstruir o estereótipo procuramos avaliar se os produtos fazem os espectadores pensar por meio de textos absurdos e improváveis e/ou pelo exagero das atuações, enfim, se leva a refletir sobre o que se assiste. É importante ressaltar que este indicador é avaliado a partir da definição prévia se o produto audiovisual reforça ou desconstrói estereótipo.
Na análise da mensagem audiovisual foram definidos os seguintes indicadores de qualidade: Originalidade/Criatividade: procura aferir em que medida o produto audiovisual apresenta um formato diferenciado com ideias novas que surpreendem o público, e experimenta com a linguagem audiovisual tanto em termos da apresentação e abordagem de temas quanto em relação a aspectos narrativos e dramatúrgicos. Diálogo com/entre plataformas: verifica se o produto audiovisual tem capacidade para se adaptar à convergência midiática, possibilitando uma interação entre diferentes tipos de plataformas e conteúdos, com destaque para os crossovers, no caso de vídeos do YouTube, e das menções às outras plataformas e conteúdos, comumente vistas na TV. Solicitação da participação ativa do público: refere-se à adoção de recursos técnico-expressivos e narrativos para estimular a participação ativa do público. Averigua as formas pelas quais o produto audiovisual pode apelar à curiosidade do público por meio dos sentidos visuais e auditivos e dos processos cognitivos de significação. Dentre as formas mais comuns estão a comunicação direta entre o emissor e o público; a citação do nome do espectador; o uso de gírias e/ou outras expressões e a forma de se dirigir ao público através da câmera. 144
Clareza da proposta: Procura aferir se o produto tem uma estrutura bem organizada, com um formato bem delineado que se repete ao longo das emissões, permitindo assim que o público reconheça os códigos visuais, sonoros, gráficos e sintáticos do produto audiovisual.
Considerações finais No início deste estudo nossa hipótese era a de que os programas apresentariam, majoritariamente, aspectos de humor de qualidade. Entretanto, na análise que está sendo realizada a partir dos parâmetros e indicadores de qualidade propostos, estamos percebendo que, na verdade, o riso cômico está bastante presente. Até o início de 2016 foi possível analisar oito programas de televisão e cinco canais de humor do YouTube. De modo sucinto, pudemos constatar que dos oito programas da televisão analisados, seis deles Sexo frágil (2003), Minha nada mole vida (2004), Os normais (2001), Furo MTV (2009), Tapas & Beijos (2011) e As canalhas (2013) têm a preocupação de levantar indagações e reflexões sobre os temas abordados, porém alguns têm mais êxito que outros. Os programas Quinta-Categoria (2008) e Comédia MTV (2010) se preocuparam pouco ou quase nada em ampliar o horizonte do público. Quinta-Categoria tem por base o improviso, e sua única intenção é provocar o riso (que faz muito bem). Comédia MTV, como o próprio nome indica, não pretende gerar o sentimento do contrário. Dos cinco canais do YouTube que analisamos até agora, todos têm a preocupação de entreter, gerar o riso e instigar a reflexão, mas nem todos conseguem colocar esta intenção em prática. Os canais Canal das Bee (2012), Põe na roda (2014) e Porta dos fundos (2012) se dedicam a estimular o pensamento e o debate de ideias e os canais Castro Brothers (2006) e Barbixas (2007) focam no riso despreocupado do espectador, mas sem deixar de lado o conteúdo que amplia o seu horizonte, pois trazem, ainda que em menor escala, temas que possibilitam a reflexão. Portanto, temos em conta que a análise trará novos elementos para reflexão que podem, até mesmo, fazer com que a nossa metodologia seja revista. Nesse sentido, acreditamos que esta é a riqueza da pesquisa científica, porque nos tira da zona de conforto e das certezas préestabelecidas. 145
Referências BERGSON. Henry. O riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. BORGES, Gabriela. Qualidade na TV pública portuguesa: Análise dos programas do canal 2. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2014. ______. Diversidade da Programação do Serviço Público de Televisão: pistas para a avaliação do contexto português. In: FILHO, João Freire (org.). A TV em transição: Tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 223-246. ______ Discursos de qualidade: a programação da A 2: portuguesa. In: BORGES, Gabriela; REIABAPTISTA, Vítor (orgs.) Discursos e práticas de qualidade na televisão, Lisboa: Livros Horizonte, 2008, p. 155-78. ______. A discussão do conceito de qualidade no contexto televisual britânico. Líbero Revista Acadêmica da Pós-Graduação da Faculdade Cásper Líbero, Ano VII, N.° 13-14, p. 46-53, 2004. ECO, Umberto: Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FECHINE, Yvana. Núcleo Guel Arraes: formação, influências e contribuições para uma TV de qualidade no Brasil. In: FIGUEROA, Alexandre; FECHINE, Yvana (orgs.). Guel Arraes. Um inventor no audiovisual brasileiro. Recife: CEPE, 2008, p.17-88. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2006. ______; GREEN, John e FORD, Sam. Cultura da conexão: Criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014. SILVA JÚNIOR, Gonçalo. País da TV: A história da televisão brasileira contada por Gonçalo Silva Júnior. São Paulo: Conrad, 2001. LOPES, Maria Immacolata Vassalo; MUNGIOLI, Maria Cristina. Brasil: trânsito de formas e conteúdos na ficção televisiva In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo; GÓMEZ, Guillermo Orozco. Obitel 2014. Estratégias de Produção Transmídia na Ficção Transmídia. Porto Alegre: Sulina: 2013. Disponível em <http://obitel.net/wordpress/wp-content/uploads/2015/03/obitel2014-portugues1.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2016. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo, Senac, 2003. OBSERVATÓRIO DA QUALIDADE NO AUDIOVISUAL. Disponível em <http://observatoriodoaudiovisual. com.br/>. Acesso em: 4 fev. 2016. PIRANDELLO. Luigi. O Humorismo. Trad. Davi Dion Machado. São Paulo: Experimento, 1996. (Originalmente publicado em 1908). PUJADAS, Eva. Televisón de calidad y pragmatismo. Quaderns del CAC. N°13, p. 3-11, Mai-Ago. 2002. Disponível em: <http://www.cac.cat/pfw_files/cma/recerca/quaderns_cac/Q13pujadas_ES.pdf>. Acesso em: 23 set. 2013. SCOLARI, Carlos. Hacia la hipertelevisión. Los primeros síntomas de una nueva configuración del dispositivo televisivo. Diálogos de la Comunicación, Felafacs, n.° 77, jul.-dez. 2008.
146
Conversação no estúdio do Bem Estar: a construção do apresentador-especialista em saúde82
Marialice Emboava83 e Simone Maria Rocha84 Há diversas pesquisas no Brasil sobre mídia e o indivíduo empreendedor de si mesmo que, apoiadas na matriz foucaultiana, analisam novas formas culturais que maximizam a dimensão do autogerenciamento do indivíduo (FREIRE FILHO, 2009, 2010, 2011; NASCIMENTO, 2014, CARDOSO, 2012; CARVALHO, 2007). Neste capítulo, utilizamos essa perspectiva para examinar a construção dos apresentadores-especialistas em saúde no programa Bem Estar, da TV Globo. Sonia Livingstone e Peter Lunt (1994) estudaram a construção midiática da expertise e do senso comum em programas com participação da audiência. No presente texto, no entanto, a participação da audiência não é ao vivo, embora a transmissão da conversação no estúdio o seja. Em um ambiente mais controlado, como se processa a construção deste especialista? Como ele interage com o telespectador? Na primeira parte, apresentamos o Bem Estar e as principais características do seu formato híbrido em que se misturam estratégias de comunicação de programas televisivos de estilo de vida e também técnicas de jornalismo. Em seguida, contextualizamos a saúde na contemporaneidade e, então, abordamos os modos de endereçamento e a análise estilística televisiva, ambos influenciados por estudos de cinema, como métodos para captar o endereçamento do Bem Estar e o posicionamento dos especialistas da área da saúde. 82
Uma primeira versão deste texto foi apresentada no XXXVIII Congresso Brasileiro da Ciência da Comunicação, Rio de Janeiro, 2015.
83
Doutoranda do PPGCOM/UFMG, linha de Processos Comunicativos e Práticas Sociais; professora licenciada de jornalismo da PUC Minas; analista de projetos educacionais da ALMG; integrante do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT) marialice.emboava@gmail.com
84
Professora do PPGCOM/UFMG e coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT).
147
Bem Estar: estratégias da TV-realidade e de jornalismo85 Exibido diariamente desde fevereiro de 2011, nas manhãs da Rede Globo, Bem Estar é um programa sobre saúde apresentado por dois jornalistas e coapresentado por dois profissionais da área da saúde cuja especialidade muda conforme o tema do programa. Desde 2012, ele veicula quadros chamados, em seu site, de séries e de reality show (Tabela 1). Talvez pudéssemos dizer que esses quadros de transformação têm apenas a função de educar o telespectador, como faz com frequência o jornalismo ou mesmo os documentários, ao abordar, por exemplo, a obesidade. No entanto, ao disponibilizar especialistas para “tratar” dos personagens das séries, quadros ou reality, o programa intervém ativamente para resolver um problema. É o que Oullette e Hay (2008: 71) chamam de “uma forma aplicada de serviço público”, uma característica de diversos programas televisivos de estilo de vida. Algumas séries e reality show do Bem Estar Nome
Ano
Duração
Viva mais leve*- (emagrecimento de 5 personagens)
2012
4 meses; equipe: psicólogo, cardiologista, nutricionista, educador físico
Meu filho não come (três crianças menores de 5 anos)
2013
3 meses; follow up com 2 personagens em ago 2015; equipe: pediatra, nutricionista e chefe de cozinha
Dieta Nostra* (homem de cerca de 30 anos com colesterol alto)
2013
2 meses – equipe: nutricionista e cardiologista
Meu filho não dorme (três crianças menores de 2 anos)
2014
2 meses – equipe: uma especialista em sono infantil
# eu resisti* (personagem quer comer melhor, pois trabalha viajando)
2014
4 meses; consultas pela internet com nutricionista; uma consulta em São Paulo com o consultor Fábio Altui.
Bola pra frente – (jogador de futebol Éder – emagrecer 70 kg)
2014
1 ano; equipe: psicólogo, nutricionista, educador físico, cardiologista
Cintura Fina – (uma comerciante e uma diarista; perda de peso com a ajuda de coachers)
2015
2 meses; coachers: uma profissional (educador físico e nutricionista) para cada uma
Afina Rocha (coapresentador do programa)
2015
2 meses; equipe: cardiologista, psicólogo e nutricionista.
* Personagens pediram ajuda ao Bem Estar para emagrecer ou diminuir colesterol
Observamos, no entanto, marcas jornalísticas no Bem Estar e, mesmo sem a intenção de tratarmos de gênero neste capítulo, direcionamos 85
TV-realidade (reality TV) é um gênero que inclui uma grande variedade de programas sobre pessoas reais. Também chamada de televisão popular factual, está localizada em território fronteiriço entre informação e entretenimento; documentário e drama (HILL, 2005, p.2).
148
nosso olhar para as páginas da internet do Bem Estar em um movimento inspirado em Jason Mittell (2001) que, ao tratar de gênero como categoria cultural, propõe examinarmos várias fontes de práticas discursivas: os documentos institucionais são uma das possíveis fontes arroladas por Mittell (2001: 9) em sua argumentação de como uma análise deve recolher diversas enunciações do gênero de maneira mais abrangente possível para que possa ir além do texto. A Rede Globo, em sua página Memória Globo, classifica o Bem Estar na categoria Telejornais e programas e, no endereço eletrônico globotv.globo. com, os vídeos do Bem Estar são encontrados na aba jornalismo. Nessas páginas institucionais, a emissora valoriza os elementos jornalísticos ao descrever os apresentadores como jornalistas e ao enfatizar a expertise da equipe de consultores médicos que é formada por profissionais de reconhecida reputação entre os seus pares, ou seja, o programa conta com fontes especializadas gabaritadas. Soma-se a isso o fato de levar ao ar muitas vezes temáticas sintonizadas com a atualidade em clara ligação com critérios de noticiabilidade. Ou seja, evidenciamos no Bem Estar a hibridização a que Mittell (2001: 7) se referiu e que valoriza as práticas da audiência: “A mistura de gêneros é um processo cultural ordenado pelo pessoal da indústria [televisiva], muitas vezes em resposta a práticas da audiência.”86 Misturar elementos de reality show ou de game show a aspectos jornalísticos torna-se, assim, uma estratégia de comunicabilidade do Bem Estar para com os seus telespectadores. Essas características atestam a aproximação do Bem Estar com o formato programa televisivo de estilo de vida, tema da próxima seção.
Programas televisivos de estilo de vida Nos anos 1990, a Grã-Bretanha viu novos programas da BBC, exibidos em horário nobre, deixar muitos acadêmicos e críticos da mídia perplexos: os programas foram considerados emburrecedores, um “muro de lazer”, em referência ao entretenimento que, deixando o hard news87 para mais tarde, tomava conta da grade das 20 horas (BRUNSDON et al, 86
Tradução nossa para: “The mixing of genres is a cultural process enacted by industrial personnel, often in response to audience viewing practices.”
87
Expressão que designa o noticiário de fatos relevantes, densos e complexos. Cf. RABAÇA, C. e BARBOSA, G. 2001: 360.
149
2001). Símbolo nacional para muitos britânicos, a BBC exportaria, em breve, esse tipo de programa que, para parte da audiência, foi sucesso total. Foi assim que Changing Room, em 1996, ganhou muitos países de língua inglesa, tornando-se o primeiro caso de exportação de sucesso de programa de estilo de vida. E o que é programa televisivo de estilo de vida? Segundo Jayne Raisborough, eles podem ser descritos como um subgênero de TV-realidade (reality TV): Este termo [lifestyle TV] abrange uma variedade de formatos que não só apresentam o comum/ordinário para o deleite ou horror da audiência, mas cuja tarefa principal é a sua transformação, aperfeiçoamento e gestão. (RAISBOROUGH, 2011: 7). 88
Graças ao interesse dos pesquisadores dos estudos culturais, esse gênero tem sido mais estudado na televisão, mas ele está presente no rádio, no livro de autoajuda, no anúncio publicitário, na web etc. É um gênero que tem sido investigado a partir das racionalidades neoliberais (LEWIS, 2012; PALMER, 2003; OUELLETTE E HAY, 2008) e a partir da estética orientada para o consumo (BELL E HOLLOWS, 2005; TAYLOR, 2002, BRUNSDON et al., 2001). Entretanto, há autores, como Maureen Ryan (2015) e Sam Binkley (2007), que argumentam que o sujeito autogerenciado da televisão é interpelado mutuamente pelas forças interligadas das racionalidades governamentais e da estética orientada para o consumo.89 Em Better living through reality TV, Laurie Ouellette e James Hay (2008) examinam diversos programas de TV-realidade90 exibidos nos Estados Unidos e sugerem que os programas são racionalidades neoliberais que enfatizam o governo a distância. “São técnicas práticas, altamente dispersas, para refletir, gerenciar e aperfeiçoar as múltiplas dimensões de nossa vida pessoal com os recursos disponíveis” (OUELLETTE E HAY, 2008: 2).91 Para esses autores, 88
Tradução nossa para: “This term speaks to a range of formats that not only present the ordinary for an audience’s delight or horror, but whose primary task is with its transformation, betterment and management”.
89
O livro de Ouellette e Hay (2008) centra-se nas racionalidades neoliberais, mas também faz menção ao consumo.
90
Ouellette e Hay (2008) usam o conceito em sentido amplo, da mesma forma que o fazemos neste capítulo.
91
Tradução nossa para: “highly dispersed and practical techniques for reflecting on, managing, and improving the multiple dimensions of our personal lives with the resources available to us.”
150
programas de estilo de vida são um desses recursos acessíveis para o autogerenciamento e autoaperfeiçoamento. O estudo de Gareth Palmer (2003) sobre programas de TV-realidade também se utiliza do conceito de governamentalidade.92Ele associa-o a processos de gerenciamento social e argumenta que esses programas funcionam como uma das muitas autoridades dispersas, atores e agências, que utilizam as tecnologias do self 93 com o objetivo de governar a distância: a televisão faria com que a audiência se identificasse com os participantes desses programas levando-os a adotar uma ética da autorreflexão, controle e transformação que incorpora um regime particular de verdade sobre o que constitui ser um bom cidadão. A televisão, de acordo com Ouellete e Hay (2008: 12), seria um recurso para adquirir e coordenar as técnicas para gerenciamento de vários aspectos da vida de um indivíduo. Ela seria, assim, considerada como uma analítica de governo e, nesse caso, é necessário procurar identificar as racionalidades específicas e as aplicações técnicas que compõem a televisão: Uma maneira [de identificar a racionalidade específica e as aplicações técnicas] é como uma tecnologia cultural que, trabalhando fora dos “poderes públicos”, governa ao apresentar indivíduos e populações como objetos de avaliação e intervenção, e solicitando a sua participação no cultivo de hábitos particulares, ética, comportamentos e habilidades (OUELLETTE E HAY, 2008: 13).94
Pensar a televisão como tecnologia cultural implica pensar em cultivação95 (OUELLETTE E HAY, 2008: 13), termo apropriado aqui como a arte de burilar costumes, atitudes. Programas para cultivação oferecem maneiras de governar o pequeno, a tarefa banal do dia a dia, 92
Governamentalidade é um conceito de Michel Foucault e se refere a tipos particulares de poder geralmente guiados pelos especialistas (experts, saber) que procuram monitorar, observar medir e normalizar indivíduos e população (FOUCAULT, 1991). Este tipo de poder se exerce por meio de mecanismos difusos como discursos para promover a felicidade, a saúde através de certas condutas pessoais incluindo a autovigilância.
93
Tecnologias que permitem aos indivíduos realizar, por seus próprios meios, certas operações em seu próprio corpo, pensamento e conduta (Foucault, 1988).
94
Tradução nossa para: “One way is as a cultural technology that, working outside “public powers”, governmentalizes by presenting individuals and populations as objects of assessment and intervention, and by soliciting their participation in the cultivation of particular habits, ethics, behaviors and skills.”
95
Tradução nossa para “cultivation”.
151
ligando conhecimento a habilidades para gerenciar a casa, a família. Outra dimensão da televisão enquanto tecnologia cultural refere-se à autocultivação como um autoaperfeiçoamento e autoconfiança sendo a ênfase dos autores no cuidado de si e na televisão funcionando como tecnologia de governança. Os programas da TV-realidade contribuem para a ideia do telespectador empreendedor de si mesmo (OUELLETTE e HAY, 2008: 12). De acordo com esses pesquisadores, o que unifica a diversidade dos programas da TV-realidade é sua preocupação em produzir cidadãos que não são apenas capazes, mas também gratos em aprender como aumentar sua capacidade de se autogovernar por meio das esferas privadas do estilo de vida, domesticidade e consumo.
Conceito de saúde no Bem Estar Examinando as temáticas do Bem Estar entre 29/06 e 03/07/15, verificamos que versaram sobre hipertensão, saúde dos olhos infantis, câncer, ovário policístico e oleosidade da pele e maquiagem. Às sextasfeiras é comum haver programa dedicado à dança. A breve observação dessas temáticas nos permite avaliar que o Bem Estar adota o conceito ampliado de saúde. Esse, segundo Nikolas Rose (2001:17), não se limita mais a evitar a doença ou a morte prematura, mas engloba a otimização da corporalidade para atingir um bem-estar geral — beleza, sucesso, felicidade, sexualidade. Para promover a saúde, o programa utiliza-se do discurso dos fatores de risco orientado para mudanças comportamentais e de estilo de vida. Essa prática remonta à década de 1970, em que a instabilidade econômica reduziu o financiamento do Estado de Bem-Estar Social, sistema adotado por diversos países capitalistas desenvolvidos, o que levou ao surgimento de movimento de redução de custos de áreas sociais como saúde e educação. Uma das saídas encontradas foi a convocação da população a fazer a sua parte, não na definição de verbas e políticas públicas, mas no cuidado de si, por meio da adoção de comportamentos considerados saudáveis epidemiologicamente. É nessa época que se expandem pelo mundo os movimentos de autoajuda e de autocuidado (CASTIEL, GUILAM e FERREIRA, 2010: 35). 152
A ideia de que saúde e doença são assuntos de responsabilidade individual, no entanto, não é nova. Suas raízes estão incorporadas às noções de doença e pecado que permeou (e ainda permeia) culturas ao longo dos anos. A doença e a saúde como responsabilidade individual na contemporaneidade, no entanto, assume características relacionadas ao indivíduo empreendedor, isto é, o indivíduo é livre para fazer escolhas e, se fizer escolhas corretas, poderá ter uma vida saudável (GALVIN, 2002: 118; ROY, 2008: 465). Os pesquisadores que concordam com a máxima de que os indivíduos são responsáveis pela sua doença acreditam que o sujeito fica mais empoderado e que esta é a saída para os altos custos da saúde (CASTIEL, GUILAM, FERREIRA , 2010; GALVIN, 2002). Por outro lado, Rosa Galvin (2002: 117) enumera, citando trabalhos de outros estudiosos, diversos aspectos negligenciados por essa perspectiva: os que defendem a responsabilidade individual pela saúde se esquecem da origem social da doença; negam a pobreza enquanto causa de doenças; baseiam-se em análises de fatores simples ao invés de levar em conta a complexidade de doenças crônicas; contestam o valor da saúde como direito; usam como justificativa para cortar custos nos sistemas de saúde, entre outros aspectos. Saúde tornou-se, na sociedade contemporânea, sinônimo de felicidade, se adotarmos o paralelo de antropólogos que inseriram a doença sob a rubrica da infelicidade (MOULIN, 2008: 21). E, na empreitada para alertar sobre os riscos, os especialistas da área da ciência, medicina e das disciplinas “psi”, como psicólogos e psiquiatras, são centrais (LUPTON, 2013: 46). Os médicos, cujo papel há muito ultrapassa a doença e sua cura, são considerados os experts em estilo de vida (ROSE, 2013: 47). Para verificar como eles constroem sua relação com a audiência do Bem Estar, apresentamos, abaixo, como modos de endereçamento e estilo televisivo vão nos guiar.
Estilo televisivo como modo de endereçamento Nascido no cinema, o conceito modos de endereçamento foi ampliado para outros campos por Elisabeth Ellsworth (2001) que elaborou um método que reconhece o papel da produção no caminho até o produto midiático chegar ao telespectador. 153
Na reconfiguração desse conceito, Simone Rocha e Guilherme Sant’Ana (2010) destacam a importância que as teorizações a respeito dos modos de endereçamento dão à centralidade da audiência no processo de construção dos sentidos dos filmes. “Uma ênfase demasiadamente semiótica, centrada exclusivamente na mensagem, é incapaz de remeter ao lugar no qual os sentidos são compartilhados no cotidiano: a cultura” (ROCHA e SANT’ANA, 2010: 366). Apropriando-se desse conceito para o estudo do telejornalismo, Itânia Gomes (2011) associa aos modos de endereçamento a palavra “estilo”, na intenção de identificar o tom com o qual um determinado programa se relaciona com sua audiência e o faz ser diferente dos demais. É nessa intersecção que modos de endereçamento apontam para os recursos estilísticos como escolhas imprescindíveis as quais os realizadores procedem na busca por estabelecer marcas identitárias diferenciadoras de um programa. Por considerar o estilo como um tipo de endereçamento é que nos propomos a agregar análise estilística televisiva (BUTLER, 2010) aos modos de endereçamento enquanto um procedimento que nos ajudará a captar o endereçamento do Bem Estar. Dentre os recursos estilísticos fundamentais num programa está a atuação dos apresentadores e coapresentadores. A função que eles desempenham diz muito do modo como o programa deseja dialogar com sua audiência presumida — o posicionamento das câmaras, os recursos técnicos disponíveis, formatos de apresentação das informações, recursos da linguagem televisiva, entre outros aspectos. Assim como em modos de endereçamento, na análise estilística televisiva não há indicadores fixos para o estudo — a partir da assistência ao produto é o analista quem captará quais elementos contribuem para a configuração de um determinado endereçamento. Descrever a “superfície de percepção”, ação que Jeremy Butler (2010) propõe para iniciar toda análise televisiva, é importante para buscar a essência do estilo nos detalhes da transmissão de som e de imagem da televisão.96 No Brasil, alguns pesquisadores têm-se dedicado a análises estilísticas de programas televisivos (PUCCI JR., 2014; ROCHA, ALVES e OLIVEIRA, 96
Em nossas discussões no grupo de pesquisa COMCULT, verificamos que a análise estilística televisiva de Butler (2010) mostrou-se um indicador interessante para compreendermos o produto televisivo em si.
154
2013; ROCHA, 2013). Esses estudos evidenciaram como o estilo ajuda a configurar narrativas da teledramaturgia a partir de aspectos culturais, tecnológicos e históricos, e ainda demonstraram mudanças expressivas no fazer televisivo que trouxeram novas possibilidades de produção de sentido e estratégias de comunicabilidade para o gênero telenovela. Para compreender como o Bem Estar dialoga com a sua audiência, propusemo-nos a fazer um recorte e examinar como ele constrói o apresentador-especialista: como os recursos estilísticos ajudam a construir e a revelar esses coapresentadores? Como os coapresentadores constroem vínculos com o telespectador? Esse exercício de análise insere-se em uma pesquisa mais ampla que estamos desenvolvendo. O corpus compõe-se de três edições (15, 22, 24/09 de 2014) que fizeram parte de discussões internas do nosso grupo de pesquisa COMCULT e que, à época, foram escolhidas aleatoriamente, mas, também, foram limitadas pelo acesso integral aos programas. Serão observados o discurso dos especialistas, a postura diante das câmeras e os recursos gráficos.
Do discurso científico ao do estilo de vida Os dois jornalistas que comandam a transmissão do programa ao vivo dividem o estúdio com dois profissionais de saúde que, quando médico, é sempre apresentado com o título de doutor. Ao escolher profissionais que aconselharão o telespectador de acordo com a temática de cada edição, o programa Bem Estar estabelece legitimidade a essas orientações e se diferencia de outros programas como o quadro Você e o doutor, do Hoje em Dia (Record), que tem um único médico apresentador. Ao site do programa cabe a tarefa de identificar seus consultores sempre com uma biografia recheada de cursos de medicina conceituados e hospitais de renome de São Paulo. 97 Se o figurino, como afirma Sean Hagen (2009: 142), reforça simbolicamente laço de segurança, ordem e comando, tipicamente associados ao uniforme, não há dúvida de que estamos diante de profissionais que são fontes de certeza: homens e mulheres vestem o jaleco branco tanto no estúdio quanto no próprio consultório ou clínica quando se trata de reportagens externas. O que pode mudar é o uso ou não da gravata pelos homens e, em poucas 97
Nem todos profissionais que coapresentam o programa são consultores.
155
ocasiões, o uso do terno no consultório durante reportagem externa. Há um médico que foge à regra: Roberto Khalil, cardiologista de políticos e ex-presidentes, veste a tradicional roupa branca que caracteriza os médicos.98 Ele, por exemplo, é anunciado aos telespectadores com o adjetivo superlativo “conhecidíssimo Dr. Roberto Khalil”, pelo jornalista Fernando Rocha (15/09/2014), que tanto pode estar se referindo à fama do médico como à frequência com que ele participa do programa. De fato, somente naquele mês (setembro de 2014), ele participou de três edições.
Cardiologistas Roberto Khalil (Fig.1) e Marcelo Sampaio (Fig. 2)
Na função de especialistas, os cardiologistas Roberto Khalil (Fig. 1) e Marcelo Sampaio (Fig. 2), que participaram do programa em 15/09/2014 sobre doenças cardiovasculares, têm lugares assegurados de autoridade. Khalil fita a câmera e, assim, tenta estabelecer laços com o telespectador. Sampaio, estreando no Bem Estar, encontra mais dificuldade e se volta para o jornalista apresentador. O uso de vocabulário relacionado à medicina, a constante citação de pesquisas e alusão à ciência, a construção mais formal e longa dos argumentos dão a eles a posição de seriedade e de detentores do saber. Marcelo Sampaio, cardiologista, ao explicar que apenas a dieta pode não ser suficiente para baixar a pressão, afirma que A base desta dieta é que os pesquisadores há 30 anos atrás tentaram tratar da pressão alta sem medicação. Eles fizeram um dieta com alimentos ditos vasos dilatadores com capacidade para reduzir a pressão. Estes alimentos eram baseados em três íons: o cálcio, o magnésio e o potássio (Programa exibido em 15/09/2014). 98
Os psiquiatras não usam roupa branca; normalmente portam um blazer; mas eles não fazem parte do corpus do presente trabalho.
156
Os especialistas incorporam o lado sério do programa, e seu diálogo com o auditório virtual – como são chamados os telespectadores que enviam perguntas por e-mail – não é caloroso. Podem ser confiáveis aos olhos do telespectador, porém, nas edições analisadas, os médicos não fizeram gestos como iniciar a resposta a uma pergunta da internet dizendo o nome do remetente. “[Daniel], os sintomas da pressão alta são silenciosos”. Sabemos, no entanto, que os atos conversacionais entre o programa e seus telespectadores vão além das trocas dialogais explícitas entre os apresentadores e as convocações verbais feitas para os telespectadores. Envolvem também os usos de planos e movimentos de câmaras. Desse modo, enquanto as convocações são explícitas via texto verbal, os dispositivos visuais de conformação de diferentes posições e ênfases no diálogo são mais tácitos. Ainda assim, a moldura visual pela qual se vê o corpo dos sujeitos é importante estratégia de construção de posições e, consequentemente, de sentidos para os atos de fala (GUTMANN, 2012: 68).
Como era de se esperar, o plano americano (Fig. 1 e Fig. 2) e o primeiro plano são os modos mais usuais de posicionar o especialista99 — o plano americano enquadra-o na altura do busto “de modo a ratificar o seu lugar distanciado, hierarquicamente localizado como a autoridade do discurso” (GUTMANN, 2012: 68). De maneira menos incisiva que a dos jornalistas-apresentadores, os especialistas no corpus analisado solicitaram a participação do telespectador no cultivo de hábitos diários como a ingestão de pouca quantidade de sal para diminuir a pressão arterial e, consequentemente, os riscos ao coração. A fala longa pode distanciá-los do telespectador que, por outro lado, pode ser fisgado pelo que os médicos ensinam. Uma mesa, no estúdio, apresenta alimentos do cotidiano que estimulam o bom funcionamento da pressão arterial de um lado e, de outro, os que fazem mal e, portanto, uma simulação de uma seta holográfica vermelha os caracteriza. Nesse lado, há a imagem, entre outros produtos, de salgadinhos industrializados, mas não há nenhuma menção à contribuição da indústria alimentícia para a alta ingestão de sódio dos brasileiros: 99
A nomenclatura dos planos usada neste trabalho baseia-se na proposta por Gutman (2012).
157
12 gramas diárias contra 5 recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, segundo noticiário que predominou no mês anterior à exibição dessa edição do Bem Estar. 100 Em relação à necessidade de tomar remédio para a hipertensão a vida toda, Roberto Khalil explicou que: Depende muito do grau de hipertensão, porque a dieta e o exercício, inclusive uma reeducação alimentar, tirando ou diminuindo o sal da comida, você pega o hipertenso leve que começa a fazer exercício, sempre falo, o exercício é o elixir da vida, se a pessoa emagrece e regra na dieta, ele pode ficar sem remédio. Mas os hipertensos graves vão tomar remédio pelo resto da vida (Programa exibido em 15/09/2014).
Não há muito espaço para a controvérsia na conversação do estúdio, embora a presença de pelo menos dois profissionais da saúde, além daqueles que aparecem nas externas, pudesse tender a diferentes pontos de vista. Quando a controvérsia surge, ela é, na maioria das vezes, sutil - o que não é esclarecedor ao telespectador. Um exemplo disso foi protagonizado pelo ortopedista Moyses Cohen (22/09/2014) que, ao vivo do estúdio, faz um reparo à reportagem gravada, que tinha acabado de ser exibida, indicando cirurgia para quem anda na ponta do pé: Não é todo andar na ponta do pé que vai ser indicado cirurgia. Acho que foi bem explicado isso [pelo colega ortopedista da reportagem gravada]. Mas se você anda nas pontas dos pés e não se atrapalha em nenhuma atividade, a melhor coisa é não mexer. Deixe como está porque isto faz parte do seu organismo. (Programa 22/09/2014)
Aprender e aplicar no dia a dia O discurso técnico, mais racional, dos convidados da área da saúde dos programas analisados é contrabalanceado pela interlocução com os dois jornalistas-apresentadores que, por meio de perguntas, tentam elucidar diferentes dúvidas e, assim, introduzir novos enfoques ao tema abordado durante o programa. As simulações de holografia e os recursos gráficos, ao mesmo tempo em que reforçam o tom professoral do discurso médico, também elucidam procedimentos, funcionamentos de sistemas do corpo humano, potencializando ao telespectador a oportunidade de Em agosto de 2014, a imprensa divulgou os primeiros resultados do acordo estabelecido entre o Governo Federal e a Associação Brasileira de Alimentos para a redução de sal nos pães de forma, bisnaguinhas e massa instantânea.
100
158
aprender. É também um recurso estilístico que valoriza a possibilidade de se popularizar o conhecimento. Esses recursos gráficos reiteram e revelam informações de forma a convidar o leitor a se inserir na narrativa jornalística. Eles são bastante usados para concretizar o conteúdo verbal expresso, buscando tornar visíveis temas abstratos ou de difícil compreensão apenas pela locução verbal.
Fig. 3 - Rocha simula aceleração do coração após a inalação de remédio para asma
Foi o que aconteceu quando o pneumologista Rafael Stelmach (24/09/2014) explicou o que ocorre com o coração depois que uma pessoa inala remédio para asma. O apresentador Fernando Rocha (Fig. 3) participou da performance e acelerava sua respiração à medida que o som do coração aumentava e a simulação de holografia mostrava o coração em movimento. Foi uma maneira de tornar visível o que conhecemos, mas não enxergamos. Assim como as simulações de holografias, os desenhos gráficos exibidos no monitor de televisão para explicar, por exemplo, um cateterismo, evidenciam o caráter didático do Bem Estar – esse é complementado por procedimentos representados na bancada do estúdio, como a demonstração de bombinhas para asmas ( Figs. 4 e 5) ou balões representando bexigas de tamanho normal e anormal (Figs. 6 e 7). Lado a lado, um jornalista-apresentador e um profissional da saúde 159
dividem a bancada para detalhar explicações sobre o tema da edição – os dois ficam de pé e o especialista em saúde tanto pode explicar funcionamentos de sistemas do corpo; remédios disponíveis ou tratar do “como usar” (Figs. 4 e 5). O enfoque terá, sempre, a aplicabilidade no cotidiano do telespectador como meta (OUELLETE e HAY, 2008; LEWIS, 2012).
Fig. 4 e Fig. 5 Apresentadora Mariana ensina como usar bombinhas para asma.
Dividir a bancada, como descrito acima, pode não ser a expressão mais adequada. Nessa etapa do programa, o papel do jornalista-apresentador continua sendo o de mediar e, em geral, não cabe a descontração que faz parte do programa e está a cargo deles. Começando, na maioria das vezes, com enquadramento em plano geral, convocando o telespectador para o estúdio, um espaço simbólico de encontro, a moldura visual nesta etapa do programa caminha para o plano americano, em que a autoridade do profissional de saúde é clara, até chegar ao zoom do objeto sobre o qual se fala e está sobre a bancada – pode ser algo banal, como o peso de uma bolsa feminina ou da mochila escolar (22/09/2014), mas que ajudará o telespectador a gerenciar a sua vida e, quem sabe, a da família.101 São exemplos da cultivação, a qual se referem Oullette e Hay (2008: 14). Se concordarmos com o caráter educacional do programa Bem Estar, podemos dizer que as demonstrações explicativas realizadas na bancada, as simulações de holografias e as elucidações apresentadas no monitor da televisão são o ápice dessa característica e constituem “a “aula” do Bem Estar. Convém destacarmos, porém, que o caráter educativo e de entretenimento permeia, em níveis diferentes, todo o programa, Se estivéssemos tratando de jornalismo, poderíamos usar o conceito de jornalismo utilitário ou ainda o de “notícias que você pode usar”. Cf. EIDE, M. e KNIGHT, 1999.
101
160
constituindo o que alguns autores chama de edutainment (SOLIER, 2005: 470). Como toda aula, a tarefa de atrair o telespectador para o interior do programa é desafiante. Verificamos que a TV Globo utiliza-se dos recursos tecnológicos mais avançados disponíveis (mesa de holografia, por exemplo), como é característico do “padrão Globo de qualidade”, e alterna-os com outros recursos mais simples (maquetes de caixas de remédios, sem rótulo, por exemplo) ou outros experimentos (a bexiga e a urina, Figs. 6 e 7) como estratégias visuais para buscar a identificação da audiência com o assunto e mantê-la no interior do programa.
Fig. 6 e Fig. 7: Experimento para demonstrar o funcionamento da bexiga
Algumas considerações A televisão, enquanto tecnologia cultural (OUELLETTE E HAY, 2008), cria cidadãos que governam a si próprios, que se aperfeiçoam e que cuidam de si mesmos. Ela se junta a instituições sociais dispersas que, a distancia, ajudam os cidadãos a serem autoempreendedores e a assumirem todas as responsabilidades pela própria saúde (LEWIS, 2012; OUELLETTE E HAY, 2008). Como apontou Nikolas Rose (2001), profissionais de áreas diversas, exemplificados pelos especialistas do Bem Estar, operam como tecnologias difusas de governo indireto tentando influenciar a conduta de indivíduos e hábitos em diversas arenas especializadas incluindo a da saúde. A reputação dos médicos do Bem Estar, construída fora da televisão, empresta credibilidade ao Programa, mesmo que o currículo do profissional nem sempre esteja claro aos telespectadores. A autoridade do especialista é assegurada pelo discurso técnico, com alusão a pesquisas indicando atualidade e esperanças ao telespectador. Nesse aspecto, ainda guarda algumas 161
semelhanças com a pretensa neutralidade e objetividade da linguagem científica (BUENO; LIVINGSTONE E LUNT, 1994) e, como tal, não dá espaço para a medicina alternativa e nem para o saber leigo. Esse, representado pela audiência posicionada como aprendiz, tem uma participação controlada, seja pelo editor que escolhe os e-mails enviados quando o Programa está sendo transmitido, seja pela edição das perguntas no formato ‘povo-fala’ feitas em clube, rua e praia exibidas durante a atração. As simulações de holografias e gráficos do monitor da televisão e demonstrações da bancada contribuem não somente para a instrução do telespectador, mas tornam-se técnicas diárias de autogerenciamento e cuidados de si. Exemplificam também o caráter didático do programa e, para o telespectador, a possibilidade de aprender. A roupa (jaleco branco e, entre os homens, quase sempre a gravata) que os especialistas vestem assegura-lhes sobriedade; os dispositivos visuais de conformação de diferentes posições dão-lhes seriedade, o tom do discurso é professoral e implica autoridade. O chamamento da audiência para o interior do programa, no entanto, não é o ponto forte dos especialistas – eles precisam do apoio e mediação dos jornalistas-apresentadores. As perguntas – feitas pelos próprios jornalistas ou vindas da internet e exibidas na tela – são os recursos utilizados pelos apresentadores para passar a palavra aos especialistas. Elas têm, no entanto, muito mais o tom de conversação que de interrogatório. Esta conversação é uma estratégia para a construção da relação com a audiência e ela se expressa tanto no aprofundamento dos tema quanto na informalidade (SILVA, 2010). Esses especialistas são treinados para desenvolver cuidadosamente os argumentos, citar as evidências que apoiam suas análises. No Bem Estar, as análises dos médicos aparecem muitas vezes fragmentadas, como observaram Livingstone e Lunt (1994) em um estudo sobre a construção de conhecimentos específicos e de senso comum nos programas de auditório. Isso está longe, no entanto, de ofuscar a imagem desses médicos – eles demonstram experiência e conhecimento, mesmo que alguns tenham maior desenvoltura e tranquilidade diante das câmeras do que outros. Como escreveu Tania Lewis, “o que os programas de estilo de vida no ocidente ‘vendem’ não são apenas produtos. Mas também modos de viver e de ser” (LEWIS, 2012: 541, aspas do autor).102 Tradução nossa para: “what lifestyle programming ‘sells’ to the audience in the West...are not just products but ways of living and being”.
102
162
Referências BELL, David e HOLLOWS, Joanne (ed). Ordinary lifestyle: popular media, consumption and taste. Maidenhead: Open University Press, 2005. BINKLEY, Sam. Governamentality and lifestyle studies. Sociology Compass 1(1): 111-126, 2007. BRUNSDON, Charlotte et al. Factual entertainment on British television. European Journal of Cultural Studies. 4(1) 29-62, 2001. BUENO, Wilson. Comunicação para a saúde: uma revisão crítica. Disponível em: http://www. jornalismocientifico.com.br/jornalismocientifico/artigos/jornalismo_saude/artigo9.php. Acesso em: 1 mar. 2016. BUTLER, Jeremy. Television style. New York: Routledge, 2010. CARDOSO, Janine Miranda Cardoso. Entre vítimas e cidadãos: risco, sofrimento e política nas narrativas do Jornal Nacional sobre as epidemias de dengue(1986-2008).Tese (Doutorado). ECO/UFRJ, 2012. http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_interna.php?tease=2. Acesso: 23 ago. 2013. CARVALHO, Mônica Marino de. Obesidade e pobreza na imprensa: epidemiologia de uma questão social. Tese (Doutorado). ECO/UFRJ, 2007. http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_ interna.php?tease=10 Acesso: 15 jul. 2012. CASTIEL, Luis David, GUILAM, M. Cristina R., FERREIRA, Marcos Santos. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. RJ: Fiocruz, 2010. EIDE, M. E KNIGHT, G. Public/private service: service journalism and the problems of everyday life. European Journal of Communication 14 (4): 525-547, 199. ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de Endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: Silva, Tomaz Tadeu da (Org.). Nunca fomos humanos – nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. FOUCAULT, Michel. Governmentality. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER, Peter. The Foucault effect: studies in governmentality with two lectures by and an interview with Michel Foucault. Chicago: University of Chicago Press, 1991. p. 87-104. FOUCAULT, Michel. Tecnologies of the self. In: MARTIN, Luther et al. Tecnologies of the self: a seminar with Michel Foucault. Massachusetts: Cushing-Malloy, 1988, p. 16-49. FREIRE FILHO, João. O poder em si mesmo: jornalismo de autoajuda e a construção da autoestima. Revista Famecos, v. 18, n.º 3, p. 717-745, setembro/dezembro 2011. __________________ Fazendo pessoas felizes: o poder moral dos relatos midiáticos. In: XIX Encontro da Compós, PUC-RJ, jun. 2010. __________________ Renovações da filantropia televisiva: do assistencialismo populista à terapia do estilo. In: Freire, João (org). A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009 GALVIN, Rose. Disturbing notions of chronic illness and individual responsability: towards a genelaogy of morals. Health, v.6, n.º 2, p.107-137, 2002. GOMES, Itania (org). Gênero televisivo e modo de endereçamento no telejornalismo. Salvador: Edufba, 2011. GUTMANN, Juliana . O que dizem os enquadramentos de câmera no telejornal? Um olhar sobre formas audiovisuais contemporâneas do jornalismo. Brazilian Journalism Research 8 (2): 64-79, 2012. HAGEN, Sean. A emoção como estratégia de fidelização ao telejornal: um estudo de recepção sobre os laços entre apresentadores e telespectadores do Jornal Nacional. Tese (Doutorado). Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, UFRGS, 2009. HILL, Annette. Audiences and popular factual television. London: Routledge, 2005.
163
LEWIS, Tânia et al. Lifestyling Asia? Shaping modernity and selfhood on life-advice programming. International Journal of Cultural Studies 15 (6): 537-566, 2012. LIVINGSTONE, S. e LUNT, P. Talk on television: audience participation and public debate. London/ NY: Routledge, 1994. LUPTON, Deborah. Risk. Oxon: Routledge, 2013. MITTELL, Jason. A cultural approach to television genre theory. Cinema Journal 40 (3):1-24, 2001. MOULIN, Anne Marie. O corpo diante da medicina. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar. RJ: Vozes, 2008. p. 15-81. NASCIMENTO, Liliane da Costa. O autoconhecimento através dos números: as práticas de automonitoramento dos quantified selves. Tese (Doutorado) ECO/UFRJ, 2014. Disponível em: http:// www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_interna.php?tease=15 Acesso: 20 jan. 2015. OUELLETTE, Laura e HAY, James. Better living through reality TV: television and pos-welfare citizenship. Oxford: Blackwell Publishing, 2008. PALMER, Gareth. Introduction: governancy and documenary. In: PALMER, Gareth. Discipline and liberty: television and governance. Manchester: Manchester University Press, 2003, p. 1-20. PUCCI JR., Renato L. Inovações estilísticas na telenovela: a situação em Avenida Brasil. Revista Famecos, vol. 21, n.º 2, 2014, Porto Alegre (RS), p. 675-697. Disponível em: http://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/16648 Acesso em: 02 out. 2016. RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo Guimarães. Dicionário de comunicação. Rio de Janeiro: Campus, 2001, RAISBOROUGH, Jayne. Being Scrooge-like: an introduction to lifesyle media and the formation of the self. In: RAISBOROUGH, Jayne. Lifestyle media and the formation of the self. London: Palgrave Macmillan, 2011, p. 1-24. ROCHA, Simone Maria. Inovações estéticas na TV: a travessia sertão-Ilhéus de Gabriela. In: XVII Encontro Socine, UNASUL, Florianópolis, 2013. ROCHA, Simone Maria; ALVES, Matheus e OLIVEIRA, Lívia. A história através do estilo televisivo: a revolta da vacina na telenovela Lado a lado. ECO PÓS Perspectivas, v.16, n.º 1, p.205-220, mai./ago.2013 ROCHA, Simone Maria e SANT’ANA, Guilherme Antônio. Modos de endereçamento e gênero televisivo: proposta metodológica para análise da televisão como forma cultural. In: BRAGA, José L; LOPES, Maria Immacolata Vassalo; MARTINO, Luiz Claudio. Pesquisa Empírica em Comunicação. São Paulo: Paulus, 2010. ROSE, Nikolas. The politics of life itself. Theory, Culture & Society, vol.18, n.º 6, 2001, p.1-30. ROSE, Nikolas. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividades no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013. ROY, Stephannie. Taking charge of your health: discourses of responsibility in English-Canadian women’s magazine. Sociology of Health and Illness, v. 30, n.º 3, p. 463-477, 2008. RYAN, Maureen. Entertaining fantasies: lifestyle and social life in 1980s Ameria. Journal of Communication Inquiry 39(91):82-101, 2015. SILVA, Fernanda Maurício. A conversação como estratégia de construção de programas jornalísticos televisivos. 342f. il. 2010. Tese (Doutorado). UFBA, Salvador, 2010. SOLIER, Isabelle. TV dinners: culinary television, education and distinction. Continuum: Journal of Media and Cultural Studies v.19, n.º 4, p. 465-481, 2005. TAYLOR, Lisa. From ways of life to lifestyle: the ordinaryzation of British gardening lifestyle television. European Journal of Communiction 17 (4):479-493, 2002.
164
A experiência audiovisual de uma transmidiação de La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares
Vicente Gosciola103
Introdução Atualmente a narrativa transmídia é considerada um processo, verificado em algumas áreas da comunicação, seja no entretenimento, no jornalismo, na publicidade, ou no âmbito corporativo. As definições de narrativa transmídia, de Henry Jenkins (2006) a Vicente Gosciola (2012), podem assumir características muito distintas da realidade de sua aplicação, mas, basicamente, ela é uma estratégia de comunicação. A narrativa transmídia é uma história, dividida em partes. Cada parte é veiculada por um meio de comunicação que melhor possa expressá-la. Os diferentes meios de comunicação não repetem as partes da história. Há projetos de narrativa transmídia que partem de uma história inteiramente nova ou adaptam histórias já conhecidas. Este capítulo vem propor uma reflexão teórica acerca da conceituação e das características do processo de transmidiação assim como de seu planejamento e modos de execução. Trata dos princípios e da estruturação da narrativa audiovisual em transmidiações enquanto aplicada à transmidiação do desdobramento narrativo de um livro de autor consagrado da literatura fantástica latino-americana: La Invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares (2012). Todo o enfoque das observações se dá sobre a criação de narrativas no âmbito específico da sua transmidialidade em que o deslocamento de seu espectador entre as mais diversas mídias bem como a sua participação — como debatedor ou mesmo autor de narrativas adicionais complementares — é o que efetivamente lhe permitirá conhecer o todo da história. Visamos aqui a produção de uma reflexão teórica acerca da conceituação e das características do processo de transmidiação, assim como de seu planejamento e modos de execução Professor Titular do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, integrante do grupo de pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira. E-mail: vicente.gosciola@gmail.com
103
165
e de promover a prática, em termos de roteirização audiovisual, de narrativa transmídia, a partir de uma obra literária. Verificamos como urgente uma produção textual que reporte e reflita o exercício de transmidiação e a compreensão de: como caracterizar a personagem; como revelar ou ocultar as motivações da personagem; como demonstrar o relacionamento entre as personagens e entre as plataformas; como tornar as narrativas conectivas, ou seja, cada narrativa convida sua audiência a procurar uma nova narrativa e/ou um novo meio de comunicação; como a audiência pode ajudar a conduzir a ação; como uma plataforma ou narrativa pode melhor elucidar o que acabou de acontecer e anunciar o que está para acontecer.
A cultura da narrativa transmídia A narrativa transmídia é uma estratégia de comunicação enraizada na história da cultura, marcadamente presente na cultura contemporânea mediada pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs) novas possibilidades de comunicação surgem e se disseminam continuamente. Como definem Manuel Castells et alii no livro Comunicación móvil y sociedad, una perspectiva global, toda a história da tecnologia, até mesmo da internet, mostra que sua utilização serve a propósitos distintos daqueles que a originaram e que, quanto mais interativa ela é, mais provável que converta usuários em produtores de conteúdo e tecnologia enquanto a utilizam (CASTELLS et alii, 2007: 387-388). A narrativa transmídia é continuamente desenvolvida assim como os modos de contar histórias que utilizam múltiplas plataformas comunicacionais (SIMON, 2011). O jogo de forças é, aparentemente, equilibrado: sempre que há uma obsolescência em termos de tecnologia de meio de comunicação, as narrativas começam a apresentar novidades e vice-versa. No livro Hamlet no Holodeck, Janet Murray imagina um novo tipo de contador de histórias, que é metade hacker, como um criativo contemporâneo, e metade bardo, invocando o seu sentido original (MURRAY, 2003:17). Antes mesmo da tecnologia digital, que transformou as plataformas, os mais diversos autores de literatura buscaram novas maneiras de contar histórias.
Aldous Huxley já imaginava, em seu livro Admirável mundo novo, de 1930, uma sala de cinema com estímulos táteis (HUXLEY, 2014). Ray Bradbury concebeu no livro Fahrenheit 451, de 1953, a TV Mural ou o 166
circuito parede-a-parede (BRADBURY, 2003). O episódio “The practical joker”, o terceiro da segunda temporada da série de TV Star Trek: The animated series, a primeira após a série original Star trek (Jornada nas estrelas) criada por Gene Roddenberry, exibido em 21 de setembro de 1974, relata que no ano 2269 o holodeck seria um grande salão com sistemas de projeção de som, imagem e campo de força para aliviar o estresse e o isolamento ou para simulação científica, tática e de treinamento. Esses são apenas alguns exemplos do que se pode imaginar com respeito à integração de mídias e narrativas, que somente se fizeram possíveis a partir da tecnologia digital e seus desdobramentos como os dispositivos móveis conectados à internet sem fio. Em 1991, Wim Wenders lançou o longa-metragem Bis ans Ende der Welt (Até o fim do mundo), anunciando que em 1999 haveria um dispositivo para gravar os sonhos e a imaginação. As imagens passariam a tomar todo o tempo das pessoas, que não conseguiriam deixar de vê-las durante todo o dia.
O alcance da narrativa transmídia A indústria cinematográfica vem assumindo que nem tudo é esclarecido em um filme, por exemplo: certos detalhes da história de um filme só podem ser conhecidos em outras mídias. Isso exige que mantenhamos nossos olhos atentos, o que pode nos levar a pesquisar sobre o filme antes de chegarmos ao cinema. Essa análise seria incompleta se não levássemos em conta a motivação econômica. Esse sistema complexo de comunicação e engajamento é hoje denominado narrativa transmídia. Para Robert Pratten, exatamente por ser complexo, em projetos de narrativa transmídia o todo é mais satisfatório do que a soma das partes (PRATTEN, 2009). Nesse sentido, temos um exemplo concreto de media ecology porque é um sistema de comunicação complexo que integra as mais diversas plataformas de mídia, tecnologias, técnicas, produção colaborativa de conhecimento, de comportamento e de redes sociais (GOSCIOLA, 2012: 8). Em elementos mais concretos, narrativa transmídia é uma história muito grande subdividida em partes que são distribuídas em múltiplas plataformas de mídia. Cada plataforma de mídia é definida pelo critério de ser a que melhor possa expressar aquela parte específica da história, fazendo o melhor para que seu conteúdo seja uma distintiva e valiosa contribuição para o todo da grande história. Henry Jenkins, em 167
um texto de 2003, cita alguns exemplos como a Odisseia de Homero, a história de Jesus contada na Idade Média, a saga da Terra Média de J. R. R. Tolkien ( JENKINS, 2006: 107). The Blair Witch Project (de Danie Myrick e Eduardo Sanchez, 1999), um projeto independente de baixo orçamento, introduzido por um intenso trabalho de repercussão na web e na TV a cabo, com documentário falso (mockumentary), e concluído com a projeção do filme nas salas de cinema. Outro projeto representativo para essa investigação é a cine-série The Matrix (1999-2003), criada pelos irmãos Andy Wachowski e Lana Wachowski, iniciado com um longametragem de um total de três, permeados por animes e games. Iniciado em 1997, Pokémon tem, até o momento, quatorze temporadas, mais de 702 episódios, sites oficiais, sites de fãs, mais de dez longasmetragens, mais de cinquenta games, cards, etc. Por sua vez, Yu-Gi-Oh! de 2000 até o momento, tem três temporadas, 558 episódios, mangás, três longas, jogos de tabuleiro, dez livros, vinte e um games, cards, etc. E vale lembrar que em ambos os casos as histórias são complementares de mídia para mídia. Um projeto pode não nascer como transmídia, mas as oportunidades de ampliação da história vão surgindo depois de ele ter-se iniciado. Assim foi com a série de TV Lost (2004–2010), de J.J. Abrams, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof: inicialmente não era transmídia, mas foi adotando outras plataformas e narrativas complementares com a intenção de manter o interesse pela série junto ao público durante o período entre as temporadas. Por outro lado, a série de TV Heroes (2006–2010), de Tim Kring, foi desde o início um projeto transmídia. Há a ideia de um mapeamento do mundo narrativo sugerido por Jill Golick. Com mais de vinte anos de experiência na indústria da televisão, para a qual já criou e produziu quatro séries digitais interativas, a professora de Roteiro para Televisão e Narrativa Transmídia, na York University, compreendeu que a narrativa transmídia, ou story universe (GOLICK, 2010), é composta de um história principal, ou a grande aventura, imediatamente cercada por histórias complementares, tais como: histórias de personagens secundários e/ou os seus próprios pontos de vista da história principal, contribuições de fãs, como vídeos, fotos, trilhas sonoras, conteúdos criados por fãs e/ou fan fictions, cenas de bastidores e/ou making of, mitologias, histórias reais, músicas, histórias de storyverse (conexões criadas entre as histórias complementares) e/ 168
ou o passado das histórias de storyverse e/ou o futuro das histórias de storyverse. Todas essas histórias são distribuídas entre as mais diversas plataformas, como por exemplo: cinema, série de TV, literatura, flash mob, Twitter, smartphone, pod cast, dvd, tablet, site, YouTube, cd, websode, HQ, documentário, rádio, teatro, brinquedo, merchandise marketing, graphic novel, social game, evento ao vivo, Facebook, blog, Flickr, videogame, etc.
O público da cultura transmídia Vale observar agora qual seria o público desses novos produtos e/ ou processos colaborativos de produção de conteúdo. Décio Pignatari já definia, em 1969, ainda que de maneira enfática, o produssumo como a mudança do mundo do consumo pelo mundo da troca ou da informação. Naquele ano, Pignatari defendia que os modelos de consumo eram os mesmos da produção de quarenta anos atrás. Citava como exemplos o apoio coletivo na produção cultural de um Oswald de Andrade ou o tropicalismo do grupo de cantores e compositores de vanguarda da época. Via no conceito produssumidor a saída para o estudante frente ao seu dilema de ser um criador ou um operário da informação, buscando novos modelos de batalha informacional (PIGNATARI, 2004: 31-32). Décio Pignatari antecipou em mais de uma década a criação do conceito prosumer de Alvin Toffler (1980). Ambos os autores preconizaram o mesmo modelo econômico do futuro. Em 2008 surgiu uma última revisão desse conceito, o produser, mais configurado para o mundo digital, nas reflexões de Axel Bruns (2008). Esse mesmo público, em constantes reconfigurações nestes nossos tempos, enquanto está consumindo os produtos conformados na integração de mídias e narrativas, passa a ser chamado de vivenciador. O vivenciador é um jogador ou ator-rede — em conformidade com conceito actor-network estudado por Bruno Latour em seu livro Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory (LATOUR, 2005) — que desfruta de um conteúdo transmídia na sua plenitude. O vivenciador não está desenvolvendo uma relação contemplativa com os conteúdos e as plataformas da narrativa transmídia. Ele faz parte da história enquanto participa, tentando desenvolver certos enigmas ou identificar certos vínculos entre narrativas aparentemente desconexas. 169
A ampliação da narrativa transmídia Falar de narrativa transmídia também é aplicável até mesmo quando extrapola as plataformas e se faz presente no mundo real, isto é, desafia o vivenciador a buscar pistas e novas narrativas em ambientes reais, previamente elegidos pela produção. Sendo assim, o vivenciador participa de um drama seriado interativo, seja na web, em espaços físicos ou mesmo em ambos. Esse tipo de narrativa que mistura espaços virtuais e espaços reais hoje já é chamada de live transmedia, mas é mais conhecida como Alternate Reality Game. O ARG seria a transmídia levada às suas últimas consequências. O conceito ARG repercute uma concepção do teatro de Bertolt Brecht de quebra da quarta parede entre o ator e a plateia, criando uma experiência mais imersiva ao mesclar o espetáculo ao mundo real (BRECHT, 2005: 169-169). É um jogo que se joga alternando as realidades, isto é, utiliza a narrativa transmídia nos mais diversos meios de comunicação, mas também desafiam a sua audiência a participar de atividades em espaços públicos. Christy Dena desenvolveu um mapeamento muito completo desse tipo de transmídia (DENA, 2010). Entre alguns ARGs mais destacados temos: The Beast, de 2001, da Microsoft, para promover o filme Inteligência Artificial (Steven Spielberg, 2001); I Love Bees, 2004 para promover o game Halo 2, que para desvendar um único enigma (puzzle) produziu mais de 1700 horas de telefonemas; The Art of the Heist, 2005, com a participação do presidente da montadora Audi para promover o lançamento do Audi A3; Lost Experience, 2006, para manter os espectadores e fãs ligados à série enquanto a segunda temporada não era lançada; Year Zero, de 2007, da banda Nine Inch Nails, desenvolvido pelo seu único integrante, Trent Reznor, para promover o lançamento do novo álbum; Perplex City, de abril de 2005 a fevereiro de 2007, praticamente um ARG autossustentável, um dos únicos sem vínculos com empresas e produtos, permaneceu no ar por dois anos. Um grande exemplo de ARG brasileiro foi o Zona Incerta, realizado pela parceria entre a revista Superinteressante, publicação da Editora Abril, e a marca Guaraná Antarctica, da empresa de bebidas Ambev. A ideia original é de Denis Burgierman, Rafael Kenski e Renato Cagno. O editor-chefe é Rafael Kenski e o roteirista, André Sirangelo. Foi um total de seis meses de pré-produção, nove sites, trinta páginas da revista, 170
uma web série em vídeo, muitos encontros presenciais (chamados de lives), para desvendar uma grande conspiração com uma grande história durante quinze semanas.
Transmidiando La Invención de Morel Para o processo de transmidiação de La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares, é necessário elencar os elementos que dão condições à história ser contada em narrativa transmídia. Os principais fatores condicionais são: contar a história dividindo-a em partes, distribuir as partes pelas plataformas de mídia que melhor possam expressar aquela parte da história, basear a história em “em fragmentos de informação” de mitos pré-existentes, misturar com histórias do folclore e da mitologia, indicar informações que pareçam ser reais, oferecer o máximo possível de todo o passado da história contada, fortalecer o realismo com a câmera na mão, a atuação de improviso, etc., criar e animar um fórum de discussão e promover a criação de comunidade de fãs, estabelecer qual parte da história servirá para chamar a atenção da audiência, criar interconexões entre as partes da história e suas respectivas mídias, identificar as relações elaboradas entre personagens, verificar se a trama pode ser seriada e se expandir para além de uma única mídia, encontrar pistas: através de uma variedade de mídias; em fatos históricos reais; em ficções, compreensão adicional ativada por múltiplos textos para tornar a história viva para a audiência. Daí, seguir para a modalidade narrativa ARG e dominar suas especificidades. John Gosney define algumas características do ARG. O puppet master (titereiro) é a pessoa por trás da criação e execução de um ARG; é quem “puxa as cordas”, ou fios condutores da narrativa, de modo a apresentar as várias pistas ou chaves (indícios, vestígios) de um mistério e os elementos que abarquem o fluxo narrativo do ARG (GOSNEY, 2005: 31). Os outros elementos podem ser: mensagens por e-mail, sites, contatos por telefonia, correio, artigos ou classificados em jornais, canais de IRC, chats, mensagens instantâneas e outros como artefatos do mundo real ligados ao ARG, eventos do mundo real realizados por atores que interagem com os jogadores do ARG. O texto em transmidiação contém um protagonista — anônimo, mas neste projeto denominado Fugitivo — que, ao mesmo tempo, é o narrador da história e que neste projeto é o titereiro da transmídia a liberar ou represar a passagem de uma parte da 171
história e plataforma para outra. Outros conceitos são importantes para definir a estrutura narrativa do ARG, como o termo puppet-play ou a manipulação de uma personagem para levar os jogadores a resolver um puzzle. Para identificar eventos narrativos anteriores à história contada pelo livro, deve-se atentar para os seus elementos primordiais conforme definido por Dave Szulborski: uso da ilusão e interatividade para criar um sentido de engajamento ou agenciamento entre a audiência e qualquer mídia que o criador esteja trabalhando (SZULBORSKI, 2005: 212-213). A “máquina narrativa”, aqui pensada para o desdobrar da história, pretende alcançar o engajamento do público já pelo rabbit hole, outro elemento importante a se destacar. Ele é a primeira pista, como um texto ou um vídeo em listas de discussão e redes sociais. Por último, como a narrativa original do livro será expandida para o mundo real, isto é, teremos uma live transmedia, serão bem-vindos os recursos de localização por GPS-Global Positioning System, sistema de posicionamento global, um sistema de navegação por satélite. O geocaching é um jogo de aventura para usuários dos GPS e tem os mesmos tipos de abordagem do ARG e aqui resulta como o modo pelo qual o público se encontra com as personagens da história de Bioy Casares. Assim a narrativa será expandida pelos desenvolvimentos gerados pelos novos conteúdos dedicados a outras plataformas. Sendo o livro o diário de um preso político que descreve desde a sua fuga até a sua vida na ilha aparentemente desabitada onde se esconde, o dia a dia na ilha oferece constantes surpresas, como o aparecimento repentino de um grupo de amigos que passa uma temporada no local à uma estranha duplicação do sol. O fugitivo pensa sentir efeitos da fadiga, provocada pela fuga, e da mínima alimentação, mas essas primeiras hipóteses se revelam incorretas na medida em que ele toma conhecimento dos detalhes da ilha e sua história. Os dias passam e o protagonista se faz um observador contumaz do grupo de amigos e desenvolve uma paixão por uma de suas integrantes, Faustine. Ao finalmente procurá-la para se declarar é absolutamente ignorado, o que se repete invariavelmente em todas as oportunidades até que ele descobre que ela não passa de um tipo inusitado de projeção 172
voltado para todos os cinco sentidos. Assim é tudo que diga respeito à vida naquela ilha: todos os amigos, o sol, etc. Essas projeções diárias são resultado da máquina inventada por Morel, que também é integrante do grupo. O fugitivo, ou refugiado, que seria um escritor venezuelano, tem os seguintes relacionamentos concretos: Dalmacio Ombrellieri, que era um comerciante italiano de tapetes em Calcutá e ajudou o fugitivo antes de ir a Rabaul; o mafioso siciliano, mora em Rabaul, Papua-Nova Guiné, fornece o barco roubado para Fugitivo ir à ilha; Elisa, venezuelana, é a amada de Fugitivo antes dele ser preso; Orduño é um escritor venezuelano, ídolo de Fugitivo e de outros jovens escritores. Os vínculos de Morel, um grande cientista, renomado gênio, “barbudo pálido”, e seus amigos presentes na ilha, são os seguintes: Faustine, uma mulher distante, “vasta cigana de enormes olhos”, dizem parecida com a atriz Louise Brooks; Haynes, que dorme durante o discurso de Morel; Dora, “de cabelos louros, ondulados, muito risonha, com a cabeça grande e levemente curvada para a frente, como um cavalo brioso”, amiga íntima de Alec e Faustine; Alec, “escrupulosamente penteado, com tipo oriental e olhos verdes, tentou falar dos seus negócios de lãs” ... “jovem oriental e verdenegro”; Stoever, que entende que todos que estão prestes a morrer; Irene, “moça alta, de peito afundado, braços extremamente longos e expressão de nojo” só “tricotava”, nas palavras do autor; Jane Gray, senhora de idade, estava sempre junto de Dora, bêbada durante a reunião; os amigos de Morel que não estão presentes na ilha — porque, provavelmente, por culpa de Morel, morreram antes — eram: Claude, Madeleine, Leclerc e Charlie. Essas personagens permanecem no histórico e na bíblia da narrativa transmídia, mas, para os novos conteúdos e plataformas, a história atualizada e desdobrada seria resumida assim: em um futuro próximo, em uma grande metrópole, no centro político de seu país, no escritório do setor de investigações especiais da polícia federal, uma investigadora jovem e uma delegada de meia idade, respectivamente, lideram uma equipe destacada para lidar com as repercussões da nova crise financeira mundial, considerada uma repetição da crise de 2008, com os mesmos responsáveis indivíduos ou grupos históricos. A equipe é complementada pelo chefe de tecnologia de informação e comunicação do setor, sempre envolvido com os seus dispositivos móveis, sempre em tom irônico e sarcástico, mas imprimindo certa lucidez. 173
Do outro lado da cidade, um antropólogo e ex-professor universitário, rapidamente será integrado à equipe porque possui os conhecimentos necessários de redes sociais digitais que, em boa parte, dão substância para as mais diversas manifestações, sejam elas pacíficas ou vândalas. A outra integrante externa à polícia vem de uma universidade, é superdotada e muito experiente em mídias móveis e tecnologia digital em geral. Em 2010, os pais da jovem investigadora (então com dezoito anos de idade) desaparecem sem deixar vestígios. O único vestígio deles são vídeos que, inexplicavelmente, aparecem nas telas conectadas à internet. Outras plataformas e conteúdos se somam se complementam, principalmente através de cabines abertas ao público, disponíveis em pontos urbanos de grande movimento de pessoa. A cabine “escaneia” as pessoas que em alguns momentos da série aparecem com figurantes que efetivamente interferem na narrativa. Verifiquemos agora como essa história pode receber os elementos configuradores da narrativa transmídia. As personagens originais da história permanecem nos dados para exercer certa influência na obra. Dela, a história principal estará em uma série de TV. Por si só, a história já tem uma premissa que corresponde a um primeiro elemento que é a história complexa. Estamos diante de uma narrativa, a do fugitivo no tempo presente, sobreposta à outra narrativa, a do grupo de amigos no tempo passado. O que muito facilita a aplicação do primeiro elemento elencado acima: a divisão da história em partes. Essas duas histórias podem ser apreciadas em um mesmo meio de comunicação, por exemplo uma série de TV, como o seu diálogo entre os tempos dos núcleos narrativos. Cada uma dessas histórias tem as suas referências no passado, dada a habilidade em narrativa complexa do autor Bioy Casares. Correspondendo ao segundo elemento, as referências ao passado de cada narrativa poderiam ser conhecidas em sites, blogs, etc. O recurso de utilizar mitologias, mitos, folclore pré-existentes nos oferece um manancial de estímulos narrativos, como: o Ciclope, da Odisseia de Homero; o efeito da pintura de Roderick Usher que subtrai a vida de Lady Madeline, em A queda da casa de Usher, de Edgard Allan Poe; ou o tipo de raio laser que digitaliza Kevin Flynn e o transporta para o mundo virtual no romance familiar hipermoderno Tron, dirigido e escrito por Steven Lisberger. Sobre a condição de parecer real o livro foi escrito com essa intenção, em 174
que pese a confusão de sentidos propositalmente definida para levar o leitor às mesmas sensações do protagonista. O passado de todas as personagens já é introduzido pelo autor, o que facilita sobremaneira a sua ampliação. As interconexões entre as narrativas, suas serializações, inclusão de documentos reais, enigmas e pistas certamente virão com o esforço em criar fóruns e comunidades de fãs.
Considerações finais Assim, este estudo tratou da conceituação de narrativa transmídia, dos seus exemplos práticos, dos seus elementos específicos e da sua aplicação em uma obra literária. A maioria dos projetos de arte e comerciais, bem como o foco de teóricos e analistas, sejam no campo do entretenimento, do jornalismo ou corporativo, voltam o seu foco para uma comunicação cada vez mais complexa. Tal complexidade se dá tanto no âmbito das histórias quanto das múltiplas plataformas de mídias. A atual cultura contemporânea urbana via rede mundial de comunicação on-line tem a seu favor, além de ligar milhares de pessoas simultaneamente, a característica de agregar meios de comunicação, integrando-os e ampliando-lhes o potencial comunicacional. A narrativa transmídia, mais que um conceito, vem desempenhar seu papel como o processo que dá vazão a essas peculiaridades tão significativas do mundo contemporâneo. Destacam-se as suas características de um sistema de narrativas integradas e complementares na comunicação. Essa possibilidade de integração de conteúdos e de meios de comunicação, que está no cerne da narrativa transmídia, é um ideal buscado e proposto por diversos teóricos e artistas. Dessa maneira, observamos o livro La invención de Morel, de Bioy Casares. Todo o enfoque das atividades se dá sobre a criação de narrativas no âmbito específico da sua transmidialidade em que o deslocamento de seu espectador entre as mais diversas mídias bem como a sua participação — como debatedor ou mesmo autor de narrativas adicionais complementares — é o que efetivamente lhe permitirá conhecer o todo da história. Desse modo, também tentamos contribuir com a reflexão teórica acerca da conceituação e das características do processo de transmidiação a partir de uma importante obra literária. É possível que a transmidiação e a literatura fantástica tenham uma relação muito mais próxima do que 175
se poderia imaginar antes da criação dos recursos de telefonia móvel, internet sem fio e todos os dispositivos móveis que fazem uso desses serviços. São elementos estruturantes do desenvolvimento da história, as técnicas e as tecnologias que possibilitam os múltiplos pontos de vista, a permeabilidade entre as narrativas (que são ao mesmo tempo autônomas e interferentes entre si), a aplicação de diferentes gêneros e a promoção de sensações e emoções. Assim, a transmidiação de La invención de Morel tende a prosseguir pulsante, pervasiva em sua hiper-realidade, porque os vivenciadores são coautores durante e depois de toda a vivência.
Referências BIOY CASARES, Adolfo. La invención de Morel. Madrid: Alianza, 2012. BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2003. BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. BRUNS, Axel. Wikipedia, second life, and beyond from production to produsage. New York: Peter Lang, 2008. CASTELLS, Manuel; Fernández-Ardèvol, Mireia; Qiu, Jack Linchuan; Sey, Araba. Comunicación móvil y sociedad, una perspectiva global. Barcelona: Ariel, 2007. DENA, Christa. ARGs Around the World – Part 1. Christy’s corner of the universe. 2010. Disponível em: http://www.christydena.com/online-essays/worldwideargs1/. Acesso em: 31 jan. 2016. GOLICK, Jane. Story universe. 2010. Disponível em: http://www.jillgolick.com/wp-content/ uploads/2010/04/transmedia-storytelling.jpg. Acesso em: 31 jan. 2016. GOSCIOLA, Vicente. Narrativa transmídia: Conceituação e origens. In: Denis Porto Renó, Carolina Campalans e Vicente Gosciola (orgs.), Narrativas transmedias: entre teorías y prácticas. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2012. GOSNEY, John Will. Beyond reality: a guide to alternate reality gaming. Boston: Thomson, 2005. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014. JENKINS, Henry. Searching for the origami unicorn: The Matrix and transmedia storytelling. Convergence Culture, New York: New York University, 2006. LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. New York: Oxford University, 2005. MURRAY, Janeth. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural/ Unesp, 2003. PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. Cotia: Ateliê, 2004.
176
PRATTEN, Robert. Transmedia in pictures. Zen Films, 2009. DisponĂvel em: http://zenfilms.typepad. com/zen_films/2009/09/transmedia-in-pictures.html. Acesso em: 31 jan. 2016. SIMON, Phill. The age of the platform. Las Vegas: Motion, 2011. SZULBORSKI, David. This is not a game: A guide to Alternate Reality Gaming. Raleigh: Lulu.com, 2005. TOFFLER, Alvin. The third wave. New York: Bantam, 1980
ISBN - 978-85-906623-7-2
9
7 8 8 5 9 0
6 6 2 3 7 2