Re_Pensar a Democracia

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CARLOS MAGALHÃES nasceu em Valença no ano de 1954 e reside na Maia desde 1998. Frequentou o Curso de Medicina da Universidade do Porto, concluiu os Ciclos Básico e Especial de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes do Porto e o Curso de Doutoramento em Estudos do Património da Faculdade de Letras do Porto.

Foi Professor do Ensino Secundário e Superior durante cerca de quarenta anos, tendo lecionado, entre outras, as disciplinas de História da Arte e de Geometria Descritiva e desempenhado todos os cargos diretivos e pedagógicos.

Além da sua obra O Triângulo da Democracia, publicou livros de poesia, de história, de património local e de pedagogia e é autor de numerosos textos para catálogos de mostras de arte e património.

No plano da intervenção cívica e política tem abraçado vários projetos e animado encontros, fóruns, conferências e tertúlias.

Fundou a associação ARGO – Artistas de Gondomar, o MCD –Movimento de Cidadania Democrática e é dirigente da PASC –Casa da Cidadania.

MANUEL AUGUSTO DIAS nasceu em Ansião no ano de 1956 e reside em Ermesinde desde 1983. É licenciado em História pela Universidade Coimbra (1980) e mestre em História das Instituições e Cultura Moderna e Contemporânea pela Universidade do Minho (1999).

RE PENSAR A DEMOCRACIA

Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

Presentemente colabora nos seguintes jornais: Serras de Ansião, A Voz de Ermesinde (de que é diretor), Luz (Santiago da Guarda), Beira-Douro (editado no Porto), Tribuna Pacense (Paços de Ferreira), Jornal de Notícias (Porto) e Diário de Leiria. Tem dezenas de artigos publicados em revistas especializadas em investigação histórica.

É sócio da Associação Sindical de Professores Licenciados (de que é fundador e dirigente) e da AGORÁRTE – Associação

Cultural e Artística (Ermesinde), em que é presidente da direção, que tutela a Universidade Sénior de Ermesinde, onde também é docente.

Tem dezenas de livros publicados, sobretudo sobre a temática da república em Portugal, e tem apresentado comunicações em diferentes congressos, debates e colóquios, de âmbito regional e nacional.

RE_PENSAR A DEMOCRACIA

Carlos Magalhães

Manuel Augusto Dias

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.

Reprodução proibida por todos e quaisquer meios.

Título. Re_Pensar a Democracia

Autores: Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

Revisão: Os autores e Ilda Pinheiro

Capa: Raúl Ribeiro

Edição: Câmara Municipal de Valongo

ISBN: 978-989-35263-3-0

Depósito legal: 530537/24

Impressão: www.tipografialessa.pt

1.ª edição: abril de 2024

Para a Clara, o Duarte, a Isabel e o Miguel, na esperança de um mundo melhor onde a democracia não seja uma palavra vã.

A democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo

Abraham Lincoln

Quando os governados não se conseguem livrar da opressão dos que governam mal, é despotismo. Quando conseguem, é democracia

Claude-Adrien Helvétius

A liberdade é difícil de conquistar e fácil de perder

Ken Follett

Fala-se da democracia como se tivéssemos chegado ao fim da História, quando sabemos bem que não há regimes políticos eternos

Manuel Maria Carrilho

O amor da democracia é o da igualdade

Montesquieu

A capacidade do homem para a justiça faz a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça faz a democracia necessária

Reinhold Niebuhr

Na luta contra o ceticismo, a democracia deverá ocupar o lugar das primeiras linhas, não se embevecendo ou anquilosando

Vasco da Gama Fernandes

Desaprovo o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo

Voltaire / Tallentyre

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Agradecimentos

António Cândido Ferreira

José Manuel Ribeiro

Mário Duarte

Nuno Garoupa

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PREFÁCIO

Ler o Re_Pensar a Democracia de Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias é dar ao espírito um banho lustral. Visitar, um após outro, pensadores que ao longo de vinte seis séculos meditaram e escreveram sobre um sistema de governo, sem violência, que procura ser, em geral, bom para todos e que obtenha de todos uma participação cívica, pelo menos através do voto, é um exercício de prazer cívico e intelectual que se recomenda.

Em boa hora os autores aceitaram o desafio colocado pelo Município de Valongo para escreverem este livro sobre democracia. Re_Pensar a Democracia, para além do seu interesse global, revela-se igualmente um instrumento muito competente para promover o debate político informado no concelho e serve, por isso, os projetos pedagógicos e de formação cívica e cultural em que a Câmara Municipal de Valongo tanto se tem empenhado. É um bom exemplo de investimento municipal justificado.

A democracia é uma forma de organização política de tal forma potente que a história da humanidade não conhece até hoje nenhuma sociedade em que outro sistema político tenha produzido melhores resultados. Não são só resultados morais, éticos, mentais ou simbólicos, como o humanismo, o Estado de Direito, a liberdade religiosa, o grau de conhecimento ou a vitalidade cultural. São também resultados profundamente materiais, como a prosperidade social, a qualidade das infraestruturas, o nível de inovação e de competitividade das economias, a segurança na doença, no desemprego ou na velhice, ou a capacidade para defender a soberania dos Estados.

Com todas as suas fragilidades – e são muitas! –, com toda a enorme necessidade que tem de ser cuidada e protegida ao longo dos anos pelas comunidades, a democracia, consegue, todavia, sempre melhores resultados do que os outros regimes com que se mede e compara. Sejam eles aristocracias, ditaduras, cleptocracias ou anarquias, esses regimes ficam sempre aquém, sobretudo para as suas populações, dos resultados económicos, sociais, de conhecimento e culturais das democracias.

Ninguém se iluda: a tarefa das democracias não é fácil! Veja-se, aliás, como estas estão a ser postas à prova no século XXI por potências não democráticas como a Rússia, a China ou o Irão. Está a ser difícil, está a ser muito duro, tanto mais que populismos autoritários estão a florescer no interior das próprias democracias ocidentais, fragilizando-as momentaneamente.

É, porém, espantoso como esta flor delicada e frágil que é a democracia consegue gerar mais conhecimento, consegue produzir mais inovação e, com isso, mais resiliência para resistir e, a seu tempo, suplantar de forma clara, uma vez mais, as autocracias internas e externas que a ameaçam.

Afirmar isto, e fazê-lo com confiança, não é ignorar o momento difícil que o mundo atravessa em 2024. Um pouco por todo o lado, as sociedades democráticas têm desenvolvido um sentimento de crise relativamente aos níveis de envolvimento cívico das

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comunidades e à própria legitimidade do seu sistema político, como Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias bem assinalam ao longo deste livro.

Este sentimento tem sido agravado pela emergência de fenómenos populistas que, mesmo em regiões do globo com sistemas democráticos consolidados, tornaram a vida social e política menos livre, menos plural, e com muito menos condições efetivas para implementar políticas públicas que desenvolvam o crescimento económico, fomentem a qualidade de vida de forma transversal e inclusiva e promovam a igualdade de oportunidades em todas as classes sociais.

A resposta que é necessário dar a este sentimento difuso de mal-estar tem que contar, entre outros contributos, com o reforço dos mecanismos da democracia participativa. Os processos participativos, quer pela forma como sintetizam diferentes sensibilidades do tecido social através do interclassismo e da liberdade de expressão, quer pelo modo como se articulam as suas decisões com os governos locais, são fundamentais para navegar na complexidade política dos próximos tempos. Num mundo polarizado em torno de guerras que transmitem instabilidade, radicalização e medo a todos os continentes, a democracia participativa é fundamental para impulsionar mudanças significativas.

A democracia participativa, ao procurar o equilíbrio, a sustentabilidade e a moderação, o consenso e o compromisso, tem todas as condições para, nas próximas décadas, se afirmar perante os governos eleitos como uma referência incontornável para a implementação de reformas que melhorem as comunidades de forma transversal e inclusiva. Desta forma, ao propor estratégias de mudança politicamente informadas e adequadas aos recursos existentes para as concretizar, a democracia participativa constituir-se-á como o cerne das democracias do século XXI e como uma barreira competente, e tolerante, às ameaças populistas.

Neste capítulo, Valongo tem uma palavra a dizer. Sendo o município que preside em Portugal à Rede das Autarquias Participativas, sabe bem que os mecanismos participativos melhoram as escolhas políticas e valorizam e qualificam todos os elementos da comunidade.

A participação dos cidadãos que se promove em Valongo e em milhares de cidades, municípios e regiões em todo mundo é um exercício de poder! É o exercício de uma soberania que, de facto, aumenta o poder transformador das políticas públicas em que os cidadãos intervêm. Não são micro alterações o que produzem: são mesmo grandes alterações.

É preciso deixar claro que este exercício de soberania por parte do povo não põe em causa a legitimidade democrática que os políticos eleitos recebem através do voto. Pelo contrário: os políticos têm de manter intacta a autoridade democrática que recebem através do voto livre e universal! Devem é reforçá-la incluindo os contributos dos cidadãos para melhorarem as suas decisões executivas.

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Tenho afirmado em diversas ocasiões que a democracia representativa e a democracia participativa são como duas irmãs gémeas: crescem uma com a outra, aprendem uma com a outra. Porém, também sofrem uma com a outra! Se uma é atacada, a outra fica igualmente fragilizada.

As práticas participativas estão a mostrar de forma muito eloquente que a democracia não é só, nem sobretudo, “a decisão da maioria”. A democracia não se resume ao dia das eleições e à substituição pacífica de um governo por outro. Democracia é também o bom funcionamento das suas instituições, o respeito pelas suas regras e um forte e esclarecido “envolvimento cívico” na vida da democracia.

Num processo que implica cidadãos de diferentes géneros, idades, formação académica e condição social, mais do que o resultado da escolha, importa a forma como eles formaram a sua proposta em conjunto, como a apresentaram aos governantes eleitos e se bateram pela sua concretização, obtendo a sua concordância. E, também, pela forma como depois acompanham a execução da decisão política por parte dos serviços públicos.

Para a resiliência democrática das comunidades, é tão ou mais importante este processo de envolvimento do que, propriamente, o resultado material obtido no final.

Porém, como constata o filósofo espanhol Daniel Innerarity, “as democracias são sistemas mais inteligentes”, também, ou sobretudo, “em momentos de crise”. Ao promoverem e integrarem a participação de muitos atores institucionais e dos próprios cidadãos em circunstâncias de liberdade e de autonomia, os projetos democráticos geram mais inovação e eficiência e, por isso, conseguem produzir decisões e estratégias com resultados objetivamente mais eficazes. Ao garantir, pela participação dos cidadãos, maiores níveis de eficácia, “a democracia obtém uma estabilidade maior do que qualquer outro sistema político”, conclui Daniel Innerarity.

Quando lhe foi atribuída a organização da 23ª conferência do Observatório Internacional da Democracia Participativa – OIDP em 2024, Valongo argumentou “que é precisamente por corporizarem integralmente o material genético ancestral das democracias, que os processos participativos representam em si próprios as virtudes dos sistemas democráticos e das suas regras e processos”.

É precisamente por isso que os processos participativos se constituem como escolas de práticas democráticas e, nessa medida, como verdadeiras incubadoras de resiliência democrática e de barreira aos autoritarismos e aos populismos nas comunidades em que funcionam. Para além disso, repito, os mecanismos de democracia participativa melhoram a qualidade das políticas públicas. A intervenção dos cidadãos aumenta o poder transformador dessas políticas. Os contributos dos funcionários e dos cidadãos tornam os serviços públicos mais eficientes e mais úteis. Em resumo, as práticas participativas no poder local melhoram toda a gente, individual e coletivamente.

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Esta prática democrática, esta forma de fazer política e de liderar cidades, regiões e países, é a melhor forma de concretizar os dois princípios de governação que John Rawls enunciou e que os autores deste livro citam: “O direito à liberdade política e a garantia da igualdade de oportunidades para todos”.

A verdade é que – e volto a citar Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias – “no mundo ocidental pós-moderno a democracia já é um valor civilizacional e não se aceita outro poder legítimo que não o que resulta da investidura popular”. É isto! A democracia – a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a radical igualdade dos Homens perante a lei, a separação de poderes e o primado da justiça –, esta flor frágil que é uma potência política, transformou-se num “valor civilizacional”.

Quando Portugal comemora os cinquenta anos do 25 de Abril, vale a pena lembrar outro autor citado neste livro, Alexis de Tocqueville, pela principal conclusão que ele retirou da viagem aos Estados Unidos que resumiu no livro Da Democracia da América: “Nada produz maiores maravilhas do que a arte de ser livre”.

Valongo, 10 de abril de 2024

José Manuel Ribeiro

Presidente da Câmara Municipal de Valongo

Membro do Comité Europeu das Regiões

Presidente do Observatório Internacional de Democracia Participativa

Presidente da Rede de Autarquias Participativas

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

PREÂMBULO

Este (re)pensar da democracia intenta fomentar a discussão sobre os conceitos associados ao termo “democracia” e a sua aplicabilidade no mundo contemporâneo.

Entre as variantes do exercício democrático nas sociedades modernas contam-se três “modelos” fundamentais: da democracia representativa, da democracia participativa e da democracia deliberativa, a que acrescem os da democracia direta e da democracia pós-representativa, que os complementam.

A democracia direta não é propriamente um modelo, mas um instrumento, aliás cada vez mais em desuso na civilização ocidental, e há quem ainda defenda a democracia por sorteio, mas esta, pela natureza do poder político atualmente instituído, é hoje uma miragem. Também a chamada democracia pós-representativa é pouco mais que um mero semblante no horizonte longínquo.

Muitos autores tendem a mesclar os conceitos de democracia representativa, participativa e deliberativa, que naturalmente interagem, mas que nutrem nuances que os singularizam e que se pretendem aqui descortinar.

A propósito do “regime” democrático, e face ao ceticismo quanto à perfeição da democracia, é sobejamente conhecida a afirmação de Winston Churchill, proferida na Câmara dos Comuns em 1947, que a democracia é a pior forma de governo à exceção de todas as outras que foram experimentadas de tempos em tempos.

Ou a de Jean-Jacques Rousseau, no seu Contrato Social, que se houvesse uma nação de deuses seria governada democraticamente, mas um governo tão perfeito não é apropriado para os homens.

Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Grande Reich, afirmou que a democracia dá aos seus inimigos os meios para destruí-la.

De Groucho Marx conhece-se a frase que diz que a política é a arte de procurar problemas, encontrá-los por todo o lado, diagnosticá-los erradamente e aplicar as piores soluções.

Já Bernard Shaw afirma que a democracia é um sistema que garante que nunca seremos governados pelos melhores ou melhor do que aquilo que merecemos.

Também Karl Popper escreveu que, em democracia, apesar de esperarmos ser governados pelos melhores, devemos estar preparados para ser governados pelos piores. Ou, na mesma linha, a frase lapidar de Margaret Thatcher, que a democracia não é um sistema feito para garantir que os melhores sejam eleitos, mas para impedir que os piores fiquem para sempre.

Na conhecida frase de George Orwell em O Triunfo dos Porcos, substituindo animais por homens, todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.

Mais otimistas são os nossos Domingos Monteiro e António Cândido de Oliveira, quando escrevem que a democracia se caracteriza pela igualdade de todos em face do poder e da lei, o primeiro, ou que a democracia é uma forma de governar que não prescinde da vontade dos cidadãos livremente expressa, o segundo.

Ou, por último, Hans Kelsen, numa visão mais redonda e a contrario sensu, quando afirma que a democracia é apenas uma forma de criação da ordem social.

Hoje falar de democracia é falar de política, porque política é a “ciência” que tem como objeto o exercício e as relações de poder na sociedade e a sua dinâmica evolutiva.

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Como diz Vasco da Gama Fernandes, democracia tem o seu antónimo em autocracia, sistema político em que o povo não intervém com o exercício livre da sua cidadania na modelação da coisa pública, que não reconhece o povo como entidade moral e social.

Com este trabalho procura-se também escalpelizar as várias “dimensões” da democracia, socorrendo-se os autores da sua própria experiência e de obras e textos publicados a propósito, da antiguidade clássica aos nossos dias.

Conceitos mais recentes como os da democracia delegativa e da deliberação cívica, ou visões como a crise da democracia, o reinventar da democracia e o futuro da democracia, não deixam de fazer parte deste trabalho, correlacionando sempre com a natureza funcional representativa, participativa e deliberativa da democracia que enforma o desenvolvimento da presente reflexão.

No final da primeira década deste século, autores como John Keane (2010: Vida e Morte da Democracia), Benjamin Isakhan e Stephen Stockwell (2011: Democracy and History, in The Secret History of Democracy), apontam uma nova conceção historiográfica da democracia. Para os dois últimos autores a história da democracia é redutora porque se baseia na inclinação dos países da Europa ocidental para a democracia e na tendência dos países do leste europeu e não europeus para o despotismo. Socorrem-se de exemplos de experimentos democráticos ao longo do tempo e em várias partes do mundo para fundamentar a sua visão “não tradicional” da história da democracia.

Também para Jean-Paul Gagnon (2011: A Potential Demarcation Between “Old” and “New” Democratic Theory) a democracia não é grega, europeia ou americana, mas propriedade histórica da humanidade como um todo.

Para além das referências bibliográficas sobre a evolução da democracia desde a época pré-clássica até aos nossos dias, incorpora-se ainda no texto deste livro o pensamento de algumas personalidades que, no nosso país. têm travado autênticos libelos na defesa intransigente do “regime” democrático e na prossecução do desígnio de o qualificar e melhorar, pensamento expresso tanto nas entrevistas, debates ou conferências em que participaram como nos textos que publicaram, como é, por exemplo, o caso de Paulo Trigo Pereira, de Manuel Arriaga e de José Ribeiro e Castro, de matrizes ideológicas diferentes. Ou, no plano internacional, de figuras como Hannah Arendt, Robert Dahl e Norberto Bobbio.

Mas esta obra não pretende ser exaustiva em matéria da história da democracia, tão-pouco aventar quando surgiu pela primeira vez a democracia na sociedade humana, outrossim inferir da história o que nos parece relevante para a compreensão da democracia política moderna. Claro que, quando se fala de democracia numa perspetiva histórica, são incontornáveis as referências a Atenas e a Roma, ao parlamentarismo inglês, às revoluções americana e francesa e à expansão da democracia pelo mundo com o fim da Guerra Fria.

Assim, os experimentos “democráticos” da época pré-clássica ou das sociedades tribais mais modernas, por exemplo, não serão desenvolvidos sobremaneira neste ensaio. Aliás, autores como Alexis de Tocqueville (primórdios da democracia norte-americana), Christopher Boehm (democracia pré-clássica), Benjamin Isakhan (médio oriente) e George Novack (comunas medievais), só para referir estes, têm abordado e estudado essas formas embrionárias de democracia numa perspetiva inovadora a que não estamos muito habituados.

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Por outro lado, nesta nossa obra, é possível vazar conteúdos de uns capítulos para outros, numa perspetiva do passado e do futuro, do devir e do porvir, do essencial e do acessório.

Não pretendem os autores, neste trabalho de reflexão e de divulgação, encontrar e enumerar respostas e soluções, tarefa árdua a que têm deitado mão investigadores, historiadores, sociólogos e políticos.

Pensar ou repensar a democracia tem sido o mote de algumas publicações em língua portuguesa nos últimos anos, mas não muitas infelizmente. Lembramo-nos, por exemplo, de Pensar a Democracia para Portugal, incomodamente de Vitorino Magalhães Godinho (1976), de um artigo do brasileiro Paulo Márcio com o nome de Repensar a Democracia (2019) ou da obra coletiva de autores portugueses Pensar a Democracia (2017) com prefácio de Noam Chomsky.

Atualmente perpassa na imprensa e nos demais canais de comunicação, bem como em alguns escritos, que é condição sine qua non para que um sistema de governo seja reconhecido como democrático a ocorrência de eleições regulares, livres e universais. Não deixa de ser verdade, mas trata-se da visão simplista, senão redutora, do regime democrático que procuraremos transcender ao longo deste nosso ensaio.

Joseph Schumpeter (1942: Capitalism, Socialism and Democracy) criticou a “teoria clássica da democracia”, baseada na vontade do povo e no bem comum, a que contrapôs uma “outra teoria da democracia” em que o procedimento central é a escolha dos líderes através de eleições competitivas.

Por outro lado, o nosso “repensar” a democracia não significa causticar o conceito, antes pelo contrário conferir-lhe a dignidade que merece, procurando encontrar nos meandros intrincados da democracia resquícios de bolores autoritários que a procuram desvirtuar.

Move-nos a crítica positiva dos processos e procedimentos que a malsinam, na senda das palavras de Fernando Condesso quando afirma que a democracia, além de ser a única solução política institucional que resiste ao tempo e que nos resta defender, não se mostra perfeita na prática, pelo que merece críticas construtivas e exige alterações funcionais que visem a melhoria da ideia subjacente e os seus fundamentos (2011: Portugal em Crise. Pela Reforma Global do Sistema Político e das Políticas Públicas). Respingue-se, finalmente, que este estudo não se enquadra na esfera de influência da Filosofia política, porquanto só à Democracia importa, enquanto forma de governo e regime político, nem pretende abordar a democracia no sentido mais lato do termo, enquanto sentimento pessoal, procedimento coletivo e modo de vida.

Os autores assumem também o papel de coordenadores num trabalho que resulta sempre inacabado, dada a riqueza do tema e a grandeza que o legitima.

Abril de 2024

Carlos Magalhães

Manuel Augusto Dias

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias
RE_PENSAR A DEMOCRACIA 17 ÍNDICE . INTRODUÇÃO 19 1. DEMOCRACIA: PALAVRA, CONCEITO E HISTÓRIA 27 1.1. Termo e conceito 27 1.2. Democracia e formas de governo 29 1.3. Democracia primitiva 36 1.4. Democracia na Antiguidade Clássica 39 1.5. A democracia comunal e as Repúblicas italianas 45 1.6. Política e democracia, da Antiguidade à Idade Moderna 46 2. AS REPÚBLICAS: EVOLUÇÃO PARA A DEMOCRACIA 55 2.1. A República Norte-americana 56 2.2. A Revolução Francesa e a proclamação da república 59 2.3. República e democracia 68 2.4. Soberania popular e parlamentarismo 74 2.5. República e soberania popular 81 2.6. Sociocracia e republicanismo 86 2.7. Monarquia e República 88 3. A REPÚBLICA EM PORTUGAL 97 3.1. A politização do povo na I República 97 3.1.1. O caso de Ansião 97 3.1.2. O caso de Gondomar 110 3.1.3. O caso de Valongo 123 4. DAS DITADURAS À III REPÚBLICA 135 4.1. A Ditadura Militar 135 4.2. O Estado Novo 136 4.3. O 25 de Abril de 1974 144 5. O MUNICÍPIO DE VALONGO NO PÓS-25 DE ABRIL 147 6. DEMOCRACIA E CIDADANIA 155 6.1. O papel do cidadão na ideia de democracia 155 6.2. Liberdade e igualdade na democracia política 156 6.3. O princípio democrático da separação de poderes 163 6.4. A teoria dos círculos virtuosos ou viciosos na política 165 6.5. Democracia direta e por sorteio 167 6.6. Democracia representativa, participativa e deliberativa 170 6.7. Democracia pós-representativa 182 6.8. Democracia e ideologia 184 6.9. Democracia e autoritarismo 187
18 Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias 7. OS NOVOS CAMINHOS DA DEMOCRACIA 189 7.1. Poliarquia e democracia 189 7.2. Democracia Cognitiva 190 7.3. Reinventar a democracia 192 7.4. O futuro da democracia 193 7.5. Democracia líquida ou “delegativa” 195 7.6. A deliberação cívica 198 7.7. Democracia na era digital 200 8. O FUTURO DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL E NA EUROPA OCIDENTAL 205 . CONCLUSÃO 219 .BIBLIOGRAFIA 223 Livros 223 Outras fontes impressas 233 Manuscritos 236 Links 236 . A DEMOCRACIA PRECISA DE DEMOCRATAS _____________________ 239 . A IDEIA DE LIBERDADE 251 . A DEMOCRACIA PORTUGUESA EM CRISE: A LIÇÃO APRENDIDA ___________________________________________ 253

. INTRODUÇÃO

Neste modesto contributo para a compreensão do que é a democracia, da sua história e conceito, os autores abordam principalmente o termo na aceção restrita de modo de governo e de regime político, não no sentido lato de democracia como modo de vida ou de relação interpessoal.

Para a maioria dos cidadãos, hoje democracia é sobretudo sinónimo de bom governo ou de justiça social. Para Bernard Crick (1929-2008)1, “o bom governo deve ser democrático, tanto no sentido institucional como social, mas deve também incluir as liberdades individuais, os direitos humanos, o progresso económico e a justiça social - o que é algo mais do que a igualdade dos direitos políticos”2 .

Mas aqui acresce a primeira dúvida em relação ao conceito, que não ao termo “democracia” que os gregos terão começado a utilizar no último terço do século V a.C. e que está sobejamente explicado do ponto de vista etimológico. No significado da palavra prevalece o princípio da Liberdade ou o da Igualdade, ou nenhum deles tem predominância sobre o outro?

Explanaremos mais à frente esta dicotomia que tem ocupado a filosofia política desde a Antiguidade Clássica, como por exemplo em Sócrates quando contrapõe a liberdade de pensar e de julgar ao espírito da igualdade participativa na tomada das decisões do Conselho, posição que ditou a sua ulterior condenação à morte (399 a.C.). Na sua Apologia de Sócrates, escreve Platão: “Na verdade, ninguém viverá, se ousar opor-se aos juízes, ou às assembleias públicas, increpando-os de injustiças ou irregularidades”3 . Costuma dizer-se que a democracia foi inventada na Grécia antiga, mas a igualdade de direitos dos cidadãos e a soberania popular é muito anterior aos gregos. Autores, como Jacques Pirenne (1891-1972)4, falam nessas premissas do sistema democrático na III dinastia do antigo Egito quando triunfa o individualismo, esmorecem as classes nobres e privilegiadas e todos os egípcios, homens e mulheres, têm direitos iguais5. Ou quando mais tarde, já no 1.º milénio a.C., com as reformas dos faraós Aquenáton e, sobretudo, Horemebe, não há outra autoridade senão aquela imposta pelo Estado, que garante a todos o exercício das liberdades individuais6. Outros autores, como Raymond Gettell (1881-1949)7, apontam o contributo das antigas

1 Teórico político inglês do século XX, autor de In Defence of Politics (1964).

2 CRICK, Bernard (2002) – A Democracia, tradução de Carla Hilário Quevedo para a edição em língua portuguesa de 2006. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, p. 93.

3 PLATÃO (399 a.C.?) – Apologia de Sócrates, introdução e notas de Manuel dos Santos Alves para a edição em língua portuguesa de 1990. Lisboa: Universitária Editora, p. 77.

4 Historiador e jurista belga do século XX, membro da Real Academia da Bélgica.

5 PIRENNE, Jaques (1961) – Histoire de la Civilisation de l’Égypte Ancienne, volume 1. Paris: Éditions Albin Michel, p. 16.

6 Ibidem, p. 21.

7 Professor americano da primeira metade do século XX, que integrou e chefiou o departamento de Ciência Política da Universidade da Califórnia, Berkeley, de 1923 até à data da sua morte.

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civilizações indiana (hindu) e chinesa para a formação de uma consciência política, ao contrário dos impérios persa e assírio, em que as comunidades não se interrogavam sobre a natureza da autoridade e a melhor forma de organização governamental, ou mesmo sobre qualquer conceção de liberdade individual8, sem a qual não é possível o desenvolvimento da consciência democrática e do conceito de soberania. Escreve ainda Gettell que somente os hindus e os chineses parecem ter alcançado doutrinas de igualdade humana e ideais de democracia9.

Sobre os hebreus escreve Joaquín Naranjo10 que são os representantes mais genuínos da raça semítica e que a sua história é uma luta permanente contra o despotismo e a idolatria dos demais povos orientais, que foi um povo que defendeu a liberdade humana como condição inerente à personalidade, reconheceu os direitos do homem e não admitiu a escravatura11.

René Sédillot (1906-1999)12 alude à soberania de estado da civilização suméria, antes do advento dos impérios assírio e caldeu, cujas instituições são um modelo de organização administrativa, nomeadamente com o código do rei babilónio Hamurabi (1772 a.C.?), que é ao mesmo tempo um código processual, penal e comercial, em que o Estado apenas desempenha o papel de árbitro e regulador13.

Os impérios do Próximo Oriente e da Ásia podem ser considerados despotismos, mas muitas evidências surgiram sobre o papel desempenhado, por exemplo, pelas assembleias de cidadãos na tomada de decisão local.

A invenção da escrita pelos sumérios (escrita cuneiforme) e pelos egípcios (hieroglífica) permitiu o desenvolvimento civilizacional. E votar fazia parte dessa cultura escrita na medida em que se inscrevia o nome de alguém em um caco de cerâmica, fragmento de pedra ou pedaço de papiro, para garantir que essa escolha ficasse registada.

Da Antiguidade Clássica ou Pré-clássica aos nossos dias a democracia funcional conheceu ganhos e reveses, até se implementar de forma sistemática o atual modelo representativo que já vigora na maioria dos países.

Como se lê na introdução da obra The Edinburgh Companion to the History of Democracy, que é por muitos considerada um excelente referente para a chamada nova história da democracia que extravasa os limites da democracia ocidental, no final da segunda

8 GETTELL, Raymond (1923) – History of Political Thought. Londres: George Allen & Unwin, pp. 24-26.

9 Ibidem.

10 Catedrático da antiga Escola Profissional de Comércio de Sevilha e académico de número da Real Academia Hispano-Americana de Ciências e Artes de Cádis, nos anos de 1920 a 1940.

11 NARANJO, Joaquín Garcia (1937) – Elementos de Historia Universal. Sevilha: [S. n.], pp. 26-27.

12 Jornalista e historiador francês do século XX, autor de Le coût de la Révolution française (1986).

13 SÉDILLOT, René (1949) – Survol de l´Histoire du Monde. Paris: Librairie Arthème Fayard, pp. 33-34.

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guerra mundial havia menos de uma dúzia de democracias funcionais ou provisórias14 A partir daí, os governos democráticos e os experimentos democráticos foram-se generalizando até que, na década de 1970, já existiam cerca de quarenta democracias, sobretudo no Ocidente, mas também em países como a Índia e o Japão. Este número, galgados vinte anos, quase duplicou e na primeira década do século XXI cerca de 2/3 dos países do mundo eram democracias mais ou menos consolidadas.

Para Samuel Huntington (1927-2008)15 a consolidação da democracia no mundo moderno faz-se por “ondas de democratização”16. Na sua teoria, a terceira onda de democratização começa “implausivelmente” com o pronunciamento militar de 25 de Abril em Portugal, isto é, em contraciclo com a maioria dos golpes de estado que derrubam regimes democráticos; entre 1974 e 1990, regimes democráticos substituíram regimes autoritários em aproximadamente trinta países na Europa, Ásia e América Latina, aumentando para cerca do dobro o número de Estados democráticos em 1990, num total de 13017.

Os ataques às torres gémeas no dia 11 de setembro de 2001, veio introduzir um estigma neste processo de galvanização das democracias ao consubstanciar um retrocesso dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, quando os governos (democráticos) decidiram monitorizar de forma algo desmesurada as opiniões e a circulação das pessoas, sem mandato para tal, para além do atentado terrorista ter constituído um motivo para novas guerras, quase impensáveis no pós-guerra. Foi assim que, a pretexto da existência de armas químicas, foi invadido o Iraque em 2013 com o conluio de várias potências da NATO, mas já o Afeganistão tinha sido invadido pelos americanos em 2001, numa perspetiva anacrónica e uniformizadora de implementar modelos organizativos ocidentais em países com tradições histórico-culturais distintas, o que naturalmente resultou em um rotundo fracasso, apesar de alguns ganhos ao nível da “democratização” do poder nas nações asiáticas e magrebinas. Países como a Rússia e a China escaparam, no entanto, a esta onda de pretenso refrescamento democrático. Segundo Benjamin Isakhan18, os países e as nações que preenchem os critérios de regimes democráticos existem em todos os continentes habitados, Ásia, África, América, Europa e Austrália, e incluem países maioritariamente católicos (Malta), protestantes

14 ISAKHAN, Benjamin (2012) – The Complex and Contested History of Democracy, in The Edinburgh Companion to the History of Democracy. Edimburgo: Edinburgh University Press, p. 1.

15 Cientista político norte-americano, autor de The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order (1996).

16 Por “onda de democratização” Samuel Huntington entende o conjunto de transições dos regimes antidemocráticos para não democráticos que ocorrem num período temporal específico, que superam mais significativamente transições na direção oposta no mesmo período, e também a democratização parcial dos sistemas políticos que não se tornam democracias plenas.

17 HUNTINGTON, Samuel P. (1991) – The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century. Oklahoma City: University of Oklahoma Press, pp. 3-4, 21 e 26.

18 Professor de Política Internacional e diretor fundador da Polis, uma rede de pesquisa em Política e Relações Internacionais na Universidade Deakin, Austrália.

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(Dinamarca), muçulmanos (Indonésia), hindus (Índia), budistas (Taiwan), judeus (Israel), países com uma grande mistura de afiliações religiosas (Maurícias), pequenos países (Mónaco), continentes inteiros como a Austrália, países populosos (Índia), pequenas ilhas com menos de 1.000 habitantes, e ainda alguns dos países mais novos do mundo (Montenegro) e alguns dos mais antigos (Portugal)19.

Se a Índia é a maior democracia do planeta, com os seus perto de 1.000 milhões de eleitores, o Parlamento Europeu representa o segundo maior eleitorado do mundo, transnacional é certo, com os seus cerca de 400 milhões de eleitores em 2019.

A democracia política compreende sobretudo a democracia direta, praticável em grupos de cidadãos mais pequenos, como nas cidades-Estado gregas, e a democracia representativa, como acontece nos sistemas parlamentares mais modernos. Hoje em dia, qualquer forma de representação, semidireta ou indireta, envolve um sistema de seleção do representante, seja por braço levantado, pelo voto lavrado no papel ou por votação digital, extensível a todos os cidadãos. Tal tipo de democracia universal não existia na Grécia onde mulheres, escravos, metecos e menores eram excluídos do voto. Fazer a história da democracia é traçar a história da sociedade humana organizada. A comunidade humana mais simples consiste em um clã, como os sobreviventes aborígenes da Austrália. Tais unidades exibem pouca delegação de autoridade, de modo que a questão de representação e autoridade quase não existe. As decisões são tomadas por consulta entre os chefes de família, que têm a responsabilidade de discutir questões com as suas respetivas famílias. Cada indivíduo é representado em cada decisão coletiva por um chefe de família, ou da linhagem, na forma de “representação automática”. Por outro lado, é difícil caracterizar as sociedades monárquicas, pois estas também podem ser parcialmente democráticas. As monarquias são ipso facto não democráticas, uma vez que não é permitida a escolha e, portanto, a mudança de líder - a posição é atribuída por hereditariedade e não por escolha popular. Na Europa, a democracia foi imposta pelos monarcas pela sua necessidade de terem o consentimento dos súditos para se envolverem em guerra e para obterem as contribuições financeiras provenientes do erário público. São as monarquias ditas constitucionais ou parlamentares, como o caso inglês.

Uma república, por outro lado, elimina inteiramente a figura política do monarca hereditário, atribui responsabilidade formal a representantes eleitos, ou seja, é uma verdadeira democracia (governo de muitos) no sentido que lhe conferia Platão, em contraposição à monarquia (governo de um) ou aristocracia (governo de alguns). O que se tornou crítico para os procedimentos da democracia representativa é a frequência com que a seleção é realizada e por quanto tempo o mandato do representante é válido. No melhor dos mundos possíveis o eleitor seria consultado sobre todas as questões, mas isso é claramente impraticável, exceto por meio de referendos. Na maioria dos casos temos que aceitar que os nossos representantes pensem aproximadamente como nós, e daí a importância atual dos partidos políticos para refletir as posições dos seus filiados ou apoiantes. Hoje os mandatos são por três, quatro ou cinco anos, mas em Cartago e

19 ISAKHAN, Benjamin et al. (2012) – The Edinburgh Companion to the History of Democracy, editado por Benjamin Isakhan e Stephen Stockwel. Edimburgo: Edinburgh University Press, pp. 3-4.

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na Fenícia um novo representante era eleito a cada ano, garantindo-se que estivesse em contacto mais próximo com o seu eleitorado.

Outro problema enfrentado pela democracia é o “alcance” da democracia. Por isso se diz que a democracia grega era rica em profundidade (do ponto de vista organizativo), mas pobre em extensão (do ponto de vista numérico). No Reino Unido, o sufrágio universal, que agora consideramos como intrínseco ao conceito de democracia, foi instituído apenas em 1928. E se este problema tem vindo a ser ultrapassado, o mesmo não acontece com a tendência de o eleitor optar, quase sistematicamente, pela continuidade da liderança ou pela alternância bipolar da liderança, que não é propriamente o que se deveria esperar de uma democracia eletiva dinâmica e plural. Por outro lado, os detentores do poder muitas vezes tentam manter a sua posição dentro da família (nepotismo), ainda que o tenham conseguido pelas urnas ou por um golpe seguido de confirmação popular, de modo que a democracia se torna uma espécie de “demo oligarquia”.

Sossegam-nos as palavras esperançosas de um Fernando Condesso20 quando escreve que os regimes democráticos, como tem acontecido nas últimas décadas, podem ainda difundir-se e aproveitar esta nova vaga generalizadora para aprofundar a vivência democrática e que “a teoria democrática parte do pressuposto de que eleitores e governantes, uns racionalmente, outros responsabilizadamente [sic], estão em condições de ir melhorando as qualidades e valores exigíveis em democracia”21 .

Embora muitos o afirmem, a democracia não é uma marca distintiva exclusiva da Europa e das suas emanações históricas (Estados Unidos, Austrália, etc.). À medida que a democracia se espalha por todo o mundo e ganha defensores e adversários em todos os cantos, vale a pena lembrar as suas raízes profundas e universais, o que faremos no capítulo seguinte.

Hoje, na Europa e em outros continentes, renascem tentativas de autoritarismo não democrático, quando da esquerda e da direita partidária surgem propostas e explicações políticas que comprometem a liberdade e a participação democrática dos cidadãos e o funcionamento democrático das instituições, cuja existência e independência seriam a razão fundamental do sucesso dos regimes verdadeiramente democráticos.

Em Portugal, devido ao enfraquecimento da participação política dos portugueses e à influência do poder político no controlo das instituições através do Estado, vivemos um tempo de algumas dificuldades e de ilusões perigosas para o funcionamento democrático do País, incapaz de dar resposta cabal às necessidades dos cidadãos. É precisamente na ausência de respostas democráticas aos problemas e dificuldades existentes e sentidas pelos cidadãos que nascem os projetos autoritários e as ditaduras. O facto de muitos portugueses terem desistido de votar é um indício muito perigoso do funcionamento da nossa democracia, que urge corrigir através da reforma das leis eleitorais, no sentido dos representantes dos portugueses no poder político serem devidamente escolhidos

20 Nascido em 1946, foi cofundador do PPD em 1974, eurodeputado entre 1986 e 1989 e deputado em várias legislaturas; é professor catedrático jubilado de Ciência Política e de Direito Público.

21 CONDESSO, Fernando (2011) – Portugal em Crise. Pela Reforma Global do Sistema Político e das Políticas Públicas. Lisboa: Livros do Brasil, pp. 40-41.

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e escrutinados pelos eleitores. São palavras de Henrique Neto22: “É verdade que os portugueses podem falar à vontade sem serem presos, mas nas sociedades do nosso tempo, com a enorme cacofonia comunicacional existente, sem verdadeira representação parlamentar e sem a participação democrática das instituições, a voz de povo não é ouvida. Fica assim aberta a porta ao autoritarismo e aos pequenos e grandes ditadores disfarçados de cordeiros”23

Acresce que nesta reflexão a história da democracia merece um tratamento algo extenso, que se justifica por os autores considerarem que os acontecimentos presentes estão relacionados com os acontecimentos passados e que estes podem ajudar a compreender o presente e o futuro, mas também, e na perspetiva de John Keane24, que pensar sobre o passado, o presente e o futuro da democracia é uma empreitada sem fim e que, por isso, “não pode haver uma teoria geral da democracia”25 .

Outro problema que se levanta quando se fala em democracia, independentemente do sentido formal e concetual da palavra, é a necessidade de explicar o próprio conceito no sentido restrito, isto é, na sua aceção mais comum de modo de governo. Procura-se uma definição o mais abrangente possível, que abarque regimes variegados, quer histórica quer geograficamente, mesmo sem entrar nos meandros da ciência política, mas parece que ainda não se encontrou uma definição unânime que transcenda a própria análise etimológica do termo.

Mas o dissenso não é um fator desonroso, pelo contrário encerra em si um valor endógeno que importa sublinhar no próprio ethos democrático, porquanto se na democracia é intrínseca a pluralidade de opinião também o é, nos parece justo admitir, a abordagem plural do conceito.

Ainda a propósito do conceito de democracia, no quadro da democracia representativa e não da “clássica” democracia direta que seria teoricamente o modelo perfeito, mas já em desuso nas modernas democracias, se intentarmos uma definição consensual podemos socorrer-nos de Juan Linz (1926-2013)26 quando este afirma que a democracia é um sistema político em que os cidadãos têm a possibilidade de eleger livremente líderes alternativos, que se apresentam ao eleitorado também de forma livre e com aspiração de governar por um tempo limitado, em que se exclui o uso da força para obter

22 Empresário e político português nascido em 1936, foi deputado e um dos mentores do “Manifesto pela Democratização do Regime” (2013) e do manifesto “Por uma Democracia de Qualidade” (2014), que propõem reformas do sistema político em Portugal.

23 NETO, Henrique (2021), prefácio de O Triângulo da Democracia, de Carlos Magalhães. Lisboa: MIL e DG Edições, p. 16.

24 Investigador e professor universitário australiano nascido em 1949, que é considerado um dos principais teóricos políticos do nosso tempo; é autor da obra Vida e Morte da Democracia (2009).

25 KEANE, John (2019) – Por que a história importa para a democracia, tradução de Felipe Ziotti Narita, in Transições / 62, vol. 1, n.º 1, 2020, texto originalmente publicado na revista Democratic Theory. Ribeirão Preto: Centro Universitário Barão de Mauá, p. 11.

26 Sociólogo e cientista político espanhol do século XX e início do século XXI.

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e manter o poder e em que todas as minorias têm garantidos os seus direitos27

Nas sociedades modernas a democracia, governo e regime, estão em permanente mudança, quer formal quer substancial, e também é verdade que a democracia é um ideal a perseguir, não uma realidade estática definitivamente conseguida e repetível.

Democracia é uma palavra de dez letras que mudou por completo a história da civilização, desde as assembleias da antiga Mesopotâmia e da incontornável democracia ateniense até aos nossos dias, passando pelas clamorosas experiências das chamadas revoluções atlânticas (francesa e norte-americana).

Muito se tem escrito sobre democracia, dos curtos ensaios aos eloquentes tratados, sobretudo no estrangeiro, porque no nosso país não abunda obra consistente sobre o tema apesar da sua inquestionável pertinência.

Mas, como escreveu Vasco Fernandes (1908-1991)28, a democracia não precisa de muitos pensadores e de muitos livros, como também não precisa de areópagos onde se retoice o lugar comum29.

27 LINZ, Juan José (1976) – afirmação proferida na 1.ª conferência do ciclo Cuatro lecciones sobre la democracia, intitulada “La democracia como sistema político”, realizada na Fundação Juan March, Madrid, em 2 de novembro de 1976, min. 9:07-10:10: https://www.march. es/es/madrid/conferencia/cuatro-lecciones-sobre-democracia-i-democracia-como-sistema-politico

28 Advogado e político do século XX nascido em Cabo Verde, que foi o primeiro presidente da Assembleia da República (1976-1978).

29 FERNANDES, Vasco da Gama (1957) – Democracia. Génese, Evolução, Presença. Leiria: [S. n.], p. 49.

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1. DEMOCRACIA: PALAVRA, CONCEITO E HISTÓRIA

1.1. Termo e conceito

Do ponto de vista etimológico o termo “democracia” tem origem no grego dēmokratía que provém da aglutinação das palavras “demos” e “kratos”.

As “demos” eram as cem divisões geográficas e administrativas da Ática criadas pelo político ateniense Clístenes (565-492 a.C.) a partir de 510 a.C.; “kratos” significa “domínio ou poder”. Assim, democracia é o “poder ou governo do povo” e o termo conota o sistema político existente, no século V a.C., em cidades-Estado gregas, principalmente Atenas.

Quem discorre sobre “democracia” deve interrogar-se não só acerca da origem do termo, mas também sobre quem foi o primeiro autor que o utilizou, independentemente dos experimentos democráticos societais que ocorreram antes do estabelecimento formal do conceito.

O estadista e poeta ateniense Sólon (640-560 a.C.), fez reformas legislativas na pólis ateniense e criou a assembleia popular (ekklesia), em que participavam todas as classes sociais da Ática, mas só englobando os cidadãos do sexo masculino, filhos de pais atenienses maiores de trinta anos30. Mas, ao que parece, não utilizou o termo “democracia”, ao contrário do historiador e geógrafo grego Heródoto (485-425 a.C.) que no livro IV das suas História(s) escreve que cada cidade preferiria adotar um regime democrático em vez de viver sob uma tirania31

Ao contrário de Platão e Aristóteles que lhe sucederam, Heródoto era um adepto da democracia política. Mas também Péricles (c.495/492-429 a.C.), segundo o historiador ateniense Tucídides (460-400 a.C.), na célebre oração fúnebre aos mortos atenienses na luta contra os espartanos, falou em democracia: “Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior às leis dos nossos vizinhos, mas que, pelo contrário, é digna de ser imitada por eles. E chama-se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os cidadãos são iguais”32 .

Autores contemporâneos, como Norberto Bobbio (1909-2004)33, remetem a palavra “democracia” para o corpo coletivo governamental que é expresso na ideia de poder do povo. Para outros, como Jacques Rancière34, a “democracia” é uma daquelas pala-

30 ABELLÁN, Joaquín (2011) – Democracia. Conceptos políticos fundamentales. Madrid: Alianza Editorial, p. 25.

31 HERÓDOTO (430-424 a.C.) – Historia, livro IV- Melpómene, tradução de Carlos Schrader para a edição em língua espanhola de 1979. Madrid: Editorial Gredos, p. 410.

32 TUCÍDIDES (424-404 a.C.?) – História da Guerra do Peloponeso, prefácio e tradução do grego por Raul Rosado Fernandes e Gabriela Granwehr para a edição de 2013. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 200.

33 Historiador e filósofo político italiano do século XX, autor de Política e Cultura (1955), foi professor emérito da Universidade de Turim.

34 Filósofo francês, nascido na Argélia em 1940, escreveu o ensaio O Ódio à Democracia

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vras de cuja carga simbólica originária nos esquecemos, enquanto nome de um desvio singular no curso normal dos assuntos humanos, que foi inicialmente um insulto, um nome inventado não pelos democratas, mas por seus adversários para designar uma coisa para eles grotesca e impensável e que significava que governam especificamente os que não têm nenhum título para governar, enfim uma rutura radical de toda a lógica da dominação legítima35

Na democracia direta todos os cidadãos elegíveis têm participação ativa na tomada de decisões do governo. Mas na maioria das democracias modernas o poder político é exercido “indiretamente” por meio de representantes (governantes) eleitos, a chamada democracia representativa que surgiu a partir das ideias e das instituições que se desenvolveram principalmente nos períodos da reforma protestante, do iluminismo e das revoluções francesa e americana. Enquanto na democracia direta os cidadãos votam em medidas políticas diretamente, sem intermediação, na democracia representativa os cidadãos elegem representantes que, por sua vez, decidem políticas.

Os atenienses criaram sob a liderança de Clístenes, continuador da obra de Sólon e por muitos referido, conjuntamente com este, como o pai da democracia ateniense, aquela que é geralmente tida como a primeira experiência democrática significativa. A democracia direta ateniense assumiu duas características distintivas, a saber: a assembleia legislativa formada por todos os “cidadãos” atenienses; a seleção aleatória (democracia por sorteio, como alguns a ela se referem) de cidadãos para ocupar os cargos administrativos e judiciais do governo.

Todos os cidadãos com capacidade eletiva eram autorizados a falar e votar na assembleia. Mas a cidadania ateniense excluía as mulheres, os escravos, os metecos (estrangeiros residentes na pólis grega), os menores de 21 anos de idade e aqueles que não eram proprietários de terras, pelo que só cerca de 10% dos habitantes de Atenas tinham as prerrogativas do exercício democrático, exclusão que se devia ao pressuposto de que o benefício da cidadania estava relacionado com a obrigação de guerrear.

No sistema democrático ateniense as decisões eram tomadas nas assembleias e nos tribunais de justiça. Os “cidadãos” participavam na discussão dos assuntos públicos e controlavam assim todo o processo político.

Segundo Robert Palmer (1909-2002)36, apesar da popularidade do termo, é raro entre os filósofos franceses de antes da Revolução encontrar alguém que tenha usado a palavra “democracia” num sentido favorável em qualquer conexão prática37 Alexis de Tocqueville (1805-1859)38, por seu lado, advoga que a democracia, no sen(2005) e foi professor emérito da Universidade de Paris VIII.

35 RANCIÈRE Jacques (1996) – O Dissenso, tradução de Paulo Neves, in A Crise da Razão (2006). São Paulo: Editora Schwarcz, p. 369.

36 Historiador americano do século XX, especializado nas chamadas revoluções atlânticas do último quartel do século XVIII.

37 PALMER, Robert Roswell (1959) – The age of the democratic revolution; a political history of Europe and America, 1760-1800, volume I. Princeton: Princeton University Press, p. 14.

38 Historiador, teórico político e escritor francês do século XIX, o primeiro a cunhar o termo

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tido lato, é sinónimo de uma civilização moderna que dá uma igualdade de condições aos seus membros e, no sentido restrito, uma forma de governo do povo por si mesmo com determinadas características institucionais e procedimentais, ou seja, um sistema institucional caracterizado basicamente pela representação política39. Na sua obra mais conhecida, que resulta de uma viagem que fez aos Estados Unidos em 1831, Tocqueville escreve que neste país o povo nomeia aquele que faz a lei e aquele que a executa, constitui ele mesmo o júri que pune as infrações à lei40 .

Volvidos quase 100 anos após a morte de Tocqueville, a Declaração Universal dos Direitos do Homem41 (doravante DUDH) das Nações Unidas, de dezembro de 1948, consagra que a vontade do povo sustenta e legitima a autoridade do poder político.

Pode ler-se no seu artigo 21.º, ponto 3: “A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual”.

De acordo com Daniel Smith42 mais de 85 por cento das nações do mundo são hoje consideradas democracias formais (o parlamento eleito democraticamente mais antigo do mundo é o islandês Alþingi formado por volta do ano de 930), em que a democracia representativa é hoje o modelo dominante, mas tal como qualquer outro sistema, e apesar de ter provado ser a mais resiliente das filosofias políticas, a democracia é demasiado vulnerável a abusos e, por isso, não está isenta de falhas43.

1.2. Democracia e formas de governo

Confunde-se muitas vezes “Estado” com “governo”. O Estado, primeiramente, é uma organização institucionalizada, gerada a partir da soberania territorial, ou seja, um Estado para constituir-se precisa exercer um domínio soberano sobre um determinado território e ter esse domínio reconhecido internacionalmente. O Estado é toda a sociedade política, incluindo o governo, que é o grupo que comanda política e administrativamente o Estado, é todo o conjunto de órgãos responsáveis pelo desempenho das funções legislativa, judiciária, para além da executiva que compete ao governo. Também é frequente confundir Nação com Estado, mas Nação é o território, a cultura, o idioma, a etnia, a religião, a história e a identidade de um povo e nem todas as nações correspondem a um Estado, como é o caso do Curdistão (termo de origem persa que “social-democracia”, é autor de L’Ancien Régime et la Révolution (1856).

39 ABELLÁN, Joaquín (2011) – Op. cit., pp. 195-196.

40 TOCQUEVILLE, Alexis de (1835) – A Democracia na América, livro I - Leis e Costumes, tradução de Eduardo Brandão para a edição em língua portuguesa de 2005. São Paulo: Martins Fontes, p. 197.

41 Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), texto oficial em língua portuguesa, publicado no Diário da República, I Série, n.º 57, de 9 de março de 1978, pp. 489-491.

42 Autor de livros sobre política e economia e de biografias de políticos famosos, como Churchill, Mandela e Obama, reside atualmente em Londres.

43 SMITH, Daniel (2020) – Breve História das Grandes Ideias, 1.ª edição. Amadora: 20│20 Editora, p. 186.

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significa “terra dos curdos”). Também há Estados que são multinacionais, isto é, integram no seu território várias Nações como, no vizinho Estado espanhol, a Catalunha e o País Basco, ou no Siri Lanka em que os tâmiles se distinguem dos cingaleses, pela origem, pela língua e pelo território.

Se a formação do Estado assinala a passagem de uma situação de facto para uma situação de jure, a existência da Nação culmina um processo complexo gradual através do qual uma comunidade indistinta de cidadãos, sem que adquira ou antes de adquirir a personalidade jurídica positiva do Estado, se homogeneíza com a conjugação dos fatores identitários acima referidos. A estes acresce, segundo Tristão de Ataíde (18931983)44, o conceito de nascimento, de que etimologicamente deriva o próprio termo de nação (que provém do latim nasci), de filiação biológica e espiritual e de meio físico ou social45. Na verdade, do ponto de vista filológico, o primeiro significado de “nação” aponta para origem ou descendência. Por outro lado, segundo Eric Hobsbawm (19172012)46, definir uma nação pelo sentimento de “pertença” consciente dos seus membros é uma tautologia que apenas permite uma ideia a posteriori daquilo que é uma nação, e que pode levar a pensar in extremis que, para existir uma nação, basta a vontade de a criar ou recriar47. Para além de todas as significações atrás aludidas, advém hoje a da unidade político-cultural subjacente ao conceito de Nação.

Também para Sérgio Pinto (1915-1970)48, a palavra mágica “nação” não é um simples flatus voci, porque nela se distingue uma sociedade ou grei, que não é ainda a Nação, embora já comporte vínculos que lhe conferem unidade - terra, língua, raça, religião, costumes - que se transmitem de geração em geração, mas estes nexos englobantes só se transcendem em Nação se as comunidades que agregam tiverem deles consciência valorativa e com eles se identificarem49. Ao contrário de outros que afirmam que Nação precede o Estado, é o mesmo autor que, na senda de outros investigadores portugueses, pondera se não é o Estado que procede da Nação, porquanto o estado é apenas a “cúpula” que modela política e juridicamente o edifício que é a nação50, discussão em que, por força do modesto alcance deste nosso trabalho, não entraremos.

44 Pseudónimo do escritor e professor brasileiro Alceu Amoroso Lima, eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1935, que deixou vasta obra literária com os temas mais variados, como a religião e a política.

45 ATAÍDE, Tristão (1932) – Política, 3.ª edição de 1939. Rio de Janeiro: Getúlio Costa, p. 63.

46 Historiador e professor britânico marxista, foi membro da Academia Britânica e da Academia Americana de Artes e Ciências; é o autor de A Era das Revoluções: Europa 1789–1848 (1962).

47 HOBSBAWAM, Eric (1990) – A Questão do Nacionalismo. Nações e Nacionalismo desde 1780, tradução de Carlos Lains para a 2.ª edição em língua portuguesa de 2004. Lisboa: Terramar, p. 12.

48 Historiador português do século XX, foi professor na Faculdade de Letras do Porto e diretor da Biblioteca Pública e do Arquivo Distrital de Braga.

49 PINTO, Sérgio da Silva (1958) – Individualismo e Colectivismo na Génese da Nacionalidade Portuguesa, 2.ª edição, separata da revista Bracara Augusta, tomo VIII, n.º 3-4. Braga: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, pp. 12-13.

50 Ibidem, p. 13.

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Tomemos como síntese a definição proposta por Edgar Morin51 quando afirma que o “Estado-nação realizado é um ser simultaneamente territorial, político, social, cultural, histórico, mítico e religioso”52

A forma de um Estado também não é a forma de governo, sendo que há estados unitários (Estados soberanos governados como uma entidade única, mas que podem conter divisões administrativas ou regiões subnacionais), federados ou federais (compostos por entidades territoriais autónomas dotadas de governo próprio, mas que se regem pela mesma constituição), de que são exemplos a Alemanha e a Rússia, e confederados (associação de Estados soberanos, criada normalmente por meio de tratados, que pode ou não ter uma constituição comum e que admite a possibilidade de secessão), de que é exemplo a Suíça. A principal distinção entre uma confederação e uma federação é que, na confederação, os Estados constituintes não abandonam a sua soberania, enquanto, na federação, a soberania é transferida para o estado central. A maioria dos Estados são unitários, como é o caso da França e de Portugal. Os Estados Unidos são um estado federal que resultou de uma confederação. A União Europeia, por seu lado, do ponto de vista jurídico, pode considerar-se um modelo híbrido, porque não cumpre as características de uma confederação ou de uma federação de Estados, embora esteja mais próxima de uma confederação53, não existe uma constituição única nem um governo central, apesar de existir um parlamento.

Mas voltando à destrinça entre Estado e governo, o primeiro é constituído por várias instituições, como os tribunais, as escolas e os hospitais, entre as quais se inclui o governo, que têm como função administrar o Estado, o território e os cidadãos que o compõem. É através do conjunto dos organismos governativos que o Estado regula a disputa do poder político e o seu exercício e intermedeia a relação entre quem detém o poder, os políticos, e quem se submete a ele, a sociedade civil.

Também é frequente a confusão terminológica entre forma de governo, sistema de governo e, finalmente, regime político. Muito sinteticamente, a forma de governo é a definição abstrata do modo como o poder é exercido pelos governantes e apreendido pelos governados, o sistema de governo decorre da forma de governo através dos mecanismos e das normas que a institucionalizam, como a Constituição, e o regime político é o modo como se exerce o poder num determinado Estado e num determinado contexto histórico.

51 Antropólogo, sociólogo e filósofo francês nascido em 1921, filho de judeus sefarditas, pesquisador emérito do Centre National de la Recherche Scientifique, é autor da obra em 6 volumes O Método (1977-2004).

52 MORIN, Edgar (1999) – Reformar o Pensamento. A cabeça bem feita. Tradução de Ana Paula de Viveiros para a 2.ª edição em língua portuguesa de 2022. Lisboa: Edições Piaget, p. 72.

53 O Tratado de Maastricht, por exemplo, transferiu gradativamente poderes e competências, antes da soberania dos Estados-membros, para os órgãos comunitários, mas faltam ainda as prerrogativas de autodeterminação e de auto-organização [FILHO, João Ribeiro (2003)

– União Européia: federação ou confederação? Recife: Universidade Federal de Pernambuco, p. 108].

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As formas de governo compreendem, como desenvolveremos a seguir, três tipologias fundamentais, a monarquia, a aristocracia e a democracia que, no entanto, admitem algumas variantes, de acordo com a época e os autores.

A tipologia dos sistemas de governo é mais difícil de estabelecer, mas apontam-se no nosso tempo dois sistemas predominantes, a república e a monarquia, no primeiro com as variantes do presidencialismo (concentração do poder na figura do chefe de Estado eleito), como é o caso da França e do Brasil, do parlamentarismo (o chefe de Estado não é o chefe do governo, e este é escolhido pelo Parlamento e não diretamente pelo povo), como é o caso de Portugal54 e da África do Sul, e o do semipresidencialismo (sistema misto dos anteriores modelos), como é o caso da Ucrânia e da Mongólia.

No caso da monarquia, vigoram o absolutismo régio (o monarca decide de forma despótica, sem regulação institucional), como na Arábia Saudita e no Catar, e a monarquia constitucional (o monarca exerce o seu poder dentro dos limites prescritos por uma estrutura legal estabelecida, como a Constituição), como em Espanha e no Reino Unido.

Mas há países em que a monarquia, apesar de constitucional, confere poderes discricionários ao soberano, como é o caso de Marrocos.

Outros autores falam ainda em sistema primo-ministerial (ou governo de chanceler) que reforça, mais do qualquer outro poder, o executivo, visando a estabilidade governativa acima de tudo, como é o caso da Alemanha55.

Quanto aos regimes políticos, de acordo com o grau de pluralismo envolvido, destacam-se três tipos fundamentais, a democracia, matéria deste ensaio, o autoritarismo (o poder sobrepõe-se à liberdade individual dos cidadãos, restringindo instituições e grupos políticos), como na Federação Russa e na Venezuela, e o totalitarismo (o poder, concentrado no líder ou no partido único, exerce o chamado terrorismo de Estado, suprimindo todas ou quase todas as liberdades e garantias), como na Coreia do Norte e na Birmânia (Mianmar). O século passado, no pré e pós II Guerra Mundial, traz-nos à memória os regimes totalitários da Alemanha (nazismo), de Itália (fascismo), da União Soviética (estalinismo) e da China (maoismo), só para citar estes. Uma classificação mais moderna, embora discutível, dos regimes do mundo, é a dos cientistas políticos Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg, que distinguem nas autocracias, as fechadas (os cidadãos não têm o direito de escolher o governo ou o poder legislativo através de eleições multipartidárias) e as eleitorais (os cidadãos têm este direito, mas carecem de liberdades como a de expressão e a de associação), e nas democracias, as eleitorais (os cidadãos têm o direito de participar em eleições livres, justas e multipartidárias) e as liberais (as ações do executivo são restringidas pelo

54 Parlamentarismo racionalizado, segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho; outros autores, como Marcelo Rebelo de Sousa, classificam o sistema de governo português como semipresidencial porque nele coexistem elementos do parlamentarismo e do presidencialismo (1977: Sistema Semipresidencial: Definição e Perspectivas in Revista Nação e Defesa, ano III, n.º 3, p. 11).

55 BARROSO, José Durão (1980) – O Sistema de Governo e a Revisão Constitucional in Sistema de Governo e Sistema Partidário de Durão Barroso e Santana Lopes. Amadora: Livraria Bertrand, p. 151.

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poder legislativo e pelos tribunais, mas os cidadãos têm mais direitos individuais)56

O jornal The Economist57, que avalia 167 países desde 2006, com base em cinco critérios (processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis), propõe a classificação de quatro tipologias, a saber: democracias plenas, democracias imperfeitas, regimes híbridos (democracias) e regimes autoritários (ditaduras)58

Na sua República, livro I, Platão (428-347 a.C.) alude às principais “formas de governo”: “Pelos vistos não sabes - prosseguiu ele [Trasímaco de Calcedónica, em diálogo com Sócrates – nota dos autores] - que, dentre os Estados, há os que vivem sob o regime da monarquia, outros da democracia, e outros da aristocracia?”59. Segundo Léon Robin (1866-1947)60, nesta obra composta por dez livros, Platão desenvolve no livro VIII e em parte do livro IX, sob a forma de diálogos, a ideia de que todas as formas políticas são degenerescências do governo aristocrático perfeito, em diferentes graus de corrupção, da menor para a maior, a timarquia, a oligarquia, a democracia e a tirania61. Platão, tal como Sócrates (469-399 a.C.), criticava no governo democrático a inveja e a indisciplina, mas ao contrário de Sócrates não foi partidário da oligarquia. Também na sua obra O Político, Platão insiste na ideia destas três formas de “constituição política”, de acordo com o governo ser de um, de alguns (poucos ou muitos) ou de todos (monarquia, aristocracia e democracia), em que apenas a “democracia” não tem a forma desviada (tirania na monarquia e oligarquia na aristocracia). É assim que no diálogo entre o Estrangeiro e Sócrates, o moço62, diz o primeiro: “No respeitante à democracia, quer as massas exerçam o poder sobre os detentores da riqueza pela força ou de modo livre, quer respeitem escrupulosamente ou não as leis, não há, em absoluto, o hábito de lhe mudar o nome”63. Nesta obra, segundo o mesmo Robin, Platão já admite um maior número de intermediários na constituição da mistura política, cuja

56 Classificação inserta no Democracy Index, que é um índice criado em 2006 pela Economist Intelligence Unit do jornal The Economist para examinar o estado da democracia em 167 países: https://ourworldindata.org/grapher/political-regime.

57 The Economist foi fundado por um cidadão escocês em 1843 para promover a causa do comércio livre. Entretanto, The Economist Group evoluiu para uma empresa global e digital de meios de comunicação e serviços de informação independente destinada a um público internacional.

58 https://www.economist.com/media/pdf/democracy_index_2007_v3.pdf

59 PLATÃO (380 a.C.?) – A República, notas e tradução de Maria Helena da Rocha Pereira para a 9.ª edição em língua portuguesa de 1972. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 24.

60 Filósofo francês estudioso da Filosofia grega e professor de História da Filosofia Antiga na Sorbonne entre 1924 e 1936, que traduziu os diálogos de Platão para o francês.

61 ROBIN, Léon (1935) – Platão, tradução de Adolfo Casais Monteiro para a 3.ª edição em língua portuguesa [S. d.]. Lisboa: Editorial Inquérito, pp. 48-49.

62 Não confundir com o grande filósofo ateniense do qual não se conhece obra escrita; Sócrates, o moço, terá sido um dos membros da Academia de Platão.

63 PLATÃO (365-362 a.C.?) – O Político, introdução e tradução do grego de Carmem Isabel Leal Soares para a 2.ª edição de 2014. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 135.

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instabilidade permite que as tendências nocivas se anulem reciprocamente, ou seja, que a democracia, em Estados submetidos a leis, é o menos funesto dos governos comparativamente com a tirania e a oligarquia64

Para Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, considerado o fundador do pensamento e da ciência política, também nos regimes de governo (formas de governo) existem as “formas retas” que visam o bem comum (realeza ou monarquia, aristocracia e regime constitucional) e as “formas desviadas” correspondentes (tirania, oligarquia e democracia).

Na sua Política, composta por oito livros cuja autenticidade não se coloca hoje em dúvida, que terá sido escrita na época em que Aristóteles foi o precetor de Alexandre, o Grande (Aristóteles e Alexandre nasceram os dois na Macedónia, a norte da Grécia), afirma que a política é a ciência que tem como objetivo a busca da felicidade humana, subdividindo-se na Ética e na Política propriamente dita, a primeira da felicidade individual e a segunda da felicidade coletiva do homem na polis.

Ainda na Política, Aristóteles procura investigar as diferentes formas de governo (quem governa) e os diferentes tipos de regime (modo como se governa). Assim, no livro III desta obra, pode ler-se que nas constituições democráticas o povo é supremo, nas oligarquias apenas alguns têm a supremacia, e de entre as formas de governo de um só a realeza é a que visa o interesse comum; aristocracia é a forma de governo por poucos (mas sempre mais do que um), seja porque governam os melhores ou porque se propõe o melhor para a cidade e os seus membros; quando muitos governam em vista ao interesse comum, o regime recebe o nome comum a todos os regimes: “regime constitucional”; os três desvios são: a tirania (governo de um só com vista ao interesse pessoal), a oligarquia (que visa o interesse dos ricos) e a democracia (que visa o interesse dos pobres)65. Para Aristóteles a democracia é a mais suave das formas degradadas e a pior a timocracia, em que só os cidadãos proprietários ou capitalistas participam no governo. Quando o poder deriva inteiramente da riqueza, sem a mínima consideração pela responsabilidade cívica, a timocracia torna-se uma plutocracia.

Tal como Platão, Aristóteles ordena assim essas formas de governo de modo hierárquico, da menos para a mais degradada nas formas puras, da menos para a mais desviada nas formas corrompidas: monarquia, aristocracia, politeia ou república66; democracia, oligarquia e tirania, em que a democracia é a que configura o menor desvio da forma de governo correspondente (a politeia) e a tirania o mais corrupto dos regimes monárquicos.

Para Leo Strauss (1899-1973)67 politeia, muitas vezes traduzida por “constituição”, na aceção mais lata do termo combina o modo de vida de uma sociedade e a sua forma

64 ROBIN, Léon (1935) – Op. cit., pp. 73-74.

65 ARISTÓTELES (330-323 a.C.) – Política, tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes e revisão científica de Mendo Castro Henriques para a edição de 1988. Lisboa: Veja Editora, pp. 207-212.

66 O termo “república” resulta da tradução de “politeia” para o latim, por Cícero.

67 Filósofo político teuto-americano de origem judaica do século XX, foi professor de ciência política na Universidade de Chicago, entre 1949 e 1968.

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de governo. São palavras suas: “Os seres humanos que constituem uma comunidade política podem ser «organizados» de modos muito diferentes no que diz respeito ao controlo dos assuntos comuns. Politeia refere-se primordialmente à «organização» factual de seres humanos na sua relação com o poder político”68 .

Numa perspetiva combinada, há outras classificações possíveis quanto às formas de governo e regimes políticos, como por exemplo: no campo da monarquia, o absolutismo, a teocracia e o constitucionalismo; no campo da aristocracia, o bonapartismo, o partidarismo e o militarismo; no campo da república ou da democracia, o parlamentarismo, o corporativismo e o centralismo democrático; no campo da oligarquia, a meritocracia, a plutocracia e a tecnocracia; no campo da tirania, a autocracia, o despotismo e o totalitarismo. À maneira de Aristóteles e de Platão, também para Montesquieu (1689-1755)69 existiam três espécies de governo, o monárquico (governo de um só), o despótico e o republicano (democrático, governo do povo, ou aristocrático, governo de vários)70

Cerca de década e meia depois, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)71, para quem governo (o conjunto dos cidadãos magistrados) é o corpo intermédio entre os súbditos (os cidadãos simples particulares) e o soberano (aquele que se encarrega da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política), também perfilha a forma tripartida clássica, a monarquia, em que o poder está concentrado nas mãos de um único cidadão, a aristocracia, em que há mais cidadãos que magistrados porque quem governa são poucos, e a democracia, quando o soberano deposita o governo em todo o povo ou na maior parte do povo72.

Combinando finalmente “formas de governo” com “sistemas de governo” e “regimes políticos”, com todas as limitações, simplicismos e redundâncias que toda a catalogação acarreta, temos então: democracia (direta, indireta ou representativa, semidireta ou participativa, presidencial, semipresidencial ou semiparlamentar, parlamentar, corporativa); monarquia (autocrática, autoritária, absoluta, constitucional, teocrática); aristocracia (oligárquica, gerontocrática, plutocrática, meritocrática, militar, partidária, despótica e totalitária).

Admitamos ainda, como epifenómenos, a anocracia (instabilidade política e governamental), a oclocracia (irracionalidade das multidões desgovernadas), a cleptocracia (apropriação indevida dos fundos de um país) e a quase imponderável anarquia (ausência de Estado).

68 STRAUSS, Leo (1953) – Direito Natural e História, introdução e tradução de Miguel Morgado para a edição em língua portuguesa de 2009. Lisboa: Edições 70, p. 119.

69 Filósofo e político francês, barão de La Brède e de Montesquieu, contribuiu, como Rousseau e Voltaire, para a monumental Enciclopédia, ou Dicionário Racional das Ciências, Artes e Profissões (1751-1772) editada por Diderot e D’Alembert.

70 MONTESQUIEU (1748) – O Espírito das Leis, tradução de Cristina Murachco para a edição em língua portuguesa de 2000. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, p. 19.

71 Filósofo e teórico político genebrino, autor de Do Contrato Social, influenciou o progresso do Iluminismo por toda a Europa, bem como alguns ideais da Revolução francesa.

72 ROUSSEAU, Jean-Jacques (1762) – El Contrato Social, tradução de Consuelo Berges para a edição em língua espanhola de 1969. Madrid: Aguilar, pp. 60 e 68.

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Mas outra nomenclatura poderia ser acrescentada ao cardápio dos sistemas políticos. Robert Dahl (1915-2014)73, por exemplo, ao mesmo tempo que afirma que na terminologia é quase impossível encontrar palavras comuns que não arrastem ambiguidade e excessiva significação, aponta-nos o termo “poliarquia”, que é a aproximação imperfeita ao estádio ideal da democracia, e no lado oposto o termo “hegemonia” que lhe parece mais apropriado que despotismo, monocracia ou autocracia, entre outros74

1.3. Democracia primitiva75

A arte de um autogoverno de assembleias do povo, constituídas por cidadãos que se consideravam iguais uns aos outros, não é uma invenção dos atenienses76. Antes dos gregos, por exemplo, existiram experimentos democráticos na Mesopotâmia e no Egito. Houve também governos “populares” em sistemas políticos primitivos no Islão, em comunidades pré-coloniais de África, nos aborígenes da Austrália e em povos indígenas das Américas, entre outros.

Segundo Alan Hattersley (1893-1976)77, a democracia originou-se quando os homens ainda se organizavam em grupos de caçadores recoletores nómadas, antes da transição para tribos de agricultores, coletivos que eram democráticos por causa da inexistência de um sistema de autoridade e poder78. Para este autor, também eram exemplos de democracias primitivas as assembleias homéricas em frente aos muros de Troia, a monarquia hebraica e as tribos germânicas no primeiro e segundo séculos depois de Cristo. Outros autores, como Bronislaw Malinowsky (1884-1942)79, chamam proto democracia às estruturas políticas igualitárias entre os forrageiros nómadas. Na antiga região de Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, hoje Iraque, as primeiras cidades-Estado autónomas (Ur, por exemplo) surgiram durante o quarto milénio antes de Cristo. O primeiro autor a descrever como democrático o governo das cidades da Mesopotâmia pré-histórica até ao segundo milénio é Thorkild Jacobsen (1904-1993)80 ,

73 Cientista político norte-americano, formulador do conceito de “poliarquia” e autor de Sobre a democracia (1998); foi membro da Academia Nacional de Ciências dos EUA e presidente da Associação Americana de Ciência Política.

74 DAHL, Robert Alan (1971) – La poliarquía. Participación y oposición, tradução de Julia Moreno San Martín para a edição em língua espanhola de 1997. Madrid: Tecnos, p. 19, n. 4.

75 Expressão que resgatamos de um capítulo de A Short History of Democracy de Alan Hattersley.

76 KEANE, John (2010) – Vida e Morte da Democracia. São Paulo: Almedina Brasil, p. 111.

77 Cientista político britânico do século XX.

78 HATTERSLEY, Alan (1930) – A Short History of Democracy. London: Cambridge University Press, pp. 15 e 20.

79 Antropólogo polaco, é autor da obra Freedom and Civilization (publicada postumamente em 1944).

80 Historiador dinamarquês do século XX, especialista no Próximo Oriente e em literatura assíria e suméria.

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segundo o qual tudo indica que, apesar da administração dos assuntos públicos ser feita pelo conselho de anciãos (chefes das principais famílias, militares, burocratas), a soberania residia numa assembleia geral, convocada pelos anciãos quando a situação era séria, composta sobretudo por todos os homens adultos livres, onde se decidiam assuntos como a guerra e a paz e se podia, excecionalmente, conceder a máxima autoridade a um dos seus membros por tempo limitado; a “assembleia” era, portanto, uma instituição mais antiga que o rei para quem mais tarde perdeu poder, durante o segundo e o primeiro milénios antes de Cristo, apesar de manter a autoridade judicial81. Para os Assírios o poder supremo era Ashur, o deus que nomeava a cidade e o povo, que governava os filhos (assírios) através de instituições como o rei, os anciãos e a assembleia; o rei tinha a dupla função de representar os filhos de Ashur do ponto de vista político e espiritual e de servir como executivo para as outras instituições82 .

Na 3.ª dinastia do antigo Egipto, como já vimos, existiu representação popular e justiça processual, como também nas civilizações indiana (responsabilidade dos governantes perante os governados), chinesa (imperativo da moralidade versus arbítrio impune) e hebraica (valorização da opinião pública na governação), ou seja, nestas civilizações germinou uma consciência política e regras de conduta social que antecedem o conceito materializado do Estado83

Segundo Macedo Mendes84, no velho Indostão, e concretamente no sul do Penjabe, pulularam pequenos estados de estrutura republicana, aristocrática ou democrática, transitoriamente unidos em confederações, o mesmo se passando na região entre as vertentes meridionais dos Himalaias e o Ganges85. Ainda segundo este autor, em tempos primitivos também os chineses se organizaram em clans compostos por mais que uma família (kia, similar à gens dos romanos), em que o chefe natural era o varão mais velho (regime patriarcal) que, assistido por uma assembleia de anciãos, regulava todos os assuntos da vida da aldeia86.

John Keane afirmou que as primeiras comunidades islâmicas tinham uma feição proto democrática, que se manifestava numa sociedade civil independente do Estado, no menosprezo da monarquia e nos debates sobre a autoridade dos governantes e a liderança política na ummah (comunidade de muçulmanos)87. O filósofo e matemático muçulmano Alfarábi (872-950) estudou Platão e estava familiarizado com a democracia ateniense e o teólogo muçulmano ibn Taymiyya (1263-1328) enfatizou que os governantes

81 JACOBSEN, Thorkild (1943) – Primitive Democracy in Ancient Mesopotamia, in Journal of Near Eastern Studies, volume 2, n.º 3, julho, pp. 159-172.

82 ISAKHAN, Benjamin (2012) – The Assyrians, in The Edinburgh Companion to the History of Democracy. Edimburgo: Edinburgh University Press, Edinburgh, pp. 40-49.

83 FERNANDES, Vasco da Gama (1957) – Op. Cit., pp. 41 e 47-48.

84 Historiador, foi professor na Escola de Belas Artes de Lisboa nos anos de 1940.

85 MACEDO, Mendes (1944) – História Universal, volume VI. Lisboa: edições Cosmos, p. 372.

86 Ibidem, p. 143.

87 KEANE, John (2010) – Op. cit., p. 18.

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deveriam consultar os porta-vozes convocados pela população geral88. A mesquita era uma espécie de instituição não governamental com espírito democrático, que Keane assemelha à Ágora ateniense, porquanto servia de praça, de ponto de encontro e de local de discussão e reflexão política, além de oração89 .

Segundo Meyer Fortes (1906-1983)90 e E. Evans-Pritchard (1902-1973)91, na África pré-colonial também existiram várias formas de organização política, da democracia direta à monarquia, bem como sistemas descentralizados, em que nos primeiros existia um poder centralizado, administrativo e judiciário, e nos segundos prevalecia a auto governança92. Estes autores também afirmam que uma característica destes sistemas chefiados por reis (e chefes) era que eles governavam com o consentimento do povo e que os governados eram cônscios dos deveres que o rei lhes devia e eram capazes de fazer pressão para os fazer cumprir93. Isso significa que o poder do rei era limitado por outras instituições que representavam e protegiam a população, o que configurava uma espécie de monarquia constitucional primária.

A democracia, lato sensu, é tão antiga quanto a sociedade humana e as primeiras formas da sua organização. Os homens das tribos pré-históricas viveram e trabalharam em modus comunitário, estando submetidos às forças da natureza e não a outros homens ou a qualquer autoridade externa. As decisões eram tomadas por todos os membros adultos da comunidade ou, em última análise, pelos representantes escolhidos que as concretizavam com o consentimento geral. A unanimidade prevalecia sobre a maioria.

Apesar da corrupção democrática criada pelo excedente de produção advindo do incremento, sobretudo, da atividade agrícola, com o surgimento de embrionários modelos aristocráticos (chefes de tribo, sacerdotes, proprietários de escravos, comerciantes ricos, etc.) as gestões igualitárias e coletivistas ainda persistiram nos gregos da época homérica e nos índios norte-americanos e pré-colombianos, onde ainda vigorava a importância decisória das assembleias populares e do conselho dos anciãos.

Segundo George Novack (1905-1992)94, a democracia entre os gregos, por exemplo, passou do primitivo igualitarismo, através da democracia militar descrita por Homero, para a democracia política e estes estágios sucessivos da sua democracia desenvolveram-se a partir de diferentes condições sociais e estruturas económicas, e em Atenas, tal como em Roma, a organização tradicional baseada no nascimento e nos laços de ligação com o clã (ethnos) foi substituída ao longo do tempo por uma nova ordem baseada

88 Ibidem, p. 158.

89 Ibidem, p. 152.

90 Antropólogo social inglês, nascido na África do Sul, que se interessou particularmente pelo estudo da estrutura social.

91 Antropólogo inglês que teve um papel fundamental no desenvolvimento da Antropologia Social; foi professor desta disciplina na Universidade de Oxford entre 1946 e 1970.

92 FORTES, M.; EVANS-PRITCHARD, E. E. (1950) – African Political Systems. Londres: Oxford University Press, pp. 5-6.

93 Ibidem, pp. 12-13.

94 Político e teórico marxista norte-americano do século XX, autor de Democracia e Revolução

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na localidade (demos) e na classe social, definida pela posse da propriedade95 De acordo com Friedrich Engels (1820-1895)96, que se fundamenta nos estudos do antropólogo norte-americano Lewis Morgan (1987: Ancient Society, or Researches in the lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization), a gens (“genos” nos gregos e “gentes” nos romanos; termo que procede da raiz ariana “gan” que significa “engendrar”) era a instituição comum a todos os povos bárbaros até à passagem para a civilização, anterior à criação do “Estado”, na gens vigorava o conselho, que era uma assembleia democrática formada pelos membros adultos, homens e mulheres, com o mesmo direito de voto, que elegia e destituía os chefes civis e os chefes militares97.

1.4. Democracia na Antiguidade Clássica

A ideia de que a democracia surgiu pela primeira vez em Atenas é a base da história prosaica da democracia, mas como já vimos não corresponde inteiramente à verdade. A votação por pontos existiu em Esparta a partir de cerca de 700 a.C., sendo consumada na “apela”, a assembleia do povo que se realizava mensalmente, na qual os espartanos que podiam votar, os homens com mais de trinta anos de idade, elegiam os seus líderes, gritando ao votar. Embora Aristóteles tenha acusado este sistema de infantil e simplista, comparativamente com o registo dos votos em pedra usado pelos atenienses, Esparta adotou este sistema precisamente por ser simples e também para evitar qualquer tipo de viés da votação.

Mas, por outro lado, não se pode dissociar a democracia da génese do Estado ateniense, apesar das experiências esporádicas e insipientes de assembleias populares de povos e civilizações pré-clássicas.

Não cabe neste ensaio lucubrar sobre as várias instituições que compunham a democracia ateniense, apenas referenciar as mais significativas. Na assembleia (ekklesia), a instituição central da democracia em Atenas, reuniam regularmente milhares de cidadãos para discutir e votar assuntos que afetavam os atenienses, com base no princípio da isegoria que significava que todos os cidadãos tinham o direito de se dirigir à assembleia e expor as suas ideias. O “conselho dos quinhentos” (500 buleutas, 50 por cada uma das dez tribos em que Clístenes dividiu a Ática, região à volta de Atenas), cujos membros eram escolhidos por sorteio, organizava e preparava a agenda das assembleias. Também os júris populares, que julgavam delitos vários, além dos recursos contra as decisões da assembleia ou do conselho, também eram constituídos por sorteio entre os cidadãos. Apenas os membros do conselho dos “areópagos”, que investigava e julgava

95 NOVACK, George (1971) – Democracia e Revolução, tradução de Maria da Graça Morais Sarmento para a edição em língua portuguesa de 1976. Lisboa: Iniciativas Editoriais, p. 19.

96 Teórico revolucionário prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha, que juntamente com Karl Marx fundou o chamado socialismo científico ou marxismo; com este escreveu o famoso Manifesto Comunista (1848).

97 ENGELS, Friedrich (1884) – A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, tradução de H. Chaves para a 3.ª edição em língua portuguesa de 1974. Lisboa: Editorial Presença, pp. 111-112 e 116.

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casos de homicídio e era o órgão consultivo da assembleia, tal como os estrategos, que podiam ser reeleitos por um número infinito de vezes, não eram escolhidos por sorteio.

A dokimasia era a instituição que averiguava a elegibilidade do cidadão para participar na ekklesia e ocupar postos administrativos. Sócrates, segundo Platão (em Apologia de Sócrates), foi membro do conselho dos 500. Os “estrategos”, magistrados que conduziam os exércitos e que, por vezes, desempenhavam funções políticas, formavam um colégio de 10 membros, também instituído por Clístenes; eram eleitos anualmente pelas dez tribos, ao contrário dos outros magistrados, como os buleutas, que eram escolhidos por sorteio entre todos os cidadãos de direito98, para fazer cumprir as leis aprovadas pelo povo.

De acordo com Engels, na sua nova constituição Clístenes ignorou as velhas tribos baseadas nas gens e nas fratrias, substituindo-as por uma organização nova, cuja base, já ensaiada nas naucrárias [pequenas circunscrições territoriais que deviam tripular e armar um barco de guerra e dispor de dois cavaleiros – nota dos autores], era a divisão dos cidadãos de acordo com o local de residência; toda a Ática ficou dividida em cem municípios (demos), em que os cidadãos (demotas) de cada demos elegiam o seu chefe - demarca - e o seu tesoureiro, assim como trinta juízes dotados de poderes para resolver os assuntos de pouca importância99. O Estado ateniense, que no seu auge era formado por 90.000 cidadãos livres, compreendendo as mulheres e as crianças (os escravos somavam mais de trezentos mil e os imigrantes e libertos perto de 50.000), era assim governado por um conselho de quinhentos representantes eleitos por sorteio pelas dez tribos e, em última instância, pela assembleia do povo, na qual todo o cidadão ateniense, maior e do sexo masculino, tinha direito a participação e voto.

A democracia ateniense durou cerca de 200 anos (508-322 a.C.), tendo chegado ao fim quando os macedónios conquistaram a cidade e instituíram a oligarquia.

Na Grécia, o aparecimento da democracia tal como hoje a percebemos foi acompanhado do surgimento da teoria política, até aí inexistente. Por outro lado, os filósofos gregos sempre conectaram a ética com a política. Para Álvaro Penedos não nos deve espantar que um problema ético leve ao político, pois nos gregos os dois campos não estavam separados, pelo contrário, ética e política constituíam um mesmo domínio, em que o político tinha de ser aquele cuja envergadura ética sobrepujasse a do comum dos cidadãos100.

Já Sócrates desacreditava da arte de fazer política, que contrapunha à filosofia, e preconizava que, para exercer daquela, era preciso renegar aos valores preconizados por

98 No sistema político de Atenas o exercício da cidadania democrática abrangia apenas os homens maiores de 21 anos, filhos de pai e mãe atenienses, depois da conclusão de um percurso escolar e de serviço militar obrigatório; as mulheres, os estrangeiros (metecos) e os escravos estavam excluídos da participação política.

99 ENGELS, Friedrich – Ibidem, p. 154.

100 PENEDOS, Álvaro José dos (1977) – O Pensamento Político de Platão, volume I - Da Apologia de Sócrates ao Ménon, tese de doutoramento em Filosofia e História da Filosofia.

Porto: Faculdade de Letras, p. 118.

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esta101. Isto, numa altura em que o governo democrático fora substituído pela oligarquia dos “trinta tiranos”, chefes que tomaram o poder após a derrota de Atenas em Egospótamo no ano de 404 a.C. com que finda a guerra do Peloponeso contra Esparta. Este regime, contudo, só durou um ano e a democracia foi, entretanto, restaurada. Mas a democracia das cidades-Estado gregas, concretamente a ateniense onde o modelo conheceu o seu melhor desenvolvimento, enfermava, como já vimos, do principal problema de não ser um modelo de governação extensivo a todos os membros da comunidade. Além dos escravos, também as mulheres não tinham direito à participação na gestão da causa pública, tão-pouco os imigrantes que se fixavam em Atenas ainda que provenientes de outras cidades gregas.

Na democracia grega acresce ainda o facto da política e da administração do Estado ser, na prática, exercida pelos cidadãos mais ricos, menos subjugados por extremas condições de trabalho e de subsistência que limitavam o tempo para a participação, e pelos mais letrados e com maiores dotes de oratória, constituindo-se assim uma casta de políticos. Por outro lado, as reuniões da assembleia tinham lugar na metrópole o que sonegava na prática os habitantes da periferia, como os camponeses reféns do trabalho árduo dos campos, também sem grande disponibilidade de tempo.

Comparativamente com as modernas democracias parlamentares, a democracia ateniense tinha a vantagem de incidir sobre um território e uma população restrita. Ao contrário do que se passa hoje nas grandes nações, tudo isso facilitava o exercício da democracia presencial e direta pelos cidadãos nas assembleias e nos tribunais. A democracia grega era assim limitada em extensão e alcance porque estava confinada às pequenas cidades-Estado e englobava uma minoria de cidadãos com direitos democráticos. Além disso, foi curta e instável no seu período de vigência, do sexto ao quarto séculos antes de Cristo.

Para Montesquieu e Rousseau a democracia era tolerável num estado muito pequeno, mas inexequível num grande país. Como afirma Will Durant (1885-1981)102, a democracia ateniense é a mais estreita e completa da história, estreita quanto ao número daqueles que partilham os seus privilégios, completa na precisão e igualdade com que todos os cidadãos controlam a legislação e administram os negócios públicos103. Rica em profundidade e pobre em extensão, é caso para concluir.

Não podemos, em qualquer caso, assacar responsabilidades à democracia grega das cidades-Estado porque corresponde sempre a um salto qualitativo em relação aos modelos governativos anteriores e aos que se lhe seguiram durante vários séculos. Não há democracias ideais e, com certeza, a grega também não o era, mas dado o enquadramento sócio histórico, a república ateniense é ainda hoje uma extraordinária referência da teoria política no que concerne ao exercício do poder.

A democracia política nascida na Grécia antiga não conduziu diretamente às novas e

101 PLATÃO (399 a.C.?) – Op. cit., pp. 51-53.

102 Filósofo e historiador norte-americano, do século XX, coautor de A História da Civilização, publicada em onze volumes (1935-1975).

103 DURANT, William James (1939) – The Life of Greece in The Story of Civilization, volume II. Nova Iorque: Simon and Schuster, p. 266.

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modernas democracias, porque foi necessário esperar cerca de 1800 anos para que um sistema político democrático no seu verdadeiro sentido desse de novo um ar da sua graça.

Roma tornou-se uma república em 509 a.C., no momento em que o rei foi expulso pela aristocracia. A República romana, que durou mais tempo do que a democracia ateniense, termina com a implementação da ditadura absolutista de Júlio César (49 a.C.). As instituições romanas, tal como as atenienses, também serviram de inspiração para a democracia representativa dos nossos dias. O historiador grego Políbio (c.203120 a.C.) descreveu o sistema romano como uma combinação de monarquia (cônsules e tribunos, com funções executivas, eleitos pela assembleia por mandatos de um ano), aristocracia (senado, que formulava as políticas e aconselhava os decisores, composto por ex-magistrados, que também cuidava da administração geral, das finanças, da justiça e da diplomacia) e democracia (assembleia popular - comitia, onde se votavam, sem debate prévio, as políticas, se elegiam os magistrados e se aprovavam as leis). Nas comitia não havia lugar a debate prévio antes das votações. Apenas nas reuniões do contio, convocadas por magistrados para discutir um determinado tema, se discutiam leis e assuntos políticos, sem votações. Os magistrados mais importantes eram os dois cônsules (eleitos anualmente pela assembleia, com o aconselhamento do senado), que herdaram as prerrogativas do rei, ou seja, comandar o exército e consultar os deuses em nome do Estado; os restantes tribunos eram responsáveis pelas questões económicas, financeiras e judiciárias, entre outras competências.

A participação em Roma era mais extensa que em Atenas, porquanto incluía os cidadãos forasteiros e os descendentes de escravos libertos, mas apenas uma minoria de romanos continuava em condições de votar os seus representantes, sendo que os votos dos membros das famílias mais ricas e poderosas, incluindo os senadores, pelo sistema de gerrymandering104, tinham maior peso na votação.

Segundo Carl Grimberg (1875-1941)105, os cidadãos romanos que pretendiam uma função política tinham por hábito misturar-se com o povo, lisonjeando-o, e usavam uma toga de pano branco, a “toga cândida”, daí a expressão “candidato”106 .

Por outro lado, a democracia em Roma não existia em profundidade, como em Atenas, já que o Senado, que controlava o exército, a justiça, as finanças, os negócios e os assuntos estrangeiros, eleito pela aristocracia e oligarquia, era o órgão máximo. A constituição da república romana, apesar de manter a proibição de detenção de poderes políticos perenes, refletia nas suas emanações os conflitos entre os aristocratas proprietários de terras (os patrícios) e os plebeus, em muito maior número.

104 Termo que provém de Elbridge Gerry, que foi governador do Estado de Massachusetts e vice-presidente dos EUA; consiste em redesenhar territorialmente os círculos eleitorais para favorecer este ou aquele candidato no número de representantes a eleger ou, simplesmente, para favorecer ou prejudicar um determinado grupo étnico, religioso ou social.

105 Historiador sueco, autor de uma monumental História Universal que começou a escrever em 1926 e que foi finalizada por Ragnar Svanström.

106 GRIMBERG, Carl (1926→) – História Universal, Das origens de Roma à formação do Império, 4.º volume, tradução de Jorge de Macedo para a edição em língua portuguesa de 1966. Lisboa: Publicações Europa-América, p. 148.

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O advento da Roma imperial com Otávio Augusto (27 a.C.), manteve o Senado com os magistrados eleitos anualmente como na república, a quem foram subtraídos, no entanto, os mais altos poderes de decisão política e militar. Mas se é verdade que a república romana não mais foi restaurada, o termo res publica (termo latino que significa literalmente a “coisa pública”) continuou a ser utilizado para designar o funcionalismo e o Estado.

O poder quase absoluto dos patrícios romanos apenas foi posto em causa pelos irmãos Graco, na primeira metade do século II a.C., tribunos inspirados pelo ideal democrático grego que se baseavam nas aspirações dos plebeus e camponeses e que procuraram transferir alguns poderes do Senado para a assembleia popular, adotar reformas agrárias, eleger tribunos responsáveis perante o povo e reformar o poder judicial. Os irmãos Tibério e Caio Graco, netos de Cipião-o-Africano, acabaram por ser eliminados, o primeiro foi assassinado, conjuntamente com 300 dos seus correligionários cujos corpos foram lançados ao Tibre, e o segundo pediu que o matassem, assim como foram esmagadas todas as tentativas subsequentes de impor uma democracia do tipo ateniense. As reformas propostas pelos Gracos esbarraram sempre com o poder dos aristocratas optimates, “os melhores” (a fação mais conservadora do Senado), que pretendiam limitar as assembleias populares e conferir ao Senado poderes absolutos. Na esteia de Aristóteles, o político e orador romano Cícero (106-43 a.C.)107 subdivide as formas de governo em monarquia (regnum), aristocracia (civitas optimatium), em que o poder é exercido pelos optimates (a aristocracia romana subdividia-se nos optimates, a classe mais alta, e nos equestres, a mais baixa, a que pertencia Cícero –nota dos autores), e a democracia (civitas popularis), o governo do povo, em que a monarquia e a aristocracia podem degenerar em tiranias e a democracia em ditadura da maioria, contrariando-se assim o desígnio de uma res publica mais justa, próspera e imortal, de um regime misto que sintetize as três formas puras, ou seja, de um regime constitucional que reúna a liberdade (libertas) da democracia, a autoridade (auctoritas) da aristocracia e o poder (potestas) da monarquia. Mas, na verdade, Cícero não era um democrata, mas um meritocrata, porquanto acreditava que o poder devia ser atribuído aos “melhores” (não aos mais ricos), reservando-se, no entanto, ao povo alguma liberdade e mesmo participação organizada na política. Apesar das suas limitações como democracia, a República romana era um Estado-nação, o primeiro no mundo ocidental com estas características. Por outro lado, o modelo romano de governo inspirou muitos pensadores políticos ao longo dos séculos. As democracias representativas modernas imitam mais o modelo romano que o dos gregos, porque se tratava de um Estado em que o poder era exercido pelo povo e pelos seus representantes, eleitos pelo povo, que por sua vez elegiam o líder ou o nomeavam. Já o pensamento político romano não trouxe novas aquisições para o desenvolvimento das ideias e das instituições democráticas.

Também o cristianismo primitivo (30-325), professado pelos hebreus, israelitas e gentios convertidos, pouco trouxe de significativo para a cultura democrática, apesar do

107 Político, escritor, orador e filósofo da gens Túlia, eleito cônsul em 63 a.C., e um dos maiores oradores e escritores em prosa da Roma antiga.

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igualitarismo proclamado e do seu abnegado libelo contra a violência e a injustiça dos primeiros anos. O imperativo religioso que o caracterizava continha em si a antítese do espírito democrático. A título de exemplo, “a parábola dos trabalhadores na vinha”108 é disso prova cabal, quando os trabalhadores contratados pelo proprietário (que simboliza o Reino dos céus) são remunerados de forma igual (um “dinheiro” para cada um), independentemente do tempo de trabalho que despenderam. Apesar de simbólico, é o poder unilateral e discricionário de Jesus, filho de Deus, que o determina, sem qualquer critério de equidade social. Paulo (Saulo) de Tarso (c.5-c.67), judeu e cidadão romano convertido ao cristianismo e um dos seus mais influentes pregadores, que marcou Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, escreveu que não há autoridade que não venha de Deus e que as autoridades que há foram ordenadas por Deus109. Neste texto do apóstolo (c.55), a mais longa das epístolas paulinas, também conhecida como “carta aos romanos”, provavelmente escrita em Corinto (Grécia), perpassa também a visão ascética do cristianismo primitivo que repulsa a libertação humana do jugo do poder, a rebeldia à autoridade, e preconiza a submissão através do castigo e da consciência. E mais advoga, na “primeira epístola aos coríntios”, do mesmo ano da anterior e a segunda carta escrita em Corinto, que cada um fique diante de Deus no estado em que foi chamado, na condição de servo é liberto do Senhor, na condição de livre é servo de Cristo110. É esta imutabilidade e fatalismo que incompatibiliza a teologia e a democracia.

De perseguidos, os cristãos passam a perseguidores. Depois do Concílio de Niceia (325), convocado pelo imperador Constantino, em que o arianismo é condenado por heresia, no ano 356 os templos pagãos são encerrados e os seus bens confiscados, em 380 o imperador Teodósio declara o cristianismo como a religião oficial do império e suprime os direitos políticos aos não cristãos111. Ainda segundo António Coelho112, nas províncias romanas da Lusitânia e da Galécia a corrente cristã “priscilianista” admitia a participação de leigos e de mulheres nas cerimónias do culto, prática que subvertia a hierarquia eclesiástica, mas que foi sol de pouca dura, porquanto no I Concílio de Saragoça (385) os bispos condenaram a heresia priscilianista (que ainda durou cerca de dois séculos mais, inclusivamente na Aquitânia) e, no mesmo ano, o próprio Prisciliano113 é decapitado por ordem do imperador Maximiano114.

108 Capítulo 20 do Evangelho segundo Mateus (escrito provavelmente entre 70 e 115), in Bíblia Sagrada, tradução de João Ferreira de Almeida para a 4.ª edição em língua portuguesa de 2009. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, p. 955.

109 Ibidem, p. 1116.

110 Ibidem, p. 1125.

111 COELHO, António Borges (2010) – História de Portugal, volume I - Donde Viemos. Amadora: Editorial Caminho, pp. 96-97.

112 Historiador e político português nascido em 1928, é catedrático jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa e, além de uma História de Portugal em VII volumes, é autor da obra Portugal na Espanha Árabe (1972-75).

113 Bispo de Ávila, fundador do priscilianismo.

114 COELHO, António Borges (2010) – Op. cit., pp. 98-99.

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1.5. A democracia comunal e as Repúblicas italianas

Na época medieval acrescem esporádicas tentativas de soberania popular, numa sociedade feudal dogmaticamente dominada pela nobreza e pelo clero e claramente aristocrática, senão autocrática.

Mais uma vez é nas cidades, nas comunas, tal como nas cidades-Estado, que a democracia tem condições para singrar, depois do obscurantismo que decorre do século VI, após a queda do Império Romano do Ocidente, ao século XII, com o crescimento do comércio e o florescimento das cidades e com o primado urbano dos mercadores e dos artesãos que impunham novas regras fiscais, mercantis, legais e de gestão pública.

Como escreve George Novack, a democracia comunal era a expressão política da oposição entre a cidade e o campo no contexto medieval, em que o despotismo dos senhores, nobres e prelados, correspondia às necessidades intrínsecas da organização agrária feudal e a democracia das comunas era um atributo da cidadania, dos habitantes da cidade115. Aos servos e camponeses contrapõem-se os mercadores e artesãos, que requeriam formas de legislação e de governo adequadas às suas novas condições de vida e de trabalho. A comuna era uma espécie de associação de homens da cidade, nobres e burgueses, que juraram manter as suas instituições e aumentar as liberdades individuais. Mas embora as cidades-Estado italianas, como Veneza, Piza e Florença, tivessem logrado obter uma certa autonomia e independência em relação ao príncipe e ao bispo, a administração interna destas cidades não era verdadeiramente democrática. O governo era em grande parte exercido pelos oligarcas e plutocratas, isto é, por um restrito número de famílias que enriqueceram com o comércio ou com a banca.

Na Idade Média em Portugal, nas chamadas terras imunes, onde o rei renunciava a cobrar tributos, existiu, pelo menos até ao século XVI, uma curiosa forma de organização territorial - as beetrias. Segundo Marcello Caetano (1906-1980)116, tratava-se de terras senhoriais em que os senhores eram escolhidos pelos habitantes, portanto, comunidades rurais de homens livres que tinham a prerrogativa de eleger o nobre que desejavam para seu senhor e destituí-lo, ao contrário dos coutos e honras117. O termo provém do latim tardio benefactoria, que degenerou em befetria → beetria por síncope consecutiva de fonemas interiores, mantendo a relação jurídica original entre um homem livre e um homem mais poderoso que o protege.

Ainda de acordo com George Novack, os artífices de Liége tornaram-se os mestres na constituição municipal e criaram o governo mais democrático que os Países Baixos conheceram (o conselho da cidade era composto por representantes eleitos por todas as trinta e duas artes, com iguais direitos), que durou em certos aspetos até ao final do século XVII118. Ainda para este autor, o desenlace da democracia medieval teve lugar

115 NOVACK, George (1976) – Op. cit., pp. 54-55.

116 Professor de Direito e político português, que foi o último Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo.

117 CAETANO, Marcello (1978-1980) – História do Direito Português. Fontes-Direito Público (1140-1495). Lisboa: Editorial Verbo, p. 227.

118 NOVACK, George (1976) – Op. cit., pp. 59-60.

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em Florença que, de 1378 a 1464, atravessou um ciclo de desenvolvimento político comparável ao de algumas das cidades-Estado gregas, mas em que, a partir do século XV, a família de banqueiros e mercadores dos Médicis usurpou os poderes da república, subverteu as liberdades da sua constituição democrática e adquiriu o controlo completo do governo; a regressão democrática espalhou-se a outras Repúblicas italianas (que foram uma ponte entre as repúblicas gregas e as democracias parlamentares burguesas), ao ponto de, a partir de meados do século XV, os privilégios das comunas (que não conheceram a escravatura e se apoiavam nos grémios mercantis e oficinais) terem sido gradualmente retirados e as liberdades dos cidadãos negadas, à medida que os Estados europeus se foram centralizando sob as monarquias absolutas dos séculos XVI e XVII119

As “comunas” no sentido restrito do termo eram povoações que, na Idade Média, se tinham emancipado do feudalismo e se governavam de forma mais ou menos autónoma, mediante a contrapartida de um pagamento ou da soberania conquistada através da guerra, arrimada em valores sociais como a lealdade e liberdade que argamassavam a burguesia ascendente.

Alexis de Tocqueville, a propósito dos primórdios da democracia norte-americana, esclarece as características e o funcionamento das comunas da Nova Inglaterra da primeira metade do século XIX, em que o poder é exercido imediata e diretamente pelos cidadãos, sem possibilidade de representação nos assuntos legislativos ou governamentais, mas apenas nos assuntos de carácter geral. Para Tocqueville, as instituições comunais da Nova Inglaterra formam um conjunto completo e regular, fortes pelas leis, mais fortes ainda pelos costumes, em que o povo é a fonte dos poderes sociais e a lei da representação não é de modo algum admitida; não existe nenhuma forma de conselho municipal, uma vez que o corpo dos eleitores, depois de ter nomeado os seus magistrados, os dirige diretamente, em tudo o que não é a execução pura e simples das leis; a maior parte dos poderes administrativos é concentrada nas mãos de um pequeno número de indivíduos, eleitos a cada ano, que recebem o nome de select-men, funções de aceitação obrigatória que, por isso mesmo, são geralmente remuneradas, por forma a que os cidadãos pobres a elas possam consagrar o seu tempo sem serem prejudicados120. Estes “procedimentos” comunais gozavam de credibilidade e reconhecimento junto dos cidadãos que os incorporaram no seu quotidiano e com eles desenvolveram laços de confiança e reciprocidade nos mecanismos de decisão coletiva.

1.6. Política e democracia, da Antiguidade à Idade Moderna

O termo política deriva do étimo grego antigo politeía, que se referia a todos os processos relativos à polis grega. Os primeiros escritos políticos que nos chegaram são talvez os de Anaximandro, Heródoto e Isócrates, antes de Platão ter procedido à sistematização da teoria política.

A primeira exposição acerca das formas de governo foi apresentada pelo historiador e

119 Ibidem

120 TOCQUEVILLE, Alexis de (1835) – Op. cit, pp. 72-73.

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geógrafo grego Heródoto quando já nos fala em democracia, monarquia e oligarquia121 , e se Clístenes cunhou a palavra “isonomia” (c. 508 a.C.), foi Heródoto que lhe deu um maior significado quando, pela boca da sua personagem Otanes (nobre persa), escreveu que o governo do povo tem o melhor nome do mundo (isonomia), em que as magistraturas se desempenham por sorteio, cada um presta contas dos seus cargos e todas as deliberações se submetem à comunidade, exortando o povo ao poder pois no coletivo reside tudo122. Heródoto, através da isonomia (termo em uso para descrever o regime democrático, antes que o termo “democracia” se generalizasse), chega assim ao conceito da igualdade dos direitos civis e políticos dos cidadãos.

Por seu lado, Isócrates (436-338/36 a.C.), retórico ateniense, é considerado o pai da oratória porque foi o primeiro a escrever discursos.

Mas é Sócrates, geralmente considerado o pai da Filosofia, bem como o precursor da chamada filosofia política, que primeiro começa a refletir sobre a verdade e a aparência da verdade, o que é justo ou o que é injusto, sendo que só à “política” compete estabelecer quem tem o poder de tomar decisões, justas ou não. Desde os seus primórdios que, de algum modo, o pensamento dos filósofos gregos refletiu sobre a relação entre o poder e a justiça.

O pré-socrático Anaximandro de Mileto (610-546 a.C.), discípulo de Tales de Mileto, e considerado por alguns estudiosos o primeiro filósofo ocidental, afirmou que o princípio de todos os seres é o ilimitado e que os seres se corrompem segundo a justiça e a ordenação do tempo.

Contudo, é com Platão, cujo mestre foi Sócrates e o seu discípulo Aristóteles, que a teoria política mais se desenvolve e sistematiza. Se Sócrates pode ser considerado o “pai” da Filosofia, Platão pode sê-lo da Filosofia Política.

Ressalta assim que, na Grécia antiga, sobretudo no contexto da formação da democracia política e à medida que a ponderação sobre o exercício do poder na polis avança, o pensamento filosófico sobre a natureza do poder estava intimamente associado à reflexão sobre as formas de governo.

Os longos mil anos que decorrem do século V ao século XV, ao contrário do que comummente se pensa, não são totalmente retrocessivos ou inócuos do ponto de vista da evolução do conceito de democracia como forma de governo.

Os sermões do teólogo e filósofo Santo Agostinho (354-430) indiciam, no pensamento do bispo de Hipona, a necessidade do poder político e do Estado para salvaguardar a paz na Terra, ao tempo do declínio do império romano do ocidente. Em A Cidade de Deus (426), a sua obra mais conhecida, o doutor da Igreja, que estudara Platão e Cícero, defende o Estado (terreno) como um mal necessário até que surja o Estado divino (a que a Igreja não corresponde), em que não existam “instituições” de governo defeituosas, como o poder da força, a propriedade privada e a escravatura.

121 HERÓDOTO (430→424 a.C.) – Historia, Livro III - Talia, tradução e notas de Carlos Schrader para a edição em língua espanhola de 1979. Madrid: Editorial Gredos, pp. 160165.

122 Ibidem, p. 161.

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No que concerne ao pensamento político destacam-se, depois de Agostinho, figuras como Mangoldo de Lautenbach (?1030-1103), partidário do Papa Gregório VII contra o Imperador Henrique IV, que nos seus escritos de 1093 imprecava contra o abuso do poder, ou João de Salisbúria (?1115-1180), autor de Policraticus (O Livro do Estadista), que preconizava a desobediência, eticamente justificada, ao soberano que violasse a lei natural. Também o teólogo italiano Tomás de Aquino (1225-1274), que distingue entre a obediência crítica e a obediência cega à autoridade, nos deixou alguns apontamentos políticos, imbuídos do pensamento de Aristóteles, nomeadamente na sua obra Summa Theologiae, como o da multidão ser mais bem governada por um só do que por vários e o do governo do mundo ser obra de um único governante123. Mas o pensamento tomista filosófico não dispensa a autoridade divina quando advoga que, não havendo solução humana para a tirania, há que recorrer a Deus, rei de todos, porque só ele pode converter o coração cruel do tirano, como se lê no seu opúsculo inacabado Regimine Principum, também dito de Reglo ad Regem Cypre124, terminado pelo seu discípulo Ptolomeu de Luca.

As ideias de Aquino, independentemente de se basear no governo divino e na sua emanação terrena do governo do “príncipe”, influenciaram o pensamento político dos finais da baixa Idade Média e do início da Idade Moderna, pelo menos no que concerne às limitações que devem ser impostas a quem governa para se evitar a desordem e a tirania (“aquilo a que tende a intenção do que governa a multidão é a unidade e a paz”125). Desde Platão que a história das ideias políticas consagra a liberdade de não se obedecer a uma autoridade despótica.

Cerca de dois séculos e meio depois de Aquino, Nicolau Maquiavel (1469-1527)126, foi um dos grandes responsáveis pelo novo conceito de poder do Estado assente na ideia do bem comum como escopo da ação política. Na sua segunda obra mais conhecida Discursos, Maquiavel considera que, em princípio, as repúblicas são melhores que as monarquias, quando afirma que “nada há que torne mais estável e firme uma república do que ordená-la de tal modo que a alteração dos humores que a agitam encontre via de desafogo ordenada pelas leis”127. Ainda nos seus Discursos, Maquiavel, na linha das formas (modos) de governo de Aristóteles e Cícero, estabelece que nas repúblicas

123 AQUINO, Tomás (1265-1273) – Suma teológica, volume II – O governo divino, introdução e notas de Marie-Joseph Nicolas para a edição em língua portuguesa de 1992. São Paulo: Edições Loyola, p. 710.

124 AQUINO, Tomás de (1265-1266) – Regimine Principum, Livro II, Cap. VI, traduzido por Laureano Robles e Ángel Chueca, a partir da versão castelhana La monarquia, Santo Tomás de Aquino de 1995. Madrid: Tecnos, pp. 31-33.

125 AQUINO, Tomás (1265-1273) – Op. cit., p. 710.

126 Filósofo, historiador e diplomata florentino, que é reconhecido como o fundador do pensamento e da ciência política moderna, foi contratado por Júlio de Médici, que depois se tornou papa com o nome de Clemente VII, para escrever as Histórias florentinas (1520-1527), obra em oito volumes à qual Maquiavel dedicou os seus últimos anos.

127 MAQUIAVEL, Nicolau (1517) – Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, glossário e revisão técnica de Patrícia Fontoura Aranovich para a versão em língua portuguesa de 2007. São Paulo: Martins Fontes, p. 33.

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existem três “estados” bons (principado, optimates e popular), que podem degenerar em perniciosos (tirania, governo de poucos, estado licencioso)128.

Já na sua obra mais conhecida, O Príncipe (De principatibus), inspirado no estilo político de César Bórgia apesar de dedicado a Lourenço II de Médici, pode ler-se que “os estados bem ordenados e os príncipes sábios procuram diligentemente não exasperar os grandes e satisfazer o povo […] entre os reinos bem ordenados e governados no nosso tempo está o de França. Nele se encontra uma infinidade de boas instituições de que dependem a liberdade e a segurança do rei, a primeira das quais é o parlamento e a sua autoridade”129. A aparente contradição no pensamento de Maquiavel deve-se ao período político conturbado vivido na Itália do início do século XVI, invadida e dividida por exércitos estrangeiros (franceses e espanhóis) que faziam perigar as repúblicas italianas de Veneza, Pisa e, sobretudo, Florença, a sua terra natal. Poderemos assim considerar que, em Maquiavel, a monarquia (principado) é um mal necessário quando o regime republicano degenera por falta de estabilidade política e jurídica.

Thomas More (1478-1535)130 é o autor da Utopia (1516), a sua obra mais conhecida, que de certo modo procurou dar continuidade a O Elogio da Loucura (1509) que o amigo Erasmo de Roterdão lhe tinha dedicado. A palavra “utopia”, de raiz etimológica grega (ou, não + tópos, lugar), isto é, o «não-lugar», passa a ser um neologismo quando descreve o novo género literário criado por More. Segundo João Rosas, a sociedade perfeita surge como um contraponto à sociedade distópica, o modelo de sociedade “utopiana” permite perceber de forma mais clara o que está errado nas sociedades reais, mas a utopia “moreana” não é um programa de ação política, antes um dispositivo de crítica social131

No livro II da Utopia, pode ler-se que a lei obriga a que as moções de interesse geral sejam discutidas no senado três dias antes de irem à votação e do projeto ser convertido em decreto, e que reunir fora do senado e das assembleias do povo para deliberar sobre os negócios públicos é crime punível com a morte132. O visionário More também antecipa a ideologia socialista da repartição igualitária dos bens, uma sociedade sem propriedade privada, sem antagonismo entre a cidade e o campo, sem trabalho assalariado, em que o Estado administra a produção dos bens e regula o consumo. Mas, politicamente, não pretende reverter a aristocracia ofuscante que conheceu em Inglaterra e França, mas apenas denunciar o que está mal, porque ele próprio, não acredita verdadeiramente na solução e, ao contrário do seu contemporâneo florentino Maquiavel, não procura sequer adaptar-se. More acabou por ser vítima do despotismo e da vingança

128 Ibidem, p. 14.

129 MAQUIAVEL, Nicolau (1513) – O Príncipe, tradução de Diogo Pires Aurélio para a edição em língua portuguesa de 2023. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 131-132.

130 Escritor, filósofo e diplomata inglês, que foi chanceler do reino de Henrique VIII; foi beatificado em 1886 pelo Papa Leão XIII.

131 ROSAS, João Cardoso (2020) – Maquiavel e Moro, in História da Filosofia Política, coordenação de João Cardoso Rosas. Oeiras: Editorial Presença, p. 191.

132 MORE, Thomas (1516) – Utopia, tradução de Nélson Jahr Garcia para a edição em língua portuguesa de 2001. [S. l.]: Ridendo Castigat Mores, p. 85.

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pessoal de Henrique VIII, ao ser executado na Torre de Londres a 6 de julho de 1535, em uma das mais injustas sentenças aplicadas contra um homem de honra.

Já Erasmo de Roterdão (1466-1536)133, na mesma perspetiva democratizante da sociedade monárquica de More e num autêntico libelo contra os poderosos e a hierarquia da Igreja, escreve que quem toma as rédeas do governo deve entregar-se aos assuntos do Estado e não aos seus próprios, há de pensar apenas no bem-estar e progresso do seu povo e garantir a integridade dos funcionários e magistrados134.

Também na linha dos clássicos Platão, Aristóteles e Cícero e do renascentista Maquiavel (Discursos), também Jean Bodin (1530-1596)135 escreve na sua República: “Há somente três estados […] a monarquia, a aristocracia e a democracia. Chama-se monarquia quando apenas um detém a soberania […] e o resto do povo não tem voz; democracia, ou estado popular, quando todo o povo, ou a maioria deste em conjunto detém o poder soberano; aristocracia quando a minoria do povo detém a soberania em conjunto e dá lei ao resto do povo […] Todos os antigos estavam de acordo que havia pela menos três espécies”136. Mas ao contrário daqueles, não advogava o “governo misto”, que refuta de regime bastardo cheio das piores dissensões, tendente à anarquia. Assim, segundo Bodin, o Estado popular, que contrapõe ao Estado aristocrático ou monárquico, é uma forma de República (república não no sentido de sistema de governo, mas de modo de governo) onde a maior parte do povo tem soberania não apenas sobre cada um em particular, mas também sobre a menor parte de todas as pessoas. Da mesma forma, Bodin distinguia Estado (república) de governo, o primeiro a organização da sociedade política, o segundo o modo como o poder é exercido, que pode ser de forma legítima, despótica ou tirânica. De acordo com Jean-Jaques Chevallier (1900-1983)137 , que considera Bodin, não só estilística como formalmente, muito distinto de Maquiavel, se vê por um lado que o escritor angevino entende por “república” a coisa pública, à maneira antiga, a comunidade política em geral, e não uma forma de governo oposta à monarquia, e por outro lado que não defende os feitos (de que Maquiavel era idólatra) mas a legitimidade política do governo138

133 Teólogo e filósofo humanista holandês, cuja obra principal é Laus Stultitiae (Elogio da Loucura), dedicada ao seu amigo Thomas More.

134 ERASMO DE ROTERDÃO (1509) – Elogio de la loucura, tradução, introdução e notas de Pedro Rodríguez Santidrián para a edição em língua espanhola de 1984. Madrid: Alianza Editorial, p. 116.

135 Jurista e teórico político francês da segunda metade do século XVI, autor de Método para a fácil compreensão da história (1566), além da sua mais conhecida obra, citada neste ensaio.

136 BODIN, Jean (1576) – Os Seis Livros da República, livro II, tradução e revisão de José Ignacio Coelho Mendes Neto para a edição em língua portuguesa de 2011. São Paulo: Ícone Editora, p. 12.

137 Jurista e historiador francês do século XX, foi professor na Faculdade de Direito e Ciências Económicas de Paris e presidente da Academia das Ciências Morais e Políticas do Instituto de França.

138 CHEVALLIER, Jean-Jacques (1949) – Los grandes textos políticos desde Maquiavelo a nuestros dias, tradução de Antonio Rodriguez Huescar para a edição em língua espanhola de 1977, com base na edição francesa de 1970. Madrid: Aguilar, p. 40.

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Dias
Carlos
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Pouco depois de Bodin, na Inglaterra, o jurista Edward Coke139 concebeu o Estado como o único ordenamento possível da soberania de um povo. Coke foi, aliás, o principal redator da Petition of Right (1628), considerado um dos três documentos constitucionais cruciais da Inglaterra, em conjunto com a Magna Carta (1215) e a Bill of Rights (1689), uma das bases do direito constitucional britânico, que corrobora direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e limita o poder monárquico sobre o parlamento, prerrogativas que também estariam previstas na obra Dois Tratados Sobre o Governo de John Locke (1632-1704)140, de quem falaremos mais à frente.

Do filósofo holandês Baruch de Espinosa (1632-1677)141, conhecem-se dois tratados, o Tratado Teológico-Político e o inacabado Tratado Político. Depois de proceder a uma caracterização do estado monárquico e do estado aristocrático, Espinosa passa a descrever o estado democrático, em que ninguém tem o direito hereditário de voto ou de acesso aos cargos do estado, mas em que todos aqueles cujos pais são cidadãos (excluindo as mulheres e os servos, bem como os filhos e os pupilos) ou que nasceram no solo pátrio, ou a quem a lei, por outros motivos, manda atribuir o direito de cidade, têm o direito de reclamar para si o direito de voto no conselho supremo e de aceder a cargos do estado142.

Thomas Hobbes (1588-1679)143, que antecedeu Espinosa, cerca de vinte e cinco anos antes do Tratado Político escreveu outro grande clássico da literatura política, o Leviatã144 .

A ontologia espinosiana refutou as ideias hobbesianas de contrato e representação, mas ambos admitiam que a natureza do poder era geneticamente democrática. Para Espinosa, os homens são a essência de todo e qualquer imperium, de toda e qualquer res publica. A sua discordância em relação a Hobbes consiste numa diferente valoração política da multidão, que Espinosa considera incapaz de produzir o direito comum e de configurar uma comunidade politicamente organizada. No seu prefácio de Leviatã, João Monteiro sublinha que, tal como os outros filósofos políticos clássicos, como Espinosa logo depois dele, Hobbes admite as três formas de governo tradicionais, a monarquia, a aristocracia (aristocracia de estilo hobbesiano,

139 Edward Coke foi um jurista e político inglês dos séculos XVI e XVII.

140 Filósofo inglês considerado o pai do liberalismo, o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social, escreveu o Ensaio acerca do Entendimento Humano (1689).

141 Foi um filósofo de origem judaico-portuguesa nascido nos Países Baixos, filho de uma família perseguida pela inquisição em Portugal que se refugiara em Amsterdão, um dos primeiros pensadores do Iluminismo que veio a ser considerado um dos grandes racionalistas da filosofia do século XVII.

142 ESPINOSA, Baruch de (1675-1676) – Tratado Político, tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio para a edição em língua portuguesa de 2009. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, pp. 137-139.

143 Matemático, filósofo e teórico político inglês, autor da obra conhecida abreviadamente como Leviatã; influenciado por grandes nomes como Francis Bacon e Galileu Galilei, Hobbes refutou a metafísica e buscou a causa e a propriedade das coisas.

144 Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil

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cujos membros são escolhidos por todos os cidadãos e em que os laços de sangue nada importam) e a democracia (democracia de estilo hobbesiano, com a participação de todos os cidadãos)145. Temos, portanto, em Hobbes, no seu modelo aristocrático uma espécie de democracia representativa e no seu modelo democrático uma espécie de democracia direta.

É o mesmo Thomas Hobbes que, em outra obra de grande envergadura, sublinha a relação entre o “cidadão” e o poder soberano, como o tinha feito Aristóteles no livro III da sua Política, mas Hobbes, ao contrário do filósofo grego, não considera a democracia como um regime político “desviado”, apenas a pretere em favor da monarquia. Do ponto de vista da validação do regime democrático, constatamos no filósofo do século XVII um aparente retrocesso civilizacional como corroboram as suas próprias palavras: “Alguns consideram que a monarquia é mais incómoda que a democracia porque há naquela menos liberdade que nesta […] Se entendem que a liberdade consiste em que haja poucas leis, poucas proibições, e que sejam estas tais que sem elas não haveria paz, então nego que haja mais liberdade na democracia que na monarquia”146 . Se autores medievais do século XIII, como Guilherme de Moerbeke (c. 1215-1286)147, mantiveram a ideia aristotélica da politeia (politia) como organização institucional do poder na polis (civitas), ou seja, que a cidade grega era a mera matéria (conjunto de cidadãos) que se configurava pela autoridade política, e outros mais tardios, do século XV, traduzem o termo politeia como res publica, como forma de organização política da sociedade, aproveitando a conotação das corporações medievais como “repúblicas”, também autores dos séculos XVI e XVII contrapõem os termos civitas e res publica, isto é, a massa dos cidadãos (matéria) e as instituições do poder (forma e sentido que ganha a matéria). Dicotomia que, no entanto, contestam os filósofos do direito natural do século XVII, como John Locke e Thomas Hobbes, para quem “república” significa, não a mera organização societal, mas uma ordem jurídica e constitucional que os membros da “sociedade civil” se obrigam através de um contrato, com vista ao bem comum148. Sem esta visão contratualista, também Samuel Pufendorf149 defendeu que res publica não é a forma da civitas (conjunto dos cidadãos), mas a estrutura organizativa do Estado.

Nos finais do século XVII, John Locke contribuiu para o tema do Estado de direito com a obra Dois Tratados Sobre o Governo (1689), argumentando que a liberdade dos ho-

145 HOBBES, Thomas (1651) – Leviatã, prefácio de João Paulo Monteiro e tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva para a 4.ª edição em língua portuguesa de 2009. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, p. 9.

146 HOBBES, Thomas (1642) – Del Ciudadano (De Cive), introdução de Norberto Bobbio e tradução do latim por Andrée Catrysse para a edição em língua espanhola de 1966. Caracas: Instituto de Estudos Políticos, p. 177.

147 Tradutor belga do século XIII de obras filosóficas e científicas do grego para o latim, como a Política de Aristóteles.

148 ABELLÁN, Joaquín (2011) – Op. cit., pp. 111-116.

149 Jurista alemão da segunda metade do século XVII, escreveu De Jure Naturæ et Gentium, Libri VIII (1672).

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

mens que estão submetidos a um governo consiste em haver uma regra comum a todos os membros da sociedade que orienta a vida de cada um.

Em meados do século XVIII, como já vimos, Charles-Louis de Secondat, conhecido por Montesquieu, publica a obra Do Espírito das Leis (1748), na qual defendia a separação dos poderes entre as autoridades executiva, legislativa e judicial, de modo a que a justiça pudesse aplicar a lei, sem medo nem favor. Foi talvez o primeiro a teorizar a separação de poderes quando escreveu que existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, ou simplesmente poder executivo do Estado, e o poder judicial daquelas que dependem do direito civil, ou poder de julgar150.

Hoje, o Estado de direito é um pilar aceite pela democracia moderna e liberal, embora a sua implementação na prática continue a ser um desafio em países de todo o mundo, mesmo no hemisfério ocidental. Por outro lado, a noção de Estado de direito está associada à noção de Estado soberano, o que implica a existência de um território e de uma população com um governo reconhecido a nível interno e externo.

O termo “república” tem sido por vezes utilizado, não como sistema de governo que se contrapõe à monarquia, mas como forma de governo que se contrapõe tanto à monarquia como à aristocracia, isto é, quanto ao modo como o poder é exercido pelos governantes e “aceite” pelos governados. A palavra “república” só recentemente, a partir das revoluções francesa e americana, consolidou o sentido que lhe conferimos hoje, de sistema de governo. Em suma, até ao século XVIII a palavra aplicava-se à organização política da sociedade, à norma constitucional, mesmo que vigorasse uma monarquia, ou ao desígnio sociopolítico do bem comum e da “ordem” jurídica. 150

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MONTESQUIEU (1748) – Op. cit., pp. 167-168.
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2. AS REPÚBLICAS: EVOLUÇÃO PARA A DEMOCRACIA

Na mudança da estrutura política da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, antecedendo a implantação das repúblicas norte-americana e francesa, temos de fazer uma breve referência ao republicanismo que foi vivenciado pela sociedade burguesa que geria politicamente os Países Baixos, ainda no século XVII.

Efetivamente, a Holanda dos anos seiscentos tinha um modelo de sociedade bastante mais progressista que os restantes estados no continente europeu. Mais de metade da sua população era urbana e, a maior parte, integrava-se no grupo denominado “burguesia”, cujos membros se dedicavam predominantemente ao comércio, à indústria e aos negócios financeiros. O nível de vida da população, por consequência, era dos mais elevados da Europa.

Esta prosperidade holandesa resultava do incremento das atividades produtivas (agricultura e indústria) e do alargamento das redes marítimo-comerciais, com a conquista de algumas rotas comerciais que antes tinham sido portuguesas, como sucedeu, por exemplo, no Extremo Oriente.

De facto, desde finais do século XVI, graças à perda de autoridade política e de alguma autoridade religiosa por parte do Papa, muito por efeito da Reforma, os holandeses defenderam e puseram em prática a doutrina do mare liberum 151, segundo a qual o mar era livre, ou seja, todos os estados tinham direito à liberdade de circulação nos oceanos, ao contrário do que antes acontecia (o Tratado de Tordesilhas de 1494 dava grandes privilégios a portugueses e castelhanos que tinham o exclusivo da navegação oceânica). No século XVII, os holandeses conseguiram um enorme império colonial, com feitorias e entrepostos comerciais na África, no Oriente e nas Américas. O comércio colonial assentava nas companhias mercantis monopolistas, autênticas empresas capitalistas que pela sua estrutura e organização conseguiram facilmente concorrer com os impérios ibéricos (português e espanhol) controlados pelos respetivos monarcas.

As “Províncias Unidas” assentavam numa filosofia política, económica, social e cultural bastante diferente. Em termos políticos, eram republicanos e defendiam o liberalismo e o constitucionalismo, ideias que integram nitidamente os valores democráticos; em termos económicos, constituíram Companhias por ações, cujos acionistas eram capitalistas burgueses. Em termos sociais, a burguesia era o grupo claramente predominante nos Países Baixos desse tempo. Em termos culturais, a sociedade neerlandesa evidenciava já um espírito aberto e mais tolerante do que a generalidade da sociedade europeia contemporânea.

No outro lado do Canal da Mancha, na Inglaterra, nunca houve tradições de monarquia absoluta. Os reis que tentaram praticar uma política absolutista acabaram veementemente criticados e alguns perderam mesmo a coroa. Desde a Magna Carta (1215), os reis ingleses reconheciam ao Parlamento competências legislativas e fiscais. Carlos I, um dos reis que tentou enveredar pelo absolutismo, viu-se obrigado a jurar a “Petição

151 Hugo Grotius opôs-se, no seu De Jure Praedae Commentarius (princípio do século XVII), à teoria do mare clausum defendida por Portugal e Espanha, contrapondo a doutrina do mare liberum

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias dos Direitos” (1628). Contudo, não cumpriu devidamente o que havia jurado e a Inglaterra viveu uma guerra civil (entre “cavaleiros” e “cabeças redondas”) que acabou com a vitória de Cromwell (parlamentarista) e a execução do rei (1649).

Apesar de se dizer republicano, Cromwell governou em ditadura (1649-1658), ficando célebre o seu “Ato de Navegação” que representou para a Inglaterra o princípio do seu domínio hegemónico sobre o comércio marítimo mundial. A seguir, foi restaurada a Monarquia (Carlos II e Jaime II), mas as convicções religiosas e políticas contrárias às da maioria da população inglesa, ditaram o afastamento de Jaime II, substituído por Guilherme III, em 1688, data a partir da qual triunfou o parlamentarismo em Inglaterra, com o novo rei a jurar e a assinar a “Declaração dos Direitos” (1689).

2.1. A República Norte-americana

A Revolução americana proporcionou, sem dúvida, a primeira experiência democrática na passagem do Antigo Regime para a Época Contemporânea, implementando na prática política algumas das ideias iluministas. As treze colónias que a Inglaterra mantinha na faixa atlântica da América do Norte, na segunda metade do séc. XVIII, decidiram libertar-se do jugo colonial que prejudicava os seus interesses económicos. Reunindo os seus representantes no Congresso de Filadélfia decidiram estes, no dia 4 de julho de 1776, declarar unilateralmente a sua independência da Inglaterra. Os colonos expuseram as razões da sua rebelião e a justiça da sua causa num documento chamado The Declaration of Independence.

Nesse documento, elaborado por Jefferson, Adams, Franklin, Roger Sherman e Robert Livingston, está evidente a influência das ideias de John Locke sobre os direitos naturais, de Jean-Jacques Rousseau sobre o governo popular, de Montesquieu sobre a separação de poderes e de Voltaire sobre a liberdade de expressão e de religião. Foi depois aprovada, na Convenção Constitucional de Filadélfia de 1787, a constituição dos Estados Unidos da América, que entrou em vigor a partir de 1789, a segunda constituição mais antiga ainda em vigor, depois da de São Marino (Estatutos de 1600). A Declaração de Independência, cujo principal redator foi Thomas Jefferson (17431826)152, partia das seguintes verdades, válidas por si mesmas:

Quando, no curso dos eventos humanos, se torna necessário a um povo dissolver os laços políticos que o mantinham unido a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e independente para a qual as leis da natureza e do Deus da Natureza o autorizam, o respeito digno pelas opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Aceitamos como verdades inquestionáveis que todos os Homens nascem iguais, que o seu Criador os dotou de certos direitos inalienáveis, entre os quais a Vida, a Liberdade e a procura da Felicidade. Que, para garantir esses direitos, os Homens instituem entre eles governos, cujo justo poder emana do consentimento dos governados.

152 Estadista, diplomata e advogado, concluiu os estudos de Direito em 1767 e, em 1800, foi eleito o terceiro presidente dos Estados Unidos da América; morreu a 4 de julho de 1826, precisamente na data dos 50 anos da Declaração de Independência.

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Que, se um governo, seja qual for a sua forma, chega a não reconhecer estes fins, o povo tem direito de modificá-lo ou de aboli-lo e de instituir um novo governo.

Nas palavras deste texto fundamental não existe, com efeito, antagonismo entre o indivíduo e a sociedade, e a liberdade está condicionada ao cumprimento e ao respeito pelas leis naturais. Também o “governo” não é um dado absoluto, dependendo do julgamento do povo na sua continuidade como instituição.

Sucedeu-se uma guerra contra os ingleses, mas os americanos, com ajuda dos franceses, sairiam vencedores. Entre as motivações para a Independência estão: o aumento da carga fiscal nas colónias (imposto de selo e impostos sobre o chá, o papel, o chumbo e o vidro); a obrigação de suportarem as despesas militares inglesas no seu território; a impossibilidade destas colónias estarem representadas no parlamento inglês; e as leis “Intoleráveis” (fecho do porto de Boston, redução da autonomia e limites à expansão para Oeste). A Declaração da Independência dos Estados Unidos da América sustenta-se nos ideais do iluminismo e funda o primeiro regime liberal da História.

Para impedir que tal Declaração da Independência se concretizasse, a Inglaterra recorreu à guerra tentando evitar a perda de todo este território que fazia parte integrante do seu Império. A ajuda de França aos revolucionários, com o envio de militares, armas, dinheiro e barcos, só se oficializou em 1778. Registou-se, também, o apoio espanhol com meios financeiros e o envio de uma esquadra. Este conflito teve repercussões noutras regiões do mundo, onde havia interesses ingleses, franceses e espanhóis, como no Mediterrâneo e na costa da Índia, onde os ingleses sofreram algumas derrotas.

Em 1781, o exército britânico é definitivamente derrotado na Batalha de Yorktown, na Virgínia (que durou de finais de setembro a 19 de outubro de 1781153), tornando-se, a partir de então, essas colónias unidas verdadeiramente independentes da Inglaterra.

Seguir-se-ia a negociação para a Paz, celebrada pelo Tratado de Versalhes de 1783 e, depois de alguma discussão interna, fundar-se-ia em 1787 o novo país, os Estados Unidos da América.

A Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 consagra um regime liberal, onde os poderes políticos se dividem: o legislativo pertence ao Congresso (Senado e Câmara de Representantes); o executivo ao Presidente (eleito de 4 em 4 anos, por sufrágio universal indireto); e o judicial ao Supremo Tribunal. O regime político norte-americano torna-se, de facto, a primeira república democrática do mundo.

A propósito da exsurgente democracia americana, Andrew Carnegie (1835-1919)154 escreveu que a unidade do povo americano se galvanizou com base no fundamento sobre o qual repousa a estrutura política, a igualdade do cidadão155.

153 Nesta batalha ficou famoso Pedro Francisco, também conhecido como o “Gigante da Virgínia”, que terá nascido no dia 9 de julho de 1760, na freguesia do Porto Judeu, concelho de Angra do Heroísmo, ilha da Terceira (Açores); com quase 2 metros de altura, terá lutado ao lado do general George Washington e até lhe terá salvado a vida, o que está na origem de ser considerado um herói na Guerra da Independência dos EUA: https://sinalaberto. pt/o-portugues-pedro-francisco-heroi-da-independencia-dos-eua/

154 Industrial e filantropo norte-americano nascido na Escócia.

155 CARNEGIE, Andrew (1886) – Triumphant Democracy or Fifty Years’ March of the Repu-

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Acerca da existência de partidos, no sentido que hoje lhes damos, enquanto organizações políticas que disputam eleições e integram governos, na verdade os americanos não os conheceram ao tempo da ação revolucionária e do combate político que se iniciou no final do século XVIII. É a este propósito que escreve o teórico político norte-americano George Novack:

Os pais fundadores dos Estados Unidos não previram partidos políticos e eles não foram reconhecidos por lei até tão tarde como 1907. Esta instituição política não era mencionada na Constituição. O sistema de partidos foi uma criação política genuinamente original que cresceu não oficialmente como uma condição indispensável no mecanismo da democracia parlamentar […] Os Norte-Americanos deram a este instrumento a forma do sistema de dois partidos, que emergiu primeiramente nas lutas entre os Federalistas e Republicanos Democratas na eleição presidencial de 1800 […] Os modernos partidos de massas originaram-se nos Estados Unidos porque esta nação foi a primeira a dar direitos legais a um grande número de cidadãos.156

Para os economistas Daron Acemoglu157 e James Robinson158, a guerra civil americana que irrompeu em 1861 procedia da União Federal resultante da libertação das colónias da tutela britânica, que instituíra uma república democrática onde a escravatura fora abolida, e quando Lincoln ganha a presidência em 1860 e introduz o processo eleitoral, os oligarcas proprietários de escravos deixaram a União e criaram a Confederação; com a vitória dos unionistas em 1865 os cerca de quatro milhões de afro-americanos subtraídos ao esclavagismo passaram a poder ser eleitos para as legislaturas e para o Congresso, embora continuassem a não ter as terras que cultivavam e rapidamente perdessem os direitos civis conquistados, adiando para o século XX a luta pela emancipação racial contra o suprematismo159.

Nos Estados Unidos, os negros puderam votar somente após a Guerra de Secessão e a aprovação da 15.ª emenda em 1870. No entanto, muitos estados restringiam o acesso ao voto por meio de taxas ou exames de alfabetização, restrições que só foram abolidas em 1964 com a aprovação da 24.ª emenda e como resultado direto do Movimento dos Direitos Civis dos Negros nos EUA. As mulheres puderam votar em 1920, depois da 19.ª emenda ter sido aprovada, mas que só deu às mulheres brancas ricas a capacidade de exercer este direito.

blic. New York: Charles Scribner’s Sons, p. 19.

156 NOVACK, George (1971) – Op. cit., pp. 202-203.

157 Economista com nacionalidade norte-americana, nascido na Turquia em 1967, é professor catedrático no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.

158 Economista e cientista político britânico, nascido em 1960, é professor na Universidade de Chicago depois de ter lecionado na Universidade de Harvard, na Universidade da Califórnia e na Universidade de Melbourne.

159 ACEMOGLU, Daron, ROBINSON, James A. (2012) – Por que as Nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza, tradução de Cristiana Serra, p. 443. Rio de Janeiro: Elsevier Editora.

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2.2. A Revolução Francesa e a proclamação da república

A Revolução francesa (1789-1799), no crepúsculo do século XVIII, teve um enorme impacto no devir político do continente europeu, dada a grande importância política, ecomómica e cultural que então era reconhecida à França pelos restantes reinos da Europa.

A Revolução Francesa também pode ser vista como reflexo das novas ideias sobre democracia e legitimidade. Ela começou com a revolta popular que derrubou a monarquia e instituiu, no seu lugar, um governo representativo. A influência de Rousseau e Voltaire aparece no documento Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen (1789), aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte formada durante a revolução. A constituição francesa de 1791 dividiu os franceses em cidadãos ativos e passivos, em que apenas os primeiros, detentores de propriedades, tinham o direito de votar para a legislatura por estarem em condições de pagar uma taxa. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (doravante DDHC), que inspirou o articulado da constituição, não contemplava assim direitos eleitorais iguais, mas podemos afirmar que a revolução francesa é o primeiro passo para o longo processo da democratização de França.

A assembleia legislativa, cuja eleição era regulada pela constituição, foi posta em causa pelos insurretos da Comuna de Paris, Robespierre e Marat, que suspenderam o rei e ordenaram eleições para a Convenção Nacional.

No entanto, o conflito entre girondinos e jacobinos na Assembleia e na Convenção não resultou em qualquer modelo de governação verdadeiramente democrático, apesar dos sansculottes (lojistas, artesãos e operários) terem tomado o poder nos finais de 1793. O governo revolucionário de Robespierre e o seu comité de segurança pública não tinham qualquer legitimidade constitucional. Mas apesar deste governo consubstanciar uma espécie de “ditadura democrática” assentava em numerosas instituições democráticas, como as quarenta e oito seções da capital francesa que se foram galvanizando em assembleias políticas autónomas, onde o povo se pronunciava a favor ou contra o regime, que acabaram por decidir aprisionar o rei Luís XVI e manietar a Guarda Nacional. Eliminaram também a “cidadania passiva” e introduziram o sufrágio masculino. A França do séc. XVIII era, efetivamente, um dos países mais importantes da Europa e do Mundo. Todas as grandes transformações que lá ocorressem teriam influência nos outros países europeus. Contudo, nas vésperas da Revolução, conhecia uma séria crise económica e financeira. Entre 1730 e 1770, a França viveu em crescente desenvolvimento e progresso a nível cultural e a nível económico. Mas, a partir de 1770, manifestou-se uma tendência depressiva que se caracterizava por: maus anos agrícolas (uma série de anos seguidos de mau tempo provocou uma dramática diminuição de produção que se refletiu numa crise cerealífera, numa crise da viticultura e até numa crise pecuária) que provocaram a ruína dos pequenos agricultores e a carestia dos alimentos; quebra no comércio colonial (que resultou da perda de territórios coloniais e de tratados comerciais cujas expetativas não se concretizaram) que originou um défice na balança comercial francesa; falência industrial e desemprego urbano (a política fisiocrática abriu o mercado francês aos têxteis ingleses e provocou desemprego) que provocaram fome e más condições de vida à população urbana; crise financeira e a bancarrota es-

RE_PENSAR A DEMOCRACIA 59

tatal (os orçamentos eram cronicamente deficitários) que desencadearam uma situação de insolvência financeira.

Este conjunto de problemas governativos evidenciou a inoperância do poder absoluto o que levou o rei a convocar Cortes160, após século e meio sem a sua realização. Ao mesmo tempo que se manifestava a crise económica e financeira, e também por causa delas, viveu-se uma crescente agitação e instabilidade social. O Clero e a Nobreza mantinham-se como ordens privilegiadas, com todos os direitos senhoriais, enquanto o Terceiro Estado (povo e burguesia) suportava quase toda a carga fiscal e não tinha quaisquer direitos políticos.

Esta situação de injustiça era reclamada pela burguesia (detinha o poder económico mas não tinha qualquer influência no poder político), que se inspirou nos ideais iluministas. Ela tinha consciência do seu real valor económico, financeiro e cultural. O povo, sempre o grupo mais castigado, ainda com muitas sujeições feudais, também estava cada vez mais descontente. A Convocação dos Estados Gerais, em abril de 1789, por Luís XVI, para resolver a grave crise financeira, seria aproveitada pelo Terceiro Estado para fazer as suas reivindicações. Os Cadernos de Queixas que então foram elaborados evidenciam as grandes contradições e tensões que a sociedade francesa conhecia. Era o início da Revolução Francesa e revelar-se-ia o fim da Monarquia Absoluta. Reunidos em Versalhes, os representantes do Terceiro Estado, em maior número [578, contra 561 (291 do Clero mais 270 da Nobreza)], assumiram-se como Assembleia Nacional Constituinte, jurando, na Sala do Jogo da Péla, que não abandonariam Versalhes sem fazerem uma constituição.

O povo aderiu publicamente ao movimento revolucionário, no dia 14 de julho de 1789, ao controlar a principal prisão do Estado, a Bastilha, o que teve um importante significado simbólico, quer pela intervenção popular que assim mostrava estar a favor dos acontecimentos revolucionários de Versalhes, quer com a imediata libertação dos presos políticos.

160 No dia 24 de janeiro de 1789 os padres leram na Missa de domingo a carta a convocar os Estados Gerais, que previamente lhes foi enviada por ordem do rei Luís XVI. Do seu conteúdo transcrevemos, em tradução mais ou menos livre, o seguinte excerto: “Temos necessidade da colaboração dos nossos fiéis súbditos para nos ajudarem a superar todas as dificuldades em que nos achamos, relativamente ao estado das nossas finanças e para estabelecer, segundo os nossos desejos, uma ordem constante e invariável em todas as partes do governo que interessam à felicidade dos nossos súbditos e à prosperidade de nosso reino. Estes grandes motivos determinaram-nos a convocar a assembleia dos Estados de todas as províncias sob nossa obediência, tanto para nos aconselharem e nos assistirem em todas as coisas que analisaremos, como para fazer conhecer os desejos e queixas do nosso Povo, de maneira que, por mútua confiança e amor recíproco entre o Soberano e os seus súbditos, seja achado, o mais rapidamente possível, um remédio eficaz para os males do Estado e que os abusos de toda a espécie sejam reformados e prevenidos, através de bons e seguros meios que possam assegurar a felicidade pública e restituir a calma e a tranquilidade das quais estamos privados há tanto tempo. Por estes motivos, nós vos advertimos e notificamos que é da nossa vontade começar a realização da reunião dos Estados livres e gerais de nosso reino, segunda-feira, 27 de abril próximo, na nossa cidade de Versalhes” – Lettre du Roi, pour la convocation des États généraux à Versailles in Louis XVI, in Louis XVI, Archives Parlementaires de la Révolution Française, année 1879, p. 611.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

Um dos jornais franceses contemporâneos descreve, assim, a Tomada da Bastilha:

A multidão, reunida nas milícias, invadiu o Palácio dos Inválidos e levou 30 000 armas; de lá, dirigiu-se à Bastilha e, depois de duas ou três horas de negociações, o governador Launay, que teve a veleidade de descer aos pátios interiores e de negligenciar as pontes levadiças, foi atacado […] Este infeliz governador foi bem castigado pela sua imprudência; o povo, irritado pela sua resistência e pela morte de alguns burgueses atingidos durante o ataque, arrastou-o até à Praça de Grève e cortou-lhe a cabeça. Esta cabeça, transportada pelas ruas no cimo de uma lança, foi levada até ao Palácio Real.161 (tradução livre dos autores)

A Assembleia Nacional Constituinte (que teve como principal missão elaborar a Constituição), entretanto, ia tomando decisões que punham fim ao Antigo Regime. A revolução assumia uma clara conotação burguesa e levaria à definitiva desagregação do Antigo Regime.

Entre as novas leis aprovadas, merecem destaque os Decretos democráticos de 4 e 5 de agosto de 1789 que acabaram com as taxas feudais, extinguiram as dízimas eclesiásticas e estabeleceram o princípio da igualdade fiscal.

Jean-Paul Marat, um dos mais importantes políticos da Revolução Francesa, narrou, do seguinte modo, no seu jornal L’Ami du Peuple, o que se passou na noite de 4 de agosto de 1789:

Na sessão de 4 de agosto, o Visconde de Noailles, tendo observado que os problemas que afligem a França, ocasionados por pragas e infortúnios de todos os tipos, só podiam ser acalmados por benefícios, propôs a abolição dos direitos feudais que pesam sobre o povo […] Essa moção despertou um entusiasmo que, rapidamente, cativou todos os espíritos […] Eis o que a Assembleia Nacional fez pela França e pela humanidade, numa única sessão, numa única noite; sublime luta de justiça e generosidade; uma cena magnífica, digna de ser transmitida aos vindouros e servir de modelo a todos os povos.162 (tradução livre dos autores)

Mas um dos documentos mais importantes, até pelo seu carácter universalista, foi, sem dúvida, a DDHC que se inspira nos princípios iluministas e declara o princípio da igualdade natural entre todos os homens163

161 Journal Politique - National, n.º 8, 28 de julho de 1789.

162 L’Ami du Peuple, ou Le Publiciste Parisien, Journal Politique, Libre et Impartial, Par une Société de Patriotes, Versalhes, n.º XI, 21 de setembro de 1789.

163 Na Enciclopédia francesa, o filósofo francês Louis de Jaucourt escreveu, sobre este princípio, o seguinte: “Igualdade natural é aquela que existe entre todos os homens unicamente pela constituição da sua natureza. Esta igualdade é o princípio e o fundamento da liberdade. A igualdade natural ou moral tem, portanto, base na constituição da natureza humana comum a todos os homens, que nascem, crescem, subsistem e morrem da mesma maneira. […] Resulta deste princípio que todos os homens são naturalmente livres e que a razão os tornou dependentes para a sua felicidade”.

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Crédito: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Le_Barbier_Dichiarazione_dei_diritti_dell%27uomo.jpg

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A DDHC foi aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sua sessão do dia 26 de agosto de 1789, e teve por base o novo conceito de “Homem” e de “Cidadão”, declarando o princípio da igualdade natural entre todos os homens e a soberania do povo164

Defendeu, também de acordo com o ideário iluminista, a tripartição do poder político (cada função era atribuída a órgãos diferentes e independentes). Esta Declaração assumiu de facto um carácter universalista e inspirou outros movimentos revolucionários na Europa.

Da Revolução Francesa resultou a Constituição de 1791 que, partindo da DDHC, fundou em termos políticos, uma Monarquia Constitucional: o rei ficou apenas com o poder executivo, cabendo o poder legislativo a uma Assembleia eletiva e o poder judicial aos Tribunais. O sufrágio previsto era censitário, ou seja, limitado aos que pagavam de “censo” para cima duma certa importância (imposto devido por quem era proprietário ou tinha um contrato de usufrutário).

Com a aprovação da Constituição, a monarquia absoluta deu lugar à monarquia constitucional, mas a agitação social e política continuaram e até se agravaram. A nível interno, havia várias fações revolucionárias e a crise económica e financeira era insustentável; e, a nível externo, havia a ameaça de invasão por tropas estrangeiras, já que havia uma coligação de países que pretendia acabar com a Revolução francesa, temendo que ela se pudesse estender aos seus países.

A fim de manter as reformas políticas e fazer impor a Constituição, a Assembleia Legislativa obrigou os emigrados políticos a regressarem a França, sob pena de serem considerados traidores e obrigou os padres a declararem-se favoráveis ao governo e à Constituição. O Rei não concordou, demitiu o governo e nomeou outro de maioria girondina. E a situação política cada vez mais se agravava. Entretanto, dá-se a invasão da França por forças austríacas e prussianas. O rei demitiu o governo e caiu em desgraça, acusado de estar ligado aos invasores. Em agosto de 1792, a família real é presa e declarada a República. Elege-se nova Assembleia Constituinte e surge uma nova Constituição (a de 1793). A Convenção (nova Assembleia) entrou em funções em setembro de 1792, dominada pelos girondinos (estes, apesar de serem republicanos não concordaram com

164 Houve mulheres que também tiveram uma participação relevante nestes acontecimentos revolucionários. Entre elas destaque-se Olympe de Gouges, pseudónimo de Marie Gouze (1748-1793), que foi uma defensora dos ideais democráticos e dos Direitos da Mulher, o que lhe valeu ser guilhotinada. À “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” contrapôs a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, também com 17 artigos, de que se transcrevem os seguintes: Primeiro artigo - A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais só podem basear-se na utilidade comum. Artigo 2.º - O objetivo de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e inalienáveis das Mulheres e dos Homens. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, acima de tudo, a resistência à opressão. Artigo 3.º - O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação, que é apenas a união da Mulher e do Homem: nenhum corpo, nenhum indivíduo, pode exercer autoridade que dela não emane expressamente. Artigo 7.º - Nenhuma mulher é excluída; ela é acusada, presa e detida em casos determinados pela lei: as mulheres obedecem a esta lei rigorosa como os homens: https:// gallica.bnf.fr/essentiels/anthologie/declaration-droits-femme-citoyenne-0.

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execução do rei165).

A Revolução Francesa estava longe de chegar ao fim. O segundo governo da Convenção concretizou o projeto político de Robespierre. Os girondinos eram adeptos da “revolução universal”, por isso “alimentaram” a guerra dos franceses contra os inimigos externos. Internamente, defendiam a implantação de uma república. Mas a guerra de França contra os seus inimigos, nesta 1.ª fase, não lhe foi favorável, alguns generais franceses desertaram para o lado do inimigo e outros, considerados culpados pelas derrotas sofridas, foram fuzilados. Gerou-se uma conjuntura de instabilidade e medo que fez cair em descrédito o governo girondino. O 2.º governo da Convenção, de maioria Montanhesa (jacobinos), com uma ideologia antiburguesa, ficou conhecido pelo “terror” da sua ação, que se concretizou na tomada de algumas medidas radicais: recrutamento obrigatório de todos os homens (celibatários e não celibatários) entre os 18 e 25 anos; empréstimo forçado dos ricos; lei do Máximo (tabelamento de preços e salários) e racionamento dos bens essenciais. Houve ainda a repressão violenta dos movimentos contra-revolucionários, que terá provocado cerca de 40 mil vítimas do “terror”. Apesar do excesso de violência, este governo conseguiu eliminar o perigo de uma guerra civil, registou vitórias nas várias frentes europeias e tomou medidas legislativas inovadoras e democráticas.

Entre essas medidas destacamos, a nível político, a abolição da Monarquia Constitucional e a proclamação de uma República, de cariz popular e socializante. Com efeito, a República iniciou uma nova era e impôs mesmo um novo calendário: 12 meses de 30 dias a começar em 22 de setembro de 1793: vindimário (setembro), brumário (outubro), frimário (novembro), nivoso (dezembro), pluvioso (janeiro), ventoso (fevereiro), germinal (março), floreal (abril), pradial (maio), messidor (junho), termidor (julho) e frutidor (agosto)166. Os últimos 5 ou 6 dias do ano (conforme fosse bissexto ou não) eram feriados nacionais dedicados a celebrações republicanas. A mudança de regime de monarquia para república obrigou à promulgação de nova Constituição (1793), mais democrática, que instaurou o sufrágio universal e o referendo, proclamou a liberdade do povo e o Estado assumiu a responsabilidade pelos direitos sociais dos trabalhadores. Mas as medidas inovadoras dos revolucionários franceses foram mais longe. No que

165 Luís XVI foi executado no dia 21 de janeiro de 1793, com 38 anos. No dia de Natal de 1792, escreveu o seu testamento, de onde retirámos a seguinte passagem, que traduzimos para português: “Eu, Luís XVI, Rei de França, estando há mais de quatro meses preso com a minha família na Torre do Templo, em Paris, por aqueles que eram meus súbditos, e privado de qualquer tipo de comunicação, mesmo com a minha família, desde o dia onze até hoje, além disso implicado num Julgamento cujo desfecho é impossível de prever por causa das paixões dos homens, e para o qual não encontramos pretexto ou meio em nenhuma Lei existente, tendo apenas Deus como testemunha do meu pensamento e a quem posso dirigir-me […] Termino declarando perante Deus e pronto para comparecer diante dele, que não sou culpado de nenhum dos crimes que alegam contra mim”: https://web.archive.org/web/20130602041546/http://www.bvoltaire.fr/louisxvi/testament,9248

166 Cada mês dividia-se em três décadas (uma espécie de três semanas, de dez dias cada uma); o dia em 10 horas (cada uma de 100 minutos, e cada minuto com 100 segundos).

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respeita à educação e à ciência considerou-se o ensino um direito universal e tornou-se o ensino primário obrigatório e gratuito; restauraram-se as escolas superiores e criaram-se escolas especializadas de alta cultura (Escola Politécnica). Em termos económicos, e a pensar na proteção dos mais desfavorecidos, tabelaram-se os preços e os salários, adotou-se o sistema métrico decimal, estimulou-se o comércio e estabeleceu-se um imposto progressivo sobre os rendimentos dos mais ricos. A nível social, registou-se uma ação benemérita para com os portadores de deficiência, pobres, doentes e idosos.

A 27 de julho de 1794, o “9 do Termidor” pôs fim à ditadura da “Convenção Montanhesa” (e ao seu grande terror) e a nova “Convenção Termidoriana”, composta por elementos de todas as fações políticas, fez regressar o país à paz civil e à ordem liberal de 1789, e deliberou fazer uma nova Constituição.

Foi a Constituição de 1795, que se revelava mais conservadora do que as anteriores. Dividia os poderes da seguinte forma: poder legislativo era entregue a duas câmaras, que se renovavam em 1/3 dos seus elementos todos os anos - o Conselho dos Quinhentos (formado pelos deputados da Nação, eleitos por sufrágio censitário) e o Conselho dos Anciãos (com 250 elementos, maiores de 40 anos e chefes de família); o poder executivo passava a ser exercido por um Diretório (5 Diretores) eleito pelas Assembleias Legislativas, por 5 anos (um dos diretores mudava anualmente) - os diretores nomeavam os ministros e dirigiam a administração, o exército, a diplomacia e a polícia. Esta Constituição declarou o Estado laico (separação entre a Igreja e o Estado), regulamentou e controlou a imprensa, suprimiu a “lei do Máximo”.

Mas a França continuou a viver em grande agitação e instabilidade, com uma grande oposição ao regime e uma situação económico-financeira catastrófica. Os diretores sentiam-se incapacitados para fazer face à situação. Apenas a guerra no exterior corria bem graças ao êxito do jovem general Napoleão Bonaparte. Mas a criação duma nova coligação internacional contra a França foi fatal. Surgiu um novo golpe de Estado (18 de junho de 1799, “30 do Pradial”) de maioria jacobina com propósitos semelhantes aos da “Convenção Montanhesa”. Dois meses depois, os novos governantes demitiram-se e um último golpe (9 de novembro de 1799) colocou Napoleão no poder.

O novo governo do Consulado levaria à estabilização do regime burguês. O golpe de estado de 18 de “Brumário”, do ano VIII, instituiu um novo poder executivo denominado “O Consulado” que era constituído por 3 cônsules, encarregados de reformarem a Constituição. A nova Constituição do ano VIII (1799), atribuía aos cônsules um mandato de 10 anos.

O primeiro cônsul, Napoleão, era uma espécie de 1.º ministro, que chefiava o poder executivo e tinha a iniciativa das leis. O poder legislativo pertencia a 4 assembleias: o Conselho de Estado (redigia as leis), o Tribunado (discutia as leis), o Corpo Legislativo (votava as leis) e o Senado (vigiava a sua aplicação).

O sufrágio universal foi reposto, mas para designar apenas as listas de candidatos, entre os quais o governo escolhia os mais altos magistrados. O 1.º cônsul, Napoleão, adquiriu poderes excecionais que lhe permitiram resolver a situação interna e externa, fez a paz com a Igreja e autorizou a fundação do 1.º Banco de França. Em 1802, um plebiscito nomeava-o cônsul vitalício e, dois anos depois, novo plebiscito tornava-o Imperador

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hereditário167

Os exemplos da Revolução americana (1776) e, sobretudo, da Revolução francesa (1789) foram seguidos em vários países europeus, designadamente em Portugal e Espanha. No que respeita ao nosso país, desde o início do séc. XIX que Portugal, duma forma mais sistemática, era afetado pelos ideais de liberdade que aqui chegavam através dos estrangeirados (vindos da Inglaterra e da França), dos exilados franceses (fugidos para Portugal, aquando do terror da “Convenção”), dos exilados portugueses regressados do estrangeiro (fugidos às perseguições policiais) e da maçonaria (associação secreta presente nas principais cidades, desde finais do séc. XVIII).

Entre 1807 e 1811, Portugal foi vítima de três invasões francesas, com o objetivo de obrigar o nosso país a cumprir o “Bloqueio Continental” à Inglaterra. A primeira (1807) dirigiu-se a Lisboa, comandada por Junot que governou o país vários meses; a segunda (1809) dirigiu-se ao Porto; e a terceira (1810-1811) novamente a Lisboa, mas sem ter conseguido os seus intentos. A chegada dos franceses provocou a vinda dos ingleses para ajudarem a defesa portuguesa, mas estes tornaram-se dominadores de Portugal e dos seus interesses, o que provocou um ódio popular contra o domínio inglês, que está na origem da Revolução Liberal de 1820, que teve lugar na cidade do Porto, no dia 24 de agosto de 1820, aproveitando a Revolução espanhola e, sobretudo, a ausência de Beresford que se tinha deslocado ao Brasil.

Em resultado da revolução liberal portuguesa, a Corte foi obrigada a regressar do Brasil e criaram-se as condições para acabar com o absolutismo, fazendo-se eleições e elaborando-se uma Constituição Liberal.

A Constituição de 1822, como é conhecida a nossa primeira constituição, foi terminada em setembro desse ano, jurada e promulgada por D. João VI no dia 1 de outubro de 1822. Na sua elaboração, registaram-se posições diferenciadas: a dos moderados (que queriam um texto constitucional mais conservador); a dos radicais (que seguiam o modelo francês da “Convenção”); e a dos gradualistas (que defendiam um diálogo entre as outras duas posições). Inspirada nos textos constitucionais franceses e na Constituição espanhola de 1812, a Constituição de 1822168 declarava o direito à liberdade, à seguran167 Foi quando se tornou Imperador (1804) que Napoleão Bonaparte promulgou o Código Civil dos Franceses, também conhecido como “Código de Napoleão”, que unificou a França sob o ponto de vista legal. Ficam aqui alguns artigos, traduzidos para português, desse Código que tem 2281 artigos: “Art.º 1.º - As leis são aplicáveis em todo o território francês, em virtude da promulgação feita pelo Primeiro-Cônsul. Art.º 2.º - A lei prevê apenas o futuro; não tem efeito retroativo. Art.º 8.º- Todo o povo francês gozará dos direitos civis. Art.º 9.º - Qualquer pessoa nascida em França filha de um estrangeiro poderá, no ano seguinte à maioridade, reivindicar o estatuto de cidadão francês. Art.º 10.º - Qualquer criança nascida de um francês num país estrangeiro é francesa. Art.º 21.º - O francês que, sem autorização do governo, cumpra serviço militar no estrangeiro ou se aliste numa corporação militar estrangeira, perderá a sua qualidade de cidadão francês. Art.º 55.º - As declarações de nascimento serão feitas, no prazo de três dias após o parto, pelo conservador do registo civil do local: a criança ser-lhe-á apresentada. Art.º 165.º - O casamento será celebrado publicamente perante o conservador do registo civil do domicílio de uma das duas partes: https:// www.assemblee-nationale.fr/evenements/code-civil-1804-1.asp

168 Deixamos também aqui alguns artigos da Constituição Portuguesa de 1822: “Art.º 1.º -

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ça e à prosperidade, estabelecia a igualdade perante a lei e a liberdade de pensamento. Proclamava a monarquia constitucional hereditária, com a separação tripartida do poder político (poder executivo para o Rei; legislativo para as Cortes; e judicial para os Tribunais). O direito de voto (sufrágio direto) era reconhecido aos homens, com mais de 25 anos, que soubessem ler e escrever.

Mas as Cortes Extraordinárias Constituintes para além de implementarem o primeiro sistema parlamentar português, tomaram medidas que aboliram, definitivamente, o Antigo Regime, designadamente as seguintes: extinção da Inquisição e da Censura Prévia (tendo sido instituída a liberdade de imprensa); liberdade de ensino (no que respeita ao ensino das primeiras letras e, mais tarde, criação dos liceus nas capitais de distrito); reforma dos forais, e com ela, o fim dos direitos banais, das prestações fundiárias e dos tributos pessoais que ainda existiam; a supressão do pagamento da dízima à Igreja; a transformação dos bens da Coroa em bens nacionais; o fim das justiças privadas (a lei tinha de ser igual para todos); a suspensão dos noviciados nas ordens regulares e, mais tarde, a extinção de todos os mosteiros e conventos.

Muita da nova legislação liberal portuguesa ficou a dever-se a Mouzinho da Silveira, enquanto Ministro da Fazenda e da Justiça (1832), que produziu um conjunto de decretos que permitiram transformar o velho “Portugal feudal” num país progressista e liberal. Em termos político-sociais garantiu a salvaguarda jurídica da liberdade individual em todos os setores (código penal, administração, ensino, pensamento, propriedade, segurança e trabalho).

A implantação do regime liberal em Portugal não se revelaria nada fácil. Houve forte resistência e guerras civis169. Mas em Portugal, como no resto da Europa, o liberalismo acabou por se institucionalizar. De ideologia passou a regime: Monarquia constitucional, que se baseia numa Constituição que, por regra, declarava o respeito pelos direitos

Constituição política da Nação Portuguesa tem por objetivo manter a liberdade, segurança e propriedade de todos os Portugueses. Art.º 6.º - A propriedade é um direito sagrado e inviolável, que tem qualquer Português, de dispor à sua vontade de todos os seus bens. Art.º 7.º - A livre comunicação dos pensamentos é um dos mais preciosos direitos do Homem. Art.º 9.º - A lei é igual para todos. Art.º 12.º - Todos os Portugueses podem ser admitidos aos cargos públicos, sem outra distinção que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes. Art.º 26.º - A soberania reside essencialmente em a Nação. Não pode, porém, ser exercida senão pelos seus representantes legalmente eleitos. Art.º 29.º - O governo da Nação Portuguesa é a Monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais, que regulem o exercício dos três poderes políticos. Art.º 30.º - Estes poderes são legislativo, executivo e judicial. O primeiro reside nas Cortes com dependência da sanção do rei (artigos 110.º, 111.º e 112.º). O segundo está no rei e nos secretários de Estado, que o exercitam debaixo da autoridade do mesmo rei. O terceiro está nos juízes. Cada um destes poderes é de tal maneira independente que um não poderá arrogar a si as atribuições do outro”.

169 No período da usurpação miguelista houve enormes perseguições aos liberais um pouco por todo o país. António Monteiro Cardoso fez um estudo sobre A Revolução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834) / O Povo e as Elites (2007), onde afirma que “as devassas de rebelião levadas a cabo em Trás-os-Montes pronunciaram um número elevado de réus, sobretudo na comarca de Vila Real, que apresenta uma das maiores percentagens de processados de todo o país”, p. 21.

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naturais (sobretudo o da liberdade individual) e garantia a soberania nacional, a tripartição do poder político, a igualdade perante a lei, a separação entre a Igreja e o Estado (secularização das Instituições). As monarquias constitucionais representaram uma solução de compromisso entre o poder do rei (monarquia) e a soberania do povo (através do direito de voto). Efetivamente, ao poder já detido pelo rei, pelo clero e pela nobreza, juntou-se o poder da burguesia (que é normalmente quem se faz eleger para as Câmaras de Deputados). A Carta Constitucional Francesa de 1814 (como a portuguesa de 1826), apesar de liberal não deixa de ser conservadora, ao estabelecer o voto censitário e ao permitir ao rei a nomeação dos pares.

Em termos económicos, o direito à propriedade foi um dos princípios doutrinários do liberalismo, que decorre do direito à liberdade individual e pressupõe a plena posse dos frutos do trabalho. A propriedade individual é, segundo os liberais, a base da riqueza e da economia. Eles defendiam também a não intervenção do Estado na vida económica, ao Estado competia apenas proteger a propriedade, garantir a segurança e a ordem, facilitar a produção. Acreditava-se que a economia obedecia a regras naturais próprias que, em liberdade, se autorregularizam. O liberalismo económico baseia-se no iluminismo e no fisiocratismo, que consideram a terra como única fonte da riqueza e a agricultura como a principal atividade das nações. Em termos comerciais, defendem o livre-cambismo, isto é, uma significativa diminuição ou mesmo o fim dos impostos de circulação das mercadorias, quer dentro do próprio país, quer mesmo entre países.

No período liberal, apesar de significativas alterações legislativas no sentido de uma maior democratização da vida política, económica e social, a verdade é que alguns direitos humanos continuavam limitados e a escravatura permaneceu em alguns países até finais do século XIX.

De qualquer modo, os liberais chamaram a atenção da sociedade para a questão da ilegitimidade ética e humanitária da escravatura. Os revolucionários franceses da “Convenção” aboliram a escravatura nos seus domínios (1794), mas Napoleão, cedendo às pressões económicas, acabou por legalizá-la de novo. No velho continente, a Inglaterra foi a primeira nação a acabar legalmente com a escravatura, com as leis de 1807 e 1838. Para pôr fim definitivo à escravatura na Europa muito contribuíram, em simultâneo, razões de ordem filantrópica, por parte daqueles que defendiam os direitos do Homem; razões de ordem económica, por parte daqueles que pretendiam que os antigos escravos tivessem poder de compra; e razões de ordem diplomática, que consistiram na concretização de atos de fiscalização dos vários países entre si, para que se cumprisse o fim da escravatura.

Em Portugal, a primeira lei contra a escravatura data de 1836 (período Setembrista), que é completada 32 anos mais tarde, com a lei de 1868. No Brasil só terminaria com a Lei Áurea de 1888. Mas, até ao fim do século XIX, seria abolida no resto do mundo.

2.3. República e democracia

A república é uma forma de organização política, em que todos os órgãos de poder, incluindo o chefe de Estado, são eleitos e, por isso, o seu poder emana do povo, através do exercício do direito de voto. Já o conceito de democracia nos leva para o ideal dou-

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trinário da permanente participação popular no exercício do poder. Como já vimos, a origem do conceito político de “república” remonta à época romana e a própria palavra deriva do latim res publica, que significa “coisa pública”, aquilo que diz respeito a todos. Foi o legista Cícero (Marco Túlio Cícero, de seu nome completo) que no seu tratado Da República (De re publica), composto por seis livros (54-51 a.C.), explicita os ideais republicanos, ele que foi um magistrado romano importante (cônsul), precisamente no período final da República romana. A sua formação jurídica levou-o a considerar que as leis foram elaboradas para a defesa dos interesses de todos. No livro primeiro Da República, Cícero escreveu: “Alguns afirmam que, quando num estado um ou mais se tornam conspícuos pela sua riqueza ou o poderio, o orgulho e o desdém irrompem e os fracos e indolentes se curvam e rendem sob o seu jugo arrogante. Mas se o povo for capaz de preservar os seus direitos, não é possível encontrar mais felicidade, glória e liberdade, porque então permanece árbitro das leis, dos juízos, da paz, da guerra, dos tratados, das propriedades e da vida de todos e de cada um”170 . Já aqui se vislumbra a ideia de que a prosperidade e a liberdade só se conseguem quando o povo sabe manter os seus direitos, controlando a elaboração da lei, a execução da justiça e fiscalizando o exercício do poder político. Trata-se, pois, de um regime político republicano e democrático.

Já a Lei das Doze Tábuas, datada de quatro séculos antes (451 a.C.), era uma espécie de Constituição escrita e exposta ao público, no Fórum romano, para que todos os cidadãos da República romana, conhecessem os seus direitos e deveres, ou seja, a lei tinha um carácter universalista. A Tábua IX, por exemplo, assegurava as regras do direito público e aí se explicitavam as punições para aqueles que fossem contra o regime político de Roma.

Uma das características do poder democrático, instituído em Atenas no século V a.C., era a limitação imposta ao exercício dos cargos políticos no tempo e a permanente vigilância a quem exercia o poder, para evitar situações de abuso e de corrupção. Os cidadãos atenienses, ciosos da sua democracia, tomaram providências no sentido de evitar abusos de quem então exercia o poder. Entre essas providências, destaque-se a graphê paranomon, que consistia na possibilidade de revogação de uma lei considerada contrária às leis fundamentais da cidade, a prestação obrigatória de contas por parte dos magistrados e a votação do ostracismo que punia com o exílio de 10 anos os cidadãos acusados de apego ao poder.

A base para a existência de um regime republicano democrático é, sem dúvida, a limitação dos poderes dos representantes de cada um dos poderes políticos (legislativo, executivo e judicial), assim como a determinação de um período para o exercício do cargo. Hoje, a escolha dos representantes do povo para exercerem o poder é feita através de eleições. Há países onde o voto é facultativo, como o nosso (embora se considere uma obrigação cívica) e outros onde é obrigatório, como por exemplo o Brasil.

À república cabe defender a existência de um povo instruído, apostando numa escolaridade obrigatória que possa encaminhar-se para um curso superior, onde não falte a 170 CÍCERO, Marco Túlio (54 a.C.) – The Republic, livro I, introdução e tradução do latim por G. W. Featherstonhaugh para a edição em língua inglesa de 1829. Nova Iorque: G. & C. Carvill, p. 61.

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formação política e cívica, para que todos os eleitores, enquanto cidadãos responsáveis, exerçam o seu direito de voto e assim contribuam para construir o futuro do seu país, ou da região supranacional que integram, como é o nosso caso que fazemos parte da União Europeia.

Na realidade, o ideal da democracia tem por base o princípio de que todos os seres humanos, independentemente da nacionalidade, etnia, género, grau de riqueza ou de cultura, a partir de uma certa idade (conforme determina a respetiva constituição), são cidadãos e, como tal, têm o direito de eleger e serem eleitos, o direito à educação, à saúde, ao emprego, à segurança dos seus bens e da sua vida. No fundo, o direito a serem iguais e livres e a serem respeitados171.

Assim sendo, estamos ainda muito longe de alcançar todos estes objetivos. Infelizmente, mesmo nas sociedades ditas mais democráticas, continuam a verificar-se situações de desigualdade.

De facto, as desigualdades sociais são uma evidência em muitos países de regimes democráticos onde persistem algumas barreiras que impedem muitas pessoas de ascender às esferas mais elevadas do poder económico, cultural e político. Um Estado democrático, entre outras garantias, deve assegurar em pleno os direitos humanos. Devemos registar que há diferenças entre um Estado de direito e um Estado democrático de direito. Em um Estado de direito, as leis são criadas e aplicadas pelo Estado, já no segundo caso, em um Estado democrático de direito, as leis são elaboradas pelo povo, através dos seus representantes eleitos e em prol do povo. É por isso que os atos eleitorais se revestem de extrema importância e devem ter a maior participação possível do povo172

A abstenção representa sempre um défice de representação democrática. E ela tem aumentado em Portugal em todo o tipo de análises, quer se considere a relação dos que votam com os que estão recenseados, quer se atenda à relação dos que votam com os que estão em idade de votar, tanto nos que residem em Portugal, como nos que residem no estrangeiro.

Com base em dados divulgados pela Comissão Nacional de Eleições173 e pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), as taxas de abstenção dos residentes em Portugal, nas sucessivas eleições para a Assembleia Constituinte / República, são as que se seguem: 1975 (8,3%); 1976 (16,7%); 1979 (12,5%); 1980 (14,6%); 1983 (21,4%); 1985 (24,6%); 1987 (27,4%); 1991 (31,8%); 1995 (32,9%); 1999 (38,2%); 2002 (37,7%); 2005 (35%); 2009 (39,5%); 2011 (41,1%); 2015 (43%); 2019 (45,5%); 2022 (42%); 2024 (33,8%).

171 António Cândido de Oliveira na sua obra Manual de Cidadania (Braga: AEDREL, 2019, p. 25), escreve que “Democracia é, antes de mais, a expressão da ideia de que todos os cidadãos são iguais e livres e por isso merecem todos igual respeito”.

172 Será também esse o sentido das palavras de Vital Moreira, no prefácio do livro de António de Oliveira (2019), op. cit., quando escreve “toda a teoria republicana do poder político, desde a República romana às repúblicas italianas da era moderna, assenta na ideia da dedicação virtuosa dos cidadãos à ‘coisa pública’ (res publica) e da intervenção, direta ou indiretamente, na condução dos negócios da coletividade”.

173 https://www.pordata.pt/db/portugal/ambiente+de+consulta/tabela

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Magalhães e Manuel Augusto Dias

Depois da enorme corrida às mesas de voto174, apesar de horas de espera nas filas, verificada nas primeiras eleições após a Revolução de Abril, que ocorreram precisamente no seu primeiro aniversário (25 de abril de 1975), para eleger a Assembleia Constituinte, tanta era a vontade do povo de votar e escolher democraticamente o seu futuro político, assistiu-se tendencialmente a uma contínua subida do número de eleitores abstencionistas, conforme se pode ver no gráfico 1.

Evolução da taxa de abstenção nas Eleições para a Assembleia da República (1975-2024)

Gráfico 1

Temos de elogiar a significativa diminuição da abstenção, nas últimas eleições legislativas (10 de março de 2024), ainda mais relevante pelo facto de ter ocorrido no ano em que comemoramos o 50.º aniversário do 25 de Abril (para chegarmos a valores similares na abstenção em eleições legislativas temos de recuar à década de 1990).

Este comportamento abstencionista do eleitorado nas eleições para a Assembleia da República repete-se em todos os outros atos eleitorais, seja nas eleições autárquicas, nas eleições presidenciais ou nas eleições europeias. Isto significa, na prática, que os eleitos (autarcas, presidentes da república, deputados e eurodeputados) representam cada vez menos cidadãos eleitores. “Qualquer que seja a metodologia de medição empregue, a abstenção tem vindo a aumentar de forma expressiva desde as eleições fundadoras de 1975”, conforme se afirma no estudo de Marta Vicente175 .

174 Para muitos portugueses foi a primeira vez que votaram. Nas últimas eleições do Estado Novo (dia 28 de outubro de 1973) votaram cerca de um milhão e 400 mil eleitores, ao passo que nestas eleições pós-25 de Abril, as primeiras verdadeiramente democráticas que houve em Portugal, votaram mais de 5 milhões e 700 mil eleitores.

175 VICENTE, Marta (2019) – Abstenção e participação eleitoral em Portugal: Diagnóstico e hipóteses de reforma, coordenação de João Cancela. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, p. 25.

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8,3 16,7 12,5 14,6 21,4 24,6 27,4 31,8 32,9 38,2 37,7 35 39,5 41,1 43 45,5 42 33,8 0 10 20 30 40 50 60 1975 1976 1979 1980 1983 1985 1987 1991 1995 1999 2002 2005 2009 2011 2015 2019 2022 2024 Percentagem

Também no caso do município de Valongo, as eleições legislativas após o 25 de Abril de 1974 evidenciam uma progressiva menor participação popular neste ato eleitoral, com exceção das últimas, realizadas no passado dia 10 de março, em que a abstenção neste município foi mais baixa (menos 3,2%) do que a que se registou a nível nacional, ficando-se pelos 30,6%.

Vejamos agora o caso das eleições autárquicas (cf. o gráfico 2).

Evolução da taxa de abstenção nas Eleições Autárquicas no município de Valongo (1976-2021)

No que respeita às eleições autárquicas no município de Valongo (houve 13, desde o “25 de Abril”, entre 1976 e 2021, inclusive), as taxas de abstenção foram as seguintes (por aproximação à unidade): 1976 (31%); 1979 (25%); 1982 (27%); 1985 (37%); 1989 (41%); 1993 (35%); 1997 (38%); 2001 (43%); 2005 (39%); 2009 (40%); 2013 (49%); 2017 (47%); 2021 (52%). Também neste ato eleitoral, que por ser mais próximo dos cidadãos poderia sugerir uma maior participação popular, se vem evidenciando um decréscimo dos eleitores votantes, tendo o último ato eleitoral (2021) ficado marcado pelo facto de ter sido mais alta a taxa de abstencionistas (52%) do que a de votantes (48%).

Mas este afastamento do cidadão eleitor do ato efetivo de votar não se verifica apenas nas eleições gerais. Com efeito, até nos cidadãos que teoricamente seriam os mais motivados para a participação ativa na vida política, como são os filiados de um partido político, o nível de participação fica abaixo daquilo que seria considerado razoável. Atente-se no caso relativamente recente das “diretas” para a escolha do secretário geral do Partido Socialista, ocorridas nos dias 15 e 16 de dezembro de 2023. Apesar de todo o mediatismo de que se revestiu esse ato eleitoral do PS, pois estava em causa a escolha do candidato a Primeiro-Ministro nas eleições de 10 de março de 2024, mesmo assim só votaram cerca de 40 mil socialistas (o que, pelos dados que então foram divulgados, representava apenas 2/3 dos seus militantes).

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0 10 20 30 40 50 60 1976 1979 1982 1985 1989 1993 1997 2001 2005 2009 2013 2017 2021
Percentagem
31 25 27 37 41 35 38 43 39 40 49 47 52 Gráfico 2

No regime republicano e democrático visa-se um ideal de excelência no exercício da cidadania, através da educação e cultura cívica e da literacia política, que conduza à elevada participação política, ao progresso e bem-estar de cada cidadão e, assim, de toda a comunidade176. Para isso é necessário que a comunidade política seja bem formada e esteja bem informada, que tenha consciência das suas obrigações cívicas, enquanto constituída por membros intervenientes e responsáveis. O direito de participar na vida política, embora seja reconhecido a cada indivíduo, só faz sentido porque os indivíduos fazem parte de uma comunidade que lhes atribui responsabilidades coletivas. A cidadania decorre da soberania, procura contribuir para o bem comum que tenha por base a igualdade entre todos os membros da comunidade, a quem compete a tomada de decisões.

Mas a cidadania responsável exige instrução, esclarecimento e conhecimentos. E o Portugal rural do início do século passado tinha mais de 80% de analfabetos. Por isso, uma das primeiras tarefas dos governos republicanos portugueses foi apostar na educação e na instrução. As câmaras empenharam-se no arrendamento de casas para servirem de escola e na contratação de professores. Mas o facto de haver escolas e professores não significava, desde logo, que a questão do ensino primário estivesse resolvida. Efetivamente, os problemas neste domínio continuavam a ser muitos, em quase todo o País. As escolas não cobriam devidamente todas as áreas de cada concelho; as que existiam funcionavam normalmente em casas arrendadas que nem sempre estavam adaptadas, cabalmente, à sua função; a sua dimensão não era a suficiente para albergar todas as crianças em idade escolar; e, na maior parte dos casos, faltava mobiliário e equipamento escolar. Por outro lado, a deficiente remuneração do professor primário, desmotivava-o e fazia com que pudesse ser pouco dedicado à docência, ou optasse profissionalmente por outro setor de atividade mais compensador.

Um outro aspeto, muito criticado, eram os entraves provocados por uma burocracia demasiado centralizadora do ensino, que tornava a criação de uma escola ou a nomeação de um simples professor um processo complicadíssimo177

Com o triunfo do 5 de Outubro de 1910, a República procurou solucionar alguns destes problemas. Criou mais escolas, formou mais professores, desburocratizou e descentralizou o ensino. Foi, fundamentalmente, a preocupação de descentralizar o ensino primário178 que levou o Ministro do Interior, António José de Almeida, em julho de 1911,

176 Parece ser esse o sentido das palavras de António Arnaut que, no prefácio do livro A Republicanização do Concelho de Ansião de Manuel Augusto Dias (Ansião: Serras de Ansião, 1999), escreve: “A construção desse futuro [melhor para a nossa Pátria] passava, necessariamente, pelo combate à pobreza, pela educação cívica e pela instrução do povo, há oito séculos à espera, como disse Torga, da ‘charrua colectiva e solidária do espírito criador’, para, enfim, aspirar a uma sociedade de progresso, liberdade e justiça social”.

177 Estes e outros problemas foram refletidos em um Congresso Pedagógico que teve lugar em abril de 1908 [cf. Liga Nacional de Instrução, 1.º Congresso Pedagógico de Instrucção Primaria e Popular (1909). Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 12-32].

178 Em 16 de julho de 1890, Bernardino Machado proferiu um discurso no Parlamento sobre A Organização do Ministerio d’Instrucção Publica e a Centralisação do Ensino Official especialmente do ensino primário, tendo afirmado então que: “ha duas fórmas mitigadas de

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a dividir o País em 75 círculos escolares179

Após o 5 de Outubro, durante a Primeira República, e por força dos seus objetivos prioritários, a situação da instrução primária altera-se substancialmente. Mas foi preciso lutar também pela mudança das mentalidades, não só no aspeto político, como também e sobretudo no aspeto cultural.

2.4. Soberania popular e parlamentarismo

O Agreement of the People180 lançado pelos Levellers (Niveladores)181 no 1.º de Maio de 1649 em Londres, que é talvez o precedente das constituições escritas, antecedeu o Instrument of Government (1653)182 que Oliver Cromwell (1599-1658)183 fez aprovar após a dissolução do Parlamento na sequência da chamada “revolução puritana” (1641-1649), que culminou no regicídio de Carlos I, na proclamação da República e na abolição do bicameralismo. No contexto do regime monárquico britânico, a república (Commonwealth), em que vigorou um Conselho de Estado eleito pelos parlamentares que exercia o poder executivo, foi um curto interregno na história política inglesa (1649-1658). Mas logo em 1653 Cromwell dissolve o parlamento republicano e toma o controlo do Estado, como Lord Protector. Sob a ditadura cromwelliana as estruturas feudais ainda existentes na Inglaterra foram eliminadas e as terras dos partidários do rei e da Igreja anglicana foram confiscadas e vendidas aos produtores rurais.

centralisação, ou fórmas mixtas de centralisação e descentralisação. Póde entender-se que as localidades não têem capacidade para medir o alcance do serviço, nem para o administrar proficientemente, e ao mesmo tempo reconhecer-se que são capazes, uma vez creado o serviço, de o manter, ou pelo menos de o auxiliar com os seus recursos, e descentralisar-se por isso a dotação do serviço, tornando assim menos abstracta, mais natural, mais commoda e justa a tributação escolar, e, portanto, mais voluntariosa e mais querida a eschola” (1890: Affirmações Publicas, p. 223).

179 Alterando, desse modo e substancialmente, o Decreto de 5 de abril de 1911, no sentido de se conseguir uma mais efetiva descentralização do ensino.

180 Este acordo garantia liberdades civis e religiosas, sufrágio universal, jurados, mandatos eletivos, livre acesso às funções públicas, subordinação estrita do poder militar aos poderes civis, com vista ao combate à corrupção do poder, combate ao predomínio dos interesses particulares sobre os coletivos, princípios que alimentariam as revoluções dos séculos XVII e XVIII (2006: Pierre Rosanvallon – La contrademocracia: la política en la era de la desconfianza, edição em língua espanhola de 2007. Buenos Aires: Manantial, pp. 22-23).

181 Partido político inglês, com atividade compreendida entre 1642 e 1660, que tinha uma visão republicana e representava as ideias e interesses da pequena burguesia produtora, mas cujo nome formal só aparece pela primeira vez numa carta datada de 1 de novembro de 1647.

182 A única constituição que a Inglaterra conheceu; preconizava a abolição do bicameralismo e a formação de uma só câmara de 400 membros eleitos com o voto dos condados e das cidades, em regime de sufrágio censitário.

183 Militar e líder político inglês que participou na guerra civil inglesa, ao lado dos parlamentaristas, e que foi nomeado Lorde Protetor da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda a partir de dezembro de 1653.

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O papel do parlamentarismo inglês na construção dos regimes democráticos, muito ostracizado nos tratados sobre a história da democracia, sobretudo os assentes na sobrevalorização do republicanismo, naturalmente não se esgota nos Levellers. Começou com a Magna Carta184, no período feudal, documento que plasmou a concórdia entre o rei João Sem-Terra e os barões e que foi redigido para assegurar a independência destes face ao rei e limitar os poderes da Igreja e do próprio rei, na sequência dos desentendimentos entre o rei inglês, o Papa e os barões ingleses acerca das prerrogativas do soberano. Os seus assinantes almejavam que os homens do reino tivessem e conservassem todas as liberdades, direitos e concessões, em sua plenitude e integridade, em todos os respeitos e lugares185. A carta estabeleceu o conselho dos barões e a divisão do poder entre o rei e esse corpo e com ela se assinala o início do parlamento inglês, porquanto o rei renuncia a certos direitos e obriga-se a respeitar a lei. Com a Magna Carta inicia-se um longo processo histórico que conduziria ao constitucionalismo moderno.

O desenvolvimento do parlamento inglês é importante para a história tradicional da democracia porque se trata de uma instituição que viria a exercer uma importante influência sobre a ideia e a prática do governo representativo. Albert Pollard (18691948)186 afirma que as instituições parlamentares são incomparavelmente a maior dádiva do povo inglês à civilização, pois outras nações tinham os seus próprios sistemas representativos, mas abandonaram-nos ou modificaram-nos pela influência das ideias inglesas187. Esse parlamento era muito admirado na Europa e até na América do Norte, onde muitos políticos constitucionalistas aspiravam criar uma república que tivesse as virtudes do sistema inglês, mas sem os vícios da monarquia.

No início do século XVIII, segundo Robert Dahl188, o parlamentarismo inglês era um sistema constitucional consolidado em que o poder da aristocracia na Câmara dos Lordes era contrabalançado pelo poder do povo na Câmara dos Comuns e em que as leis promulgadas pelo rei e pelo Parlamento eram (re)interpretadas por juízes que, de modo geral, independiam tanto do rei quanto do Parlamento189.

Há hoje uma tendência para confundir parlamentarismo com democracia. No século XIII, o termo de origem latina parlamentum que servia para designar o conjunto de cidadãos que se reúnem para falar e para discutir assuntos de interesse geral, já figura oficialmente nas atas dos conselhos reais, bem como nos editais e ordenações,

184 Magna Carta, redigida em latim bárbaro, é a forma reduzida do título Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (15 de junho de 1215).

185 Magna Carta, artigo 63.º.

186 Historiador britânico especializado no período dos Tudors e um dos fundadores da Associação Histórica, uma organização associativa de historiadores e académicos fundada em Londres em 1906.

187 POLLARD, Albert Frederick (1920) – The Evolution of Parliament, 2.ª edição de 1926. Londres: Longmans, Green & Co, p. 3.

188 Dahl, além do descrito na nota de rodapé 73, é considerado o fundador da escola behaviorista em ciência política.

189 DAHL, Robert (1971) – Op. cit., p. 31.

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DEMOCRACIA 75
A

como parlement em França e como parliament em Inglaterra190

Mas o facto de existir um “parlamento” num determinado país não significa, por isso, que o governo seja democrático. O parlamento inglês, por exemplo, designava em meados do século XIII uma assembleia formada por dois setores que antecipa o parlamento bicamaral, de um lado os bispos e abades, do outro os barões e grandes senhores, a que acresceram, na segunda metade deste mesmo século, os representantes eleitos dos condados e dos burgos (estes eleitos nas guildas de artesãos e mesteirais), o baixo clero, a pequena nobreza e os pequenos proprietários191. Resulta que este sistema parlamentar, embora com aspetos de eleição democrática, não se poderia considerar ainda um modo ou sistema de governo democrático.

Na Inglaterra do século XV, mesmo com o aumento progressivo das prerrogativas do parlamento, tanto no domínio fiscal como na esfera legislativa, toda a deliberação parlamentar depende do caucionamento do rei, o que significa na prática que só haverá lei se concorrerem para o mesmo fim o corpo aristocrático (Câmara dos Lordes), o corpo democrático (Câmara dos Comuns) e o próprio monarca192 .

Só há laivos de democracia quando, mais tarde, o juiz Edward Coke redige a Petition of Right (1628), através da qual o parlamento impõe à coroa que nenhum imposto pode ser criado sem o assentimento parlamentar, ou que nenhum homem pode ser privado da liberdade ou dos seus bens sem um processo legal. Mas, sobretudo, quando em 1649 é proclamada a República após um período de guerra civil em que pontifica a figura do líder puritano Oliver Cromwell, é extinta a Câmara dos Lordes (passando o parlamento a designar-se como Rump Parliament, “parlamento manco”) e é aprovada uma constituição escrita, como já vimos atrás. Cromwell, entretanto, incompatibiliza-se com este parlamento e implementa uma ditadura que só acaba quando ele morre. É, de novo, restaurada a monarquia e eleito um novo parlamento, ainda que sem convocação régia, para entronizar de novo um rei, em detrimento da ideia de um chefe eleito que, apoiado na legitimidade popular, pode assumir o poder (república).

Fruto da difusão das ideias democráticas oriundas das revoluções americana e francesa e das tensões sociais geradas pela revolução industrial, a aristocracia inglesa foi obrigada a alargar a representação parlamentar à medida que o século XIX avançava.

Segundo George Novack, os colonizadores norte-americanos apropriaram-se das ideias dos pensadores republicanos e democráticos para organizar e conduzir a sua guerra de libertação nacional e depois tomarem o sistema parlamentar da mãe-pátria como modelo da sua própria estrutura política, pelo que o parlamentarismo encontrou, nos Estados Unidos, um solo altamente fértil para crescer, até porque aqui, ao contrário de Inglaterra, não havia nobreza hereditária nem possessões coloniais para dominar193 .

190 ANDRADE, Almir de (1984) – A evolução política dos parlamentos e a maturidade democrática - O exemplo modelar do parlamento inglês, in Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 21, número 81, janeiro/março, pp. 74-76.

191 RANGEL, Paulo (2021) – As raízes do parlamentarismo e a revolução conservadora. [S. l.]: Paulo Rangel, p. 37.

192 Ibidem, pp. 38-39.

193 NOVACK, George (1976) – Op. cit., p. 195.

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Concluímos que parlamentarismo não é uma forma de governo nem um regime político, nem significa democracia, mas um sistema de governo, e no caso inglês uma monarquia constitucional de feição parlamentar. Este sistema de governo assenta basicamente no princípio da colaboração entre o poder executivo que governa e o poder parlamentar que legitima a atuação governativa, sendo o governo politicamente responsável perante o parlamento. Sem a confiança política do parlamento o executivo não se conseguirá manter em pleno funcionamento.

O nobel da literatura John dos Passos, americano com ascendência madeirense, do qual Jean-Paul Sartre dizia ser o maior escritor do nosso tempo, escreve no prefácio do seu Paralelo 42, romance épico da sociedade americana da época, que “U.S.A. é um grupo de sociedades anónimas de responsabilidade limitada, alguns sindicatos, um sistema de leis encadernadas em carneira […] Mas, principalmente, U.S.A. é o falar do povo194. O falar do povo não resulta necessariamente em soberania popular, significa que para o mundo intelectual contemporâneo o povo é o leitmotiv presente em todas as manifestações artísticas, sobretudo literárias. Mas “povo”, no sentido figurado do termo, já contém em si a ideia de democracia e da intervenção no governo da sociedade porque o poder toma o pulsar do povo, extraindo dele as suas aspirações e anseios, como “inspiração” para a própria governação.

No caso português, apesar de ser comummente aceite existir um sistema parlamentar, há autores que não advogam ser um modelo verdadeiramente parlamentar, dada a preponderância decisória de outro órgão institucional. Embora se reporte à 1.ª revisão constitucional de 1982 e admitindo que revisões posteriores, como a de 1997, reforçaram os poderes legislativos exclusivos da Assembleia da República (doravante AR), Luís Rodrigues195 alega que o nosso modelo de governo não é parlamentar, por um lado porque as competências da AR não são de decretação política (legislativa), mas de atribuição política, por outro lado porque, e mais relevante, a direção política da AR não se configura como primária, mas secundária, isto é, como uma direção política condicionada pela do Primeiro-Ministro e seu Governo, que exercem o controlo político pleno (artigos 162.º e 163.º), mesmo que estes não se afastem da direção política que a si mesmos se fixaram e a que vincularam a própria AR196 .

Voltando ao tema da soberania, agora no sentido lato, na sua crítica ao pensamento político em Platão (quem deve governar o Estado? - o problema fundamental da política), Karl Popper (1902-1994)197 defende que o problema principal da teoria política, que Platão abriu, não é saber quem deve governar, porque é utópico pensarmos que alguém

194 PASSOS, John dos (1930) – Paralelo 42, volume 1 da trilogia U.S.A., tradução de Hélder de Macedo para a edição em língua portuguesa [S. d]. Lisboa: Portugália Editora, p. 11.

195 Doutorado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito de Lisboa.

196 RODRIGUES, Luís Manuel Barbosa (2009) – O modelo de Governo na Constituição Portuguesa de 1982, in Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, nº 15. Porto: Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto, pp. 250-251.

197 Filósofo austro-britânico, é considerado um dos maiores filósofos da ciência do século XX, autor de A sociedade aberta e seus inimigos (1974), a sua primeira grande obra em que cultiva o paradoxo da tolerância.

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poderá governar com um saber e uma bondade inquestionáveis, em quem possamos confiar de forma “irrestrita”, pelo que nos devemos preocupar não com o “bom governo” mas em evitar o “mau governo”. Popper, que cunhou a expressão “o paradoxo da democracia”, escreveu em 1945:

A teoria da democracia não se baseia no princípio de que a maioria deve governar; pelo contrário, os vários métodos igualitários de controle democrático, como as eleições gerais e o governo representativo, devem ser considerados […] sempre passíveis de aperfeiçoamento e até capazes de fornecer métodos para o próprio aprimoramento. Quem aceita o princípio da democracia nesse sentido não é obrigado a encarar o resultado de uma votação democrática como expressão abalizada daquilo que é correto. Ainda que aceite a decisão da maioria, em nome do funcionamento das instituições democráticas, sentir-se-á livre para combatê-la por meios democráticos e trabalhar por sua revisão.198 (tradução dos autores)

É geralmente aceite que os fundadores da ciência política moderna são Nicolau Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes. Esta tríade de pensadores, com efeito, trouxe a política para o mundo dos homens, retirando-lhe a “carga divina” que a revestia até ao início do século XVI. O contributo de Bodin foi decisivo para se pensar o Estado como entidade soberana e profana. “Bodin quer a unidade do Estado por cima dos poderes religiosos e das ligas: é esse o escopo d’Os Seis Livros da República com vista a haurir um princípio de legitimidade, conferindo assim um fundamento à República – a soberania; no tempo em que é formulada, é eminentemente moderna, pois trata-se de dar ao Estado um fundamento político, e não divino ou teológico”199

Na sua obra Os Seis Livros da República, Jean Bodin afirma que “a soberania é o poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação” e, ao contrapor a república à monarquia, porquanto a monarquia é por natureza hereditária e nela o poder não pode ser partilhado por outras classes como o clero, a nobreza e o povo, aponta como a única solução do exercício da soberania popular a inevitabilidade do modelo republicano.

A noção de República corporizou, num contexto da crise ou reafirmação do sistema monárquico e na sequência do pensamento humanista do Renascimento, o novo ideal de governo, com avanços e recuos, até ao clímax político da revolução francesa. Milão e Florença, nos séculos XIV e XV, aglutinaram outras cidades-Estado, formando-se Estados regionais. No início do século XVI, a Veneza republicana consegue preservar a sua independência, tal como Génova e outras cidades-Estado italianas, e lograr atingir o poderio das monarquias europeias da Espanha e da França.

Para Johannes Althusius (?1557-1638)200, autor de Política201, a causa eficiente da as-

198 POPPER, Karl Raimund (1945) – The Open Society and its Enemies. The Spell of Plato, volume I. Londres: Routledge & Kegan Paul, p. 125.

199 ROCHA, Acílio da Silva Estanqueiro (2020) – Bodin e Altúsio, in História da Filosofia Política, coordenação de João Cardoso Rosas. Oeiras: Editorial Presença, p. 196.

200 Filósofo e teólogo calvinista alemão, que é considerado como o pai do federalismo moderno através do livro Política, a sua obra mais conhecida.

201 Nome abreviado de Política Metodicamente Apresentada e Ilustrada com Exemplos Sacros

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sociação política é o consentimento e o acordo entre os cidadãos, a causa formal é a associação provocada pela contribuição e comunicação de uns com os outros, em que os homens políticos instituem, cultivam e conservam a comunidade através de decisões sobre coisas úteis e necessárias para a vida social, e a causa final da política é o gozo de uma vida confortável, útil e feliz202. No sistema althusiano, o poder universal de governar (potestas imperandi universalis), o direito supremo de jurisdição universal, é a forma e a essência substancial da soberania (majestas), e quando este direito é retirado a soberania perece203

O Estado surge assim como fruto da necessidade social, já que a sociedade civil existe por natureza, mas a continuidade do governo dependerá do consentimento continuado dos cidadãos que assim exercem a sua soberania.

Quase três séculos mais tarde, Paul von Lilienfeld (1828-1903)204, a propósito das tendências uniformizadoras do “organismo social”, escreveu que, na esfera jurídica, todos os cidadãos são iguais perante a lei, sem distinção de raça, de nacionalidade, de riqueza e de classe, e que, na esfera política, todos são iguais perante o poder soberano, qualquer que seja a forma que ele tome205

Nos primórdios da era moderna, enquanto os reinos feudais se transmudavam gradualmente em Estados ou Nações, a ideia de representação política materializou-se, sobretudo, nas cidades. É nas cidades que é mais fácil estabelecer a relação dicotómica entre representados e representantes, condição sine qua non para a soberania popular, através de um pacto de responsabilidade que consagra a representação como expressão da vontade do povo e, em paralelo, o controlo da atuação dos governantes.

Como vimos anteriormente, não se pode confundir Estado com modo de governo. Mas para haver democracia é hoje necessário um Estado (ou Nação) em que as instituições funcionem e haja separação de poderes e em que todos os cidadãos adultos possam participar na eleição do seu parlamento (ou qualquer tipo de assembleia representativa) e na escolha, direta ou indireta, dos seus governantes. Neste sentido importa estabelecer historicamente como se definiu a conceção do Estado moderno. Segundo Norberto Bobbio, a luta pela unidade do poder é o resultado de um processo simultâneo de libertação e de unificação, ou seja, de libertação face a uma autoridade espiritual que se proclama superior ao poder civil e de unificação perante as associações, corporações e burgos que constituíam a sociedade medieval, o que conduzirá no século XVI à supremacia do poder político, à soberania de um Estado independente e indivisível206.

e Profanos (1603).

202 ALTHUSIUS, Johannes (1614) – Politica, introdução e tradução de Frederick S. Carney para a edição em língua inglesa de 1995. Indianápolis: Liberty Fund, p. 24.

203 Ibidem, pp. 69-70.

204 Teórico e político russo do século XX, um dos teóricos do organicismo, foi presidente do Instituto Internacional de Sociologia de Paris (1897).

205 LILIENFELD, Paul de (1896) – La Pathologie Sociale. Prefácio de René Worms. Paris: V. Giard & E. Brière, p. 195.

206 BOBBIO, Norberto (1966) – Introdução de Del Ciudadano (De Cive) de Thomas Hobbes

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Também Immanuel Kant (1724-1804)207, já nos finais do século XVIII, estabelece a diferença entre “forma da soberania”, as pessoas que detêm o poder do Estado, e “forma de governo”, o modo como se governa o povo. Assim, para Kant, as formas de um Estado (civitas) podem classificar-se segundo as pessoas que possuem o supremo poder do Estado ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o governante.

A primeira chama-se efectivamente a forma da soberania (forma imperii) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente, formando a sociedade civil (autocracia, aristocracia e democracia; poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a forma de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no acto da vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder: neste sentido, a constituição é ou republicana, ou despótica. O republicanismo é o princípio político da separação entre o poder executivo (governo) e o legislativo; o despotismo é o princípio da execução arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, portanto, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada.208

O contributo do filósofo prussiano para o conceito de cidadão e de cidadania é fundamental. De acordo com Walter Theimer (1903-1989)209, o cidadão é, segundo Kant, caracterizado por três direitos, o primeiro é o da liberdade legal, em que o cidadão não precisa “de obedecer a nenhuma outra lei além daquela a que deu a sua aprovação”, o segundo é o da igualdade dos cidadãos, isto é, a igualdade de todos perante a lei, e o terceiro direito cívico é o da independência do cidadão, que significa que ninguém deve a sua existência ao livre-arbítrio de outrem210

Voltando à teoria moderna do Estado, Thomas Hobbes vai mais longe que os seus predecessores ao distinguir a origem “natural” da origem “institucional” do Estado, sendo esta última a que origina o Estado político como hoje o concebemos211. Tal como Bodin, e à boa maneira dos clássicos, também Hobbes distingue três formas de governo, ou de Estado, de acordo com o número de pessoas que detêm o poder soberano, a “democracia” (o poder soberano pertence a uma assembleia em que todo o cidadão tem direto a votar), a “aristocracia” (o poder soberano reside numa assembleia em que ape(1642) para edição em língua espanhola traduzida do latim por Andrée de Catrysse. Caracas: Instituto de Estudios Políticos, p. 9.

207 Filósofo alemão, é um dos principais pensadores do iluminismo e uma das figuras mais influentes da filosofia ocidental moderna; é autor da obra Crítica da Razão Pura (1781).

208 KANT, Immanuel (1795) – A Paz Perpétua. Um Projecto Filosófico, tradução de Artur Morão para a versão em língua portuguesa de 2008. Covilhã: Universidade da Beira Interior, pp. 13-14.

209 Autor alemão de obras científicas e políticas do século XX, cujo livro mais conhecido é Marxismo - Doutrina, Efeito, Crítica (1950).

210 THEIMER, Walter (1955) – História das Ideias Políticas, tradução de Dinora Freitas e Sampaio Marinho e revisão de Jaime Silva para a edição portuguesa de 1977. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 118.

211 HOBBES, Thomas (1642) – Op. cit., p. 123.

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nas uma parte dos cidadãos tem voto) e a “monarquia” (a soberania está nas mãos de um só indivíduo)212. Mas, ao contrário dos clássicos, não reconhece as formas “desviadas”, a anarquia, a oligarquia e a tirania, que considera serem, não diferentes espécies de governo, mas diferentes opiniões que os cidadãos têm do (poder) soberano213 .

2.5. República e soberania popular

Por definição, soberania popular significa o sistema de governo segundo o qual todo o poder parte do povo. Ora, assim sendo, só em República este pressuposto se verifica e, por isso, só neste regime poderá haver plena soberania popular e, por extensão, plena democracia.

É óbvio que este conceito põe completamente de lado todo o tipo de poder vindo de fora (seja da esfera política, militar ou religiosa) que possa ser contrário à vontade da população do país, democraticamente manifestada.

O conceito de soberania popular foi definido por filósofos dos séculos XVII e XVIII, embora já antes pareça estar subjacente a algumas das reivindicações populares. Entre os pensadores políticos que mais se debruçaram sobre o tema, destacam-se, como já referimos, Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau214 e Immanuel Kant. Para Hobbes, um Estado tinha de garantir e de legitimar os direitos naturais, que tinham a ver sobretudo com a preservação da vida de todo o ser humano. John Locke acrescenta aos direitos naturais do Homem, a liberdade e a propriedade individuais.

A soberania popular só pode existir quando os governantes se esforçam por garantir, efetivamente, os interesses do povo. Se assim não for, e de acordo com o “Contrato Social” de Rousseau, há legitimidade da parte do povo para não obedecer a tal governo e até para o depor.

Normalmente a soberania popular está circunscrita a um determinado território, o do Estado. E a sua população tem, em exclusivo, o direito à exploração e utilização dos seus recursos naturais.

Com a implantação da República, a nossa ocorreu há quase 114 anos (tantos quantos decorrem desde o dia 5 de Outubro de 1910 até hoje), procurou-se implementar o princípio do bem comum e da soberania popular, que pressupõe que o poder político deva

212 Ibidem, p. 142.

213 Ibidem

214 Jean-Jacques Rousseau escreve a este propósito que “se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo o sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade […] De sorte que, no instante da usurpação da soberania por parte do governo, é rompido o pacto social, e todos os simples cidadãos, recolados de direito em sua liberdade natural, são forçados, mas não obrigados a obedecer” (Do Contrato Social (1762), tradução de Rolando Roque da Silva para a edição em língua portuguesa de 2002. [S. l.]: Ridendo Castigat Mores, pp. 72 e 120).

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ser exercido em nome do povo e para o povo e que os governantes sejam eleitos pelo povo.

Mas também acontece, com mais frequência do que deveria ocorrer, que muitos governantes (presidentes, primeiros-ministros, ministros e autarcas) pensam dispor de poderes absolutos só pelo facto de terem sido eleitos democraticamente. Ora, apesar do seu poder ter uma origem democrática, isso não significa que se possam dar ao luxo de prescindir da necessidade de auscultar permanentemente o povo de onde emana o seu poder e para quem governam. Isso é que é democracia, a interação contínua entre os que detêm o poder e aqueles que lho atribuíram.

Deste modo, os republicanos, conscientes da extraordinária importância do voto popular, sempre se bateram pela politização do povo, para que este exercesse esse direito de uma forma esclarecida, consciente e responsável, porque só assim se pode considerar que o povo exerce, de facto, a sua cidadania de forma ativa e refletida.

Associando a soberania popular a um determinado território surge uma temática muito atual, que tem estado na base de muitos conflitos, mas que já vem de longe (pelo menos desde a Revolução francesa), que é a questão Estado-nação.

O términos da “guerra-fria” (1989-1991) levou a opinião pública a pensar que o “estado de guerra” teria chegado definitivamente ao fim e que se iniciaria, então, uma nova ordem mundial baseada nos valores universais da tolerância, da cooperação e da paz. Contudo, e bem ao contrário dessas expectativas, no nosso planeta, em várias zonas, irromperam conflitos violentos, tendo por base precisamente a questão do Estado-nação, nomeadamente em algumas ex-repúblicas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), hoje Federação Russa, nos Balcãs, onde cada república lutou pela sua independência, no conflito Israelo-palestiniano, nos genocídios em África e outros.

O conceito de Estado incide numa sociedade politicamente organizada e independente, enquanto Nação é formada por um conjunto de pessoas que vivem no mesmo território e têm costumes, história e traços étnicos comuns. A convicção de que só não haverá exploradores e explorados se houver soberania política é que tem estado na origem de muitos conflitos. No fundo, trata-se de implementar o princípio das nacionalidades lançado na Revolução francesa.

O futuro do “Estado-nação” continua a ser posto em causa por forças transnacionais e supranacionais, como também por forças de fragmentação regionais. Continua a ser reclamado em vários pontos, quase sempre com recurso à violência.

Na verdade, tem-se assistido nas últimas décadas à explosão das realidades étnicas que levaram, no fim do século passado, a conflitos étnicos e tribais das regiões periféricas.

O desmoronamento do “condomínio” soviético permitiu o desencadear de conflitos étnicos e nacionalistas em várias partes do Planeta: nos Balcãs, na Europa de Leste, na África Central e no Sueste Asiático. Após a “guerra fria” as antigas repúblicas da Jugoslávia reivindicaram e foram conseguindo, nos anos de 1990, o reconhecimento da sua independência.

Na Europa do Leste, na transição para a Ásia Ocidental, o caso mais dramático foi o da Chechénia. A Rússia, em 1997, reconheceu-a como república, mas não aceitou a sua independência.

Na África, os maiores problemas surgiram na África Central e Ocidental, países cujas

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fronteiras foram artificiais desde o tempo do colonialismo, e onde as tensões étnicas têm vindo ao de cima, levando a guerras violentas como aconteceu no Ruanda. Os governos destes países deixaram de contar com o apoio das superpotências, por já não haver necessidade de domínio geoestratégico, uma vez que a “guerra-fria” havia terminado. Na Ásia, os principais problemas surgiram no subcontinente indiano (Sri Lanka, Caxemira, Índia e Paquistão) e no Afeganistão (entre comunistas e muçulmanos).

Nas últimas décadas novos problemas têm afetado o nosso mundo. São as denominadas questões transnacionais, de onde a mais preocupante dá pelo nome de “terrorismo”. Embora não seja novidade, as migrações internacionais intensificaram-se, e de que maneira, no século XX. Nos finais daquele século, as três grandes regiões atrativas da população migrante eram a Europa, os Estados Unidos da América e a Austrália. Várias são as razões que explicam a mobilidade de milhões de pessoas: desde logo, o fator económico que leva à fuga à miséria que chega a pôr em causa a sobrevivência física; depois, o fator demográfico, que resulta do excessivo crescimento da população em algumas regiões, ao contrário de outras, onde a evolução demográfica não garante sequer a substituição dos seus efetivos populacionais; relevante é também o fator político, decorrente das guerras, das perseguições por motivos étnicos e políticos; há mais casos do que à partida se possa pensar, que se incluem num fator de ordem cultural e religioso, como são os casos de intolerância de alguns fundamentalismos que chegam ao poder; há ainda a considerar fatores de natureza pessoal e familiar que se devem à desagregação de núcleos familiares e fatores de ordem científica que fazem com que muitos “cérebros” abandonem os países de nascimento e de formação para se irem fixar em países mais desenvolvidos, no aspeto científico e tecnológico, não só porque são mais bem pagos, mas, sobretudo, porque aí encontram grandes desafios que os atraem. Após o fim da “guerra-fria” o mundo conheceu novas formas de insegurança. Agora há mais países com armamento nuclear e o fundamentalismo religioso-étnico gerou uma onda de terrorismo internacional sem regras, que pode atacar em qualquer momento e em qualquer lugar. Em parte, este fundamentalismo resulta da falta de valores humanos e da falta de respeito e de tolerância pelas minorias e pelas diferenças. Ora, em democracia aceitam-se como enriquecedoras as diferenças e aposta-se claramente no multiculturalismo, entendido como sendo aceites várias culturas dentro de uma mesma comunidade, sem que uma delas se imponha às demais, seja no âmbito cultural, religioso, político, sexual, étnico, de género ou outro. Ao contrário, em regimes totalitários, defende-se o etnocentrismo e o monoculturalismo que não respeita a diversidade cultural, antes a rejeita e persegue os seus defensores. O multiculturalismo denuncia a discriminação sofrida por culturas minoritárias colocando em questão a importância do reconhecimento público e legal dos direitos destas minorias e tudo faz para a plena integração dos imigrantes e da sua cultura, nos países de acolhimento. Infelizmente nos últimos anos, em termos internacionais, estamos em situação bem pior do que imaginávamos ser possível há meia dúzia de anos. Quando o tempo deveria ser de paz e de harmonia, há cada vez mais desentendimento, conflitos e guerras. Às guerras que já lavravam nos vários continentes outras se seguiram, sendo as mais badaladas de todas, a da Rússia à Ucrânia, que já leva mais de dois anos, concluídos no passado dia 24 de fevereiro de 2024 e, mais recentemente, a do Hamas com Israel,

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iniciada no dia 7 de outubro de 2023, com a subsequente invasão de Gaza por Israel. Mas há outros conflitos armados que lavram em vários países, nomeadamente na Síria, em Burkina Faso, na Somália, no Sudão, no Iémen, em Mianmar e na Nigéria.

No início da década de 1940, quando a pior guerra que a humanidade conheceu até hoje, semeava morte, destruição e terror, em terra, mar e ar, entre militares e civis, surgiu a ideia de que era necessária uma nova ordem internacional capaz de substituir com eficácia a desacreditada Sociedade das Nações (SDN), garantindo a tão desejada paz. Estávamos no verão de 1941 e, nesse sentido, os Estados Unidos da América e a Grã-Bretanha, representados por Roosevelt e Churchill, respetivamente, subscreveram a Carta do Atlântico. No ano seguinte, a 1 de janeiro de 1942, um número maior de países (26) assinava a “Declaração das Nações Unidas” e a 26 de junho de 1945 um número ainda maior de estados (51) assinou a Carta das Nações Unidas que instituiu a Organização das Nações Unidas (ONU), cujos principais objetivos eram a manutenção da paz, a defesa dos direitos do Homem, a igualdade de direitos de todos os povos e o aumento do nível de vida em todo o mundo.

Ora se a ONU tem conseguido, até ao momento presente, evitar uma guerra de proporções mundiais, não tem impedido guerras que decorrem em vários locais do mundo e a que recentemente se juntou mais uma em território europeu, desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia, sendo atingidas várias cidades, nomeadamente a sua capital Kiev. Aliás, esta guerra já se previa na sequência de várias ocorrências que se vinham registando na região do Mar Negro. António Guterres, o português que ocupa o mais alto cargo da ONU, já tinha criticado a posição de Putin, quando este ditou a independência das regiões separatistas ucranianas, Donetsk e Lugansk, que o Secretário-Geral da ONU havia considerado “uma violação da integridade territorial e soberania da Ucrânia”. Era o prenúncio do envio militar de tropas para a Ucrânia, que desde então está em guerra, com várias cidades da Ucrânia a serem permanentemente atacadas por tropas russas.

O caso é tanto mais grave quando a Rússia é um dos cinco países que, desde a fundação da ONU, tem direito de permanência no órgão mais importante da organização, o Conselho de Segurança, e tem também direito de veto. O mesmo acontece com os Estados Unidos da América, a China, o Reino Unido e a França. Ora, um dos países que deveria ser o garante da Paz e da Segurança internacionais começou uma guerra que, neste momento, não se sabe ainda as proporções que vai tomar e quando irá terminar. Este facto só por si, deveria alertar o mundo para o funcionamento antidemocrático do Conselho de Segurança da ONU. Constituído por 15 Estados-membros: cinco são permanentes e com direito de veto (que uma vez usado - e já o foi centenas de vezes - permite anular uma decisão dos outros catorze) e os restantes dez são eleitos de dois em dois anos na Assembleia-Geral da ONU.

É verdade que os Estados Unidos da América, o Reino Unido e a União Europeia anunciaram de imediato (dia 22 de fevereiro) sanções à Rússia, mas isso não demoveu o antigo oficial superior da KGB de avançar com os seus desígnios de dominar a Ucrânia. Os problemas entre a Federação Russa e esta antiga república soviética começaram quando, em 2014, uma revolução local afastou do poder o antigo presidente pró-russo e os novos presidentes assumiram a Ucrânia como um país que nada tinha que ver com

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a Rússia e que tinha toda a legitimidade para trilhar o seu próprio caminho. A Rússia ocupou, de imediato, a Crimeia.

Decorridos já dois anos da guerra da Rússia contra a Ucrânia, as vítimas são mais de meio milhão, entre mortos e feridos, dos dois países, e com uma enorme destruição patrimonial de valor incalculável.

Relativamente à segunda guerra, do Hamas contra Israel, para além de motivações de carácter político e nacionalista, há nesta uma clara conotação religiosa, de conflitualidade latente entre muçulmanos e judeus, que se agravou no Médio Oriente de uma forma mais sistemática desde 1948 quando, sob os auspícios da ONU, foi criado o Estado de Israel, com a subtração de território à Palestina. O bom senso impõe que, no mínimo, ambos os Estados (Israel e Palestina) sejam completamente soberanos.

Quantas guerras, quantas mortes têm custado as divergências da fé, ao longo dos últimos séculos? Curiosamente as três grandes religiões monoteístas adoram a mesma entidade divina, ainda que a sua designação seja diferente: Elohim para os judeus, Deus para os cristãos e Alá para os islâmicos.

As características que atribuem ao respetivo Deus nessas três religiões são, também, as mesmas: Ele é um ser omnipotente (tudo pode), omnisciente (tudo sabe) e omnipresente (está em toda a parte). E os fiéis das três religiões acreditam também na vida para além da morte física, têm valores morais semelhantes, enaltecendo o bem e condenando o mal. Não se percebe, então, porque é que a religião foi motivo e, infelizmente, continua a ser, para maltratar, violentar e matar tantos milhões de almas, pelos tempos e pelo mundo fora!?

É necessário que haja respeito pelos direitos humanos. É necessário que o ser humano aceite o direito à diferença com tolerância e reconhecimento pelo outro. A Igreja Católica, no contexto do Concílio Vaticano II (1962-1965) procedeu a algumas alterações muito significativas (e com o contributo importante de dois bispos portugueses, que eram personas non gratas para o regime político português e, por isso, se encontravam exilados: D. António Ferreira Gomes e D. Sebastião de Resende), quer internas quer externas, e tendentes a acompanhar “os sinais dos tempos”. Assim, a nível interno, a Missa passou a ser celebrada em todas as línguas nacionais e não em latim, foi autorizado o apostolado dos leigos, reconhecida a importância da liberdade religiosa e, o que aqui nos interessa particularmente, houve uma preocupação com a unidade de todos os cristãos (ecumenismo), e daí passou-se, concomitantemente, para um diálogo inter-religioso que se defende e aplaude, num contexto de vivência democrática. Neste momento, como vimos, há guerras na Europa, na África, na Ásia. E teme-se que estas possam escalar ou que outras venham a começar (no Extremo Oriente ou na América Latina, por exemplo). Todas elas têm repercussões no mundo inteiro, que se refletem na economia (com o agravamento da inflação ou mesmo a carência de determinados produtos, alguns de primeira necessidade), mas também nas mentalidades.

Mas se o ser humano não se relaciona bem com o seu semelhante, também deixa muito a desejar a forma como lida com o seu próprio lar (a Terra). Com efeito, essa é uma outra questão transnacional importantíssima que tem a ver com a relação que todos nós temos com o nosso próprio planeta, que é a nossa “casa comum”.

Desde meados do século passado, a humanidade vem tomando consciência dos perigos

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que resultam para o ambiente da intensidade da exploração dos recursos da Terra, através da industrialização. Mas foi a juventude dos países mais desenvolvidos que começou a tomar iniciativas para alertar a população e os governos para este grave problema.

Foram surgindo, assim, vários partidos políticos que desenvolveram os seus programas a pensar na defesa do ambiente e a própria ONU, poucos anos depois de ter sido criada, fundou, em 1948, a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).

Efetivamente, o desenvolvimento económico mundial tem pressionado a sobrexploração do solo, das águas, das florestas e doutros recursos naturais, o que tem provocado a contínua degradação ambiental: diminuição da área florestal, escassez de água potável (1/5 da Humanidade não tem acesso a água), poluição das linhas de água e do mar, destruição da camada do ozono, agravamento do efeito de estufa, desertificação do solo, fome e subnutrição, extinção de milhares de espécies vegetais e animais. No que se refere à preocupação com o planeta, esteve recentemente reunida a COP (acrónimo de “Conference of the Parties”, em português “Conferência das Partes”) na sua 28.ª edição, nos Emirados Árabes Unidos. Recorde-se que se trata do mais importante órgão da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, adotada em 1992. Não se concretizaram as metas desejadas, mas avançou-se no sentido de diminuir o impacto negativo da ação humana sobre a Terra. É preciso muita força de vontade, muita coragem dos políticos (de todos os países do mundo porque se trata, de facto, de uma questão global) para, de uma vez por todas, se tomarem medidas enérgicas que revertam a crítica situação em que se encontra a Terra, em termos de ambiente. É verdade que a União Europeia e outros países têm feito alguns progressos em termos ecológicos, mas nações importantes e com grandes responsabilidades internacionais na produção e distribuição mundiais têm ficado ao lado destas preocupações.

Justifica-se pois a consciência ecológica atual, bem patente em algumas formações partidárias, mas sobretudo em organizações não governamentais e organizações supranacionais (como a ONU). Todas têm de conciliar a sua ação a nível global, no sentido de um desenvolvimento sustentável que garanta a sobrevivência da civilização humana e dos outros seres do planeta.

O povo de todo o mundo, exercendo o seu direito de cidadania democrática, tem de continuar a pressionar os seus governantes para que estes encarem este problema de forma séria e cuidem de garantir a sustentabilidade do planeta no futuro.

2.6. Sociocracia e republicanismo

O termo sociocracia, uma forma ou sistema de governo em que as decisões são tomadas a partir da opinião de todos os indivíduos que, auto-organizados, integram a sociedade ou o grupo social, foi criado por Augusto Comte (1798-1857)215 nos inícios do século XIX.

É o “governo da sociedade” que se baseia na inteligência coletiva, que se contrapõe à

215 Filósofo francês que formulou a doutrina do positivismo, considerado como o primeiro filósofo da ciência no sentido moderno do termo, é autor da obra em 6 volumes Curso de Filosofia Positiva (1830-1842).

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democracia representativa em que se elegem representantes para tomarem (i)legitimamente as decisões que a todos importam. Na sociocracia as decisões são tomadas por todos, todas as medidas resultam da decisão pública. Comte compara a sociedade a um organismo vivo que opina e decide de forma interativa. Mesmo que haja representantes da população, estes não decidem sem a consulta popular. No estado positivo da filosofia política de Comte, que sucede aos estados teológico e metafísico, cabe a noção de parlamentarismo laico.

Para Comte, no estado positivo, a ordem social legitima-se pela satisfação do bem comum, em que as liberdades individuais são uma condição para a sua realização. Na terminologia de Comte, essa ordem social é a “sociocracia”216, cujo regime político específico é a República. A ideia comtiana de república encerra duas conceções, uma negativa e outra positiva, a negativa é a recusa da monarquia, a positiva consiste na subordinação da política à moral. A república comtiana caracteriza-se, assim, pela preocupação com o bem comum e com a inclusão social, é uma república laica e social.

Apesar da filiação do positivismo na matriz epistémica do Iluminismo, a sociocracia (regime sociopolítico triunfante no estado positivo) apresentava um cunho fortemente orgânico e, por isso, hierárquico, anti-individualista, antiliberal e antidemocrático […] Consequentemente, a despeito do pendor humanitário, cosmopolita e altruísta da sociocracia […] não se coadunava com as perspetivas mais igualitárias do tempo (socialistas, republicanos democráticos), nem sequer com as liberais (radicais ou moderadas/conservadoras). O poder temporal, isto é, a administração da sociedade, deveria ser exercido por aqueles que, segundo Comte – em função da divisão do trabalho na sociedade industrial – tinham dado provas de maior competência e proficiência (empresários, banqueiros, capitalistas, entre outros) […] se a implantação do republicanismo moderno (após 1789) coincidiu e se identificou, em grande medida, com o ascenso da democracia moderna, a sociocracia comtiana foi uma das versões mais influentes das teorias das elites não democráticas do século XIX.217

Apesar destas críticas ao positivismo e à sociocracia de Comte, é um facto que a sua filosofia influenciou o surgimento de ideologias políticas no século XIX, como o próprio republicanismo, o que atenuou o seu carácter antiliberal.

Resulta também que o organicismo de Comte é gerador de um modelo de governação sociocrático, em que todos são chamados a decidir, na prossecução de uma sociedade altruísta, mas poucos a governar o que, em última análise, pode conduzir ao empoderamento das elites e ao enfraquecimento da soberania popular.

A sociocracia é assim um modelo “democrático”, apostado na aprendizagem coletiva, que transcende o sistema representativo e o sufrágio universal. Os princípios da sociocracia são basicamente os mesmos da democracia, isto é, o respeito pelos direitos de liberdade, igualdade e felicidade, mas a sociocracia defende uma nova estrutura organizacional e uma base diferente para as tomadas de decisão.

216 O termo sociocracia (sociocratie) deriva da palavra latina socius (companheiro) e grega kratein (governar) e foi cunhado em 1851 por Auguste Comte.

217 MARTINS, Pedro Miguel (2020) – Comte, in História da Filosofia Política, coordenação de João Cardoso Rosas. Oeiras: Editorial Presença, pp. 465-466.

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Num sentido mais lato, sociocracia significa o governo pelos socius, pessoas que têm umas com as outras uma relação social, em oposição à democracia que é o governo do povo (demos).

No que à democracia política concerne, o conceito de sociocracia ainda foi reabilitado no final do século XIX por Lester Ward (1841-1913)218, que escreveu um artigo para um magazine americano219, no qual defendeu o “modelo” da sociocracia como alternativa à competição política criada pelo voto da maioria. Ward contrapõe este modelo a outras formas de organização social, como a democracia e o socialismo, que se opõem a outras formas existentes, ao passo que a sociocracia apenas se opõe à falta de um sistema regulador e simboliza a ação social positiva contrária ao negativismo da dominante escola laissez faire das doutrinas políticas económicas, ao reconhecer todas os modos de governo como legítimos e ao ir ao encontro da substância, em vez da forma220. A sociocracia é um sistema de governar, ou de liderar, que procura criar ambientes psicologicamente seguros e que se distingue pelo uso do consentimento, ao invés do voto por maioria, na discussão e tomada de decisão por pessoas que têm um objetivo comum.

Sem, na verdade, ter alguma vez vigorado como modo de governo, mas apenas como orientação para o aperfeiçoamento da governança e da democratização dos processos e procedimentos que à democracia importam, ainda hoje se utiliza como metodologia na educação, nas ciências sociais e na organização empresarial.

2.7. Monarquia e República

Parece-nos justo começar este subcapítulo com uma referência a Étienne de La Boétie (1530-1563)221 quando afirma que não há desgraça maior do que estar sujeito a um chefe, pelo que nos devemos interrogar sobre o lugar que cabe à monarquia entre as demais formas de governar, já que não é fácil admitir que o governo de um só tenha como preocupação a coisa pública222.

Cerca de dois séculos depois, também Thomas Paine (1737-1809)223 escrevia que a “sucessão hereditária” é um insulto e uma imposição à posteridade e que, sendo todos

218 Botânico e sociólogo americano, foi o primeiro presidente da American Sociological Association.

219 WARD, Frank Lester (1881) – Politico-Social Functions, in The Penn Monthly, volume XII, janeiro a dezembro. Filadélfia: Edward Stern & Co., p. 336.

220 Ibidem.

221 Escritor francês contemporâneo e amigo do filósofo renascentista Montaigne, a quem legou os seus escritos, e conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça de Bordéus por carta régia de Henrique II.

222 LA BOÉTIE, Étienne de (1548) – Discurso sobre a servidão voluntária, prefácio e tradução de Manuel João Gomes para a 4.ª edição em língua portuguesa de 2020. Lisboa: Antígona Editores Refractários, p. 18.

223 Político britânico revolucionário do século XVIII, autor de Rights of Man (1791), que participou ativamente na causa independentista americana.

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os homens iguais pela origem, ninguém pode ter por nascimento o direito de colocar a sua família em perpétua preferência em relação às demais224.

Mas experiências históricas anteriores às que aludem estes autores comprovam que as monarquias nem sempre corresponderam a um poder absoluto do rei, em algumas o rei é eleito e pode ser destituído pelos cidadãos, mesmo que estes se restrinjam a uma aristocracia empoderada.

Na Península Ibérica, por exemplo, e concretamente nas velhas Galécia e Lusitânia, a monarquia visigótica elaborou em meados do século VII um “código” (654) a ser aplicado a todos os habitantes, independentemente da etnia a que pertencessem, em que o clero tinha poder sobre o rei. As assembleias de bispos, em especial os concílios provinciais, elaboravam leis de aplicação obrigatória não apenas para a Igreja, mas também para a administração em geral, a sua autoridade era, portanto, superior à do próprio rei que podia ser deposto se se mostrasse indigno para a sua função e era o concílio a decidir da dignidade ou indignidade do monarca225.

Mas a personificação do chefe e a idolatria não existem só nas monarquias, também nas repúblicas presidencialistas a figura do chefe, todo poderoso, pode ter um grande ascendente sobre os cidadãos e monopolizar o poder político.

O que nos leva a outra questão, que é a de estabelecer se uma monarquia constitucional é um sistema de governo democrático. Para Aline de Beuvink226, monarquia e democracia não são incompatíveis, a democracia não existe apenas nas repúblicas e a eleição do chefe de Estado não é sinal de um país democrático. Para Aline em uma monarquia constitucional o chefe de Estado não é eleito porque não pode sê-lo, ele é superior aos partidos políticos. “O Rei tem de ser isento, imparcial, distanciado dos negócios de Estado e só deve interferir quando está em risco a Democracia e o bom funcionamento dos órgãos que regulam o seu país”227 .

Embora aceitando parcialmente estes argumentos, até porque como vimos um rei pode ser destituído através de um processo de forte contestação popular ou após um movimento insurrecional, do ponto de vista da aceção de democracia como forma de governo uma monarquia não é, taxonomicamente, elegível como democracia.

Mas admitimos que uma monarquia constitucional parlamentarista, isto é, não absolutista, possa ser hoje considerada um regime político democrático, por contraposição aos modelos autoritários e totalitários. Caso contrário, países como o Reino Unido, a Suécia e a Austrália, não seriam democracias. Aliás, o próprio Democracy Index (edição de 2022), desenvolvido pelo Economist Intelligence Unit, que mede o índice de

224 PAINE, Thomas (1776) – Senso Comum, tradução de J. Silva Couto para a edição em língua portuguesa de 2022. Torres Vedras: Bookbuilders, pp. 21-22.

225 SARAIVA, José Hermano (1978) – História Concisa de Portugal, Sintra: Publicações Europa-América, pp. 22-23.

226 Nascida no Brasil, de ascendência ucraniana pelo lado materno, é vice-presidente do Partido Popular Monárquico, doutorada em História pela Universidade de Évora e investigadora e professora na Universidade Autónoma de Lisboa.

227 BEUVINK, Aline Gallasch-Hall de (2021) – Serão a monarquia e a democracia incompatíveis? in O Triângulo da Democracia de Carlos Magalhães. Lisboa: MIL e DG Edições, p. 247.

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democracia a nível mundial, contempla nos dez primeiros lugares do ranking países que são monarquias, como é o caso da Noruega (1.º lugar), da Nova Zelândia (2.º), da Suécia (4.º) e da Dinamarca (6.º), considerados democracias plenas (full democracy); a Républica francesa e a Monarquia espanhola surgem apenas na 22.ª posição (ex aequo), respetivamente no antepenúltimo e penúltimo lugares das democracias plenas, e a República portuguesa (28.º) é classificada, no mesmo índice, como uma democracia com falhas (flawed democracy)228.

Do ponto de vista formal e no sentido restrito do termo, como modo de governo, a monarquia (tal como a aristocracia) não é uma democracia. Lato sensu, como regime político, é de admitir que uma monarquia constitucional seja de jure e de facto um regime político democrático, até porque, em contraposição, há repúblicas totalitárias e autocráticas (China, Coreia do Norte, Rússia, etc.) que se afastam cabalmente dos modelos de governação democrática que vigoram em grande parte dos países do hemisfério ocidental.

Na época contemporânea, iniciada com a Revolução Francesa de 1789, reclamam-se os valores da República e os fundamentos da Democracia, a Igualdade, a Liberdade e a Fraternidade. Parece-nos, no entanto, que a ética na ação política não se deve reduzir a um sistema político, ela cabe e faz todo o sentido num governo ou Estado em que a Lei e o Direito sejam respeitados, ou seja, pode coexistir em outros sistemas de governo que não nas repúblicas, como por exemplo nas monarquias constitucionais parlamentaristas.

Na I República em Portugal, por exemplo, segundo a visão de Pulido Valente (19412020)229:

Direitos e deveres emanavam apenas da «justiça republicana», como era interpretada pelos chefes do radicalismo e percebida por quem quer que se interessasse pela saúde e salvação da República […] Desde 1884 que a Monarquia diluíra progressivamente o voto urbano no voto rural para se defender dos republicanos. Para se defender do conservadorismo, monárquico ou não, a República, excluindo o grosso dos analfabetos do país político, tornou o voto rural insignificante […] Proibiram-se partidos monárquicos (entendendo-se, na prática, que novos partidos republicanos dirigidos por antigos monárquicos, monárquicos eram) e partidos regionais, sob a alegação de que seria «imoral» defender a «defunta crápula».230

Como se vê, a República só por si, enquanto sistema de governo, não consubstancia uma forma de governo democrático, nem no passado nem no presente. Uma coisa são os “ideais” republicanos da igualdade, fraternidade e liberdade, e alguns pequenos

228 https://www.eiu.com/n/campaigns/democracy-index-2022/

229 Ensaísta, escritor e cronista político português, doutorado em História pela Universidade de Oxford, foi investigador e professor universitário e é o autor da obra Portugal: Ensaios de História e Política (2009).

230 VALENTE, Vasco Pulido (1992) – A «República Velha» (ensaio de interpretação política), in Análise Social, vol. xxvii (115). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, pp.10-12.

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avanços civilizacionais, e outra os interesses corporativos que subvertem esses mesmos ideais, que não olham a meios para, com a capa de uma cartilha doutrinária, controlar os mecanismos do exercício do poder, subvertendo a soberania popular.

Mesmo se considerarmos como democracia apenas a existência de eleições justas, periódicas e transparentes nem toda a República é democrática ou possui um governo eticamente saudável. Basta olhar algumas Repúblicas como o Zimbábue ou Angola. Por outro lado, como já vimos, vários países sob os quais não paira qualquer dúvida se são democráticos e com governos de boa moral, são monarquias. É o caso, por exemplo, do Reino Unido, do Japão e do Mónaco. O direito à cidadania, à dignidade, ao pluralismo político e aos valores sociais do trabalho são mais respeitados em Estocolmo e Madrid do que em Xangai e em Caracas.

Esta associação da moral, do pluralismo político e dos índices de desenvolvimento das comunidades aos modos de governo parece-nos importante na caracterização da qualidade democrática dos Estados e das Nações, uma vez que se situa para além das “parangonas” ideológicas e do ideário das agendas políticas.

A Monarquia na sua versão clássica, em que a figura real concentrava nas suas mãos praticamente todo o poder, legitimado pelo sangue (monarquia hereditária) e pela suposta vontade divina, como aconteceu um pouco por toda a Europa, no período do Antigo Regime, é um regime político que está completamente afastado dos tempos atuais, em que os povos têm consciência, e ainda bem, dos seus direitos e, normalmente, defendem regimes políticos com uma prática verdadeiramente democrática, quer o chefe de estado seja eleito (Presidente da República), quer seja por via hereditária (como acontece com o Rei ou a Rainha).

Em Portugal, o regime monárquico durou de 5-10-1143 a 5-10-1910. Contudo, depois de 1822, tornou-se uma Monarquia constitucional, como já atrás se referiu.

Foi com o primeiro regime monárquico que Portugal se individualizou como território independente; foi com a segunda dinastia, quando a burguesia por circunstâncias muito particulares se abeirou do poder, que Portugal partiu para a Expansão, sob a forma de conquistas e descobertas; e o início da quarta dinastia representou a Restauração da Independência, consolidando-se a existência de um Estado aqui na faixa ocidental da Península Ibérica. Já no século XIX e depois das Invasões Francesas e da Guerra Peninsular, o regime português tornar-se-ia uma Monarquia constitucional, com o triunfo da Revolução do Porto, de 24 de agosto de 1820, e a promulgação da Constituição de 1822. Ultrapassados todos os obstáculos colocados pela ordem dominante até então, vencidas todas as adversidades (usurpação do poder por D. Miguel, guerra civil, Maria da Fonte e Patuleia), haveria de o período conhecido como “A Regeneração”, após 1851, depois de mais um golpe de estado do Marechal Saldanha, ter estabelecido uma nova etapa política em Portugal, caracterizada por um grande progresso económico do país, graças ao extraordinário dinamismo do primeiro ministro das Obras Públicas, Fontes Pereira de Melo. A revisão que foi introduzida à Carta Constitucional de 1826, pelo Ato Adicional de 1852, permitiu o “rotativismo” entre os principais partidos que proporcionou uma fase de estabilidade política.

Já mais para os finais do século XIX (concretamente de 1880 a 1890), se haveria de assistir ao surgimento de uma grave crise financeira, em que as finanças do Estado e o

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sistema bancário entrariam em colapso. Esta crise financeira tornar-se-ia uma crise económica, ao provocar uma estagnação do crescimento da riqueza. O montante dos depósitos bancários cresceu continuamente (com ligeiras quebras em 1861, 1866 e 1868) até 1876, os anos de 1868 até à “crise bancária” de 1876 registaram uma subida de cerca de 5 000 contos para 24 000 contos. Seguiu-se uma longa depressão até que esse montante voltasse a ser atingido em 1886. A partir de 1889, a crise política no Brasil e a queda das exportações de vinhos conduziram a uma diminuição do afluxo de capital fresco (ouro) aos bancos e aos títulos da dívida pública.

Tudo isto teve evidentes consequências políticas, mas teve também consequências económicas bem claras. Ao longo da década de 1890 e até ao fim do século, o volume de moedas metálicas em circulação diminuiu e depois tendeu a estabilizar, mas num patamar bem mais baixo que o de 1890. Há quem chame «retoma» a esta travagem da regressão da economia privada a partir de 1897-1898, mas o que ocorreu foi a transição entre a sangria de recursos da economia privada, operada pela vaga de emissão de papel-moeda que se seguiu à crise de 1891, e a instalação da longa estagnação por ela inaugurada.

Seguir-se-iam, como era de esperar, transformações do regime político, provocadas pelos problemas que a sociedade portuguesa enfrentava internamente, a juntar às que haveriam de surgir externamente.

Por cá, o regime político da “rotatividade partidária” que caracterizou uma boa parte da segunda metade do século XIX, entre os partidos Progressista e Regenerador, encontrava-se esgotado, face à falta de resposta para os principais problemas do país. Nos finais do século XIX, a incapacidade do rei para pôr cobro às constantes disputas políticas constituiu um dos principais fatores para a descredibilização da monarquia junto dos cidadãos.

Externamente, surgiria o inesperado “Ultimato Inglês”, como resultado do “Mapa Cor-de-Rosa” português, proposto pela Sociedade de Geografia de Lisboa (1881) que pressupunha a ocupação dos territórios entre Angola e Moçambique. A Inglaterra, nossa velha aliada, interessada também naqueles territórios, dirigiu um ultimato a Portugal ameaçando, no caso do não cumprimento das ambições inglesas, com o uso da força. O governo português não teve outra alternativa senão ceder, o que contribuiu para uma quebra no orgulho nacional e serviu para se propagandear, na opinião pública portuguesa, a ideia de que a monarquia não conseguia defender os interesses nacionais. A contestação da monarquia levaria, mais cedo ou mais tarde, à implantação da República. A crise financeira da década de 1880-1890 foi agravada pela aguda crise económica que Portugal viveu nessa década, com a dependência de matérias-primas, de capitais privados estrangeiros e o descontrolo da dívida externa. Por outro lado, intensificava-se a difusão da ideologia republicana, com a rápida adesão das classes médias. O dia 10 de junho (comemoração da morte de Camões) passa a ser aproveitado pelos republicanos para manifestarem a sua desconfiança face à possível desagregação da Nação e da independência. A ditadura de João Franco (depois de 1906) e o regicídio (1 de fevereiro de 1908) são eventos que concorrem bastante para o desgaste monárquico.

Há 114 anos (1910) sentiam-se em Portugal bastantes dificuldades a nível social e económico e, por isso, uma grande vontade de mudar de política. Era cada vez maior o

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descontentamento social e criou-se assim um movimento de contestação política liderado pelo Partido Republicano.

A contestação era resultante do Ultimato inglês (11-1-1890), já acima referido. Por outro lado, a crise económica que Portugal vivenciou em 1891-1892, levou a sucessivos adiantamentos de dinheiro ao rei, o que foi aproveitado pelo Partido Republicano para atacar, duramente, a monarquia portuguesa.

Tudo junto, mais o facto de em 26 de janeiro de 1890, em reação ao Ultimato, se ter fundado no Porto a Liga Patriótica do Norte, e o Congresso do Partido Republicano Português se ter reunido nos dias 5, 6 e 7 de janeiro de 1891, criou as condições favoráveis à eclosão da Revolta republicana do dia 31 de janeiro de 1891, no Porto.

Já no século XX, mais concretamente em maio de 1906, constatava-se mais uma crise no rotativismo político do país, atingindo os dois maiores partidos monárquicos, havendo até quem defendesse a suspensão das Cortes, que seria precisamente o que viria a acontecer com a ditadura de João Franco (1906-1908), que também decretou a censura da imprensa.

Para o fim dessa ditadura contribuiu, no dia 28 de janeiro de 1908, uma revolta republicana que se deu em Lisboa, e que ficou conhecida como o “Golpe do Elevador da Biblioteca”, ou a “Intentona do Elevador”, tendo sido considerados como seus responsáveis, o Partido Republicano Português e a Dissidência Progressista. Mas, mais uma vez, a Guarda Municipal conseguiu derrotar os revoltados. Para o fim do poder de Franco também ajudou o Regicídio, de cuja responsabilidade o Partido Republicano se afastou completamente. Subiria ao trono D. Manuel II, mas o seu reinado seria curto. Efetivamente, na noite de 4 de outubro de 1910, eclodiu a revolução republicana preparada por militares e civis que, numa ação conjunta, planearam atacar simultaneamente o Palácio das Necessidades, o Quartel-general e o Quartel do Carmo em Lisboa. Já sem o comandante civil indigitado, o psiquiatra Miguel Bombarda, que havia sido assassinado a tiro, na véspera, por um seu paciente, alguns quartéis de Lisboa (Quartel de Marinheiros, Infantaria 16 e Artilharia 1), menos do que aqueles que o movimento esperava, aderiram efetivamente às movimentações revolucionárias desencadeadas pelos republicanos.

No rio Tejo, frente a Lisboa, onde se encontravam ancorados vários navios de guerra da Armada Portuguesa, dois, o Adamastor e o S. Rafael, aderiram à Revolução, mas o navio Almirante D. Carlos manteve-se nas mãos dos monárquicos nas primeiras horas. Colunas de militares revolucionários saíram dos seus quartéis para ocuparem os pontos pré-determinados. Os que avançaram por Campo de Ourique enfrentaram uma troca de tiros desencadeada por uma patrulha da Guarda Municipal de Lisboa, que se manteve fiel à monarquia. Outras forças revolucionárias conseguem concentrar-se no Largo do Rato e tentam, a partir dali, avançar para o Quartel do Carmo, mas a guarda municipal resiste e as forças republicanas verificando que não conseguem alcançar esse objetivo, decidem rumar à Rotunda onde se entrincheiram.

O jornal “A Capital” de 4 de outubro de 1910 dedica as suas primeiras páginas à Revolução. Os primeiros títulos dão alento ao combate republicano: “Em Lucta / O almirante Candido dos Reis está vivo e commanda as forças da armada no quartel dos marinheiros / A familia real fugiu do Paço das Necessidades, desmoronado pelo fogo

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do ‘Adamastor’ e do ‘S. Gabriel / A bateria de Queluz foi derrotada pelos revolucionários”. A página seguinte relata alguns confrontos em Lisboa, o corte de todas as linhas ferroviárias e das linhas telefónicas. Lisboa está em pé de guerra. O jornal adere claramente à revolução republicana. Para que o movimento revolucionário não esmoreça escreve que Cândido dos Reis, o chefe militar do movimento, está vivo, quando já se sabia que estava morto. De facto, ainda na madrugada do dia 4 de outubro, o almirante Cândido dos Reis reuniu com a dezena e meia de cabecilhas da revolução acreditando tratar-se de mais um golpe que tinha falhado e, desesperado com o fracasso antevisto, no caminho de Arroios suicida-se.

Entretanto, os combates mais significativos do dia 4 de outubro, entre monárquicos e republicanos, vão concentrar-se na Rotunda. Desde as 5 horas da manhã, aí se encontram barricados cerca de uma centena de soldados e de meia centena de civis com 5 canhões e algumas espingardas, comandados por Machado Santos. Há também combates no Rossio e o rei foge para o palácio de Mafra, de onde há de seguir, com a restante família real, para o exílio em Londres, a partir da Ericeira e passando por Gibraltar. Elementos da Carbonária fazem explodir pontes, estradas e linhas férreas. Do lado monárquico, Paiva Couceiro assume o comando dos resistentes, mas, 19 anos depois da revolta republicana do Porto de 31 de janeiro de 1891, a República triunfava.

Às 9 horas da manhã do dia 5 de Outubro de 1910 (a uma 4.ª feira), José Relvas, Eusébio Leão e outros destacados dirigentes republicanos, desde a varanda dos Paços Municipais da Câmara Municipal de Lisboa, proclamam a República com ardentes discursos de grande carga emocional e política.

O jornal “A Capital”, de 5 de outubro de 1910, com o grande título “Viva a República!”, refere os nomes que integram o primeiro governo republicano (provisório): Presidente (sem pasta) - Teófilo Braga; Ministro do Interior - António José de Almeida; Ministro da Justiça - Afonso Costa; Ministro da Fazenda - Basílio Teles; Ministro das Obras Públicas - António Luís Gomes; Ministro dos Negócios Estrangeiros - Bernardino Machado; Ministro da Guerra - Coronel Correia Barreto; Ministro da Marinha - Azevedo Gomes.

Este governo elaborou as primeiras leis do novo regime. Iniciava-se assim a I República, que duraria até 1926 (pouco mais de quinze anos).

Os republicanos quiseram cumprir o “mundo novo” prometido que passava pela instrução do povo para o esclarecer e motivar à participação cívica e democrática, melhorar a qualidade de vida dos cidadãos e fazer um Portugal mais próspero.

O 5 de Outubro de 1910 foi um dia de renovada esperança para Portugal.

Em 1911, realizaram-se as primeiras eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, a qual elaborou a primeira Constituição republicana portuguesa - a Constituição de 1911, que fazia a seguinte distribuição dos poderes políticos: o poder legislativo foi entregue ao parlamento, oficialmente designado por Congresso da República (constituído por duas câmaras: a dos Deputados e o Senado); o poder executivo passou a pertencer ao Presidente da República e ao governo e o poder judicial competia aos Tribunais.

O Parlamento era eleito por sufrágio direto que, por sua vez, escolhia e podia destituir o Presidente da República, o qual tinha a competência de nomear o governo. O Governo só se podia manter em funções enquanto dispusesse do apoio da maioria dos deputados,

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ou seja, havia a predominância do Parlamento sobre o poder executivo (parlamentarismo).

A República defendia a liberdade total de pensamento do Homem, por isso, advogava a laicização do Estado231, que começou a tomar forma com a Lei da Separação da Igreja do Estado (aprovada em 1911). Tal como acontecera aquando da Revolução Liberal, os revolucionários de 1910 voltaram a expulsar as ordens religiosas e, pior que isso, nacionalizaram os seus bens e os de toda a Igreja, mesmo secular.

O Registo Civil tornou-se obrigatório, chamando o Estado a si o controlo da população, que até então era assegurado pela Igreja.

Por influência de algumas mulheres republicanas232 os governantes republicanos procederam à legalização do divórcio.

No que respeita à legislação social os republicanos também deixaram a sua marca, autorizando e regulamentando o direito à greve. Instituíram o descanso semanal obrigatório (para aquelas pessoas que por força da sua profissão tinham que trabalhar ao domingo, como por exemplo alguns comerciantes, tinha que ser encontrado um outro dia de descanso).

Mexeram igualmente na legislação laboral, reduzindo os horários de trabalho, medidas que favoreceram os operários, que tinham apoiado ativamente a revolução republicana.

No que respeita ao ensino, os republicanos davam extraordinária importância à instrução, achavam que todos os cidadãos deviam saber ler e escrever, para que, antes de votarem, se pudessem esclarecer devidamente e saber o que estava em jogo, em cada ato eleitoral. Os republicanos estabeleceram a instrução obrigatória e gratuita para todas as crianças entre 7 e os 12 anos, que morassem a menos de 2 km da escola.

Uma das batalhas da República foi, efetivamente, a da educação, procurando acabar

231 Vitorino Magalhães Godinho, no seu ensaio Há Cem Anos - A República, escreve: “A construção do Estado republicano e de uma sociedade aberta à modernização não podiam realizar-se sem a clara adopção da laicidade” (Porto: Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, 2018, p. 79).

232 Várias mulheres aderiram ao ideário republicano. Entre elas, destacaram-se as seguintes: Adelaide Cabete (feminista, presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e uma das três mulheres que bordou a bandeira republicana que esteve hasteada na Rotunda, aquando da luta pela implantação da República), Ana Castro Osório (influenciou Afonso Costa, ministro da Justiça, na elaboração da Lei do Divórcio), Angelina Vidal (republicana, livre pensadora e anticlerical), Carolina Beatriz Ângelo (médica, dirigente da Associação de Propaganda Feminista, foi a primeira mulher a votar em Portugal), Carolina Michaelis de Vasconcelos (primeira professora universitária na Faculdade de Letras de Coimbra), Virgínia Quaresma (primeira mulher a exercer o jornalismo em Portugal e uma das primeiras mulheres a licenciar-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), Maria Veleda (professora, feminista, republicana, livre-pensadora e dirigente da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas) e Regina Quintanilha (uma das primeiras mulheres a exercer a advocacia em Portugal):

https://pt.scribd.com/doc/51420120/As-Mulheres-na-Republica

https://visao.pt/atualidade/sociedade/2021-03-08-10-mulheres-que-lutaram-pelos-nossos-direitos/

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com o caciquismo e educar para a cidadania, estimulando o gosto no povo pela participação cívica e política.

Os princípios da Liberdade, Igualdade e Justiça fizeram igualmente parte dos valores doutrinários da República de há 114 anos.

A nível de Ensino Superior foi no período da Primeira República (1911) que foram fundadas as universidades de Lisboa e do Porto.

Quanto à moeda, os republicanos também fizeram uma reforma monetária, acabando com os réis e criando o escudo (decreto-lei de 22 de maio de 1911), que representava uma elevada valorização da nova moeda portuguesa, que valia mil vezes mais que a anterior.

Os principais símbolos do Estado também se alteraram. A atual bandeira de Portugal surgiu no contexto da República e foi precedida de um estudo prévio de auscultação popular. Houve várias bandeiras propostas, mas a que venceu foi aquela que ainda hoje está em uso e é cheia de símbolos particularmente significativos para a nação portuguesa.

Verde: simboliza as nações que são guiadas pela ciência; na versão popular simboliza a esperança no futuro. Vermelho rubro: é a cor das revoluções democráticas desde o século XVIII como as revoluções de 1848, a Comuna de Paris (1871) ou a revolta republicana em Portugal (Porto), a 31 de janeiro de 1891. Simboliza a luta dos povos pelos ideais de Igualdade, Fraternidade e Liberdade; na versão popular simboliza os sacrifícios do povo português ao longo da sua história. Esfera armilar: emblema do rei D. Manuel I (1469-1521). Simboliza o Universo e a vocação universal dos portugueses. Escudo: o escudo de armas remete para a fundação de Portugal. Simboliza a afirmação da cultura ocidental no mundo. Os castelos e as quinas evocam conquistas, vitórias e lendas ligadas à fundação de Portugal por D. Afonso Henriques (1109-1185).

Outro importante símbolo nacional é o hino. A música foi “A Portuguesa” de Alfredo Keil, composta ainda no século XIX, num contexto de grande aversão aos ingleses, com letra de Henrique de Mendonça.

Todavia, nem tudo foram facilidades para o novo regime. Manteve-se sempre uma persistente oposição monárquica, houve divisão entre os republicanos, registaram-se intensos movimentos grevistas dos operários e, pior que isso, surgiu a 1.ª Guerra Mundial em que Portugal participou, em África (para defender as suas colónias) e na Europa (Frente Ocidental, ao lado da nossa velha aliada, Inglaterra) para prestigiar internacionalmente a República Portuguesa.

Esta participação na Guerra foi verdadeiramente dramática para Portugal pelas suas consequências imediatas. Sobreveio desequilíbrio financeiro, inflação galopante, desvalorização do escudo, caos social e uma insustentável instabilidade política. Estes problemas levaram ao levantamento de uma corrente oposicionista. Após várias tentativas há um golpe que resulta: o de 28 de Maio de 1926. Este movimento foi comandado pelo General Gomes da Costa, que foi Comandante do Corpo Expedicionário Português na Flandres francesa, e pôs fim à primeira República, dissolvendo as instituições democráticas, extinguindo os partidos políticos e instaurando uma ditadura militar que, pouco depois, evoluiria para o “Estado Novo” (1933-1974).

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3. A REPÚBLICA EM PORTUGAL

A República, logo que se implantou por via revolucionária na capital, tentou chegar rapidamente a todo o País. No entanto, a dimensão e a organização do Partido Republicano não podiam satisfazer, em curto tempo, tal ambição.

3.1. A politização do povo na I República

Por isso, esta tarefa de republicanizar o país coube tanto ao Partido Republicano, quanto à maçonaria, aos comícios, às conferências, às festas cívicas e, também, aos centros republicanos e às associações de propaganda e defesa republicana que, entretanto, se foram formando.

Nesta vontade de instruir o povo nos cânones do republicanismo, vamos aqui partilhar o caso de três concelhos: um bem rural, no centro do país - Ansião; dois, bastante mais povoados, nos arredores do Porto: Gondomar e Valongo. Todos eles já dispunham de centros republicanos, antes da implantação do novo regime político em Portugal.

3.1.1.

O caso de Ansião

Comecemos então pelo concelho de Ansião, constituído ao tempo por oito freguesias: Alvorge, Ansião, Avelar, Chão de Couce, Lagarteira, Pousaflores, Santiago da Guarda e Torre de Vale Todos. Localizado no centro do país (entre Leiria, distrito a que pertencia, e Coimbra, sede da sua diocese), contou com uma elite (médicos, farmacêuticos, advogados, sacerdotes e professores) que aderiu entusiasticamente ao novo regime, acreditando que ele poderia fazer prosperar a Pátria, melhorar substancialmente Portugal e as condições de vida de todos os portugueses.

No concelho de Ansião, a República foi proclamada logo no dia 7 de outubro de 1910 por Adolfo de Figueiredo na varanda dos Paços do Concelho, perante muito povo e a bandeira da República, previamente içada. Adolfo de Figueiredo, em 1909, já havia fundado e presidido à Comissão Republicana de Ansião233. Foi o 1.º Presidente da Comissão Administrativa após a implantação da República, foi o Governador Civil de Leiria que mais tempo ocupou o cargo na I República e o republicano que mais tempo esteve à frente da administração do concelho de Ansião, entre 1910 e 1926. Houve outros republicanos, naturais deste concelho, que se destacaram a nível nacional, como foi o caso de José Cordeiro Júnior (maçon, republicano e deputado) que foi um dos principais responsáveis pela coordenação do movimento revolucionário que acabou com a monarquia em Portugal, tendo sido depois eleito deputado constituinte, tesoureiro da Assembleia Nacional Constituinte e administrador da Câmara de Oeiras, onde proclamou a República e, por mais de uma vez, foi seu Presidente de Câmara, e do coronel Vitorino Henriques Godinho que, para além de um dos obreiros da revolução republicana, foi deputado constituinte e depois reeleito durante toda a 1.ª República, foi ministro por duas vezes, combatente na primeira guerra mundial, Adido Militar em

233 Conhece-se correspondência trocada entre ele e o Dr. Bernardino Machado, desde 1908.

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Paris e Diretor Geral de Estatística.

Para além destes e de outros republicanos ansianenses filiados no Partido Republicano Português, também houve neste concelho republicanos completamente apartidários que se envolveram na republicanização do povo, assunto que aqui nos interessa particularmente, fundando no dia 29 de junho de 1911 a Associação de Propaganda e Defesa Republicana do Concelho de Ansião (doravante APDRCA), a que aderiu grande parte da elite local e que tinha os seguintes objetivos: “1.º - Infiltrar no Povo de todas as aldeias do concelho o espirito democrático e o amor pelas novas instituições; 2.º - Fazer a propaganda doutrinária dos princípios republicanos; 3.º - Destruir e inutilizar por todos os meios ao seu alcance a propaganda surda e traiçoeira dos inimigos das novas instituições”234

Para concretizar estas finalidades, os 70 cidadãos235 que assinaram a ata da constituição desta associação propunham-se utilizar vários meios, entre os quais a palavra, a ação e o exemplo. No que respeita à palavra, era sua intenção fundarem um jornal doutrinário, realizarem conferências, palestras e promoverem a leitura e o debate de jornais republicanos junto do povo. Quanto à ação, pensaram: na organização de festas cívicas, escolares, comemorativas de aniversários ou factos históricos; na promoção de cursos noturnos, em que o professor oficial lecionasse gratuitamente o ensino da escrita e da leitura à população adulta, nos locais onde tal iniciativa se achasse necessária; no estímulo à associação dos trabalhadores em sindicatos e caixas de crédito agrícola, em cada freguesia; na atribuição de maior solenidade e respeito aos atos do Registo Civil, designadamente do casamento; na constituição de um batalhão de cem homens, no concelho, preparados para combater em defesa da República. Finalmente, no que se refere ao exemplo, os associados comprometiam-se a pôr de lado as lutas eleitorais e a acabar de vez com o caciquismo, preferindo as sessões de esclarecimento do público, através da realização de conferências e comícios públicos, optando por vigiar zelosamente o cumprimento da lei eleitoral e das outras, repudiando toda e qualquer forma de compadrio e corrupção, oferecendo antes o seu apoio a qualquer cidadão que em coisas públicas reclame justiça contra o favoritismo e a prepotência.

De acordo com o artigo 13.º dos Estatutos, os corpos gerentes da Associação eram os seguintes: Comissão Central, Comissões Executivas Locais, Junta de Publicidade, Conselho Fiscal e Mesa da Assembleia Geral.

À Comissão Central, constituída por 11 membros, eleitos anualmente na primeira sessão de cada ano, competia, em síntese: coordenar, bem como apoiar moral e materialmente as comissões executivas locais; apreciar as suas propostas sobre sessões de propaganda e realização de festas; realizar a festa anual do concelho, na vila de Ansião; decidir a admissão ou expulsão de sócios, com recurso para a Assembleia Geral; velar pelo cumprimento dos Estatutos.

As Comissões Executivas Locais, uma por cada freguesia, variavam na sua constitui-

234 Retirado dos Estatutos que foram divulgados no jornal “O Cavador”, órgão de comunicação social desta Associação.

235 Entre estes havia médicos, advogados, professores, empresários industriais, proprietários, funcionários públicos, capitalistas, farmacêuticos e comerciantes, representativos de todas as freguesias do concelho.

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ção, entre 3, 5 ou 7 membros, eleitos na primeira Assembleia Geral da Associação, e tinham como competências as seguintes: concretizar os objetivos da Associação na respetiva freguesia; promover a realização da festa anual da paróquia “que deverá sempre revestir uma feição educativa”236; cobrar a quota mensal de 100 réis a cada associado, de que guardarão 70 réis para as suas despesas, tendo que entregar 20 réis à Comissão Central e 10 réis à Junta de Publicidade237; dar conhecimento à Comissão Central, com um mínimo de 3 dias de antecedência, de todas as festas e ações de propaganda que quiserem levar a efeito na sua freguesia.

A Junta de Publicidade, composta por 5 membros, também eles eleitos anualmente na primeira sessão da Assembleia Geral. Ao contrário dos outros órgãos de que até agora tratámos, que reúnem ordinariamente uma vez por mês, esta reúne quinzenalmente e “tem especialmente a seu cargo a redacção, administração e publicidade do jornal”238 . Compete-lhe, também, tomar iniciativas no sentido de que sejam fundadas, nos concelhos vizinhos, associações de “igual natureza”239 .

O Conselho Fiscal, constituído por 3 membros, eleitos anualmente na primeira Assembleia Geral, estava encarregado da elaboração do relatório de gerência a apresentar na primeira Assembleia Geral do ano seguinte e de dar parecer sobre as contas da Comissão Central, Comissões Locais e Junta de Publicidade.

A Assembleia Geral era constituída por todos os sócios da Associação, presidida por 3 membros eleitos na primeira Assembleia Geral, que deveria realizar-se todos os anos no dia 15 de janeiro. Eram suas competências, entre outras, aprovar as contas, decidir recursos interpostos por sócios, eleger os corpos gerentes.

A Associação, três meses depois da sua constituição, deixou de contar, não se sabe explicitamente por que razão (embora seja admissível pensar-se que se tratou de dissensões internas), com três republicanos históricos do concelho e filiados no Partido Republicano: José Augusto Medeiros240, Adolfo de Figueiredo e Paulo Braz Medeiros que, conforme se lê na página 2 d’O Cavador, n.º 1, em post scriptum à Carta Aberta, dirigida ao Diretório do Partido Republicano Português, “acabam de declarar que não prestam o seu apoio à Associação”, isto apesar da reunião, que deu origem à Associação, ter sido presidida por Adolfo de Figueiredo. Não se sabe exatamente o tempo que durou esta Associação, porquanto o último núme-

236 Parágrafo 2.º do art.º 21.º dos Estatutos.

237 O art.º 22.º dos Estatutos refere, em pormenor, a divisão das receitas entre os vários órgãos da Associação.

238 Art.º 24.º dos Estatutos.

239 Art.º 25.º dos Estatutos.

240 Cf. Horizonte, nº 4, de 1-3-1983, que homenageia o Dr. José Augusto Medeiros por ocasião do primeiro centenário do seu nascimento. Nasceu em 7-3-1883 e foi farmacêutico durante 58 anos em Avelar. Foi Presidente da Câmara de Ansião e, como republicano convicto, opôs-se tenazmente ao regime salazarista, tomando parte ativa nas campanhas da oposição, nomeadamente aquando das candidaturas presidenciais dos generais Norton de Matos e Humberto Delgado.

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ro do seu jornal é datado de 5 de outubro de 1912241. É provável, no entanto, que tenha durado mais algum tempo. Pelo menos, o Partido Democrático tinha, ainda em 1915, um núcleo no concelho de Ansião242. Entre 31 de janeiro e 17 de outubro de 1924, neste mesmo concelho, publicou-se semanalmente o jornal do Partido Republicano Português (PRP) - A Resistência243, que era lido em todo o concelho.

Conhecem-se os nomes das pessoas que integraram, pela primeira vez, os corpos gerentes da Associação de Propaganda, mas não o cargo concreto de cada um dentro do respetivo órgão. Apenas sabemos, por uma notícia inserta na página 2, do jornal n.º 1, que o Presidente da Comissão Central da Associação de Propaganda e Defesa Republicana, no ano de 1911, era o Dr. Alberto Rego.

Conhece-se também parte significativa da obra realizada pela Associação, em prol dos valores republicanos e na defesa dos interesses do concelho, graças aos 20 números do seu jornal, que cobrem apenas 15 meses de atividade.

Falemos agora, sinteticamente, do jornal O Cavador . Porque “ cavar é inundar de luz o humus primitivo, é abrir janelas para o infinito por onde possa entrar a jorros a alma creadora do Sol que assim vae dar vida ás coisas preciosas que a escuridão mantinha n’um somno profundo e continuado” 244 é que os responsáveis pela Associação Republicana de Ansião puseram o nome de O Cavador ao seu jornal de feição doutrinal que procuraria, de acordo com as suas próprias palavras, inundar a alma do povo das aldeias “não com a luz do sol, mas sim com a luz da verdade e da sciencia, que são outros soes que tambem nos aquecem e vivificam. Pois na alma do povo das aldeias também dormem energias admiráveis que é preciso ir despertar, mas com cuidado, suavemente, para que o abalo não prejudique esses cerebros mal

241 Partimos do princípio de que não se publicaram mais do que os 20 números existentes na Biblioteca Municipal do Porto (entre 20 de agosto de 1911 e 5 de outubro de 1912).

242 Cf. Boletim do Partido Republicano Português, n.º 2, 1915.

243 Existem, na Biblioteca Municipal do Porto, 33 números deste jornal que se publicou em Ansião. O seu diretor foi Eugénio de Almeida, que tinha como editor José Adelino Figueiredo Medeiros e como secretário de redação António Prudente d’Oliveira. Era no estabelecimento comercial de A. Prudente d’Oliveira na vila de Ansião, onde, à moda daquele tempo, se vendia e fazia um pouco de tudo (vendiam-se fazendas, chapéus, malhas, artigos para caça e, como o seu proprietário era correspondente de várias casas bancárias e companhias de seguros, podiam, também ali, ser feitos depósitos, levantamentos e contratos de seguros), que funcionava a redação d’A Resistência. A partir do n.º 25, de 15-8-1924, Eugénio de Almeida ausenta-se do País, passando o editor a acumular também as funções de diretor; o administrador passou a ser João Gomes dos Santos, também ele um dos fundadores da APDRCA; a redação e administração sedeou-se, então, no Centro Republicano Ansianense; a tipografia que, até ao n.º 24, se encarregou da sua composição e impressão foi a Figueiroense (de Figueiró dos Vinhos), passando a ser, a partir do n.º 25, a Leiriense (de Leiria). Os preços da assinatura anual (conjunto de 24 números) que se publicitaram foram os seguintes: do n.º 1 ao n.º 18 - 5$00; do n.º 19 ao n.º 24 - 7$50; e do n.º 25 ao n.º 33 - 6$00. O n.º 8 d’A Resistência, de 27-3-1924, indica os locais de pagamento para os assinantes que residiam no Alvorge, S. Tiago da Guarda, Ansião, Torre, Lagarteira, Pousaflores e, ainda, nos concelhos de Castanheira de Pêra e Pombal.

244 Pode ler-se na primeira página d’O Cavador, n.º 1, de 20-8-1911.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

preparados para os grandes deslumbramentos” 245

O seu diretor foi Francisco Fernandes Rosa Falcão; o administrador e editor António Fernandes de Sousa Ribeiro; a redação e administração esteve sedeada na Pedra do Ouro - freguesia de Chão de Couce, concelho de Ansião. O corpo redatorial era constituído por Alfredo Manso, Sousa Ribeiro, Alberto Rego, Pereira Barata e Rosa Falcão, como redatores apareciam António Cânova, Botelho de Queiroz, Falcão Ribeiro e Marques Rosa. A composição e impressão, até ao n.º 11, de 16-4-1912, foi feita na Tipografia Minerva de Vila Nova de Famalicão. A partir do n.º 12, de 10-5-1912, passou a ser composto e impresso em Coimbra, na Casa Minerva. A mancha impressa a 6 colunas tinha 29 cm de largura por 42 cm de altura, normalmente não tinha fotografias nem desenhos e os anúncios e editais eram remetidos para a última página. O preço anual, de uma série de 24 números, era de 500 réis.

Procurando que a sua mensagem chegasse ao povo, tiveram que preocupar-se com a linguagem utilizada. Logo na primeira edição, manifestavam claramente esse propósito: “O Cavador será escripto em linguagem simples que o Povo compreenda”. Tratando-se de uma associação de propaganda e defesa do novo regime, implantado no país a 5 de Outubro de 1910, e de um jornal que visava concretizar a “republicanização” popular, é óbvio que a principal preocupação, em tal conjuntura, se torne:

A alma do povo das nossas aldeias. Ella, como o humus primitivo, jaz inerte na sua prisão tenebrosa, feita de ignorância e preconceitos, á espera sempre de que alguém venha soltal-a da cadeia (...). É preciso ir cavar essa terra virgem e então ver-se-ha como ella é boa e apta para receber a semente mais delicada e como é capaz de a fazer fructificar n’uma abundancia que surprehenderá o proprio cultivador246.

A educação do povo é, pois, uma das prioridades da Associação, para quem o povo, uma vez esclarecido, será capaz de compreender que o remédio de todos os males de que o País padece está na república. Para os dirigentes da Associação a república é a última esperança. Acusam a monarquia de não ter instruído nem educado o povo, por ter considerado essas tarefas como questões secundárias. Ao contrário, a Associação assume determinadamente esse papel, desde o início:

O que nós pretendemos é educar o Povo. Ora nós queremos em primeiro lugar, que o Povo aprenda a amar e comprehender a Republica e se convença de que lhe convem e interessa vigiar pela sua conservação, não só porque n’ella poderá encontrar a satisfação das suas justas e legitimas aspirações, mas também e principalmente, porque a dentro d’esse regimen politico, quando bem comprehendido e executado, não será possível medrar essa dissolvente instituição, carcacteristicamente nacional, que na monarchia se appellidou - caciquismo - e que na Republica se procurará manter, porque não faltará, infelizmente, quem sacrifique os principios, de que, aliás, procurará parecer uma victima, aos seus interesses, quantas vezes inconfessáveis e porventura tambem, por vezes, as suas preocupações de doentio exhibicionismo, ou de ultra-tôla vaidade247

245 O Cavador, nº 1, de 20-8-1911, p. 1.

246 Ibidem

247 O Cavador, de 10-5-1912, p. 1.

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Torna-se, pois, necessário e urgente educar o povo para que ele deixe de ser indiferente. Aliás, o Dr. Falcão Ribeiro, que escreve de Coimbra, a 7-8-1911, Palavras de Sympathia, depois transcritas na primeira edição do jornal, deixa transparecer, para o caso de Ansião, muita esperança:

Cada uma das poucas terras do Paiz em que cooperam espiritos d’elite, devotados á causa republicana, como Rosa Falcão, José Barata, Augusto Medeiros e Alberto Rego é um farol que se accende, um guia seguro, uma esperança certa, de que a nau prosseguirá avante (...) tendes a gloria da iniciativa, do exemplo primeiro; que ele seja proficuo, que bem preciso se torna dominar de vez este mar tenebroso248.

Muitos artigos publicados no jornal procuram alcançar esse objetivo de educar e esclarecer o povo. Artigos como: Palavras Claras, Lições para o Povo, de Rosa Falcão; Utopias e Realidades, Patria e Republica e Coisas Nossas, de Alberto Rego; A Confissão, Palavras para o Povo (sob a forma de diálogos); Um Pouco de Historia, Numeros Claros e Instrução do Povo, de Pereira Barata; Lições de Coisas, de Carlos M. Pereira; são exemplos evidentes dessa vontade explícita de desbaratar a ignorância do povo. Outro tanto se pretende com a relevância que se dá às comemorações de datas históricas importantes, entre as quais são especialmente destacadas a Revolta do Porto de 31 de Janeiro de 1891, a Restauração da Independência no 1.º de Dezembro de 1640 e a Implantação da República em 5 de Outubro de 1910. Também algumas figuras de eminentes republicanos como Manuel de Arriaga, Eduardo de Abreu e José Falcão, ou de personalidades ligadas à região que se destacaram, como o Prof. Dr. Costa Simões, são enaltecidas nas páginas d’O Cavador.

Todo este tipo de iniciativas redatoriais, bem como o relato das jornadas de luta desenvolvidas contra os monárquicos, assim como a organização de conferências, de festas populares e comícios, têm em vista essa transformação - a que se refere Alberto Rego n’O Cavador, n.º 13, de 10 de maio de l912 - que não se pode fazer com decretos e leis, mais ou menos complicadas. Essa transformação, para ser eficiente e útil, deve começar de baixo para cima. Por melhores que sejam as intenções dos governantes, todo o seu trabalho será em vão, se não for secundado na província com capacidade e boa vontade. É preciso levar esta gente por bons modos e, sobretudo, pelos bons exemplos. Naturalmente desconfiado, porque tem sido secularmente enganado, captar a confiança do povo é tarefa bastante difícil e exige uma grande paciência e tenacidade - adverte Alberto Rego.

Interessar o povo na eleição das suas juntas de parochia e das Camaras municipais, fazer-lhe ver a importância capital desse papelinho que elle vai lançar na urna, explicar-lhe claramente qual a soma de lutas e sacrificios que custou aos nossos antepassados a conquista dessa divida para o povo, tal me parece ser o unico caminho practico para desse povo se fazer uma entidade consciente e capaz de se saber impôr todas as vezes que alguém queira expolial-a dos seus direitos249

248 O Cavador, n.º 1, de 20-8-1911, p. 3.

249 Coisas Nossas, in O Cavador, n.º 13, de 10-5-1912, p. 1.

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A organização de conferências fazia parte dos deveres estatutários dos responsáveis pela Associação. E, de acordo com O Cavador, várias vezes e em vários locais do concelho, se promoveram conferências versando temas como, por exemplo, Deveres dos Cidadãos, pelo Dr. Alberto Rego, e a Lei da Separação do Estado das Igrejas, pelo Dr. Rosa Falcão.

Este último tema, A Lei da Separação do Estado das Igrejas, de tão polémico e antipopular, tornou-se uma questão de honra para os mentores da Associação que viram no seu tratamento minucioso a única possibilidade de esclarecer e, sobretudo, sossegar o povo para que este tivesse a certeza de que a República não pretendia perseguir a religião, nem era inimiga de Deus.

Estes republicanos convictos conheciam bem o envolvimento vital das gentes desta região com a religião católica. Isso é bem claro desde o primeiro n.º d’O Cavador onde se lê que o povo todos os domingos ia à Missa. E sobre a religião acrescentam:

Uma religião ingénua e boa como este bom Povo que a professa com as suas romarias vistosas e movimentadas, com os idyllios com a conversada á hora suave do entardecer, sob a sombra velada e discreta dos silvados em flôr, no regresso da festa, com os bailes ao ar livre em volta da capella muito branca, onde se venera a milagrosa imagem da Senhora, com muito sol, e muito vinho e, ás vezes, tambem, com muita bordoada. O Povo, cujo pasto intellectual é este e não outro - talvez porque outro ainda lhe não dessem - quando o convencem de que a Republica lhe queria roubar tudo isso, começou a odial-a e de então para cá não tem deixado de a imaginar um regime diabólico250 .

Justifica-se, pois, a intervenção dos republicanos explicando ao povo o que se pretende com a Lei da Separação do Estado das Igrejas. E é o diretor d’O Cavador que toma a seu cargo essa tarefa, quer na qualidade de orador, quer na de redator, quer ainda na de jurista.

Parece-nos também interessante que os responsáveis da Associação e do jornal tenham tido, desde o início, a preocupação de não se envolverem na defesa de qualquer partido político251, antes assumindo a intenção explícita de educarem o povo para o novo regime democrático - a República.

Os próprios estatutos apontam claramente nesse sentido: o art.º 4.º prevê, no seu 1.º ponto, “a fundação de uma publicação periodica exclusivamente doutrinaria” e o art.º 10.º sublinha a mesma intenção, dizendo que a referida publicação “manter-se-ha no terreno exclusivamente doutrinario, afastando questões irritantes e não dando publicidade a escriptos que versem questões pessoaes, ou contenham allusões da mesma natureza”.

As festas populares estavam previstas nos Estatutos da Associação no seu art.º 5.º, ponto 1.º, como um dos meios de propaganda, prevendo-se a realização de “festas civicas, a que se procurará dar o maior brilho possível, commemorativas de aniversarios ou de

250 Carta Aberta ao Diretório do PRP, in O Cavador, n.º 1, de 20.8.1911, p. 2.

251 Foi, talvez, a declarada isenção partidária que afastou da Associação alguns dos republicanos históricos já referidos (Adolfo de Figueiredo, José Augusto Medeiros e Paulo Braz de Medeiros), mas, por outro lado, teve o mérito de dar maior credibilidade à sua obra.

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factos historicos, festas agricolas, escolares, da arvore”, estando incumbida a Comissão Central da realização da festa anual na sede do concelho e as Comissões Executivas

Locais da realização da festa anual da respetiva paróquia.

A Festa Anual do concelho era a celebração do aniversário da Revolução republicana, feita sempre com grande entusiamo popular, excetuando os anos da primeira guerra mundial, em que por razões óbvias se fazia de forma mais esmorecida. Nos outros anos, as ruas da vila de Ansião eram engalanadas a preceito, apresentando-se devidamente ornamentadas, e não faltavam as “iluminações de balões venezianos e á moda do Minho e de acetilene”252 .

Relativamente a outras festas, registaram-se algumas, sempre relacionadas com factos históricos particularmente significativos para a Pátria portuguesa. Delas, destacamos a que teve lugar em Chão de Couce, no dia 1 de dezembro de 1911, e a que se organizou no Avelar, no dia 21 de julho de 1912, a festejar a vitória republicana sobre a 2.ª incursão monárquica a terras do norte de Portugal.

Quanto à primeira, tratou-se de uma festa escolar, organizada pelos professores de instrução primária de Chão de Couce, Augusto Lopes do Rego e Manuel Lopes Boavida, que contaram com a colaboração do seu colega do Avelar, Augusto Simões que, apesar de o dia ser daqueles de “chuvosa invernia”, acompanhou os seus alunos desde o Avelar até Chão de Couce. O programa tinha como objetivo principal festejar a Restauração da Independência, ocorrida em 1 de Dezembro de 1640. Nela, para além dos professores e alunos naturalmente envolvidos, participou também a elite republicana local, designadamente o Presidente da Comissão Paroquial Administrativa, António Simões, que presidiu à sessão festiva, secretariado pela D.ª Elvira Rego253 e pelo juiz de paz de Maçãs de Dona Maria, Manuel Ferreira, e ainda, entre outros, o Diretor d’O Cavador, Dr. Rosa Falcão, o inspetor do círculo escolar de Ansião, Dr. José Pereira Barata, o Dr. Alberto Rego, o Dr. António Cânova, António Fernandes Sousa Ribeiro e bastantes senhoras das famílias Rego, Costa Simões, Cânova e Barata que, depois das várias intervenções, serviram a todas as crianças presentes um lanche oferecido pelo Dr. Alberto Rego.

As crianças tiveram um dia de escola bem diferente, com o prazer suplementar - para a maioria delas, talvez o mais importante - de um lanche mais substancial e delicado. Por isso, no regresso de Chão de Couce, as crianças do Avelar que já na festa tinham cantado, com os outros, a Maria da Fonte e a Portuguesa, tiveram ainda ânimo para percorrer as ruas da sua terra a entoar, de novo, o Hino Nacional.

A outra festa, que envolveu o povo de Chão de Couce, Avelar, Pousaflores, Maçãs de Dona Maria, Aguda e lugares vizinhos, ocupou quase toda a edição n.º 17 d’O Cavador, que se publicou no dia 31 de julho. A manchete, a toda a largura da 1.ª página é esclarecedora: “As Cinco Vilas em Festa - O Povo Saúda a Patria e Consagra a República numa Manifestação Grandiosa”.

Organizada pelo grupo redatorial d’O Cavador a festa foi, segundo os dados fornecidos

252 O Cavador, n.º 20, de 5-10-1912, p. 3.

253 Era a esposa do Dr. Alberto Rego. É interessante registar que foi chamada a secretariar a mesa desta sessão festiva, em que participaram também várias senhoras.

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pelo mesmo jornal, um verdadeiro sucesso, tendo juntado 3.000 pessoas. O ponto de convergência dos manifestantes foi o Avelar que se ornamentou propositadamente para a festa/comício, concentrada no jardim do Hospital. Girândolas de foguetes deram o tom festivo à região, ao mesmo tempo que anunciavam aos povos vizinhos a hora de se iniciar o cortejo. Os lugares das vizinhanças lançavam também foguetes em sinal de participação na festa. Crianças do ensino primário e adultos - a maioria a pé e cantando, aquelas a Maria da Fonte estes a Portuguesa, com vivas, de permeio, à Pátria, à República, às forças de terra e mar - todos se encaminhavam para o Avelar. Participam também as filarmónicas do Espinhal e de Figueiró dos Vinhos que executam os acordes da Portuguesa. “No caminho a multidão engrossa cada vez mais com gente que chega de todos os lados e cruzam com carros repletos de familias, que de Alvaiazere e de outras localidades se dirigiam ao Avelar para assistir ao Comicio”254 .

O jardim do Hospital torna-se pequeno. A multidão que se juntou ouve os intervenientes. O primeiro orador foi o Dr. Rosa Falcão que, durante cerca de uma hora, fez um rápido esboço dos “acontecimentos sensacionais que nestes ultimos anos têm agitado o Paiz”255, não esquecendo as razões que levaram ao 5 de Outubro de 1910. Intervieram, também, com palavras eloquentes e relativas ao momento de euforia que se vivia, o Dr. Alberto Rego e o Dr. Pereira Barata. O Professor Manuel Domingos Godinho, que assistiu ao comício/festa do Avelar, solicitou ao grupo Cavador que fosse mais longe:

As Cinco Vilas que possuem medicos distintos, advogados de merito, professores abalizados, homens de sentimentos liberais e um povo essencialmente bom, devem desde já iniciar conferencias publicas sobre o triplice aspecto fisico, intelectual e moral. / Os medicos incumbir-se-hão das conferencias sobre higiene infantil, escolar, conjugal, nas oficinas, etc.; os advogados sobre explicações de leis, direitos e deveres mutuos, cumprimento da palavra que exterioriza novos sentimentos e define o carácter do Homem; aos professores fica a mais espinhosa - a moral social, ainda entre nós, num plano bastante baixo, e mostrar ao povo a necessidade e a vantagem de se instruir, em beneficio seu, da patria e da humanidade.256

Relembraremos agora, em curtos apontamentos biográficos, alguns republicanos de Ansião que se mostraram desinteressados em termos partidários e por isso nunca foram filiados no Partido Republicano Português. Tiveram o epíteto de conservadores, mas foram os que mais fizeram pela autêntica republicanização do povo do seu concelho, fundando e dando vida intensa à já referida APDRCA.

Adriano Augusto de Barros e Rego foi médico e político. Médico do 1.º Partido Municipal, aderiu à República em 1910, tendo sido um dos fundadores da Associação. Mas só com o Golpe Militar de 28 de Maio de 1926 passou para a ribalta política. Foi fundador e presidente da Liga Nacional de 28 de Maio em Ansião, mais tarde presidente da Comissão Concelhia da União Nacional, Secretário do Governo Civil de Leiria e Presidente da Comissão Administrativa/Câmara de Ansião durante cerca de 10 anos,

254 O Cavador, n.º 17, de 31-7-1912.

255 Ibidem

256 Ibidem

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tendo sido responsável por grandes melhoramentos no concelho. Nasceu em Chão de Couce no dia 8 de dezembro de 1877. Entre 1888 e 1895 frequentou o Liceu de Leiria; em 1904 concluiu o curso de Medicina na Universidade de Coimbra; entre 1908 e 1940 foi médico do 1.º Partido Municipal de Ansião; em 1911 foi um dos fundadores e principais dirigentes da APDRCA; entre 1911 e 1918 presidiu ao Conselho de Assistência Escolar de Ansião; e em 1916, tempo da 1.ª Grande Guerra, foi mobilizado para o serviço militar. Já no período do Estado Novo, presidiu à Comissão Administrativa do Concelho (1933-1938); e entre 1941 e 1946 presidiu à Câmara Municipal. Morreu em 1966, aos 90 anos de idade.

Alberto Simões da Costa Rego foi médico, benfeitor, músico, jornalista, poeta e político. Aderiu à República logo após a sua implantação, tendo-se tornado um dos maiores defensores do novo regime. Foi fundador da Associação Republicana, o primeiro Presidente da sua Comissão Central, um dos redatores do jornal O Cavador e foi Presidente da Câmara de Ansião. Prestigiado músico, poeta, jornalista e benemérito soube receber na Quinta de Cima grande parte da elite local, regional e até nacional e aí, nesse paradisíaco lugar, se realizariam, ao longo de toda a sua vida, grandes saraus culturais. Nasceu no Avelar no dia 16 de novembro de 1872. Entre 1885 e 1891 frequentou o Liceu de Leiria; a seguir, entre 1894 e 1898, tirou o Curso de Medicina na Universidade de Coimbra; de 1898 a 1904 exerceu medicina no Hospital do Avelar; em 1904 foi nomeado médico do 2.º Partido Municipal; em 1918 (período do Sidonismo) presidiu à Câmara de Ansião; em 1924 publicou o seu primeiro livro Músicos Célebres; em 1926 e 1927 voltou a presidir à Câmara de Ansião e foi membro do Conselho Municipal de 1937 a 1951 e de 1955 a 1960. Morreu em 1966 com 93 anos de idade.

Alfredo Teodoro Simões Manso foi proprietário, comerciante, republicano e fundador do Hospital do Avelar. Além do Hospital de Nossa Senhora da Guia do Avelar, muitos outros melhoramentos se lhe devem. No período da República, Alfredo Manso revelou-se um político bastante influente e, apesar de não ter seguido a carreira política, foi um dos fundadores em 1911 da Associação de Propaganda Republicana de Ansião e um dos principais dinamizadores de comícios, festas populares e conferências que ocorreram no recinto do Hospital. Foi admirado por correligionários e até por adversários políticos. Nasceu no Avelar em 1843. Por sua iniciativa foi construído o Hospital de Nossa Senhora da Guia do Avelar, entre 1885 e 1894, até 1915 foi o administrador do Hospital; em 1905 foi um dos fundadores do Sindicato Agrícola de Ansião; em 1911 fundou a APDRCA; em 1915 o povo do Avelar e de outras terras vizinhas promoveram-lhe uma grandiosa festa de homenagem; em 1916 foi premiado na Exposição Agrícola e Industrial de Leiria; em 1920 comprou o instrumental que deu origem à Filarmónica do Avelar. Morreu no Avelar no dia 2 de junho de 1923.

António Fernandes de Sousa Ribeiro foi proprietário, comerciante e prestigiado político. Exerceu importantes cargos políticos a nível local, nos últimos anos da Monarquia, nos primeiros da República e ainda durante o Estado Novo. Foi um dos republicanos históricos que mais se envolveu na propaganda ao novo regime. Nos 80 anos que viveu Sousa Ribeiro evidenciou elevadas qualidades humanas e políticas, que fizeram com que fosse tratado pelos seus contemporâneos com grande estima e amizade. Em 1898 foi nomeado Vice-Presidente da Câmara de Ansião; em 1905 fundou e dirigiu o

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Sindicato Agrícola de Ansião; em 1910 foi nomeado Vice-Presidente da 1.ª Comissão Administrativa Republicana; em 1911 fundou e dirigiu a Associação de Propaganda Republicana; em 1912 administrou o jornal O Cavador; em 1914 fundou e dirigiu o Grupo dos Onze; em 1921 foi nomeado Administrador do Concelho; em 1924 foi nomeado Delegado do Governo em Ansião; de 1926 a 1928 assumiu novamente a Vice-Presidência da Câmara; em 1941 foi membro da Comissão Concelhia da União Nacional. Morreu no dia 1 de outubro de 1946, com 80 anos.

Domingos Botelho de Queirós foi médico, proprietário e político. Grande proprietário na vila de Ansião, foi médico do 1.º Partido Municipal e a ele se devem importantes melhoramentos que a vila conheceu nas últimas décadas do século XIX, de que são exemplo a iluminação pública a gás, a exploração e distribuição de água na vila, a construção do Hospital da Misericórdia, o alargamento do Cemitério e a criação do Açougue Municipal. Durante a Monarquia militou no Partido Regenerador e no Partido Regenerador-Liberal, mas, com a implantação da República, aderiu ao novo regime. Oriundo do Alto Douro (Vila Real), e depois de ter concluído o curso de Medicina em Coimbra, toma posse do Partido Médico de Ansião em finais de janeiro de 1880; no dia 25 de maio de 1895 presidiu à Comissão do Hospital da Misericórdia de Ansião; em 10 de julho de 1902 foi homenageado na sessão da Câmara; em 10 de junho de 1905 foi o 1.º subscritor do Sindicato Agrícola de Ansião; em 3 de junho de 1908 aposentou-se de médico municipal; em 1911 foi um dos fundadores da Associação de Propaganda Republicana; em 1918 foi Administrador do Concelho de Ansião. Morreu em Ansião no dia 25 de março de 1920.

Francisco Fernandes Rosa Falcão foi um importante jurista e político. Pelas suas qualidades foi um dos homens mais admirados no concelho de Ansião nas primeiras três décadas do século XX. Destacou-se nos meios judiciais, mas também nos meios políticos, a nível local, regional e até nacional. Foi Administrador do Concelho de Ansião, Presidente da Câmara, Governador Civil de Leiria, Secretário da Relação de Coimbra, Subdiretor do Supremo Tribunal de Justiça e Chefe de Gabinete do Ministro da Justiça. Mostrou-se, em todas as circunstâncias, um homem competente, justo e solidário para com todos os que dele precisavam. Nasceu no vizinho concelho de Miranda do Corvo no dia 4 de janeiro de 1879. Em 1900 concluiu a licenciatura em Direito na Universidade de Coimbra, aderiu à República em Ansião no dia da sua proclamação (7-101910) e, desde então, tornou-se grande defensor do novo regime; em 1911 fundou e dirigiu a Associação de Propaganda Republicana; em 1914 fundou e dirigiu o Grupo dos Onze; em 1915 presidiu à Comissão Administrativa da Câmara de Ansião; em 1918 foi nomeado Governador Civil de Leiria; entre 1923 e 1926 foi Secretário da Relação de Coimbra. Morreu em Lisboa no dia 14 de julho 1931 com apenas 52 anos, quando exercia o cargo de Subdiretor do Supremo Tribunal de Justiça. Joaquim Augusto da Costa Simões Cânova foi jurista, político e proprietário. Joaquim Cânova pertenceu à elite republicana deste concelho, chegando a ocupar os cargos administrativos mais importantes do município de Ansião no período da I República. Prestigiado advogado da comarca ansianense, chegou a ser também Presidente da Câmara e Administrador do Concelho de Ansião. Grande proprietário, tinha bens em Ansião, Chão de Couce e Figueiró dos Vinhos. Na sua vida não muito longa, mas algo

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atribulada, mostrou-se um homem de princípios, solidário com os que mais sofriam e amigo do seu amigo. Teve também fama de poeta de grande sensibilidade e revelou-se um grande fotógrafo amador. Nasceu em Almofala (freguesia da Aguda, concelho de Figueiró dos Vinhos) em 1891; em 1913 concluiu o Curso de Direito na Universidade de Lisboa; em 1915 deslocou-se para a África portuguesa, onde permaneceu até 1918, neste último ano foi oficial do Registo Civil do Concelho de Ansião; em 1919 foi exonerado do cargo de Oficial do Registo Civil; neste mesmo ano foi eleito Presidente da Mesa do Senado Municipal (Ansião); em 1920 foi Administrador do Concelho de Ansião; em 1934 tomou posse do cargo de Conservador do Registo Comercial de Coimbra; em 1950 envolveu-se numa polémica com o Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Figueiró dos Vinhos; em 1952, na sequência de uma Inspeção à Conservatória do Registo Comercial de Coimbra, foi classificado com Muito Bom. Morreu em Coimbra, no dia 21 de outubro de 1960 aos 69 anos.

José Pereira Barata foi médico, jornalista, inspetor pedagógico, republicano e benemérito. Embora fosse natural da Covilhã, fixou-se, pelo casamento, no Avelar onde passou a viver e onde viria a falecer. Foi no campo da instrução e da propaganda política ao serviço da República que a sua personalidade mais se destacou. Foi inspetor do Círculo Escolar de Ansião, Inspetor Chefe da Região de Leiria, Governador Civil de Leiria e, no Avelar, sempre lutou pela prosperidade da vila. Nasceu na Covilhã em 1873. Em 1908 fundou e dirigiu o semanário A Covilhã Nova; em 1911 passou a viver definitivamente no Avelar; nesse mesmo ano tornou-se membro destacado da Associação de Propaganda Republicana; entre 1911 e 1928 foi Inspetor do Círculo Escolar de Ansião; em 1914 alguma imprensa pediu uma sindicância aos seus atos enquanto Inspetor Escolar; em 1916 presidiu ao Grupo dos Onze de que foi cofundador; em 1923 e 1924 exerceu o cargo de Governador Civil de Leiria; a partir de 1928 passou a ser Inspetor-Chefe da Região Escolar do Distrito de Leiria; em 1934 e 1935 presidiu à Direção da Sociedade de Defesa e Propaganda do Avelar. Morreu no Avelar no dia 2 de março de 1950. Manuel Sousa Ribeiro foi sacerdote e político. Republicano conservador, chegou a ser escolhido para presidir à Comissão Executiva da Câmara de Ansião para o triénio que começou em janeiro de 1918, mas o Sidonismo não permitiu que tomasse posse. O seu conservadorismo trouxe-lhe grandes dissabores, nas Paróquias de Pussos, Figueiró dos Vinhos e, sobretudo, na de Ansião, de onde foi expulso pela força. Nasceu no Casal de Baixo (Chão de Couce - Ansião) no dia 13 de dezembro de 1876. Em 1902 foi pároco de Almoster (concelho de Alvaiázere); em 1905 tornou-se pároco de Pussos (igualmente do concelho de Alvaiázere); entre 1914 e 1916 foi pároco de Figueiró dos Vinhos; entre 1916 e 1919 foi pároco de Ansião. Neste último ano (mais concretamente na noite de 15 para 16 abril de 1919) foi expulso à força da paróquia de Ansião em virtude do seu conservadorismo. Entre 1922 e 1955 foi pároco do Espinhal (concelho de Penela). Morreu no dia 14 de maio de 1958, com 81 anos.

Pelos dados divulgados pensamos que não restam dúvidas de que, efetivamente, há um século existiram concelhos rurais no nosso país que aderiram por inteiro à República. Bom exemplo disso foi o município de Ansião que viveu intensamente a I República e, no contexto regional, assumiu mesmo um grande protagonismo político.

É verdade que o novo regime criou condições propícias a uma maior participação dos

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

cidadãos na vida ativa das respetivas comunidades, mas também é verdade que o dinamismo incutido à causa pública na área daquele município, no período estudado, se ficou a dever grandemente à elite local pela forma entusiástica como se entregou ao regime político triunfante em 5 de Outubro. Médicos, professores, farmacêuticos, funcionários públicos, padres e comerciantes - normalmente pessoas de relação fácil e frequente com gente de todos os estratos sociais - foram os melhores e principais agentes da republicanização do povo nestes 15 anos em que a República conseguiu sobreviver.

Alguns fizeram-no, certamente, pelo interesse imediato de alguma influência que o poder sempre traz consigo ou pelo orgulho de verem no exercício do cargo político o reconhecimento público de um certo prestígio pequeno-burguês, mas a maioria destas pessoas envolveu-se com a República por convicção interior, acreditando que a República podia contribuir, de facto, para melhorar a existência coletiva daqueles que nasceram no meio destas serras onde o direito à vida tinha de ser uma conquista constante.

A maioria acreditou também que a República era o melhor regime para desenvolver e prestigiar Portugal no seio das nações mais civilizadas da Europa e do mundo.

A APDRCA, apesar da sua efémera duração, foi um verdadeiro alfobre de notáveis republicanos que, ilustrados pela Universidade de Coimbra tentaram, depois, no contacto com o país real difundir os ideais e princípios republicanos, aproximando-se do povo com a séria intenção de o instruir para melhor o alfabetizar politicamente, dentro dos cânones da República, sem qualquer ulterior interesse de aproveitamento próprio, pois sempre se afirmaram e apresentaram como apartidários e sem ambições de natureza política.

Merece também destaque o grande empenhamento que, ao longo de toda a I República, se registou em prol da expansão do ensino no concelho de Ansião por parte destes militantes do republicanismo, mormente do Dr. José Pereira Barata que, como vimos, ocupou o cargo de Inspetor do Círculo Escolar de Ansião. Sem dúvida que foi graças à sua persistência e envolvimento - e, naturalmente, com o apoio dos poderes instituídos - que se verificou uma forte diminuição das taxas de analfabetismo durante a I República, quer no concelho de Ansião quer no seu círculo escolar, superior à observada no País (Portugal continental) e no distrito de Leiria no mesmo período. Em termos globais, e considerando como áreas de comparação o País, o distrito de Leiria, o concelho de Ansião e o círculo escolar de Ansião, pode concluir-se que o concelho de Ansião, em primeiro lugar, e o seu círculo escolar, em segundo, foram os que melhor aproveitaram o esforço da República em benefício da alfabetização do povo. E o esforço pelo desenvolvimento do ensino no concelho e no círculo escolar de Ansião não ficou por aqui: fundaram-se novas escolas (fixas e móveis), instituíram-se os cursos noturnos, criou-se uma Biblioteca Móvel (única no norte do Distrito) e até uma Escola Primária Superior, logo que a legislação o permitiu. Efetivamente, no concelho de Ansião, no período em apreço, houve uma significativa diminuição da taxa de analfabetismo masculino de 13,47%, enquanto no país, no mesmo período, foi de 7,96%, no distrito de 8,38% e no Círculo Escolar de Ansião 9,03%. Essa diminuição ainda foi maior na taxa de analfabetismo feminino, no concelho diminuiu 13,82%, no país 7,08%, no distrito 5,93% e no círculo escolar de Ansião 6,48%.

A obra realizada no campo da instrução pública no concelho e no círculo escolar de

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Ansião foi verdadeiramente exemplar quanto ao que era pretendido pelo regime republicano. Mas, infelizmente, outros projetos por que tanto lutaram os ansianenses e que seriam particularmente importantes para o progresso da região, ou nunca se conseguiram, como sucedeu relativamente à construção de, pelo menos, uma linha de caminho de ferro que servisse o norte do distrito, ou só mais tarde foram concretizados, como aconteceu, por exemplo, com o telefone, o edifício das escolas da vila e com a eletricidade.

Alguns destes políticos ansianenses chegaram a ser reconhecidos fora dos limites do concelho, pelo seu trabalho sério em prol dos valores republicanos e, por isso, alguns foram chamados a exercer cargos políticos de maior relevo.

Sem dúvida uma plêiade de personalidades que são a melhor prova de que a República chegou ao espaço rural e deixou marcas.

A República mal tinha chegado à província antes do 5 de outubro, mas chegou depois através da atribuição de nomes ligados à República aos espaços públicos (ruas e praças), como os dos seus “heróis” Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, e por meio de comícios, conferências, edição de jornais, instrução escolar e organização de festas cívicas. Nunca na longa existência histórica de Portugal se fez, de uma forma tão intensa e determinada, um esforço tão grandioso e sistemático para politizar o povo.

3.1.2. O caso de Gondomar

Passemos agora ao concelho de Gondomar que, no período da I República, tinha as seguintes freguesias: Covelo, Fânzeres, Foz do Sousa, Jovim, Lomba, Medas, Melres, Rio Tinto, São Cosme, São Pedro da Cova e Valbom.

A transição do regime monárquico para o regime republicano fez-se neste concelho através de uma simples transferência de poderes da antiga Câmara Municipal para uma Comissão Administrativa nomeada pelas novas autoridades republicanas, conforme consta do livro das atas das sessões camarárias, na referente à reunião do dia 11 de outubro de 1910. Neste mesmo dia foi conferida a posse ao novo presidente e vogais e feita a distribuição dos pelouros.

Auto de Posse / Aos onze dias do mez d’Outubro do anno de mil nove-centos e dez, pela uma hora da tarde, no edifício dos Paços d’este concelho de Gondomar, e sala das sessões camararias, compareceu o cidadão Ex.mo Snr. Dom Luiz Pizarro da Cunha de Portocarrero em exercicio, a fim de dar posse aos vogaes da Commissão Municipal electiva republicana que ha de desempenhar as attribuições da Camara Municipal d’este concelho, nos termos do decreto de oito do corrente, verificou-se acharem-se presentes os cidadãos Doutores Lucindo Martins de Oliveira - de Jovim e Agostinho Emílio de Souza Pinto, de São Cosme, Alexandre de Barros, de Rio Tinto, Manuel Marques d’Almeida Russo, de Valbom, David Teixeira de Souza, de Valbom, Joaquim Teixeira, de Rio Tinto e Agostinho Silvestre Cardoso, de São Cosme, vogaes effectivos, que constituem a Commissão Municipal acima mencionada e bem assim, o cidadão Senhor Doutor Rufino Ferreira Cardoso, a quem compete exercer as funções de presidente, como representante da auctoridade civil.257

257 Transcrição do Livro de Atas da Câmara Municipal de Gondomar, sessão de 11 de outubro

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Carlos
Magalhães e Manuel Augusto Dias

Assim, a primeira Comissão Administrativa Republicana de Gondomar teve a seguinte constituição: Dr. Rufino Ferreira Cardoso (presidente), Alexandre de Barros (vice-presidente), Dr. Lucindo Martins de Oliveira, Dr. Agostinho Emílio de Sousa Pinto, Manuel Marques de Almeida Russo, David Teixeira de Sousa, Joaquim Teixeira e Agostinho Silvestre Cardoso. Os suplentes eram os seguintes: Manuel dos Santos Moreira (da Lomba), João Marques de Moura (de Valbom), José de Castro Neves (de Valbom), José Maria Gomes (de Valbom), João Martins Vieira (de Sousa), Dr. Francisco Adriano da Silva Tavares e Dr. Guilherme Braga Martins Cirne (de Rio Tinto). S. Cosme, Valbom e Rio Tinto são as freguesias com mais elementos na primeira Comissão Administrativa Republicana de Gondomar.

No mesmo dia, 11 de outubro, durante uma das várias sessões da nova câmara nesse dia, os elogios ao novo regime e a proposta de telegramas a enviar ao governo provisório surgiram nas intervenções de alguns dos novos empossados. Refere a respetiva ata que foi concedida a palavra aos cidadãos Lucindo Martins de Oliveira, Agostinho Emílio de Sousa Pinto e Alexandre de Barros, “os quaes fizeram uso d’ella por largo tempo, referindo-se, em termos calorosos e brilhantes, á implantação do systema republicano n’este paiz, cujas vantagens administrativas e sociaes enalteceram enthusiasticamente, condennando com energia a administração monarchica”258 .

A Comissão Administrativa Republicana resolveu, nesta mesma sessão, enviar dois telegramas, um ao governo outro ao cidadão Abílio Meireles259:

Ao Excellentissimo Ministro do Interior (…): Commissão Municipal republicana de Gondomar, ao assumir a gerencia dos negocios municipaes, sauda no cidadão ministro do interior da Republica, os seus ministros e o glorioso povo de Lisboa. E ao cidadão Abilio Meireles, residente n’este concelho, este outro: Commissão Municipal republicana tendo tomado posse do municipio de Gondomar, saúda o heroico revolucionário de

de 1910, fls. 263v e 264.

258 Ata da sessão de 11 de outubro de 1910, Livro de Atas da Câmara Municipal de Gondomar, fl. 264v.

259 Abílio Francisco de Jesus Meireles era 1.º Sargento do Regimento de Caçadores n.º 9 quando se deu a primeira tentativa revolucionária de implantar a República em Portugal, no Porto no dia 31 de Janeiro de 1891. Não só participou nessa revolta, como ganhou fama de heroicidade pela forma como se bateu na Rua de Santo António (atual Rua 31 de Janeiro), um dos palcos do movimento republicano, disparando até à última bala, contra a Guarda Municipal que conseguiu derrotar os revoltosos. Bateu-se pela República por acreditar ser esse regime a melhor forma de governo para salvar o seu País, como declarou no julgamento do Tribunal de Leixões que o condenou a 9 anos de degredo, seguindo para Angola. Indultado dois anos depois, regressou ao Porto. Na altura da implantação da República, e residindo no município de Gondomar, viria a ser reintegrado com o posto de Tenente e, pouco depois, promovido a capitão da arma de Infantaria. Embora tenha falecido em Lisboa, o seu corpo foi trasladado para o Porto, encontrando-se próximo do monumento “Vencidos do 31 de Janeiro de 1891” no Cemitério do Prado do Repouso. O seu nome foi dado a artérias do Porto, Lisboa e Almada.

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trinta e um de Janeiro.260

Quatro dias depois, na sessão de 15 de outubro de 1910, tendo o governo republicano decidido fazer o funeral oficial dos heróis da República Dr. Miguel Bombarda e Almirante Cândido dos Reis, que não chegaram a testemunhar o triunfo da Revolução do 5 de Outubro por terem morrido, o primeiro na véspera o segundo no próprio dia, a Câmara de Gondomar tomou, a propósito, a seguinte deliberação:

O vereador Snr. Agostinho Emilio de Souza Pinto, alludiu em termos calorozos e comovidos ao fallecimento dos insignes cidadãos e illustres patriotas, doutor Miguel Bombarda e Candido de Pinho [o secretário deveria querer escrever “dos Reis”] em homenagem aos quaes propunha que a Camara se fizesse representar, nos seus funeraes, pelo Cidadão Abilio de Meirelles, o que foi aprovado.261

Os Presidentes da Câmara de Gondomar que, durante a I República exerceram o cargo, foram nove e os seus nomes são os seguintes: Dr. Rufino Ferreira Cardoso (1910), Dr. Lucindo Martins de Oliveira (1910-1913), António Dias Gonçalves Correia (19141915), Ventura Martins de Castro (1916-1917), José Novais da Cunha (1918), Tomás Lopes Cardoso (1918-1919), Adriano Vieira da Silva Lima (1919-1922), Américo Jazelino Dias da Costa (1923-1925) e José Barbosa Ramos (1926).

Para além dos presidentes de Comissões Administrativas / Câmaras Municipais do concelho de Gondomar, há a considerar ainda a figura do Administrador. Este era nomeado pelo governo, sob proposta do respetivo governador civil (neste caso, o do Porto). Era um magistrado remunerado e particularmente importante, que representava o governo no concelho, controlando de certa forma o poder local. Como funções, competia-lhe tudo o que não se encontrasse sob a alçada expressa de outras autoridades e funcionários, ou seja um conjunto alargado de funções executivas, superintendendo a autoridade policial, a fiscalização dos serviços públicos e seus funcionários, e tinha, inclusive, a tutela administrativa sobre órgãos de administração autárquica. No caso do concelho de Gondomar, as funções de presidente da Comissão Administrativa e de Administrador recaíram, inicialmente, na mesma pessoa – o Dr. Rufino Ferreira Cardoso, médico cirurgião pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Ao longo dos quase 16 anos que durou a Primeira República, 34 cidadãos exerceram o importante cargo de administrador do município de Gondomar, o que de certa forma evidencia a instabilidade governativa que caracterizou este período da História de Portugal. Referem-se apenas os nomes dos primeiros 10 administradores do concelho de Gondomar (colocando entre parêntesis as datas a partir das quais exerceram o cargo): Dr. Rufino Ferreira Cardoso (11 de outubro de 1910; 19 de fevereiro de 1913); Dr. Ernesto José Rodrigues de Andrade (15 de julho de 1911); Dr. Lucindo Martins de Oliveira (23 de novembro de 1911 e 12 de novembro de 1912); Eduardo Lopes (25 de novembro de

260 Ata da sessão de 11 de outubro de 1910, Livro de Atas da Câmara Municipal de Gondomar, fl. 264v.

261 Ata da sessão de 15 de outubro de 1910, Livro de Atas da Câmara Municipal de Gondomar, fl. 265v.

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1911); Dr. Jaime de Menezes Vieira Coelho (14 de maio de 1913); Francisco Alexandre Carneiro A. Aranha (25 de junho de 1913); Adriano Vieira da Silva Lima (10 de outubro de 1913; 20 de maio de 1915; 27 de fevereiro de 1919; 26 de março de 1919; 19 de abril de 1919; 16 de janeiro de 1920; 1 de julho de 1920; 3 de junho de 1921; 14 de julho de 1921; 11 de fevereiro de 1922; 1 de novembro de 1922; 11 de janeiro de 1923; 16 de abril de 1925; 17 de novembro de 1925; 21 de novembro de 1925); Manuel dos Santos Moreira (19 de novembro de 1913); José Ferreira de Araújo (16 de março de 1914); e Ventura Martins de Castro (7 de janeiro de 1915; 10 de abril de 1915; 1 de abril de 1917).

Entre as várias personalidades republicanas, ligadas à sede do município de Gondomar (S. Cosme), destaquemos três: Adriano Vieira da Silva Lima, Camilo de Oliveira e José Novais da Cunha. O primeiro desempenhou as duas funções: presidente da Câmara entre 1919 e 1922 e, várias vezes, administrador do concelho entre 1913 e 1925; o segundo foi padre (tendo, entretanto, abandonado o sacerdócio), republicano, professor, jornalista, escritor e bibliotecário; o terceiro, para além de outros cargos políticos, também foi administrador e presidente da Câmara de Gondomar (1918).

Adriano Vieira da Silva Lima262 nasceu no concelho de Santarém em 1869, mas veio cedo para o Porto, para trabalhar. Foi comerciante e foi um político republicano. Teve um depósito e armazém da indústria de calçado, que chegou a ser considerado o maior da Península Ibérica. Mais tarde, comprou um terreno junto à estação de caminho de ferro de Rio Tinto, onde teve uma quinta que hoje é um conhecido externato. Em termos políticos, foi sócio do Centro Republicano do Porto, tendo-se destacado pelo seu dinamismo, tornando-se amigo do grande líder republicano que foi Afonso Costa. Adriano Vieira da Silva Lima, que como acima se viu desempenhou as importantes funções de administrador263 e de presidente da Câmara de Gondomar, faleceu na sua quinta em Rio Tinto em 1946, com 76 anos.

Camilo Martins de Oliveira nasceu em S. Cosme, no dia 28 de março de 1874. Concluído o curso de Teologia chegou a exercer o sacerdócio na paróquia de Rio Tinto. Contudo, o facto de ser um convicto republicano, mesmo antes do 5 de Outubro, tornou-se incompatível com a missão de padre, pelo que abandonou as funções sacerdotais, constituiu família e passou a ser professor em um colégio do Porto. Mais tarde, transferiu-se

262 Cf. https://www.cm-gondomar.pt/concelho/figuras/

263 No concelho de Gondomar há uma conhecida terra de mineiros que é S. Pedro da Cova. No período da primeira República, mais concretamente em 1914, criou-se a Associação de Classe de Operários Mineiros que promoveu várias greves em favor da melhoria salarial, tendo uma delas, que durou 11 semanas, ocorrido em 1923 quando Adriano Lima era administrador. Nessa altura terá havido mesmo um atentado bombista que obrigou à intervenção de uma força de cavalaria da GNR, havendo a registar 7 detidos entre os grevistas, que foram para o Aljube, e o administrador encerrou uma taverna local por aí se reunirem os grevistas e aí terem sido apreendidos alguns carregadores com munições. Outras grandes greves doas mineiros de São Pedro da Cova no período da primeira República (regime que reconhecia o direito à greve) aconteceram em 1915 (pela melhoria dos salários) e em 1917 (tempo da primeira grande guerra, por causa do elevado custo de bens essenciais, como o pão).

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias para a Escola Comercial Oliveira Martins, também no Porto. Particularmente importante foi a sua atividade literária. Colaborou com vários jornais sendo aqui de destacar aqueles que tinham um conteúdo favorável à República, como é o caso do Cinco de Outubro, de Vila Nova de Gaia, do jornal O Combate, de Rio Tinto e d’A República Portuguesa, de que foi diretor. No que respeita a livros, destacamos O Padre e a República e O concelho de Gondomar - Apontamentos Monográficos. Foi ainda bibliotecário na Biblioteca Municipal do Porto. Republicano histórico foi uma das vítimas da “Monarquia do Norte”, movimento monárquico liderado por Paiva Couceiro que restaurou a monarquia no Porto, entre 19 de janeiro e 13 de fevereiro de 1919. Foi preso e torturado pelos “trauliteiros” que quase o mataram à pancada no Éden-Teatro, na rua Alexandre Herculano. Foi libertado com o triunfo das forças republicanas. Abandonou a vida partidária nos finais da I República. Camilo de Oliveira faleceu a 14 de agosto de 1946, estando sepultado no Cemitério do Prado do Repouso, no Porto. José Novais da Cunha nasceu na freguesia de Campanhã no dia 5 de novembro de 1849. Depois de ter passado, voluntariamente, pelo Exército, frequentou a Escola Politécnica de Lisboa, para prosseguir a carreira militar, objetivo que, entretanto, abandonou, regressando ao Porto. Antes da implantação da República esteve ligado ao Partido Regenerador, quando foi administrador de Gondomar. Graças à sua influência foi instalada em Gondomar a estação Postal e de Telégrafo e construíram-se algumas estradas de acesso ao Porto. Depois da implantação da República, foi eleito para a Junta Geral do Distrito do Porto, presidiu à Associação dos Proprietários e Agricultores do Norte de Portugal e conseguiu para Gondomar, em 1913, a repartição da Contrastaria. Em 1918, Novais da Cunha foi nomeado Presidente da Câmara Municipal de Gondomar, sendo criada, por sua proposta, a primeira biblioteca municipal do concelho. José Novais da Cunha faleceu no dia 17 de outubro de 1930. O seu nome foi atribuído a uma das ruas do município.

Em Gondomar, antes da implantação da República, já havia núcleos republicanos em Rio Tinto, Fânzeres e Valbom. Em Rio Tinto, de acordo com a documentação que foi possível consultar, não há dúvida que em 1909 havia já uma Comissão Paroquial Republicana que era presidida por Joaquim Teixeira264.

Por isso, não surpreende que na primeira Comissão Administrativa Republicana de Gondomar, apareçam entre os vogais efetivos cidadãos de Rio Tinto, como acontece precisamente com Joaquim Teixeira e com Alexandre de Barros, que foi o vice-presidente da mesma Comissão265. Também entre os suplentes, se encontravam dois republi-

264 Conforme se pode verificar na correspondência de Joaquim Teixeira para Bernardino Machado, que existe na Fundação Mário Soares [http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=06748.028], datada de 9 de fevereiro de 1909, altura em que Bernardino Machado presidia ao diretório do PRP, partido a que Joaquim Teixeira aderiu no dia 31 de outubro de 1903. Na primeira República Bernardino Machado seria, por mais de uma vez, chefe de governo e de Estado.

265 Alexandre Augusto de Barros propôs que, em homenagem às classes operárias do seu concelho, o primeiro de maio, do período da República, fosse dia de descanso, o que foi aprovado por unanimidade. Mais tarde, Alexandre de Barros seria eleito deputado constituinte e, como tal, assumiria a defesa dos interesses de Gondomar, nomeadamente no que respeita

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canos de Rio Tinto, o Dr. Francisco Adriano da Silva Tavares e o Dr. Guilherme Braga Martins Cirne.

Registe-se que, também no concelho de Gondomar, se publicaram jornais republicanos, que muito contribuíram para republicanizar o povo. Entre os responsáveis por estes periódicos destaca-se o Prof. Carlos Amaral, de Rio Tinto. Foi dirigente de A Peleja, jornal quinzenal, cujo primeiro número saiu em 12-12-1910 e se publicou, pelo menos, até 4 de junho de 1911, e do jornal O Combate, de que foi fundador, diretor e editor.

Este jornal semanal tinha a redação em Medancelhe, Rio Tinto, e o número 1 saiu a 16 de abril de 1911. O seu primeiro editorial afirmava que se tornava um “jornal criado para O Combate dos homens, das coisas e dos factos”.

Ora este jornal, que procurou ter um conteúdo favorável ao ideário republicano, mas independente dos partidos políticos, aproveitava todas as oportunidades para divulgar os princípios ideológicos do novo regime. Por exemplo, no 1.º de maio de 1911, houve comícios de propaganda a favor da República, que se ficaram a dever à iniciativa das Comissões Paroquiais Republicanas de Valbom e de Fânzeres.

O Combate, n.º 4, de 7 de maio de 1911, na pág. 3, trouxe a reportagem, de onde extraímos os seguintes excertos: “Não cremos que [no] nosso concelho alguem pense em revoltar-se contra a Republica, porque todos temos em vista a independencia da Patria” e estas conferências “servirão para ensinar ao povo os seus direitos e os benefícios que a Republica em poucos mezes lhe trouxe, e para indicar aos dirigentes republicanos do concelho o verdadeiro caminho a seguir”.

Outra temática que foi cara à República foi a “questão religiosa”. Efetivamente, uma vez implantada a República em Portugal, a Igreja Católica foi vítima da perseguição dos revolucionários republicanos que não perdoaram o carácter conservador da religião católica apostólica romana, sem dúvida a confissão religiosa mais arreigada na tradição popular portuguesa. Também este assunto foi versado nas conferências acima referidas. Eleutério Cerdeira, um dos intervenientes sobre a Lei da Separação do Estado das Igrejas, apontou algumas daquelas que na sua opinião seriam as vantagens para o pequeno clero: “É tão benigna e humanitária esta lei - diz -, que a família dos padres, os filhos até, são reconhecidos como herdeiros e ser-lhes-ha dada uma pensão quando o padre falecer”266 .

Também o padre Camilo Martins de Oliveira foi um dos conferencistas participantes. Começou por referir que tinha “imensa satisfação em vir falar pela primeira vez a esse povo. Entrando no assunto refere-se à pressão do clero paroquial sobre a consciencia dos seus paroquianos e condena que o paroco pelo facto de o ser, se intrometa despoticamente em negocios de politica e em exigencias imoraes”267. Mais à frente agradeceu aos correligionários de Fânzeres as provas de solidariedade dadas aos republicanos de

à criação de uma repartição de contrastaria no concelho de Gondomar, o que veio a acontecer, conforme se pode ver no Diário do Governo, n.º 196, de 23 de agosto de 1911 (que inclui o parecer da Comissão de Finanças) e no do dia 2 de julho de 1912, onde é publicado o seu projeto de lei n.º 36-H a pedir que se crie uma nova contrastaria em Gondomar.

266 O Combate, n.º 4, de 7 de maio de 1911, p. 3.

267 Idem

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Valbom e terminou “levantando um viva ao povo de Fanzeres, que é correspondido com calor”268 .

Em Rio Tinto, como no resto do País, os bens da Igreja foram nacionalizados. Distantes mais de um século destes acontecimentos revolucionários, parece-nos que os republicanos foram longe de mais na sua batalha contra a Igreja, pese embora a influência enorme que a Igreja tinha nas mentalidades, o que ia frontalmente contra os objetivos revolucionários que pretendiam mexer significativamente nas estruturas vigentes. Mas a Igreja reagiu com coragem às primeiras investidas. Logo na véspera de Natal de 1910 foi distribuída uma pastoral coletiva do episcopado português onde denunciava a violência e o sectarismo anticatólico do novo regime.

E no dia 23 de fevereiro de 1911, os Bispos tomaram posição, novamente em pastoral coletiva, contra o fim do juramento religioso, a expulsão das Congregações (devemos lembrar que logo no dia 8 de outubro de 1910 foi decretada pelo Governo Provisório da República a expulsão de 359 jesuítas portugueses, 118 dos quais eram missionários que trabalhavam nas colónias portuguesas), a lei do divórcio e as restantes medidas anticlericais postas em prática pela República.

Afonso Costa, que exercia o importante cargo de Ministro da Justiça, proibiu a leitura dessa pastoral coletiva nas Igrejas. A resistência a estas medidas estendeu-se a todo o país, nos anos de 1911 e 1912, levando o Governo a punir os prevaricadores com prisões e desterros para fora das respetivas dioceses.

Efetivamente, no dia 20 de abril de 1911, era publicada a Lei de Separação da Igreja do Estado, que logo no seu 1.º artigo, afirmava que a “A República reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda estrangeiros que habitarem o território português”. E o artigo 62.º da mesma lei declarava que “todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários” são pertença e propriedade do Estado e, portanto, devem ser arrolados e inventariados.

O arrolamento e o inventário a que se refere o artigo anterior seriam feitos administrativamente, de paróquia em paróquia, por uma comissão concelhia constituída pelo administrador do concelho e o escrivão de fazenda, que poderiam fazer-se representar por outros funcionários, sob sua responsabilidade, servindo o 1.º de Presidente e o 2.º de Secretário, e por um homem de cada paróquia, membro da respetiva Junta, indicado pela Câmara Municipal para o serviço dessa freguesia. Os inventários deveriam começar no dia 1 de junho de 1911 e concluir-se no prazo de três meses, feitos em duplicado, ficando um exemplar na Câmara Municipal à disposição de quem o quisesse examinar e o outro enviado à Comissão Central pelo administrador do concelho.

Tudo o que havia na Igreja Matriz de Rio Tinto foi arrolado no dia 23 de agosto de 1911 pelos cidadãos Ernesto José Rodrigues Bastos Coutinho Beleza de Andrade, administrador do concelho de Gondomar, Manuel Ferreira dos Santos Leça, como elemento do executivo da Junta de Paróquia, indicado previamente pela câmara municipal, e Francisco de Almeida e Silva Vasconcelos, secretário de Finanças e da Comissão Concelhia de inventário, para os fins consignados no art.º 62 da Lei de Separação das Igrejas do Estado.

268 Idem

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto
Dias

Para além da Igreja e de todas as capelas da freguesia, passaram ainda para propriedade pública a Residência Paroquial e o seu quintal. A Residência Paroquial segundo os autos, compunha-se de “casa de um andar, com lojas, adegas e seu quintal, ramadas, jardim, que tudo parte do nascente com o caminho, poente com Jose Martins Christovão, norte e sul com o caminho”269 .

Sobre a Residência Paroquial, há nos autos várias notas, sendo possível historiar as várias seguintes mudanças de proprietário. Primeiro, tomou conta dela a Junta de Freguesia, que aí passou a reunir, mas esta situação só foi oficializada em 1921, pelo Decreto n.º 7454 (Diário do Governo n.º 83, 1.ª série, de 22-4-1921) que cede à Junta de Freguesia a parte da Residência que vinha ocupando: sala de sessões e arquivo. Em 1925, através do Decreto n.º 10.157, publicado no Diário do Governo n.º 44, 1.ª série de 272-1925, é cedida à Junta de Freguesia de Rio Tinto toda a antiga Residência Paroquial e o terreno denominado Passal de Dentro para instalação do Tribunal do Julgado de Paz, Regedoria e um subposto da Guarda Nacional Republicana, pela quantia de 12.000$00. Quatro anos mais tarde, esta cedência seria anulada pelo Decreto n.º 17.075, publicado no Diário do Governo n.º 152, 1.ª série, de 5-7-1929. Finalmente, em 1933, seria publicada a cedência, a título definitivo, da antiga Residência Paroquial de Rio Tinto à Câmara Municipal que, por sua vez, a cederia à Junta de Freguesia. O Diário do Governo de 3 janeiro de 1933, a propósito deste assunto publica o seguinte: “Cedencia, a titulo definitivo, à Câmara da antiga residência paroquial com o terreno denominado ‘Passal de Dentro’ e ‘Passal de Fora’, condicionada pelo Decreto n.º 22053 de 3-1-1933, ‘Diário do Governo’ n.º 2 - 1.ª série, de 3-1-1933”.

Os sacerdotes, em particular, e os católicos, em geral, naturalmente não ficaram nada satisfeitos com esta atitude bastante radical do novo regime republicano. Por isso, alguns padres lavraram o seu protesto e pediram que o mesmo fosse anexado aos autos de arrolamento dos bens da Igreja. Foi precisamente o que fez o Pároco de Rio Tinto, em 15 de agosto de 1911, padre José Ferreira das Neves que escreveu uma carta ao Presidente da Comissão Concelhia do Inventário e solicitou que a juntasse aos autos, o que foi feito e, por isso, podemos divulgar o essencial do seu conteúdo:

Eu abaixo assignado Parocho d’esta freguezia de São Christovão de Rio Tinto, concelho de Gondomar, aproveito esta ocasião para affirmar, como portuguez, a minha obediência e acatamento aos poderes constituídos mas ao mesmo tempo sou obrigado, como padre catholico, a protestar energicamente, como protesto, contra o presente arrolamento ou inventario dos bens d’esta egreja, considerando-a violência atentatoria dos seus legitimos direitos. Procedendo assim fico na convicção de que cumpro um dever de consciencia e concorro para a paz e felicidade da minha querida pátria.

A “questão religiosa” também levantou outras situações de grande polémica em outras freguesias do município de Gondomar. Em Valbom, por exemplo, houve quem propusesse arrancar todos os cruzeiros, e alguns seriam mesmo mudados de sítio, apesar do

269 Arrolamento e inventário dos bens da Igreja da paróquia de Rio Tinto, município de Gondomar, 1911.

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povo ter pressionado o poder para que tal não acontecesse. A Igreja de Valbom esteve fechada, entre 1912 e 1914, por não haver uma associação de culto (os republicanos obrigavam à existência de uma Comissão de Culto em cada paróquia que superintendesse a organização do culto católico); a referida associação cultual constituiu-se mais tarde, mas muitas cerimónias religiosas (Missas e Sacramentos) iam sendo realizadas em capela particulares. A Igreja de Fânzeres, pela mesma razão, também esteve encerrada entre 1912 e 1914. Algumas festas religiosas continuaram a realizar-se, como a de Nossa Senhora das Neves, mas as procissões careciam de prévia autorização administrativa superior. Os cemitérios, cuja administração passou para as autoridades civis, tornaram-se iguais para todos, isto é, terminaram as distinções entre católicos e não católicos.

Em Gondomar, no rescaldo do ato revolucionário houve quem exigisse ao administrador que acabasse com a Conferência de S. Vicente de Paulo (como se sabe trata-se de uma organização da Igreja Católica que ainda hoje existe, para apoiar os mais necessitados). O pedido dos republicanos mais radicais veio no jornal270 que se começou a publicar quatro dias após o triunfo da Revolução em Lisboa:

Muito respeitosamente perguntamos ao snr. administrador do concelho, se desconhece que aqui na villa funncciona uma instituição jesuitica sem estatutos e que faz as suas rézas e outras coisas a dentro d’uma collectividade juntamente combatida?... / Ouve-se dizer que essa coisa tem o nome de circumferencia de Vicente Paula… extincto há muitos anos (…). / Porque a lei é lei, embora dura, e tão perigosos para a sociedade são os frades de casaco ordinario, como os frades de casaca e os fradalhões de latina! / Portanto, urge providenciar de fórma a que tal coisa desapareça.

Ligados aos jornais, ao ideário republicano e a Rio Tinto estão dois nomes que agora vamos lembrar, o Professor Carlos Amaral e o Dr. Guedes de Oliveira. O professor Carlos Amaral era natural de Medancelhe, Rio Tinto. Foi fundador, dirigente, editor e colaborador de vários jornais, claramente republicanos, que se publicaram no município de Gondomar, mais concretamente em Rio Tinto, já atrás referidos, A Peleja e O Combate. Neste último escreveu que: “a vida é o resultado duma luta constante e ai do ser que um só momento fraqueja no combate. Esse é fatalmente esmagado pelos outros, necessariamente subvertido no turbilhão que constitui a necessidade de viver dos outros seres”. A sua coragem, várias vezes e de diversos modos manifestada na divulgação dos princípios democráticos, o seu republicanismo, nunca renegado, estiveram na base do seu fim. Aquando da “Monarquia do Norte”, já atrás referida, o Professor Carlos Amaral foi vítima da violência do chamado “reino da Traulitânia”, que reinou no Porto, tempo em que os monárquicos exerceram o terror com a execução de bárbaras vinganças sobre os seus adversários políticos. Carlos Amaral, numa idade em que ainda muito havia a esperar dele, foi um dos republicanos espancados no Éden-Teatro do Porto até à morte. Na monografia de Gondomar271 lê-se a este propósito o

270 Progresso de Gondomar, n.º 36, 9 de outubro de 1910.

271 Camilo de Oliveira, O concelho de Gondomar - Apontamentos Monográficos, 3.º volume, p. 98.

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seguinte: “Pela tenacidade da sua propaganda, foi preso pelos célebres ‘trauliteiros’, de negregada memória, em 1919 e metido nas prisões infetas do Aljube do Porto, onde saiu um dia, mártir dos suplícios que lhe foram infligidos, para o cemitério do Prado do Repouso”.

Henrique António Guedes de Oliveira, de seu nome completo, nasceu em Campelo (Baião) no dia 24 de janeiro de 1865 e faleceu em Chão Verde (Rio Tinto) no dia 13 de fevereiro de 1932, com 67 anos. Jornalista, escritor, dramaturgo, fotógrafo e arquiteto, Guedes de Oliveira foi Professor de História da Arte na Antiguidade e de História Geral da Arte, na Escola de Belas Artes do Porto de que viria a ser diretor entre 1919 e 1929. Casou com Margarida da Conceição Ferreira e viveu na Casa da Levada, em Rio Tinto. Mostrou, desde novo, um gosto muito especial por jornais, iniciando a sua colaboração com apenas 11 anos, na Voz do Operário de Lisboa e no O Operário do Porto. Aos 15 anos publicou o primeiro livro de poesia, com o título Cáusticos, a que se seguiram várias colaborações em diversos jornais. Guedes de Oliveira, convictamente socialista e republicano, fundou mais tarde o jornal República Portuguesa e foi também um dos colaboradores do jornal Paródia, fundado por Rafael Bordalo Pinheiro, bem como de outros jornais humorísticos. Integrou várias direções da Associação dos Jornalistas e Homens de Arte do Porto e esteve também ligado ao jornal do Porto O Primeiro de Janeiro, de que foi colaborador e redator durante mais de três décadas. Com o arquiteto Marques da Silva e com o escultor Teixeira Lopes foi um dos fundadores da Sociedade de Belas Artes do Porto. Guedes de Oliveira foi agraciado com a comenda da Ordem de Santiago, com a Medalha de Ouro da Exposição Internacional Portuguesa e com o Diploma da Medalha de Ouro de Vermeil da Exposição Universal de Dijon.

Os outros dois núcleos urbanos do concelho de Gondomar, há 114 anos, eram Fânzeres e Valbom, onde, antes da implantação da República, havia já centros republicanos. O mais conhecido é o Centro Republicano de Fânzeres, curiosamente fundado no dia 5 de outubro de 1908, ou seja, 2 anos completos, antes da implantação da República, em Lisboa. Recorde-se que, ao tempo, havia 172 centros republicanos espalhados por todo o território nacional.

O Centro Republicano de Fânzeres, concretamente, nasceu a partir da vontade de um pequeno grupo de homens animado pela defesa da liberdade e da democracia face aos tempos difíceis que se viviam na altura, com o governo monárquico e autoritário de João Franco. A partir de então, este centro republicano passa a ser um núcleo importante deste município no sentido da republicanização e a caminho da implantação do novo regime. Os republicanos de Fânzeres eram particularmente dinâmicos tendo-se até dado o caso de, mesmo sem terem ainda fundado oficialmente o seu centro republicano, conseguirem ganhar a eleição de janeiro de 1905, para a Junta de Paróquia. Mas, a partir desse resultado, como era de esperar, houve uma situação de quase permanente conflito entre os membros republicanos eleitos e o pároco. Ora, nesse tempo, o pároco era por inerência de funções o presidente da Junta de Paróquia. Normalmente, os membros civis eleitos para esse órgão submetiam-se pacificamente ao pároco; contudo, estes novos membros eleitos, adeptos ferrenhos do republicanismo, tiveram a desenvoltura suficiente para se oporem frequentemente ao padre. Várias personalidades, como Henrique Moreira Pinto ou o ourives José Ferreira (que foi presidente

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do Centro Republicano de Fânzeres), foram perseguidas no período da Monarquia do Norte e tiveram de fugir, como tantos outros, vivendo e dormindo escondidos, vários dias a fio, em palheiros, moinhos, minas ou em casas de conhecidos e amigos. Depois de vencida a Monarquia do Norte, em 1919, tomaram consciência de que a República não era ainda um dado adquirido pois continuava a ter os seus opositores. Em 1920, o presidente passou a ser Ferreira Calisto (sócio n.º 1), fazendo parte também da direção, Armando José da Silva, José Ferreira Gomes (um dos fundadores), Roldão da Silva Gomes, Dolor Martins de Castro, Abel de Sousa Pinto e José Martins de Castro. O perseguido Henrique Moreira Pinto viria a ser presidente do Centro em 1927 tendo-se dado conta, de imediato, das intenções do novo regime de ditadura militar, quanto a este tipo de associações.

Efetivamente, em 1926, cai a I República, substituída pela Ditadura Militar, a que se seguiu, a partir de 1933, o Estado Novo. Seis anos depois, Manuel Neves, presidente da Assembleia Geral, pediu autorização ao Administrador do Concelho para realizar uma Assembleia Geral. Aquele aproveitou a ocasião para sugerir a mudança do nome do Centro Republicano e Democrático de Fânzeres pois, segundo ele, tal nome estaria, à partida, condenado e ele ficaria assim incapacitado para legalizar o Centro. O que causava transtorno ao novo regime político, que agora geria o país, era a própria palavra “democrático”. A pressão foi tão grande que o Centro acabou por alterar o seu nome, no ano de 1939, para Centro de Instrução e Recreio de Fânzeres. Em novembro de 1939 foi legalizado pela Inspeção Geral dos Espetáculos e Ministério da Educação Nacional.

Mesmo assim, o nome do centro ainda não agradava completamente aos governantes portugueses, agora era por causa da palavra “instrução”. Por isso, foram obrigados a apagar também a referência cultural da instituição, tendo mudado o nome para Associação Recreativa de Fânzeres que manteve até ao triunfo da revolução democrática no dia 25 de Abril de 1974. Foi esta revolução que abriu as portas de regresso às origens. Voltou o nome do tempo da I República, aprovaram-se novos Estatutos, e no dia 12 de novembro de 1993 passou até a ser reconhecido como “Instituição de Utilidade Pública”. A bandeira do Centro Republicano e Democrático de Fânzeres, onde predominam o verde e o vermelho, está ligada à revolta do 31 de Janeiro de 1891 e à bandeira republicana que então foi hasteada no antigo edifício da Câmara Municipal do Porto. Dela faz parte, também, o brasão da Junta de Freguesia de Fânzeres.

Os republicanos de Fânzeres e de Valbom juntaram-se várias vezes para promoverem a organização de conferências com o objetivo de instruir o povo sobre a República, como já acima referimos.

Uma ou outra vez registaram-se situações de alguma violência, como aconteceu, por exemplo, em novembro de 1910. O Combate, de 14 de junho de 1911, conta o que se passou, sob o título “Valbom, 5 de Dezembro de [1910]”:

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Dir-se-ia que “O Combate” está plenamente resolvido a calar-se no que diz respeito ao caso Ribeiro d’Almeida. / Comtudo, nós como já tínhamos prometido na nossa correspondência de 22 do mez passado, informarmos os leitores deste semanario de como os factos se passaram. / Faz hoje precisamente quinze dias que o ex-regedor de Valbom Antonio de Souza Ramos, ao dirigir-se em serviço oficial, cerca das 10 horas da manhã, á administração do concelho, foi abeirado pelo Ribeiro d’Almeida que, diz este, se dirigia a uma propriedade sua em Pinheiro. Em termos violentos e ofensivos de honra e dignidade dum cidadão, o Ribeiro d’Almeida insultou o cidadão Ramos que aconselhou aquele a que seguisse o seu caminho e tivesse juizo. Então o Ribeiro d’Almeida, naturalmente por ver a tranquilidade e siso com que era proferida a resposta, ainda mais aviltada e soezmente o insultou, agredindo-o simultaneamente com um guarda-chuva que levava. Foi então que o cidadão Ramos (que já tinha sido avisado dos maus intentos do Ribeiro a seu respeito) lhe desfechou um tiro que o feriu no antebraço junto ao cotovelo.

Em Valbom, um grupo de republicanos de Fânzeres organizou-se para concorrer à respetiva Junta de Paróquia, também naquela freguesia, por volta de 1904. Foi assim fundado um núcleo republicano que, em 1905, passou a denominar-se Grupo Dramático e Recreativo de Instrução Luz e Esperança, tendo como patrono Pádua Correia272. Mais tarde o nome desse núcleo passou a ser Centro Democrático de Instrução Luz e Esperança Pádua Correia. Este Centro teve, ainda antes da implantação do regime republicano, um Gabinete de Estudos de Propaganda Social. Uma forma de propaganda usada pelos republicanos a nível nacional e local eram as festas cívicas e políticas. O 1.º dia do ano (1 de janeiro) era consagrado à “fraternidade universal”, no 31 de Janeiro homenageavam-se os precursores e “mártires da República”, no início da primavera a “festa da árvore” realizava-se nas escolas, para incutir nas crianças o gosto pelas árvores e o amor pela natureza273. no 1.º de Maio honravam-se todos os trabalhadores, em cada 5 de Outubro os “heróis da República”, no 1.º de Dezembro a “independência de Portugal” e a “Bandeira Nacional”, e no 25 de dezembro assinalava-se a “festa da família”.

Entre as festas republicanas, registe-se desde logo a celebração festiva do primeiro 1.º de Maio da República em Gondomar (1911). A notícia saiu em O Combate274:

272 António de Pádua Correia (1873-1913) foi um republicano histórico, que teve a iniciativa de criar campanhas de propaganda republicana na região duriense. Para expandir o ideário republicano contou também com o seu jornal Pão Nosso que se publicou na cidade do Porto, entre abril e setembro de 1910, precisamente nos seis meses que antecederam a implantação da República. Foram publicados 23 números, que serviram para denunciar o que a monarquia tinha de pior e apresentar a república como regime capaz de melhorar Portugal e a vida dos portugueses. Pádua Correia seria eleito deputado constituinte.

273 No ano 1913, em Gondomar, o cortejo da Festa da Árvore foi abrilhantado por uma Orquestra paga pelo Clube Gondomarense. Foram convidados todos os professores primários a entrarem na organização. Em 1916, em Valbom, a Festa da Árvore que teve lugar no dia 16 de março incluiu a plantação de uma árvore em Fonte Pedrinha e foi seguida de um cortejo até ao Souto, onde decorreu uma sessão solene com discursos inflamados a favor da República.

274 Cf. O Combate n.º 4, 7-5-1911, p. 1.

RE_PENSAR A DEMOCRACIA 121

Em todas as cidades da Europa o povo trabalhador festejou o dia 1.º de maio. E em todas tambem em comícios ou conferencias foram votadas reclamações, tendentes a melhorar a situação do operariado. / Gondomar tambem esteve em festa, tanto mais que esse era o dia que a Camara entendeu, e muito bem, ser considerado feriado. / No domingo e segunda-feira uma banda de musica percorreu a freguezia de Valbom tocando o hymno do trabalho e na tarde de segunda-feira muitos operarios seguiram com a bandeira e musica até ao pitoresco Monte Crasto. / Ali realisou-se um comicio falando distinctos oradores.

No que respeita ao ensino no município de Gondomar, em 1920, depois de uma década de República, o número de cidadãos alfabetizados rondava os 31,43%, enquanto no país esse número se ficava pelos 29,5%. Em 1920, a população total de Gondomar andaria pelos 41.400 habitantes, dos quais 19.953 eram do género masculino e 21.447 do género feminino. 7.596 do género masculino sabiam ler - o que corresponde a 18% da população total (12.357 não sabiam ler) - e 5.415 do género feminino também sabia ler - 13% da população total (16.032 não sabiam ler). Em conclusão, havia 31% de cidadãos alfabetizados e 69% de analfabetos. A República esforçou-se pela expansão da escolaridade a todos os meninos e a todas as meninas, mas havia ainda muito para fazer no sentido de cumprir os objetivos que era alfabetizar todos os cidadãos portugueses. A terminar apresentamos, no Quadro I, os resultados das eleições para o Congresso da República, que ocorreram no dia de Santo António de 1915. O resultado evidencia a consolidação do Partido Democrático, principal herdeiro do antigo Partido Republicano Português, que alcança a vitória em todas as mesas de voto do município, à exceção da de S. Cosme, onde triunfa o Partido Evolucionista.

Quadro I - Resultados das eleições legislativas, em Gondomar (dia 13-6-1915)

Observações: os candidatos a deputados pelo Partido Democrático eram o Dr. Bernardo Lucas e Domingos da Cruz; pelo Partido Evolucionista eram Adriano Castro e Alfredo Pereira; pelo Partido Unionista era o Dr. Garret; pelo Partido Socialista era António A. Silva. Os candidatos a senadores pelo Partido Democrático eram Correia Barreto e o Dr. Leão de Meireles; pelo Partido Evolucionista eram Adriano Pimenta e Feio Terenas; pelo Partido Unionista eram Forbes Bessa e Duarte Leite; pelo Partido Socialista era Luís Soares.

Nestas eleições para o Congresso da República, no município de Gondomar, o Partido Democrático venceu, de facto, os seus concorrentes, quer para a Câmara de Deputados,

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Candidatos/Partidos S. Cosme R. Tinto Fânzeres Melres Valbom Sousa Total Deputados Democrático 240 485 425 358 439 186 2133 Evolucionista 303 214 39 17 24 149 746 Unionista 87 84 142 145 33 59 550 Socialista 12 15 0 0 27 0 54 Senado Democrático 235 445 345 296 403 140 1864 Evolucionista 298 226 30 14 23 138 729 Unionista 125 146 228 208 66 120 893 Socialista 1 14 0 0 28 0 43

quer para o Senado. Estes resultados são semelhantes àqueles que ocorreram a nível nacional (o Partido Democrático conseguiu 63%, o Partido Evolucionista, 22%).

3.1.3. O caso de Valongo

O Partido Republicano divulgava a sua ideologia política, como já vimos, através de diversos núcleos republicanos que se foram fundando um pouco por todo o território nacional. Em 1910, o único existente no concelho de Valongo era o Centro Republicano de S. Lourenço de Asmes (antiga designação da freguesia de Ermesinde275).

A atividade destes centros, apesar de ser sobretudo de carácter político, também desenvolvia uma função recreativa que passava pela organização de festas de angariação de fundos (quermesses, tômbolas e bailes). As sessões de propaganda republicana cumpriam outro dos seus objetivos fundamentais, envolvendo bandas musicais para atrair o povo, que era o de fazer ouvir os discursos de um líder ou de um jornalista com ligações ao partido. Comemoravam-se especialmente as datas importantes para a causa republicana e para a Pátria, como o 31 de Janeiro e o 1.º de Dezembro, e também se assinalavam os falecimentos de fundadores ou de “heróis” republicanos com sentidos discursos.

Muitos centros desenvolviam ainda uma função educativa, criando escolas onde as crianças mais pobres podiam ter acesso gratuito ao ensino.

O Centro Republicano de S. Lourenço de Asmes terá sido fundado em 1908, dois anos antes da Revolução, tal como o vizinho Centro Republicano de Fânzeres.

Entre os fundadores do Centro Republicano de S. Lourenço de Asmes figuravam grandes vultos do republicanismo local como é o caso, por exemplo, do Dr. Joaquim da Maia Aguiar (primeiro administrador da Câmara de Valongo e primeiro presidente da Comissão Municipal Republicana, logo após o 5 de Outubro) e de Amadeu Sousa Vilar, que foi o primeiro Regedor e o primeiro presidente da Comissão Paroquial Republicana de S. Lourenço de Asmes após a implantação da República.

Este centro republicano mostrou-se bastante dinâmico, organizando festas e comícios e, numa iniciativa bastante inédita para o tempo e para o local, criou uma escola gratuita para os filhos dos republicanos mais pobres.

Já depois da implantação da República, este núcleo republicano passaria a denominar-se Centro Republicano de Ermesinde, cuja sede se inaugurou, em edifício novo, nos começos de 1912 no lugar da Estação.

Recordemos agora a proclamação do novo regime em Valongo e em cada uma das freguesias que compunham o município. Implantada a República na capital, importava fazer-se a transferência dos poderes administrativos em todo o território nacional começando, naturalmente, pela sede dos municípios. A apresentação da transferência de poderes em cada uma das freguesias deste concelho far-se-á pela ordem cronológica em que realmente aconteceram.

275 Foi a primeira Comissão Republicana da Junta de Paróquia de S. Lourenço de Asmes que pediu ao Governo Provisório da República a mudança de nome para Ermeisnde, concedida em fevereiro de 1911.

RE_PENSAR A DEMOCRACIA 123

De acordo com a respetiva ata, a proclamação da República em Valongo fez-se no dia 10 de outubro de 1910, na presença da antiga vereação composta pelas seguintes pessoas: padre António Mendes Moreira (presidente), João Marques Nogueira Pombo, Monsenhor Paulo António Antunes, José Joaquim Ribeiro Teles e Feliciano Ferreira da Rocha (vereadores efetivos), Manuel da Silva Baltazar Brites, Augusto Sobral, Serafim Pereira dos Santos, António Caetano Alves Pereira e António de Castro Moutinho Neves (vereadores substitutos). Esteve presente também o novo administrador do concelho, nomeado pelo governo republicano, o Dr. Joaquim da Maia Aguiar, e mais de uma centena de cidadãos da vila e das várias freguesias do concelho. O presidente cessante, padre António Mendes Moreira, e o novo administrador, Dr. Joaquim da Maia Aguiar, republicano convicto, tiveram palavras elogiosas e de esperança para o novo regime que acabava de ser implantado na capital. As palavras do primeiro, parecem-nos mais provenientes da obrigação que sentia em virtude do seu cargo do que propriamente de convicções políticas. Mas foi ele que declarou a adesão do município de Valongo à República. Fiquemos com o texto da proclamação da República Portuguesa em Valongo:

Aos dez dias do mês d’outubro do anno mil novecentos e dez, n’esta villa de Vallongo e Paços do Concelho, achando-se reunidos o Presidente da Câmara, Antonio Mendes Moreira, os vereadores effectivos João Marques Nogueira Pombo, Monsenhor Paulo Antonio Antunes, José Joaquim Ribeiro Telles e Feliciano Ferreira da Rocha, os vereadores substitutos Manuel da Silva Baltazar Brites, Augusto Sobral, Serafim Pereira dos Santos, Antonio Caetano Alves Pereira e Antonio de Castro Moutinho Neves, e meritíssimo administrador do concelho, Doutor Joaquim da Maia Aguiar e muitos outros cidadãos da villa e freguesias ruraes do concelho para o effeito de ser proclamada a Republica Portugueza, tomou a palavra o presidente da municipalidade Antonio Mendes Moreira e disse que, tendo sido implantada pelo exercito e pelo povo da Capital, a Republica Portugueza e abolidas as instituições monarchicas, a este municipio compette também pronunciar-se sobre tão glorioso acontecimento, de que se esperam resultados uteis e proficuos para o progresso e prosperidade da patria. Que a implantação da Republica e a constituição do Governo provisorio, são factos positivos e ja officialmente reconhecidos pelas cidades de Lisboa, Porto e quase todas as terras importantes do paiz. Que não pode Vallongo deixar de adherir tambem ao novo regimen, que, estamos convencidos, é para bem de todos os portuguezes e vem marcar uma nova e luminosa era de regeneração e de prosperidade para a patria. Que em nome, pois, d’este municipio, congratula-se com o notavel acontecimento que ha-de ficar registado em lettras d’ouro das paginas da historia patria e declara solemnemente proclamada a Republica Portugueza. Estas palavras foram acolhidas enttusiasticamente por toda a assembleia de cidadãos e funcionarios publicos que se achavam presentes, levantando-se vivas á pátria, á Republica Portugueza, ao Governo provisorio, ao exercito, etc. Pelo administrador doutor Joaquim da Maia Aguiar foi feita, uma apologia calorosa e enttusiastica do novo regimen republicano que vinha de ser implantado e unanimamente proclamado, fazendo o confronto das instituições republicanas tendentes ao progresso, á prosperidade da gloriosa patria portugueza que ha de resurgir de novo e florescer como outr’ora, com as instituições monarchicas, que ruiram pela immoralidade, corrupção e má administração dos negocios públicos: - Enalteceu as qualidades dos dirigentes da Republica Portugueza e levantou vivas á patria, á Republica Portugueza, ao concelho de Vallongo, etc. que foram calorosamente correspondidos.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

Para constar se lavrou a presente acta que vae ser assignada por todos, depois de lida por mim, Francisco José Ribeiro Seara, secretario da Camara que subscrevo e assigno (seguem-se 103 assinaturas, de outros tantos cidadãos que estiveram presentes).276

Só no dia seguinte, 11 de outubro de 1910, é que reuniu pela primeira vez a Comissão Municipal Republicana de Valongo, nomeada pelo Governador Civil, depois de terem sido indicados os nomes de todos os seus componentes pelo administrador Dr. Joaquim da Maia Aguiar, que acumulou também a presidência dessa Comissão.

Assim, a primeira Comissão Municipal Republicana de Valongo, depois de escolhidos os cargos, ficou com a seguinte constituição: Dr. Joaquim Maia Aguiar (Presidente da Comissão Municipal e Administrador); Luís Augusto Marques Sousa (Vice-Presidente); Vicente Moutinho de Ascensão, Jacinto Fernandes de Oliveira; Augusto Dias Marques de Oliveira (vogais).

Dos cinco elementos, três eram de S. Lourenço de Asmes: Presidente e AdministradorDr. Joaquim da Maia Aguiar, Vice-Presidente - Luís Augusto Marques Sousa e primeiro vogal - Vicente Moutinho de Ascensão.

Nesta reunião, logo de início, o Dr. Joaquim Maia Aguiar usou da palavra constando da ata desta sessão o seguinte:

Tomando a palavra o cidadão Presidente Dr. Maia Aguiar, exaltou o movimento nacional que implantou e proclamou a republica portugueza de que se espera o ressurgimento e regeneração da pátria; explanou o seu programa político-administrativo que é de moralidade e de justiça; prometteu fazer uma administração escrupulosa na gerência da administração municipal e pediu a cooperação de todos os seus collegas e empregados municipaes para o bom desempenho das suas funcções publicas.277

No período da I República ocuparam o mais alto cargo da autarquia valonguense, como presidentes de Comissão Administrativa, de Câmara ou de Comissão Executiva, 10 cidadãos diferentes: Joaquim da Maia Aguiar, Manuel Gonçalves Moreira, José Carvalho Nogueira, Bernardo de Castro Neves, Amadeu Ferreira de Sousa Vilar, Gumercindo Silveira Machado Soares, Manuel Enes de Azevedo, Carlos dos Santos Almeida, Luciano Moura e João Marques Saldanha.

Permitam que entre todos destaquemos o primeiro presidente que acumulou com as funções de administrador, Joaquim da Maia Aguiar (1872-1968). Foi o homem que mais tempo ocupou o poder político na Câmara de Valongo, no período da República, concretamente entre 1910 e 1917. Nasceu no dia 18 de agosto de 1872 na paróquia de S. Martinho do Fundão (Cova da Beira), em cuja matriz foi batizado no dia 21 de setembro de 1872. Casou com Clotilde Moreira Lopes, natural de Lisboa em 5 de setembro de 1902. Foi sempre amigo dos mais pobres e necessitados. Já depois da sua morte, o Centro de Assistência Social de Ermesinde, que sempre foi por si apoiado, recebeu um papel escrito pela sua empregada, pois ele já estava impossibilitado de o fazer, acompanhado de dois mil escudos. Médico ilustre, formou-se na antiga Escola Médico-Cirúr-

276 Cf. Livro de Atas da Câmara Municipal de Valongo, fls. 296v. e seguintes.

277 Cf. Livro de Atas da Câmara Municipal de Valongo, ata da sessão de 11 de outubro de 1910.

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gica do Porto, vindo residir para Ermesinde (para a vivenda da Bela Vista) dado o seu casamento com Clotilde Simões Lopes, filha do grande benemérito e proprietário em Ermesinde, António Simões Lopes, que foi inspetor escolar e um grande propugnador e reformador do ensino. Mesmo antes de proclamada a República na capital, o Dr. Maia Aguiar fundou, cerca de dois anos antes daquela revolução, com outros republicanos históricos dessa freguesia, um núcleo republicano bastante dinâmico, que mais tarde daria origem ao Centro Republicano de Ermesinde. No aspeto político, cedo mostrou a sua militância pela República, procurando difundir os princípios doutrinários do novo regime, primeiro junto daqueles com quem privava, depois junto do grande público, ainda antes da sua implantação. É assim que aparece como um dos principais oradores do comício republicano que o seu Centro Republicano levou a efeito, em S. Lourenço de Asmes, no contexto da campanha eleitoral para as eleições de 28 de agosto de 1910, antes da revolução republicana. Depois de proclamada a República, e conhecida a sua faceta de republicano histórico, foi o Dr. Joaquim Maia Aguiar nomeado primeiro Administrador do Concelho de Valongo, no período do atual regime político, importante função que acumularia, a partir de 11 de outubro de 1910, com a de Presidente da respetiva Comissão Executiva. No exercício das novas funções políticas providenciou para que fossem empossadas as novas Comissões Administrativas Republicanas de Paróquia de todas as freguesias do concelho, o que concretizou ainda no mês de outubro de 1910, à exceção da de Alfena que só tomou posse no dia 4 de novembro de 1910. Regra geral, o Dr. Joaquim Maia Aguiar, enquanto magistrado político, sempre se mostrou rigoroso e prudente nas suas tomadas de decisão. Em termos políticos, como já se viu, empenhou-se na republicanização pacífica e ponderada do povo do concelho e, em termos de progresso e desenvolvimento, envolveu-se na realização de um plano de melhoramentos para o Município.

A Transferência de poderes na freguesia de S. Lourenço de Asmes teve lugar no dia 27 de outubro de 1910.

O protagonismo da freguesia de S. Lourenço de Asmes era notório, bem evidente desde logo na constituição da Comissão Municipal Republicana, em que 3 dos 5 membros eram daquela freguesia e ocupavam os cargos mais importantes: Presidente e Vice-Presidente. Tal constatação não é de estranhar, já que as personalidades republicanas de maior destaque no concelho estavam ligadas ao Centro Republicano existente naquela localidade.

Nesse dia 27 de outubro de 1910, foi o novo Administrador do Concelho, o insigne republicano Dr. Joaquim da Maia Aguiar, acompanhado do Monsenhor Paulo António Antunes (Presidente da Junta de Paróquia e também vereador da Câmara de Valongo até ao dia 10 de outubro) a dar posse da Junta de Paróquia à nova Administração Republicana que ficou constituída pelos seguintes cidadãos: Amadeu Ferreira Sousa Vilar (também Regedor da freguesia), José Rebelo Pinto dos Santos, José Maria Ferreira de Matos, Vítor José de Araújo e Sá e Manuel Moreira Alves.

Segundo a ata da Junta da Freguesia, de 27 de outubro de 1910, de que abaixo se transcreve um excerto, na ocasião da transmissão de poderes, o pároco, Paulo António Antunes, afirmou que se congratulava com a nomeação da referida Comissão, a quem muito

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Carlos Magalhães e Manuel
Augusto Dias

considerava, e que pela sua parte acompanhava o novo regime republicano. Secretariou a Comissão Administrativa o secretário do Regedor, Rosendo Rodrigues dos Santos.

Aos vinte e sete dias do mês d’Outubro de mil nove centos e dez (era christã) pelas onse horas da manhã, nesta freguezia de S. Lourenço d’Asmes e sala das Sessões da Junta de parochia desta freguezia achando-se prezentes os Cidadãos D.r Joaquim da Maia Aguiar, Administrador deste Concelho de Vallongo, Amadeu Ferreira de Sousa Villar, José Rebello Pinto dos Santos, José Maria Ferreira de Mattos, Victor José d’Araújo e Sá, Manoel Moreira Alves, vogais effectivos e os membros da junta sessante Rev.º Parocho Msr Paulo Antonio Antunes, Manoel Antonio Marques, Manoel Martins de Castro - assim como Augusto Sobral e Joaquim Gomes da Costa. Pelo Administrador do Concelho foi declarado que em virtude da lei dava posse á comissão parochial que tem de gerir os negócios desta freguezia. O Rev.º Parocho disse que tinha recebido um officio da Adm.ão do Concelho para entregar a Administração da parochia á commissão parochial e que em antes de o fazer declarava que se congratulava por a nomeação da Commissão a quem muito considerava e que pela sua parte acompanharia o novo regímen Republicano. / O cidadão Amadeu Ferreira de Sousa Villar que presidiu a esta sessão disse que hindo a hora bastante adiantada dava a sessão por terminada.278

No entanto, pouco tempo depois da transferência de poderes os incidentes com o pároco Paulo António Antunes sucederam-se. Primeiro, por causa da divisão do cemitério, entre católicos e não católicos, mais tarde por outros motivos.

Segundo Humberto Beça279, Monsenhor Paulo António Antunes ao abandonar a paróquia, integrou as incursões monárquicas em Trás-os-Montes que tiveram lugar na altura do primeiro aniversário da implantação da República e que pretendiam o retorno à Monarquia. Perante a ameaça de ser preso, ainda de acordo com a mesma fonte, o antigo pároco de Ermesinde ter-se-á refugiado no Brasil. Na sua antiga paróquia, formou-se, entretanto, uma Associação Cultual que, apesar de tudo, duraria pouco tempo. No período da I República, sete cidadãos diferentes exerceram o cargo de Presidente da Junta de Ermesinde, a saber: Amadeu Ferreira Sousa Vilar, Augusto Vieira Carneiro, Augusto César de Mendonça, José Ferreira do Vale, António Silva Baltazar Brites, José Antero de Sá e António de Sousa Castro.

Na freguesia de Valongo, a transferência de poderes teve lugar no dia 28 de outubro de 1910. Foi o abade Guilherme Gonçalves Branco, Presidente da Junta, que nesse dia com João de Sousa Fernandes Luz, secretário da mesma, conferiu posse à nova Comissão Republicana de que faziam parte: José Francisco Pereira (Presidente), Vicente Duarte Dias, José Moreira Marques, Manuel Romeiro Alves do Vale e Adolfo de Sousa

278 Ata da sessão de posse da Comissão Paroquial Republicana de S. Lourenço de Asmes, 27 de outubro de 1910, fls. 19, 19v. e 20.

279 Humberto Beça, Ermezinde. Monografia Historico-Rural, Porto, 1921.

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Paupério (vogais efetivos), nomeados pelo Governador Civil do Porto e confirmados pelo Administrador e Presidente da Autoridade Civil do concelho, Dr. Joaquim da Maia Aguiar, que também esteve presente, bem como o Regedor interino da vila, Belmiro Martins Castro.

Da respetiva ata referente ao auto de posse, transcerevemos o seguinte trecho:

Aos vinte e oito dias do mez d’outubro do anno de mil novecentos e dez, na sachristia da Igreja Parochial d’esta mesma villa, achando-se presente o Reverendo Abbade Guilherme Gonçalves Branco, presidente d’esta Junta, comigo João de Sousa Fernandes Luz, secretario da mesma, compareceram os cidadãos: José Francisco Pereira, presidente e os vogaes effectivos Vicente Duarte Dias, José Moreira Marques, Manoel Romeiro Alves do Valle e Adolpho de Sousa Pauperio todos nomeados pelo Ex.mo Governador Civil d’este Districto para comporem a Commissão Parochial Republicana d’esta ffreguesia e villa de Vallongo, que ha-de exercer as funcções da junta de Parochia d’esta mesma villa, como foi confirmado pelo Cidadão D.or Joaquim da Maia Aguiar administrador presidente d’auctoridade Civil, d’este Concelho que tambem se achava aqui presente, bem como o regedor interino da prochia d’esta villa Belmiro Martins Castro, aos quaes cidadãos pelo referido abbade presidente da Junta foi conferida a posse com todas as formalidades legaes, ficando os mesmos cidadãos investidos nos seus respectivos logares, declarando sob sua palavra d’honra se compromettiam a bem desempenhar as funcções dos seus cargos, observando e cumprindo as leis do novo regimen da Republica Portuguesa.280

No dia 30 de outubro de 1910 reuniu, pela primeira vez, a Comissão Paroquial de Valongo, tendo aprovado por unanimidade a seguinte proposta do seu presidente a saudar o povo de Lisboa e os “heróis” da República: “A Commissão Parochial Republicana de Vallongo, reunida pela primeira vez depois de proclamada a Republica, resolve saudar no povo de Lisbôa, na Marinha e no Exercito os heroes da Revolução, especialmente o intrepido marinheiro Machado dos Santos; e egualmente resolve exarar na presente ata um voto de profundo sentimento, pelos portuguezes que perderam a vida n’essa lucta gloriosa” .

Poucos dias depois, mais concretamente a 13 de novembro de 1910, a nova Junta de Paróquia, demonstrando que estava de “pedra e cal” com o Governo Provisório da República aprovou uma proposta, apresentada pelo vogal Adolfo de Sousa Paupério, que consistiu na aprovação de um voto de louvor ao Ministro da Justiça, Afonso Costa, pelas alterações feitas ao Código Civil sobre a sucessão e disposições testamentarias. Curiosamente, a Junta de Paróquia de Valongo, durante a I República, funcionou na sacristia da Igreja Matriz de Valongo. E, assim, naquilo que julgamos ser caso único no país, todos os aniversários da revolução republicana se comemoravam com repique de sinos e embandeiramento das torres da igreja paroquial. Ora parece inacreditável a

280 Ata da sessão de posse da Comissão Paroquial Republicana de Valongo, 28 de outubro de 1910.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

fachada da igreja de Valongo ter estado decorada com as cores da República (quando este regime tanto lutou contra a Igreja, em geral, e a Igreja Católica, em particular), haver toque dos sinos e, às vezes, até foguetes em cada 5 de Outubro.

Na I República, nove personalidades diferentes exerceram o cargo de Presidente da Junta de Freguesia ou da Comissão Administrativa Paroquial de Valongo, a saber: José Francisco Pereira, António Joaquim de Sousa Lobo, António Júlio de Morais, Manuel Alves Oliveira, Francisco Marques de Padilha, Mário Augusto Queirós, Belmiro Martins Castro, Manuel Enes de Azevedo e João Ventura da Fonseca e Silva.

Na freguesia de Campo a transferência de poderes deu-se no dia 30 de outubro de 1910. Compareceram os cidadãos: Dr. Joaquim Maia Aguiar, Administrador e Presidente da Autoridade Civil do Concelho; José de Sousa Magalhães, abade Presidente da Junta de Paróquia cessante; Amaro Martins da Rocha, José Jorge da Costa, António Dias da Silva, José de Sousa Dias e Francisco Aires Baptista, como membros nomeados para a Comissão Paroquial Republicana da freguesia. Curiosa, e até surpreendente, foi a postura bem republicana do pároco da freguesia que, no ato de posse, fez um discurso bem elogioso e defensor do novo regime. Não resistimos à transcrição do seguinte extrato:

Que não causasse repugnancia a membro algum o ser nomeado para uma commissão republicana, porquanto a Republica é a mais bella e a mais perfeita de todas as formas de Governo, e a que mais nivela os direitos do homem. Que com a Republica o chefe da nação não precisava de nascer em berços doirados, mas sim de se destacar entre os seus concidadãos pela nobreza dos seus actos por forma a chamar para elles a attenção do povo; que podia ser o infimo dos cidadãos pelo berço, e vir a ser o primeiro notabilisando-se pelos seus actos. Que a Republica podia ser um passo agigantado para a grandeza do nosso paiz. Que os Estados da America são todos republicanos e o seu progresso é bem sensivel. Que depois que no Brazil se implantou a Republica, elle tem feito a admiração de todos os povos cultos. Que era certo que o governo da Republica ha de ser feito por homens, e que em todos os homens ha defeitos, porque perfeito é Deus; mas que na Republica todos nós temos mais facilidade de escolher os menos defeituosos. Por isso que nos não preocupemos com o nome e que façamos porque Portugal, á sombra da bandeira da Republica, progrida e progrida muito.281

Perante tal discurso, o administrador não podia ficar indiferente. Para além de agradecer as referências do abade ao novo regime,

Fez sentir aos membros da Commissão quanto era nobre a missão que lhes era confiada e pediu-lhes que na administração dos bens da parochia fossem o mais solicitos e zelosos possível, mais do que na administração dos seus proprios bens, da qual só tinham a dar satisfação á familia, ao passo que d’aquella tinham a dar satisfação, não só á auctoridade tutelar, mas tambem a todos os cidadãos da parochia, ainda ao mais pobre, pois que pelo novo regímen todos eram eguaes e tinham eguaes direitos. Pediu-lhes mais que nas suas deliberações fossem sempre justos e imparciaes, não vendo nunca nos seus administrados amigos nem inimigos, mas tendo sómente em vista promover os melhoramentos

281 Ata da sessão de posse da Comissão Paroquial Republicana de Campo, 30 de outubro de 1910.

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materiaes da parochia quanto caiba em suas forças, o que esperava confiadamente.282

Na freguesia de Campo, apenas quatro pessoas diferentes exerceram o cargo de Presidente da Junta ou da Comissão Administrativa, entre 1910 e 1926: Amaro Martins da Rocha, José Joaquim dos Santos, José Ribeiro de Magalhães e Amaro Dias Carvalho.

Na freguesia de Sobrado, a transferência de poderes também ocorreu no dia 30 de outubro de 1910. Dois dias antes, a Junta de Paróquia recebeu o ofício do administrador a comunicar os nomes dos elementos da Comissão Municipal Republicana que deviam comparecer no domingo, dia 30 de outubro, pelas 12 horas, na casa de sessões da Junta a fim de tomarem posse, que foi conferida pelo Administrador do Concelho, Dr. Joaquim da Maia Aguiar. Aqui deu-se a particularidade de o presidente da Junta de Paróquia ser o padre António Mendes Moreira, que também foi o último presidente da Câmara de Valongo no período da Monarquia. Da ata de posse transcrevemos o seguinte excerto:

Aos trinta dias do mes d’ouubro de mil e novecentos e dez, n’esta freguesia compareceram os cidadãos Doutor Joaquim da Maia Aguiar, Administrador Presidente da Auctoridade Civil d’este concelho, Antonio Mendes Moreira, Abbade presidente da junta de parochia cessante, bem como os cidadãos, Joaquim Ferreira Pinto Vinhas, Joaquim Pereira da Silva, Thimoteo Martins da Costa, Joaquim de Sousa Moreira e Manoel Ferreira Brizida, estes nomeados o primeiro presidente e os outros vogaes para constituírem a Commissão Parochial Republicana d’esta freguesia que ha de substituir a actual junta de parochia, a fim de aos mesmos nomeados ser dada a respectiva posse, a qual lhes foi conferida pelo Reverendo presidente, declarando todos os nomeados pela sua honra que desempenhariam fielmente as funcções que lhes eram confiadas. Em seguida o Administrador do concelho em eloquentes palavras fez sentir aos membros da Commissão quanto era nobre, no actual regímen, a missão que lhes era confiada. Pediu-lhes mais que nas suas deliberações fossem sempre justos e imparciais, não vendo nunca nos seus administrados amigos nem inimigos, pondo de parte quaesquer resentimentos se porventura os houvesse, e empenhando-se tão somente em promover quanto caiba em suas forças os melhoramentos materiaes da parochia, o que esperava confiadamente. A seguir o Reverendo Abbade, tomando a palavra, declarou concordar em absoluto com o expendido pelo Excellentissimo Administrador, e que, se a Commissão enveredasse pelo caminho que elle lhe acabava de traçar, como esperava, teria a sua sympathia e o seu apoio incondicional.283

Na análise das atas e da correspondência com a Administração do concelho é interessante verificar que, no dia 24 de março de 1911, o mesmo administrador, pondo em prática as determinações do Governo Provisório, com um cunho claramente anticlerical, comunica à Junta Republicana de Sobrado e a todas as outras do concelho que as verbas até agora destinadas ao culto seriam destinadas, daí em diante, à instalação de bibliotecas populares.

Na I República sete pessoas diferentes exerceram o cargo de Presidente da Junta de

282 Idem

283 Ata da sessão de posse da Comissão Paroquial Republicana de Sobrado, 30 de outubro de 1910.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias
.

Freguesia ou da Comissão Administrativa de Sobrado, a saber: Joaquim Ferreira Pinto Vinhas, Joaquim Pereira da Silva, José Martins dos Santos, José Francisco de Sousa, Manuel Martins Fernandes, Timóteo Martins da Costa e Manuel Martins.

A Junta da Paróquia de Alfena, do período monárquico, foi a que mais tempo esteve em funções no município de Valongo, já em plena República. Teve a sua última reunião, que consta em ata, a 2 de outubro de 1910, e tinha a seguinte composição: Abade Manuel Martins de Castro Ferreira (Presidente), Júlio Moreira dos Santos (Secretário), Manuel Alves de Sousa, José Marques de Sousa e Manuel Moreira da Rocha (Vogais). O pároco e, por inerência de funções, Presidente da Junta de Paróquia era Manuel Martins de Castro Ferreira (natural de S. Pedro da Cova), coadjuvado por Manuel Vieira de Leite. O 1.º Presidente da Comissão Municipal Republicana foi Manuel André Moreira Júnior (desde 4 de novembro de 1910; em 9 de abril de 1911 sucedeu-lhe Carlos dos Santos Almeida).

A posse da Comissão Paroquial Republicana teve lugar no dia 4 de novembro de 1910. A sua constituição tinha, para além do presidente já atrás nomeado, os seguintes elementos: Manuel André Moreira Júnior (secretário), Joaquim de Sousa Santos, Quintino Vieira da Silva e Américo de Paiva e Sousa (vogais). A sede provisória da Junta foi no lugar da Codiceira, em casa do cidadão Florindo de Sousa Almeida.

Da ata da instalação e posse da Comissão Paroquial de Alfena, extraímos a seguinte passagem:

Aos quatro dias do mez de Novembro de mil e novecentos e dez, nesta freguezia de Alfena, concelho de Vallongo, tendo sido convocados pello Cidadão Administrador Prezidente deste Concelho, os menbros que tem de formar a nova Junta, os Cidadãos Carlos dos Santos Almeida, Manoel André Moreira Junior, Joaquim de Souza Santos, Quintino Vieira da Silva e Americo de Paiva e Souza. O cidadão Carlos dos Santos Almeida, Prezidente, disse que em virtude do art.º 15 do Codigo Administrativo, lhes compria prestar juramento, sob palavra de honra, ao governo da Republica, e as suas leis, os quais prestarão todos o dito juramento nas mãos do Prezidente, depois de cujo acto este declarou que a sessão estava aberta e instalada a nova junta.284

Na sessão da posse, os membros da comissão fizeram ainda uma revisão aos livros existentes dando pela falta dos livros de atas de 26 de julho de 1872 até 8 de dezembro de 1901.

Durante a I República, cinco cidadãos exerceram o cargo de Presidente da Junta de Freguesia ou da Comissão Administrativa de Alfena: Carlos dos Santos Almeida, Manuel Ferreira da Rocha, Arnaldo Ferreira da Rocha, António de Castro Moutinho e Neves e José Augusto da Rocha.

Também em Valongo houve momentos de grande fervor republicano que, de certa maneira, transformaram as antigas romarias e festas religiosas em significativas festas

284 Ata da sessão de posse da Comissão Paroquial Republicana de Alfena, 4 de novembro de 1910.

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cívicas e de pendor republicano, como se transformaram as evocações do 1.º de Dezembro, do 31 de Janeiro, os aniversários do 5 de Outubro e a festa da Árvore. Mas, em termos políticos, foram também aproveitados os momentos de grande regozijo republicano, de que são exemplo o reconhecimento internacional da República portuguesa, a reunião das Constituintes que deram legitimidade ao novo regime e, particularmente, a elaboração e aprovação da Constituição Republicana de 1911.

A República foi tempo de grande agitação e conflitualidade social e política. Para isso muito contribuiu a guerra da República contra a Igreja, a que estava ancestralmente arreigada a grande maioria da população portuguesa. Por isso, foram recorrentes no concelho de Valongo os problemas entre as administrações republicanas e os respetivos párocos, bem como de outros momentos de enorme contenção, nomeadamente as intentonas e incursões monárquicas, o tempo da ditadura de Pimenta de Castro, o período da Primeira Grande Guerra, o Sidonismo, a Monarquia do Norte, a Noite Sangrenta, os confrontos com a imprensa ou até o pontual mau relacionamento entre o poder local e alguns professores.

Com a implantação do novo regime, no dia 5 de Outubro de 1910, todas as oportunidades, sobretudo as efemérides nacionalistas e patrióticas, eram aproveitadas pela nova liderança política (ao nível do poder central, distrital e local) para consolidar no povo o fervor republicano, que assentava na valorização da portugalidade que haveria de resultar da união de todos, rumo a um futuro de maior justiça, paz, liberdade e progresso. Também se promoveram conferências de pendor republicano, fizeram-se homenagens a republicanos de grande destaque nacional que tiveram o seu nome atribuído a ruas das várias localidades do município, para quem se organizaram receções de boas-vindas, e que foram elogiados nas reuniões da Câmara e das Juntas de Freguesia, com o envio frequente de telegramas e, naturalmente, festejaram-se sempre de modo efusivo as vitórias das forças republicanas sobre as monárquicas.

Os republicanos mostraram sempre nas suas decisões, quer a nível do poder central, quer a nível do poder local, uma enorme preocupação com a instrução pública de todos, homens e mulheres, jovens e adultos.

Valongo, em comparação com a média nacional relativamente ao ano de 1930, conseguiu melhores resultados no campo do ensino, nomeadamente na percentagem de pessoas que passaram a saber ler e escrever e no número de homens alfabetizados.

É claro que para os republicanos não era apenas a mera alfabetização que interessava, eles pretendiam transmitir um exigente conjunto de conhecimentos curriculares e, em simultâneo, competências de intervenção cívica para que cada cidadão fosse capaz de interagir na sua comunidade, não por influência de outrem (eram completamente contrários ao caciquismo típico do século XIX), mas por convicção própria resultante dos seus ideais e também da sua informação esclarecida pelas leituras que faziam (livros, revistas, mas sobretudo jornais).

Os republicanos achavam que a sua mensagem de renovação das mentalidades e a nova forma de fazer política precisavam de chegar ao povo. Muitas terras, como já vimos, tiveram no período da I República o seu jornal, ou os seus jornais, por vezes de sentidos políticos contrários.

Em Ermesinde e Valongo, neste período, há registo da existência de dois jornais, um

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

claramente de ideologia republicana outro ligado à Igreja. Em Ermesinde surgiu, em 1912, o semanário Maia-Vallonguense, enquanto em Valongo se publicou, de 1913 a 1915, O Vallonguense de periodicidade quinzenal. O Maia-Vallonguense apresentou-se, desde início, como um jornal noticioso e independente, mas claramente republicano, procurando chegar aos leitores dos dois concelhos (Maia e Valongo) que lhe serviam de título. O seu primeiro número surgiu no dia 14 de janeiro de 1912, fez recentemente 112 anos, e tinha como diretor António Guerreiro e editor Domingos Amorim. A redação e a administração funcionavam na Quinta da Formiga, onde estava instalado o Internato da Escola Guerreiro. A partir do n.º 3 (28-1-1912) a redação e a administração passaram a ser na Rua de Cedofeita, no Porto, onde funcionava o Externato da mesma Escola Guerreiro. As suas características e objetivos ressaltam, de forma mais ou menos evidente, logo no primeiro editorial, quando se se escreve: “Jornal, semanario independente, dizemos nós, e não poderá gosar de tal predicado, se se não deixar guiar pelo dedo da Justiça na apreciação dos factos, se não for livre em tal apreciação. Republicano dentro da Republica, defendel-a-ha em todos os transes, mas será livre na critica aos actos do governo, quando os homens que estiverem á sua frente se não deixem orientar pelo recto caminho do dever que conduz á prosperidade da pátria. Como independente não se filia em nenhum partido político, porque a sua politica é o bem estar do povo. / Em materia religiosa defenderá a liberdade de todo o cidadão”. Neste curto excerto dá para perceber que se trata de um jornal de cariz verdadeiramente republicano, no sentido doutrinário do termo, que defende o regime da República, sem se integrar em qualquer formação partidária republicana. Por isso, defende a liberdade de pensamento, a prosperidade da Pátria, a separação da Igreja do Estado. O seu conteúdo é marcadamente doutrinário e político, dando especial relevo às notícias com estas características, embora também existam artigos de opinião, notícias de Ermesinde e se dê algum relevo ao problema da instrução, ou não surgisse este jornal num estabelecimento escolar.

Ao contrário do Maia-Vallonguense, o jornal Vallonguense, cujo 1.º número aparece oito dias antes da festa de S. Mamede, em Valongo (a maior romaria daquele tempo que tinha lugar na vila de Valongo no dia 17 de agosto de cada ano, pois S. Mamede era, e ainda é, o orago da paróquia sede do concelho), era uma publicação de cariz religioso, como se pode ver pelo seu subtítulo “Boletim Parochial da Villa de Vallongo e freguesias circunvizinhas” e pelos seus responsáveis. O seu conteúdo, que não conseguimos verificar, há de ser de informação religiosa e, se alguma vez se aventurou em artigos de conteúdo político, seriam certamente de contestação à República que muito maltratou a Igreja, de forma mais acutilante nos primeiros anos do novo regime. O diretor e editor foi o padre José dos Reis Paupério, enquanto o administrador e proprietário foi o padre Manuel Joaquim Tavares. O seu primeiro número saiu no dia 10 de agosto de 1913. O n.º 4 acrescentava o seguinte subtítulo “Quinzenário defensor dos interesses de Valongo”. De acordo com a informação disponível na Biblioteca Pública Municipal do Porto, o último número de O Vallonguense terá sido publicado no dia de S.to António, a 13 de junho de 1915, e seria o seu 26.º número.

O estudo de Paulo Alves, sobre A imprensa católica na Primeira República (Coimbra: 2012) revela dados interessantes: O Vallonguense foi um dos 24 títulos de jornais

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católicos que surgiram em 1913 e um dos 37 jornais católicos que se publicaram na diocese do Porto, entre 1910 e 1926; já quanto à periodicidade havia 12 quinzenários, O Vallonguense foi um deles; de 1911 a 1913, nas dioceses existentes a norte do rio Mondego, publicaram-se 31 títulos, 7 na diocese do Porto, entre os quais O Vallonguense; os outros eram Boletim Popular (Porto: 1912-1920), O Correio (Porto: 1912-1913), A Ideia (Fafe, 1912-1920), A Ordem (Porto: 1913), A Paz (Porto: 1912-1917) e A Paz (Vila Nova de Gaia: 1912-1918): no que respeita à longevidade destes jornais, apenas 4 se publicaram em 3 anos civis consecutivos, sendo um deles O Vallonguense Foi no norte de Portugal que se registou o maior número de jornais católicos, pois era aí que havia maior religiosidade popular e, portanto, maior número de leitores e maior apoio financeiro.

As questões sociais, a segurança e a saúde não foram mitigadas pelos republicanos que, como vimos, as trouxeram frequentemente à ordem de trabalhos das reuniões políticas. No capítulo da segurança das pessoas e dos seus bens, as maiores povoações do concelho de Valongo contaram com postos da GNR. Relativamente à saúde, o médico municipal viu ser vigiada de perto a sua atuação ao serviço dos mais carentes do concelho. Em termos sociais, os republicanos fundaram uma creche em Ermesinde para as crianças mais pobres e, regularmente, mas sobretudo pelo Natal, pela Páscoa ou pelo 5 de Outubro, distribuíam esmolas a mais de uma centena de pobres.

Mas a década e meia de República foi também tempo de progresso, criaram-se mais vias e meios de comunicação, melhoraram-se os caminhos e as estradas, aperfeiçoou-se a iluminação pública e preparou-se tudo para que a energia elétrica chegasse o mais cedo possível ao concelho, registando-se também grande progresso no tecido industrial, sobretudo na freguesia de Ermesinde.

A evocação do 5 de Outubro e o seu impacto no país real, neste trabalho em que repensamos a democracia, para além do seu significado eminentemente político e patriótico, deve ser um momento de reflexão por parte de todos, governantes e governados, no sentido de se darem as mãos para, assentando numa base democrática, construírem um futuro mais próspero e sustentável para a vida no País e no planeta, pois só assim haverá uma maior qualidade de vida para todos, que sempre foi o sonho do sentir verdadeiramente republicano.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

4. DAS DITADURAS À III REPÚBLICA

Na segunda metade da I República (1918-1926), no imediato pós-Grande Guerra, a vida política, económica e social do Portugal republicano agravou-se significativamente.

Apesar da situação geral do país apresentar alguns sinais de melhorias a partir de 1923 (com a atenuação do défice, o controlo da dívida pública, a estabilização da moeda e um maior êxito na luta contra o analfabetismo), a verdade é que as classes urbanas trabalhadoras estavam dececionadas com a política republicana e grande parte das classes médias temia o anarquismo e o bolchevismo. Por isso, apoiaram o novo regime: a Ditadura Militar, resultante do golpe do 28 de Maio de 1926285 e o Estado Novo que lhe sucedeu.

4.1. A Ditadura Militar

A crise económica, a instabilidade política e o contexto internacional de ascensão de regimes autoritários favoreceram o êxito do golpe militar do 28 de Maio de 1926 que pôs fim à I República e ditou o triunfo das forças conservadoras, iniciando-se os governos ditatoriais portugueses: a Ditadura Militar (1926-1933) e o Estado Novo (1933-1974). Ainda a Ditadura Militar não contava um ano e já os republicanos se revoltavam contra ela. O movimento contestatário, militar e civil republicano, que começou no Porto a partir do dia 3 de fevereiro de 1927, mostrou características de uma guerra civil e durou até ao dia 7 de fevereiro, data em que foi derrotado. O movimento revoltoso estava planeado para ocorrer em simultâneo em várias regiões do país, o que não veio a acontecer, provavelmente por dificuldades nas comunicações. De início sublevaram-se as forças do Regimento de Caçadores n.º 9 (Porto), do Regimento de Cavalaria n.º 6 (Penafiel), militares provenientes de outros aquartelamentos fixados na cidade e uma companhia da Guarda Nacional Republicana da Bela Vista (Porto).

O Diário de Lisboa, de 3 de fevereiro de 1927, publicava a primeira nota oficiosa do governo sobre esta revolta onde se podia ler: “Uma parte da guarnição do Porto revoltou-se; a maior parte conserva-se fiel ao governo que já tomou as providencias que julgou necessarias para rapidamente jugular o movimento. / Em todo o resto do País, há absoluto sossêgo”.

Não era bem verdade. De facto, houve repercussões na Figueira da Foz, Faro, Vila Real

285 Já um ano antes, a 18 de abril de 1925, um grupo de oficiais generais se havia revoltado contra as instituições republicanas e o Partido Democrático, ensaiando de certa forma o “28 de Maio de 1926”. Tratou-se de um grupo alargado de oficiais superiores conservadores do exército português que, no entanto, não apresentava qualquer programa consequente para o seu ato, como bem notou George Guyomard, no seu livro La Dictature Militaire au Portugal / Impression d’un français retour de Lisbonne (Paris: Les Presses Universitaires, 1927), quando escreve: “Na realidade, nunca tiveram um programa, nem conceberam um corpo de doutrinas sociais, políticas e económicas […] Nunca tiveram outro objetivo comprovado senão o de tirar o poder aos democratas”, p. 24.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias de Santo António, Tavira, Évora, Setúbal, Barreiro, S. Julião da Barra, Amadora, Queluz, Mafra, Abrantes, Tancos, Entroncamento, Castelo Branco, Coimbra, Mealhada, Cantanhede, Aveiro, Viseu, Alijó, Valpaços, Leiria e em Lisboa, nesta última cidade, sobretudo após o dia 7 de fevereiro.

O mesmo Diário de Lisboa indicava ainda o motivo reivindicado pelos revolucionários: “demissão do governo e o regresso á Constituição”. No dia 4 de fevereiro chegavam ao Porto, para se juntarem aos revoltosos, militares do Regimento de Artilharia de Amarante. O dirigente do movimento foi o general Sousa Dias (que, na sequência do 28 de Maio, tinha sido retirado do comando da 3.ª Divisão), secundado pelo coronel Fernando Freiria, pelo capitão Nuno Cruz e pelo oficial médico da Armada, Jaime de Morais.

Os confrontos foram violentos, com forte tiroteio entre as forças fiéis ao governo, que se encontravam na Serra do Pilar (Vila Nova de Gaia), e os revoltosos que se concentravam na Praça da Batalha (Porto).

Em Lisboa, onde o movimento se pronunciou a 7 de fevereiro, foi declarado o estado de sítio pelo Governo Militar da capital, o trânsito só foi permitido entre as 7 e as 18h, foi proibido assomar às janelas, todos os estabelecimentos tinham de fechar portas às 17h, fora de horas só era permitido circular com salvo-conduto, todos os possuidores de armas tiveram um prazo de 4 horas para as entregar, referindo o edital, datado de 8 de fevereiro de 1927, que quem passado o prazo fosse encontrado com armas seria “fuzilado sem julgamento”.

Desta revolta a favor do regresso da República resultaram enormes prejuízos materiais, mais de uma centena de mortos, quase um milhar de feridos e cerca de 600 prisioneiros e deportados.

Entre as consequências imediatas deste movimento contra a Ditadura Militar, contam-se o endurecimento da repressão por parte do regime ditatorial: todos os implicados sobreviventes foram detidos e julgados e todos os que exerciam cargos públicos foram demitidos. Muitas das unidades militares envolvidas foram desmanteladas e também foram extintos vários órgãos de imprensa, partidos políticos e sindicatos.

Participou nos acontecimentos do Porto, como republicano revoltoso, o comandante do posto da GNR de Ermesinde, 2.º Sargento Américo de Carvalho, que foi preso. Era pai de 4 filhos menores, já órfãos de mãe, que foram internados numa instituição estatal. Os restantes soldados da GNR de Ermesinde foram imediatamente substituídos (cf. ata da reunião da Junta da Freguesia de Ermesinde de 13 de fevereiro de 1927, fl. 29).

A prioridade da Ditadura passou a ser a garantia da ordem e da segurança, tentando impedir a reorganização da oposição reviralhista, e condenando, como se viu, os seus principais líderes ao exílio e à deportação para os espaços coloniais.

4.2. O Estado Novo

Sete anos depois, os governantes militares cederam o poder a governantes civis. Iniciava-se o regime autoproclamado de “Estado Novo”.

De um regime para o outro, a personalidade que mais se destacou foi a de António de Oliveira Salazar que, com uma política fortemente repressiva e apoiado pelo partido

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único (União Nacional) e pela polícia política (PVDE/PIDE), se manteve no poder ao longo de 40 anos (1928-1968). As características deste regime tinham semelhanças com o fascismo italiano, no poder desde 1922.

O novo regime promoveu o culto do chefe (Salazar foi considerado o “salvador da Pátria”), instituiu-se a censura na imprensa, organizaram-se grupos de enquadramento ideológico (Mocidade e Legião Portuguesas), desenvolveram-se atividades recreativas através da FNAT – Federação Nacional para Alegria no Trabalho, propagandeou-se o regime através do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional) e da grande Exposição do Mundo Português (1940).

O prestígio de Oliveira Salazar começou enquanto titular do Ministério das Finanças ainda no período da Ditadura Militar. À custa de cortes na segurança, saúde e ensino (ou seja, na qualidade de vida das pessoas), Salazar, como Ministro das Finanças, conseguiu equilibrar os orçamentos e as contas públicas, estabilizar a situação financeira e a moeda e baixar as taxas de juro. Salazar sempre defendeu a vida rural apelando, a partir de 1929, à campanha do trigo que não deu os resultados esperados. Contudo, a cortiça, o azeite, as frutas e o vinho expandiram-se, na década de 1940.

As obras públicas foram o “emblema” do regime como aconteceu com o fascismo italiano e o nazismo alemão. A construção de vias de comunicação (aeroportos e portos), da rede elétrica nacional, de escolas, tribunais, hospitais, estádios e quartéis militares foram as obras que envolveram maiores investimentos.

A indústria nacional manteve-se atrasada e condicionada até 1950 (o condicionamento assentava na necessidade de serem ouvidas as empresas concorrentes, sempre que uma nova se pretendesse instalar), assistindo-se, a partir de então, a uma inversão dessa tendência. Os setores que concentraram mais operários e se tornaram mais desenvolvidos foram os cimentos, a refinação de petróleo, os adubos, a energia elétrica, a construção naval e os tabacos. Mesmo assim, não pode falar-se de pleno arranque industrial. Em muitos setores, Portugal continuou dependente das importações.

O Estado Novo era corporativo. O Corporativismo abarcava a família e todos os outros organismos, onde os indivíduos se agrupavam pelas funções que desempenhavam, harmonizando os seus interesses para a execução do bem comum.

Os operários estavam, obrigatoriamente, integrados em Sindicatos nacionais e os patrões em Grémios. Estas duas estruturas deviam negociar entre si os contratos de trabalho, regulamentar as normas e as quotas de produção (tentando evitar a superprodução), os preços e os salários, o que configurava uma situação de efetiva corporativização sindical. Os camponeses e os pescadores estavam igualmente integrados em organizações controladas pelo Estado: Casas do Povo e Casas dos Pescadores.

Rapidamente os trabalhadores verificam que esta corporativização sindical favorecia as entidades patronais prejudicando, por consequência, os seus interesses. Organizam, então, formas revoltosas de resistência e de protesto (como aconteceu na Marinha Grande, em 18 de janeiro de 1934), violentamente reprimidas pelo governo.

A política colonial do Estado Novo assentava na manutenção do Império. O objetivo era europeizar e cristianizar as populações indígenas, através duma transformação gradual dos seus costumes e valores. Com o Ato Colonial de 1930, mantiveram-se os princípios da desigualdade, que dividia os habitantes das colónias em assimilados (aqueles

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que já viviam e se comportavam como portugueses) e indígenas (os que continuavam a viver e a comportar-se de acordo com os seus parâmetros culturais). Sem um papel relevante na economia nacional, as colónias absorviam alguns excedentes agrícolas e industriais e, em contrapartida, forneciam à Metrópole algumas matérias-primas e produtos alimentares.

Em termos culturais, o regime não apostou numa séria educação de “massas”, mas dedicou alguma atenção ao ensino secundário, técnico, superior e à ciência. No entanto, o controlo exercido pelos organismos oficiais do regime prejudicou o desenvolvimento cultural e a investigação científica.

No período que medeia as duas guerras mundiais, a democracia liberal que parecia ter ganho raízes na gestão do poder político europeu, mostrou grandes fragilidades e não resistiu à crise (nuns casos, como nos da Itália, Espanha e Portugal foi logo na crise do pós-Guerra que se instalaram regimes ditatoriais; noutros casos, como no da Alemanha, a ditadura só se impôs na conjuntura da grande depressão do ano 1929 e anos 1930).

Em Espanha, o general Primo de Rivera impôs uma ditadura em 1923, mas os republicanos lograram o regresso da República em 1931. A vitória da Frente Popular (coligação que agrupava socialistas, comunistas e anarquistas), nas eleições de 1936, provocou a pior reação das forças conservadoras (nacionalistas ou franquistas), o que levou a uma guerra civil que se prolongou praticamente até ao início da 2.ª Guerra Mundial. Com a ajuda da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler, e o apoio não declarado de Salazar, o general Francisco Franco instalar-se-ia no poder desde o fim da Guerra Civil (1939) até à sua morte, em 1975.

Na Alemanha, mal Hitler chegou ao poder (1933), começou a preparar tudo para uma guerra de retaliação contra os Aliados que haviam vencido os alemães há escassos vinte anos. Na sua política militarista e expansionista, rearmou o exército alemão em 1935 (pondo em causa as decisões do Tratado de Versalhes), ocupou a região da Renânia (1936), anexou a Áustria (março de 1938), reivindicou a anexação da região dos Sudetas (na Checoslováquia, ainda em 1938), celebrou o Pacto de Aço em maio de 1939 com o amigo Mussolini e, em agosto de 1939, firmou com Estaline o Pacto Germano-Soviético. Mas foi a sua invasão da Polónia, forçando a conquista de território que reivindicava, que provocou o início da 2.ª Guerra Mundial. Quase todo o mundo se viraria contra Hitler e os seus aliados (os chamados países do Eixo: Itália, Alemanha e Japão) e, por isso, era inevitável a sua derrota, que ocorreu em maio de 1945.

Os custos da 2.ª Guerra Mundial foram enormes, tanto em perda de vidas humanas como em danos materiais. Relativamente aos custos humanos foram estimados em cerca de 60 milhões de vítimas mortais (muitos mais foram os feridos, os desaparecidos e os mutilados). Esta Guerra foi a primeira em que a Humanidade contou mais vítimas mortais civis do que militares. Para isso muito contribuiu o genocídio provocado pelos nazis sobre os judeus, nos campos de exterminação. Quanto à destruição material, refira-se, a mero título ilustrativo, a destruição de 70% das cidades alemãs, 20% dos edifícios da Jugoslávia, a destruição de grande número de vias de comunicação e transporte e de unidades industriais. Os americanos, para vencer o Japão, recorreram às bombas nucleares para destruir Nagasaki e Hiroxima. Milhões de pessoas tiveram de abandonar

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as suas terras e tentar sobreviver noutro lado; em suma, esta guerra deixou um rasto de morte, miséria, fome, destruição e sofrimento.

Quando se reflete sobre a democracia, como é o caso da presente publicação, não deve esquecer-se o movimento do “não-alinhamento” que, baseando-se em princípios democráticos, criou uma espécie de terceira via para um mundo marcado pela bipolarização da Guerra Fria.

Os novos estados, que se separaram dos seus colonizadores (pela via da guerra ou da negociação), a seguir à 2.ª Guerra Mundial, encontravam-se bastante fragilizados nos aspetos económico e social. As suas economias encontravam-se dependentes do exterior (antigas metrópoles ou superpotências), a sua população era analfabeta e registavam-se, também, problemas étnicos. Conscientes da sua situação defenderam-se do bipolarismo, criando o Movimento dos Não-alinhados que defendia a descolonização e procurava criar laços de solidariedade entre os seus países.

O Movimento dos Não-alinhados ficou marcado pelas Conferências de Bandung286 (Indonésia, 1955) e de Belgrado (Jugoslávia, 1961); a partir da década de 1960 lutou também pelo desenvolvimento dos seus países (em 1964, na ONU, cria-se a Conferência das Nações Unidas para o comércio e desenvolvimento e, em 1970, na Conferência de Lusaka e de Argel, em 1973, reivindica-se a criação de uma nova ordem económica).

Depois da 2.ª Guerra Mundial, a descolonização conhece novo impulso, podendo referir-se 3 etapas: a asiática (1945-1955); a africana (1955-1962) e, a partir de 1968, o fim do colonialismo, com a independência das colónias portuguesas (1974-1975).

Desde os finais da guerra até ao início da década de 1970, a economia internacional conheceu um período longo de grande prosperidade, muito por causa da necessidade de reconstrução da Europa e do Japão. No entanto, reconstruídos estes espaços, e devido também ao desenvolvimento de outros países asiáticos e latino-americanos, começaram a notar-se dificuldades no escoamento da produção, bem como a concorrência dos produtos provenientes dos novos países industrializados. Entretanto, os EUA abandonaram a convertibilidade do dólar em ouro e a OPEP reduziu em 5% as exportações de petróleo e embargou a exportação para os EUA e outros países ocidentais, provocando um enorme aumento do seu preço (três ou quatro vezes mais) nos mercados internacionais. Era o fim da prosperidade económica, agravada pela crise petrolífera.

Este aumento do preço do petróleo provocou uma subida geral dos preços trazendo dificuldades acrescidas aos países que não o tinham e estavam em desenvolvimento. Houve situações de desemprego e de inflação (estagflação), que aumentaram os índices

286 Dos dez princípios de Bandung, exarados no comunicado final da Conferência, de 24 de abril de 1955, transcrevemos os seguintes: “1. Respeito pelos direitos humanos fundamentais. / 2. Respeito pela soberania e integridade territorial de todas as nações. / 3. Reconhecimento da igualdade de todas as raças e da igualdade de todas as nações, pequenas e grandes. / 4. Não intervenção e não ingerência nos assuntos internos de outros países. / 5. Respeito do direito de cada nação se defender individual ou coletivamente conforme a Carta das Nações Unidas. / […] / 7. Abstenção de atos ou ameaças de agressão ou de empregar a força contra a integridade territorial ou a independência política de um país. / 8. Solução dos conflitos internacionais por meios pacíficos”.

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de pobreza e as dívidas externas. Os estados adotaram medidas de economia energética (recorrendo a energias alternativas) e viram-se obrigados a agravar os impostos para tomarem medidas “keynesianas” de investimento público, de elevação de salários e de embaratecimento do crédito.

No pós-guerra, mais concretamente na década de 1950, Portugal continuava a ser um país predominantemente agrícola, mas nem por isso conseguia ser autossuficiente nesse setor, porque mantinha processos arcaicos que não permitiam aumentar a produção e a produtividade. Os planos de fomento (o 1.º de 1953 a 1958; o 2.º de 1959 a 1964) continuaram a valorizar a agricultura, promovendo também a indústria e o comércio, mas sem reestruturar profundamente a economia nacional. A mecanização da agricultura só se fez, praticamente, no Ribatejo e numa pequena parte do Alentejo. No resto do país tudo se manteve quase na mesma. Os produtores nacionais continuaram a apostar na produção dos cereais, esquecendo que a população urbana procurava, sobretudo, o leite, a carne, a fruta e os ovos.

Em resultado da miséria em que o país vivia, muitos portugueses emigraram, procurando lá fora emprego e rendimentos maiores. Até finais da década de 1950, o principal destino era o Brasil, a partir da década de 1960 foi a Europa, sobretudo a França e a Alemanha. Outros destinos foram as colónias portuguesas. Dos Arquipélagos dos Açores e da Madeira emigrava-se mais para os EUA, Canadá, África do Sul e Venezuela. As remessas dos emigrantes foram importantes para a economia do país, para equilibrar a balança de pagamentos, ao mesmo tempo que contribuíram para a manutenção estrutural do nosso atraso económico.

A indústria portuguesa conheceu algum entusiasmo a partir de finais da década de 1940 graças à expansão da eletrificação no território nacional. A taxa de crescimento anual rondou os 7% na década de 1950. Ajudaram a este crescimento o protecionismo, a estabilização dos preços e da moeda, bem como a política colonial que garantia o fornecimento de matérias-primas e o mercado interno para a produção industrial.

Durante o 1.º plano de fomento (1953-1958) expandiu-se a indústria siderúrgica e química, ao mesmo tempo que se procedeu a um aumento da produção de energia hidráulica e da refinação de petróleo. Deu-se também alguma importância ao desenvolvimento das vias de comunicação, meios de transporte terrestres e marítimos.

Entre 1958 e 1973, o PIB cresceu próximo dos 7% ao ano. Nos finais da década de 1950 e, sobretudo, na de 1970 dá-se uma grande mudança na nossa economia, com uma abertura à Europa (assinatura da adesão à EFTA em dezembro de 1959 e, em julho de 1972, Portugal assinou um acordo de comércio com a CEE). O défice da balança comercial era equilibrado com as remessas dos emigrantes e do turismo. Este desenvolvimento industrial foi acompanhado de um crescimento urbano, a partir da década de 1960. Na de 1970, 77% da população portuguesa vivia em centros urbanos. Portugal, durante três quartos do século XX, manteve as colónias africanas. A sociedade colonial portuguesa continuou, neste tempo, a explorar a população indígena, exigindo-lhe impostos, fazendo-lhe exigências de toda a espécie e não lhe reconhecendo direitos, a não ser a uma minoria de assimilados (2,5%). Depois da 2.ª Guerra, o Estado português e alguns capitalistas decidiram fazer investimentos em Angola e Moçambique procurando atrair mais população da metrópole. Desenvolveram-se, então, as vias

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de comunicação e transporte (com a construção de estradas, caminhos-de-ferro, portos, pontes e aeroportos), as infraestruturas urbanas, as centrais hidroelétricas, a produção de cimento, açúcar, a indústria química, a exploração de ferro, petróleo e diamantes, a produção de café, tabaco e algodão.

Na década de 1960, Angola conheceu um grande progresso. Em Moçambique, com grande influência britânica e sul-africana, desenvolveram-se mais as plantas oleaginosas, o algodão e o açúcar. Contudo, apesar deste esforço estatal e de privados, o desenvolvimento nas colónias africanas portuguesas limitou-se a áreas muito específicas. No aspeto político, a oposição à Ditadura Militar e ao Estado Novo esteve sempre ativa, pese embora se tenha notado por parte do regime ditatorial, como já se referiu, a adoção de medidas para uma maior eficiência das formas de repressão.

Logo no período inicial (década de 1930), foram muitos os que sofreram, no corpo e no espírito, as atrocidades dum regime ditatorial que, de ano para ano, se revelava mais forte e repressivo.

Antigos dirigentes republicanos (alguns com o prestígio de estadistas, como Afonso Costa e Bernardino Machado) exilaram-se na França (Liga de Paris) e em Espanha (os Budas) de onde, sempre que puderam, inspiraram, ou apoiaram diretamente, tentativas fracassadas de “revoluções”.

Mesmo dentro do País, o “reviralho” manteve-se também sempre muito ativo. Entre os seus principais agentes contam-se anarcossindicalistas, comunistas, militares, nacionais-sindicalistas, republicanos, operários, estudantes, professores e maçons.

Segundo A. H. de Oliveira Marques, em fins de 1926, existiam 3.153 maçons em Portugal, agrupados em 115 lojas, o que correspondia a um maçon por cada 2.000 habitantes. Era uma proporção bastante razoável, que colocava Portugal sensivelmente a meio, no panorama da maçonaria europeia continental. Em Espanha só existia um maçon por cada 4.700 habitantes. Por isso, a maçonaria portuguesa dispunha de boas condições para desempenhar papel de relevo no reviralho português. E desempenhou-o, pois esteve em quase todas as intentonas, à exceção daquelas que foram exclusivamente operárias, como o “18 de janeiro” e o “17 de fevereiro”, ambas em 1934.

Estes reviralhistas sofreram privações de todo o tipo: prisões, torturas, deportações e, alguns, até a morte. Mas nunca desistiram. E se o triunfo se revelou impossível, isso ficou a dever-se, em primeiro lugar, à divisão interna dos oposicionistas, e em segundo lugar, à eficiência cada vez maior da polícia política que Salazar sempre reforçou. Por isso, as prisões foram-se enchendo de pessoas, cujo único “crime” era a sua luta pela liberdade e pelos direitos universais do Homem.

Os números oficiais de presos políticos, para as intentonas revolucionárias que ocorreram entre 1931 e 1938, são geralmente inferiores aos números reais, porque não incluem os presos das revoltas dos Açores e da Guiné, nem os civis e militares com patente abaixo de oficiais da revolta da Madeira, nem os presos da agitação política do continente em 1931.

Apesar de serem inferiores aos reais, os dados apresentados são já suficientes para podermos tirar conclusões acerca da repressão policial do Estado Novo sobre os seus adversários políticos. Assim, entre 1931 e 1938, foram presas por motivos políticos cerca de 10.000 pessoas, entre militares e civis de todos os credos políticos, o que dá

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uma média anual de cerca de 1.200 reclusos. Foram deportadas quase 650 pessoas, morreram mais de 70 (nas cadeias e em combate) e os feridos nas intentonas ultrapassaram as duas centenas.

Desse enorme número de presos, uma parte significativa foi deportada para as ilhas atlânticas (Açores, Madeira, Cabo Verde e S. Tomé), para as colónias africanas (Angola, Guiné e Moçambique) e para Timor, num total superior a seis centenas. A maioria dos deportados era constituída por militares. Há que considerar, ainda, as dezenas de exilados políticos no estrangeiro, sobretudo em França e em Espanha.

Neste último país, os reviralhistas portugueses estiveram particularmente ativos e souberam aproveitar as conjunturas favoráveis, mormente entre 1931 e 1934, quando a República espanhola, vendo com “maus olhos” a solidificação do Salazarismo, neste canto da Península Ibérica, ajudou conforme pôde os imigrados portugueses. É notório que, a partir de 1933, ano em que teve início o Estado Novo (com a aprovação da Constituição de 1933), o número de presos políticos se tenha avolumado. Em 1933, foram 330; em 1934, 306; em 1935, 1.021; em 1936, 2.748; em 1937, 3.153; em 1938, 1.535.

Tal facto fica a dever-se, essencialmente, à criação da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que se tornou demasiado eficaz no desmantelamento e aprisionamento dos elementos reviralhistas e na alteração do comportamento para com os deportados. Até 1933, era concedida aos presos políticos liberdade de movimentos no local de deportação, mas a partir de então essa liberdade mínima foi substituída por prisão efetiva nas cadeias da polícia, nas prisões políticas ou nos campos de concentração.

Um outro aspeto, que importa relevar, é o facto da maioria dos presos ser deportada sem julgamento. No período referido, foram várias centenas os reviralhistas presos nestas condições, no Tarrafal e em noutras prisões. O julgamento efetuado a posteriori condenou-os, geralmente, a penas bastante inferiores, em tempo de prisão, àquelas que já tinham efetivamente cumprido.

A partir de 1936, beneficiando da conjuntura favorável da Guerra Civil Espanhola, verificou-se o endurecimento da repressão, avolumaram-se os interrogatórios e torturas policiais (a polícia política portuguesa aperfeiçoou os seus métodos, por reciclagem profissional, junto das polícias políticas nazi e fascista) e pioraram as, já de si deficientes, condições de vida e assistência nas prisões (sobretudo no Tarrafal), o que explica os 21 mortos nas cadeias de 1936 a 1938.

Mas, apesar de tanto sofrimento, tanta perseguição, tanta dor, tantas torturas, a liberdade mantinha, contra tudo e contra todos, os seus mártires, que persistiram na luta até à vitória final.

Depois da 2.ª Guerra Mundial e até finais da década de 1950, os movimentos de maior atividade e visibilidade eram as conjunturas eleitorais para a Presidência da República, com destaque para as candidaturas de Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958). Norton de Matos reuniu à sua volta toda a oposição, prometendo a liberdade e a democracia, o reconhecimento dos direitos dos cidadãos, caso fosse eleito. Não o foi, porque desistiu do ato eleitoral ao verificar que o resultado oficial seria fraudulento. Humberto Delgado, o “general sem medo”, em 1958, também congregou na sua candidatura todos os movimentos oposicionistas ao regime. E, contra todos aqueles que

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o tentaram deter, apresentou-se ao ato eleitoral depois de uma campanha promissora, cheia de “banhos” de multidão. Mas, a verdade é que os resultados “oficiais” determinaram a sua derrota (o que o levou ao exílio e à morte) e o “Estado Novo” manteve-se mais 16 anos. A “oposição democrática” foi dando, pontualmente, sinais de vida, mas só a revolução democrática do 25 de Abril de 1974 devolveu a liberdade ao povo português.

Após a 2.ª Guerra Mundial, desencadeou-se uma nova vaga de descolonização a que Portugal foi alheio. A ONU reconheceu, entretanto, o direito à autodeterminação dos povos. Mas Portugal declarava que não tinha colónias, apenas “províncias ultramarinas”. O governo salazarista afirmava que o nosso país era um “Estado unitário, formado de províncias dispersas e constituído de raças diferentes”. No início da década de 1960, Portugal teve de enfrentar uma guerra contra os movimentos armados que se organizaram nas principais colónias portuguesas: Angola, Moçambique e Guiné. As hostilidades em Angola começaram em fevereiro de 1961, com o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola); mais tarde, dois novos movimentos surgiram: FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola); em 1963, iniciou-se a guerra na Guiné (contra os militares do PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde); e, em 1964, em Moçambique, contra a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Mais tarde, já depois da independência, surgiria a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) que se envolveu em guerra contra a FRELIMO. Mas o colonialismo português foi sempre veemente criticado nas instâncias internacionais. Com o afastamento de Salazar do poder, por incapacidade para se manter no cargo, surge a “Primavera Marcelista”. O novo chefe do governo, Marcelo Caetano, fez uma “renovação na continuidade”. Permitiu o regresso de algumas figuras da oposição, como Mário Soares e D. António Ferreira Gomes e a realização do Congresso da Oposição (em Aveiro). Foram implementadas algumas medidas liberais, fez-se a reforma da educação (com Veiga Simão, que aumentou o número de escolas), os trabalhadores rurais foram integrados na Caixa de Previdência, a Oposição Democrática pôde participar nas eleições de 1969, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) passou a designar-se DGS (Direção-Geral de Segurança), a “União Nacional” mudou o nome para ANP (Ação Nacional Popular) e a “censura” passou a designar-se como “exame prévio”.

A “Primavera Marcelista” rapidamente esmoreceu e acabou rejeitada. Formaram-se partidos de esquerda, jornalistas progressistas fundaram o Expresso em 1973 (que começou a denunciar as arbitrariedades da ditadura), os estudantes universitários protestavam, a guerra colonial era contestada até pela Igreja e as dificuldades económicas, agravadas pelo aumento do preço do petróleo, deixaram antever um futuro revolucionário.

A guerra colonial portuguesa, para além de dar uma imagem negativa de Portugal, significou um enorme esforço financeiro e humano. Cerca de 8 mil jovens, só contando os militares que combateram pelo exército português, morreram em combate e muitos mais ficaram feridos. A Igreja Católica dividiu-se: se, por um lado, a hierarquia se mostrava neutral, houve muitas figuras da Igreja que se manifestavam contra a continuação

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desta guerra, reconhecendo o direito à autodeterminação dos povos. Em setembro de 1973, a Guiné proclamou, unilateralmente, a sua independência. O agravamento da situação militar, o livro de Spínola Portugal e o Futuro e as vozes da oposição foram contribuindo para o aumento da contestação da sociedade civil e, sobretudo, entre os militares.

4.3. O 25 de Abril de 1974

Os acontecimentos revolucionários do dia 25 de Abril de 1974, que marcam o início da III República, fazem agora 50 anos.

As Forças Armadas saem à rua na madrugada de 25 de Abril e conseguem levar a cabo uma ação revolucionária que pôs fim ao regime político de ditadura que vigorava desde 1926.

A ação militar, sob coordenação do major Otelo Saraiva de Carvalho, teve início cerca das 23 horas do dia 24 de abril, com a transmissão pela rádio (RR) da canção “E Depois do Adeus” de Paulo de Carvalho. Era a primeira indicação aos envolvidos no processo de que as operações estavam a decorrer com normalidade. Às 0:20 do dia 25 de Abril era transmitida a canção “Grândola, Vila Morena” de José Afonso. Estava dado o sinal de que as unidades militares podiam avançar para a ocupação dos pontos considerados estratégicos para o sucesso do ato revolucionário, como as estações de rádio e da RTP, os aeroportos civis e militares, as principais instituições de direção político-militar, entre outros.

Com o fim da resistência do Regimento de Cavalaria 7, a única força que saiu em defesa do regime em confronto com o destacamento da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, comandado pelo capitão Salgueiro Maia, no Terreiro do Paço, e com a rendição pacífica de Marcello Caetano, que dignamente entregou o poder ao general Spínola, terminava, ao fim da tarde, o cerco ao quartel da GNR no Carmo e terminava, com êxito, a operação “fim do regime”. Entretanto, já o movimento militar era aclamado nas ruas pela população portuguesa, cansada da guerra e da ditadura, transformando os acontecimentos de Lisboa numa explosão social por todo o país, uma autêntica revolução nacional que, pelo seu carácter pacífico, ficou conhecida como a “Revolução dos Cravos”.

O triunfo da revolução instaurou o atual regime democrático. O “Movimento dos Capitães”, coordenado, como se viu, por Otelo Saraiva de Carvalho, forçou a deposição da ditadura que durava quase há meio século. O país passou a ser governado por uma Junta de Salvação Nacional que tomou medidas que extinguiram o Estado Novo. Foram destituídos os órgãos de poder (Governo, Presidente da República, Assembleia Nacional e Conselho de Estado), destruídas as estruturas repressivas (PIDE/DGS), extintas a censura, a Legião e Mocidade portuguesas, libertados os presos políticos e assumiu-se o compromisso de criar condições para realizar eleições livres e democráticas, no prazo de um ano. A guerra colonial chegou ao fim e criaram-se condições para negociar a independência das várias colónias portuguesas.

O poder político, proveniente da nova situação criada pela Revolução, evidenciou, desde o início, duas tendências antagónicas: de um lado, os que defendiam uma democra-

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cia direta e participada, do outro, uma solução federalista para o Estado e colónias e um regime presidencialista. Entretanto, o Movimento das Forças Armadas (MFA) e o Partido Comunista Português (PCP) andaram muito próximos, em alguns momentos revolucionários.

Mas, a pouco e pouco, evidenciaram-se divisões nas Forças Armadas, entre oficiais de esquerda e uma fação mais conservadora, próxima de António Spínola. Foram estes últimos que, no dia 11 de Março de 1975, intentaram um golpe de estado para eliminar o domínio dos oficiais de esquerda do MFA. Mas saíram derrotados, o general Spínola refugiou-se em Espanha, foi criado o Conselho da Revolução e seguiu-se uma política de nacionalizações. Foi o “Verão Quente” de 1975, com uma clara viragem à esquerda. Os militares do MFA promoveram campanhas de dinamização cultural no interior do país, explicando o significado da Revolução.

Instalou-se o poder popular com ocupação de fábricas, de latifúndios e de casas desabitadas. Partidos de esquerda e de direita entraram em conflito, tendo chegado a ser declarado o “estado de sítio” até que, a 25 de Novembro de 1975, na sequência do “Documento dos Nove”, as forças de esquerda foram neutralizadas, no seio do MFA, com a intervenção determinante do então tenente-coronel Ramalho Eanes, que seria eleito Presidente da República no ano seguinte.

Após o “25 de Abril”, a política económica do país alterou-se profundamente. Graças à luta sindical e à abertura do Governo, os trabalhadores portugueses conseguiram, entre 1974 e 1975, um aumento real dos salários de 20%. As principais alterações na vida económica consistiram numa política de nacionalizações (em abril de 1975, o governo nacionalizou a banca, os seguros e os transportes) e na reforma agrária que implicou uma nova distribuição das terras latifundiárias. Mas os resultados não foram os esperados, devido à fuga de capitais, ao regresso de centenas de milhares de pessoas (vindas das ex-colónias) e à desmobilização de milhares de soldados.

A Constituição de 1976, elaborada após o triunfo da revolução democrática, consagra os direitos fundamentais dos cidadãos e define a estrutura política, económica e social do país que se afirma democrático, unitário, pluripartidário e descentralizado. Os órgãos de poder passaram a ser os seguintes: Assembleia da República, Presidente da República, Conselho da Revolução, Governo e Tribunais. Nesta Constituição transparece uma tendência socializante e denota-se a importância da estrutura militar.

Nos anos de 1974 e 1975, Portugal reconheceu os movimentos nacionalistas que existiam nos seus territórios coloniais e levou a cabo o processo de descolonização que foi mais complexo em Angola, por aí existirem três movimentos de libertação.

Em termos internacionais, a “Revolução dos Cravos” foi seguida com muito interesse na Europa e no Mundo através da cobertura que dela fez a comunicação social, portuguesa e estrangeira. Causou alguma preocupação ao capitalismo internacional (numa 1.ª fase), mas depois do 25 de Novembro de 1975 tudo serenou. Reconhece-se alguma influência da revolução portuguesa nos acontecimentos democratizantes em Espanha (o rei Juan Carlos permite a legalização dos vários partidos políticos, a autonomia das regiões e a Constituição democrática é aprovada em 1978) e na Grécia (o poder é abandonado pelos militares e é restaurada a democracia). Também a independência das antigas colónias portuguesas trouxe algumas alterações à realidade económica e política da África austral.

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Desfeito definitivamente o Império, Portugal virou-se para a Europa, integrando a CEE (Comunidade Económica Europeia) em 1 de janeiro de 1986, com o duplo objetivo de consolidar a democracia portuguesa e de evitar a falência do modelo económico do Estado Novo, e para o Atlântico, criando a comunidade lusófona. A Europa comunitária foi-se alargando sucessivamente até chegar aos atuais 27 Estados-membros. Este alargamento obrigou a economia portuguesa a uma maior competitividade, sob pena de assistir à deslocalização de mais empresas e ao aumento do desemprego, e trouxe, concomitantemente, condições de progresso e desenvolvimento a todo o espaço nacional. Com o decorrer do tempo e das circunstâncias histórico-políticas (fim da guerra-fria e aproximação da organização política económica e ocidental por parte dos novos países de expressão portuguesa) houve uma natural aproximação com os países lusófonos. Afinal, a opção europeia não era incompatível com a atlântica, podiam ser complementares e até estimulantes para as economias europeia, africana e americana.

A lusofonia era uma nova identidade coletiva autónoma, em paridade e solidariedade com os novos países que tinham o português como língua oficial (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe e, mais tarde, Guiné Equatorial). A primeira plataforma comum a institucionalizar esta nova realidade foi os PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) a que se seguiu, em 17 de julho de 1996, a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) que acrescentou àqueles países mais três: Portugal, Brasil e Timor-Leste. A CPLP tem como órgãos: a Conferência de Chefes de Estado e do Governo, o Conselho de Ministros, o Comité de Concertação Permanente e o Secretariado Executivo (com sede em Lisboa). A CPLP rege-se pelos seguintes princípios: igualdade soberana dos Estados membros; não-ingerência nos assuntos internos de cada estado; respeito pela sua identidade nacional; reciprocidade de tratamento; primado da paz, da democracia, do estado de direito, dos direitos humanos e da justiça social; respeito pela sua integridade territorial; promoção do desenvolvimento; promoção da cooperação mutuamente vantajosa.

Os seus objetivos principais passam pela cooperação nos domínios linguístico, político, económico, diplomático, educativo e da saúde.

O Portugal da III República integra também o espaço ibero-americano ao fazer parte da OEI (Organização dos Estados Ibero-americanos), que tem objetivos de natureza cultural e social, mas visa também, e sobretudo, o incentivo ao comércio e aos investimentos entre a América Latina e a União Europeia.

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5. O MUNICÍPIO DE VALONGO NO PÓS-25 DE ABRIL

O 25 de Abril teve grande impacto no município de Valongo, como no resto do país, de norte a sul, da metrópole às ex-províncias ultramarinas, passando pelas ilhas atlânticas. Interessa-nos aqui, particularmente, o município de Valongo, pelo que adiante divulgaremos o nome dos cidadãos que detinham o poder municipal, aquando da Revolução, e daqueles que depois foram mandatados para as Comissões Administrativas e de Gestão e, sobretudo, das primeiras pessoas eleitas para os vários órgãos autárquicos, em 12 de dezembro de 1976.

Ainda antes disso, permitam-nos que apresentemos pequenas sínteses biográficas de homens que lutaram pela liberdade e pela democracia, antes da Revolução de Abril, um de Valongo, da área socialista, e outro de Ermesinde, da área social-democrata. Depois do 25 de Abril de 1974 ambos foram eleitos deputados constituintes. No primeiro caso, trata-se do Dr. António Macedo, que tem o seu nome numa artéria da cidade de Valongo (o seu nome também consta da toponímia de outros municípios, nomeadamente Porto, Gondomar, Matosinhos, Santo Tirso, Vila do Conde, Vila Franca de Xira, Lisboa, Amadora, Oeiras e Seixal) e no maior auditório da sede do concelho. António Cândido Miranda Macedo, de seu nome completo, nasceu em Valongo, no dia 29 de setembro de 1906 e faleceu no Porto no dia 9 de junho de 1989 com 82 anos. Foi um advogado e político português. Durante o seu percurso como estudante da Universidade de Coimbra, já no período da Ditadura Militar, iniciou-se na loja maçónica “A Revolta” de Coimbra (1930), exerceu as funções presidente do Centro Republicano Académico (1929-1930) e de secretário da direção da Associação Académica de Coimbra (1930), tendo participado em várias greves da Academia entre 1928 e 1931, altura em que viria a conhecer a situação de prisioneiro político. Depois de ter frequentado algumas disciplinas da Faculdade de Letras, concluiria a sua licenciatura em Direito no ano de 1931, passando a exercer a advocacia no Porto no ano seguinte. Ao longo da sua carreira de jurista, defendeu alguns opositores ao regime, como foi o caso, por exemplo, de Agostinho Neto. Chegou a exercer o cargo de Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (entre 1958 e 1974). A sua carreira de opositor ao regime, manifestou-se no seu envolvimento na criação do MUD (Movimento de Unidade Democrática) no Porto (1945), na candidatura do General Norton de Matos (1949) e na integração da comissão central da candidatura do general Humberto Delgado (1958). Foi candidato da oposição à Assembleia Nacional, pelo círculo do Porto, aos atos eleitorais de 1953, 1957, 1961 e 1964. Amigo de Mário Soares, adere à Ação Socialista Portuguesa em 1964 e em 1969 é candidato à Assembleia Nacional pela CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática). Neste mesmo ano, foi um dos destacados organizadores do II Congresso Republicano de Aveiro. Em 1973 foi um dos fundadores, na clandestinidade, do Partido Socialista e seu presidente até 1986 (no VI Congresso do PS, em junho de 1986, foi eleito presidente honorário do partido). Exerceu as funções de Deputado, primeiro como constituinte, e depois Deputado da Assembleia da República, eleito pelo PS, da I à V Legislatura. Em 25 de abril de 1981 foi agraciado com a grã-cruz da Ordem da Liberdade e a 8 de janeiro de 1988 com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

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No segundo caso, falamos do Eng.º Manuel Joaquim Moutinho. Nasceu no dia 12 de junho de 1942 no Hospital Santo António (Porto) e faleceu no dia 30 de julho de 2022 com 80 anos. Ermesindense de gema, serviu muitos corpos dirigentes de associações e coletividades ermesindenses de que são exemplo o Clube de Propaganda de Natação, o Centro Social de Ermesinde ou a Casa do Povo de Ermesinde onde, à data da sua morte, ainda exercia o cargo de Presidente da Assembleia Geral. A sua atividade político-partidária foi também proeminente. Aos 21 anos era dirigente do movimento estudantil “Prol Liberdade”, o que lhe custou 7 meses de prisão na PIDE, seguida de julgamento no Tribunal Plenário, tendo sido absolvido dos supostos “crimes” de que fora acusado pela polícia política do regime ditatorial. Logo a seguir ao “25 de Abril” foi fundador e o principal impulsionador do PPD (Partido Popular Democrático - atual Partido Social Democrata) no concelho de Valongo. Como militante do PPD/PSD desempenhou os seguintes cargos: Presidente da Comissão Política Concelhia da Secção de Valongo (1974-1986); Deputado à Assembleia Constituinte (1975-1976); membro da 1.ª Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Valongo, nomeada a seguir ao 25 de Abril (1974-1975); Deputado à Assembleia da República (1976-1979); Vereador da Câmara Municipal de Valongo (1976-1979 e 1983-1985) - foi então que propôs a alteração do dia de feriado municipal, que era a 17 de agosto, dia de S. Mamede, para o dia de S. João, 24 de junho, alteração que seria aprovada pela maioria da vereação; membro do Conselho Nacional do PSD (1977-1978); membro da Comissão Política Distrital (1979-1980); Presidente da Assembleia Municipal do Concelho de Valongo (1980-1982); membro da Assembleia Municipal do Concelho de Valongo. Por deliberação do Plenário da Assembleia da República, em 31 de março de 2016, então presidida por Eduardo Ferro Rodrigues, foi-lhe atribuído o título de “Deputado Honorário” pelos “relevantes serviços prestados na defesa da instituição parlamentar no exercício do seu mandato de Deputado à Assembleia Constituinte de 1975-76”.

Quando se deu a Revolução dos Cravos, há 50 anos, a Câmara de Valongo tinha a seguinte composição, desde 28 de fevereiro de 1972: Dr. José Ribeiro Pereira (Presidente), Eng. José Luís Pimentel Seara Cardoso (Vice-Presidente), Manuel Joaquim Ribeiro de Sousa Magalhães, Fernando Rodrigues de Oliveira, José Alves da Costa, José Jorge Viterbo Fernandes das Neves, Dr. Manuel dos Santos Carneiro, Joaquim de Sousa Martins Almeida (seria substituído ainda em 1972) e José Ferreira Fontes.

O Dr. José Ribeiro Pereira era natural de Ermesinde, tendo sido dirigente de diversas instituições e coletividades locais, nomeadamente do Centro Social de Ermesinde. Foi também diretor do jornal A Voz de Ermesinde. Exercia a sua atividade profissional no Porto, no Instituto do Vinho do Porto. Em termos políticos, foi presidente da Junta de Freguesia de Ermesinde (entre janeiro de 1955 e agosto de 1957), tendo sido, então, nomeado Vice-Presidente da Câmara Municipal de Valongo, cargo que exerceu de 5 de agosto de 1957 a 14 de agosto de 1969, em que foi distinguido com louvores pela competência, zelo e dedicação que demonstrou durante os doze anos de exercício do cargo. A 1 de fevereiro de 1972 foi nomeado Presidente, de que foi exonerado a seu pedido, no dia 14 de junho de 1974, sendo a Câmara dissolvida por portaria datada de 7 de outubro de 1974.

A nova Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Valongo (a primeira que ge-

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riu os destinos do município de Valongo depois do 25 de Abril de 1974), empossada em outubro de 1974, teve a seguinte composição: Prof. Manuel Borges Rodrigues Aresta (Presidente), Joaquim Moreira Pacheco (Vice-Presidente), António Gonçalves Pereira, Eng.º Manuel Augusto Braga Lino (pediu a exoneração), Eng.º Técnico Manuel Joaquim Moreira Moutinho (eleito para a Assembleia Constituinte em 25 de abril de 1975, foi substituído por Manuel Moreira Lamas, em 18 de julho de 1975), José Mário Alves da Rocha e João Moreira Dias.

O professor Manuel Borges Rodrigues Aresta era, com certeza, pessoa ligada ao movimento de opositores ao regime, pois era filho de Eugénio Aresta, um conhecido militar, filósofo e intelectual bem notado nos meios culturais portuenses e nacionais, que tinha combatido na 1.ª Grande Guerra e que havia apoiado a candidatura do General Norton de Matos, sendo vigiado e perseguido pela polícia política e pelo regime do Estado Novo por causa dos seus artigos e livros publicados.

Segundo a imprensa local e as atas da Junta de Freguesia de Ermesinde, o 25 de Abril de 1974 causou grande efervescência associativa e política na região. Na vila de Ermesinde, maior núcleo urbano do concelho, um grupo de pessoas que se identificava com o novo regime, terá pretendido, numa reunião realizada no dia 2 de maio de 1974, alterar as lideranças não só da respetiva Junta de Freguesia, como também das principais instituições e coletividades ermesindenses, designadamente, os Bombeiros Voluntários, a Casa do Povo, o Ermesinde Sport Clube e o Clube de Propaganda da Natação. Isto mesmo é referido na ata da primeira reunião que o executivo da Junta da Freguesia de Ermesinde realizou após o triunfo da revolução. Este órgão administrativo era presidido, há sete anos, por Joaquim Alves de Oliveira, que tomou a seguinte posição, conforme consta na ata da reunião de 4 de maio de 1974287:

1.º Apoiar incondicionalmente as Forças Armadas rendendo-lhe as suas homenagens, bem como à Junta de Salvação Nacional a quem se dirigem com todo o respeito e admiração; 2.º Não se podendo desafectar do facto de terem servido durante a vigência do anterior regime, pedem aceitem o que com toda a sinceridade expressam no n.º um; 3.º O facto de formarmos o corpo administrativo da Junta de Freguesia de Ermesinde é devido à proposta de paroquianos, que nos fizeram eleger e a nossa expressa vontade de servir o país nesta parcela do continente Português, pondo à consideração de Vossas Excelências, tanto as nossas personalidades, como as das pessoas que nos propuseram a sufrágio; 4.º O expresso no n.º três não é com o fim de nos ser tributada a continuidade das funções que vimos exercendo, pois muito bem aceitamos e concordamos em absoluto com uma completa remodelação geral de todos os corpos administrativos; 5.º Pedimos nos seja relevada a nossa discordância pelo que, numa reunião política, levada a efeito no passado dia 2, nesta Vila de Ermesinde, em que foi sugerida a “Tomada” da Junta de Freguesia, Bombeiros Voluntários de Ermesinde, Clube de Propaganda da Natação, Casa do Povo e Ermesinde Sport Clube, pois embora e como dissemos acima, estamos de absoluto acordo com uma remodelação geral de todos os corpos administrativos, achamos essa atitude penosa e leviana, o que denegride e desrespeita os bons e sábios intentos da Junta de Salvação Nacional; 6.º Apresentamos a nossa mágoa pelo quase “ultimatum” que nos foi dirigido, “ultimatum” esse deliberado aquando da reunião a que nos já referimos e

287 Cf. Livro de atas da Junta de Freguesia de Ermesinde, n.º 22, fls. 143v. e 144.

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cujo texto transcrevemos: “Ex.mo Snr. Presidente da Junta de Freguesia de Ermesinde / Um Grupo de Democratas de Ermesinde vem informar V. Ex.ª de que deliberou reunir no edifício da junta a que V.ª Ex.ª preside, no próximo dia sete do corrente pelas vinte e uma horas. Para tal fim, solicita a V.ª Ex.ª se digne ordenar para que o referido edifício esteja aberto a partir das vinte e trinta horas. Saudações Democráticas: - Pela Comissão: Fernando António Vaz de Faria Sampaio”. Uma vez que, anteriormente e de toda a boa vontade já tínhamos posto à disposição do referido grupo as instalações do edifício desta Junta. Renovamos as nossas saudações, o nosso incondicional apoio e a nossa admiração.

Há um apoio inequívoco, da parte da Junta de Freguesia de Ermesinde ao triunfante Movimento das Forças Armadas e à sua Junta de Salvação Nacional, mas, ao mesmo tempo, manifesta-se alguma mágoa pela forma como a Comissão de um grupo de democráticos de Ermesinde terá pretendido controlar, desde logo, a autarquia e algumas das instituições mais importantes da vila.

Quanto ao jornal A Voz de Ermesinde, dirigido por Eduardo da Costa Gaspar, na primeira edição a seguir ao 25 de Abril, com a data de maio de 1974, o próprio diretor escreve, nas primeira e última páginas, o texto que a seguir se transcreve:

O MOMENTO HISTÓRICO QUE ATRAVESSAMOS

Todo o país está a passar por um momento de esperança num futuro desanuviado, e, porque Ermesinde é parte de Portugal, também no nosso ambiente se vive intensamente esse clima de euforia. É por isso que “A VOZ DE ERMESINDE” no seu objectivo de pugnar pelo progresso de Ermesinde apela junto dos seus assinantes e leitores para, de mãos dadas, trabalharmos por um Portugal melhor, e, no nosso cantinho, por um Ermesinde renovado. Em dezembro de 1972, afirmámos nas colunas deste jornal que “A VOZ DE ERMESINDE” como órgão do Centro de Assistência Social, não é um jornal político, mas sim, da defesa dos interesses regionais e da protecção dos menos favorecidos. Este foi e será o lema que nos animou e anima para darmos ao Jornal toda a colaboração ao nosso alcance. Agora, mais do que nunca, Ermesinde precisa do seu Jornal; o facto de já não haver censura coloca-nos num campo mais responsável. A frase não é nossa mas apoiamo-la inteiramente: “trabalhemos com o máximo de liberdade, mas com o máximo de responsabilidade”. Em vários escritos meus aparecia a frase “A UNIÃO FAZ

A FORÇA”; agora, nessa mesma linha de pensamento, mas parafraseando uma mais moderna expressão do povo, eu direi: “ERMESINDENSES UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS”. Embora possa supor-se que só aos eleitos compete trabalhar por um Portugal novo, aqui deixamos a expressão do nosso sentir, para depois apresentarmos uma conclusão:

A política terá que ser moral, mas não é apenas isso, ela é uma arte que tem como objectivo o bem comum numa sociedade. A colaboração que todos poderemos dar, terá que estar na linha de respeito e promoção dos direitos e deveres da pessoa humana. Tal promoção Social está enquadrada nos seguintes princípios: No respeito pelos pobres; Na defesa dos fracos; Na protecção aos estrangeiros; Na desconfiança perante as riquezas; Na condenação do domínio pelo dinheiro; Na destruição dos poderes totalitários; Este é o lema que anima a equipa que trabalha graciosamente no Centro de Assistência Social; pede-se aos mais favorecidos para ajudarem os menos favorecidos, amparando os pobres e defendendo os fracos. O momento tem que ser de ordem, de trabalho, de respeito mútuo. Todos colaboremos com o GOVERNO DA NAÇAO se começarmos por exigir de

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nós próprios o BOM SENSO. Bom senso. Nas reivindicações - não pedirmos o impossível; bom senso nas afirmações - não fomentarmos os boatos que a ninguém convém nem trazem quaisquer vantagens; bom senso nas acções - não alimentando discórdias, mas trabalhando sempre e cada vez mais por um Portugal melhor.

E, na última página d’A Voz de Ermesinde, neste número de maio de 1974, quase como legenda de uma foto que enche, praticamente, toda a página com a Avenida dos Aliados (Porto) completamente cheia de apoiantes da Revolução, escreve-se:

A VOZ DE ERMESINDE, nesta hora gloriosa e altamente expressiva, escrita em letras de oiro pelo Movimento das Forças Armadas, julga interpretar o verdadeiro sentir do povo português que, subjugado a um regime político já ultrapassado, vê surgir, finalmente, perspectivas de um futuro mais risonho, igual a um passado longínquo em que os factos gloriosos evocam e estão indissoluvelmente ligados a nomes de Homens que, servindo com nobreza e patriotismo a terra que foi berço de Camões, a Pátria Lusitana, servindo-A, nunca Dela se serviram.

No dia 25 de janeiro de 1975, finalmente, era nomeada uma nova Comissão Administrativa para a Junta de Freguesia de Ermesinde com a seguinte constituição: Joaquim Fernandes Teixeira (Presidente), Carlos Manuel Teixeira Matos de Carvalho (Secretário) e José Dias Fernandes (Tesoureiro).

Joaquim Fernandes Teixeira era uma destacada figura de Ermesinde, onde nasceu no dia 12 de junho de 1931, tendo falecido na mesma localidade no dia 11 de dezembro de 2000, com 69 anos. Como presidente da Comissão Administrativa da Junta da Freguesia de Ermesinde, no pós-25 de Abril, reuniu com a população da freguesia, na Casa do Povo, que lhe apresentou várias reivindicações (a que deu o necessário encaminhamento), entre as quais se destacam a necessidade de melhores transportes para o Porto, de consultas domiciliárias noturnas em Ermesinde, da construção de edifícios próprios para instalar o Ciclo Preparatório e a Escola Industrial e Comercial de Ermesinde e da melhoria das ruas e estradas. Joaquim Fernandes Teixeira foi ainda eleito para a Assembleia de Freguesia e para a Assembleia Municipal. No campo do associativismo, teve também grande notoriedade, sobretudo como vice-presidente da Direção do Centro Social de Ermesinde (9 anos) e presidente da mesma Direção (6 anos). Integrou também os corpos gerentes de outras Instituições e Coletividades ermesindenses, como é o caso dos Bombeiros Voluntários de Ermesinde, do Ermesinde Sport Clube, do Clube de Propaganda da Natação, do Rotary Clube de Ermesinde, do Grupo Columbófilo Ermesinde e Lidador da Maia, tendo sido fundador do Clube de Ténis de Ermesinde, de Os Amigos de Ermesinde e da Associação Académica e Cultural de Ermesinde. Foi homenageado pela Câmara Municipal de Valongo, com a atribuição da Medalha de Mérito, grau ouro, de acordo com a sua deliberação de 24 de outubro de 1994. A entrega da merecida medalha, ocorreu numa sessão solene, presidida pelo Dr. Fernando Melo, que teve lugar no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Valongo, no dia 1 de dezembro de 1994.

Fiquemos agora com os resultados eleitorais das primeiras eleições verdadeiramente democráticas que ocorreram em Portugal, no primeiro aniversário da Revolução de

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Abril, para a Assembleia Constituinte. Foram ganhas pelo Partido Socialista (37,87% dos votos e 116 deputados eleitos, um natural do concelho de Valongo - Dr. António Macedo), seguindo-se o Partido Popular Democrático (26,39% dos votos e 81 deputados eleitos, um natural de Ermesinde, concelho de Valongo - Eng.º Manuel Joaquim Moutinho), o Partido Comunista Português (12,46% dos votos e 30 deputados eleitos), o Centro Democrático Social (7,61% dos votos e 16 deputados eleitos), o Movimento Democrático Português (4,14% dos votos e 5 deputados eleitos). Os outros partidos que elegeram deputados constituintes foram a União Democrática Popular (com 0,79% dos votos e 1 deputado eleito) e a Associação para a Defesa dos Interesses de Macau (com 0,03% dos votos e 1 deputado eleito).

Resultado das Eleições para a Constituinte no município de Valongo (25 de Abril de 1975)

Gráfico 3

No concelho de Valongo, as primeiras eleições após o 25 de Abril ditaram o resultado que se apresenta no Gráfico 3, indicando-se de seguida o nome dos partidos por ordem decrescente dos votos obtidos neste município e, dentro de parêntesis, os dirigentes nacionais desses partidos na altura, nos casos em que o seu nome é conhecido: Partido Socialista (Mário Soares), Partido Popular Democrático (Francisco Sá Carneiro), Centro Democrático Social (Freitas do Amaral), Partido Comunista Português (Álvaro Cunhal), Movimento Democrático Português (José Manuel Tengarrinha), União Democrática Popular (João Pulido Valente), Movimento de Esquerda Socialista (Afonso de Barros), Frente Socialista Popular (Manuel Serra), Frente Eleitoral dos Comunistas, Partido Popular Monárquico (Gonçalo Ribeiro Teles) e Partido de Unidade Popular.

Vejamos, agora, quem foram os primeiros eleitos nas eleições autárquicas de 12 de dezembro de 1976, no município de Valongo, para a Câmara Municipal, para a Assembleia Municipal e para as Assembleias de Freguesia de Alfena, Campo, Ermesinde, Sobrado e Valongo.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias
14656 7950 2085 1937 430 323 244 185 145 144 85 28326 0 5000 10000 15000 20000 25000 30000 PS PPD CDS PCP MDP UDP MES FSP FEC PPM PUP Total
Nº de Votos

Resultados das primeiras Eleições Autárquicas para a Câmara de Valongo (12 de dezembro de 1976)

Gráfico 4

Neste primeiro ato eleitoral para a Câmara Municipal de Valongo, após a Revolução de Abril, votaram 22.795 eleitores (68,99%) dos 33.042 inscritos nos cadernos eleitorais, pelo que a abstenção correspondeu a 31,01%. Conforme se pode ver no Gráfico 4, a vitória coube ao Partido Socialista com 9.232 votos (40,5%), elegendo o Presidente da Câmara e mais dois vereadores, em segundo lugar ficou o Partido Social Democrata com 6324 votos (27,74%), que elegeu 2 vereadores, o terceiro partido mais votado foi o Centro Democrático Social com 3359 votos (com 14,74%), elegendo um vereador, depois a Frente Eleitoral Povo Unido que teve 3106 votos (13,63%), elegendo também um vereador.

Assim sendo, a primeira Câmara Municipal de Valongo eleita após a aprovação da Constituição de 1976, teve a seguinte composição (a posse foi conferida no dia 7 de janeiro de 1977): Presidente: Dr. João Moreira Dias (Valongo); Vereador: Eng.º Tec. Manuel Joaquim Moreira Moutinho (Ermesinde); Vereador: Prof. António Ferreira dos Santos (Ermesinde); Vereador: Dr. António Ferreira dos Santos (Ermesinde); Vereador: Álvaro de Sousa Ribeiro (Valongo); Vereador: Fernando Martins Ferreira Neves (Alfena); Vereador: Dr. Fernando António Vaz de Faria Sampaio (Ermesinde). É notória, mais uma vez, a proeminência da freguesia de Ermesinde, que tem 4 dos 7 elementos do executivo da Câmara Municipal, cabendo 2 a Valongo e 1 a Alfena.

Recordemos, em breve síntese, a personalidade de João Moreira Dias, primeiro presidente da Câmara Municipal de Valongo, eleito depois do 25 de Abril de 1974. Era natural de Valongo, onde nasceu em 1944. Faleceu a 18 de março de 2013. Em termos políticos, foi nomeado vogal da Comissão Administrativa de Valongo, a 7 de outubro de 1974 e, a 22 de dezembro de 1975, vice-presidente da mesma comissão. No dia 15 de outubro de 1976 assumiu a presidência da Comissão de Gestão até 12 de novembro de 1976, data em assumiu a presidência da Comissão Administrativa. Nesse cargo se man-

RE_PENSAR A DEMOCRACIA 153 9232 6324 3359 3106 433 341 22795 10247 0 5000 10000 15000 20000 25000 PS PSD CDS FEPU Brancos Nulos Votantes Abstenção

teve até às primeiras eleições autárquicas (12-12-1976), quando foi eleito Presidente da Câmara de Valongo pelas listas do Partido Socialista. Nessa altura, já licenciado em História, era professor do ensino secundário. Exerceu o cargo de presidente da Câmara até 16-12-1979, cumprindo um primeiro mandato. Nas eleições de 12 de dezembro de 1982 foi reeleito pelo PS e exerceu o cargo de presidente da Câmara de Valongo até 12 de dezembro de 1993, cumprindo mais três mandatos. Também foi eleito deputado municipal. Na reunião da Câmara de Valongo, no dia 21-3-2013, sob a presidência de Dr. João Paulo Rodrigues Baltazar foi aprovado um voto de pesar pelo seu falecimento e decretado um dia de luto municipal. A Câmara Municipal de Valongo, na presidência do Dr. José Manuel Ribeiro, atual Edil, distinguiu algumas personalidades, no âmbito do 183.º aniversário do município, no dia 29 de novembro de 2019, uma delas foi precisamente o Dr. João Moreira Dias, a título póstumo, com a atribuição da Medalha de Honra (que foi entregue à viúva, Eduarda Dias).

A primeira Assembleia Municipal de Valongo, eleita em 12 de dezembro de 1976, era constituída pelos seguintes elementos: Renato Alberto de Miranda de Sousa Chaves, José Avelino Abreu Aguiar, Francisco João Vieira Dias de Carvalho, Jaime da Silva Vale, José Macedo de Sousa Paupério, António Pinto Caetano, Manuel Augusto Braga Lino, Belmiro Moreira, Ildefonso Mário da Silva Ferreira, Manuel Joaquim Martins Coelho dos Santos, Ilídio Fernando do Nascimento Correia, José Dias Fernandes, Carlos Manuel da Silva Lopes da Silva, António Fernandes Monteiro, António Borges Pinto Teixeira Júnior, Alberto da Silva Gonçalves.

Divulgamos, por fim, a composição das primeiras Assembleias de Freguesia do município de Valongo (Alfena, Campo, Ermesinde, Sobrado e Valongo), eleitas em 12 de dezembro de 1976.

Alfena: Marílio Moreira Cardoso, José Moreira Marques, Adolfo da Conceição Santos, Manuel Augusto Ferreira da Mota, Alcindo dos Santos Pereira, Jacinto Azevedo Maia, Alberto da Rocha Lopes, Alvarinho Leal Ramos, António Moreira de Sousa e Américo Viaje Lima.

Campo: António Joaquim Tomé Rebelo, Joaquim Pinheiro Faria, António Augusto de Melo Guimarães, Domingos da Silva Dias, Manuel Martins da Rocha, Timóteo Jorge Moreira, José Pedro Dias Moreira, Luís Ferreira Martins e Arlindo Rebelo Guimarães.

Ermesinde: Alberto de Oliveira Ramalho, António Gabriel Antunes Seisdedos, Fernando Correia Piçarra, Fernando de Oliveira Machado, António José da Purificação Barbosa Horta, Adérito Ferreira de Moura, António Rodrigues Alves Serdoura, Manuel Correia Simões, Maria de Fátima da Costa Magalhães Loureiro Dias, Carlos Agostinho de Azevedo Almeida, Joaquim Fernando Ferreira dos Santos, Rui do Nascimento Teixeira Gonçalves e Albino Fernando Moutinho Alves Ascensão.

Sobrado: José Ferreira Marujo, José Pereira da Silva Bessa, Domingos da Costa Pereira, José Dias Pinto, José Carvalho Ferreira Marujo, António Costa Dias, Diamantino Carneiro Dias, Fernando Santos Abreu e José Moreira Martins.

Valongo: João Lino Marques Ferreira, Joaquim Augusto Castro Paupério, Ricardo Ferreira de Sousa Adão, António Augusto Castro Paupério, David Oliveira Campos, João António de Castro Paiva Queiroz, Francelino de Oliveira Ferreira, António Alves do Vale, António Ventura Teixeira do Vale, Albino da Silva Martins Poças e António Fernando Alves de Almeida.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

6. DEMOCRACIA E CIDADANIA

6.1. O papel do cidadão na ideia de democracia

Segundo Georg Hegel (1770-1831)288, o Estado é em si uma abstração, a sua realidade reside apenas na dos cidadãos, mas existe realmente e a sua existência deve concretizar-se na vontade e na atividade individuais e é primeiro por meio da constituição que a abstração do Estado ganha vida e realidade, mas ao mesmo tempo também aparece a distinção entre aqueles que comandam e aqueles que obedecem e a obediência não parece estar de acordo com a liberdade, porque os que comandam parecem fazer o contrário do que corresponde ao fundamento do Estado, ao conceito de liberdade289. Antes de Hegel, na primeira metade do século XVII, René Descartes (1596-1650)290 , defendia como princípio (“regra”) a moderação de opinião e a sensatez. Não é o fundador do racionalismo moderno que aqui observamos, mas o idealista que defende que os conceitos e ideias só existem na realidade da mente e que a dúvida (“metódica”) mesmo assim deve prevalecer. Desta espécie de teoria do “consenso” e do “bom senso” é a sua frase: “E mesmo que pudesse haver homens mais sensatos entre os Persas e os Chineses que entre nós, parecia-me que era mais útil regular-me por aqueles com quem teria que viver; e para saber quais eram verdadeiramente as suas opiniões, devia notar mais o que praticavam do que o que diziam, não somente porque, na corrupção dos nossos costumes, há poucos que queiram dizer tudo o que pensam, e também porque muitos o ignoram”291

Em qualquer forma de governo há sempre um conflito entre a liberdade do cidadão e a autoridade do poder, independentemente dos sistemas políticos em vigor. Para Adriano Moreira (1922-2022)292, a luta entre a democracia formal (política) e a democracia da vida privada (igualdade económica) vai multiplicar as correntes, ideologias e filosofias que sacrificam a participação de todos no aparelho político em favor de um aparelho do Poder que imponha a revolução da vida privada293. Segundo Karel Kosík

288 Filósofo alemão, uma das grandes referências do idealismo alemão e autor da obra Fenomenologia do Espírito (1807).

289 HEGEL, Georg Friedrich (1822) – La Raison dans l’ Histoire. Introduction à la Philosophie de l’ Histoire, tradução, introdução e notas de Kostas Papaioannou para a edição em língua francesa de 1971. Paris: Editions 10│18, pp. 165-166.

290 Filósofo e matemático francês da primeira metade do século XVII, autor de Discurso sobre o Método

291 DESCARTES, René (1637) – O Discurso do Método, introdução, versão e notas de Manuel dos Santos Alves para a 2.ª edição em língua portuguesa de 1990. Lisboa: Universitária

Editora, p. 52.

292 Político e professor de Ciências Políticas e Relações Internacionais, foi Ministro do Ultramar no Estado Novo.

293 MOREIRA, Adriano (2014) – Ciência Política, 6.ª edição. Coimbra: Edições Almedina, p. 33.

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(1926-2003)294, a realidade pode ser mudada de modo “revolucionário” só porque e só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade, realidade em que as coisas, as relações e os significados são considerados como “produtos” do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social295. Em Kosík a superestrutura (arte, ciência, democracia) não é um mero reflexo das condições materiais de existência (determinismo), mas ela própria transformadora da realidade (materialismo dialético) e, extrapolando para o conceito de democracia, percecionamos na sua teoria a participação do cidadão enquanto força motriz geradora de uma nova “realidade” democrática, em que os representados e os representantes não se dicotomizam, mas antes interagem como parceiros “construtores” da nova realidade social.

O indivíduo em sociedade, querendo ou não, acaba por participar da vida pública mesmo que o seu posicionamento seja o da não participação nas decisões que envolvam o interesse público. A política está assim ligada à conjugação de ações e interações, individuais e grupais, na prossecução de objetivos comuns.

Os ideais da democracia moderna inspiraram-se no iluminismo que assinalou o início da era moderna do pensamento, que da Europa passou para o resto do mundo. A razão e os direitos do indivíduo são os seus princípios basilares, que na política permitiram a viragem para a democracia e o enfraquecimento dos modelos opressivos de governo na prossecução de uma sociedade moderna e democrática assente na noção de Estado de direito, em que todos os seus membros devem ser governados pelas mesmas leis, sem estar sujeitos ao livre arbítrio de quem exerce o poder, e em que nenhum cidadão está acima da lei, mesmo aqueles que as fazem e zelam pelo seu cumprimento.

6.2. Liberdade e igualdade na democracia política

No prefácio do seu livro O Medo da Liberdade, Erich Fromm (1900-1980)296 alerta para o facto de o homem moderno não ter ganho a liberdade no sentido positivo da realização do seu eu individual, ou seja, da expressão das suas potencialidades intelectuais, emocionais e sensoriais, e as alternativas com que se depara são escapar do peso da sua liberdade para novas dependências e para a submissão, ou avançar para a realização plena da liberdade positiva que se baseia na singularidade e individualidade do homem297. Na verdade, se a humanidade não souber lidar com o peso da liberdade, com os seus riscos e responsabilidades, acabará por se submeter ao primeiro autoritarismo que lhe apareça pela frente.

Alexis de Tocqueville destacou que o avanço da igualdade ameaçava a liberdade e que

294 Filósofo neomarxista de origem tcheca, discípulo de Georg Lukács.

295 KOSÍK, Karel (1963) – Dialéctica do Concreto, tradução de Célia Alves e Alderico Toríbio, 1995. São Paulo: Editora Paz e Terra, p. 22.

296 Psicanalista, sociólogo e filósofo alemão, de ascendência judaica, autor de Espírito da Liberdade (1970). Após emigrar para os Estados Unidos em 1933, estabeleceu-se como psiquiatra e foi professor na Universidade de Nova Iorque.

297 FROMM, Eric (1941) – Prefácio de O Medo da Liberdade, tradução de Pedro Elói Duarte para a edição em língua portuguesa de 2023. Lisboa: Edições 70, p. 12.

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Dias
Carlos Magalhães e Manuel Augusto

a democracia continha em si o perigo de converter-se em despotismo (“tirania democrática”, nas suas palavras), ou seja, no abuso do poder sobre as minorias. Por isso, ainda hoje é vulgo dizer-se que a democracia é a ditadura da maioria. “Afinal o que é uma maioria tomada coletivamente, senão um indivíduo que tem opiniões e, na maioria dos casos, interesses contrários a outro indivíduo, denominado minoria? Ora, se você admitir que um homem investido da onipotência pode abusar dela contra seus adversários, por que não admite a mesma coisa para uma maioria?”298 .

A igualdade, como valor absoluto, faz transcender a narrativa de os cidadãos em a narrativa de uma população, com os perigos que daí advêm. Para Roland Barthes (19151980)299, a palavra «população» é “encarregada de despolitizar a pluralidade dos grupos e das minorias, atirando os indivíduos para uma colecção neutra, passiva”300. Mas já no final do século XIX, Paul von Lilienfeld escrevia que a igualdade perante a soberania do poder central contrabalança a multiplicidade das relações hierárquicas na esfera política, e que a igualdade perante a lei é o contrapeso da multiplicidade das relações na esfera jurídica301.

Para o português Domingos Monteiro (1903-1980)302, “a igualdade democrática consiste […] no conjunto de possibilidades que a todos devem ser concedidas igualmente, para realizarem fins idênticos de progresso e de melhoramento”303. Também é este autor que, em outro trabalho, enfatiza a procura da igualdade (a igualdade civil que precede a igualdade política):

A igualização biológica, psicológica e mental dos homens é manifestamente impossível e nenhuma doutrina se poderia basear sobre ela. A igualdade procurada é […] uma igualdade exterior aos homens considerados em si mesmos – a igualdade que os coloca a todos, não obstante as suas diferenças, em condições idênticas. Trata-se, pois, da igualdade perante a lei, ou igualdade civil, que se traduz, pelo menos teoricamente, em lhes proporcionar os mesmos elementos de recurso, defesa e protecção legal.304

Confrontando o idealismo jurídico burguês com uma análise marxista da ideia de direito, Jean-Pierre Lassale (1933-2002)305 escreve que o pensamento político ocidental

298 TOCQUEVILLE, Alexis de (1835) – Op. cit., pp. 294-295.

299 Escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês do século XX, foi professor no Collège de France e diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales.

300 BARTHES, Roland (1957) – Mitologias, prefácio e tradução de José Augusto Seabra para a edição em língua portuguesa de 1988. Lisboa: edições 70, pp. 129-130.

301 LILIENFELD, Paul de (1896) – Op. cit., p. 195.

302 Advogado e escritor do século XX, integrou o movimento da “Renovação Democrática” que eclodiu em 1932 como oposição à ditadura militar de Óscar Carmona.

303 MONTEIRO, Domingos (1933) – A Crise de Idealismo na Arte e na Vida Social, in Cadernos de Cultura Democratista. Lisboa: [S. n.], p. 37.

304 IDEM (1951) – O Livro de Todos os Tempos. História da Civilização, III volume. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, p. 435.

305 Universitário francês do século XX, foi professor de Ciência Política na Faculdade de Di-

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias tendeu sempre a considerar os direitos do homem como direitos naturais, que escapam à ação do Estado, como na filosofia da Declaração de 1789, mas que significam os direitos individuais numa sociedade que, pela sua própria natureza, não pode garantir a todos a fruição efetiva desses mesmos direitos?306.

Tocqueville, de quem já falámos, associa o liberalismo à liberdade e a democracia à igualdade. A democracia liberal, por conseguinte, procura conciliar o princípio da liberdade com o da igualdade, mas nem sempre esta relação é pacífica.

Para Giovanni Sartori (1924-2017)307, o liberalismo não significa unicamente liberdade e a democracia unicamente igualdade, mas o desejo de liberdade e o desejo de igualdade expressam sentidos e objetivos diferentes da vida, o liberal anseia a inovação individual e o democrata a integração social, o liberalismo apoia-se no indivíduo e a democracia na sociedade308.

Como escreveu Aldous Huxley (1894-1963)309: “No caso da teoria da democracia, as assunções originais são estas: que a razão é a mesma e inteira em todos os Homens, e que todos os Homens são naturalmente iguais.”310

Este sentido da igualdade, como princípio inquestionável, foi desenvolvido no século XVIII, mas remonta à doutrina metafísica de Aristóteles que, como já vimos, não era propriamente um democrata. Os pensadores políticos daquele século, no entanto, não necessitavam de socorrer-se do filósofo grego, porquanto tinham bem mais próximo no tempo, por exemplo, René Descartes que escreveu, “o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens.”311

A “igualdade” entre os homens, do ponto de vista da “eunomia”, no sentido da boa ordem e do governo justo da polis que lhe dava Sólon312, é, desde há séculos, um princípio básico da convivência humana e, em particular, da boa governança. Sólon contrapunha a eunomia à “disnomia”, a lei e a ordem à discórdia e à ilegalidade.

reito e Ciências Económicas e mestre de conferências no Instituto de Estudos Políticos, da Universidade de Lyon.

306 LASSALE, Jean-Pierre (1969) – Introdução à Política, tradução de Alice Nicolau e António Pescada para a edição em língua portuguesa de 1974. Lisboa: Publicações Don Quixote, pp. 105-106.

307 Cientista político e universitário italiano, que fundou a Rivista Italiana di Scienza Politica em 1971 e é autor da obra Teoria da democracia revisitada (1987).

308 SARTORI, Giovanni (1993) – Qué es la democracia?, tradução de Miguel Ángel González Rodríguez para a edição em língua espanhola de 1993. México DF: Editorial Patria, pp. 204-205.

309 Escritor humanista e pacifista inglês do século XX, autor do romance Admirável Mundo Novo (1932).

310 HUXLEY, Aldous (1927) – Sobre a Democracia e outros estudos, tradução de Luís Vianna de Sousa Ribeiro para a edição em língua portuguesa [S. d.]. Lisboa: Livros do Brasil, p. 34.

311 DESCARTES, René (1637) – Op. cit., p. 24.

312 Filósofo, político e poeta ateniense, considerado como um dos sete sábios da Grécia antiga, é autor da elegia Eunomia

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Decorreriam vários séculos até que os direitos humanos, como a igualdade perante a lei e a justiça, para além dos chamados direitos naturais, como o direito à vida e à sociabilidade, ou os direitos fundamentais consagrados constitucionalmente, como o direito à liberdade de imprensa e à liberdade religiosa, sejam consagrados no plano normativo. A propósito de liberdade religiosa, o inglês John Locke, quando se encontrava em Amsterdão como refugiado político, escreveu uma curiosa Epístola em que advoga o direito soberano de cada indivíduo pensar livremente em matéria de religião. “Todo o poder do Estado só diz respeito aos bens civis, e se restringe ao cuidado das coisas do mundo”313 Neste mesmo texto, também traduzido como a primeira Carta sobre a Tolerância, Locke chama bens civis à vida, à liberdade, à integridade do corpo e à propriedade de bens materiais314. Na sua linha de pensamento, o homem nasceu, por natureza, capaz de liberdade, só é um homem completo se for um homem livre, e a fortiori nenhum homem deve renunciar à sua liberdade.

No final da Idade Moderna são os colonos do novo mundo, em rotura com o imperialismo britânico, que dão os primeiros passos nesse sentido, com a declaração de direitos pelos habitantes de Virgínia reunidos em Williamsburg a 1 de junho de 1776, em cujo artigo primeiro se proclama que todos os homens nascem igualmente livres e independentes e dotados de direitos naturais como a vida, a liberdade e a aquisição e posse de bens, e nos artigos seguintes que a autoridade pertence e emana do povo, que os governos são instituídos para o bem deste, devendo separar-se os poderes e evitar-se a longa permanência no exercício do poder, e que as eleições são livres.

Este movimento dos cidadãos de Virgínia alastrou rapidamente no seio das comunidades dos colonos norte-americanos e no início de julho de 1776, no III.º Congresso Continental de Filadélfia, é declarada a independência dos Estados confederados, que, como já vimos, só é reconhecida pela Inglaterra em 1783 no Tratado de Paris. Um dos pressupostos, para além da questão da soberania, é a salvaguarda dos direitos inalienáveis, como a vida e a liberdade.

O libelo da revolução americana ecoa em França, na declaração de agosto aprovada pela Constituinte em 1789, incorporada na Constituição francesa de 1791. Esta Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão replica alguns dos direitos inalienáveis já consagrados na declaração de Virgínia, tais como a igualdade perante a lei, o direito à propriedade, bem como a liberdade de opinião e a separação dos poderes. O postulado da liberdade é confinado pela teoria da “vontade geral” de Rousseau, de que a lei é a expressão pragmática. Nas antípodas da lei estão o impedimento da colisão da liberdade individual com a liberdade dos outros e a proibição do que apenas for nocivo à sociedade. Às consecutivas revisões constitucionais francesas corresponderam novas redações de bills of rights.

Segundo Sottomayor Cardia (1941-2006)315, o princípio de uma declaração de direitos,

313 LOCKE, John (1685-86) – Carta sobre a Tolerância, tradução de João da Silva Gama e revisão de Artur Morão para a edição em língua portuguesa de 1996. Lisboa: Edições 70, p. 94.

314 Ibidem, p. 92.

315 Jornalista, professor universitário e político português, foi deputado na AR entre 1976 e

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representando fundamentalmente uma vitória das ideias democráticas, esteve inevitavelmente exposto às oscilações da conjuntura política, em que o modelo constitucional francês irradiou no século XIX em quase toda a Europa e na América latina, à medida que os movimentos liberais e democráticos conseguiram prevalecer sobre as estruturas do Antigo Regime316.

Também é certo que a declaração de 1789 reflete as aspirações políticas de uma burguesia que combate a hereditariedade aristocrática através da afirmação do ideal democrático da liberdade política e do princípio da igualdade jurídica, mas sem se ocupar das desigualdades sociais que resultam do direito de propriedade e da acumulação da riqueza em certos estratos sociais.

Poucos foram os “revolucionários” que levaram esta questão a sério, como os jacobinos Jean-Paul Marat e Maximilien Robespierre o fizeram nos seus discursos inflamados, sobretudo nos anos de 1972 e de 1973. No discurso proferido em 24 de abril de 1793 perante a Convenção Nacional, Robespierre (1758-1794)317 afirmou:

Ao definir a liberdade, o primeiro dos bens do homem, o mais sagrado dos direitos que ele tem da natureza, dissestes com razão que ela era limitada pelos direitos dos outros, mas por que não aplicaram este princípio à propriedade, que é uma instituição social? Como se as leis eternas da natureza fossem menos invioláveis que as convenções dos homens. Multiplicastes os artigos para garantir a maior liberdade no exercício da propriedade e não dissestes uma única palavra para determinar o seu carácter legítimo, para que a vossa declaração pareça feita, não para os homens, mas para os ricos, para os acumuladores, para os agiotas e para os tiranos.318 (tradução livre dos autores)

Durante os primeiros meses da segunda guerra mundial, o prolífico escritor H. G. Wells (1866-1946)319 publicou o seu próprio ensaio320 sobre os direitos humanos, que terá constituído uma espécie de antevisão da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada e proclamada a 10 de dezembro de 1948 em Paris, com base no projeto submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas por René Cassin (18871976)321. A DUDH foi, entretanto, completada pelos Pactos Internacionais dos Direitos

1991 e Ministro da Educação no I e II governos constitucionais.

316 CARDIA, Mário Sottomayor (1968) – introdução de Os Direitos Humanos. Documentos da Organização das Nações Unidas. Lisboa: Empresa de Publicidade Seara Nova, p. 14.

317 Advogado e político francês, foi uma das personalidades mais importantes da Revolução Francesa; eleito deputado do Terceiro Estado aos Estados Gerais de 1789, defendeu a abolição da pena de morte e da escravatura, o direito de voto para pessoas de cor e judeus, bem como o sufrágio universal contra o sufrágio censitário.

318 VELLAY, Charles (1908) – introdução e notas de L´Élite de la Révolution. Discours et Rapports de Robespierre. Paris: Eugene Fasquelle, pp. 247-248.

319 Escritor, jornalista e historiador britânico, conhecido pelos seus romances de ficção científica, é autor de A Máquina do tempo (1895) e a Guerra dos Mundos (1898).

320 WELLS, Herbert George (1940) – Os Direitos do Homem, tradução de Pedro Elói Duarte para a edição em língua portuguesa de 2020. Torres Vedras: E-Primatur / Letras Errantes.

321 Jurista francês, presidente do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos entre 1965 e 1968,

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), adotados em dezembro de 1966, mas que só entraram em vigor em janeiro de 1976.

Ken Follett322 escreveu recentemente em um artigo que a liberdade é uma anomalia, porquanto ao longo da história da civilização humana a maioria das pessoas viveu subjugada por algum tipo de tirania, sem voto e com poucos direitos, quando muito, e que mesmo no mundo de hoje, as pessoas livres são uma minoria323

No sentido inverso às correntes filosóficas do século XIX, em que os direitos individuais estão subordinados ao interesse comum, John Stuart Mill (1806-1873)324 escreve contracorrente que “se toda a humanidade partilhasse uma opinião, com exceção de uma única pessoa, a humanidade tinha tanto direito a silenciar essa pessoa como essa pessoa tinha direito a silenciar a humanidade, se pudesse fazê-lo”325. Para Stuart Mill, silenciar uma opinião significa não ostracizar apenas os que defendem a dita opinião, mas sobretudo aqueles que dela discordam, porque se a opinião estiver certa perde-se a oportunidade de trocar o erro pela verdade, se a opinião estiver errada perde-se a perceção da verdade que resulta da confrontação com o erro. Mas Mill, nas suas lucubrações, não deixa de ter uma teoria de governo, ao afirmar que o grande objetivo dos defensores da liberdade é a defesa e a luta por salvaguardas constitucionais que obriguem ao consentimento da comunidade para que os seus representantes possam aplicar medidas governativas relevantes326, e mesmo quanto ao papel “regulador” do Estado: “O Estado, embora respeite a liberdade individual no que a cada um diz respeito, está obrigado a manter uma vigilância apertada sobre o poder que cada um pode exercer para ganhar controlo sobre o outro”327 .

Segundo David Hume (1711-1776)328:

Em todos os governos, há uma luta intestina permanente, aberta ou secreta, entre Autoridade e Liberdade; e nenhum deles pode triunfar absolutamente na contenda. Um grande sacrifício de liberdade deve necessariamente ser feito em cada governo; no entanto,

foi laureado com o Prémio Nobel da Paz em 1968, precisamente por ter sido o principal autor da DUDH.

322 Escritor britânico, nascido no País de Gales em 1949, autor de romances históricos, publicou recentemente A Armadura de Luz (2023).

323 https://veja.abril.com.br/comportamento/ken-follett-o-fato-surpreendente-chamado-liberdade

324 Filósofo e economista inglês do século XIX, um dos mais reconhecidos defensores do liberalismo político, autor da obra A Liberdade (1859).

325 MILL, John Stuart (1859) – Sobre a Liberdade, tradução de Pedro Santos Gomes para a edição em língua portuguesa de 2023. Porto: Ideias de Ler / Porto Editora, p. 49.

326 Ibidem, p. 29.

327 Ibidem, p. 168.

328 Filósofo e historiador escocês, que ao lado de John Locke e de George Berkeley compõe a famosa tríade do empirismo britânico; é autor da obra Tratado da Natureza Humana (17391740).

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mesmo a autoridade, que confina a liberdade, nunca pode, e talvez nunca deva, em qualquer constituição, tornar-se totalmente incontrolável […] O governo que, na denominação comum, recebe a denominação, de Livre, é aquele que admite uma divisão do poder entre vários membros, cujo autoridade unificada não é menor, ou é geralmente maior, do que a de qualquer monarca; mas que, no curso normal da administração, deve agir por leis gerais e iguais, que são previamente conhecidas por todos os membros e por todos os seus súbditos. Neste sentido, deve ser reconhecido, que a liberdade é a perfeição da sociedade civil; mas ainda assim a autoridade deve ser reconhecida essencial para sua própria existência: e nesse contexto, que muitas vezes toma lugar entre uma e outra, a última pode, por conta disso, desafiar a preferência.329 (tradução livre dos autores)

Contributo importante para o que chamamos hoje de liberdade “responsável” é o de Emmanuel Mounier (1905-1950)330, quando este escreve que a liberdade absoluta é um mito, que o homem livre é o homem responsável, que a liberdade não é um fim em si mesmo, antes um meio para realizar a pessoa, não é o ser da pessoa, mas o modo como a pessoa se faz ser331.

De acordo com Richard Wilkinson332 e Kate Pickett333, a ideia de que liberdade e igualdade não são totalmente compatíveis parece ter surgido durante a guerra fria, quer na Europa de Leste e União Soviética, em que a maior igualdade do coletivismo só poderia ser alcançada à custa da liberdade, quer nos EUA, que desistiu ideologicamente do seu compromisso histórico com a igualdade, contrariando o pressuposto de Paine, um dos pioneiros da revolução americana, de que não se pode ter verdadeira liberdade sem igualdade, e de outros pensadores democráticos que acreditam na complementaridade da liberdade e da igualdade e que a liberdade depende em toda a sua extensão da igualdade, da igualdade perante a lei, da igualdade entre as partes no contrato, da igualdade de oportunidades334.

329 HUME, David (1742) – Essays and Treatises on Several Subjects. volume I - Essays Moral, Political, and Literary, edição de 1793. Edimburgo: T. Cadell, Bell & Bradfute e T. Duncan, pp. 47-48.

330 Filósofo francês cristão, um dos intelectuais que fundou a revista Esprit em 1932 e o principal mentor do movimento personalista, participou ativamente na resistência contra o fascismo e o nazismo.

331 MOUNIER, Emmanuel (1949) – O Personalismo, tradução e prefácio de João Bénard da Costa para a edição em língua portuguesa de 2004. Coimbra: Ariadne Editora, pp. 389-392.

332 Formador e investigador britânico, nascido em 1943, é professor emérito da Universidade de Nottingham e professor honorário do University College London.

333 Ativista política e epidemiologista britânica, nascida em 1965, é professora na Universidade de York e foi investigadora no Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde e Cuidados, criado pelo governo inglês em 2006.

334 WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate (2009) – O Espírito da Igualdade. Por que razão as sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor, tradução de Alberto Gomes para a edição em língua portuguesa de 2010. Oeiras: Editorial Presença, pp. 309-310.

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6.3. O princípio democrático da separação de poderes

Para Nuno Garoupa335, a partidarização excessiva do nosso Tribunal Constitucional (segundo os dados estatísticos, este é provavelmente o mais partidarizado da Europa) reflete uma cultura política que tem dificuldade em respeitar um verdadeiro sistema de checks and balances e, nesse contexto, o TC terá muita dificuldade em conseguir ter o papel e a imagem pública consistente com um Estado de direito desenvolvido336. Na verdade, o nosso TC é composto por treze juízes, sendo que dez são designados pela Assembleia da República e os outros três cooptados por aqueles337. Ainda para aquele investigador português:

O poder político democrático nunca confiou no poder judicial, herdado da ditadura e conservador por natureza. Contudo, a legitimidade do novo regime político em muito dependia do aparente respeito pela separação de poderes (supostamente inexistente durante a ditadura). Durante a fase de consolidação da democracia, os partidos políticos evitaram imiscuir-se directamente na justiça e mantiveram a farsa do respeito pelo poder judicial […] Ao longo das últimas décadas multiplicaram-se os problemas dos agentes políticos com a justiça, desde a corrupção e outros casos famosos até ao uso dos tribunais pelos cidadãos para limitar a discricionariedade dos actos políticos. Legislar deixou de ser suficiente para controlar ou contornar a judicatura. Atropelam-se as mais elementares regras da separação de poderes para minimizar danos políticos. A progressiva partidarização dos altos cargos da justiça em Portugal terá consequências muito nefastas para a qualidade da democracia. Não porque isso seja diferente de outros países (como, por exemplo, os Estados Unidos ou a Alemanha), mas porque não há na nossa cultura democrática os mecanismos de equilíbrio que existem nesses outros países de forma a minimizar esses efeitos nefastos […] Ao poder político compete legislar e ao poder judicial compete cumprir e aplicar a lei […] O poder judicial deve reclamar a independência processual que lhe é negada pelo legislador e exigir a efectividade da independência administrativa que o executivo bloqueou nos últimos trinta anos.338

Também Jürgen Habermas339, na sua preleção “Para a ideia do estado jurídico”, preparatória da obra Direito e Democracia (1992), afirma que todo o direito deve emanar da vontade soberana do legislador político e que legislação, interpretação e aplicação

335 Nascido em Lisboa em 1970, é mestre em Economia e Direito pela Universidade de Londres e doutor em Economia pela Universidade de York e professor de Direito e investigador na Universidade George Mason, Estados Unidos.

336 GAROUPA, Nuno (2011) – O Governo da Justiça, ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, p. 62.

337 Vide Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, in Diário da República n.º 264/1982, 1.º Suplemento, Série I, de 15 de novembro de 1982, Capítulo II, Seção I, Artigo 12.º, Ponto 1.

338 GAROUPA, Nuno (2011) – Op. cit., pp. 71-73.

339 Filósofo e sociólogo alemão, nascido em 1929, membro da Escola de Frankfurt, formulou a teoria da democracia deliberativa e é autor de A Teoria da Ação Comunicativa (1981), obra em dois volumes.

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das leis são três momentos diferenciados institucionalmente dentro do mesmo processo guiado politicamente, na prossecução de um estado jurídico, separador de poderes, que se legitima a partir de uma racionalidade de instrumentos legislativos e jurisdicionais que garantem imparcialidade340. Mais sublinha que os procedimentos institucionalizados para a jurisdição e a legislação garantem uma formação imparcial da opinião e da vontade, uma racionalidade moral de procedimento, e que “não existe um direito autónomo sem uma democracia realizada”341 .

Mas, como ainda afirma Garoupa, com um Estado fortemente intervencionista e uma sociedade civil muito débil foram criadas as condições que favorecem a captura das instituições pela corporação ou pelo grupo de interesse que as governa em detrimento do bem-estar social, desvalorizando a prossecução do interesse público342

A separação de poderes em legislativo, executivo e judiciário, um símbolo da democracia norte-americana fundada no presidencialismo e no constitucionalismo, também é característica de outros Estados de direito democrático. O princípio republicano da responsabilidade política dos governos está patente nas constituições modernas, tanto nas democracias como nas monarquias, obstaculizando o poder discricionário da governança, mesmo no caso de líderes carismáticos.

Também o processo eleitoral de composição dos governos, a própria alternância governativa entre “situação” e “oposição”, também concorrem para a separação do Estado e do governo, legitimando-os, e sobretudo para a estabilização institucional no Estado e para a responsabilização da orientação política geral, já que o Estado é na verdade um conjunto de órgãos responsáveis pelo desempenho de funções governativas e outras de interesse público. Mas uma verdadeira separação de poderes pressuporia órgãos autónomos em relação aos demais e não a mera divisão de funções que deve, no entanto, prevalecer e ser reforçada com a fiscalização recíproca.

Acerca da separação destes poderes, nomeadamente entre os poderes legislativo e executivo e o poder judiciário, que garante o autocontrole do Estado, em meados do século XVIII já Montesquieu escrevia que, quando o poder legislativo está reunido ao poder executivo, na mesma pessoa (ou corpo de magistratura), não existe liberdade, porque se pode temer que o mesmo monarca (ou senado) crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente, e que tão-pouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo343.

Queria Montesquieu dizer que, se o poder judicial estivesse ligado ao poder legislativo, isto é, se o poder de julgar se promiscuisse com o poder de legislar, o poder sobre a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ser um opressor e não um julgador isento do cumprimento da lei.

Hoje é comum ouvir-se dizer que o poder político está cartelizado pelo poder económico, que os negócios estão misturados com a política, que os governantes estão reféns

340 HABERMAS, Jürgen (1986) – Direito e Moral, tradução de Sandra Lippert para a edição em língua portuguesa de 2017. Lisboa: Edições Piaget, pp. 83-84 e 107.

341 Ibidem, p. 109.

342 GAROUPA, Nuno (2011) – Op. cit., p. 27.

343 MONTESQUIEU (1748) – Op. cit., p. 168.

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dos lobbies, que a própria comunicação social é paga, isto é, instrumentalizada, pelo poder político, que os interesses nacionais estão subjugados aos interesses dos grandes grupos económicos, nos meandros de uma teia de ligações perigosas que enfraquecem as aspirações legítimas do povo e debilitam a democracia. Tudo isto consubstanciaria uma inversão do Estado de direito e da ética democrática. Há perigo para a independência do poder e da justiça, para a liberdade e igualdade dos cidadãos, para o interesse geral de um país, quando o Estado está refém de interesses particulares, como acontece, por exemplo, nas oligarquias plutocráticas. A democracia é, pois, a antítese disto tudo, enquanto configurar um modo de governo em que os três poderes essenciais do Estado interajam, mas preservem a autonomia das suas competências específicas.

6.4. A teoria dos círculos virtuosos ou viciosos na política

Quando se fala hoje em democracia há uma tendência para associar o seu exercício às “boas práticas”, como base para o sucesso da governança, ou seja, àquilo a que podemos chamar o círculo virtuoso da política. Virtuoso naturalmente contrapõe-se a vicioso.

Segundo Daron Acemoglu e James Robinson, as sinergias entre instituições económicas e políticas extrativistas geram um círculo vicioso e as inclusivas um círculo virtuoso, em que as primeiras, uma vez instauradas, tendem a persistir, embora haja sociedades que conseguem romper o padrão e efetuar a transição para instituições inclusivas344. Ou ainda:

Instituições políticas e económicas inclusivas não surgem de maneira espontânea. Em geral, são fruto de consideráveis conflitos entre as elites, de um lado, que resistem ao crescimento económico e às mudanças políticas e, do outro, os que pretendem cercear o poder político e económico das mesmas […] O círculo virtuoso funciona através de diversos mecanismos. Primeiro, a lógica das instituições políticas pluralistas dificulta bastante a usurpação do poder por parte de um ditador […] e a verdadeira medida do pluralismo consiste exatamente em sua capacidade de fazer frente a tais tentativas. O pluralismo também sacramenta a noção de estado de direito, o princípio de que as leis devem ser igualmente aplicadas a todos – algo impossível, naturalmente, sob uma monarquia absolutista. Contudo, o estado de direito, por sua vez, significa que as leis não podem ser usadas por determinado grupo para violar os direitos de outro. Ademais, o princípio do estado de direito abre a possibilidade de maior participação no processo político e de maior inclusão, à medida que introduz a ideia de que as pessoas devem ser iguais não só diante da lei, mas também do sistema político.345

Quando a democracia está refém do sistema económico que a condiciona e, desta forma, obstaculiza a possibilidade de os cidadãos serem “incluídos” na gestão dos bens comuns à sociedade, que extravasam a própria economia, estamos perante a viciosidade a que aqueles autores aludem.

344 ACEMOGLU, Daron, ROBINSON, James A. – Op. cit., pp. 415-416.

345 Ibidem, p. 323.

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As políticas “extrativistas” surgem quando as instituições políticas não são suficientemente pluralistas e, pelo contrário, concentram o poder económico, mais do que qualquer outro, ainda que a este se possa acrescentar o poder cultural e comunicacional, em uma elite que governa de forma muito pouco controlada e escrutinada. Este conluio entre as instituições económicas e políticas faz com que as elites excludentes possam extorquir os recursos da sociedade no seu conjunto.

Já as práticas políticas inclusivas (as “boas práticas”), o tal círculo virtuoso, tendem a erradicar as economias que expropriam os recursos da maioria e impõem barreiras burocráticas e fiscais ao exercício da economia (tributos, usura, rendas, tarifas, etc.), intentando gerar uma distribuição mais equitativa dos recursos que é propiciada e acompanhada por instituições democráticas, que procuram distribuir o poder político por toda a sociedade e restringir o seu exercício arbitrário e a usurpação do poder.

Por outro lado, o domínio da economia pelas elites oligárquicas ou plutocráticas gera recursos que, no extremo, permitem a constituição de uma “força” militar ou militarizada para defender o monopólio do poder político, condição indispensável para a manutenção dos privilégios monetários e pessoais, numa lógica de perpetuação da détente com modelos similares, veja-se o caso dos regimes totalitários russo e chinês.

Estes dois modelos institucionais, o vicioso e o virtuoso, não são de um modo geral compatíveis ou necessariamente alternantes, e na superação do modelo vicioso não se verifica necessariamente a transformação dialética da quantidade em qualidade, em que chamamos “quantidade” a uma economia da usurpação e “qualidade” a uma economia da partilha.

Ou seja, a passagem do círculo vicioso para o virtuoso não consubstancia necessariamente um momento ou “salto” revolucionário, podendo consumar-se com a simples mudança das instituições democráticas e dos mecanismos de exercício do poder, sem pretendermos subestimar todo o processo de luta visceral e cirúrgica que, entretanto, se trave na sociedade civil. São as políticas reformistas que por vezes encarnam melhor o paradigma da mudança.

Cerca de quinhentos anos depois de Maquiavel ter escrito O Príncipe, ressalta-nos a ideia no pensamento político do escritor florentino de que o “bom governo” está indissociavelmente ligado ao “bem comum”, genial contributo para o aprofundamento do ideal de liberdade que hoje se vaza no ideal democrático. A virtù (qualidade para governar) na vida política!

Autores como Paul Ricœur (1913-2005)346, segundo Jorge da Cunha347, têm debatido o princípio da construção da tolerância como peça basilar do regime democrático, da comunidade política e do exercício do poder, na base da evolução das instituições políticas e do Estado de direito348.

346 Filósofo e professor universitário francês do século XX, autor de A ideologia e a utopia (1997), foi professor nas Universidades da Sorbonne (França), Lovaina (Bélgica) e Yale (Estados Unidos).

347 Sacerdote e teólogo português, nascido em 1958, doutorado em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, antigo Reitor do Seminário Maior do Porto e autor de livros e artigos na área da Bioética.

348 CUNHA, Jorge Teixeira da (2021) – A Revolução de 1820 e o Pensamento Ético Português,

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Num texto a que chamou “Tolerância, intolerância, intolerável”, é o próprio Ricœur que escreve, se a tolerância é um fenómeno tardio na história das mentalidades é porque exige sacrifícios que cada um dos campos em oposição tem dificuldade em fazer349

6.5. Democracia direta e por sorteio

Na Grécia, a democracia era praticada pelos cidadãos de Atenas ou de outras cidades-Estado na sua forma direta, mas vigorava também a representação política que ocorria por meio de sorteio ou mesmo através da eleição de representantes.

Em Atenas, o processo de escolha e eleição das principais magistraturas (arcontes, estrategos e os dois tribunais: Areópago e Helieia) era geralmente feito por sorteio, conferindo-se assim a possibilidade de todos os cidadãos poderem participar na administração, sendo que no caso dos estrategos prevalecia a eleição, porque as tarefas militares obrigavam à capacitação técnica para o seu desempenho.

A Bulé de Atenas (ou Conselho dos Quinhentos), criada por Sólon no século VI a.C., era composta por cidadãos escolhidos por meio de sorteio – 50 de cada tribo – para cuidar das questões religiosas, financeiras, diplomáticas e militares, designar magistrados e formular leis a serem enviadas para discussão e aprovação na assembleia popular, a Eclésia, onde se elegiam os membros da Bulé para assegurar o governo da polis no intervalo das sessões daquela.

A Eclésia era aberta a todos os cidadãos, homens, filhos de atenienses, maiores de 18 anos, e alguns metecos, estrangeiros ou descendentes de estrangeiros que ganhavam o estatuto de cidadãos pela própria decisão da assembleia. A Eclésia tratava, ainda, de assuntos de política externa, desde a celebração de tratados e alianças com outras cidades à declaração de guerra e, no âmbito interno, de questões como armazenamento de cereais, a tributação e o ostracismo, bem como o sorteio dos “arcontes” para as tarefas religiosas, fúnebres ou judiciais. Os arcontes que haviam cessado funções figuravam vitaliciamente no “Areópago” (tribunal de delitos graves).

Outro órgão importante era a Helieia (ou Tribunal dos Heliastas), júri popular composto por até seis mil cidadãos, maiores de trinta anos, escolhidos por sorteio. As suas decisões eram definitivas e irrecorríveis, uma vez que eram consideradas como interpretações da vontade divina.

Assim, na Grécia, durante o período clássico, a democracia era praticada pelos cidadãos de Atenas e de outras cidades-Estado na sua forma direta, mas havia também a adoção da representação política, por meio de sorteio, como acontecia na Bulé, ou mesmo eleição dos representantes, como acontecia na Eclésia.

A democracia por sorteio que vigorou na Grécia antiga baseava-se em três princípios básicos: a “isocracia” (igualdade de acesso a cargos públicos), a “isonomia” (igualdade perante a lei) e a “isegoria” (igualdade no direito de participação numa reunião). Todos os cidadãos livres, isto é, uma população muito restrita que excluía os escravos, as in A Revolução Liberal, 200 Anos Depois. Sintra: Zéfiro, pp. 43-44.

349 RICŒUR, Paul (1990) – Leituras 1. Em torno ao político, tradução de Marcelo Perini para a edição em língua portuguesa de 1995. Brasília: Edições Loyola, p. 183.

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mulheres e os metecos (estrangeiros residentes em cidades-Estado gregas, à exceção de Esparta que os não admitia, que, embora considerados homens livres, não tinham o direito de participação política), tinham estes direitos de igualdade. Como afirmou Aristóteles, “a liberdade é o princípio da prática democrática”. Todos os cidadãos da polis, independentemente da sua origem, das suas posses ou da respetiva profissão, consideravam-se semelhantes uns aos outros, “iguais”, assumindo o mesmo grau de responsabilidade social, votando, falando livremente, respeitando e fazendo cumprir as leis e podendo ser eleitos.

Em suma, no modelo democrático ateniense, os magistrados, com exceção dos ‘estrategos’, eram escolhidos à sorte entre todos os cidadãos de pleno direito.

Na Roma antiga e na Idade Média até ao século XII poucos experimentos de democracia direta foram implementados, muito menos por sorteio. No século XIII, na antiga Confederação Helvética (criada em 1291), principalmente nas regiões próximas à Itália, os habitantes reuniam-se em concílios, para resolver problemas locais, em que vigorava a democracia direta. Na parte oriental foram criadas as Landsgemeinden (assembleias cantonais) que se reuniam, geralmente, uma vez por ano para eleger as autoridades, editar leis e declarar a guerra, em que as decisões também eram tomadas pela comunidade (democracia direta) e não pelas elites políticas. A primeira Landgemeinde propriamente dita ocorreu no cantão de Uri em 1231.

A democracia direta é a forma clássica de democracia exercida pelos atenienses, em que não havia eleições de representantes, mas um corpo de cidadãos que se reunia em assembleia na Ágora, onde eram propostas, debatidas e votadas diretamente, e por todos, as leis atenienses.

Platão, estabelece no livro III das suas Leis, diálogo inacabado, uma lista dos títulos ou direitos requeridos para governar e para ser governado em Estados grandes ou pequenos. Ora o último título, o sétimo, é o que Platão, na fala de “O ateniense”, descreve ironicamente: “o favor dos deuses e da fortuna caracteriza a sétima forma de governo, na qual um homem se adianta para um lance de sorte e declara que se ganhar será com justiça o governante, e se não o conseguir assumirá seu lugar entre os governados”350 . O último estágio de uma “democracia de homens livres” representa assim, para Platão, uma espécie de aberração, “o governo da liberdade”, no qual não há qualquer respeito pelos compromissos e juramentos351.

O poder exercido pela rotatividade imperativa do sorteio, que não é a “alternância” vigente em muitos dos regimes democráticos em vigor, pode ser no futuro, como foi no passado, uma boa solução para a crise da democracia. Os eleitos por sorteio, de forma cíclica, representam os cidadãos que votam (democracia representativa) e todos deliberam direta ou indiretamente no exercício do poder (democracia deliberativa). O sorteio conduz à aleatoriedade deste exercício, fazendo com que todos possam participar (democracia participativa). O problema é que nem todos, pelas vicissitudes do processo aleatório, têm a possibilidade do exercício do poder, mas neste sistema o poder

350 Platão (357-347 a.C.) – Leis, livro III, [S. l.]: [S. n.], pp. 154 e 169: https://www.democracia.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Plat%C3%A3o-As-Leis.pdf

351 Idem, pp. 169-170.

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não é exercido apenas por quem tem as melhores condições materiais para o exercer (financeiras, intelectuais, lobistas, retóricas, etc.). A roleta do sorteio democrático pode ser assim a porta da revitalização da democracia, incentivando a intervenção e a participação cívica.

A soberania popular que advogam os defensores do sorteio não se esgota no ato eleitoral, nem a eleição é o primado. Para a concretizar é necessário o estabelecimento de um “colégio de sábios”, não necessariamente meritocrático, para definir as competências para governar (normas da legislatura, composição, duração, etc.). A solução governativa escolhida é avaliada permanentemente e pode cair antes do período previsto para o exercício, por incumprimento do programa que a sufragou. Os governantes, que podem vir dos partidos ou da cidadania independente, podem ser empresários, trabalhadores dependentes e/ou independentes, jornalistas, opinion makers, políticos, dirigentes associativos, etc., em suma, oriundos do “povo-cidadão”. A democracia grega empregou o princípio do sorteio ao deslocar a responsabilidade de legislar e de governar para a esfera da aleatoriedade ao alcance de qualquer cidadão da polis, independentemente de condições familiares e económicas.

A democracia por sorteio corresponde hoje, com as devidas diferenças que o tempo amadurece, ao que defendem os apaniguados da “deliberação cívica”, como o português Manuel Arriaga352, ao proporem um painel de cidadãos escolhidos através das modernas técnicas de amostragem por forma a espelhar a diversidade da sociedade portuguesa, para discutir e decidir sobre temas de interesse nacional e internacional, apoiados por um grupo de “facilitadores” especialistas nas diferentes áreas de intervenção. Este sistema de representação aleatória dos cidadãos eleitores (assembleia dos cidadãos) poderia combinar-se com os representantes eleitos pelo voto (assembleia parlamentar), de modo que estes não deliberem “em causa própria” e não fiquem reféns de interesses dos partidos ou movimentos que os deleguem, mas antes se submetam ao escrutínio de um grupo de cidadãos que representam “desinteressadamente” os eleitores. Os interesses instalados dos representantes “políticos” poderiam assim ser refreados pelos interesses insuspeitos dos representantes da “cidadania” e, no caso de insistência do poder autocrático dos parlamentares, a mediação do chefe de estado seria, por exemplo, no sentido de uma decisão referendária. É frequente nos países em que vigoram democracias parlamentares, que se fundamentam em maiorias circunstanciais e transitórias, a assunção de medidas não consensuais entre a população e muito contestadas na opinião pública que, em lugar de obrigarem a referendo, poderiam ser (re)discutidas em sede de deliberação cívica.

Em Portugal, seria com certeza o caso da genericamente solicitada revisão eleitoral, possível no quadro das últimas revisões constitucionais, que o parlamento bloqueia sistematicamente porque age em “causa própria” que é a causa dos partidos que, negando-a, se entronizam e perpetuam no poder.

Em França, o presidente Emanuelle Macron anunciou em maio de 2019 a criação de um Conselho de Participação Cívica constituído por 150 cidadãos franceses escolhidos

352 Professor visitante da Universidade de Nova Iorque e do Centro para a Inovação Digital em Cambridge, é autor do livro Rebooting Democracy: A Citizen’s Guide to Reinventing Politics (2014) e fundador do “Fórum dos Cidadãos” em Portugal.

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aleatoriamente por sorteio no universo dos cidadãos eleitores353 Também Mário Duarte354 advoga que se deve dar aos pequenos partidos e forças partidárias, mediante o cumprimento de certos requisitos, a oportunidade de governar o país. O mesmo deveria “ocorrer internamente nos partidos políticos, permitindo aos militantes serem eleitos em listas, por sorteio, para os órgãos dos partidos, assim como destituírem os dirigentes em caso de manifesto incumprimento do programa apresentado […] No plano externo cabe ao legislador definir os requisitos de admissão das listas a sorteio, enquanto no plano interno dos partidos e movimentos políticos caberá aos militantes e apoiantes” 355 .

Na democracia por sorteio todos podem decidir, ainda que por amostragem, mas nem todos estão em condições de se apresentar a sufrágio, de serem eleitos, por força do aleatório. Também aqui a igualdade aplicada a uma base desigual torna-se igualmente desigual. Mas é o problema de que enfermam todos os “modelos” democráticos.

6.6. Democracia representativa, participativa e deliberativa

A mais tradicional forma de democracia representativa é o chamado “mandato imperativo”, que confere ao representante eleito a função de executar as determinações daqueles que o elegeram, caso contrário o mandato pode ser revogado. Este modelo de representação tem raízes nas instituições políticas do período medieval que acabaram por influenciar as instituições do governo representativo moderno, e consiste basicamente na transposição do mandato civil para o direito público, vinculando o representante ao eleitor, daí se chamar mandato imperativo.

Além da democracia representativa, que é um sistema em que a participação política não é exercida diretamente, mas por meio da representação, por isso também é chamada democracia indireta, e da democracia participativa em que há eleições para os órgãos legislativo e executivo, mas as decisões são tomadas através da participação e autorização popular nos concelhos ou assembleias regionais ou nacionais, sob a forma de plebiscitos ou referendos, aquilo que pode ser chamado de democracia indireta, autores como Francisco Porfírio356, falam de uma “democracia moderna” que reaviva a ideia de democracia dos gregos e traz os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução francesa. Embora o conceito nos pareça redundante, para este autor a democracia moderna prevê a criação de um Estado de direito, onde todos são livres e

353 https://www.francetvinfo.fr/politique/emmanuel-macron/conseil-de-participation-citoyenne-vers-plus-dedemocratie_3421087.html?fbclid=IwAR0gV_zv81-ZF3cruLAno9DltpHpubALF2OJEJC7qsbAfJYkobumTikenr0

354 Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, é professor de Filosofia no ensino secundário.

355 DUARTE, Mário (2020) – Liberdade, Felicidade e Democracia. Almada: Emporium Editora, pp. 62-63.

356 Sociólogo e filósofo brasileiro, professor substituto no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação da Universidade Federal de Goiás, que escreve para o “Brasil Escola”, o maior portal de educação do Brasil.

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iguais, não importando a origem, a classe social, a cor ou a religião, e não é o simples facto de haver escolha política que o torna, automaticamente, uma democracia porque muitas ditaduras permitem eleições para que o processo político pareça mais legítimo; para ser considerado, efetivamente, uma democracia moderna um país deve ter, entre outras coisas, liberdade de expressão e de imprensa, voto e elegibilidade política, liberdade de associação política, etc.357

Nicos Poulantzas (1936-1979)358, a propósito da ascensão do fascismo, fala-nos numa crise de representação partidária, quando afirma que nos inícios do processo de fascização a forma “democrático-parlamentar” do Estado se conserva aparentemente intacta, mas as relações entre as classes e as frações dominantes, por um lado, e o aparelho de Estado, por outro, já não se estabelecem principalmente pelo canal dos partidos políticos, revestem-se antes de um carácter cada vez mais direto, aquilo que pode ser designado por uma distorção característica entre “poder formal” e “poder real” que especifica a crise política359 .

A derrota do nazi-fascismo alemão e italiano, no entanto, vai reavivar o modelo representativo no quadro constitucional dos países beligerantes, como é o caso das Constituições francesa de 1946 e italiana de 1947, bem como na DUDH de 1948. Embora esta última, tal como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, reflita uma orientação democrática, segundo Sottomayor Cardia360, não se pode identificar com a ideia de democracia, que é, na sua essência política, o poder do povo ou, na sua aceção sociológica, o poder dos representantes da maioria do povo, porquanto a democracia não se confunde com qualquer estrutura política constitucional precisa361.

A “democracia representativa” baseia-se sumariamente na escolha popular de representantes para o assumir de responsabilidades políticas em nome dos representados, com maior ou menor grau de correspondência. Alguns autores, face à alegada crise de representatividade das democracias modernas, reclamam hoje o velho primado da democracia direta à maneira ateniense, que a exiguidade do território das cidades-Estado e o número restrito dos cidadãos de direito permitiam, mas as cidades e os países modernos não comportam mais este modelo. É assim necessária uma “mediação” entre a massa dos cidadãos, hoje todos ou quase todos de pleno direito, teoricamente soberanos, e aqueles que exercem o poder em sua representação ou, como escreve Jean Baudouin362,

357 PORFÍRIO, Francisco – Democracia: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/democracia.htm.

358 Filósofo e sociólogo marxista grego da segunda metade do século XX, que foi aluno de Louis Althusser.

359 POULANTZAS, Nicos (1971) – Fascismo e Ditadura - a III Internacional face ao fascismo, volume I, tradução de João Quintela e Fernanda Granado. Porto: Portucalense Editora, p. 85.

360 Vide nota 315.

361 CARDIA, Mário Sottomayor (1968) – Os Direitos do Homem. Documentos da Organização das Nações Unidas, in prefácio para este caderno Seara Nova da série “política”. Lisboa: Empresa de Publicidade Seara Nova, p. 34.

362 Francês nascido em 1944, foi professor de Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Fundou e dirigiu o Centro de Estudos e Pesquisa sobre Democracia, da Universi-

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uma mediação que tente conciliar o ideal participativo da democracia e a impraticabilidade manifesta do seu funcionamento de forma direta e constante363.

Em sentido lato, a eleição dos representantes não deixa de ser uma eleição direta, porquanto os eleitores elegem “diretamente” os seus governantes, mas não é recíproca porque todos podem votar, mas nem todos podem ser eleitos. No sentido restrito, a eleição é indireta porque os eleitores votam não em pessoas, mas em organizações de pessoas, como os partidos ou movimentos políticos. Por isso, alguns dizem que votamos em governantes e não em representantes.

Embora aluda às eleições regionais previstas na Constituição da República Portuguesa (CRP - art.º 239), mas não cumpridas até à data, Valente de Oliveira364 escreve que não há responsabilização eficaz, num regime democrático, que não seja através da eleição direta, universal, livre e secreta dos titulares dos cargos e que a eleição não representa somente um ritual que “sacraliza” os eleitos, porque mais do que “ungi-los”, importa responsabilizá-los365.

As considerações de John Locke, sobre o início das sociedades políticas, publicadas no último quartel do século XVII, são um bom exemplo das preocupações do pensamento intelectual quanto ao modelo democrático na vida social e política, numa época em que a palavra “democracia” não era utilizada, pelo menos no sentido literal do termo. Escreve assim o filósofo inglês:

Sendo todos os homens, como já foi dito, naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade […] Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em formar uma comunidade ou governo, são, por esse ato, logo incorporados e formam um único corpo político, no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar pelos demais.366

Esta ideia de “contrato social” entre governantes e governados, que outorga aos governantes o poder de governar com o consentimento dos governados, numa espécie de reconhecimento mútuo, foi um tema explorado não apenas por John Locke, na Inglaterra, mas também por Jean-Jacques Rousseau, em França. Rousseau, no seu Contrato Social, aponta uma sociedade em que todos os cidadãos participam na criação das leis de acordo dade de Rennes-I.

363 BAUDOUIN, Jean (1998) – Introdução à Sociologia Política, tradução de Ana Moura para a versão em língua portuguesa de 2000. Lisboa: Editorial Estampa, p. 138.

364 Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, foi ministro do Planeamento e da Administração do Território (1985-95).

365 OLIVEIRA, Luís Valente de (1996) – Regionalização, 3.ª edição. Porto: Edições ASA, p. 157.

366 LOCKE, John (1689) – Dois Tratados Sobre o Governo, tradução de Julio Fischer para a edição em língua portuguesa de 1998. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, pp. 468469.

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com a vontade comum, ideias que o levaram a um exílio voluntário fora do seu país. Inovadora em Rousseau é a ideia de que a soberania não pode ser representada, consiste essencialmente na vontade geral e esta não se representa, é a mesma ou é outra, não há meio termo, sendo que os deputados do povo não são, nem podem ser, seus representantes, mas apenas seus mandatários367.

Um filósofo como Stuart Mill assume que não há um regime político ideal, mas que nas sociedades modernas é a democracia o modelo que melhor corresponde à necessidade de os representados serem levados em consideração pelos governantes. A capacidade dos cidadãos em participar no debate político, mesmo que apenas através do seu direito de voto, é uma forma indireta do exercício da deliberação política. Embora defensor do modelo representativo, Mill perspetiva-o enquanto sistema proporcional (em que o partido vencedor não fique com o poder todo, na lógica do winner take all) e advoga o controverso voto “privilegiado”, em que, basicamente, os cidadãos mais qualificados devem ter dois ou mais votos, o que contraria a igualdade de voto do sufrágio universal. Segundo Joaquín Abellán368, Mill refuta o sufrágio censitário, mas defende que o sufrágio universal não tem que ser extensivo a todos, mas apenas aos homens e mulheres adultos que saibam ler, escrever e contar e que paguem impostos, excluindo os analfabetos, os não contribuintes e os que dependem de ajuda social nas paróquias e nas autarquias369. Na segunda metade do século XIX, Stuart Mill escreve que a participação das pessoas deve ser tão grande quanto o grau geral de desenvolvimento da comunidade o permita e que nada pior devemos desejar do que a admissão de todos em uma participação no poder soberano do Estado, e uma vez que nem todos podem, em uma comunidade que excede uma pequena cidade, participar pessoalmente em tudo, conclui-se que o tipo ideal de um governo deve ser o representativo370.

Dizem alguns que o facto de os cidadãos não participarem na vida política se deve não às leis eleitorais, mas ao comportamento dos próprios partidos políticos. Podia ler-se numa moção apresentada ao XIII Congresso do Partido Socialista português: “Até mesmo a menor participação dos cidadãos na vida democrática, de que agora tanto se fala, não é o resultado das leis do regime, mas das práticas hegemónicas dos partidos políticos, porque de forma geral exercem o poder de forma a colocar os interesses partidários acima de todas as outras considerações”371 . Mas há nesta frase uma contradição de fundo, uma vez que a “hegemonia” dos partidos no sistema político, nomeadamente o português, lhes permite modelar as leis à medida das suas necessidades, ou seja, as leis eleitorais podem ser “blindadas” de modo a evitar-se uma intervenção política que tenda a extravasar o próprio espectro partidário que as aprova.

367 ROUSSEAU, Jean-Jacques (1762) – Op. cit., edição de 2002, p. 99.

368 Catedrático de Ciência Política na Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense de Madrid, nasceu em 1947 em Múrcia, Espanha.

369 ABELLÁN, Joaquín (2011) – Op. cit., p. 223.

370 MILL, John Stuart (1861) – Considerations on Representative Government, edição de 2009. Auckland: Floating Press, p. 87.

371 ANDRÉ, Carlos, NETO, Henrique e SILVA, Pereira da – Moção Pensar Portugal, XIII Congresso do Partido Socialista, realizado em Lisboa em novembro de 2002, pp. 13-14.

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Aliás, os autores da moção acabam por reconhecer a necessidade de se procederem a algumas alterações no sistema político como, por exemplo, a introdução dos “círculos uninominais” na lei eleitoral de modo a que, com a concorrência política, os próprios partidos se tornem mais competitivos. E se não há hoje democracia sem partidos políticos, também não há verdadeira democracia quando todo o poder político se concentra nas organizações partidárias e nenhum poder é reservado aos cidadãos, quer sejam ou não filiados em partidos.

Mais uma vez acreditamos que a “versão” partidocrática da democracia, independentemente de considerações de ordem ética e da necessidade legítima de se regenerar a organização das organizações partidárias, enferma sempre da ideia da inevitabilidade, raramente justificada, do papel dos partidos na participação e gestão democrática da sociedade e da ideia que a democracia representativa está indissociavelmente ligada à sua existência.

Pergunta-se, como pode a construção de uma sociedade mais justa ser assumida pelo conjunto da sociedade, por todos os cidadãos, se estes “delegam” o exercício do poder e conferem “legitimidade” aos governos apenas no momento em que “sufragam” os programas e “aprovam” os candidatos dos partidos ou dos movimentos políticos? Ou seja, o projeto político dos eleitos representa o pensamento popular na plenitude da sua soberania372 e as decisões tomadas na esfera do poder estão restringidas às promessas programáticas ou ultrapassam-nas em cada virar da esquina da conjuntura?

A democracia representativa, tal como hoje se nos apresenta, é assim, num certo sentido, um modelo deturpado de democracia política, porque os eleitores verdadeiramente não elegem quem os representa, mas quem os governa.

Em Portugal, nos últimos anos, podemos falar em uma crise de confiança que se traduz em elevados índices de abstenção. Os eleitores sentem que o seu poder de escolher quem os representa está fortemente comprometido, o que reduz a democracia a um desapontamento ou desencanto sistémico que se traduz no progressivo desinteresse que muitos cidadãos vão demonstrando em relação à atuação da classe política, duvidando que os eleitos atuem como os seus representantes. Para obstaculizar este handicap, uma das soluções poderá ser a introdução do duplo voto no sistema eleitoral, através da conjugação dos chamados círculos uninominais, em que os eleitores escolhem diretamente o deputado que querem que os represente no parlamento, e dos plurinominais, em que os eleitores votam no partido ou na coligação de partidos que escolhem para legislar ou governar. Permitir-se-ia assim que o eleitor mantivesse a sua escolha partidária, sem prejuízo da indicação dos representantes com os quais se identifica, que poderá eleger com total liberdade, independentemente da filiação partidária dos mesmos.

372 É óbvio que os eleitos não representam o povo na sua plenitude, Como se sabe é a formação partidária que recolhe mais votos que indigita os governantes, não a maioria dos cidadãos que votaram e, muito menos, a maioria dos cidadãos eleitores. Por exemplo nas últimas eleições legislativas (10 de março de 2024), em que a afluência às urnas até foi significativa (mais de 66%), o n.º de votantes foi superior a seis milhões (mas o n.º de eleitores era superior a nove milhões). Assim, os novos governantes, foram votados por menos de dois milhões de votantes, ou seja, representam apenas cerca de 30% dos votantes, e apenas 20% dos eleitores.

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Ainda que esta proposta de revisão eleitoral não colida com o atualmente consagrado na CRP, sobretudo após a quarta revisão de 1997373 (cf. parte III, art.º 149), os partidos políticos com assento parlamentar, ao que sabemos, não têm manifestado interesse em discutir estas propostas mais do que justas, embora talvez não suficientes, o que só por si atesta a periclitante, ou menos boa, condição de saúde da nossa democracia e a acomodação dos partidos do atual espectro político-partidário português.

A democracia representativa em geral, e a democracia parlamentar em particular, não é uma democracia direta como em Atenas onde as leis e as decisões eram apresentadas e aprovadas nas assembleias de cidadãos, que depois participavam também na execução das mesmas. Mas a democracia direta também não se pode confundir com a soberania popular que defendem os marxistas, que desemboca sempre, de acordo com os experimentos históricos conhecidos, nos regimes do partido único ou, na melhor das hipóteses, no “centralismo democrático”374. Ou mesmo, no plano da microestrutura social, nos sindicatos profissionais em que a “unicidade sindical” ao contrapor-se à “unidade sindical”, por exemplo, é prova desse centralismo, entendendo-se a primeira como a reunião dos sindicatos sob o comando de uma macroestrutura única (em Portugal, seria o desejo da CGTP-Intersindical), em que não há o “direito de tendência”, e a segunda como a união em várias centrais ou confederações sindicais que podem assumir tomadas de posição diferentes ou aprovar formas de luta divergentes face aos mesmos problemas.

O compromisso entre as duas, democracia parlamentar e democracia representativa, só pode ser resolvido positivamente através da sua transmudação em democracia participativa. Mas os teóricos da democracia, liberais ou social-democratas, não adquiriram ainda a dimensão fenomenológica da democracia participativa que remetem para o parlamentarismo. Acreditam ser este o estádio supremo da democracia participativa. Em um sistema de democracia indireta ou representativa os cidadãos elegem os seus representantes que tomam decisões em seu nome, com a legitimidade que lhes é conferida por mandatos políticos. Foi com a revolução francesa de 1789 que se fortaleceu o sistema representativo, com a substituição do absolutismo monárquico pela soberania popular, mas através do “sufrágio censitário”, em que apenas uma elite aristocrática podia escolher o governo, sem que os mais pobres e menos letrados o pudessem fazer, situação que só viria a ser corrigida no final do século XIX com a introdução do “sufrágio universal” que se alargaria às mulheres por meados do século XX.

Na democracia representativa ocorre a transferência da representação do poder individual, que fundamentou a noção de soberania, para governantes ou organizações políticas, mas podemos também afirmar que o sistema representativo não traduz necessariamente uma negação, ou simples oposição, ao modelo direto de democracia, uma vez que os dois sistemas podem coexistir e até mesmo complementar-se, por meio da

373 Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro.

374 O aparecimento do termo é atribuído a Jean Baptista von Schweitzer, que em 1868 o usou para descrever a estrutura da organização de que era presidente, a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães; basicamente consiste numa prática organizacional partidária ou outra em que, depois da livre discussão, as minorias têm de acatar as decisões aprovadas por maioria.

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utilização combinada de instrumentos apropriados de deliberação popular e de representação.

Esta contraposição entre democracia direta e representativa levanta também a questão dos princípios da horizontalidade ou da verticalidade na condução dos destinos dos cidadãos na gestão da coisa pública, ou também de se saber se os modelos hierárquicos são viciosos e os modelos diretos são virtuosos, ou vice-versa. A “isocracia” visa não apenas a realização da igualdade de poder, mas também o cumprimento das condições necessárias ao seu exercício de forma igualitária e a eliminação de quaisquer desigualdades que o impeçam. Por outro lado, são fatores externos ao próprio conceito de democracia que permitem pô-la em causa como, por exemplo, a impossibilidade prática em a realizar.

Segundo António Baptista375, para alguns autores a democracia representativa possibilita uma melhor performance política do que qualquer outro regime, pelo facto de a quantidade de informação e o custo de obtenção da mesma serem, supostamente, muito menores quando os cidadãos têm de conhecer apenas os candidatos e as suas ideias gerais, em vez de se informarem sobre vários assuntos complexos e profundos, ou seja, o sistema representativo é menos exigente relativamente aos cidadãos, do ponto de vista da aquisição “informativa”, do que um sistema de democracia direta376

Mas na verdade, a democracia representativa enferma do problema da “autonomia” do representante, ou seja, de este poder desvirtuar, por incompetência ou por interesse próprio, as emanações do representado, no eterno conflito entre as preferências dos cidadãos e os comportamentos dos seus indigitados, sabendo-se que não há uma absoluta correspondência entre as escolhas dos eleitores e as políticas públicas realizadas. Em Portugal, a CRP estabelece que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”, que no seu art.º 21, ponto 1, estabelece que “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do país, quer directamente quer por intermédio de representantes livremente escolhidos”377. Mas o texto da DUDH é disjuntivo quando afirma, no ponto seguinte do mesmo artigo, que todo o cidadão tem o direito de aceder às funções públicas em condições de “igualdade”. Ora, como sabemos, a aplicação de um critério de igualdade sobre uma base desigual acrescenta desigualdade.

Na “democracia participativa”, ou semidireta, os cidadãos participam na construção das decisões, como nos orçamentos participativos, mas na verdade não decidem diretamente ou não têm a palavra final.

As democracias contemporâneas ou pós-modernas são sistemas políticos essencialmente representativos, o que significa a substituição da decisão política coletiva direta pela decisão concentrada na figura de governantes eleitos indiretamente através de estruturas intermédias que são os partidos, coligações de partidos ou outro tipo de associações

375 Mestre em Ciência Política e doutor em Teoria Política pela Universidade de Lisboa.

376 BAPTISTA, António (2010) – Democracia e representação democrática, in Análise Social, vol. XLV (196), pp. 503-504.

377 Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), p. 490.

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políticas. O mecanismo da maioria, simples, absoluta ou qualificada, está na base do princípio da representação política democrática. Na verdade, é a maioria dos cidadãos que decide que pessoa ou grupo irá exercer o poder durante um período previamente estabelecido. Se os cidadãos puderem constituir-se como auditores permanentes do poder político podemos dizer que já estão lançadas as bases de uma democracia participativa.

John Rawls (1921-2002)378, em Uma Teoria da Justiça, afirma que a maioria dos cidadãos, mais do que a forma de contrato de governo, concorda com dois princípios fundamentais de governação, o direito à liberdade política e a garantia da igualdade de oportunidades para todos. Para Paul Ricœur, Rawls, ao adotar o ponto de vista do mais desfavorecido, pensa como o moralista que tem em conta a injustiça na distribuição de benefícios e prejuízos na sociedade e que, por detrás do seu formalismo, faz emergir o seu sentido de equidade379.

Na Grécia antiga, na Ágora, as decisões tomadas pressupunham a argumentação e a persuasão dos líderes políticos, os oradores com maior poder de retórica, que inflamavam e levavam os cidadãos a votar nas suas soluções, o que significava que as decisões não eram o assumir de um simples ato individual dos políticos, mas resultavam, pelo contrário, da vontade expressa da maioria através daqueles que aparentemente a convenciam.

A democracia direta nos moldes da Grécia antiga é ainda hoje uma bandeira ideológica de pensadores como Simone Weil (1909-1943)380 que, já na primeira metade do século XX, reconhecia o fracasso do modelo democrático por representação e o advento de uma espécie de partidocracia.

Simone Weil rompe com o paradigma de que uma nação é democrática apenas porque pratica o sufrágio. Participar não pode reduzir-se a meros processos eleitorais, a democracia representativa deve reinventar-se a partir da dinâmica dos movimentos sociais, adotando as práticas de participação. Mas, dada a quase inevitabilidade do não retorno do espírito participativo nas democracias modernas, a proposta de Weil é a da supressão dos partidos políticos, autênticas agências de representação política, e a de, por pressão popular, se criarem mecanismos de autogestão política na sociedade. A filósofa francesa tece assim críticas ao que fizeram da democracia, ou seja, ao facto de a democracia ter sido reduzida a um processo mecanicista de substituição e reposição de peças, em que os eleitores se transformam em consumidores de ideologia ao não escolher os seus representantes pelo caráter pessoal dos mesmos, mas pela ideologia que defendem. Mas a ideia de acabar com os partidos tem que ser vista no contexto em que Simone Weil a defendeu, o da segunda guerra mundial e da crise política que a antecedeu. Para Weil, o facto de os partidos existirem não é uma razão para se manterem, apenas o bem é uma razão legítima para a sua conservação, mas devemos primeiro reconhecer qual é

378 Filósofo norte-americano, autor do livro Liberalismo Político (1993), escrito depois da sua mais conhecida obra Uma Teoria da Justiça (1971); foi professor de Filosofia política na Universidade de Harvard.

379 RIŒUR, Paul (1990) – Ética e Moral, tradução de António Campelo Amaral para a edição em língua portuguesa de 2011. Covilhã: Universidade da Beira Interior, p. 14.

380 Escritora e filósofa francesa de ascendência judaica que escreveu no ano de 1940 o Manifesto pela Supressão dos Partidos Políticos

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o critério do bem, que só pode ser a verdade, a justiça e a felicidade, e que a democracia e o poder da maioria, não são bens, são meios para o bem381.

Segundo Victor Seco382, os partidos políticos são organizações, tal como a Igreja Católica ou o Exército, constituídas por pessoas que perseguem objetivos e resultados estrategicamente definidos, utilizando o princípio da unidade de mando e a pirâmide hierárquica como pressupostos essenciais do funcionamento das mesmas, em que também as estruturas intermédias alimentam uma concentração crescente de poder que alimenta a elite que controla cada partido e organização e que, de forma oligárquica e afastada da base, vai exercendo o poder de cima para baixo. Para este autor, a legitimação do voto valida, frequentemente e de forma pejorativa, o exercício substantivo do poder em causa própria, por outras palavras, a partir do momento em que as elites chegam ao poder vão criando condições para lá permanecer o mais possível383 .

Esta discussão é assim tão urgente quanto necessária num momento histórico em que a democracia e o poder político, e no sentido lato a sociedade, estão reféns de uma espécie de partidocracia, obsoleta por essência, ao mesmo tempo que se remete a cidadania para uma esfera de oposição civil fragmentada, exterior ao arco de poder, comprometendo o ideal de igualdade entre todos os cidadãos e viciando a equidade, desde logo no acesso ao exercício de cargos políticos. O poder político, tal como está a ser exercido, parece assim afastar muitas pessoas, que não se reveem no funcionamento enviesado, elitista e oligárquico dos partidos.

O termo “partido” provém do latim partitus, o que partilhou ou o que se partilhou, de “pars” (parte) relacionado a “portio” (porção) e de um item indo-europeu “per” (designar, repartir). O nome pode ser entendido como uma espécie de neologismo em que partido (organização) acresce a partido (convicção). A expressão “tomar partido”, de se posicionar a favor ou contra, consubstancia a adoção de uma posição em detrimento de outra, o que divide mais do que une.

Embora a palavra possa ser assumida como partilha, como união em torno de uma ideologia ou de um projeto, hoje assistimos cada vez mais, na sociedade civil, à crítica ao “modelo” de governação que foi no passado elogiado, ao bipartidarismo, à alternância no poder, a que se contrapõem as plataformas de cidadania, enfim novos modos de fazer política e de aprofundar a participação democrática dos cidadãos.

Como já denunciava a malograda Simone Weil384, cada vez mais os partidos políticos estão associados à prática da corrupção, ao tráfico de influências, ao conflito de interesses, ao nepotismo, ao primado dos interesses individuais sobre o bem comum. Cada vez mais as siglas partidárias não representam a “vontade geral”, num contexto em

381 WEIL, Simone (1942-43) – Note sur la suppression générale des partis politiques, texto reeditado em 2017 que apareceu pela primeira vez na revista La Table Ronde, n.º 26. Paris: Editions Allia, pp. 7-10.

382 Doutorado em Ciências Sociais pelo ISCSP - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.

383 SECO, Victor (2021) – in O Triângulo da Democracia, op. cit., p. 91.

384 Morreu aos 33 anos, vítima de doença provocada ou agravada por um militantismo exacerbado que a impediu de se alimentar condignamente.

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que os interesses da esfera pública estão submetidos aos interesses privados, em que se promiscuam os interesses dos dirigentes políticos com os interesses pessoais. Não advogamos, como Weil, a supressão dos partidos políticos pelo desserviço ao povo, outrossim entendemos encará-los como um mero instrumento, entre outros que existem, para a construção política da sociedade.

Os partidos, enquanto realidade organizacional insondável que inspira a idolatria, promovem uma espécie de maniqueísmo político que impõe aos cidadãos o imperativo de uma dicotomia a preto e branco que não lhes dá margem para pensar cinzento. Num contexto político fortemente marcado pela ascensão de regimes totalitários como o fascismo e o nazismo, Weil estabelece três características que informam os partidos, de forma mais ou menos dissimulada, a saber: um partido é uma organização que fabrica paixões; um partido é uma máquina que pressiona tanto ideologicamente como emocionalmente os seus aderentes; o fim último de um partido é o seu próprio crescimento. Com a sua ideia da supressão dos partidos políticos a autora remete para a substituição da democracia representativa pelo modelo participativo.

Para Patrick Charaudeau385, o uso do discurso público na defesa intransigente dos interesses do povo configura uma estratégia que os políticos adotam subjacente à necessidade endémica de se perpetuarem no poder ou, ao menos, de uma “manutenção mais longeva no poder”. Os representantes dos partidos devem papaguear na opinião pública a ideia da credibilidade opinativa, com o uso de uma retórica verborreica que inspira “legitimidade adquirida e atribuída” que só é possível num contexto de identificação e de aparente consenso em torno de valores e ideais. A instância política desempenha esse “duplo papel de representante e de fiador do bem-estar social”:

No espaço político, a instância recetora é uma instância cidadã, que sabe que tem responsabilidade na sua função de delegação de poderes e, ao mesmo tempo, o direito de visão sobre a ação política, instituindo assim um possível contrapoder. Dadas essas características do espaço político, dessa obrigação de fazer com que o cidadão adira ao seu projeto ou à sua ação política, o sujeito político deve implantar diversas estratégias discursivas: estratégias de construção de imagens de si mesmo, de uma forma que é feita, por um lado, credível aos olhos do corpo cidadão (ethos de credibilidade), e de outro, atraente (ethos de identificação) […] Observa-se que o discurso político é um lugar de verdade capciosa, de «simular», já que o que conta não é tanto a verdade dessa palavra proferida publicamente, como sua força de verdade, sua veracidade, suas condições de dramatização que requerem a apresentação de valores de acordo com um roteiro dramático capaz de mover o público de forma positiva ou negativa.386

Mantendo esta linha de pensamento, não existe no candidato a um cargo público o elencar de ideias ou medidas que veiculem as suas próprias convicções, mas, ao contrário, uma máscara propositiva que cenograficamente oculta o jogo de interesses e as relações perigosas que se estabelecem entre as peças do tabuleiro do poder, em que os peões são os eleitores e as pedras “nobres” os eleitos.

385 Linguista francês nascido em 1939, especializado em Análise do Discurso, é professor da Universidade Paris-Nord (Paris XIII).

386 CHARAUDEAU, Patrick (2009) – Reflexiones para el análisis del discurso populista, in Revista Discurso & Sociedad 3(2), Barcelona, pp. 262-263.

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Em Weil, invoca-se assim uma “liberdade irrestrita no modelo democrático”, em que os cidadãos, livres de qualquer influência ideológica partidária que possa “contaminar as suas convicções”, assumem políticas associadas ao bem comum, numa sociedade pluralista e livre não refém de guerras ideológicas e de cenários políticos aparentemente antagónicos, uma sociedade em que todos os cidadãos participam na vida pública tendencialmente no modelo “impossível” da democracia direta, em assembleias públicas que se promovam em contraponto com as instâncias do poder executivo e legislativo para avaliar e corrigir o exercício do poder por parte dos eleitos, depondo os governantes que usurpem o poder de decisão coletiva ao gerir os destinos da nação de forma oligárquica.

Dadas as dimensões e as formas de organização das sociedades atuais, parece muito difícil, se não impossível, que algum tipo de participação direta possa substituir o princípio de representação como mecanismo de atualização da vontade dos cidadãos. Por isso, parece pois não haver mais alternativa para a expressão da vontade dos cidadãos que os sistemas eleitorais. Tais sistemas outorgam um peso idêntico a cada cidadão na designação de quem deverá tomar as decisões que afetarão a todos. Mas o voto não é suficiente na democracia atual, pelo que é urgente também considerar as redes sociais cidadãs e dotá-las de legitimidade política e legalidade de ação, isto é, também se deve basear a construção do Estado democrático em microestruturas comunitárias que tenham espaço e representatividade suficientes.

Quando se fala em, ou se pesquisa, “democracia deliberativa”, o nome mais recorrente é o de Jürgen Habermas, mas este não foi o único nem o mais esclarecedor autor acerca deste conceito de democracia. Aliás, Habermas quase levou a democracia deliberativa ao ininteligível, tais as referências de outros autores a que recorre e a mistura de ideias que interpõe, numa autêntica profusão de ideias filosóficas, sociológicas e políticas. Na democracia deliberativa deste autor, os cidadãos “informados” estão em condições de decidir e instruir o poder político para o fazer.

Também para o “justicialista” John Rawls, a deliberação faz parte de uma democracia constitucional “bem-ordenada”, em que prevalece a escolha, pelos agentes políticos, dos princípios que devem nortear a sociedade para que ela seja considerada justa, a elaboração de uma constituição tendo em conta os princípios da diferença e da igualdade, a votação de leis específicas de acordo com estes princípios e a constituição e, por último, a aplicação das leis aos casos particulares pelos juízes e administradores. A “deliberação” está presente em todas estas etapas, do momento inicial em que todos os participantes no processo político inferem as condições e possibilidades até ao momento derradeiro em que se verifica o conhecimento completo dos interesses envolvidos nas deliberações. Nesta “teoria da justiça como equidade” o justo tem prioridade sobre o bem, em detrimento de uma justiça procedimental perfeita, de aplicabilidade pouco provável. Segundo Rawls:

Dizer que uma sociedade é bem-ordenada significa três coisas: primeira (e implicada pela ideia de uma concepção publicamente reconhecida de justiça), é uma sociedade na qual cada um aceita, e sabe que todos os outros aceitam, exatamente os mesmos princípios de justiça; e segunda (implicada pela ideia da regulação efetiva de tal concepção),

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sua estrutura básica - ou seja, suas principais instituições políticas e sociais e como elas se ajustam como um sistema único de cooperação - é publicamente tida, ou tem-se boas razões para acreditar nisso, como satisfazendo a esses princípios. E terceira, seus cidadãos possuem um senso de justiça normalmente eficaz e desse modo eles geralmente acatam as instituições básicas da sociedade, que eles encaram como justas.387

Ainda de acordo com Rawls, devemos conviver com a ideia de que as nossas sociedades daqui para a frente estão inexoravelmente sujeitas à diversidade étnica, religiosa, cultural e política e que devemos conviver com esse “pluralismo razoável” que, dada a sua abertura e abrangência, tem boas probabilidades de ser comumente aceite por todas as partes através do “consenso por sobreposição”, que transcende as especificidades próprias das diferentes doutrinas, numa espécie de programa supra ideológico. Não existe necessariamente uma contradição entre o modelo deliberativo e o modelo participativo. A teoria política contemporânea consagra espaço para estas diferentes abordagens e estabelece os limites práticos de cada uma delas.

Também em Habermas, a deliberação política democrática implica a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva, isto é, a organização voluntária da sociedade em oposição ao enquadramento rígido do sistema (regime) político que comporta o conjunto das instituições através das quais o estado exerce o seu poder sobre a sociedade, instituições que regulam a disputa do poder político e o seu exercício, ou seja, a relação entre os que detêm o poder e os cidadãos em geral.

Em Portugal, alguns autores, como João de Almeida Santos388, falam no reforço da democracia deliberativa a partir da tradicional democracia representativa, através de uma teoria comunicativa integrativa à guisa de Habermas.

Não se trata […] de superar a democracia representativa, substituindo-a por uma democracia directa de novo tipo, mas precisamente de fazê-la evoluir para uma ‘democracia deliberativa’ onde a cidadania ocupe um lugar mais activo e interveniente não só nos processos de promoção do consenso, mas também nos processos de construção da decisão, incluída a formal […] Do que se trata é de reconhecer que se está a dar novos passos na afirmação política da cidadania e que isso exige um novo conceito de poder e novas formas de organização do consenso e da participação política para além das formas tradicionais, sendo certo que hoje existem poderosos instrumentos para isso […] Central nestes processos é a lógica da conectividade, com o reconhecimento de que os processos de inovação social ocorrem através do accionamento da ‘inteligência grupal’, hoje com instrumentos muito eficazes de acção e de comunicação, um conceito mais alargado de poder, designadamente através do conceito de ‘poder diluído’ uma nova identidade para a ‘cidadania activa’, onde ao indivíduo é reconhecida uma centralidade que antes nunca conhecera, e mesmo um novo conceito para a democracia representativa, a ‘democracia deliberativa’. A conjugação destes elementos de novidade permitirá relançar a política para novos patamares, sem produzir efeitos disruptivos sobre o próprio sistema democrático, evitará a desagregação do sistema tradicional de partidos doentes de partidocracia e

387 RAWLS, John (1996) - Political liberalism. New York: Columbia University Press, p. 35.

388 Investigador português nascido em 1949, doutorado pelas Universidades de Roma “La Sapienza” e pela Complutense de Madrid, é diretor da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração da Universidade Lusófona e da revista ResPublica.

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impedirá o triunfo de populismos que nunca serão boas soluções para salvaguardar a liberdade que a democracia representativa garante. Permite, isso sim, um aprofundamento das lógicas democráticas, melhores decisões e maior legitimidade ao sistema, na medida em que a integração política é fortemente reforçada. 389

A teoria social habermasiana assenta na ação e racionalidade comunicativa, na base do diálogo e do consenso que envolvam todos os atores sociais. Habermas, segundo Alfredo Alejandro Gugliano390, opõe-se a uma teoria normativa da democracia, em que a autoridade governamental provém do poder das urnas e toma como pressuposto a existência de um livre consentimento dos cidadãos que, ao validar as ações decorrentes da adoção de determinadas opções eleitorais, garantem o respeito das regras da delegação de poder outorgada aos setores ungidos pela eleição; propõe, em alternativa, uma organização política da sociedade que enfatize o processo através do qual o sistema político constrói novas formas de consenso fundamentadas numa teoria democrática discursiva, em que a formação de opinião desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável391.

A democracia deliberativa constitui assim uma evolução extraordinária em relação aos níveis representativo e participativo, complementando-os, mas ao mesmo tempo elevando a “democracia” a um patamar nunca antes atingido, ou ainda não atingido verdadeiramente. O imperativo do “inteligível” é também uma aquisição não despicienda, porquanto não têm legitimidade moral as tomadas de decisão pouco fundamentadas. Poderemos falar assim de uma democracia esclarecida em que se afirma o primado do poder comunicativo das sociedades modernas, da valoração da opinião e da vontade públicas.

6.7. Democracia pós-representativa

A crise do sistema partidário tradicional, o progressivo distanciamento dos cidadãos em relação aos partidos políticos e às instituições democráticas, a perda da legitimidade dos governantes eleitos, entre outros fatores, conduzirá inevitavelmente, se nada for feito no sentido de devolver o poder de decisão aos cidadãos, à crise da democracia representativa e, eventualmente, ao emergir das soluções governativas populistas e extremistas. Nos últimos anos muito se tem falado da crise da representação, ligando-a por vezes à (suposta) crise da democracia, que desemboca in extremis em teorias como a que apresentou Peter Mair em 2000 ao introduzir o conceito de partyless democracy (democracia sem partidos).

Parte-se do pressuposto que as estruturas partidárias e outras organizações políticas

389 SANTOS, João de Almeida et al. (2020) – Política e Democracia na Era Digital, organização de João de Almeida Santos. Lisboa: Edições Parsifal, pp. 150-151.

390 Professor de Sociologia e Política.

391 GUGLIANO, Alfredo Alejandro - Democracia, participação e deliberação. Contribuições ao debate sobre possíveis transformações na esfera democrática, in Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 4, n.º 2, jul./dez. 2004. Porto Alegre, passim

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já perderam a capacidade de encantar o eleitorado e caminham para uma erosão sem retorno a médio ou longo prazo, em paralelo com o augúrio de novas formas de participação democrática, mais apelativas e mais próximas dos cidadãos.

Associa-se também a crise dos partidos, incapazes de se refundar, e a própria crise de legitimidade da representação democrática, à crise económica global, posição em que não nos inclinamos a corroborar. Com efeito, crises económicas mundiais anteriores propiciaram a emergência de grandes partidos de massas e líderes bonapartistas fortes, e não o contrário.

Mas é verdade que a crise da democracia representativa e a desconfiança em relação às instituições políticas gerou três fenómenos prevalecentes. Em primeiro lugar, a apatia social (que poderemos entender como o desinteresse pela política e pelas instituições ou, no caso extremo, a repulsa pela atividade política) que resulta da incapacidade do poder dar resposta aos anseios e necessidades da população, que se sente cada vez mais afastada da capacidade de decidir os seus próprios destinos. Em segundo, a reivindicação da cidadania (sociedade civil) em assumir um maior controlo sobre as instituições representativas (o que alguns autores chamam de democracia sancionatória e outros de antidemocracia), com o recurso preferencial à democracia. Por último, a consideração e a legitimação de novas formas de participação política, através da cidadania ativa, com o surgimento profícuo de novos fatores de participação como as ONG (Organizações não Governamentais) e os movimentos justicialistas, ambientalistas e de defesa dos consumidores, as petições e iniciativas legislativas, os orçamentos participativos e as plataformas online (debates em direto, fóruns interativos, webinars).

A desconfiança sistemática sobre os representantes eleitos produz o que hoje se define como uma espécie de democracia sancionatória, baseada mais na necessidade de controlo sancionatório sobre o trabalho dos representantes do que na vontade de agir sobre os processos decisionais e as policies.

Chegamos assim àquela que alguns chamam de democracia “pós-representativa”392, na qual se enquadram as organizações não governamentais atrás referidas, as assembleias de cidadãos, bem como as corporações profissionais e os próprios sindicatos em que ainda existe a vertente representativa do primeiro patamar, digamos delegativa, mas que depois acabam por ser players dos jogos de poder. O termo “sindicato” tem origem etimológica em sindicus (no latim significava aquele que defendia os interesses de uma corporação) e em syn-dicos (no grego significava aquele que defendia a justiça).

Acrescem as manifestações dos gilets jaunes em França e do movimento pró-democracia em Hong Kong, na senda das grandes manifestações de Maio de 68 em França, e também as greves e a mobilização mundial pelo clima da jovem ativista Greta Thunberg, só para citar estas, igualmente capazes de mudar as políticas governamentais, ou mesmo os elencos governativos, através da “não-representação”.

O défice de confiança por parte dos cidadãos em relação às instituições políticas, faz crescer assim novas formas de representação ou reações que reclamam novas formas de representação, como a “hiper representação” que está na base de muitos “populismos” (expressão que usamos com cautela) contemporâneos.

392 Termo cunhado em 2000 pelo sociólogo inglês Colin Crouch na sua obra Coping with Post-Democracy.

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Por outro lado, o historiador francês Pierre Rosanvallon (2006: La contrademocracia: la política en la era de la desconfianza, Buenos Aires: Manantial, passim) propõe a “contra democracia” como uma forma de democracia que fortalece a tradicional democracia eleitoral através, sobretudo, dos contrapoderes de vigilância, de proibição e de julgamento. “Entre os diversos poderes de controlo, Rosanvallon identifica também a comunicação e, em particular, a rede. Porém, ao mesmo tempo, não escapa ao estudioso francês que ferramentas como a própria rede podem facilmente tornar-se em ferramentas de exaltação das retóricas antipolíticas ou, na melhor das hipóteses, em aceleradores da quebra de confiança entre cidadãos e instituições”393 .

A democracia pós-representativa é já uma realidade que ultrapassa a mera informalidade democrática, pela sua capacidade de influenciar ou condicionar o poder político institucional através de novas dinâmicas de participação e intervenção cívica e política que muitas vezes descambam em epifenómenos de despolitização.

“E é precisamente a mudança de cenário da participação política a marcar uma diferenciação cultural: da organização vertical dos velhos partidos de integração de massas […] à lógica reticular do activismo do dia-a-dia, que pode ser ao mesmo tempo intermitente e estável, fortemente territorializado e culturalmente cosmopolita”394 .

O sistema representativo clássico está hoje sujeito a novas exigências que não mais se coadunam com a sua estrutura formal tradicional (pelo que já se fala em democracia pós-representativa, pós-eleitoral, deliberativa, participativa ou líquida) e que transbordam numa espécie de “discrasia da representação”395 .

Cidadania e poder político interagem hoje de forma diferente de como o faziam na segunda metade do século XX.

6.8. Democracia e ideologia

Como Simone Weil, perseguimos utopicamente a ideia de uma sociedade que se autogoverna e que não é “pasteurizada” ideologicamente. Se o bem comum é só um, não faz sentido “partir” a sociedade em sistemas ideológicos que se digladiam entre si, mas que cultivam o “mito da neutralidade político-governamental”. Com efeito, resgatar o espírito da intervenção direta dos cidadãos nas decisões que respeitam aos seus interesses enquanto Estado, pode ser hoje considerada uma utopia num contexto e numa tessitura social em que a maioria dos cidadãos não se quer envolver nas decisões políticas, limitando-se a participar na falaciosa “festa da democracia”. As sociedades democráticas congregam diferentes ideologias, que convivem ou se disputam no quadro institucional, do liberalismo ao socialismo, passando pela social-democracia e incluindo os radicalismos de esquerda e de direita. Podemos assim dizer que o modo e o sistema de governo democráticos são “supra ideológicos”, porquanto permitem a coexistência, mais ou menos pacífica, de “modelos” ideológicos diferentes

393 BLASIO, Emiliana de; SORICE, Michele (2020) – in Política e Democracia na Era Digital, organização de João de Almeida Santos. Lisboa: Edições Parsifal, p. 78.

394 Ibidem, p. 80.

395 SANTOS, João de Almeida (2020) – Op. cit., pp. 19-20.

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e mesmo antagónicos.

O preconceito ideológico é, em última análise, inimigo da democracia. Os sistemas ideológicos são redutores e, enquanto tal, inimigos de soluções governativas democráticas. As tradicionais divisões entre centro, esquerda e direita, inviabilizam em si a verdadeira democracia representativa e participativa, porquanto ostracizam o debate livre das ideias e, sobretudo, a governabilidade pelo e para o cidadão que é a base da democracia.

Os regimes totalitários são prova disso, porque fortemente ideológicos. Da antiga União Soviética estalinista à atual Turquia oligárquica, passando pela China imperialista de há anos ou pela nova Myanmar militarista.

Acerca da “produção” ideológica, escreve António Oliveira e Cruz:

Toda a ideologia - ou toda a «acusação» de ideologia - se apresenta como um sistema de interpretação do mundo físico-social. Por este facto, implica um «sistema de valores» e sugere uma situação de valoração, um processo de qualidade - maior ou menor - e seu consequente desejo e possessão. A possessão ideológica é absoluta, não admite partilha. E por isso projecta a negação-de-si para o outro, afirmando-se não-ideológico, pela ideologização do outro – em que ser outro é ser ideológico. Por outro lado, toda a ideologia apresenta-se, sempre, como uma certeza de facto, uma «exigência» de ser […] o ideológico engana-se a si mesmo, projectando o seu engano no outro.396

Também a relação entre ideologia e poder configura a ordem estabelecida, criando os seus próprios mecanismos ou meios de reprodução, como as instituições, a autoridade, a moral, a religião e a própria ciência. “Todo o sistema tende, fatalmente, para a sua própria conservação e, por isso, sistematiza. É, ao mesmo tempo, um instrumento de poder e do poder”397

Reconhecer o papel castrador das ideologias no “processo” democrático, não significa que é possível fugir à “ideologia”. É utópico admitir sequer o fim das ideologias, porque isso não acontecerá. Faz parte integrante da natureza humana. Mesmo as teorias mais niilistas não o advogam, até porque contêm no seu cerne a própria ideologia, mesmo que lhe chamem contraideologia. As próprias teorias não ideológicas, sem deixar de o ser, apenas se distinguem das inversas por possibilitar as condições, que não fundamentos, para a sua “desideologização”.

Noutro sentido vai Mário Duarte, quando afirma que a ideologia e a realidade sociopolítica não podem ser abordadas separadamente e que toda a análise é ideológica. Mas também ressalva que, “reduzir a ideologia política à ideologia partidária é confundir o mar com os rios que nele desaguam”398 .

Se o século XIX foi o tempo das ideologias (liberalismo, comunismo, socialismo, anarquismo), no século XX houve quem falasse na crise das ideologias de matriz huma-

396 CRUZ, António Oliveira (1978) – A teoria de Piaget e os mecanismos de produção da ideologia pedagógica. Lisboa: Socicultur, Divulgação Cultural, pp. 68-69.

397 Ibidem - p. 78.

398 DUARTE, Mário (2020) – Op. cit., p. 79.

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nista do século XIX, como Daniel Bell (1919-2011)399. “Os ideólogos são «terríveis simplificadores». A ideologia faz com que as pessoas deixem de enfrentar problemas específicos, e de examiná-los à luz dos méritos individuais. As respostas estão prontas, e são aceites sem reflexão 400 .

Percebe-se que a “ideologia de classe” afrouxou com o desenvolvimento económico do pós-guerra, o advento de Estado providência e a melhoria geral da qualidade de vida dos cidadãos, quadro em que as ideologias perderam parte do seu carácter mobilizador, mas elas ainda persistem hoje nos manifestos doutrinários dos concorrentes políticos. Mas uma coisa é a “referência” ideológica e outra o “desprendimento” do preconceito ideológico, na prossecução de um (novo) conceito do bem comum, supra ideológico, que há de enformar o pensamento democrático, transcendente às divisões sociais que se atenuarão sem atingir o igualitarismo orgástico, impensável a curto ou médio prazo, ele próprio fortemente ideologizado.

O bem comum, por contraposição ao bem ideológico, a “cultura da tolerância” em contraponto à “cultura ideológica”, são os únicos conceitos que podem galvanizar a mudança do paradigma do poder no século XXI.

Os autores marxistas, por exemplo, defendem que todas as manifestações têm conteúdo ideológico e devem ter um carácter utilitarista, mesmo as intelectuais. Georgi Plekhanov (1856-1918)401, por exemplo, refuta “a arte pela arte”, com o pretexto de que todas as atividades humanas devem servir o homem e o progresso social, o que naturalmente é válido para a política, “qualquer poder político, na medida em que se interessa pela arte, prefere sempre a arte utilitária. E isto é muito compreensível, porque é do seu interesse fazer servir todas as ideologias à causa que ele mesmo serve […] A tendência para a arte pela arte surge onde existe um desacordo entre os artistas e o meio social que os rodeia”402 .

Não admitem assim que a “superestrutura” (direito, política, religião, cultura, arte, etc.) possa ser ou estar “desideologizada”, autonomizada da realidade social e económica (infraestrutura), condicionando as atividades literárias, artísticas e espirituais às exigências da demanda das ideias “progressistas”, tudo o resto é estéril. Do nosso ponto de vista, a arte e a criatividade, tal como a política, não podem ficar reféns do determinismo histórico. Devem ser “refletores”, mas sobretudo “construtores” do nosso destino e da própria história, do devir e do porvir da sociedade humana, onde a liberdade individual, mesmo que disruptiva, é parte integrante e inalienável do coletivo. A coação é contrária à liberdade individual. A causalidade determina-a, mas a liberdade também é causalidade.

399 Sociólogo norte americano, foi professor emérito da Universidade Harvard e investigador da Academia Americana das Artes e Ciências; é considerado um dos líderes intelectuais da América do pós-guerra.

400 BELL, Daniel (1960) – Epílogo de O fim da Ideologia, tradução de Sérgio Bath para a edição em língua portuguesa de 1980. Brasília: Editora Universidade de Brasília, pp. 327-328.

401 Filósofo, teórico e revolucionário russo, autor de O socialismo e a luta política (1883), obra em que formula as bases ideológicas do marxismo russo.

402 PLEKHANOV, Georgi (1977) – A Arte e a Vida Social, 1.ª edição, tradução Ana Maria Rabaça. Lisboa: Moraes Editores, p. 21.

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6.9. Democracia e autoritarismo

Os modelos de governação democrática (democracias plenas ou com falhas), independentemente da qualidade e da independência das instituições que os enformam, opõem-se sempre aos modelos ditatoriais (totalitários ou autoritários), em que há a subordinação dos poderes judiciário e legislativo ao poder executivo e a repressão a toda e qualquer oposição política e ideológica ao governo. As autocracias e as oligarquias, governos em que o poder político está, respetivamente, concentrado em um só governante ou em um só grupo social (família, partido ou corporação) podem, no entanto, ser consideradas governos democráticos imperfeitos.

Hannah Arendt (1906-1975)403, que preferia a democracia direta em relação à democracia representativa, e que foi a primeira teórica política a distinguir entre autoritarismo e totalitarismo, na III parte da sua obra As Origens do Totalitarismo404 caracteriza o sistema totalitário como a forma mais nefasta das ditaduras. Para a escritora teuto-americana o regime totalitário, como todas as tiranias, não pode existir sem destruir a vida pública e política, isolando os homens, ele se funda sobre a desolação, sobre a experienciação da não pertença ao mundo405. Acrescenta ainda que desolação não é solidão, mas esta pode tornar-se a primeira quando o homem só (acompanhado por si mesmo) se sente na verdade abandonado pelos outros, e que a desolação organizada é bem mais perigosa que a impotência desorganizada de todos quantos se submetem à vontade tirânica e arbitrária de um só homem406

Se o nazismo foi a expressão máxima do totalitarismo no século XX, e a segunda guerra mundial o acontecimento mais brutal da história da humanidade com cerca de 80 milhões de vítimas, convém compreender as suas raízes sociológicas. Raquel Varela407 escreve que o Partido Nazi chega ao poder em 1933 num contexto de crise económica e social, em que o grau de apoio e compromisso da sociedade alemã com o nacional-socialismo é complexo, para o que contribuem vários fatores, como a derrota alemã na primeira guerra, a crise do regime constitucional de Weimar, o desespero da burguesia perante a crise de 1929, a economia de guerra e o investimento público, a militarização da mão de obra, o sectarismo político da Internacional Comunista e a sua desvalori-

403 Filósofa alemã de origem judaica, naturalizada norte-americana em 1951, ano em que escreveu As Origens do Totalitarismo, é uma das pensadoras políticas mais relevantes do século XX. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Heidelberg, onde foi aluna de Karl Jaspers.

404 A única obra de natureza política que consta da lista dos 100 melhores livros do século XX, fruto de uma sondagem entre franceses, realizada no fim do século pela Fnac e pelo jornal Le Monde, a partir de uma lista preliminar de 200 títulos escolhida por jornalistas e livreiros.

405 ARENDT, Hannah (1951) – Le système totalitaire, tradução de Jean-Loup Bourget, Robert Davreu e Patrick Lévy para a edição em língua francesa de 1972. Paris: Éditions du Seuil, p. 226.

406 Ibidem, pp. 227-228.

407 Historiadora portuguesa nascida em 1978, é doutorada em História Política e Institucional pelo ISCTE e professora na Universidade Nova de Lisboa.

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zação do fascismo, mas sobretudo a desmoralização política e psicológica dos seus adversários408.

Aquela visão sociológica das premissas da tirania e dos governos totalitários tem depois o enquadramento de um pós-guerra desesperançado, mas não nos parece nos nossos dias, com o advento da era digital e do clima de maior abertura no campo das relações interpessoais, um fator de regressão democrática, porque hoje todos somos “prosumers”409, apesar de podermos mais facilmente ser colonizados ideologicamente. Outrossim, o desencanto com os resultados das democracias na vida das pessoas e na equidade social, em que os recursos financeiros se concentram em um número cada vez mais pequeno de cidadãos e em que as perspetivas de uma sociedade sustentável do ponto de vista social e ambiental se esfumam a largos passos, mas também o consumismo perverso que enferma hoje a nossa sociedade, em que tudo é efémero, material e não tem uma base moral duradoura.

É esta “espuma dos dias”410 que nos deve hoje preocupar e a solução passará, sem dúvida, pelo redesenho dos modelos democráticos com vista à correção das assimetrias sociais e políticas através do reforço da mobilização e da participação de todos os cidadãos na prossecução e na construção de uma sociedade mais solidária, mais justa, mais igual e mais próspera.

É certo que também a mesma Hannah Arendt, no seu libelo contra a ditadura e a tirania, nos faz acreditar que os modelos totalitários têm em si os germes da sua própria destruição e que cada fim da história contém necessariamente um novo começo que, antes de se tornar um événement histórico, (re)ssurge da suprema capacidade do homem e da sua liberdade411

408 VARELA, Raquel (2022) – Breve História da Europa - Da Grande Guerra aos Nossos Dias. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 76 e 84-87.

409 No sentido que confere a este anglicismo João de Almeida Santos, que é o do cidadão atuante como agente político direto no contexto da sociedade “conectada”, isto é, capaz de se automobilizar e organizar politicamente no espaço público digital deliberativo.

410 Expressão que fomos buscar ao título do romance homónimo do escritor surrealista e anarquista francês Boris Vian, de 1947, em que a riqueza material rapidamente se desvanece e se torna na maior miséria moral, tal como o mar se torna espuma na areia da praia.

411 ARENDT, Hannah (1951) – Op. cit., pp. 231-232.

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7. OS NOVOS CAMINHOS DA DEMOCRACIA

7.1. Poliarquia e democracia

Robert Dahl prefere o conceito de “poliarquia” (na aceção literal de “governo de muitos”) ao de “democracia plena”, porque considera este último como o modelo ideal e, portanto, tendencialmente desejado, mas inatingível. A poliarquia corresponde ao máximo de democratização que as nações do mundo ocidental desenvolvido lograram alcançar.

Para Dahl os governos poliárquicos, que considera o sistema político do século XX, atingem a sua plenitude mediante o cumprimento de sete características diferenciadoras dos demais regimes políticos, a saber: eleições justas e livres, sufrágio inclusivo, funcionários eleitos, liberdade de expressão, direito de concorrer e ser eleito para cargos, autonomia associativa e informação alternativa. Resumindo, para se ter uma poliarquia plena é necessário a conjugação de dois fatores essenciais, a participação pública ou abertura do sistema político aos cidadãos, nomeadamente através do voto e do acesso a cargos públicos, e a possibilidade livre e justa de contestar e conquistar o governo pela oposição, através de eleições regulares e equitativas.

Nos antípodas da poliarquia, este cientista político fala em “hegemonia”, (termo que prefere a monocracia ou autocracia), considerando a hegemonia “fechada” (a mais afastada do estádio da poliarquia), em que não há participação no governo e competição pelo poder, e a hegemonia “inclusiva”, que já admite alguma forma de participação do povo no governo, mas não permite a competição justa porque o poder se eterniza. Fala ainda no modelo intermédio da “oligarquia competitiva”, em que há a disputa do poder em condições de relativa igualdade entre as elites, mas o povo é maioritariamente excluído.

Segundo Robert Dahl, “em todos os países, quanto maiores oportunidades existam para expressar, organizar e representar preferências políticas, maior será o número e a variedade de […] interesses políticos que provavelmente estarão presentes na vida política”412. É ainda Dahl que escreve, na mesma obra citada, que os teóricos políticos têm argumentado que as desigualdades extremas contribuem para a criação de regimes hegemónicos, que os sistemas não hegemónicos contêm um número preponderante e homogéneo de pessoas da classe média, em que não há diferenças extremas de status e de riqueza, e que os países aparentemente “democráticos” ainda nada mais são do que hegemonias disfarçadas413.

Para o teórico norte-americano a pluralidade de grupos na disputa do poder e na decisão política é um fator essencial para a qualidade da democracia. Pesponta assim, neste autor, apesar dos seus excelentes contributos para a pluralidade política, alguma visão elitista da democracia ao sobrevalorizar o papel das minorias ativas no âmago da democracia.

412 DAHL, Robert A. (1999) – La poliarquía. Participación y oposición. Madrid: Tecnos, p. 33.

413 Ibidem, p. 83.

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7.2. Democracia Cognitiva

O filósofo alemão Jürgen Habermas, como já vimos, sempre valorizou o papel do conhecimento na vitalidade da democracia do tipo representativo deliberativo. Também Edgar Morin, advertindo para os perigos de um saber cada vez mais isotérico, mais técnico e específico, quadro em que o cidadão perde o direito ao conhecimento, advoga que “quanto mais a política se torna técnica, mais a competência democrática regride […] a privação do saber, mal compensado pela vulgarização mediática coloca o problema histórico, desde logo capital, da necessidade de uma democracia cognitiva414 . Há mais de setenta anos, também Hannah Arendt argumentava que a liberdade de agir e de ser politicamente ativo continuam a ser prerrogativas dos políticos profissionais que se apresentam aos olhos do povo como seus representantes415, arrogando-se de suposta superioridade moral e técnica.

Esta especialização da política a que aludem Morin e Arendt constitui um entrave ao exercício pleno da democracia ao remeter para a esfera “do outro” tudo o que concerne ao pensamento e prática política (praxis), alienando o cidadão “comum” dos processos construtivos do poder, impedindo, em última instância, a implementação de uma democracia cognitiva, de uma democracia assente na disseminação do conhecimento. A construção de uma democracia cognitiva exige a fruição, a difusão e a produção de conhecimentos que, por força dos mais recentes meios de comunicação e informação, não estão mais confinados às instituições de ensino e ao mundo escolástico em geral. Na democracia cognitiva o direito do cidadão em participar no processo democrático não se esgota em si mesmo, como na democracia participativa, ou seja, não se confina à sua opinião, mas antes à exposição convicta, e de modo cognitivamente sustentado, dessa mesma opinião perante os outros intervenientes no processo.

Tomemos a alegoria de Jorge Varela416 quando compara a democracia representativa à possibilidade de os cidadãos escolherem os atores e assistirem à peça política (cujo reportório se renova de quatro em quatro anos), a democracia participativa ao desempenho de papéis na peça política, conjuntamente com os atores profissionais, e a democracia cognitiva à possibilidade de conceber a própria dramaturgia e cenografia da ação política417.

O ritmo acelerado da evolução técnica e científica por que o mundo hoje passa gera

414 MORIN, Edgar (1999) –Op. cit., pp. 19-20.

415 ARENDT, Hannah (1951→) – A Promessa da Política, compilação de textos inéditos da autora pelo seu aluno e assistente Jerome Kohn (2005), tradução de Miguel Serras Pereira para a edição em língua portuguesa de 2007. Lisboa: Relógio D’Água Editores, p. 123.

416 Professor especialista em Direito na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria, desde 2005.

417 A Democracia cognitiva, comunicação apresentada no Congresso “Educação e Democracia” que decorreu na Universidade de Aveiro nos dias 2 e 3 de maio de 2007:

https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/61/1/Microsoft%20Word%20-%20A%20Democracia%20Cognitiva.pdf

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uma busca ávida de conhecimentos na sociedade, mas também acantona o saber em compartimentos estanques e impede uma visão global e interdisciplinar do conhecimento. A divisão social do trabalho é hoje cada vez mais uma divisão social de competências instrumentais, pelo que importa reverter democraticamente o direito ao saber, numa perspetiva trans ou supradisciplinar.

A função de produção e difusão de conhecimentos e informações encontra-se cada vez mais disseminada através das redes sociais, que faz dos cidadãos prossumidores (prosumers)418, ou seja, influenciadores capazes de gerar opiniões que condicionam, positiva ou negativamente, a economia, a sociedade e a política, principalmente através da internet.

Para António Ronca419 e Rogério da Costa420, “a noção de co-evolução mostra que as mudanças tecnológicas, além de exigirem uma adaptação das pessoas, demandam também uma co-evolução da coletividade social”421, isto é, a transformação do tecido social só é possível se as próprias instituições investirem nessas mudanças, porque não se trata somente de assimilar as novas tecnologias, mas de colocá-las ao serviço da sociedade encarada como um todo somático de relações interpessoais. Como distinguir então a democracia cognitiva422 da democracia deliberativa423? A participação política dos cidadãos depende de uma identidade cultural forte que dificilmente pode ser encontrada nas sociedades muito marcadas pelo pluralismo político, religioso e moral, por isso a democracia cognitiva é hoje um tentame de síntese entre o conhecimento “analógico” ou digital e as condições modernas do pluralismo, do multiculturalismo e da complexidade social. A democracia deliberativa começa com uma reconstrução da sociedade moderna através de uma teoria da ação comunicativa que exponencia as possibilidades da razão, da emancipação e da comunicação racional-crítica, que existem latentes na capacidade humana de deliberar e agir racionalmente. Há, portanto, similitudes, mas na democracia cognitiva prevalece o conhecimento interdisciplinar e a sua projeção na ação política e na deliberativa predomina a vertente comunicacional como fator de interação política.

Voltando a Edgar Morin, a reforma do pensamento é uma necessidade chave do ponto

418 Termo cunhado pelo escritor Alvin Toffler na sua obra A Terceira Onda (1980).

419 Foi presidente do Conselho Nacional de Educação do Brasil e reitor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo entre 1993 e 2004, onde atualmente é professor de Estudos em Educação e Psicologia da Educação.

420 Professor de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

421 RONCA, Antonio Carlos Caruso; COSTA, Rogério da (2002) – A Construção de uma Democracia Cognitiva in revista São Paulo em Perspectiva, 16(4). São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, p. 28.

422 Expressão já utilizada por Edgar Morin em 1999 na sua obra La tête bien faite

423 Expressão cunhada em 1980 por Joseph Bessette no seu artigo Deliberative democracy: The Majority Principle in Republican Government, in How Democratic is the Constitution?, editores Robert Goldwin e William Shambra. Washington: American Enterprise Institute for Public Policy Research, pp. 102-116.

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de vista democrático, pois é necessário formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas complexos do nosso tempo, e refrear o “estiolamento democrático” que, ao exacerbar a autoridade dos peritos e dos especialistas em todos os campos da política, diminui progressivamente a competência dos cidadãos, que ficam condenados à aceitação ignorante daqueles que monopolizam o conhecimento, ou melhor, que consubstanciam em si o “saber”, mas um saber parcelar e abstrato e não global e fundamental424

O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é assim possível dentro de uma reorganização do próprio saber e da reforma do pensamento: “Precisamos, pois, de nos rearmar intelectualmente instruindo-nos em pensar a complexidade, enfrentar os desafios da agonia/nascimento do nosso entre-dois-milénios […] É uma forma vital para os cidadãos do novo milénio, que permitiria o pleno emprego das suas aptidões mensais e que constituiria, certamente não a única condição, mas uma condição sine qua non para sair das nossas barbáries”425

A ‘ignorância racional’ de que alguns cientistas políticos falam, no contexto da democracia representativa moderna, resulta precisamente da ideia, que os próprios políticos fomentam nos eleitores, de que não vale a pena o cidadão comum estar totalmente informado sobre as questões políticas, nomeadamente os problemas específicos da governação e da gestão da coisa pública. O pretexto deve-se ao facto de, tendo em conta que cada cidadão tem consciência que o seu voto tem um impacto mínimo no resultado eleitoral, não se justificar o “investimento” na obtenção de toda uma panóplia de conhecimentos para se poder analisar e opinar de forma informada sobre as questões políticas, mais ou menos relevantes.

É assim entendida a democracia cognitiva, como forum permanente de discussão e formação do sujeito participativo responsável e locus adverso à cegueira e à rigidez do pensamento e afeito à diversidade dos saberes e ao pluralismo das ideias.

7.3. Reinventar a democracia

A maioria dos políticos pertence a uma casta elitista que vive num mundo bastante diferente daquele em que vive a maioria da população e, por isso, dificilmente se poderá identificar com o povo fazendo com que a “delegação” funcione verdadeiramente.

A ideia e a missão do “serviço público” têm-se tornado uma névoa no horizonte e o que predomina hoje são cada vez mais estratégias de comunicação e marketing político, nomeadamente nas campanhas e nos debates eleitorais, mas também nas demais modalidades da participação cívica e política.

É necessário encontrar novas formas de controlo da classe política e dos governantes, pensar e implementar novos mecanismos de supervisão e fiscalização para além dos atos eleitorais. Abandonar o mito inculcado na moderna democracia representativa, muito divulgado pelos órgãos de comunicação e pelos opinion makers, que a eleição é o momento por excelência em que os cidadãos avaliam a performance dos dirigentes políticos e partidários e decidem sobre a sua (re)eleição.

Segundo Manuel Arriaga, autor já anteriormente aludido, a adoção da deliberação ci-

424 MORIN, Edgar – Op. cit., p. 110.

425 Ibidem, pp. 110-111.

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dadã abriria a porta para se recuperar ainda mais o controlo do sistema político, e os painéis de cidadãos poderiam, por exemplo, abordar diretamente a questão de como reformar o nosso sistema eleitoral426

Ao problema do elitismo dos governantes, e do seu afastamento dos governados por força da não identificação dos primeiros com os segundos, acresce a manutenção da ignorância, da “iliteracia” política como forma de manter os cidadãos afastados do poder ou da ilusão do poder.

Se Sócrates já dizia que a ignorância era a causa de todos os males do homem, Max Weber (1864-1920)427, mais de 2000 anos mais tarde defende, por sua vez, que o segredo é o poder da burocracia, justamente porque através dele se oculta o conhecimento dos mecanismos do poder: “A administração puramente burocrática […] considerada do ponto de vista formal, é, segundo toda a experiência, a forma mais racional de exercício de dominação […] O conceito (não só, mas especificamente) burocrático do ‘segredo oficial’ […] provém dessa pretensão de poder”428 .

Segundo Mário Duarte, a ignorância daqueles mecanismos, inacessíveis à maioria dos cidadãos, também é extensível aos intelectuais, os mais poderosos concorrentes daquelas elites, não pelo dinheiro ou pela influência política que por regra não têm, mas pela sua acrescida capacidade de intervenção no plano das ideias e, obviamente, no debate político, e não sendo mais possível manter o povo ignorante, porque o direito à educação é um direito fundamental universal constitucionalmente consagrado, as democracias modernas inventaram novos instrumentos para preservar o poder para os poderosos, justamente porque a sabedoria é o maior obstáculo ao poder e a ignorância a sua arma mais forte e eficaz429

É assim necessário (re)inventar a democracia, antes disso (re)pensá-la profundamente, por forma a que se estreite, insistimos, o hiato entre os governados e os governantes (para utilizar apenas a dicotomia simplista das relações de poder), e se crie o uníssono na ação governativa que todos ansiamos.

7.4. O futuro da democracia

A democracia ao longo de séculos, de Platão a Hegel, foi considerada uma má forma de governo, precisamente por ser o governo do povo, que não está em condições de governar, até mais tarde ser entendida como a melhor forma de governo possível, ou

426 ARRIAGA, Manuel (2014) – Rebooting Democracy. A Citizen’s Guide To Reinventing Politics. Londres: Thistle Publishing, p. 98.

427 Considerado um dos fundadores do estudo moderno da sociologia, foi um jurista, sociólogo e economista alemão da passagem do século XIX para o século XX, autor da obra A política como vocação (1919).

428 WEBER. Max (1921) – Economia e Sociedade Fundamentos da sociologia compreensiva, volume I, tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa e revisão técnica de Gabriel Cohn para a edição em língua portuguesa de 2004. São Paulo: Editora UnB e Imprensa Oficial, pp. 145-147.

429 DUARTE, Mário (2020) – Op. cit., pp. 49-50.

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a menos má. Mas não conseguiu ainda cumprir a promessa de igualdade, quer formal, quer substancial.

Na linha do que escrevemos nos subcapítulos anteriores, de acordo com Norberto Bobbio, sobrevem hoje a forma do governo dos técnicos, em que o tecnocrata é depositário de conhecimentos que não são acessíveis à massa e que, mesmo que o fossem, não seriam sequer compreendidos pela maior parte e que esta não poderia dar qualquer contribuição útil à discussão para que eventualmente fosse chamada430.

Mas para Bobbio, o confronto entre democracia e tecnocracia, mais do que um insucesso da própria democracia, é um “paradoxo”. A democracia representativa, apesar do alto grau de especialização dos agentes políticos que a tornam hermética ao conjunto dos cidadãos, ainda é o melhor dos regimes que vigoram nas democracias modernas ocidentais. “O que distingue o poder democrático do poder autocrático é que apenas o primeiro, por meio da livre crítica e da liceidade de expressão dos diversos pontos de vista, pode desenvolver em si mesmo os anticorpos e consentir formas de ‘desocultamento’”431 .

Alguns autores já falam em pós-democracia, ou democracia pós-eleitoral, numa antevisão da massificação da opinião que as redes sociais ainda permitem. Dizemos “ainda” porque já se assistem a tentativas de “mediacratizar” a rede. Mas não se pode substituir o voto (o plebiscito popular), pelo menos no horizonte próximo. O poder da rede, que o poder político convencional tanto odeia, não é ilimitado e sobretudo não se traduz diretamente nas decisões políticas que a todos importam. Autores contemporâneos realçam a crise da representação que caracteriza o atual estado da democracia ocidental, que alguns chamam de democracia liberal. Colin Crouch432, por exemplo, fala-nos em “democracia pós-representativa”, a que já nos referimos em subcapítulo próprio, como uma espécie de conceito intermédio entre a democracia representativa tradicional e a democracia informal. Segundo este autor, a causa fundamental do declínio democrático nas políticas contemporâneas é o desequilíbrio que hoje se desenvolve entre o papel dos interesses corporativos e os de praticamente todos os outros grupos da sociedade433. Crouch responsabiliza a captura da política por uma elite cada vez mais fechada e refém do poder económico e financeiro e a redução da capacidade reguladora do Estado como os principais fatores para o retrocesso democrático que ganha progressivo desenvolvimento no século XXI. Contudo, este autor ainda acredita na credibilização da política junto dos cidadãos se aquelas tendências se debelarem ou reverterem, caso contrário a pós-democracia cede a uma espécie de “pré-democracia”.

A “desconsolidação” democrática, a que aludem estes autores, será um processo tem-

430 BOBBIO, Norberto (1984) – O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo, tradução de Marco Aurélio Nogueira para a 6.ª edição em língua portuguesa de 1997. São

Paulo: Editora Paz e Terra, p. 101.

431 Ibidem, p. 102.

432 Sociólogo e cientista político inglês, nascido em 1944, professor emérito da Universidade de Warwick, Coventry.

433 CROUCH, Colin (2004) – Post-Democracy, Cambridge: Polity Press, p. 104.

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porário, que despertará em breve uma forte reação imunitária, ou será que sinaliza um perigo real para a sobrevivência das instituições políticas, que antes pareciam excecionalmente estáveis? Mas pior que a desacreditação dos cidadãos perante a política é a indiferença, o rompimento dos cidadãos com os ideais democráticos e a aceitação, ou mesmo a convivência, com formas autoritárias do poder, como já tinha alertado Simone

Weil no pós-guerra.

Entre nós, Manuel Carrilho434 fala-nos dos equívocos gerados, sobretudo após a queda do muro de Berlim (1989), pela identificação entre democracia e liberalismo, afirmando que a “democracia liberal” tem não um, mas dois inimigos, duas espécies de “democraturas”, a “democracia iliberal” (democracia sem direitos) e o “liberalismo não democrático” (direitos sem democracia)435

Há autores que admitem mesmo o fim da democracia. O próprio Manuel Carrilho, por exemplo, fala-nos do “paradigma do ilimitado” a propósito de uma democracia não eternamente garantida. Outros, quiçá mais otimistas, preferem (re)pensar a democracia fora do tradicional e comummente aceite espectro da “democracia representativa”, porque a sociedade e, sobretudo, a sociedade na era digital, obriga a contínuas perplexidades. O sistema político não pode deixar de refletir esta nova realidade, que não é um epifenómeno.

7.5. Democracia líquida ou “delegativa”

Numa democracia líquida, cada cidadão tem o poder de votar diretamente, mas também pode “delegar” o seu voto num representante se optar por não votar diretamente. Assim, cada cidadão pode decidir o seu grau de envolvimento político. “Qualquer cidadão ou grupo de cidadãos pode criar uma procuração virtual […] Os cidadãos não terão que esperar 4 anos antes de poderem escolher novos representantes, uma vez que o voto por procuração pode ser retirado pelos cidadãos a qualquer momento: para votar diretamente numa proposta específica; para se envolver ativamente no Parlamento Virtual e votar em cada proposta; para nomear um novo procurador”436

Com este conceito de intervenção e participação democrática, situado nas novas fronteiras da democracia, que é a democracia líquida ou delegativa, volta-se um pouco às raízes da democracia direta. É na verdade um sistema misto entre democracia direta e democracia representativa, no qual os representantes do povo são designados para votar em cada tema em lugar de serem eleitos para um mandato prolongado e sem retorno. Pode utilizar-se a figura dos “facilitadores” que promovem o debate entre especialistas para a obtenção de informação em matérias mais técnicas. Neste sistema, o parlamento físico que conhecemos tende a ser substituído pelo parlamento virtual.

434 Filósofo, professor universitário e político português nascido em 1951, que foi ministro da Cultura nos governos de António Guterres, entre 1995 e 2000, deputado na AR entre 2000 e 2008 e embaixador de Portugal da Unesco, em Paris (2008-2010).

435 CARRILHO, Manuel Maria (2022) – A Democracia no seu Momento Apocalíptico. Coimbra: Grácio Editor, pp. 75-76.

436 http://www.democracialiquida.org/

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Atualmente alguns partidos, como os Partidos Piratas alemão ou brasileiro, o sueco Demoex e a Listapartecipata italiana, cujo lema é o controlo permanente do governo e não somente no dia das eleições, já praticam e defendem a democracia líquida, em caráter experimental. Pugnam pela defesa do acesso à informação, da partilha do conhecimento, da transparência na gestão pública e dos direitos fundamentais, que são ameaçados constantemente pelos governos e pelas diferentes instâncias do poder que querem controlar e monitorizar os cidadãos.

No partido local sueco Demoex437, por exemplo, a democracia é uma experiência direta eletrónica, com votações pela internet, que teve início durante um seminário denominado “Tecnologia da Informação e a Democracia”, realizado em outubro de 2000 numa escola dos subúrbios de Estocolmo. Uma das razões que presidiu à sua criação, além do desencanto generalizado com os políticos tradicionais, foi o facto de, na democracia representativa, a opinião do povo só ser auscultada uma vez de quatro em quatro anos e de, após serem eleitos, os políticos poderem agir praticamente como bem entenderem até à próxima eleição. As discussões que se iniciaram naquele seminário, tanto online como presencialmente, levaram a que um grupo de estudantes e de professores fundassem o partido, sem ideologia no sentido tradicional de direita-esquerda, sem plataforma e sem sede física, com uma só promessa: a democracia direta. Este partido concorreu às eleições municipais em setembro de 2002 e obteve um único assento na Câmara Municipal de Vallentuna, nos arredores de Estocolmo, em que o representante eleito age de acordo com os resultados das votações digitais feitas pelos membros do partido. A ideia de democracia delegativa, que também ficou conhecida por “democracia líquida”, foi elaborada por Bryan Ford, o autor americano que primeiramente (2002) abordou de forma direta este tema438. Segundo Ford:

A democracia delegativa tenta fazer a escala de democracia direta, permitindo que qualquer pessoa que não pode participar diretamente em uma votação particular delegue seu voto a alguém de sua confiança para participar e votar em seu nome […] A democracia delegativa difere da democracia representativa no princípio de que cada eleitor deve fazer a escolha livre e individual do seu delegado - não apenas uma escolha entre um conjunto restrito de políticos de carreira - assim como já fazemos uma escolha livre e individual de nossos amigos. Além disso, os eleitores podem optar por participar de algumas reuniões diretamente, substituindo as escolhas de seu delegado nessas reuniões, e os eleitores podem revogar ou alterar a sua delegação a qualquer momento […] O espírito da democracia delegativa está mais próximo da democracia representativa, na medida em que na delegação não se trata de entregar a minha ‘decisão enlatada’, mas de pedir ao meu delegado de confiança que participe de todo o processo deliberativo em meu nome. Meu delegado pode e deve ouvir e envolver-se no debate, considerar as informações disponíveis e tomar a sua opinião como a melhor decisão com base nisso. Se eu não gostar da sua decisão, posso escolher um delegado diferente antes da próxima votação. 439

Na democracia delegativa cada cidadão pode assumir um papel passivo, como indi-

437 http://demoex.net/en

438 FORD, Bryan (2002) – Delegacy Democracy, paper de 15 de maio.

439 https://bford.info/2014/11/16/deleg.html

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víduo, ou ativo, como delegado (procurador), o que a diferencia da tradicional democracia representativa em que somente representantes específicos são permitidos. Por outro lado, o custo e a dificuldade, em ser delegado é mais baixa porque não obriga a uma campanha formal ou a que se vença uma eleição competitiva, apesar de poderem existir níveis diferentes de poder de decisão entre os delegados. Para evitar pressões ou coerção, todos os votos dos cidadãos são secretos, mas para garantir a responsabilização dos delegados perante os seus eleitores e toda a comunidade, as decisões tomadas pelos delegados são públicas. Os delegados podem agir em nome dos seus eleitores como generalistas, mas também agir como especialistas em nome uns dos outros, através de “redelegação”. Há ainda a possibilidade de os cidadãos revisitarem o seu voto a qualquer momento através da modificação da sua delegação junto da organização regulatória. A democracia líquida consiste numa forma mais elaborada de democracia direta através do voto de proximidade, do voto “delegativo”.

Lécio Machado440, também a propósito do conceito de democracia líquida, escreve que é uma forma de comando democrático que permite ao eleitorado transferir o seu poder de voto a delegados, ao invés de escolher os seus representantes, ou seja, é um novo paradigma para a organização da democracia baseada na participação direta do indivíduo nos processos de votação ou na transferência (delegação), caso queira, do voto individual a um representante escolhido de forma livre e direta para não só votar, mas para também participar de todo o processo de discussão do assunto a ser votado no lugar de quem delegou o voto441.

A formulação da democracia líquida não é nova. Já em 1969, esta ideia de participação democrática era apresentada num artigo de James Miller442, em que se propõe um programa para votação direta e/ou por procuração no processo legislativo, tendo em conta que a mudança tecnológica aumentou as oportunidades de participação dos eleitores no processo legislativo, através de aplicativos e plataformas digitais443. Mais tarde, em 2015, a democracia líquida também foi preconizada pelo islandês Smári McCarthy, cofundador do Partido Pirata islandês, que também propôs a delegação de votos por meio eletrónico, além da utilização de mecanismos de crowdsourcing.

Uma das vantagens da democracia delegativa é o facto de qualquer pessoa, de forma simples e barata, se poder tornar um “delegado”, agindo em nome próprio e dos seus outorgantes, podendo a qualquer momento, sem os custos inerentes aos processos eleitorais tradicionais, ser destituído de tal outorga. As desvantagens também existem e 440 Advogado brasileiro, doutorando em Ciências Jurídicas Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

441 MACHADO, Lécio Silva (2018) – A Aplicação da Democracia Líquida de Bryan Ford à Humanidade Unida de Rafael Domingo Oslé, in revista eletrónica Future Law. Porto: Universidade Católica Editora, pp. 411-415.

442 MILLER, James C. (1969) – A program for direct and proxy voting in the legislative process, in revista Escolha Pública, vol. 7, outono, pp. 107-113.

443 Em 1969, pesquisadores da Universidade da Califórnia começaram a fazer testes com protocolos de comunicação e conectaram os computadores locais em uma rede local privada, que ficou conhecida como ARPAnet - Rede da Agência de Pesquisas Avançadas; é o primeiro ensaio do surgimento da internet como a conhecemos atualmente.

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prendem-se com a vulnerabilidade na aplicação deste instrumento, por um lado com a falta de motivação dos cidadãos em participar na discussão de temas vários, por outro com a falta de acesso de muitos cidadãos às redes de comunicação digital e às plataformas de discussão online, porque na verdade a principal finalidade da democracia líquida não é colher votos diretos ou eleger delegados, mas fazer com que os indivíduos participem das discussões, de forma direta ou indireta.

Ressalta, no entanto, apesar destes constrangimentos, que a utilização das redes sociais, como o facebook, se tem revelado como um importante instrumento mobilizador e agregador dos cidadãos do nosso tempo que, de forma quase livre (há limitação de alguns conteúdos pelos administradores da rede), se têm envolvido em discussões de diversos temas públicos e políticos de interesse público, gerando assim um vasta plataforma mundial de consulta, partilha e debate que favorece o incremento da democracia líquida, sobretudo se forem ultrapassadas as barreiras ligadas à falta de segurança na transmissão de dados e à falta de privacidade.

7.6. A deliberação cívica

A “deliberação cívica” é uma das mais recentes modalidades do exercício da participação democrática, uma espécie de contrapoder aos sistemas tradicionais que vigoram na maioria dos países do chamado mundo livre.

Pretende repensar o sistema democrático e dar voz a todo um conjunto de causas que animam a sociedade civil, isto é, pretende dar voz aos cidadãos “comuns”, assessorados por especialistas nas diferentes áreas, e mobilizá-los para a resolução dos seus problemas e anseios e fazer chegar as suas ideias e propostas aos governantes.

A deliberação cívica é assim uma forma de consulta pública para lograr obter informações sobre as escolhas dos cidadãos, depois de um período de reflexão e de informação sobre matérias relevantes, através da realização das chamadas “assembleias de cidadãos” constituídas por 100 ou mais participantes que se reúnem durante vários meses até à tomada de posições.

Estes “painéis” de cidadãos já existem em vários países como a Bélgica, a Irlanda, os Estados Unidos da América, o Canadá e, ainda que de forma embrionária, na França. Está ainda no início da sua implementação em Portugal, como é o caso da “Ciência Cidadã”, em Oeiras444. A primeira experiência de “assembleia de cidadãos” no nosso país foi realizada em janeiro de 2017 na Universidade Nova de Lisboa, sob a divisa de “Como fazer-nos ouvir?”445 .

O chamado “fórum de cidadãos” integra um painel de cidadãos que não é escolhido por mero sorteio, mas através das modernas técnicas de amostragem por forma a representar a diversidade da sociedade.

Durante vários dias os membros do painel analisam informação, ouvem e questionam especialistas acerca dos temas elencados (“facilitadores”). Por fim, as decisões ou recomendações são divulgadas publicamente, preferencialmente na rede, mas também

444 http://www.forumdoscidadaos.pt/o-que-fazemos/2020-oeiras/

445 http://www.forumdoscidadaos.pt/o-que-fazemos/jan-2017-como-nos-fazer-ouvir/

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através de sessões presenciais locais, de modo a replicar e estender a discussão ao conjunto da sociedade.

Um dos principais rostos da deliberação cívica em Portugal é Manuel Arriaga que escreveu o livro Reinventar a Democracia, já referido e citado na sua versão em língua inglesa. Em Portugal, o Fórum dos Cidadãos, que materializa o conceito de “deliberação cívica”, é um projeto da sociedade civil, apartidário, sem conotação ideológica, embora apoiado por personalidades de vários quadrantes políticos, que nasceu em 2016 com o intuito de contribuir para melhorar e revigorar a democracia no nosso país, melhorar e “democratizar” o sistema político português, dando voz a cidadãos que se informam previamente sobre os grandes temas da política nacional de modo a construírem uma posição fundamentada e credível sobre os assuntos.

Mas afinal, qual é a diferença entre “deliberação cívica” e “assembleia de cidadãos”?

Deliberação é o processo em si, limitado no tempo, que pode ser feito em pequena escala, em reuniões presenciais, online ou webinars, Assembleia é a implementação do conceito em larga escala, com 100 ou mais participantes e com uma duração que pode chegar a um ano ou mesmo ultrapassá-lo.

Um dos grandes temas que tem sido discutido pelos promotores destas “assembleias” é o da reforma do sistema político e eleitoral e a necessidade de refundar as instituições políticas nacionais por forma a acolher a cidadania livre e independente.

Pode ler-se no sítio do Fórum dos Cidadãos, em Portugal:

Há uma coisa a respeito da qual até portugueses com perspectivas políticas muito diferentes estão comummente de acordo: as nossas instituições democráticas precisam de ser reformadas. A corrupção. Os conflitos de interesse. O uso indevido de fundos públicos. A promiscuidade entre os mundos da política e dos (grandes) negócios. As nomeações ‘suspeitas’ para cargos públicos. Estes são apenas alguns dos motivos pelos quais tantos de nós temos pouca confiança nas instituições que nos representam. E, infelizmente, até agora essas instituições têm tido dificuldade em dar passos no sentido de recuperar a nossa confiança. O que, por sua vez, leva a uma ainda maior desconfiança nas instituições […] Aos políticos do “establishment” falta-lhes ou a motivação ou a capacidade de reformar o sistema. Alguns destes políticos não veem nada de errado num sistema que tem servido bem os seus interesses. Outros políticos têm um genuíno desejo de mudança, mas têm dificuldade em obter o apoio de que necessitam dentro dos seus partidos, e mais ainda em estabelecer os necessários acordos sobre temas delicados com representantes dos restantes partidos […] Será que não há alternativa? Estaremos mesmo condenados a nos resignarmos a ser governados por um “establishment” claramente irreformável ou então a entregar o nosso voto a demagogos desonestos? A solução começa com assembleias de cidadãos periódicas. Precisamos de organizar a cada 2 anos uma assembleia de cidadãos sobre como reformar as nossas instituições democráticas e mecanismos de representação. Esta assembleia será composta por 150 portugueses escolhidos por sorteio e espelhará a diversidade da sociedade portuguesa. A sua missão será aprender sobre os actuais obstáculos ao correcto funcionamento do sistema político e, em seguida, apresentar publicamente um conjunto de recomendações concretas sobre que reformas devem ser implementadas. Tratar-se-á de um conjunto alargado de portugueses - com diferentes géneros, idades, ocupações, etnias e níveis socioeconómicos - que trabalhará em conjunto por múltiplos meses para dar resposta a um (se não o) problema fundamental da so-

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ciedade portuguesa. Os participantes nesta assembleia de cidadãos consultarão políticos, organizações da sociedade civil, académicos e outros especialistas sobre como funcionam as instituições políticas em Portugal e sobre como estas poderiam funcionar melhor. Ouvirão opiniões distintas e, com frequência, contraditórias, pelo que terão de deliberar sobre em que opinião devem depositar a sua confiança. Mediadores assegurarão que as discussões são construtivas e que todos os participantes se fazem ouvir […] É de esperar que o sistema político resista à mudança, pelo que é importante que esta iniciativa não se esgote num episódio único e sem continuidade. Se tal acontecer, ela apenas terá servido para minar, ainda mais, a confiança dos portugueses no seu sistema político.446

Estas assembleias de cidadãos, organizadas periodicamente, cumprirão assim dois objetivos importantes: educar o público sobre o funcionamento do sistema político e criar uma sociedade civil mais vigilante e atenta ao correto funcionamento das instituições. Alguns dirão que esta ideia de participação democrática, alargada ao comum dos cidadãos, está condenada ao fracasso, que o poder permanece nas mãos do Parlamento e que este nunca aprovará recomendações que firam os interesses da própria classe política, mas o poder é algo de complexo e multifacetado. Quem o detém necessita, por vezes, de ceder e aceitar compromissos para manter a sua base de apoio. E, para além disso, os políticos são um conjunto heterogéneo e as suas reações às recomendações apresentadas pelas assembleias de cidadãos poderão variar, até porque alguns políticos desejam há muito tempo reformar o sistema e poderão encontrar nas propostas da assembleia de cidadãos a sustentação de que precisam para assumir publicamente as suas posições.

7.7. Democracia na era digital

Shoshana Zuboff447, que dedicou a sua carreira académica e profissional a estudar as consequências organizacionais, individuais e sociais da ascensão do digital, alerta para os perigos do controlo da informação e para o advento de uma tendência económica a que chama “capitalismo de vigilância”. Foi em 2015 que esta autora utilizou pela primeira vez este conceito de capitalismo de vigilância, estritamente ligado à era digital e à sociedade da informação, que caracteriza o modo como o capitalismo domina os cidadãos numa economia baseada na “informação” e os perigos que isso acarreta para a privacidade dos dados pessoais das pessoas e para a democracia no século XXI. Tem como principais características os propósitos lucrativos, a produção de mercados de previsão, o rentabilizar do comportamento humano e o tratamento e venda dos dados pessoais.

Todos reparamos que sempre que realizamos uma pesquisa no motor de busca (Google, Firefox, Mozilla, etc.) somos bombardeados com anúncios que, não raro, correspondem aos nossos interesses comerciais pessoais, como se adivinhassem o que planeamos comprar. Isto não é por acaso. Para a autora, o Google, por exemplo, até agora, triunfou

446 http://www.forumdoscidadaos.pt/

447 Professora universitária e escritora norte-americana nascida em 1951, é doutorada em Psicologia Social pela Universidade de Harvard e autora da obra The Age of Surveillance Capitalism (2021).

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no mundo em rede através da construção pioneira desta nova forma de mercado que é uma variante radicalmente desenraizada e extrativista do capitalismo da informação, que pode ser identificado como capitalismo de vigilância, nova forma de mercado que rapidamente se tornou o modelo de negócios padrão para a maioria das empresas e startups448 .

José Magalhães449 alerta para outro perigo, o dos poderes “paralegislativos” concedidos a entidades reguladoras: “Os parlamentos, nascidos para garantir que os contribuintes não paguem impostos sem a aprovação dos seus representantes, delegam em entidades terceiras poderes essenciais, como se a era digital fosse demasiado intrincada para os eleitos. Esse erro estratégico poderá levar ao eclipse do papel parlamentar na definição da escolha entre democracia e algoritmocracia”450

A ideia de democracia “virtual” (também referenciada como democracia digital, ciber-democracia ou e-democracy) assenta na utilização das ferramentas da comunicação digital na ação política. É o uso da internet como veículo interativo no sistema político, uma interface que promove a participação online dos cidadãos nos processos cívicos e políticos e dos próprios agentes do poder político, que também utilizam uma espécie de e-governo nas suas relações com os cidadãos.

A internet, hoje mais do que no final do século passado, “(i)materializa” já uma ferramenta democrática inovadora, que transcende as fronteiras geográficas, numa partilha de informações e de conhecimentos sem precedentes, promove o aparecimento de grupos de interesses e de causas, o voto eletrónico em alguns países e outros modelos participativos. São suas características de potenciamento democrático principais a interatividade, o baixo custo e a facilitação da participação, o grau elevado de disseminação, a não hierarquização da comunicação, a quase preservação da identidade que, no entanto, não se traduzem necessariamente na redução do défice democrático, uma vez que a participação, como já vimos, não se traduz necessariamente em representação e muito menos deliberação. Pelo contrário, na democracia “virtual” a representatividade, uma das características inalienáveis da democracia, fica algo enfraquecida e tendencialmente pode criar-se a ideia da prescindibilidade do modelo parlamentar.

Também a tradicional organização territorial e política fica de certo modo comprometida com as eventuais e emergentes vantagens da globalização democrática e as desvantagens da uniformização do pensamento humano, fora das virtudes da tradição e dos costumes locais e regionais, daquilo a que hoje chamamos de património imaterial. Os próprios partidos e os movimentos políticos independentes medem hoje forças através do número de seguidores das suas páginas que, sendo certo que os seguidores não se revertem necessariamente em apoiantes ou votantes, permitem avaliar o impacto dos respetivos programas e dar feedback, facilitando o seu ajustamento.

448 ZUBOFF, Shoshana (2015) – Big Other: Surveillance Capitalism and the Prospects of an Information Civilization, in Journal of Information Technology, n.º 30, maio, p. 81.

449 Político português nascido em Luanda em 1952, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, foi deputado em várias legislaturas e secretário de Estado nos governos de António Guterres e de José Sócrates.

450 MAGALHÃES, José (2023) – Democracia ou Algoritmocracia? Ensaio sobre a defesa dos direitos humanos na era digital in TICtank, p. 177. [Recurso eletrónico]

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A soberania, a velha assembleia popular, enfim a democracia, passariam a estar na “rede”, sem grandes constrangimentos físicos, financeiros, geográficos, numa realidade em que mais de metade da população mundial está conectada (hoje mais de cinco mil milhões de cidadãos utilizam a internet), com a predominância das redes sociais do Facebook, com quase três mil milhões de utilizadores (contas abertas) em todo o mundo, logo seguida, por ordem decrescente, do YouTube, WhatsApp e Instagram.

Para João de Almeida Santos, que organizou uma interessante publicação a que já aludimos em subcapítulo anterior, que resulta das intervenções dos oradores da conferência “Novas Fronteiras da Política na Era Digital”451: “Os processos desencadeados pela internet vieram produzir mudanças substanciais na base dos sistemas sociais, na cidadania, logo, nos processos comunicacionais e eleitorais, na mobilização e na auto-organização política, fracturando estruturalmente o velho modelo de organização política das sociedades, muito centrado na componente orgânica e territorial […] obrigando o sistema a metabolizar os processos que a rede induz sob pena de ficar à mercê dos que se movem com competência neste universo”452. Este autor propõe assim a reconstrução do edifício político na era digital com base no conceito de conetividade e na lógica do bottom-up, com vista à restauração da democracia representativa, não no sentido participativo e pós-representativo, mas na direção de uma “democracia deliberativa” que preserve o essencial do sistema representativo, integrando os novos mecanismos de mobilização e de auto-organização da cidadania453.

A internet é, mais do que os tradicionais mass media (jornais, rádio e televisão), o mais poderoso instrumento de poder ao permitir a partilha constante e líquida de informação na sociedade atual, a “sociedade da informação” a que aludem alguns autores. A velocidade e a quantidade de informação que circula na “rede”, mais do que a qualidade, propicia o surgimento de opiniões e escrutínio alargado, de movimentos cívicos e da chamada “cidadania virtual”, que consubstanciam uma nova forma do exercício da democracia, não já ou apenas no plano da delegação do voto, mas através de um contrapoder contínuo e massivo ao exercício do próprio poder no sentido lato do termo. Manuel Castells454 analisa as relações conflituosas que o poder mantém com as novas tecnologias:

Conservar o poder requer manter o máximo controle possível sobre a informação, e assegurar, sobretudo, que os canais de comunicação sejam verticais […] os governos possuem uma certa capacidade - não decisiva, por sorte - de controlar e intimidar a livre circulação de ideias na internet e nos meios de comunicação móveis. Ou seja, a princípio

451 Organizada pelo Centro de Investigação em Política, Economia e Sociedade, realizou-se a 16 de outubro de 2018 na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa.

452 SANTOS, João de Almeida (2020) – Op. cit., Introdução, pp. 9-10.

453 Ibidem, pp. 12-13.

454 Sociólogo e professor universitário espanhol, nascido em 1942, lecionou Sociologia na Universidade de Berkeley, Califórnia; na sua obra A sociedade em rede (1996), primeiro volume da trilogia A Era da informação: Economia, Sociedade e Cultura, propõe o conceito de “capitalismo informacional”.

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a tecnologia permite uma abertura do mundo da comunicação, mas poderes económicos, políticos e midiáticos seguem tentando controlá-la […] Os governos odeiam a internet. Porque é um desafio básico ao que sempre foi o fundamento do seu poder: o controle da comunicação e da informação. Os governos dizem: internet sim, mas para o que me servir. Sempre, usam os mesmos pretextos: a pornografia infantil, o terrorismo - como se fossem fundamentalmente problemas da rede. Ora, são problemas da sociedade […] não pode haver ‘um pouquinho’ de internet. A rede existe ou não existe: por ela se transmite

todo tipo de informações […] Não vivemos na internet, mas com ela. É uma parte essencial da nossa vida, além de uma cultura de liberdade.455

Castells advertiu ainda que as empresas de internet têm de aceitar a liberdade de expressão na rede, porque é isso o que as pessoas buscam: expressar-se, organizar-se e relacionar-se livremente. Caso contrário, os utilizadores vão buscar outros espaços sociais em que se respeite o direito a manifestarem-se e em que não se estabeleçam censuras. Para o sociólogo, o Google e o Facebook não são a ameaça, o desafio é manter a liberdade na rede.

455 Entrevista concedida a Sergio Martin, em 17 de janeiro de 2012, no programa de rádio Europa Abierta, tradução de Daniela Frabasile e Gabriela Leite Martins: https://outraspalavras.net/sem-categoria/castells-debate-os-dilemas-da-internet/

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

8. O FUTURO DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL E NA

EUROPA OCIDENTAL

O ódio à democracia é o ódio a uma sociedade que procura a igualdade, o direito das minorias e o direito à diferença, mas não é uma idiossincrasia restrita à contemporaneidade.

A propósito do “sufrágio universal”, importa realçar que o direito de voto atribuível a todos os cidadãos adultos (independentemente da sua etnia, género, credo religioso, orientação sexual, nível económico, educativo e social), na prossecução do ideal de uma democracia plenamente representativa da sociedade, ainda é hoje recusado, em muitos países europeus, a certos estratos sociais, como reclusos, imigrantes, analfabetos e alienados mentais, por exemplo. A Suíça, um dos primeiros países a adotar o sufrágio universal masculino em 1848, só o fez em 1971 para as mulheres (a Nova Zelândia, eventualmente o primeiro país do mundo a adotar o sufrágio universal, já o tinha feito em 1893).

A título de curiosidade refira-se que as “sufragistas” iniciaram em 1897 um movimento pela concessão do direito de voto às mulheres no Reino Unido, a União Nacional pelo Sufrágio Feminino, e tiveram a sua primeira mártir em Emily Davison, que se atirou para a frente do cavalo do rei de Inglaterra em 1913. Mas a sua luta só teve sucesso em 1918 quando se estabelece finalmente o voto feminino no Reino Unido, no contexto do pós-guerra. Também em Portugal, a I República nunca chega a reconhecer capacidade eletiva às mulheres. É no período do Estado Novo que finalmente, a partir de 1931, as mulheres vão poder votar, mas com graves restrições, e após 1968 sem qualquer discriminação em função do género, apenas com o impedimento dos cidadãos que não sabiam ler nem escrever português456, que não eram tão poucos quanto isso. Estas restrições foram definitivamente expurgadas em 1976 com a nova Constituição da República Portuguesa. No cômputo global, no entanto, tem havido na Europa Ocidental uma evolução extraordinária ao nível do direito de voto universal que abona a favor de uma democracia consolidada e rica em extensão, ao contrário dos velhos modelos da Antiguidade e mesmo dos regimes resultantes das grandes revoluções liberais, fortemente restritivos.

A essência da democracia é o primado da igualdade, que os representantes no poder muitas vezes contradizem. Os princípios do modelo democrático representativo são uma invenção moderna que se distancia da democracia dos antigos, um mero regime de funcionamento do Estado com base parlamentar - constitucional, em que não há, na verdade, a participação direta do povo. Mas para Jacques Rancière, a representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o impacto do crescimento das populações, nem para adaptar a democracia aos tempos modernos e aos amplos espaços, mas sim para assegurar o direito de algumas minorias em representar o povo457.

456 Também podiam votar os que, embora não sabendo ler nem escrever português, já tivessem sido alguma vez recenseados, ao abrigo da Lei 2015, de 28 de maio de 1946.

457 RANCIÈRE, Jacques (2005) – O Ódio à Democracia, tradução de Mariana Echalar para a edição em língua portuguesa de 2014. São Paulo: Boitempo Editorial, p. 69.

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A expressão «democracia “representativa”» (da locução: “de representação”) deixou de significar um oxímoro para ser um pleonasmo, em que se promiscuam os conceitos de “governo democrático” e de “governo representativo”.

Como a igualdade é um princípio geralmente aceite, as vantagens que geram a desigualdade são impopulares e, por isso, necessitam de se legitimar para se imporem, através de leis, instituições e práticas sociais aceites ou toleradas pela comunidade.

António Oliveira e Cruz458, no livro que reuniu as comunicações deste autor no I Congresso Português para o Desenvolvimento da Criança459, escreve que “o objectivo último do Poder/sistema é a extensão infinita e homogénea do seu poder, da sua posse […]

Todo o Poder tem sempre como limite a necessidade interna de ir até ao limite do seu poder, destruindo, pura e simplesmente, o adversário”460

Também nos filósofos e escritores existencialistas, de Kierkegaard a Arthur Miller, passando por Albert Camus e Jean-Paul Sartre, está patente uma outra versão do “ódio à democracia”, o da indiferença, senão mesmo desdém. Como se lê no crítico de arte

Sidney Finkelstein, o existencialismo não tem fé na democracia, porque encara o povo como irremediavelmente cego aos problemas reais da vida, conhecidos apenas por uma “aristocracia mental” 461 .

Já na primeira metade do século XIX, Søren Kierkegaard (1813-1855)462 defendia que democracia é uma manifestação comezinha do populus. Inquieto que estava com as suas próprias contradições, que advinham da sua condição pequeno-burguesa, ao contrário dos contemporâneos Marx e Engels, transfere a aversão que tem à sua classe para a sociedade inteira, “a multidão é falsa”. A sua crítica à democracia não incide sobre as suas perversões, mas sobre a sua própria essência, abstraindo-se da situação precária e miserável em que vivia o povo na sua época e ignorando o que a luta democrática fez pela elevação das condições de vida das pessoas e pelo progresso social, debelando também o obscurantismo e a ignorância.

Max Weber, na sua conferência “Política como vocação”, proferida em 1918 para estudantes da Universidade de Munique, falava do modo como se devia exercer a política por forma a torná-la uma atividade digna, que não a descredibilizasse:

458 Investigador e filósofo português nascido em 1945, é membro fundador do Instituto Piaget em Portugal onde codirige o Centro Internacional de Investigação, Epistemologia e Reflexão Transdisciplinar; preside igualmente à Associação Piaget Internacional.

459 Realizado em março de 1978 no Centro de Investigação do Centro de Recuperação de Crianças Inadaptadas de Lisboa.

460 CRUZ, António Oliveira (1978) – A teoria de Piaget e os mecanismos de produção da ideologia pedagógica. Lisboa: Socicultur, Divulgação Cultural, p. 79.

461 FINKELSTEIN, Sidney (1965) – Existencialismo e Alienação na Literatura Americana, tradução de Nathaniel C. Caixeiro para a edição em língua portuguesa de 1969. São Paulo: Paz e Terra, p. 8.

462 Filósofo, teólogo e crítico social dinamarquês, considerado geralmente como o primeiro filósofo existencialista; em 1841 concluiu um magister artium na Universidade de Copenhaga e é autor da obra Migalhas Filosóficas (1844).

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Há duas maneiras de fazer política. Ou se vive ‘para’ a política ou se vive ‘da’ política. Nessa oposição não há nada de exclusivo. Muito ao contrário, em geral se fazem uma e outra coisa ao mesmo tempo […] Daquele que vê na política uma permanente fonte de rendas, diremos que ‘vive da política’ e diremos, no caso contrário, que ‘vive para a política’ […] O homem político deve, em condições normais, ser economicamente independente das vantagens que a atividade política lhe possa proporcionar […] O fato de um Estado ou de um partido serem dirigidos por homens que, no sentido económico da palavra, vivam exclusivamente para a política e não da política significa, necessariamente, que as camadas dirigentes são recrutadas segundo critério ‘plutocrático’.463

O diferente posicionamento no exercício da política, e o retorno que dela se espera pelo agente da política, ajudam a compreender as motivações da ação política e, em última análise, os desvarios que dela possam advir.

Claro que, da mesma forma que não se fazem revoluções com a barriga vazia, perdoe-se a linguagem prosaica, também a atividade política deve ser “profissionalizada” de modo a que, quem a exerça, não esteja à mercê de interesses dispostos a “financiá-la”, arregimentando-a. Infelizmente, é o que geralmente acontece nas democracias modernas.

O sentimento de impunidade trespassa a opinião pública e a credibilidade da democracia e das instituições está hoje fragilizada, apesar de alguma circunstancial unidade e consenso em torno dos governantes em períodos mais conturbados. As máquinas partidárias, por sua vez, no seu apego ao poder político, tendem a cartelizar a justiça e a própria comunicação social, avolumando o tráfico de influências e o conflito de interesses que ainda minam as sociedades democráticas. Vivemos hoje uma quase “partidocracia”, através da qual os partidos políticos limitam subjetiva e objetivamente o exercício dos direitos fundamentais de representação, participação e deliberação, ao reservar o acesso aos cargos políticos para os cidadãos da sua preferência e/ou conveniência. Os partidos reclamam-se muitas vezes como as únicas organizações políticas legítimas de representação dos cidadãos, desvalorizando os movimentos de cidadania e os candidatos independentes.

Em Portugal, como na Europa, necessitamos hoje, mais do que nunca, de um sistema eleitoral que escolha representantes e não governantes, que pessoalize o voto, que aproxime os cidadãos dos seus eleitos. Não cabe no âmbito deste estudo abordar a questão dos “círculos uninominais” e do “sistema misto”, na linha do que defendem há muito Álvaro Beleza, José Ribeiro e Castro e outras personalidades do panorama político nacional, “modelos” que já vigoram em outros países. O que importa é que as populações vejam naqueles que os representam o impacto da sua escolha para que os possam responsabilizar pelas decisões para que, supostamente, foram mandatados. Por outro lado, e especificamente no caso português, não estará o exercício dos direitos fundamentais do exercício democrático ferido de uma desigualdade material originada pela própria lei do financiamento exclusivo dos partidos no âmbito das campanhas eleitorais, uma

463 WEBER, Max (1917-1918) – Ciência e Política - duas vocações, tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota para a edição em língua portuguesa de 2011. São Paulo: Cultrix, pp. 64-66.

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lei eleitoral absolutamente incompatível com a igualdade de todos os cidadãos? Não será esta desigualdade material de participação na vida política e de acesso ao poder, um impedimento ao desenvolvimento da própria democracia? Desde há alguns anos que a nossa situação política, social e económica patenteia distorções e estrangulamentos graves que bloqueiam o desenvolvimento sustentável do país, necessário para que se garantam os recursos financeiros e humanos que suportem um serviço público de qualidade de que os cidadãos necessitam para o seu desenvolvimento pessoal e social.

O sistema político denota muita conflitualidade, quase instituída, e daí resulta que os governantes não concretizem medidas eficazes, governa-se com elencos de todos os tamanhos e formatos, resultando experimentalismos custosos e efémeros, e não há diálogo com a sociedade civil ou o mesmo é praticamente residual.

Também para o cientista político Yascha Mounk464:

Não é de hoje que os eleitores repudiam este ou aquele partido, político ou governo; agora, muitos deles parecem estar fartos da democracia liberal em si […] Não resta mais a menor dúvida de que estamos em um momento populista. A questão agora é se esse momento populista vai se tornar uma era populista - e pôr em xeque a própria sobrevivência da democracia liberal […] Há um quarto de século, a maioria dos cidadãos das democracias liberais estava muito satisfeita com seus governos e o índice de aprovação de suas instituições era elevado; hoje, a desilusão é maior do que nunca. Há um quarto de século, a maioria dos cidadãos tinha orgulho de viver numa democracia liberal e rejeitava enfaticamente uma alternativa autoritária a seu sistema de governo; hoje, muitos estão cada vez mais hostis à democracia [...] Um sistema em que as pessoas têm voz nas decisões assegura que os ricos e poderosos não possam passar por cima dos direitos dos desfavorecidos. Por esse mesmo motivo, um sistema em que os direitos de minorias impopulares são protegidos e a imprensa pode criticar o governo livremente assegura que as pessoas possam mudar seus soberanos mediante eleições livres e justas.465

A crise da democracia foi um tema discutido em 1973 na chamada “A Comissão Trilateral”466, transcrito depois no livro de Joji Watanuki, Michel Crozier e Samuel Huntington, genericamente conhecido como A Crise da Democracia, em que se lê que existem desafios intrínsecos em todos os sistemas democráticos, que não funcionam necessariamente de forma autossustentável ou autocorretiva de equilíbrio, desafios que surgem diretamente do funcionamento da própria democracia, e que, nos últimos anos, as operações do processo democrático parecem ter gerado um colapso dos meios tradicionais de controlo social, uma deslegitimação da política e de outras formas de autoridade.

464 Professor, jornalista e teórico político com cidadania norte-americana, nascido na Alemanha Ocidental em 1982, é doutorado pela Universidade de Harvard.

465 MOUNK, Yascha (2018) – O Povo contra a Democracia - Porque a nossa liberdade corre perigo e como salvá-la, tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Editora Schwarcz, pp. 16-21.

466 Fórum de discussão privado fundado em julho de 1973 por iniciativa de David Rockefeller, banqueiro e filantropo norte americano; atualmente, neste fórum participam 300 a 350 cidadãos da Europa, Ásia/Oceânia e América do Norte com a finalidade de promover uma cooperação política e económica mais estreita entre estes continentes.

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Ainda acerca das “disfunções da democracia”, pode ler-se na mesma obra que, além das questões políticas substantivas que o governo democrático enfrenta, muitos problemas específicos surgiram e parecem ser um padrão intrínseco do próprio funcionamento da democracia, como a deslegitimação da autoridade em geral e a perda de confiança na liderança, a intensificação da competição política que conduziu à desagregação de interesses e ao declínio e fragmentação dos partidos políticos, e o incremento do paroquialismo nacionalista.

Na sequência destas preocupações e de outras que, entretanto, têm assolado o pensamento dos teóricos políticos, o português João Santos, a quem já nos referimos, propõe um novo conceito de poder e um novo exercício da cidadania, em que cada cidadão possa ser ao mesmo tempo consumidor e produtor de política, revitalizando-se o processo político no quadro de uma democracia representativa reforçada na sua componente deliberativa, ou seja, a legitimação do poder pelo consenso e a adesão voluntária e ativa do cidadão às propostas políticas.

Outros autores evidenciam que a crise da representação, que se manifesta na desconfiança sistemática nos representantes eleitos, nos políticos em geral e nas próprias instituições públicas, gera uma espécie de “democracia sancionatória” que sobrepuja a própria vontade de agir sobre os processos de decisão e as escolhas das policies, isto é, uma crise da legitimidade do sistema democrático acompanhada pela exigência de novas formas de participação e de mecanismos inovadores não necessariamente políticos ou “politizados”.

A crise da democracia é assim também a crise de confiança no sistema político e dos modelos representativos tradicionais, transversal a todos os países do mundo ocidental, que começou no pós-segunda guerra, se acentuou nos finais do século XX e se agravou nas primeiras décadas do nosso século.

Os estigmas resultantes do conflito sangrento e avassalador da Segunda Guerra Mundial condicionaram a vida artística e literária da segunda metade do século passado, como na obra distópica do escritor britânico George Orwell, mas também a vida política. Mas a crise do sistema político é também a crise do sistema partidário que emerge da guerra e, num certo sentido, a provocou. O que Orwell escreveu em 1949, na fala ameaçadora de O’Brien para Winston, está ainda atualizado: “O Partido almeja o poder apenas pelo seu próprio interesse. Não estamos interessados no bem dos outros; estamos apenas interessados no poder […] Somos diferentes de todas as outras oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos a fazer […] Sabemos que ninguém toma o poder com a intenção de abdicar dele. O poder não é um meio, é um fim”467 .

Esta ideia do poder pelo poder está já inculcada no subconsciente dos cidadãos que ao contestá-lo nos outros fazem dele o seu alter ego. A corrupção, por exemplo, está hoje tão banalizada nos cidadãos porque as instâncias do poder criaram no seu imaginário a ideia da sua quase inevitabilidade.

A crise da democracia tem-se agravado nas últimas décadas com o galopante fenómeno da corrupção, mais evidente nos países latinos, tanto europeus como americanos, bem

467 ORWELL, George (1949) – 1984, tradução de Geraldo Quintas para a edição em língua portuguesa de 2021. Porto: Porto Editora, pp. 303-304.

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como nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e em muitas outras antigas colónias africanas, que mina sobremaneira a credibilidade das instituições e desacredita o próprio regime democrático, se for o caso. Como em todos os Estados-nação modernos, os EUA têm uma longa história de corrupção política. No entanto, o que é diferente em comparação com outros países, é que a corrupção neste país é legalmente parte do sistema. Na maioria dos países da Europa, por exemplo, o financiamento privado para campanhas eleitorais tem um limite e os gastos eleitorais têm que ser declarados. Nos EUA o financiamento privado é ilimitado, há muito poucas restrições sobre quem pode doar e mil e uma maneiras de contornar as restrições que existem. O que dão os políticos em troca aos financiadores das campanhas, principalmente às grandes corporações? Acesso e influência nas decisões políticas. Para Hannah Arendt a perversão é mais provável que ocorra em uma república igualitária do que em qualquer outra forma de governo, e também é esta autora que afirma que, em democracia, os interesses e as opiniões são fenómenos políticos totalmente diferentes. Em termos políticos, os interesses são interesses de grupo e, mesmo que o interesse de um grupo venha a ser o interesse da maioria, terão que ser representados de forma a que o seu carácter parcial fique preservado em todas as circunstâncias; ao contrário, as opiniões nunca pertencem a grupos, mas apenas a indivíduos, e nenhuma multidão, seja a multidão de uma parte ou de toda a sociedade, jamais será capaz de formar uma opinião, pois as opiniões surgem sempre que os homens comunicam livremente e têm o direito de expressar as suas posições em público468 .

Em Portugal, também este conflito entre os interesses privados e a opinião livre dos cidadãos faz perigar a democracia enquanto regime político impoluto e plural, mas que roça a utopia numa sociedade de homens. Em todo o caso, é expectável que uma certa deterioração da vida política nacional nos venha a impor a necessidade da adoção de medidas, não propriamente corretivas, mas retificativas que, apesar de não poderem ser adotadas por simples decreto, devem ao menos ser refletidas e discutidas no exercício da prática democrática. Não o fazer acelera o risco de podermos assistir impavidamente à perspetiva, ainda que longínqua, do aparecimento de propostas de indesejável rotura constitucional.

Pensar a democracia com uma visão de futuro implica lançar as bases de uma discussão séria no nosso País sobre uma reforma do sistema político e eleitoral há tanto reivindicada e tão ansiada pelos movimentos de cidadãos, e pelos próprios partidos políticos que nunca conseguiram entender-se para o efeito, pretensão aliás dificultada pela rigidez da própria CRP, que colocou o sistema eleitoral dentro dos limites materiais de revisão.

Mas estes fenómenos não são exclusivos da realidade política nacional. Ao suposto mau desempenho democrático que, em última análise, desemboca na descredibilização da atividade política e no défice de participação e de representação democrática, tanto em Portugal como nos países da União Europeia, acresce ainda o enfeudamento do Estado em relação aos grandes lobbies económicos e a concomitante cartelização das

468 ARENDT, Hannah (1963) – Sobre a revolução, tradução de Denise Bottmann para a edição em língua portuguesa de 2011. São Paulo: Companhia das Letras, p. 288.

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instituições democráticas pelos mesmos, numa relação viciosa que faz perigar o que a política tem de virtuoso.

É a insustentável leveza da democracia, que enfrentamos com torpor ou sedição, ou a contradição velada da democracia, que aceitamos num cortejo vigilante, parafraseando os insignes escritores Milan Kundera e Sartre.

Voltando à situação portuguesa, segundo a proposta de reforma eleitoral de José Ribeiro e Castro da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade e de José Dias Coelho da SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social:

Há muitos anos que muitos portugueses anseiam pela reforma do sistema eleitoral que reforce o poder de escolha dos eleitores e responsabilize os eleitos, dando remédio à visível decadência do sistema político. A quebra de autoridade e de legitimidade pessoal dos deputados favoreceu uma generalizada quebra de institucionalidade e de colegialidade orgânica, facilitando a captura do sistema por interesses vários […] A Constituição aponta, desde 1997, o caminho da representação proporcional personalizada, como na Alemanha e noutros países […] Esta reforma eleitoral muda profundamente o modo de escolha dos candidatos e, por conseguinte, a cultura política dessa escolha, reforçando colegialidade, institucionalismo e democracia interna […] Uma revisão da Constituição poderá sempre melhorar o quadro, permitindo outras inovações e uma flexibilidade ainda mais democrática: por exemplo, admitir candidatos independentes às eleições legislativas; ou, como tem sido aventado, reconhecer a democraticidade dos votos brancos e nulos, podendo ‘eleger deputados negativos’, isto é, retirarem cadeiras à composição parlamentar, se ultrapassarem o limiar para a eleição de mandatos; ou poder usar-se o método proporcional tido por mais justo, em vez de, unicamente, o imperativo método de Hondt. Como ironiza um autor, Hondt é o único indivíduo que tem honras de ser nomeado na Constituição, não sendo sequer português469.

Paulo Trigo Pereira470 afirma que Portugal é ainda um país vulnerável, que enfrenta grandes desafios nos próximos anos, pelo que é preciso renovar a democracia, reforçá-la, colocá-la ao serviço dos cidadãos e torná-la mais resiliente à crise presente e a crises vindouras. “A democracia ou se renova e reinventa, ou entra num «pântano», estiola e, eventualmente, soçobra […] é necessário alterar as instituições e a cultura política democrática para evitar o declínio da democracia; ou, dito de outra forma, que a manutenção do status quo institucional levará inexoravelmente à degradação do regime democrático”471 .

O agravar da desatenção, ou mesmo alheamento, do cidadão face às estruturas de poder que o representa provoca dois fenómenos particulares (pre)visíveis: o primeiro, é a

469 Apresentada em Lisboa, em 19 de janeiro de 2018.

470 Professor universitário e político português nascido em 1959, doutorado em Economia pela Universidade de Leicester, foi deputado na XIII legislatura, inicialmente como ‘independente’, incluído no grupo parlamentar do Partido Socialista e depois como deputado “não inscrito”, já no fim da legislatura.

471 PEREIRA, Paulo Trigo (2020) – Democracia em Portugal: Como evitar o seu declínio?, Coimbra: Edições Almedina, p.17.

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rotura completa do cidadão comum com o sistema ao não legitimar per se o ato governativo, o que o pode levar à procura de soluções mais radicais, muitas vezes embebidas

pelo desespero social para resolver os seus problemas mais prementes como a pobreza, a exclusão ou a própria falta de mobilidade social, ignorando, no processo, as claras contradições que existem entre os discursos e os atos de supostos “salvadores”; o segundo, é a passagem desse sentimento de descontentamento para o parlamento através da criação de novos partidos que emanam das forças descontentes da população, em que a razoabilidade e exequibilidade das medidas propostas e dos seus programas estão arredadas da realidade e das contingências que a revestem. Estas não são tidas como relevantes, nem algo que perturbe a quem as apresenta, mas apenas e tão só importam formas expeditas e oportunistas de chegar ao poder, quer local quer nacional, ao se apresentarem soluções do ponto de vista concetual, mas também prático, no pior dos casos irrealistas, no melhor impraticáveis.

Esses efeitos são hoje bastante notórios e traduzem-se na abstenção e radicalização crescente do discurso político, sinal que o contrato social está a ser denunciado. Com base nisto, uma proposta concreta de criação de um sistema de representação holística partidária, em que todas as forças políticas, mesmo as mais diminutas, sejam chamadas, ainda que não durante toda a legislatura, para cargos ministeriais ou de secretarias de estado, será algo que deverá ser olhado e equacionado sem a névoa produzida por dogmas ideológicos ou preconceitos estabelecidos. A única diferença seria a de aplicar o modelo vigente de representatividade não apenas à composição parlamentar, mas ao próprio governo, usando para isso o número de votos existentes nas eleições, em cada um dos partidos, para definir um determinado percentual na composição do mesmo e imputar a cada um dos partidos um determinado número de pessoas para o exercício de cargos políticos.

Não obstante, alguns dirão logo, no sentido de descartar a proposta ou ridicularizá-la, que a sua exequibilidade não é possível dada a falta de legitimidade política e democrática que uma tal solução apresenta. Mas deve a estes ser devolvida a questão - qual a legitimidade de um sistema com uma abstenção que abrange mais de metade da população? Qual a legitimidade do tal acordo de incidência parlamentar que tem viabilizado, ora à direita ora à esquerda, sucessivos governos e orçamentos de estado?

Só permitindo que todos os partidos e movimentos políticos possam ter o direito de governar, e serem comprometidos com as suas decisões, estaremos a prestar um serviço à democracia ao responsabilizar mais quem detém o acesso ao poder ou o próprio poder. Os temas da cidadania e da democracia são transversais a toda a sociedade civil e política e quanto mais os abordarmos, discutirmos e por eles nos interessarmos maior será a saúde da nossa democracia. A deterioração da vida política, o distanciamento progressivo entre os cidadãos e o poder político gera, em última instância, a emergência de soluções extremistas e populistas. O sentimento de impunidade perpassa na opinião pública e a credibilidade da democracia e das instituições está fragilizada. Os atores políticos atuam com a inépcia que lhes é conferida pela sobreposição dos interesses partidários e pessoais aos interesses legítimos daqueles que os elegeram. O crescendo dos movimentos cívicos e de grupos independentes corresponde assim à necessidade de cidadania e de defesa de valores que a política convencional não consegue incre-

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

mentar e tão-pouco preservar. São hoje vários os sinais do afastamento dos cidadãos da atividade política e a concomitante perda da confiança nos órgãos políticos e instituições públicas, que se traduzem no alto índice de abstenção eleitoral, o que conduz à diminuição da capacidade de representação das instituições do Estado, como o parlamento, a presidência e as próprias autarquias. Os cidadãos não escolhem os seus representantes na Assembleia da República, votam em listas, feitas pelos partidos, das quais muitas vezes nem conhecem os primeiros nomes. Trata-se de uma escolha de sigla ou acrónimo como se de um clube se tratasse, não são lidos os programas, nem o perfil dos candidatos que nem sempre residem ou trabalham nos círculos eleitorais que os elegem. Como os deputados no atual quadro eleitoral são escolhidos pelos partidos e não pelos eleitores, dispõem assim de pouca autonomia de decisão. Por outro lado, os partidos são cartéis de interesses e compadrios que obstaculizam a entrada de elementos qualificados. A partidocracia deve ser combatida no interior dos próprios partidos, das bases para as cúpulas, mas sobretudo de fora para dentro, da sociedade civil para a sociedade política. Também a multiplicidade de novos partidos, embora constitua um sinal de vitalidade política, comprova que os existentes, sobretudo os do arco governativo, perderam a capacidade de se regenerar. Não nos move nenhuma cruzada contra os partidos, no entanto, é preciso que a sociedade civil encontre, para além dos partidos, outras formas de representação.

Em Portugal, os grupos de cidadãos eleitores como lhes chama a Comissão Nacional de Eleições, vulgo movimentos independentes, por força de uma lei eleitoral obsoleta, ainda não podem concorrer ao Parlamento. Portanto a voz da cidadania e da sociedade civil não tem expressão no órgão executivo máximo. Por outro lado, o eleitor não é obrigado a rever-se nos partidos existentes que se lhe apresentam a votos, podendo optar por soluções mais personalizadas ou, digamos, menos ideológicas e mais programáticas.

Há quem, no entanto, conteste a eleição de cidadãos independentes, portanto não filiados em partidos, para a assunção de funções parlamentares. É o caso de Paulo Pereira quando escreve que:

A deliberação com um número reduzido de partidos políticos, ou seja, com um número limitado de propostas ou posições sobre cada um dos temas da política nacional, permite um confronto de opiniões. Em contrapartida, um debate parlamentar sem partidos […] ou mesmo com vinte partidos, seria virtualmente impossível. Daí que a possibilidade de existirem candidaturas independentes à Assembleia da República, que alguns defendem, não seja apenas ilegal, mas indesejável. A concretizar-se essa possibilidade, ganhar-se-ia em pluralidade, mas perder-se-ia em possibilidade de deliberação pública e em condições de governabilidade.472

Curioso é saber que este ex-deputado foi eleito como “independente” nas listas de um partido e que no fim da legislatura passou a deputado “não-inscrito”, o que é uma forma enviesada de reconhecer que os cidadãos independentes, afinal, também podem exercer a sua magistratura (do latim magistratus, designa lato sensu um funcionário do poder

472 Ibidem, p. 26.

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público investido de autoridade e no Império romano compreendia todos os detentores de cargos políticos) no parlamento nacional, contornando assim de forma habilidosa uma lei eleitoral, já obsoleta, feita no quadro pós-25 de Abril pelos partidos, e para os partidos, com o conluio dos militares.

Esta posição, no entanto, apesar dos pretextos que se arranjem, nomeadamente o da governabilidade, não nos parece fácil de sustentar. Por um lado, existem países em que candidatos independentes podem concorrer a eleições nacionais, por outro, impedi-los de se candidatarem aos órgãos públicos mais relevantes significa inexoravelmente que há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, uma vez que os cidadãos não são por lei e por consciência obrigados a estar inscritos em partidos e, por isso, não podem nem devem estar impedidos de exercer a sua cidadania em todas as formas que esta assuma na democracia política, concretamente as eleições gerais.

Outro argumento é o da fragmentação política excessiva como fator gerador de instabilidade política, resultante de um espectro ideológico demasiado alargado. Parece-nos de novo que a democracia, além de não se esgotar nos partidos nem estes esgotarem a democracia, como é amiúde repetido por militantes dos próprios partidos, não pode percecionar a pluralidade como negativa, mas como sinal de vitalidade política. Se existir um leque alargado de opiniões é porque a democracia funciona, não o contrário. A democracia não pode ficar condicionada às chamadas “governabilidade” e “instabilidade”, estas é que têm que encontrar meios para funcionar sem comprometer o desígnio superior do exercício democrático.

Segundo Jorge Tavares, do “Movimento Revolução Branca”473, e de acordo com a lista da fonte utilizada474, na Europa dos 27, os Estados-membros em que os cidadãos se podem candidatar a lugares dos parlamentos nacionais, por direito próprio, são: Bulgária, Chipre, República Checa (câmara alta), Dinamarca, Estónia, França (câmara baixa), Alemanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Lituânia, Malta, Polónia (câmara alta) e Roménia (câmaras alta e baixa). Segundo o mesmo blogger, a Suécia não consta desta lista, mas não coloca entraves a candidaturas independentes, e na vizinha Espanha, embora a lei eleitoral não admita, tal como em Portugal, candidaturas independentes nas eleições legislativas, não se exige o número mínimo de assinaturas para a constituição de um partido político.

A Turquia, que é dada como exemplo dos malefícios das candidaturas independentes no plano legislativo, tem um parlamento de uma câmara, a Grande Assembleia Nacional da Turquia (Meclis), formada em 1920 aquando da guerra de independência, que é constituída por 6.000 membros, eleitos a partir de cinco distritos eleitorais, pelo método de Hondt, através de listas de partidos ou de candidatos independentes. A dificuldade está na obtenção do mínimo de 10% dos votos nas eleições nacionais, para que os independentes ou os pequenos partidos se possam fazer representar no parlamento, com o pretexto de se evitar uma grande fragmentação política e a ingovernabilidade advinda

473 http://www.mrb.pt/

474 EHIN, P. et al. (2013) – Independent candidates in national and European elections: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2013/493008/IPOL-AFCO_

ET(2013)493008_EN.pdf

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Dias
Carlos
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das vitórias sem maioria absoluta, o que restringe fortemente o multipartidarismo e a diversidade política, tal como em Portugal aliás.

A mudança poderá acontecer através da pressão externa dos movimentos cívicos, de petições e iniciativas legislativas ou do elevado nível de sucesso dos candidatos independentes em outro tipo de eleições, nomeadamente as locais. Um sistema mais universal, tanto na sua estrutura formal como na sua aplicabilidade, corresponderá sempre a um ganho ao nível da participação e da legitimação do próprio sistema político.

Apesar do cidadão dever ser também responsabilizado pelo estado da democracia no seu país, sabemos que a pessoa isolada, mesmo que o queira, não dispõe de grandes meios, quer delegativos, quer jurídicos, quer comunicacionais, para interpor ações de contestação ou processos de intenção contra os políticos e as instituições políticas. Daqui resulta que existem instituições (em Portugal, o TC e a CNE, por exemplo) com essa capacidade, mas que, grosso modo, não têm sido capazes, no decurso da sua atividade, de inverter a tendência degenerativa.

Só o reforço da democracia, da representatividade e da participação, pode conduzir à passagem do vicioso para o virtuoso, a acreditar neste maniqueísmo interpretativo ao nível da evolução da democracia política.

Em articulistas e estudiosos da democracia portuguesa é vulgar ler ou escutar posições como “a nossa democracia tem decaído” e que é preciso “requalificar a democracia”, entre outras que apontam para uma progressiva degradação do regime democrático no nosso país. Sem dramatizar, julgamos que têm alguma razão. Com efeito, assiste-se hoje, e o fenómeno não é novo, a um “esclerosamento e fechamento dos partidos políticos, a uma ausência de deliberação pública sobre as grandes reformas a realizar no país e a uma incapacidade de alterar de forma apropriada as regras eleitorais, de financiamento partidário e de recrutamento político para cargos eletivos e de nomeação”475 .

É ainda Paulo Pereira que escreve que os portugueses têm razão para estar descontentes com o funcionamento da nossa democracia, para desconfiar da classe política, que promete na oposição o que não pode ou não quer cumprir no poder, e que o défice democrático consiste no facto da democracia não propiciar, entre outros fatores, a justiça social e a prosperidade económica por que os cidadãos anseiam476 .

Numa linha ainda mais “dramática”, mas já no plano supranacional, também Manuel Carrilho nos fala da “desvitalização da democracia” porque as instituições estão bloqueadas por interesses consecutivamente instalados, com os líderes políticos reféns da agenda eleitoral, sem visão de futuro, incapazes de ultrapassar o abismo que nas últimas décadas se cavou entre o poder da finança e o Estado de direito, entre a lógica do mercado e a democracia477. Concordamos com este autor quando escreve que a crise financeira de 2007-2008, precipitada pela falência do tradicional banco de investimento norte-americano Lehman Brothers, não foi ainda ultrapassada pelos sucessivos governos que, pelo contrário, fragilizaram os Estados ao privatizarem os lucros e so-

475 PEREIRA, Paulo Trigo (2012) – Portugal: Dívida Pública e Défice Democrático, coleção Ensaios da Fundação. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, p. 79.

476 Ibidem, p. 105.

477 CARRILHO, Manuel Maria (2022) – Op. Cit., pp. 49-50.

RE_PENSAR A DEMOCRACIA 215

cializarem as perdas num contexto em que a dívida privada se tornou em uma enorme dívida pública, transformando-a assim numa espécie de crise. Também as revoluções da mobilidade e da conetividade, que alteraram significativamente as noções do espaço e do tempo, não se traduziram numa alteração das políticas e das instituições, das escolas, dos partidos e das administrações, desembocando numa “crise de civilização” sem precedentes que coloca à democracia novos desafios478

Fernando Condesso479 escreve que “segundo a politologia actual, a questão da formulação das políticas públicas pelo poder representativo eleito é uma pedra essencial da definição do conceito de democracia moderna”480. Importa assim que as populações vejam naqueles que os representam, os governantes, o impacto da sua escolha para que os possam responsabilizar pelas decisões tomadas no âmbito, sobretudo, das políticas públicas.

Também a cidadania independente, fora do sistema partidário, deve organizar-se por forma a chegar ao poder, nos casos em que a partidarite ainda é a única ou principal forma de representação e remete a cidadania para uma esfera de oposição civil fragmentada, exterior ao arco de poder, comprometendo o ideal de igualdade e equidade entre todos os cidadãos, desde logo no acesso ao exercício de cargos políticos. A representatividade através dos partidos políticos é apenas o anverso da moeda da democracia, o reverso são os movimentos cívicos independentes, que constituem cada vez mais uma alternativa, que não alternância, ao poder dos diretórios partidários (nos partidos, a hierarquia prevalece sobre o poder das bases). Também a bipolarização que hoje, concretamente em Portugal, muitos querem fazer vingar no sistema político, transforma-se quase numa doutrina, a do “bipolarismo”.

Há uma conexão causa-efeito muito nítida entre a legitimidade democrática através do voto e o exercício oligárquico do poder a nível partidário. Quem estiver na parte de cima da pirâmide terá claramente vantagens políticas que, no limite, se transformarão em vantagens pessoais. Os partidos adotaram, em Portugal como na Europa e no mundo, estruturas marcadamente piramidais e burocráticas, estruturas para chegar ao poder e não para ajudar a preparar o futuro, a verdadeira dimensão da política.

Numa versão conservadora, para que a organização funcione democraticamente, os dirigentes de topo da hierarquia partidária devem ser eleitos, em processos mais ou menos complexos, pelos militantes do partido, as bases. Numa versão renovadora, o dirigente máximo é eleito em diretas pelos militantes e/ou simpatizantes. Em qualquer dos casos, a representatividade é ascendente e legitimadora de quem vai deter o poder máximo na organização. Também assim os candidatos partidários deverão responder cada vez menos à estratégia das cúpulas partidárias centralizadas e cada vez mais à responsabilização perante os eleitores de proximidade.

478 Ibidem, pp. 47-49.

479 Nascido em 1946, foi cofundador do PPD em 1974, eurodeputado entre 1986 e 1989 e deputado em várias legislaturas; é professor catedrático jubilado de Ciência Política e de Direito Público.

480 CONDESSO, Fernando (2011) – Op. cit., p. 120.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

Uma cidadania consciente e participativa não é uma abstração política ou sociológica, mas uma necessidade concreta das sociedades modernas e da boa pedagogia ética e política. É este apego ao papel da cidadania e da sociedade civil na “governança” de um povo, que extravase os diretórios e aparelhos partidários, que muitos autores, incansavelmente, têm repercutido nos seus estudos, palestras ou meras lucubrações, procurando contrariar a “alienação” do povo das questões da política, arredado que está do exercício do poder, enclausurado em uma espécie de “silêncio consentido” que não abona a favor de uma democracia de qualidade. Em Portugal, acrescem ainda os elevados níveis de pobreza e a desigualdade de rendimentos entre os cidadãos. Uma investigação baseada em dados de 2002 no seio de 23 países chamados ricos, entre os quais Portugal se encontra (numa lista dos 50 países mais ricos do mundo facultada pelo Banco Mundial), aos quais foram subtraídos os países com menos de três milhões de habitantes, como o Mónaco, e os países sem informações sólidas quanto à desigualdade de rendimentos, como a Islândia, permite concluir, pesem embora os vinte anos decorridos, que Portugal se encontra entre os três países menos igualitários (considerados os rendimentos do agregado familiar após as deduções fiscais), conjuntamente com os EUA e o Reino Unido481. Também no índice dos problemas sociais e de saúde se verifica que a desigualdade de rendimentos nestes países os agrava, sendo que Portugal ocupa neste item o pior lugar, depois dos EUA, entre 21 países (aos 23 foram retirados Israel e Singapura por falta de indicadores no índice)482.

Em relação ao futuro da democracia na Europa Ocidental prevalece hoje, apesar de todas as marcas e estigmas, a moderna conceção da política em que o Estado, como já escreveu Hannah Arendt no início dos anos de 1950, é percecionado pelos cidadãos como um mal necessário para garantir a liberdade social. O contexto do pós-guerra em que a filósofa alemã escreveu “a definição da política como um meio em vista de um fim que se situa fora dela – ou seja, como um meio de liberdade –, só num grau muito limitado se aplica na época atual”483, felizmente já não parece ser o nosso.

O que entendemos hoje como democracia política, na sua feição concreta do governo constitucional, quer se trate de uma república ou de uma monarquia, é sobretudo um modo de governação que os governados possam controlar, ainda que de forma enviesada, para que se preserve a liberdade individual ou grupal. Outros autores, como Wolfgang Pape484, falam em “omnilateralismo” para substituir a narrativa de um século do multilateralismo de inspiração ocidental, ou seja, para alargar os horizontes da democracia aos contributos de ideias e boas práticas de origem

481 WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate (2009) – Op. cit., pp. 38 e 321.

482 Ibidem, pp. 41 e 322.

483 ARENDT, Hannah (1951) – Op. cit., p. 123.

484 Nascido em 1943, escritor e conferencista, foi responsável por políticas na Comissão Europeia, contribuiu para o Livro Branco sobre Governação no think tank do Presidente da CE, Jacques Delors; tem publicações sobre governação global e cunhou o termo “omnilateralismo”.

RE_PENSAR A DEMOCRACIA 217

não ocidental e, ao mesmo tempo, incluir agentes não estatais, da sociedade civil, como participantes legítimos na governança, porque são mais confiáveis do que funcionários movidos por interesses nacionais limitados485

Temos sérias dúvidas em relação a este conceito de democracia global, porquanto subestima a soberania dos países e das nações, e não reiteramos totalmente a acusação que aquele autor faz aos políticos “tacanhos” que ainda reivindicam a soberania nacional e ao conceito, historicamente aberrante, de nação “vestefaliana”.

O globalismo é, por princípio, um conceito antidemocrático porque afasta os cidadãos da proximidade do poder ao conferir à détente e às altas esferas políticas e económicas a gestão dos seus destinos num processo que não podem de modo algum sufragar e validar, ou mesmo sequer percecionar.

É certo que hoje quase todos os governos reivindicam a democracia, e que esta se deve adaptar aos diferentes níveis de governação, do local ao global, passando pelo regional e nacional, mas transformar votos quantitativos em vozes qualitativas para granjear níveis mais elevados de governação não nos parece ser a melhor via democrática, mas uma forma de trasvestir a democracia em “meritocracia”, ao incluir players com legitimidade tecnocrata através de mecanismos de legitimidade e de responsabilização no “cenário global”.

Problemas globais exigem soluções globais (clima, energia, pandemias, migrações, pobreza, genocídios, etc.), mas como decidir “agendas” globais e unitárias sem o aviltamento da democracia, sem ostracizar a participação cívica dos cidadãos? Por outro lado, o governo global, no sentido de transnacional, só pode funcionar ao nível de uma federação ou confederação que têm os seus mecanismos próprios de representatividade popular, mesmo que indiretos e pouco participativos. Em Pape, o conceito de competências supranacionais, equilibradas pela subsidiariedade (tal como é parcialmente praticado pela União Europeia), poderia servir como um trampolim na direção certa486. Em resumo, esta nova narrativa do “omnilateralismo” intenta assim a abertura democrática a conhecimentos, experiências e intervenientes não governamentais, uma maior abertura geocultural a países não-ocidentais, assim como a passagem do sistema nacional multilateral para a governação global omnilateral, num contexto de “transcrescimento” histórico da política global, em que os sistemas eleitorais quantitativos concebidos para Estados territoriais e poderes públicos estáveis admitem ser altercados por soluções de poder mais fluídas, ou seja, menos eletivas.

485 PAPE, Wolfgang (2021) – Opening to Omnilateralism. Democratic Governance for All, from Local to Global with Stakeholders. Milton Keynes: AuthorHouse, p. 1.

486 Ibidem, p. 2.

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Carlos Magalhães e Manuel Augusto Dias

O pleno da democracia far-se-á na conjugação dos três “modelos” a que atrás aludimos, o representativo, o participativo e o deliberativo, aquilo a que poderíamos chamar o triângulo da democracia.

Em todos estes formatos e da sua conjugação, resulta que a democracia é sempre um sistema político imperfeito ou insuficiente, mas para o qual ainda não se encontrou até hoje uma forma de governo alternativo, como alertou Churchill.

A democracia de cada um seria a forma perfeita, mas trata-se de uma utopia ou de uma redundância múltipla. A democracia de todos é o “falar do povo” a que alude Dos Passos e isso tem reflexos, mas continuam a ser os “eleitos” a ter a palavra final.

A democracia está hoje, aparentemente, numa encruzilhada, sem fim à vista, mas sobrevive e continua a merecer, principalmente nos países do hemisfério ocidental, a grande preferência da sociedade política.

As instâncias de poder são por natureza endógenas, conservadoras, e por natureza exógenas, renovadoras. Esta dicotomia é, aparentemente, indissolúvel e tende a absorver o “impacto” das modernas democracias representativas e participativas no progresso social e económico, num contexto em que se agrava o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, situação que o sistema político democrático não tem conseguido debelar e, assim, corresponder à prerrogativa sublime de contribuir para uma sociedade mais justa e para o bem comum.

A liberdade de expressão no mundo ocidental é a maior virtude do sistema político democrático e o pensamento “livre”487 do cidadão ainda não pode ser diretamente controlado pelo poder político.

A democracia tem, como defende George Novack, uma dimensão classista. Os patrões e os trabalhadores, os empregadores e os colaboradores, têm uma insofismável conotação de classe. Se a sociedade não é igualitarista como poderia sê-lo a democracia? Apesar das experiências igualitárias que ainda existem em algumas comunidades isoladas, o liberalismo económico ainda é a solução prevalecente no mundo moderno, mesmo nos regimes ditatoriais.

Mas esta reflexão não é de teoria política. Importa para os autores a democratização do exercício do poder como forma de minorar as injustiças e as desigualdades que hoje subsistem, e contraditoriamente se agudizam com uma economia globalizada em que todos somos prosumers, na prossecução de uma sociedade mais inclusiva, solidária e desenvolvida, que alguns chamam progressista, sem miserabilismo e assistencialismo, que só o enriquecimento da democracia, o tal “círculo virtuoso”, apesar de tudo, pode induzir.

Independentemente das soluções advogadas, este re_pensar da democracia parece-nos ainda conter em si o simbolismo icónico que pode, na sua ínfima escala, inverter ou 487 Para Susan Greenfield, neurocientista britânica e pesquisadora da Universidade de Oxford, o aspeto mais crítico das tecnologias digitais é a forma como a vida em rede mudou a formação da nossa identidade, tornando-a dependente da visão das outras pessoas. Mas, desde sempre, as interações entre as pessoas, e fenómenos agregadores como a religião e a própria política, condicionaram a sua maneira de pensar e a sua visão do mundo.

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. CONCLUSÃO

debelar a partidocracia e a mediacracia vigentes sem, naturalmente, procurar minimizar a importância que os partidos políticos e os meios de comunicação de massas têm hoje nas sociedades democráticas.

Democracia como um fim em si mesmo? Não, antes como um meio para a transposição para a sociedade feliz que acredita na justiça, na igualdade e na liberdade.

Poder escrever este livro é um sinal que a “democracia” com todas as suas virtudes e defeitos ainda é (independentemente da casuística e dos matizes da sua aparência formal), em casa, no bairro, na empresa, na escola, na comunidade, no país, na Europa e no mundo, o móbil principal da existência dialética do indivíduo na sociedade e da sociedade no indivíduo.

As três dimensões fenomenológicas da “democracia”, representativa (delegar), participativa (intervir) e deliberativa (decidir), são estádios que interagem autonomamente no modus operandi da democracia política. Como temos reiteradamente afirmado, a intervenção política e a participação cívica são componentes inalienáveis e indissociáveis do exercício da cidadania.

No modo de produção capitalista, em vigor na maioria dos países do mundo dito civilizado, a democracia, sem o ser, é a melhor das “ideologias”, e só ela pode ser aceite por sociais-democratas, socialistas e liberais, pelo centro, esquerda e direita. É a “parangona” de todas as idiossincrasias, individuais ou grupais. É o regime que melhor capacidade tem de gerar os consensos que a sociedade moderna exige.

Como já tinha afirmado Lewis Morgan, no último quartel do século XIX, os interesses da sociedade são primordiais para os interesses individuais, e entre os dois devem estabelecer-se relações justas e harmoniosas, e a democracia na governação, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e privilégios, bem como a educação universal, prenunciam a próxima etapa superior da sociedade para a qual tendem constantemente a experiência, a razão e o conhecimento488. Um dos maiores perigos para a civilização ocidental, para o mundo se quisermos generalizar, e para a história da democracia, é o triunfo da oclocracia (ela própria também uma forma radical de democracia), isto é, da falência da forma de governo democrático em favor da crise generalizada das instituições e do direito positivo, quando o poder “cai na rua” e se torna descontrolado. O poder legítimo fica aqui ao sabor da irracionalidade das multidões.

Resulta, por último, neste nosso ensaio, uma reflexão final, talvez controversa. Nos nossos dias não se questionam os partidos, admite-se por vezes que a democracia não se esgota nos partidos, e quem não se revê nos partidos diz amiúde que não ostraciza os partidos e que os considera parte integrante da democracia. Mas poucos hoje se interrogam para que servem os partidos, se os partidos são imprescindíveis à democracia, porque a democracia existe desde a Antiguidade e os partidos enquanto instituições de direito privado, com afinidades ideológicas e políticas, tal como hoje os conhecemos, existem apenas a partir da revolução francesa e da independência americana, salvo exceções pontuais como os partidos ingleses Tory (de feição conservadora) e Whig (de

488 MORGAN, Lewis Henry (1877) – Ancient Society or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. New York: Henry Holt & Company, p. 552.

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Manuel

feição liberal), ambos criados no último quartel do século XVII. Sem enveredarmos pela linha niilista de Simone Weill, do fim dos partidos, é tempo de interiorizar, como fator revitalizador da própria democracia, que a cidadania é tão antiga como a sociedade humana e que o partidarismo é um fenómeno historicamente recente, que não é um fim em si mesmo, mas apenas e tão só uma manifestação organizada de cidadãos que visa a disputa do poder político, para além de todas as outras existentes ou presumíveis que têm o mesmo objetivo.

Segundo o sociólogo e filósofo político brasileiro Nildo Viana, o fetichismo do partido tem a sua explicação nas relações engendradas pela sociedade contemporânea e a superação do fetichismo só é possível através da superação da realidade que produz o fetichismo; a deificação dos partidos políticos, ao contrário da democracia como forma e sistema de governo, é um “acidente” da história da democracia cuja superação depende da transmudação das relações entre os cidadãos e o poder489

Acresce, por outro lado, a nossa responsabilidade no porvir e no devir da democracia, enquanto sistema político, não a “falsa consciência”490 da democracia. Esta responsabilização impele-nos para a necessidade da mudança do paradigma, enquanto juízes, mais ou menos conscientes, da nossa própria intervenção no processo de construção social.

Finalmente, este livro é uma mera etapa no desígnio dos seus autores em manter viva a chama da discussão sobre a democracia, da sua renovação à sua reinvenção, pelo que é necessariamente uma obra inacabada.

São justas as preocupações já expressas por Aldous Huxley, nos finais dos anos de 1920, quando escreveu que a democracia política foi em toda a parte temporariamente abolida e que um sistema de governo que necessita de ser abolido todas as vezes que surge um perigo, dificilmente se pode descrever como um sistema perfeito491. Temos o recente caso da Ucrânia, em que, ao abrigo da Lei Marcial onze partidos políticos foram proibidos, supostamente nem todos pró-russos, segundo artigo de opinião publicado no semanário Expresso492. Por outro lado, o romancista inglês também reconhece que devemos estar agradecidos a um sistema que nos proporciona um governo estável, mesmo quando, como acontece muitas vezes nos países democráticos, os governantes são charlatães e malandrins493.

John Keane sublinha o papel da História na teoria democrática e admite que a reflexão

489 VIANA, Nildo (2003) – O que são os Partidos Políticos? Goiânia: Edições Germinal, p. 86.

490 No sentido que conferiu a esta expressão Friedrich Engels na sua carta a Franz Mehring, datada de 14 de julho de 1893 [in Marx Engels Obras Escolhidas, tomo III, tradução de José Barata-Moura para a edição de 1982, a partir da edição alemã de 1856/68. Lisboa: Edições Progresso, pp. 556-560].

491 HUXLEY, Aldous (1927) – Op. cit., p. 128.

492 https://expresso.pt/internacional/guerra-na-ucrania/2022-06-20-Tinham-sido-suspensosagora-estao-proibidos-os-partidos-ucranianos-que-a-justica-acusa-de-apoiarem-a-Russia9a396b3c

493 HUXLEY, Aldous (1927) – Op. cit., p. 129.

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sobre o passado, o presente e o futuro da democracia é um trabalho interminável porque sujeito à necessidade de revisões decorrentes de novas evidências, novos eventos, interpretações diversificadas e diferentes modos de fazer história, pelo que não pode haver uma teoria geral da democracia494.

Também segundo Jean Piaget (1896-1980)495, tal como toda a ciência está em permanente transformação e não considera nunca o seu estado como definitivo, o problema específico da epistemologia496 é o aumento dos conhecimentos, ou seja, a passagem de um conhecimento inferior para um saber mais rico, em compreensão e extensão497 Na filosofia política, em geral, e na teoria da democracia, em particular, também não há estados definitivos, mas como diriam Isakhan e Stockwell não existe nenhuma forma pura de democracia a descobrir, mas diferentes momentos democráticos e potencial democrático em todas as épocas históricas, em todas as culturas e em todas as regiões. É assim necessário introduzir na tradicional história da democracia os experimentos democráticos marginais que podem enriquecer a nossa visão de conjunto da problemática historiográfica atinente, visão que modestamente julgamos ter inculcado neste nosso ensaio.

No mundo ocidental pós-moderno a democracia já é um valor civilizacional e não se aceita outro poder legítimo que não o que resulta da investidura popular. Por outro lado, a teoria da democracia que aqui re_pensámos não tem que ser (re)inventada, mas outrossim (re)equacionada em função dos novos paradigmas da participação, da igualdade, da liberdade, da justiça social, da tolerância, da inclusão e da própria transição energética. O re_pensar da democracia visa por isso a nova centralidade dos problemas, por forma a desenharem-se políticas democráticas ajustadas aos novos desafios da modernidade.

Apesar de alguns dela desacreditarem e outros, como Manuel Maria Carrilho, a considerarem finita, acreditamos que a “democracia” ainda não é uma palavra vã e que, ao ostentar o escudo das ideias e ao empunhar a espada das palavras, fazemos desta cruzada cívica e política, por uma democracia de qualidade, o combate desapegado das nossas vidas.

Bem hajam todos quantos, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, contribuíram e/ou participaram na feitura deste livro. Por Portugal, pela humanidade, por cada um de nós e por todos nós!

494 KEANE, John (2019) – Op. cit., p. 60.

495 Psicólogo, biólogo e epistemólogo suíço, considerado um dos mais importantes pensadores do século XX, foi agraciado com o título de doutor honoris causa pela Universidade Harvard e de outras prestigiadas universidades, como a Sorbonne de Paris; fundou a Epistemologia Genética, teoria do conhecimento com base no estudo da génese psicológica do pensamento humano, e é autor da uma vasta obra neste domínio.

496 Ramo da Filosofia que, no sentido restrito do termo, se ocupa do conhecimento científico e da sua evolução.

497 PIAGET, Jean (1970) – Introdução de A Epistemologia Genética, tradução de Nathanael C. Caixeiro para a edição em língua portuguesa de 1971. Petrópolis: Editora Vozes, p. 9.

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. A DEMOCRACIA LOCAL PRECISA DE DEMOCRATAS*

A democracia

É democrata aquele que, por educação, aprende o que é a democracia e depois a acolhe.

Há aqui efetivamente dois momentos distintos. O primeiro é o conhecimento do que é a democracia como regime político de um país e o segundo é a aceitação e defesa desse regime.

Saber o que é a democracia no nosso tempo não é difícil, embora sobre ela se tenham escrito um número incomensurável de livros e artigos o que significa que tenha sido objecto de diversos entendimentos.

O conceito de democracia que aqui passamos a expor é o que resulta da nossa Constituição de 1976 devidamente actualizada e que é acolhido na Europa, nomeadamente nos países que integram o Conselho da Europa, organização fundada em 1949 que tem por finalidade a defesa dos direitos humanos, a democracia e o Estado de Direito, dedicando particular atenção à democracia local e que tem actualmente 46 Estados498. A base da democracia está na aceitação de que todas as pessoas são iguais, no sentido de que entre os seres humanos não há uns superiores a outros. Todos têm a mesma dignidade e merecem igual respeito.

Isto está muito bem expresso no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer no seu n.º 1 que “(T)odos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.

E consequentemente o n.º 2 do mesmo artigo afirma que “(N)inguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.

Como bem se perceberá e claramente se deduz deste n.º 2, esta igualdade não quer dizer que todos os cidadãos sejam iguais, sendo aliás, bem diferentes no sexo, na raça, religião, situação económica e todas as demais diferenças nele enumeradas de forma não exaustiva, o que se quer dizer é que essas diferenças não podem impedir a radical igualdade de direitos e deveres e a eminente dignidade de cada um deles499

A democracia, partindo desta base fundamental, procura garantir a todos os cidadãos o gozo dos direitos essenciais inerentes à sua dignidade.

E bem o atesta o artigo inicial da nossa Constituição ao declarar que: “Portugal é uma

498 O presente capítulo tem uma finalidade predominantemente pedagógica e utiliza, em parte, ideias e reflexões e mesmo alguns trechos de textos escritos pelo Autor e que são, por isso, mencionados em notas de rodapé.

https://www.coe.int/web/portal/homeer

499 O “Considerando primeiro” do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 é muito elucidativo a este propósito: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. [

https://gddc.ministeriopublico.pt/]

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* 498

República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade, livre, justa e solidária”.

Não é tarefa fácil esta a do regime democrático, mas é fundamental, pois faz parte da sua essência, ou seja, não há democracia concretizada enquanto os direitos fundamentais da pessoa não forem efectivados. É por isso que se deve dizer que a democracia é um processo em constante desenvolvimento e aperfeiçoamento.

Ela proclama os direitos fundamentais, mas não pode ficar-se pela proclamação. Tem de os pôr em prática, sendo certo que, por um lado, nunca os atingirá por completo, mas, por outro, que deixará de ser democracia se não os tiver no seu horizonte como principal preocupação.

O poder dos cidadãos em democracia

Dada a radical igualdade de todos os cidadãos dentro de um Estado democrático nenhum deles, isolado ou em grupo, pode apoderar-se do poder, subjugando outros.

O poder em democracia pertence a todos e cada um dos cidadãos e apenas o seu exercício, através de cargos necessários para o bom funcionamento do país, pode ser confiado a alguns deles, estando sujeitos a importantes limites.

Os titulares de cargos recebidos pela vontade dos cidadãos manifestada através de eleições não ficam donos desses cargos e do respectivo poder que eles lhes conferem. Eles são representantes dos cidadãos e como tal têm o dever de lhes prestar contas. Essas contas são prestadas não só periodicamente através de novas eleições, mas também sempre que os cidadãos assim desejem através de diversos instrumentos que o regime democrático põe ao seu dispor, desde logo o direito à informação sobre a actividade que estão a exercer.

Nunca deve perder-se esta característica essencial da democracia, frequentemente esquecida: os titulares de cargos políticos estão sempre ao serviço dos cidadãos, são seus servidores e não os seus donos.

É certo que tais titulares podem fazer leis e regulamentos, impondo-lhes deveres como, por exemplo, o de pagar impostos, o de pagar coimas por prática de contraordenações, o de serem expropriados de terrenos para fins de interesse público, o de terem de pedir licença para construir uma habitação e tantos outros deveres a que os cidadãos estão sujeitos, mas todos eles por via de uma organização da sociedade que resulta da vontade dos cidadãos expressa fundamentalmente em leis que a todos se aplicam, desde que verificadas as circunstâncias nelas estabelecidas.

O dinheiro que o Governo, p. ex., recebe do pagamento de impostos não lhe pertence. É-lhe confiado para o utilizar de acordo com a lei e quando, utilizando esse dinheiro, paga aos funcionários públicos não é com dinheiro seu que lhes paga é com o dinheiro que lhes foi entregue pelos cidadãos.

Veja-se que esta situação é muito diferente da que se passa nas empresas privadas em que o dono da empresa paga com o seu dinheiro (o dinheiro que obteve através da empresa ou até do seu bolso) aos seus trabalhadores.

E também é diferente do que se passa nos regimes não democráticos. Nestes os titulares do poder não são todos e cada um dos cidadãos, mas apenas aqueles que tomaram conta

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Carlos
Magalhães e Manuel Augusto Dias

dos cargos necessários para o funcionamento do país e que impõem como entendem deveres, desde logo a exigência de impostos, sem precisarem de lei devidamente aprovada num parlamento regularmente eleito. Por essa mesma razão não têm de prestar contas aos cidadãos do modo como exercem o poder e como utilizam os dinheiros que possuem.

A organização do exercício do poder

Assume particular importância na democracia a organização do exercício do poder para que não suceda que se desvirtue o bom funcionamento da mesma. Assim – e desde logo – costuma haver o cuidado de aprovar uma Constituição a que todos devem obedecer por conter os preceitos básicos da democracia e uma organização do exercício do poder, de entre as muitas que são possíveis em democracia, que reúna o consenso da grande maioria dos cidadãos.

A nossa Constituição que é um bom exemplo do acolhimento da democracia abre com um conjunto de princípios fundamentais entre os quais estão os que são básicos da democracia e depois contém, com largo desenvolvimento, os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos (Parte I). Depois de uma breve parte dedicada à organização económica que consagra a subordinação do poder económico ao poder político democrático (Parte II) surge um largo número de preceitos que cuidam da organização do poder político (Parte III). É nesta parte que a Constituição lembra que o poder político pertence ao povo que o exerce nos termos que ela própria estabelece (artigo 108.º) e acrescenta logo de seguida que “(A) participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos civis e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”. É nesta Parte III que a Constituição regula a eleição do Parlamento, que toma, entre nós, o nome de Assembleia da República e estabelece a sua organização e funcionamento bem como as suas competências. Regula também a eleição e competências do Presidente da República. Estabelece também a formação e responsabilidade política do Governo. E termina esta parte com os Tribunais (organização judiciária e competências).

Repare-se que, em democracia, há uma preocupação na organização do poder político que é a consagração do princípio da separação dos poderes (artigo 111.º) para evitar os males que resultariam da concentração dos mesmos. A concentração dos poderes é própria dos regimes de poder absoluto, não das democracias. A separação dos poderes não obsta à interdependência dos mesmos para o seu bom funcionamento e o artigo 111.º tem isso bem presente. Nesta parte da separação dos poderes sobre a qual muito haveria que dizer, pois a separação do poder legislativo e do executivo dilui-se quando existem maiorias absolutas na Assembleia da República que apoiam o Governo, assume particular importância a independência do poder judicial. O poder judicial que ocupa um lugar fundamental em democracia, pois deve garantir sentenças justas em prazo razoável quando os cidadãos acorrem aos tribunais, tem a particularidade de os seus titulares não serem eleitos.

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Repare-se que nada impediria que os juízes fossem eleitos. No entanto, as democracias não seguiram essa via pelos perigos que encerraria. Os cidadãos preferem que os juízes

sejam devidamente escolhidos, tendo em conta a sua capacidade técnica e humana para bem exercerem uma função que exige bom conhecimento do Direito, independência e imparcialidade na tomada de decisões.

Isto não significa que os juízes possam decidir como bem entendam, no limite arbitrariamente. De nenhum modo. Os juízes são obrigados a decidir conforme as leis e o Direito em geral. Eles também estão ao serviço dos cidadãos e, não por acaso, a Constituição determina que os tribunais (e assim os juízes) administram a justiça “em nome do povo” (artigo 202º, n.º 1).

A democracia local: os municípios e as freguesias

Organização

Na democracia existe outro princípio fundamental nos termos do qual os cidadãos têm o direito de participar na gestão dos serviços públicos a todos os níveis territoriais.

Pretende-se assim dizer que os cidadãos exercem o poder que a democracia lhes confere não só a nível nacional, mas também a nível local e regional, se for o caso.

É muito claro a este propósito o preâmbulo da Carta Europeia da Autonomia Local aprovada pelo Conselho da Europa em 1985, que nos seus considerandos afirma que o “direito dos cidadãos de participar na gestão dos assuntos públicos faz parte dos princípios democráticos comuns a todos os Estados membros do Conselho da Europa” e que é ao “nível local que este direito pode ser mais directamente exercido”.

No nosso país, esse nível local é constituído pelos municípios e pelas freguesias. O nível regional existe nas regiões autónomas e está constitucionalmente previsto para o continente sob a forma de regiões administrativas, mas não está concretizado apesar de estarem decorridos quase 50 anos.

Não cuidaremos aqui desse nível, pois não é provável que ele venha a existir nos anos mais próximos, mas não deixaremos de dizer que continuaremos sem uma democracia regional que a existir aprofundaria o nosso regime democrático. Na verdade, os cidadãos têm actualmente o direito e o dever de gerir directamente (referendos, p. ex.) e através de representantes eleitos os assuntos de âmbito predominantemente nacional e predominantemente local, mas não têm o direito de gerir, no continente, os assuntos de âmbito predominantemente regional e eles existem. Falta-nos a democracia regional.500

Os municípios

Os nossos municípios oferecem um bom quadro para o exercício da democracia local,

500 OLIVEIRA, António Cândido de (2023) – A Democracia Regional (o “Quadro de Referência do Conselho da Europa” de 2009), in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria da Glória F.P.D. Garcia, volume I, coordenação de Mário Aroso de Almeida et al., novembro. Lisboa: Universidade Católica Editora, pp. 247-256.

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pois têm uma configuração em termos de território e população apropriada para esse efeito.

Interessa ter presente que os municípios portugueses são os que têm em média mais população e território do sul da Europa. Em Portugal há apenas um município com menos de 1.000 habitantes e apenas por razões geográficas. É o município do Corvo na pequena ilha com o mesmo nome do arquipélago dos Açores. Pelo contrário os países da Europa mais próximos como a Espanha, a França e a Itália possuem, cada um, largos milhares (dezenas de milhar) de municípios com menos de 1.000 habitantes.

A particularidade do nosso país deveu-se a uma profunda e bem-sucedida reforma territorial feita por Passos Manuel em 1836 que, em vez de alargar o número de municípios então existentes (cerca de 800), os reduziu, nos termos do Decreto de 6 de Novembro de 1836, para 351501.

A reforma teve como critério estabelecer municípios que não fossem demasiado pequenos porque não teriam recursos humanos e financeiros, nem sequer pessoas para preencher devidamente os cargos resultantes de eleição, nem demasiado grandes porque então afastaria muito os cidadãos da sede do concelho.

Os países antes citados do sul da Europa, apesar de reconhecerem a debilidade dos seus milhares de micromunicípios, nunca conseguiram fazer uma reforma territorial semelhante â nossa, apesar de tentarem, particularmente a França, fazer uma substancial redução do número deles.

Pelo contrário, um bom número de países do Norte da Europa fez, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, uma reforma territorial municipal, reduzindo fortemente o número dos seus municípios e com as razões que um século antes nortearam a reforma territorial do nosso país, ou seja, suficiente dimensão em população e território para bem exercerem as suas tarefas.

Assim sucedeu na então Alemanha Ocidental, na Bélgica, na Holanda, na Suécia, na Noruega, na Finlândia e ainda mais recentemente em duas fases de uma forma muito arrojada na Dinamarca. Neste país o número de municípios passou de mais de 1200 para 275 nos anos setenta e para 98 já neste século502.

Os nossos municípios têm personalidade jurídica, órgãos eleitos, um largo leque de atribuições e competências, pessoal próprio, meios financeiros assegurados por lei e de que pode dispor e estão sujeitos a uma mera tutela de legalidade. A democracia local nos municípios portugueses manifesta-se na eleição dos órgãos representativos dos cidadãos (munícipes) e assim, desde logo, na eleição da assembleia municipal.

501 Sobre esta reforma e a sua continuidade, ver MANIQUE, António Pedro (2020) – A Génese da Rede Concelhia Moderna - As Reformas Concelhias Oitocentistas e o Modelo Espacial do Liberalismo, in O Mapa Municipal Português (1820-2020) – A Reforma de Passos Manuel, de António Cândido Oliveira e António Pedro Manique. Braga: AEDREL, pp. 121 e ss.

502 OLIVEIRA, António Cândido de (2005) – A Democracia Local (aspectos jurídicos), Coimbra: Coimbra Editora; OLIVEIRA, António Cândido de (2013) – A Dinamarca: duas profundas reformas territoriais da administração local autónoma (1970 e 2007). Brevíssimo cotejo com a reforma portuguesa, in Estudos em Homenagem a António Barbosa de Melo, coordenação de Fernando Alves Correia et al. Coimbra: Livraria Almedina, pp. 107 e ss.

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A assembleia municipal é o parlamento local. É o órgão máximo do município, pois cabe-lhe aprovar as principais deliberações desde logo o orçamento e as contas e os regulamentos externos e fiscalizar a actuação da câmara municipal, aprovando moções de censura.

Nos termos estabelecidos pela Constituição em sede de princípios gerais do poder local a assembleia municipal deveria ser eleita por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos recenseados na área do respectivo município, segundo o sistema da representação proporcional (artigo 239.º, n.º 3). Seria assim composta apenas por elementos directamente eleitos. Porém, resulta do artigo 251.º da Constituição, inserido no capítulo especificamente dedicado aos municípios, que a assembleia municipal é constituída não só pelos membros eleitos directamente nos termos do referido n.º 3 do artigo 239.º, mas também pelos presidentes da junta de freguesia do município em causa, devendo ter-se em conta que os municípios portugueses têm freguesias503, desde apenas uma até várias dezenas.

Esta forma de composição da assembleia municipal tem como consequência que, em alguns municípios o número dos seus membros é muito elevado, dado o número de freguesias que possuem e mais elevado ainda porque o mesmo artigo 251.º estabelece que sempre que o número de presidentes de junta de freguesia for superior ao número de elementos directamente eleitos o número destes aumentará de forma a que seja superior.

A regra actualmente estabelecida pela lei das autarquias locais (artigo 42.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro) é a seguinte: o número de membros eleitos directamente é o triplo do número de membros da câmara municipal (este órgão executivo é colegial e eleito directamente como veremos); a estes juntam-se os presidentes das juntas de freguesia e o órgão fica composto na sua totalidade e assim sucede na enorme maioria dos nossos 308 municípios. Porém, quando o número de presidentes de junta de freguesia de um município for superior ao número de membros eleitos directamente pela regra do triplo aumenta-se o número de membros directamente eleitos até que seja superior em mais um ao número de membros que são presidentes de junta.

Note-se que a superioridade em apenas mais um dos membros eleitos directamente não resulta expressamente da lei, pois esta estabelece apenas que os membros da assembleia municipal eleitos directamente deve ser superior ao número de presidentes de junta de freguesia (artigo 42.º, nº 1 da Lei n.º 169/99). No entanto, tem-se entendido que esse número superior é o de mais um do que o dos presidentes de junta e compreende-se que assim seja, pois desse modo não só se cumpre o preceito constitucional (artigo 251.º) mas também não se estende ainda mais o número de membros da assembleia municipal.

Apesar desta composição atípica do órgão deliberativo da assembleia municipal (o normal nas democracias europeias é que o órgão deliberativo seja apenas composto por membros eleitos directamente) ela não deixa de ser expressão da vontade dos cidadãos pois todos os seus membros são eleitos pelo voto dos munícipes. Uns por todos os munícipes, outros pelos munícipes de cada freguesia.

503 Apenas o pequeno município do Corvo já referido não tem freguesias.

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O município tem outro órgão importante que é a câmara municipal. Este órgão executivo como estabelece a Constituição é um órgão colegial (com um número de membros entre 5 e 11 de acordo com o número de eleitores504) responsável perante a assembleia municipal também escolhido em Portugal de uma forma original. Ele é actualmente eleito directamente por todos os munícipes pelo sistema proporcional (método d’Hondt) e assim pode suceder que tenha uma composição em que a lista que elegeu mais membros (vereadores) não tenha maioria absoluta e tenha dificuldade em governar (executar) por ter no seu seio mais membros da oposição do que da lista vencedora. Isso tem sucedido em Portugal com frequência.

Sucede finalmente que existe na câmara municipal uma figura do maior relevo que é o seu presidente. Ele é eleito diretamente, pois é sempre o primeiro da lista mais votada e ainda que não tenha do seu lado a maioria dos vereadores não deixa de ser presidente da câmara. Acresce que ele tem largos poderes, desde logo o de escolher livremente os vereadores que trabalham mais de perto com ele e aos quais atribui a responsabilidade de dirigir sectores da actividade do município (pelouros). Ele representa o município (em juízo e fora dele), nos termos do artigo 35.º, n.º 1 da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro.

É dentro desta estrutura organizativa democrática, ainda que original, que se deve desenvolver o exercício da democracia local como adiante referiremos.

Importa, no entanto, que dediquemos também a atenção a outro ente local consagrado pela Constituição na organização democrática da nossa administração local que é a freguesia.

As freguesias

A freguesia que é, tal como o município, uma autarquia local dotada de personalidade jurídica, órgãos eleitos, atribuições e competências, podendo ter pessoal próprio, meios financeiros e sujeita apenas a tutela de legalidade difere do município em vários aspectos.

Desde logo, o organizativo, pois tem uma estrutura mais simples e diríamos até mais de acordo com os princípios democráticos consagrados na Constituição. Desde logo, a assembleia de freguesia que é o seu parlamento local é eleita directamente por todos os fregueses, pelo sistema proporcional (método d’Hondt) não havendo nela a distinção entre membros directamente eleitos e membros indirectamente eleitos e até poderia haver, se por exemplo, houvesse membros eleitos por lugares ou bairros dentro da freguesia.

Por sua vez, o órgão executivo, que é a junta de freguesia sai directamente da assembleia de freguesia e é composto por um presidente de junta que é sempre o primeiro da lista mais votada para a assembleia de freguesia e por vogais que o presidente da junta escolhe e propõe à aprovação da assembleia. Se esta aprova, o presidente fica com uma equipa da sua confiança para exercer o governo da freguesia. Se não aprova, tem de apresentar outra proposta e no limite, renunciar ao cargo e, se não houver mesmo a 504

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a câmara municipal de Lisboa tem 17 membros e a do Porto 13.
Excepcionalmente,

possibilidade de aprovar uma junta, recorrer a novas eleições o que acontece com alguma frequência. É uma forma de constituição mais adequada para um órgão executivo.

Deste, exige-se que execute e para este efeito é importante que constitua uma equipa de governo com poder efectivo de executar.

O presidente da junta é também uma personalidade de muito relevo na freguesia uma vez que é eleito directamente, escolhe os vogais com quem trabalha e tem largos poderes. Também ele representa a freguesia (artigo 18.º, n.º 1, al. a).

Esta estrutura organizativa das freguesias é tão apelativa que a Constituição, na sua revisão de 1997, veio permitir, através do n.º 3 do artigo 239.º, que os municípios possam ter uma estrutura mais aproximada à das freguesias no que respeita à constituição das câmaras municipais que, em vez de serem eleitas em lista própria, podem passar a ter como presidente da câmara o primeiro da lista votada para assembleia municipal e como vereadores os que o presidente da câmara propuser à aprovação da assembleia municipal, tal como sucede nas freguesias. No entanto, para que ocorra tal modo de eleição, é preciso que seja aprovada uma lei na Assembleia da República por uma maioria de 2/3 dos deputados nos precisos termos da al. d) do n.º 6 do artigo 168.º da Constituição, o que não ocorreu ainda.

Cabe dizer, no entanto, que às freguesias está reservado um papel menos relevante do que aos municípios no que toca às atribuições e competências, ao pessoal e às finanças, ainda que importante na administração local, o que se compreende, tendo em conta que as freguesias têm, em geral, muito menos população e território do que os municípios. Elas eram 4259 e são actualmente 3091, por via de uma reforma ocorrida em 2013, que procurou dar-lhe mais território e população, mas sem pôr em causa a sua condição de ente inframunicipal integrado no território dos municípios. Elas estão vocacionadas para exercerem tarefas de muita proximidade que não envolvam elevados meios técnicos, financeiros e de pessoal como sucede com os municípios. As suas atribuições e competências devem ter em conta o princípio da subsidiariedade. Tenha-se presente que é nas freguesias (pelo menos na enorme maioria delas) que se pode falar de relações de vizinhança, de grande proximidade entre eleitos e eleitores, o que não existe na generalidade dos municípios. Essa vizinhança pode ir ao ponto de se praticar a democracia directa naquelas em que a população é muito diminuta (artigo 245.º, n.º 2), substituindo-se a assembleia de freguesia pelo plenário dos cidadãos eleitores.

O funcionamento

É neste contexto que podemos e devemos apreciar o exercício da democracia local e dentro dela o poder dos cidadãos. Vamos centrar a nossa atenção nos municípios por facilidade de exposição, mas tendo em conta que o que diremos se aplica, em regra, também às freguesias.

Além do poder de eleger os órgãos dos municípios os cidadãos têm também o direito de ser eleitos para esses órgãos. E no que respeita ao direito de serem eleitos os cidadãos têm a possibilidade não só de concorrer dentro de listas de partidos ou coligações de partidos como de formar listas de cidadãos fora dos partidos (grupo de cidadãos) dentro das regras estabelecidas na lei eleitoral.

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Têm também o direito de votar em referendos sobre questões de relevante interesse municipal bem como o direito de tomar a iniciativa de propor a realização de tais referendos.

Cabe-lhes ainda o direito de tomar a iniciativa de convocar reuniões extraordinárias das assembleias municipais, reunindo um determinado número de cidadãos proponentes para tratar de assuntos da competência destas. Nestas sessões, dois representantes dos requerentes da reunião podem formular no decurso das mesmas sugestões ou propostas, sem direito a voto.

Não deve ser esquecido o direito dos cidadãos de assistir às sessões da assembleia municipal que são sessões públicas e às sessões públicas das câmaras municipais (pelo menos uma por mês deve ser pública). Acresce a este direito de assistir o direito de intervir em período destinado à intervenção do público. Anote-se que muito frequentemente se relega para a parte final das sessões a intervenção do público o que desincentiva tal intervenção.

Os cidadãos têm o direito de apresentar petições à assembleia municipal e à câmara municipal para apreciação de assuntos que caibam no domínio das competências destes órgãos.

Esta lista não é exaustiva, mas não pode ser esquecido o direito dos cidadãos de serem informados pelos órgãos dos municípios sobre os assuntos de interesse municipal que pretendam conhecer e que sejam ou devam ser do conhecimento dos mesmos. Este direito a obter tal informação reveste-se da maior importância, pois só assim os cidadãos podem apreciar o modo como os seus representantes estão a gerir o município. Este direito dos cidadãos está directamente ligado ao dever de prestação de contas por parte dos titulares dos cargos públicos que faz parte da essência da democracia. Quando esse direito lhes for sonegado, têm o direito de recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e, no limite, aos Tribunais. O poder dos cidadãos aumenta, por sua vez, quando os eleitos locais cumprem o seu dever. O dever dos eleitos que governam é governar bem, sendo que governar bem é contribuir para o bem dos munícipes de acordo com a vontade da maioria expressa em eleições. Dito doutro modo, governar bem é contribuir, dentro das atribuições e competências respectivas, para a sociedade “livre, justa e solidária”, de que trata o já mencionado artigo 1.º da Constituição. Note-se que os eleitos, depois de tomar posse, estão ao serviço de todos os munícipes e não apenas da maioria destes que os elegeu, sem abdicar das orientações que apresentaram durante as eleições.

Por sua vez, é dever dos eleitos que são minoria e ficaram na oposição quer na assembleia, quer na câmara municipal (vereadores da oposição), fiscalizar a acção da câmara, sendo que esta actividade é muito relevante, pois não raras vezes quem exerce o poder comete erros e eles devem ser objecto de crítica e corrigidos, se possível. Não é fácil o papel da oposição, pois, desde logo, os eleitos que estão no poder não costumam admitir erros e têm tendência para criticar a oposição, rejeitando as acusações por ela feitas ao exercício do poder. É preciso compreender a razão que explica esta tendência por parte de quem exerce o poder e que é bem simples. Os titulares do exercício do poder procuram fazer o melhor que podem e sabem, pois isso os torna bem vistos pelos munícipes e permite uma futura reeleição. Por isso, quando são criticados

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consideram que a crítica é injusta, pois consideram que tomaram as melhores decisões. Só que tais titulares estão a ser juízes em causa própria e se é verdade que podem ter tomado as melhores decisões também podem ter errado e cometido até erros graves, pois errar é próprio do ser humano (errare humanum est) e o exercício do poder tem perigos e circunstâncias que podem levar a cometê-los. Daí a importância da fiscalização do exercício do poder tarefa que os cidadãos devem levar a cabo directamente ou por outros meios. Têm aqui um papel importante os meios de comunicação social e mais importante ainda os eleitos da oposição.

É destes que nos cabe cuidar no âmbito deste texto. Eles tomam assento na assembleia municipal e actualmente também na câmara municipal (vereadores da oposição)505 e têm uma tarefa exigente e muitas vezes mal compreendida.

Pede-se-lhes que tanto na assembleia, como na câmara obtenham toda a informação de que necessitam (e têm, aliás, direito a receber) para apreciarem devidamente a actuação da câmara, sabendo-se que esta é frequentemente renitente em fornecê-la e muito menos fornecê-la de modo completo, obrigando a insistências constantes e no limite a recorrer a outras instâncias como dissemos.

Isto implica principalmente tempo e apoio que os eleitos da oposição não têm, pois exercem as suas funções sem remuneração (auferindo apenas umas senhas de presença nas reuniões quando elas ocorrem e de baixo montante) e sem auxílio adequado.

Tem havido um esforço crescente para dotar os eleitos municipais, principalmente os da oposição, de meios para bem exercerem as suas funções. Para esse efeito os eleitos devem ter a possibilidade de dispor de uma verba adequada para contratar pessoal da sua confiança, que os auxilie e para obter apoio especializado em domínios como por exemplo o urbanismo, as finanças, a contratação pública, o ambiente. Só desse modo poderão exercer de modo sério a acção de fiscalização que a lei lhes impõe.

Actualmente a lei das autarquias locais já prevê, de modo tímido, esse apoio ao prescrever no n.º 3 do artigo 31.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, que sejam inscritas no orçamento municipal de cada ano dotações para a assembleia municipal para a “aquisição de bens e serviços correntes necessária ao seu funcionamento e representação”506 . Outros direitos próprios de uma democracia são conferidos por lei aos eleitos locais da oposição tais como o de propor e votar moções de censura à câmara municipal, ainda que tais moções, mesmo aprovadas não tenham o efeito estabelecido na Constituição que é a queda desse órgão, por falta da lei nela também prevista, como dissemos (artigo 239.º, n.º 3).

505 Já não é assim nas juntas de freguesia quando o presidente da junta escolheu livremente a sua equipa de vogais.

506 Sobre a diferença entre o fraco apoio dado às nossas assembleias municipais em contraste com o apoio dado ao órgão correspondente (pleno del ayuntamiento) em Espanha, ver: OLIVEIRA, António Cândido de, LAREO Jacinto e ESCUDERO Francisco (2023) – O governo municipal em Espanha e Portugal: o exemplo dos municípios de Vigo e do Porto, in Revista das Assembleias Municipais e dos Eleitos Locais, n. 26, julho-dezembro, pp. 7 e ss.

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Não deve esquecer-se também o direito dos membros da assembleia municipal de formar e pertencer a grupos municipais, dotados de instalações, meios técnicos, humanos e financeiros adequados.

Ainda é de ter em conta o direito dos deputados municipais de requerer a convocação de reuniões extraordinárias das assembleias municipais de que façam parte, desde que o requerimento seja subscrito por um terço dos membros respectivos e o direito dos vereadores de requererem a convocação de reuniões extraordinárias da câmara municipal, desde que tal requerimento seja igualmente subscrito por pelo menos um terço dos respectivos membros.

Os deputados municipais têm também o direito de propor a inclusão na ordem do dia das reuniões ordinárias da assembleia de assuntos da competência desta. Por sua vez também os vereadores têm igual direito de inclusão de assuntos nas reuniões ordinárias da câmara.

Deixamos para o fim um direito/dever de todos os eleitos que contribuiria para a qualificação da democracia local que é o da sua formação. Está claro que nem todos os eleitos precisam da mesma formação e esta está mais indicada para os novos membros, mas a grande maioria dos eleitos muito beneficiaria com ela.

A democracia é, com efeito, um regime político muito exigente que só funciona e se mantém quando os cidadãos o acolhem de modo activo, cumprindo as suas regras fundamentais.

Bibliografia

ALEXANDRINO, José M. (2010) – Direito das Autarquias Locais, in Tratado de Direito Administrativo Especial, volume. IV, coordenação de Paulo Otero e Pedro Gonçalves. Coimbra: Almedina.

AMARAL, Diogo Freitas do (2015) – Curso de Direito Administrativo, volume I, 4.ª edição. Coimbra: Almedina.

CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora (última edição).

MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui – Constituição Portuguesa Anotada, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa (última edição).

OLIVEIRA, António Cândido de (2013) – Direito das Autarquias Locais, 2.ª edição. Coimbra: Coimbra Editora.

António Cândido Oliveira

Professor Catedrático Jubilado da Escola de Direito da Universidade do Minho

Presidente da Direção da Associação de Estudos de Direito Regional e Local.

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. A IDEIA DE LIBERDADE

Esta breve reflexão sobre a ideia de liberdade tem como premissa a crença na existência do livre-arbítrio.

Em si mesma a liberdade é um impulso natural da Vida. Qualquer animal, inclusive o Homem, ao chegar ao mundo manifesta esse impulso de viver em liberdade.

Enquanto impulso natural da Vida, a Liberdade é a característica imediata da existência. Nas suas manifestações imediatas a liberdade é a busca do prazer e a rejeição da dor.

No caso do Homem, a liberdade como impulso, a liberdade natural, começa, desde muito cedo a transformar-se numa liberdade como norma, uma liberdade cultural, por efeito da necessidade de controlar e estabelecer os limites da primeira, de modo a tornar possível a vida em sociedade.

A liberdade como norma, a liberdade cultural ou social, vai-se construindo e modificando, como um conjunto de direitos e de deveres. Deste modo, a liberdade individual ou livre-arbítrio, tem como limites, mas também como possibilidades, as normas morais e jurídicas. A Ética e o Direito são os alicerces da liberdade normativa. Neste sentido Montesquieu defendia que a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis consentem. Por sua vez, Simone de Beauvoir dizia que o homem é livre, mas ele encontra a lei na sua própria liberdade. E Jean-Paul Sartre afirmava que ser-se livre não é fazermos aquilo que queremos, mas querer-se aquilo que se pode. Nesta linha de pensamento, Kant diria que a liberdade é querer-se aquilo que se deve querer, identificando liberdade com cumprimento do dever moral.

Entre a liberdade como impulso, a liberdade natural, e a liberdade como norma, há um conflito e uma tensão permanentes. Esta tensão é condição da evolução da própria Ideia de Liberdade, assim como da transformação da Ética e do Direito, da Cultura e das mentalidades das diferentes gerações. Enquanto ideia orientadora, a Liberdade é a força da transformação social.

Em nome da Liberdade, e sobretudo devido à sua falta, fazem-se revoluções e justifica-se a guerra. “Liberdade ou Morte” o conhecido slogan na luta contra as ditaduras, é a prova de que sem liberdade a vida não faz sentido nem tem qualquer valor.

Os limites impostos à Liberdade pelo Direito e pela Ética, tendo graus de coação e consequências diferentes, no caso de não serem respeitados, são simultaneamente restrições e possibilidades da própria liberdade, enquanto livre-arbítrio.

A norma jurídica que proíbe é também a que garante a liberdade. A proibição justifica-se pela necessidade de proteção, de segurança. O direito é assim garantia da Liberdade. Por sua vez, a norma ética que censura fá-lo em nome da decência, do costume, do respeito por valores essenciais, mas sobretudo pela necessidade de manutenção da ordem e da paz sociais.

Os limites jurídicos e éticos da Liberdade sofrem sempre a pressão da evolução do conceito e do âmbito da Liberdade. O Direito e a Ética vão-se alterando por efeito desta pressão e desta evolução. A Liberdade é um conceito histórico e dinâmico que, limitado pela lei e pela moral, guiada pela ideia de Justiça obriga à própria evolução do Direito e da Ética. Há assim uma evolução da Liberdade que provoca quer a evolução do Direito, quer a evolução da Ética. Este processo dialético, como toda a Mudança, gera Dúvida e Incerteza que se vão dissipando e esclarecendo com o Tempo.

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Ao estabelecer os limites jurídicos da liberdade individual, o Direito procura o equilíbrio entre o dever de respeitar a liberdade dos outros e o direito ao exercício da liberdade individual, fazendo emergir o outro lado da Liberdade, a Segurança. Não há Liberdade sem Segurança. A liberdade individual só existe se os bens e os direitos individuais estiverem protegidos pela lei. É esta necessidade que leva o indivíduo a aceitar os limites jurídicos da liberdade, ou seja, a celebrar tacitamente um pacto social com o Príncipe, e a trocar a liberdade natural pela liberdade normativa. Sendo o impulso natural da liberdade universal, o mesmo não se pode dizer da liberdade normativa, pois esta difere conforme as construções culturais e representações sociais e intelectuais da Liberdade. Apesar destas diferenças, há um núcleo comum de direitos fundamentais que são reclamados por diferentes sociedades e culturas e que constituem as condições mínimas da existência da Liberdade. Neste sentido as Constituições democráticas consagram os chamados Direitos, Liberdades e Garantias. Integram-se neste núcleo comum, os direitos: à liberdade e à segurança, à integridade física e moral, à propriedade privada, à participação política e à liberdade de expressão e à participação na administração da justiça — correspondem ao núcleo fundamental da vivência numa sociedade democrática. Independentemente da existência de leis que os protejam, são sempre invocáveis, beneficiando de um regime constitucional específico que dificulta a sua restrição ou suspensão.

Em contraste, os direitos económicos, sociais e culturais — por exemplo, o direito ao trabalho, à habitação, à segurança social, ao ambiente e à qualidade de vida — são, muitas vezes, de aplicação diferida. Dependem da existência de condições sociais, económicas ou até políticas para os efetivar. A sua não concretização não atribui a um cidadão, em princípio, o poder de obrigar o Estado ou terceiros a agir, nem o direito de ser indemnizado. Como um conjunto de Direitos e de Deveres, a Liberdade como norma está impregnada de uma essência comunitária, pelo que a liberdade individual é sempre uma liberdade social e, como tal, traz em si os ideais da Justiça e da Igualdade. Sá Carneiro dizia que a Liberdade sem a Igualdade era apenas um privilégio de alguns. Esta dimensão coletiva da liberdade impossibilita que alguém se possa sentir livre, se os direitos e deveres que lhe são reconhecidos e impostos não o forem para os demais cidadãos. Não há liberdade no egoísmo, ainda que aí possa haver a ilusão da liberdade. Em jeito de conclusão, diria que ser livre não é poder fazer tudo o que se quer, mas poder fazer tudo o que deve ser feito. Ora, a luta pela Justiça e pela Igualdade é tudo o que dever ser feito, pelo que não há Liberdade sem Justiça nem Igualdade, os três pilares da Democracia. Neste sentido, a Liberdade não é apenas, uma Ideia reguladora, um conceito ou uma possibilidade, um estado de consciência. É uma efetividade existencial que se concretiza na ação de cada indivíduo, uma ação consciente que pressupõe uma consciência esclarecida e desalienada da cultura de massas e que tem como finalidade contribuir para tornar o mundo um lugar moralmente melhor. De nada adianta dizermonos livres se nada contribuímos para mudar o curso do mundo.

Mário Duarte

Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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. A DEMOCRACIA PORTUGUESA EM CRISE: A LIÇÃO APRENDIDA

Com a convocação de eleições para março de 2024, já não restam grandes dúvidas que se aproximam tempos complicados para Portugal. O eleitorado português soma três eleições legislativas em apenas cinco anos: 2019, 2022 e 2024. E não podemos mesmo descartar que o atual Presidente da República se veja na situação de voltar a convocar novas eleições antes do final do seu mandato em março de 2026 (apesar das limitações constitucionais no último semestre presidencial). O sistema partidário encontra-se, também, em convulsão profunda. Um dos partidos fundadores da democracia, CDS, desapareceu (eventualmente poderá recuperar um ou dois deputados nas próximas eleições legislativas, talvez por via de uma coligação com PSD, mas será fraco consolo). Um outro partido fundador, PCP, tudo indica que reincidirá na sua expressão mínima. E os dois partidos estruturantes do regime, PS e PSD, dificilmente manterão as maiorias acima dos dois-terços de deputados como nos últimos 50 anos (com exceção da legislatura 1985-1987, devido ao então PRD). Os extremos crescem. Na esquerda, BE possivelmente recuperará os votos que perdeu em 2022. Na direita, IL substituiu o velho CDS na geometria parlamentar e CH poderá ficar próximo dos 16% de Freitas do Amaral em 1976 (se ficar acima dos 18% do PRD em 1985 será a votação mais alta de um terceiro partido em eleições legislativas). Os mais otimistas defendem que se trata de um período transitório na maturidade democrática. Os mais avisados percebem que o tempo simplesmente não volta para trás. Parece-me que a democracia portuguesa está bloqueada há muitos anos. Os sucessivos governos foram incapazes de reformar seja o que for. Por exemplo, a lei eleitoral aguarda mudanças profundas desde 1997. Em cinco legislaturas, PS e PSD não conseguiram regular o “lobbying” e as práticas dos facilitadores de negócios. A administração eleitoral persiste em seguir o paradigma do século passado. Os mecanismos de responsabilização política foram sucessivamente degradados em função das agendas pontuais dos partidos. Os reguladores, tribunais, entidades administrativas estão colonizadas pelo PS e PSD sem qualquer vitalidade democrática. A separação de poderes é uma enorme entropia. E a corrupção e a endogamia partidária foram, década após década, temas reservados para os tais populistas malvados. Até que, de forma precipitada, acabaram com um governo de maioria absoluta. Não podemos culpar apenas os partidos e os protagonistas (como o atual Presidente da República) pela profunda crise institucional. Haverá que reconhecer responsabilidade aos eleitores. Há uma maioria muito significativa (entre 3 e 3,5 milhões de eleitores) que simplesmente não quer qualquer mudança paradigmática – essa maioria democrática sonha em viver suspensa no tempo, financiada pela União Europeia, e alheada da derrocada institucional que se adivinhava há muito.

Podemos sempre dizer que o papel dos políticos e das elites seria liderar e persuadir esta maioria dos custos de um enfoque temporalmente míope – obviamente continuar suspenso no tempo não pode nunca proporcionar uma solução estável. Mas convenhamos que esse eleitorado (os tais 3 a 3,5 milhões de eleitores) sistematicamente preferiu continuidade e rejeitou qualquer vislumbre de mudança. A mensagem “facilitista” dos

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políticos encontrou um eleitorado que ama o facilitismo e o culto da personalidade. No fundo, a crise da democracia portuguesa seguiu fielmente os cinco estados do modelo de sofrimento de Kübler-Ross. Primeiro, e durante muito tempo, a negação. Os sinais estavam lá todos – estagnação económica, decrescente participação eleitoral, instabilidade política, degradação do sistema partidário, substituição dos programas ideológicos pelo vazio do culto da personalidade, centenas de inquéritos pelo Ministério Público, erosão na separação de poderes, quebra significativa da confiança nos atores políticos.

Depois veio a raiva. A culpa era dos “bota baixistas” e das cassandras, dos populistas e dos repugnantes. Quem dizia que havia crise da democracia era um invejoso. E a fase da negociação seguiu-se – encheu-se o espaço público de comentadores alinhados, asfixiou-se o debate democrático, disciplinou-se a comunicação social, deixou-se ao Presidente da República os “melhores discursos de sempre” sobre o “melhor país do mundo”. E, chegados aqui, entrámos agora na depressão. Sim, o país finalmente reconhece que há uma profunda crise, mas nem PS nem PSD sabem lidar com o tema. Prometem para a próxima legislatura as reformas que não fizeram. Juram agora ter entendido o problema de fundo que vão resolver em breve. E o eleitorado moderado insiste no país adiado, suspenso no tempo, esse sonho “facilitista” em que acreditou nas últimas duas décadas. Veremos, a seu tempo, quando chega a fase da aceitação – é preciso mudar muita coisa se queremos viver numa democracia plena.

A regeneração da democracia significará sacrificar agendas partidárias, privilégios e rendas que as elites políticas acumularam e protegeram com a sua forma de estar e ser. Os comentadores e os jornalistas são parte do défice democrático em que o país vive há muito tempo; também o espaço público terá de mudar e muito. A União Europeia perceberá que o milagre português nunca existiu fora da propaganda do regime e que nada se resolverá estruturalmente despejando mais dinheiro fácil e sem compromissos profundamente sérios.

A crise da democracia portuguesa não é o fim da democracia portuguesa. É apenas o inevitável processo de ajustamento a uma nova realidade social, económica, tecnológica e geopolítica. As duas décadas perdidas são um monumento a uma geração – de eleitores e políticos - que optou pelo facilitismo do passado conhecido em detrimento dos riscos e desafios colocados pelo futuro incerto. Mais, eis que uma nova geração é chamada a governar Portugal.

O presente livro insere-se nessa nota de otimismo – a atual crise institucional pode ser o princípio de uma reconstrução democrática, mais exigente e também mais consolidada. Esperemos que essa nova geração aprenda bem a lição e possa abrir caminhos para uma democracia de melhor qualidade, um país mais próspero e uma sociedade mais justa.

Novembro de 2023

Nuno Garoupa

Professor de Direito na Universidade George Mason

Presidente da European Association of Law and Economics

Ex-Presidente do Conselho de Administração da Fundação

Francisco Manuel dos Santo

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Carlos
Magalhães e Manuel Augusto Dias

Com este Re_Pensar a Democracia pretendem os autores fomentar a discussão sobre os conceitos associados ao termo “democracia” e a sua aplicabilidade no mundo contemporâneo e no que há de vir.

Entre os cambiantes do exercício democrático nas sociedades modernas contam-se três “modelos” fundamentais:

A democracia representativa, a democracia participativa e a democracia deliberativa, a que acrescem os da democracia direta e da democracia pós-representativa que os complementam.

Conceitos mais recentes como os da democracia delegativa e da deliberação cívica não deixam de fazer parte deste levantamento e reflexão.

Para além das referências bibliográficas sobre a evolução da democracia desde a época clássica até aos dias de hoje, incorpora-se neste livro o pensamento de algumas personalidades que no nosso país e no estrangeiro têm travado autênticos libelos na defesa intransigente do “regime” democrático e na prossecução da sua melhoria.

A prática democrática será tão antiga como a Humanidade, pois segundo alguns investigadores, a sua origem ocorreu quando os homens ainda se organizavam em grupos de caçadores recoletores nómadas, antes do período do Neolítico, quando o Homem se tornou produtor e sedentário.

Os homens das tribos pré-históricas viveram e trabalharam em modus comunitário, estando submetidos às forças da natureza e não a outros homens ou a qualquer autoridade externa. As decisões eram tomadas por todos os membros adultos da comunidade ou, em última análise, pelos representantes escolhidos que as concretizavam com o consentimento geral. A unanimidade prevalecia sobre a maioria.

Muitos governantes atuais, que se dizem democratas, pensam dispor de poderes absolutos só pelo facto de terem sido eleitos democraticamente. Ora, apesar do seu poder ter uma origem democrática, isso não significa que se possam dar ao luxo de prescindir da necessidade de auscultar permanentemente o povo de onde emana o seu poder e para quem governam. Isso é que é democracia, a interação contínua entre os que detêm o poder e aqueles que lho atribuíram.

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