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O lendário Uzbequistão

Da opulência de Samarkand à força de Tashkent, da sagrada Bukhara às muralhas de Khiva, os vestígios da antiga Rota da Seda ecoam entre mausoléus, mesquitas e cúpulas azuis, revelando os tesouros do país

Dessa vez a seta disparou certeira para a Ásia Central, afinal, minha bússola insiste em apontar para destinos repletos de história e muito autênticos. O alvo foi o longínquo Uzbequistão. Um país dividido entre estepes e solo desértico, sem passagem para o mar e cercado por outros cinco países da família dos “istão”: Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão e Turcomenistão. Mesmo sendo pouco conhecido dos brasileiros, tem uma tremenda força ancestral por estar aninhado no território do antigo e poderoso Império Persa, bem no coração da Rota da Seda, a maior artéria comercial da Antiguidade com extensão de mais de sete mil quilômetros entre a China e o Mediterrâneo, o que acabou por gerar riquezas inimagináveis para a construção do legado que hoje encanta o mundo. Mas nem sempre as portas do Uzbequistão estiveram abertas. Sua beleza se manteve velada pelas cortinas soviéticas de 1925 até o colapso da União Soviética no início da década de 1990, um verdadeiro golpe de sorte para sua preservação.

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A trajetória do Uzbequistão é formada por um mosaico histórico iniciado alguns séculos antes de Cristo, ainda antes das proezas de Alexandre, o Grande. O tal aluno de Aristóteles, em apenas 33 anos de vida, colecionou inúmeras vitórias sobre o Império Persa, desde o sul da Europa até a Índia, incluindo a Ásia Central. Samarkand, por exemplo, foi uma importante base para suas expedições

1. Entrada do Complexo de Shakhi-Zinda militares. Andar pelas ruas da cidade é a certeza de mergulhar no passado distante de uma das regiões mais fascinantes da Terra; é seguir as pegadas de Alexandre, o Grande; é ziguezaguear por onde as caravanas cruzavam do século I a.C. até o século XV levando mercadorias do Oriente para o Ocidente; é pisar nos rastros do déspota mongol Gengis Khan; é sentir o coração do Império de Timur pulsar; é vislumbrar as mesmas paisagens áridas e monumentos que despertaram a paixão do viajante veneziano Marco Polo.

Que bela é Samarkand! Resplandece ao redor do admirável Registan, um complexo arquitetônico que abriga as madraças Ulugh-Bek (madraça significa escola de islamismo e a Ulugh-Bek era uma das mais importantes da época), Sher-Dor e a madraça-mesquita Tillya-Kari, e entre tantas outras obras de arte erguidas nos arredores dos mercados da Rota da Seda, agora representados pelo Bazar Central e pelo Bazar Siob.

Perto dali fica o sagrado complexo de ShakhiZinda, formado por 11 mausoléus, sendo o de Kusam-ibn-Abbas, primo do profeta Maomé que difundiu o islã no país, o de maior destaque. Outro achado arqueológico importante de Samarkand é o Observatório Astronômico de Ulugh-Bek, um dos grandes astrônomos dessa era, que construiu um astrolábio de 30 metros e identificou 200 estrelas até então desconhecidas. Caminhar entre essas relíquias que conectam passado e presente, circular pela algazarra dos bazares e receber a simpatia do povo uzbeque é muito mais do que uma simples viagem. É uma experiência marcante que remete a uma volta no tempo.

Estima-se que Samarkand seja uma das cidades mais antigas do mundo e que tenha sido fundada ao redor de 700 a.C. Entre os séculos VI e XIII, teve população maior do que tem hoje, 600 mil habitantes. No entanto, trocou de mãos muitas vezes. Pertenceu aos persas, turcos, samanidas, árabes e vários outros povos até ser posta abaixo, em 1220, por Gengis Khan. Foi reconstruída nos moldes atuais por Amir Timur, o último dos gran-

Madraça Mir-i-Arab, uma das cem escolas de islamismo que havia m Bukhara des conquistadores nômades da Ásia Central. Tamerlão, como era chamado o imperador mongol, era um homem culto que valorizava a arte, o belo, a arquitetura, a filosofia e o islã.

No entanto, com a morte de Timur em 1405, seu império foi dividido entre os quatro filhos, e acabou ruindo. Somado a isso, houve uma série de terremotos e as vias comerciais terrestres perde- ram força. Samarkand foi praticamente abandonada e a capital do império foi transferida para Bukhara. Nesse ponto, a chegada dos russos teve um papel crucial com a construção da ferrovia Transcaspiana, que revigorou a região, ao mesmo tempo em que manteve o legado de Timur protegido por mãos de ferro até a cidade ser declarada Patrimônio Mundial da UNESCO.

Duzentos e setenta quilômetros conectam Samarkand a Bukhara. O trem é ótima opção para fazer o trajeto em menos de três horas. Ao chegar em Bukhara, o calor desértico acena com força. Esse oásis em pleno Deserto de Kyzylkum foi um grande centro econômico e religioso da Ásia Central. De cara, os olhos batem nas vielas empoeiradas de linhagem persa, repletas de construções antigas, acompanhadas por canais de irrigação e dezenas de reservatórios de água, que parecem grandes piscinas, usados até o século passado para abastecer a cidade. Visite o Museu da História do Suprimento de Água, que aborda o sistema de cisternas usado na região, a captação de água da chuva e inclusive toca num assunto delicado, a tragédia ambiental do Mar de Aral provocada pelos russos, que transformou esse grande lago em deserto.

Em Bukhara, a vontade de se perder pelos labirintos sinuosos é imediata. Um filme vai passando pelos olhos assim que a praça Lyabi-Hauz e suas fontes entram no raio de visão, enquanto homens circulam em longas túnicas vendendo todo tipo de mercadoria, portões se abrem para pátios internos floridos e crianças brincam pelas ruas entre fortificações e madraças azulejadas.

Até que de repente salta no horizonte o minarete Kalon. Essa joia de 47 metros de altura se estende em direção ao céu desde 1127, quando o rei Arslan Khan ordenou que fosse construído o maior de todos os minaretes (torre de uma mesquita) existentes. Se para os dias de hoje ele é fabuloso, que dirá há 900 anos. Reza a lenda que quando Gengis Khan invadiu a cidade, pondo abaixo tudo que havia ali, seu chapéu foi ao chão em frente ao minarete Kalon. O gesto de ter se curvado diante do monumento para apanhar o chapéu foi o sinal de que ele deveria ser poupado da destruição. Pois lá está o minarete em pé. Mais tarde, ganhou o si- nistro apelido de “Torre da Morte” quando passou a ser o local de onde os inimigos eram lançados, além de ser uma espécie de torre que orientava as caravanas da Rota da Seda que por ali transitavam. Seus 105 degraus estiveram abertos à visitação até algum tempo atrás. Agora, do alto da torre ecoam apenas os chamados de oração convocando os fiéis. Mas, o minarete não está sozinho. A madraça Mir-i-Arab (uma das 100 escolas de islamismo que havia em Bukhara), a imensa mesquita Kalon (com 288 domos) e o Mercado de Ouro completam o belíssimo quadro que merece ser contemplado sem pressa do rooftop do restaurante Chasmai-Mirob, mesmo que a comida não seja o ponto alto. Massa, arroz e sopa fazem parte da mesa dos uzbeques. O tradicional “plov” (feito de arroz, legumes e algum tipo carne, inclusive de cavalo) é uma constante nos restaurantes, assim como os dumplings chamados de “manti” e o “langman”, massa caseira preparada com legumes e carnes. De sobremesa, melancia ou melão. E aqui vai uma curiosidade: em vários lugares fui advertida para não tomar água por duas horas depois de comer melão para não passar mal.

1. Fortaleza da Arca 2. Cidade Velha de Bukhara 3. Famosos tapetes Bukhara

4. Minarete Kalon 5. Bazar coberto de Bukhara

Pelo sim, pelo não, cumpri o conselho à risca.

Bukhara é uma cidade pequena, mas absolutamente arrebatadora. Além de tantos prédios históricos, tem mercados que vendem os famosos tapetes Bukhara e os tradicionais bordados “suzani” feitos à mão.

Cada uma das cidades do interior do Uzbequistão tem sua personalidade. Samarkand tem um imponente legado arquitetônico e um mosaico cultural singular; Bukhara se destaca pelos canais de irrigação, as tantas escolas de islamismo e os tapetes persas; Tashkent é uma capital cosmopolita de traços modernos-soviéticos, pois perdeu boa parte do seu patrimônio para os tremores de terra; e Khiva é a charmosíssima cidade murada que servia como último ponto de apoio para as caravanas antes de seguirem pelo deserto. Urgench é a cidade que recebe os visitantes que chegam, tanto de avião como de trem, com destino a Khiva, antes de cruzarem os 35 quilômetros de estrada repletos de plantações de algodão.

Khiva é monocromática. Suas construções de barro são ornamentadas com azulejos divinos em tons de azul. É cenográfica, histórica, bem preservada, musical e feliz. Por todos os lados, senhoras se juntam em rodas de dança contagiando o vilarejo com sua alegria e convidando quem passa a participar.

Recomendo que fique hospedado dentro das muralhas para viver alguns dias em uma verdadeira cápsula do tempo, num museu a céu aberto. O vilarejo é pequenino, mas grandioso em seus atrativos. A Fortaleza de Kunya-Ark, residência milenar dos Khans, é um bom ponto de partida para esse mergulho no passado. Seus muros guardavam uma espécie de mundo paralelo com suas próprias regras, suas mesquitas, seu harém e até seu próprio arsenal de guerra. Ali dentro, do alto do Palácio Kunya Ark, é possível avistar em detalhes o vilarejo e a cidade extramuros.

1 a 3. Khiva tem arquitetura marcante e imponente, além de ser cenográfica, histórica e feliz

A alguns passos, o minarete Kalta Minor salta aos olhos com sua arquitetura peculiar. Ele foi projetado para ter 80 metros de altura, no entanto quando chegou aos 29 metros a edificação foi interrompida com a morte do rei. Outro minarete que se destaca é o Islam Khodla junto da madraça de mesmo nome e ao lado do Mausoléu de Makhmud, dois personagens importantes do país. Khodla construiu um dos portões da cidade, hospital, telégrafo e várias outras contribuições. Makhmud foi um poeta renomado de Khiva. Aliás, a cidade se orgulha de seus tantos filhos célebres, Al-Khwarizm ficou conhecido como o pai da álgebra e Al-Biruni dominava astronomia, geografia e história como poucos. Para fechar com chave de ouro, visite a Mesquita Djuma, do século X. Ela é formada por 213 colunatas de madeira, todas diferentes umas das outras. Então, suba ao minarete para se despedir desse vilarejo-tesouro, uma partida difícil.

Hora de tomar o rumo da capital Tashkent. Amplas avenidas e prédios imponentes em estilo soviético mostram à primeira vista uma cidade de aspecto jovem. No entanto, a capital Tashkent é uma senhora resiliente que sofreu grandes traumas, como a destruição causada pelo conquistador Gengis Khan, opressão soviética que pôs por terra tudo que estava fora de seus dogmas e um terremoto devastador que tirou a vida de três mil pessoas, e ela se recompôs das devastações. O Monumento da Coragem é um marco da força do povo que superou as intempéries com bravura. Portanto, não espere encontrar locais históricos contando sobre os primórdios, quando os comerciantes nômades turcos por ali circulavam. A cidade renasceu das cinzas. Ficou a essência.

Com trajetória turbulenta, o Uzbequistão conseguiu manter preservadas suas raízes e é reconhecido pela hospitalidade do povo. Guarda as heranças do antigo Império Persa e as curvas da Rota da Seda com singularidade. Caminhar por Khiva, Bukhara, Samarkand e Tashkent entre tantas relíquias traduzidas por fortificações, mausoléus, muralhas, minaretes, madraças cobertas de azul celeste e prédios pintados com tintas soviéticas é a certeza de mergulhar num livro que conta de maneira belíssima boa parte da história da humanidade.

1. Café no centro histórico de Khiva

2. Monumento da Coragem, em Tashkent

3. Pai da álgebra Al Khwarizm, em uma praça de Khiva

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