André Monteiro - 88

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andrĂŠ monteiro

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andrĂŠ monteiro

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Lembro-me quando chegaste. À entrada, teus pés pediam perdão. Sorria fino. Como um erro, movi-me. Pareceu-me correto na hora. Pareceu natural, até mesmo inteligente. Era como fundar uma casa com uma casa ao lado, aprendendo a não ter medo de deixá-las morrer. Música e dor. Preparei-me para uma corrida, de manhã, e, depois, também à noite, e ao crepúsculo, ao longo dos anos, cinza e exuberância eu vira, Uma barata eu via, e comunicava a meus amigos: estou chutando uma barata. Nenhuma palavra coroava o império deste chute, e tu dizias: divirta-se, rainha! 5


Divirta-se! É para isto que voltamos.

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Tiro, entĂŁo, os espelhos. Muito sal. Como tudo. Tu falas em guerra. Que uma casa de amor tambĂŠm a guerra leva.

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Ardor.

ZĂŠfiro em minha boca.

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I. Uma mulher disse eu sou sua enquanto abraçava-me. Cheirava a uma leoa e seu filhote. Suada, tocava a boceta molhada de nosso pranto, e comia todos os valetes e paus de uma só vez. Então, toquei-lhe o rosto. Sua face batizava-me a face e lambia-me a cara. Eu ardia. Ardia em uma língua. — Mulher nua e seu pescoço, raposa sobre a barriga, seu rabo pega-se à boca num Oroboro e a árvore continua a crescer, intacta, e depois em chamas. II. As maçãs quedam cinzas. Depois, os olhos da leoa. Seus olhos tornam uma menina atrás de maçãs. e a menina madruga — 9


madruga atrás de maçãs. III. Uma menina disse “ ” enquanto abraçava-me. Cheirava-me o pescoço e depois a barriga, raposa pegando a crescer, intacta, e nua — seu rabo numa árvore, Oroboro no pescoço — eu ardia a cara na língua da mulher que lambia e oferecia a face à menina — ela tocava-me o rosto e me comia de uma só vez. IV. Pranto. Valete. Paus. Boceta molhada. Suor. Disse a mulher: ternura é difícil de conter — e batizou-se.

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Vivia com ele. Era um homem de raríssimas impressões. Dizia isto com aquilo com um giro, e tornava outro rosto completo, o mesmo, com uma nova conta de fugas. Estávamos noivos? Não perguntei se estávamos mortos.

— A morte, você sabe.

Às vezes, deixava-me uma serpente. Às vezes, uma varinha. Um duelo de varinhas contra a parede, a rede de pesca, um acesso de variações frente à porta terrestre de nosso amor. Estávamos doidos? Não perguntei. Estávamos mudos. 11


Estalava na curva a noite de nosso pequeno silêncio — uma Bíblia caindo. Fechando-se.

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Diz se minha casa ou teu terreiro. Esta noite vai louca o suficiente para aprender que nenhuma treva é maior quando se ama. Parece que o bicho podre se afasta e toda a guarda cede a nosso abraço. Magra ruína dos séculos... A carruagem despede-se com seu mestre. Uma mulher despede-se com um beijo e um lenço azul no rosto de quem encontrou seu cavalo. Seu cavaleiro vestido de preto e pele à mostra. Eu me apaixono por ti antes da primeira palavra e tanto mais depois da boca. Minha casa é minha sina.

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Agora, é como se todas as bicicletas olhassem pra mim. Me chamassem. “Pensava que ia morrer”, eu ouvia — e beirava a estrada com uma mão nas costas e uma nos rins.

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Diminuí. Cristo ele próprio tornara-se comigo quando apertei a mão de um homem com lepra. Disse: 9 meses no Hospital da Mirueira. Minha família me abandonou — e chora. Está na rua há anos. Dou-lhe uma moeda de prata. Nos tocamos. Cruzo a rua e ele segue sentado.

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Esquina — casa 54. Passo na frente da casa, depois passo na casa 10, em frente, e paro. Minha mãe está do outro lado.

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Que tragédia pesar minhas mãos. Assassinei cardumes com uma só mão, e na mão livre, eu tinha um arpão. Assassinei cardumes com as duas mãos, e nos pés livres, eu tinha facas. Meti os pés no cardume e ele sangrou — como água. Quando nos toca o diabo, tornamos sereias, prontas a entregar-lhe a concha mais viva e perfumada da Baía. Na bainha, eu tinha uma espada — puro sal na lâmina. Uma mulher chegou sem lâminas e abriu-me as mãos. Disse: põe o meu nome no jogo do silêncio — e soprou. Minhas asas recolheram-se à sua boca, minhas mãos anelaram-se seus dois punhos, e a mulher levou-me ao fundo. Tocou-me o fígado. Os rins. Tocou-me a guerra. Como Ísis partiu à procura do corpo esquartejado de Osíris, a mulher tocou-me a terra. 17


I Hoje lembrei de meu noivo. Ele vai longe, longe — preciso lhe mandar cartas. À janta, peguei duas facas, ao invés de um garfo e uma faca, e me vi diante do prato com duas facas na mão, minutos antes de ler a história de Ntsoaki e Lucas, capítulos 4 e 5. Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, onde, durante quarenta dias, foi tentado pelo Diabo. Não comeu nada durante esses dias, e ao fim de quarenta noites, teve fome. Ntsoaki queria se juntar aos rapazes no ritual de passagem à vida adulta: a luta com leões. O cacique ficou comovido com o pedido corajoso e votou a favor dela. Ntsoaki dançou até que o leão, a ela, se rendesse — e toda a aldeia cantou à completa rendição. Hoje lembrei de meu noivo. Ele não dançou com leões nem passou quarenta dias no deserto, sem comer, 18


nem teve fome ao fim de quarenta noites. Meu noivo tem fome agora. Eu tenho duas facas, e me encontro longe — preciso lhe mandar cartas. Meu noivo tem fome dentro de casa. Dentro de casa meu noivo se esconde. Eu saio à caça. Com duas facas. Janto com meu noivo neste vale de lágrimas.

II Água na fonte. Lágrima no front. Águia. Na frente de casa, um monte. Um monte de cartas, Bíblia, duas facas, a mão que mata o consorte o afaga — fagulha e praga, a teta, o leite e o Rio Lete — bebi — e esqueci de meu noivo — meu nome tornou Javali: bem-vinda ao banquete.

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III Dancei com leões, morei no deserto, findei exaltada — facas, punho aberto escrevendo cartas perto de um rio no Inferno. Bebi — e esqueci de meu noivo. Ele foi terno. Saiu de casa e morou no deserto, e dançou com leões, e exaltou-me feroz: cantou para mim e comigo. Tomou-me uma faca e disse-me: nós — e comeu e bebeu comigo. No punho escreveu-me abrigo — e selou a carta com a própria voz.

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Te amo com todo o meu rosto Ouvi isto uma vez, no ônibus. Uma menina escreveu no caderno de um menino, e o menino abria-se a chorar. Eu diria: “amo-te com todo o rosto”, e depois “com o rosto todo” — e o rosto, uma mandrágora parindo. Estava esgotada. Ouviu um homem por anos, e ainda precisava roubar-lhe uma palavra. Roubava-lhe toda a expressão. Quando ouviu seu nome girar pela primeira vez, pôde suspirar levemente pelo que jamais procurara. Levou anos para conhecer o cheiro. Tocar-lhe a carne batida, as pálpebras. Anos para chorarem juntos, e meterem-se um no outro a boca e as mãos. Anos. As mãos e a boca, a carne e os pés na terra — nus. 21


© André Monteiro Diagramação: Victor H. Azevedo Revisão:

Ayrton Alves Badriyyah Pintura da capa: A Monkey and a Dog with Dead Game and Fruit, de Jan Weenix. Foto da contracapa: André Monteiro

Esta plaquete foi impressa em natal/rn, com capas impressas pela Graphicaria, para a munganga edições. 88 é aproximadamente o número de dias que Mercúrio leva para completar sua órbita. 88 também é usado no internetês chinês para se dizer “bye bye”, já que a pronúncia de “88” e “bye bye” é bastante parecida.



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