Victor H. Azevedo — Prosa Desmantelada

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victor h. azevedo

prosa desmantelada •



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Tive um sonho doido esta noite. Eu, minha irmã e meu pai fazíamos alguma coisa no centro da cidade. Talvez só passeássemos. Minha irmã era pequena ainda (sou péssimo para datar as pessoas, mas diria que ela tinha uns 6 anos ali), e meu pai era meu pai, uma perpetuação inconfundível, um velho que parece nunca envelhecer, apesar do açoite dos anos que passam. Estávamos lá, caminhando sem nenhum problema, e, como em qualquer outro sonho envolvendo familiares, não sei se era um momento ensolarado ou nublado, mas o clima parecia agradável, quando de repente meu pai pareceu ficar aguçado com uma aglomeração ao redor de uma calçada e correu até o lugar para ver o que acontecia. Não parecia uma cena de morte ou nudez, as pessoas estavam muito juntas, quase que coladas umas nas outras. Minha irmã olhava para mim como se perguntasse “O que é aquilo?”(não lembro se alguém falava no sonho, por isso o olhar). Eu segurava a mão pequena dela e íamos até o lugar, meio acanhados. Quando chegávamos lá, só havia homens, a maioria ria ou zombava de alguma coisa, o tipo de riso que gela 5


meus ossos até hoje. Parecia haver uma mesa armada ali no centro. Minha irmã me olhava de novo, como se dissesse “O que é? O que é?”. Me aproximava dos homens, e no meio da mesa, em cima dela, um tipo de bacia retangular vermelha. Os homens escarnecendo incessantemente: parecia que eu estava dopado, como no ensino fundamental, quando me levavam, — quase que à força, por obrigação do colégio, de uma pontuação, — a fazer educação física, mesmo que meu porte físico fosse o de uma anêmona. Ao lado da mesa havia um homem inexpressivo, segurando em cada uma das mãos um cutelo, movimentando-as dentro de uma bacia como uma máquina de retalhar. Ouvia grunhidos de desespero. E percebi que a bacia não era vermelha, mas transparente e que dentro dela havia nacos de carne por entre os cantos e porquinhos bebês correndo e se debatendo, amedrontados, com o som afiado dos cutelos. Lembro da sensação que desceu pela minha garganta e pousou no meu peito, amargando minha respiração, meu pulso. Não reconhecia o rosto do meu pai, ele havia se tornado uma célula daquela massa desgraçada. Pegava minha irmã, não queria mais saber do que tinha acontecido ali, e saía correndo com ela, para o mais longe possível daquele lugar.

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Talvez você não saiba, mas esta república federativa está repleta de causos excêntricos e curiosos. Um desses causos é sobre a misteriosa morte de um poeta chamado Rubens Calazans. Claro, claro, é até um pleonasmo falar que o dito cujo era poeta, pois todos os dito cujos desta república são poetas, perdão. Mas como eu estava dizendo: a história que circunda a morte de Calazans é bastante nebulosa. Ele, um jovem rapaz no alvorecer dos seus vinte anos, trabalhava em um sebo na cidade de Ilha de Pedra. Era um moço esguio, um tanto corcunda, com uma cara de lontra, deixando crescer alguma relva no rosto. Não era muito fã de futebol, por isso vivia na zona noroeste da cidade, onde ninguém ligava a tv nas quartas-feiras às oito da noite, mas alguns tomavam a liberdade de ligar o rádio para ouvir rádionovelas. Passava o nono episódio da reprise de Nas Omoplatas da Paixão quando Rubens desapareceu. Seu sebo era um lugar razoavelmente frequentado. Segundo o censo do condado de Aleluia, onde a cidade de Ilha de Pedra é localizada, o Sebo Piripaque era o trigésimo sétimo sebo mais procurado nas listas telefônicas e o quinquagésimo oitavo lugar onde era possível utilizar-se do lavabo, sem precisar pagar em dinheiro ou em favores cabulosos, como por exemplo: lamber a joanete do proprietário ou doar a última colheita de unhas cortadas. Seu sebo era um lugar mediano, assim como sua pessoa, sua companhia, seus gestos. Ele, filho de duas mães, Paloma e Vera, era definido por elas como “um rapaz muito quieto, mas também muito caótico, muito peludo, mas pelado em alguns momentos, gentil 7


feito a sombra de uma árvore, mas imprevisível como a sombra de uma árvore assombrada”. Tudo isso, claro, dependia sempre da temperatura em graus Celsius que incidia sobre seu corpo. Rubens Calazans foi visto pela última vez por sua “companheira, mas jamais namorada” Ângela Bustamante. Palavras estas da própria Ângela que se diz ser “apenas uma pessoa qualquer, com um sonho qualquer para se usar de penduricalho, mas jamais uma amante de filme à bolonhesa”. Ela diz ter visto Rubinho pela última vez (nome carinhoso que Rubens criou para ele mesmo, segundo informações da sua companheira), quando ele disse que iria sair para passear com sua cacatua, chamada de Erasmo, nome inspirado no cantor de bolero Carlitos Erasmo, do qual Calazans era um grande fã. “Rubinho colocou Erasmo no cocuruto dele, vestiu um casaco puído como sempre fazia, e saiu. Lembro que ele deu uma piscadela pra moi e sussurrou algo que traduzi como 'Prepara essas tuas ancas que já já eu volto.'”

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Você sabia: existiu uma poeta que viveu por estes recantos, mais ou menos vinte anos atrás, e que tinha uma chimpanzé em casa chamada Maricota? A chimpanzé escrevia poemas, usando um método um tanto quanto peculiar, os quais a poeta publicava em suplementos, revistas de fofoca e bestiários. O método era bem simples: a poeta — cujo nome decidimos manter em sigilo, pois divulgando-o talvez uma revolução proletária implodisse, mas se você pesquisar, preguiçosamente até, por qualquer hemeroteca abandonada vai descobrir quem era — a poeta que espalhava no chão do quintal várias bananas de diferentes tipos — prata, nanica, da terra — e na casca delas escrevia palavras geradas randomicamente por uma enciclopédia arremessada em uma máquina de lavar roupa. Então Maricota, quando ouvia o chamado do seu estômago, partia para o quintal e pegava uma banana aleatoriamente. Assim a poeta acumulava a casca das bananas. Todo dia com número cabalístico do mês, ela sentava na 9


sua escrivaninha e ordenava as cascas-palavras utilizando critérios a gosto — fases crescentes da lua, uma equação envolvendo o número de gols tomados pelo Folclorense em partida de futebol, trigonometria, a quantidade de anéis em um carvalho, lance de dados, vezes que se repetiram a palavra “balbúrdia” num programa culinário, etc. Abaixo, um poema inédito de autoria da dupla, encontrado na terceira capa de um livro de astrologia, escrita pelo próprio punho da autora (no caso, a poeta e não Maricota que, segundo algumas informações, era semianalfabeta): Desprazer levantar sem mamãe Mamão bom pra aliviar tanajuras Ajuda fundo da garrafa térmica Escuro nome de imperador jovem Urina banho de alcachofras tetas Carburador morto no ponto f Conforme o gráfico mostra Falta mapa para abastecer montanha

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Lembrei hoje de uma história que você me contava. Eu estava lavando os pratos — tentando limpar com uma britadeira os excertos de refeições encrustadas nos pratos e panelas e canecas há quase quarenta dias — quando senti uma mão cafunando manso e aveludadamente minha nuca: era a lembrança de quando você me falava que amava armas, que você era apaixonado por canivetes borboleta, por revólveres azinhavrados pelo tempo e por carabinas ornamentando lareiras sem fogo. Nós sentados na linha ferroviária num dia adomingado, eu com uma expressão de coruja adormecida enquanto você fumava seu cigarro de tabaco achocolatado e dizia que achava todo tipo de arma estupendamente bonita, guapa, deliciosa (exceto instrumentos de tortura — como a berlinda, a virgem de Nuremberg, o cinto de castidade, roupas sociais e o jogo da paciência—pois só de sentir a presença deles, era possível sentir tua alma eclodir de ti e retroceder cinco casas nesse tabuleiro nosso). Dizia que as armas eram quase como nossos filhotes secretos, paridos da fecundação entre nós e a nossa melancolia, como um espelho que reflete nossas tripas. Era como se nossa graça relativa também fosse como a das armas, você dizia, porque a beleza é uma arma de destruição em massa. Existem pessoas que passam por 11


essas nossas rodovias, que chamamos laconicamente de vidas, e que nos fazem sangrar por dentro, fazem o coração dilatar ao ponto de caber um porta-aviões dentro dele. Quando você vê alguém com a pele salpicada por sementes de morango, o cabelo da cor de uma explosão solar, as ancas engatilhadas para procriar furacões, quando você sente o cheiro que mordisca vagarosamente seus pulmões, que parece ser criado por uma escolha seleta dos átomos mais obliterantes da galáxia que fazem com que você queira ajoelhar seus olhos àquela criatura semidivina, suplicando “por favor, mate-me logo, não aguento tanto sangue a bombear num só sentimento”. E assim você vira refém daquilo, viciado em sentir tua vértebra molenga, em muriçocas planando no teu estômago, em ter tuas escamas esmagadas e lambidas e sugadas e iluminadas pela presença daquele outro ser, daquela arma apontada pro teu peito incessantemente, lingualâmina bocarevólver tatofuzil. Fazendo tua existência desmoronar em bocados, em câmera lenta, mas simultaneamente te dando um objetivo, que é manter essa arma o maior tempo possível perto de ti, tornando-a tua comparsa, mesclando-se em ti, tornando-o falecido aos poucos, mas também dourando tua atmosfera, teu tudo, ouroboros saboroso. Senti a lembrança murchando, murchando, mas não antes sem lembrar de algo que carrego comigo até hoje: estamos aqui, neste observatório, sonhando que vamos morrer depois dessas estrelas, mas não vamos.

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Oi, eu me chamo V. e passei os últimos três dias deitado na minha cama, fazendo coisas pouco extraordinárias. Não lembro qual foi o último livro que li. Ando cabisbaixo ao ponto de odiar os meus poemas e os poemas dos outros. Não aguento mais enxergar tanta arborização no meio das palavras. Três dias deitado por conta de uma garota. Não que ela tenha demolido minha caixa torácica nem algo do gênero, mas é que às vezes eu não sei o que fazer depois de submergir com tanta força de volta à superfície deste meu solilóquio. Sim, estou só. A. sumiu — deve estar emaranhado no cu de algum príncipe destronado. Mandou-me ler alguns poemas de Francisca Bucetcheli, mas só de ver esse livro arremedado num caderno pautado e com o cheiro de mofo parido quando o chão dessas casas ainda eram de terra batida, só de ver isso me bate uma lonjura na cabeça e aí prefiro me abster desse trabalho. Diz ele que essa mulher era imigrante de um desses países meridionais, onde não existem vogais em seus abecedários, e que ao chegar no arquipélago, sem um arcabouço escolarizado ou uma moeda furada pra fazer de brinco, acabou por se destinar à profissão de prostituta-curandeira. E o que isso quer dizer? Bem, quer dizer que ela sarava os pobres amancebados seringando toda aquela gosma viril e os transtornando em pequenos mamíferos domesticáveis. E na horas vagas, quando não havia clientela a ser purificada, ela escrevia alguns poemas, diz A.

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E se eu te falar que essa menina que eu gostava era um coala? Minha Nossa Senhora dos Alagados, por que me deste um coração de maçã, adornado de canetas esferográficas e presa fácil de marsupiais? Três dias deitado foi minha penitência. Nada de grilhões ou algemas, sabe a Senhora que eu faço essas coisas de bom grado. Não oro porque não tenho dentes de ouro, por isso lhe rogo com a areia que escorre do meu relógio de bolso. Tá vendo esse rosto: nenhum esgar de reprovação, talvez de insônia ou dormência, por isso que me confundem com um adolescente angiospérmico, o que por vezes me afaga como um elogio, mas outras ficam alojadas como um xingamento insípido e de cabeleira hectométrica. Mas eu aprendi, vou procurar alguém que solte faíscas das bochechas, porque já diria aquele provérbio teu, Minha Nossa Senhorinha dos Empoçados: engane-me uma vez e eu rirei, engane-me duas e eu já não terei as mesmas sobrancelhas de antes, engane-me três vezes e você é definitivamente aquele cara que vai conhecer o punho do qual proveem o mormaço na porta da tua morada.

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Você sabia: Leide Melo de Alcântara, conhecida poeta nascida em Rio dos Sete Palmos, agora encarregada do suplemento literário da cidade de Nossa Senhora do Alagados, tem sindactilia nos dedos mindinho e seu vizinho do pé esquerdo. Pouquíssimas pessoas sabem desse fato curiosíssimo: alguns familiares, parcos detetives podolátras e sua fiel pedicure, Filomena, pois Leide é temerosa, sente-se acanhada pela possibilidade de virar uma personagem de chacota provinciana. Fotografia dos seus pés desnudos fora da sua tutela só existe uma: a tirada na hora após o seu nascimento, quando o primeiro membro corpóreo a sair do canal uterino de sua mãe e saudar o mundo foi o dito cujo do pé esquerdo. Tal foto é de propriedade de sua avózinha, que guarda afavelmente no próprio ventrículo esquerdo. As fotografias mais atuais — ao menos as que amamentam a curiosidades dos nascidos ou 15


crescidos céticos — são todas de propriedade privada de Leide, que as guarda capciosamente dentro de um cofre, guardado dentro de outros seis cofres, como uma matrioska, e se por alguma sortilégio do destino algum indíviduo souber todas as senhas do cofre-matrioska – que são compostas de uma coreografia de dança do ventre – vai se deparar com um álbum de fotografias no qual, entre diversas outras fotos mais “comportadas”, estão algumas de veraneios, em que Leide aparece geralmente sorridente, usando um chapéu de palha oxidado pelo mar, um maiô estampado com vários brucutus da política municipal e calçando dois pés de pato, de aparência confortável, se compararmos a circunferência de seu sorriso nessas mesmas fotos.

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a primeira urina da manhã é sempre a mais amanteigada. isso quando se tem 21 anos e uma certeza embrionária de que o mundo é um xarope de abismo. não entendo um infinitesimal da minha própria degeneração reciclável, mas diria que isso tem a ver com o fato de eu sempre tomar o café da manhã dos campeões. digo degeneração como quem diz verminose. venho por meio desta solicitar aos labirintos um novo carregamento de coquetéis molotov & biscoitos de baunilha & um eleitorado que não venere paralelepípedos & também agulhas para remendar nossos sapatos alagadiços, afinal nenhuma revolução pode implodir se ninguém estiver de estômago recheado & de pés afogados. um cachorro chamado tristeza comeu todas as tuas ilhas enquanto você estava hospedado no hotel alpenglow. ao menos é isso o que os morangos maduros te dizem. não quero saber se hilda hilst chupava bergamotas ou se mário de sá-carneiro já lambuzou por completo a orelha de algum conterrâneo ou se julio cortázar chamava 17


alguém carinhosamente de kemosabe. quero só fingir que durmo enquanto volto para casa. olha pai, um avião perdido no meio do perfume noturno dos lírios. filho, quem nunca andou de ônibus não sabe o que é deserto. agora suas pálpebras estão pesadas e começam a respirar: você dorme sabendo que amanhã o dia será um castelo de cartas. filho, não acredito que você nasceu de um relâmpago. olha pai, um vendedor de telefones roubados me deu esse pedaço de fome. toma filho, bebe um pouco desse estorvo que está quase na hora da sombra do pássaro nos levar. afinal não fomos paridos para sermos coerentes & afinal não orbitamos ao redor de uma boca vermelha por bel-prazer & afinal fomos abandonados em bebedouros para nos enturmarmos com os ruminantes sem pedigree & afinal somos ruminantes & afinal sua encomenda chegou & aqui diz "deste lado para cima".

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atraco minha disritmia: essa coisa comprovadamente cheia de carrapatos que me faz largar o posto de escriba para me assalariar como carrossel. as pausas que alimentam meu sossego, os rodopios que dão labirintite à majestade. queria te dizer que o poeta está errado, que a vida não se mede em colheres de chá, mas sim no troco que o sorveteiro calcula cautelosamente, tirando as moedas do bolso e salpicando-as na mão que mais parece um atlas. e falando dos meus lazeres: não, traduzir poesia não é como reconstituir um crime. recapitulando: se um gênio me concedesse três desejos, eu iria pedir que meus dias tivessem a duração de 33 horas, que eu pudesse ter um córrego de estimação e que todas as pessoas frígidas desse país morassem num só condomínio. acho tuas sobrancelhas engraçadas & tua voz é como uma bala de alcaçuz. uma vez vi um poeta escarrar ouro dos seus brônquios, talvez fosse algum primo de segundo grau do drummond. o estranho é que eu já quis entrar numa garrafa de vat 69, mas as taxações andam obturando até mesmo meus passos. venho andando sem deixar trilha, pavimentando meus rastros, desistindo de 19


debutar esses meus matraqueios por aí e acolá. santificado seja o criador do ônibus, dos cães e das promoções de pré-venda. são essas as coisas que ainda mantêm meu nível de felicidade entre pachorrento e incendiário. um moço me ensinou dia desses que se essa minha aridez de lágrimas perdurar por mais algum tempo eu preciso chutar uma parede, mas chutar com o dedão do pé em riste, para que o dano seja exponencialmente manado para ele. disse também que depois do chute o choro viria sem caducar, mas, se por acaso nada acontecesse, eu precisaria olhar pro meu dedão. mas olhar bem. olhar com tanta vêemencia, com tanta mira, que eu conseguiria entender o porquê das aves não terem dentes e então eu choraria.

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Revisão Ayrton Alves Badriah

Publicação digital fora do circuito comercial

Natal, 16 de abril de 2020




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