fernanda boaventura
ao fim de uma oração •
fernanda boaventura
ao fim de uma oração •
мꭒиɡɑиɡɑ
”For all my art and all my skill it never looked like me — never once” Leonard Cohen “ Não vou falar dos meus tormentos. No fundo deles, não sinto nada.” Samuel Beckett
Não pude aterrar-me na névoa, diante da parede de vidro, no final do mundo. Não o amava o suficiente. Juntei lenha, empilhei as achas da fogueira e aqueci as mãos. Mas eu não sorria, não conseguia abaixar a lança, quebrá-la, desistir de [empunhar um galho de prata. Ofereci o fogo a Deus, à família, aos amigos irreparáveis. Mas no fundo do coração eu não estava enternecida. Senti que mentiria a uma legião de filhos que geraria tendo em mãos um [sapo incandescente. Aos meus pés, um soldado caído que cobri com uma túnica empoeirada. Penso que qualquer substantivo nobre vai correr à minha boca assim que ele [murmurar a pergunta final. Humilhada, omitirei os meus sonhos e mencionarei os corais. No dia seguinte, tornarei a omitir os meus sonhos, tensionada pelo orgulho [dos meus ossos tenros que perseguem as próprias penas, como a [uma dor insólita e milagrosa cintilando numa paisagem de neve. A parede branca e erma do quarto não me açoitará quando eu regressar [nua e desenraizada como um adolescente adormecendo à sombra da [árvore inominada, leal ao rebanho, cego aos meus gestos, surdo à minha voz, escoando aos pouquinhos o sangue de uma aleluia irredutível: eis o mistério da crueldade.
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Perco as deixas do corpo No exercício de estancar o sangue Sufoco-me com a terra à beira do rio Depois que meu pai já havia sucumbido à ilusão exaltada A mulher que se esquece do cabelo, da raiz, das mãos Cura o frio do fundo dos meus olhos E toca meu rosto despida de feitiços Meu Deus o que quero dizer é que no meu caminho de pedras Há uma velha que a chuva tortura E eu odiaria esquecê-la
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Os pássaros brancos me deixam E o sangue satura os meus gestos Como um espelho apertado contra o peito, Um tigre que se avizinha da doença Não se tem braços de carne na crista da idade Tem-se um animal inerte e mudo a milhas de distância dos olhos Ele encena nossos sonhos e bebe vinho em todos os solstícios Pergunto-me se o tempo dará aos braços que não são de carne a ira de um príncipe Se for o caso serei abraçada Perfeitamente abraçada Como se tivesse algum amor pelo meu sexo
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Estás no mundo e logo se vê as femeazinhas jogando arroz sobre tuas mãos em concha e há o medo, a solidão, os imperadores longínquos, etc mas tem-se arroz em mãos e um livro à mesa: jamais em ti. Desejas que a espada se crave em teu estômago: não a terás. Teu sangue espelha as nuvens indefectíveis como olhos muito fundos, e as inúmeras crianças com que sonhas lavam a tinta de seus corpos com suas mãozinhas [descoordenadas sob a sombra estreita de um galho e uma garça sobre o galho. O bebê grita: jamais em ti.
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carta ao homem sem rosto do pátio do miudinhos
Sentada no balanço eu tinha as mãos em correntes. Fingia ser a tempestade e machucava meu sexo. Havia uma casa a oeste onde duas crianças rezavam por mim mesmo que meu peito [fosse vazio e vedado como um urso. O fundo não me chegava: era um mar estúpido. E aos olhos dos pássaros eu guardava em mãos trêmulas condecorações de metal. Sentia medo de olhar-me sem que estivesses à espreita e assistir ao desaparecimento [dos meus lábios nos muros que regozijavam com a ausência de inquilinos. Nomeava-te como uma cadela na iminência do silêncio e éramos puros quando [extinguíamos o fogo com a voz cor de centeio. O menino nos chamaria por muito tempo ainda para espanar a areia de seus joelhos [e incansáveis diríamos que não pela vigília da velocidade abandonada de nossa infância. Estive a sós contigo no delírio da ciranda das camas flutuantes, na vinculação da [nudez à carne. Foste a testemunha, sei que sim, de cada vento débil a coroar o triunfo insosso dos [meus sonhos. Mas ao fim, não te conheço. E no açude, sou a justiça de cada cálice.
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nostalgia da islândia
A princípio voltei-me ao náufrago E omiti as mãos. Eu nada podia fazer quanto aos pães E à graça. Eu nada podia contra o exílio. Os peixes nos meus olhos haviam sido fisgados pela traição do voo E o aquário não cederia nenhuma embarcação. Depois a minha voz tornou-se branca E a claridade cegou as pombas designadas a testemunhar a terra Com seus ramos de oliveira ofertados às viúvas Nos portos do continente. Por fim pus-me a ser água fictícia A batizar os cadáveres das baleias estendidos sobre a praia sem filhos, Distraindo-me do Sol sob o qual apodreciam Que ancorava-se em meus peixes de visões tardias Desde o começo.
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Fui ao galpão olhar as mudas Elas fediam a ferro Talvez sonhassem com a terra dentro da minha boca, estática e úmida, a instaurar [um império Meu nome era um crime À superfície do rosto de pedra de um anjo Meu pai havia virado areia E elas fediam, fediam estupidamente Quando parti do galpão A nostalgia da margem sangrava pelo corpo prematuro da água Nos ninhos, os pássaros bicavam os olhos de seus filhotes E eu penalizava o céu pelo martírio inútil das sementes, violetas e ocas como [o útero de uma mula, Como a casa dos homens e seus triunfos
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As pedras seguem a trilha do meu riso mas como a estátua de uma santa, como um lenço empapado de sangue, ele não dilacera. Perguntei, num murmúrio, se tu me escutavas. A minha voz estava neutra e empoeirada. Os sapos penetravam no coração dos pássaros. E meu asco os acompanhava, como um manto envolto numa cadela trêmula. Eu disse a ti que talvez fosse a alegria, ornada de cristais e arranjos de terra úmida, a me torturar com seu toque leve de enfermeira estúpida, o apelo da minha morte. Estou sentada atrás de um museu, num jardim de paineiras, um casal se alimentará ao meu lado, alguns minutos depois, em silêncio. Não os machucarei, não levantarei a voz, não chegarei nem mesmo a [olhá-los, e esta é a natureza do meu golpe. Qualquer nobreza posta na mesa como uma cabeça em forma de candelabro a ofuscar [as estrelas de dentro da casa. Uma mentira a fazer-se íntima do cheiro do meu corpo. Pude ouvi-la debaixo do peito de um cavalo. Nela beijo o meu rosto, insondável e vazio em seu pleno direito.
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Quando eu trançava os rabos dos burros, a acusar os crimes da lua, de dentro da minha fantasia, com os olhos cheios [de lágrimas e o colo coberto de cravos, os juízes eram soberbos; soberbos e assustadores. Havia desde o princípio uma palavra brilhante dita em uníssono, mas os meus sonhos [são monstruosos e cospem no leite servido por uma tenebrosa falta de devoção. Um rato dormiu ao relento em meu peito. Rezei para que o meu corpo pesasse o suficiente a fim de que eu não perdesse [a memória de seus olhinhos cintilantes. Toque meu coração. Vá, toque, à revelia da eternidade. Tive aquele sonho grotesco outra vez, sussurrei a ele, nobre como uma mentira. Um homem havia acabado de morrer, muito longe daqui. Meus cabelos estavam mergulhados no tanque, estéreis como as raízes do sol. À frente, uma velha ajoelhada, rezando "Senhor, fazei-me um instrumento de vossa [paz". Ela abriu as minhas pernas, caiu na terra, e o meu coração intocado, surdo, estremecia [com a visão de seus olhos abertos. Meu Deus, quem poderia rezar de olhos abertos? Aos meus pés, uma profusão de louvores tornava insosso o calor e o frio, Chorar é sempre irresistivelmente inútil, ela me disse, inútil qualquer apelo da glória [do desamparo, o enlevo, ao amar a areia, ao pôr a mão no fogo, na iminência de dizer [nada.
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oração
Dói que não tenhas uma mão de osso e sangue, uma mão de cânticos amarelos Que Teu nome seja uma abóbada recoberta de ninfas vestidas, que todas elas [vistam cetim branco Dói que Teus cabelos recaiam sobre mim sem que o vácuo circundante do sol seja [uma chaga Que Teus olhos não sejam armários e cristaleiras em quartos escuros Que sejam miragens de cardumes a assegurar a minha carne como um espelho no [sótão És uma câmara, uma marquise sem muitas colunas onde náufragos me entregam [cestas de vime e minhas mãos se transfiguram para um castelo inabitável [de fios de ouro Quando a minha voz for um castiçal a estilhaçar meus lábios, sangrarei sob Ti [como um cavalo negro Meu sangue será uma orquídea esboçada nos azulejos Ó lâmina de ar Ó pensamento de bronze Sei que me ouves Mas minha pele arde no sítio das brânquias Os peixes se multiplicam sem que eu sinta o gelado de suas escamas E amo-Te no que tremula como um pardal de fogo, um girino, um mamífero sem [sexo
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Pai, temo pelo meu coração. Toco com as mãos secas a existência de um cervo. Há um leão que nos olha do alto de uma torre. Moscas rodeiam seus olhos abertos, e eu quero que ele me mate. Seus dentes em minha garganta serão cães adormecendo aos meus pés sujos. O leão sente frio, ó Pai? Eu quero que ele congele, tome-me por um pássaro voando à frente da última [janela e congele. Trema de frio e depois gema, humilhado. É por isso que deves crescer em meu desejo como um corpo esvaziado de sangue. E assim reunirei os pequenos galhos órfãos, dispostos ao longo da terra, para [adornar a câmara do nosso sono. Até lá, temo pelo meu coração, ó meu Pai.
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