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Primeiros passos da animação portuguesa

Foi piloto da marinha mercante, geriu stocks em plataformas petrolíferas e animou graficamente filmes de animação para publicidade. Nos contributos de Paulo Cambraia para os filmes de animação está ainda o seu trabalho como formador, a criação de um software para tratamento digital de animações e a reconstituição do filme O Pesadelo de António Maria (1923, Joaquim Guerreiro), cujo centenário se celebra este ano. Peças da sua coleção pessoal podem ser vistas na exposição permanente do Museu da Marioneta. A NM entrevistou-o a propósito de um novo projeto cujo primeiro fruto conhecemos agora: a inventariação em livros dos filmes portugueses de animação já tem o seu primeiro volume publicado, cobrindo os anos 1900-1929.

No livro compara o trabalho de investigação sobre os primeiros anos do cinema de animação em Portugal ao trabalho do paleontólogo. Onde escava este investigador? Escava-se, por exemplo, na Biblioteca Nacional que tem jornais e revistas antigos, as únicas fontes onde se pode ir beber com alguma segurança. Também por vezes na Hemeroteca. Evito o mais possível usar interpretações feitas por terceiros. Os testemunhos orais são tudo menos credíveis. Uma pessoa com 80 e tal anos, como é que se lembra do que fez há 60 anos? Na ausência de fontes de época, tenho de fazer alguma interpretação, mas é uma interpretação “educada” pela minha experiência no campo da animação e sempre com as devidas reservas.

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Estes fósseis que vai encontrar são muitas vezes “candidatos” a fósseis.

Andei muito tempo à procura da maneira correta para apresentar pistas apontando para filmes cuja existência não se consegue comprovar. Sinto-me na obrigação de passar toda a informação disponível, mas não quero acrescentar a minha chancela a informações sem provas concretas. Alegadamente alguém fez um filme. Quando? Onde é que foi exibido? Porque é que vou à procura nos jornais da época e não encontro o filme mencionado em lado nenhum? A solução que encontrei foi essa história do “candidato”.

No livro também faz uma advertência e um apelo pedindo contributos para continuar este trabalho. Sim, mas até ver ainda não apareceu ninguém... Neste meu primeiro livro fui mais longe do que é comum. Perdi horas e horas na Biblioteca Nacional e na Hemeroteca a escavar. Também é muito relevante o património fílmico que está depositado no ANIM [Arquivo Nacional de Imagens em Movimento]. Estive a consultar o inventário digitalizado e houve uma pessoa que teve paciência para percorrer os registos da base de dados um a um para ver se havia animação. Os filmes não são necessariamente de animação do princípio ao fim. É o caso de filmes institucionais que contêm animação e alguns genéricos de filmes de cinema. Fui descobrir estas coisas todas, mexer na lama. Está ali um fóssil algures? Vamos lá sujar as mãos e desenterrá-lo!

Ao lermos o livro ficamos com a impressão de que os primeiros filmes (ou candidatos) usam técnicas de animação e narrativas inovadoras. É realmente verdade?

Inovadoras aqui em Portugal, porque não tínhamos nada antes... Nos anos 1920 estávamos muito atrasados. Os nossos cinemas já projetavam filmes de animação norte-americanos, alemães e franceses que estavam muito mais à frente. A bem dizer, desenho animado português, naquela época, só há um: O Pesadelo de António Maria. O Joaquim Guerreiro fez os desenhos todos e tinha de decalcar o fundo outra e outra vez para cada desenho porque o papel que usou é opaco. Não era assim que se fazia lá fora: usava-se acetato, que é transparente e assim só se repetia o boneco. Ou utilizavam outra técnica, essa sim também muito utilizada nos primórdios da animação portuguesa, que era o recorte: o desenho recortado era colocado em cima do fundo, depois o desenho seguinte era colocado em cima do mesmo fundo. Desenho animado, O Pesadelo é o único, naquela época. E penso que pode dizer-se com um grau elevado de certeza que é o nosso primeiro. O Joaquim Guerreiro só se atreveu a fazer isto porque veio da Argentina onde estavam mais avançados, tinham feito uma longa-metragem que, até ver, será a primeira longa-metragem feita no planeta, ElApóstol [1917]. E em 1923 onde é que os americanos já iam... inventaram a técnica do acetato em 1914!

Os portugueses quando chegaram à animação, queimaram etapas e foram mais depressa?

Não. Tinham uma grande vontade de fazer, mas não conseguiram. O número de falhanços é incrível. As pessoas viam coisas fabulosas nos cinemas — o Popeye, a Betty Boop, o Gato Félix — e toda a gente ficava com vontade de pôr os seus próprios desenhos a mexer. Os entusiasmos eram muitos, as concretizações foram poucas.

[Ana Paula Rebelo Correia] Nesta altura, nos anos 20, em que o mundo vibra com um pulsar diferente sem imaginar que lhe ia cair uma segunda guerra em cima, o Rato Mickey traduz uma possibilidade de fantasia na vida. O Pesadelo de António Maria parece do século XIX. Eu associo mais a uma coisa do Bordalo Pinheiro do que a algo contemporâneo do Rato Mickey. Era isso que eu gostava de perceber.

[Paulo Cambraia] Sim. É por tudo isto que no meu livro não faço a mínima referência ao que vem lá de fora. Se me ponho a comparar o que se fazia lá fora e o que se fazia em Portugal, isto era um desastre. Também não é pretensão minha escrever a história do cinema de animação. Estou a fazer uma recolha de elementos para que outros consigam escrever essa história. Por isso vamos lá entrar na lama, descobrir os ossos e tentar perceber onde é que eles pertencem.

A propósito do que pertence onde: no livro clarifica o conceito de animação. Ainda há equívocos hoje? Muitos, sobretudo na definição de animação. A minha é uma definição técnica. Há quem proponha outras, sejam elas filosóficas, estéticas ou afetivas… Mas só depois da animação existir enquanto animação é que podemos criar relação com ela. Primeiro é preciso fazê-la. Depois as pessoas podem criar com ela a relação que quiserem. Outro equívoco é confundir animação e manipulação.

Se eu pegar nas vossas marionetas com um manipulador e as filmar, faço um filme fantástico. Mas é um filme de animação? Não: é um filme de bonecos manipulados. O que caracteriza a animação é o facto de no momento em que se captura a imagem não existir movimento real. O movimento, aparente, só é gerado mais tarde, no momento da projeção.

Na exposição do Museu da Marioneta, as primeiras peças de filmes de animação são de filmes publicitários. No seu livro é visível que animação em filmes caminha a par da publicidade. Qual a explicação para esta relação tão próxima?

Nesses anos de 1920, o interesse em fazer animação é grande. Por exemplo, Bernardo Marques, que é artista plástico, diz “vou fazer um filme de animação”, mas não tem um operador de câmara que possa filmar imagem por imagem. Há o aspeto da técnica e há questões financeiras: o operador é caro, há que ter o equipamento e o sítio onde filmar. O cinema daquela época era sobretudo de imagem real. Com filmes de imagem real, sabemos que os custos são suportados pela exibição em salas, pelo menos no caso das longas-metragens. Onde é que se foi buscar dinheiro para fazer filmes curtos? Publicidade. O filme publicitário é pago pelo anunciante. Neste caso aqui [mostra], foi pago pela loja A Pompadour.

Essa relação próxima da animação com a publicidade mantém-se até à família Singer. Desde sempre, passa pela Singer e vem até aos dias de hoje. Nos anos 50 temos o Servais Tiago, aparece o Mário Neves e, nos anos 60, o Artur Correia e o Ricardo Neto, também em publicidade. A partir de 1957 há a televisão, outro nicho onde aparece a animação, aqui e ali: nos genéricos, separadores, coisas modestas. E publicidade. Carradas de publicidade com animação. Passou da sala de cinema para o pequeno ecrã. A animação em Portugal não se desenvolveu no meio artístico, desenvolveu-se no meio comercial, a partir do momento em que graças à publicidade começam a aparecer os equipamentos e as pessoas com treino nas artes e técnicas da animação.

A publicidade também tem os meios para poder captar as pessoas mais criativas.

E antes de mais nada, paga-lhes.

Já ouvimos falar do segundo volume. Este projeto quantos volumes ainda tem?

O número 2, cobrindo os anos 1930-1949, vai existir.

E estou muito esperançado em relação ao número 3, a partir dos anos 1950, essencial para se perceber o que

O PESADELO DE ANTÓNIO MARIA, DE JOAQUIM GUERREIRO

159 desenhos e 8 legendas manuscritas há cem anos compõem aquele que se conhece como o primeiro filme de animação português. Foi criado por um caricaturista, Joaquim Guerreiro, que desenhou uma a uma a totalidade das imagens, sem recurso a técnicas que evitariam repetir os fundos em cada desenho, como os acetatos ou recortes. O filme era um dos quadros da revista Tiro ao Alvo, em cena no Éden-Teatro em Lisboa. Provavelmente os diálogos aconteciam em tempo real, com a voz dos atores do elenco. Do filme sobreviveram apenas os desenhos originais que permitiram a reconstituição digital feita por Paulo Cambraia, em 2001. Os desenhos pertencem à coleção Ricon Peres e estão depositadas no Museu da Presidência da República. Pode agora ser visto no YouTube este desenho animado, acompanhado durante três minutos e meio pelo improviso ao piano do Maestro António Victorino d’Almeida. Talvez por ter sido apresentado num espetáculo de revista e criado por um caricaturista, o enredo é de crítica social, refletindo o ambiente conturbado de uma época de vários protestos contra “a carestia de vida”.

se faz hoje em dia na animação. Ao primeiro volume, paleontológico, segue-se o segundo, chamemos-lhe... arqueológico: começam a aparecer umas “ânforas”, muitas delas em cacos. Nos anos 1930 já havia revistas de cinema. O jornal O Século tinha o suplemento Cinéfilo, que apareceu em 1928. É no Cinéfilo que encontramos referências a iniciativas do tipo: “Bernardo Marques vai fazer um filme de animação” e “Bernardo Marques adiou temporariamente”. Entretanto apareceu o cinema de amadores, que se fazia em 9.5 mm, o formato Pathé-Baby. As revistas começaram a falar sobre cinema de amadores; os amadores lembraram-se de fazer cinema de animação e as revistas dos anos 30 e anos 40 começaram a dar-nos mais informação sobre aquilo que estava a acontecer. Não necessariamente mais fiável. Continua a haver muitos “candidatos”. Mas tal como aconteceu com o meu primeiro volume: se um filme existe no ANIM, quero ir lá vê-lo e obter imagens para o documentar. A colaboração do ANIM é de facto essencial para que se possa fazer um trabalho sério acerca destas épocas remotas.

Quando é que se passa para as três dimensões, marionetas animadas?

O único filme que encontrei com volumes é do universo do cinema de amadores, em 9.5 mm. É um filme documental sobre a vida das borboletas feito por um engenheiro cheio de paciência, em imagem real. O genérico do filme mostra um brinquedo, um patinho marinheiro vagamente inspirado no Pato Donald. Esse boneco é articulado, entra em cena e vai buscar uma letra e fixa-a no painel, e depois vai buscar outra letra e fixa-a no painel, e depois vai buscar outra letra e assim por diante. No fim forma o título do filme. E isto é feito em animação de volumes. É a mais antiga que encontro naquelas épocas.

E é de quando?

É de 1937. Note-se que o uso do desenho em animação é muito mais antigo do que o uso da volumetria. O verdadeiro desenho animado evolui naturalmente do ambiente das lanternas mágicas. Aqui em Portugal, os anos 1950 e seguintes vão reinventar a animação em Portugal. Na publicidade, mais uma vez, onde estão os meios técnicos e o dinheiro, onde as pessoas fazem muitos filmes e ganham experiência. Temos o papel preponderante do Servais Tiago e do Mário Neves, nos anos 50, e mais tarde nos anos 60, do Artur Correia e o Ricardo Neto. Esta geração é que catapulta a animação para o que é hoje em dia. Nessa altura, os intervenientes são completamente diferentes: já não são designers ou ilustradores, são animadores. Até que enfim apareceu a profissão de animador! O primeiro profissional terá sido Servais Tiago que depois de fazer um filmezinho em 1943, o Automania, em 9.5 mm, nos anos 50 começa a fazer publicidade. É entre esta gente — o Servais Tiago, o Mário Neves e depois o filho dele, o Mário Jorge — que se vai construir um grande repertório de conhecimentos e equipamentos e se consegue treinar e educar os diretores comerciais das empresas para utilizarem a animação porque despertava a atenção do público. Mais tarde, esses equipamentos puderam ser utilizados por malta nova que queria fazer experiências enquanto autores. Mas isso são histórias para outro livro.

Durante dois anos, Paulo Cambraia, passou longas horas na Biblioteca Nacional de Portugal, na Hemeroteca Municipal e no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema (ANIM). Fez “um trabalho de paleontólogo”: escavar na terra em busca de provas daquilo que muitas vezes é apenas referido. Por exemplo, lê num artigo de jornal que um artista plástico declara a intenção de fazer um filme de animação e só descansa quando encontra o filme e pode vê-lo, confirmando que o que vê é, de facto, animação. Por vezes as referências que encontra não passam de “candidatos” a filme, porque ficaram perdidas no tempo as provas da sua existência e projeções. Assim se constrói este primeiro volume de Um percurso pelo Cinema Português deAnimação que abrange os anos entre 1900 e 1929. Com a mesma metodologia, está previsto já o segundo volume, que irá de 1930 a 1949. Poderemos ainda vir a ter um terceiro volume a começar a meio do século XX. A proximidade ao tempo presente faz com que haja cada vez mais filmes e mais fontes. Neste primeiro volume, por outro lado, abundam as imagens dos poucos exemplos confirmados de animação — e também um útil e esclarecedor glossário de termos.

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