ÍNDICE
Sara Pereira
MUSEU DO FADO
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MUSEU NACIONAL DO TEATRO
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O ESPECTÁCULO MÚSICO-TEATRAL. ENSAIO EM DOIS ACTOS COM UM PRÓLOGO
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MERCEDES BLASCO: O FADO DA SUA VIDA OU “OS FADOS DA MERCEDES”
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José Carlos Alvarez
Pedro Félix
Júlia Coutinho
Manuela de Freitas
OFÍCIOS INQUIETOS
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PROJECTO MUSEOGRÁFICO
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FICHA TÉCNICA
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João Santa-Rita
Figurino “As Rameiras” (Anita Guerreiro) Revista Curvas Perigosas Teatro Maria Vitória, 1957 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Caricatura de Estevão Amarante Armando Boaventura, 1918 Colecção Museu Nacional do Teatro
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O desígnio de conhecimento integrado do universo do Fado na sua relação com outras esferas de criação artística tem norteado a programação de exposições temporárias do Museu do Fado, sustentada no contínuo diálogo entre a abordagem científica e o conhecimento da comunidade artística, primordial detentora do legado que, desde Novembro de 2011, integra a Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO). Ao estudo da representação do tema na Arte Portuguesa (Ecos do Fado na Arte Portuguesa, 2011) seguiram-se os olhares da nossa Cinematografia (O Fado e o Cinema, 2012,) e da indústria da Moda (Com Esta Voz me Visto, 2012), documentando uma complexa teia de cumplicidades onde o Fado continuamente nos identifica e remete para um espaço colectivo de emoção partilhada. Na exposição O Fado e o Teatro convocamos um outro diálogo antigo e cúmplice, sempre renovado e redescoberto, entre a canção de Lisboa e o universo teatral, ao longo do qual o Fado e as suas representações nos ajudam também a redescobrir e a compreender o nosso olhar sobre nós próprios. Conferindo ao Fado protagonismo absoluto ou integrando-o, invariavelmente, em sucessivos quadros musicais, a indústria do espectáculo teatral seria, como veremos, decisiva na promoção e desenvolvimento do universo do Fado, condicionando decisivamente os seus repertórios e impulsionando a produção fonográfica local, desde os alvores do século XX. E se num primeiro momento o Teatro converteu actores e actrizes de nomeada em fadistas (Ângela Pinto, Beatriz Costa, Mariamélia, Mercedes Blasco, Estevão Amarante, Vasco Santana, entre tantos outros) numa fase posterior fadistas como Júlia Mendes, Maria Vitória, Ercília Costa, Adelina Fernandes, Berta Cardoso, Hermínia Silva, Amália Rodrigues, Fernanda Baptista ou Anita Guerreiro transmutar-se-iam em actrizes, granjeando crescente popularidade em palco. Uma viagem pelos testemunhos que ilustram a relação entre o Fado e o Teatro – repertórios, partituras, fonogramas, trajes de cena, cartazes, fotografias - documenta bem a centralidade que a canção urbana de Lisboa ocupa na produção teatral nacional. De facto, se foi nos palcos do Teatro que teve lugar uma das mais importantes reconfigurações do repertório fadista, com o desenvolvimento do fado-canção, foi também o Teatro o grande impulsionador da gravação discográfica dos temas que granjeavam crescente popularidade nos palcos de revistas e operetas. Promovendo a nossa indústria fonográfica desde os alvores do século XX, estimulando a criação de novos textos e melodias, promovendo intérpretes, autores e compositores e instituindo um estilo de repertório específico, o Teatro convocou o Fado muito para além dos domínios da música e do texto. Também na cenografia e nos figurinos do teatro musicado encontramos plasmada a iconografia fadista que se consolida ao longo das primeiras décadas do século XX e para a qual concorre toda a indústria do espectáculo teatral. Nas diferentes caricaturas, cartazes, maquetes de cenários e figurinos que pontuam esta exposição o Fado plasma-se, inquestionavelmente, como objecto de fascínio e de inesgotável recriação plástica por diferentes gerações de artistas, no quadro de distintas disciplinas e contextos estéticos ou simbólicos. E se o Teatro foi o palco primordial de promoção do Fado, seria a partir da opereta Mouraria, em 1947, que se transmutariam definitivamente os preceitos de apresentação em cena com a introdução do negro integral, por Amália Rodrigues. Também no Teatro e com o Teatro se forjava e consolidava a identidade imagética do Fado.
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Coplas da peça A Severa Júlio Dantas, 1931 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Documentada ao longo de centenas de representações, a presença do Fado no Teatro ilustra bem a celebração colectiva do valor excepcional do Fado como símbolo identificador da cidade de Lisboa, o seu enraizamento profundo na tradição e história cultural do País, o seu tributo na afirmação da identidade cultural e a sua importância como fonte de inspiração e diálogo intercultural. Ilustrando a cúmplice e profícua parceria que se desenha nos finais do século XIX, entre a canção de Lisboa e o teatro musicado, a exposição O Fado e o Teatro resulta também ela da cumplicidade programática entre o Museu do Fado e o Museu Nacional do Teatro, o grande Arquivo, por excelência, da História das Artes do Espectáculo em Portugal. Ao seu Director, José Carlos Alvarez, deixamos o testemunho da nossa infinita gratidão. O projecto museográfico da autoria do Arquitecto João Santa-Rita deu corpo aos núcleos expositivos patentes nas duas instituições: se no Museu Nacional do Teatro propomos uma leitura diacrónica da estreita relação entre o Fado e o Teatro que pontua grande parte do século XX, no Museu do Fado consagrámos particular atenção às gravações discográficas, atestando o papel fundamental do teatro musicado na produção e promoção da nossa indústria fonográfica desde os alvores do século XX. De facto, se o teatro musicado foi a mais importante fonte de repertório gravado para publicação fonográfica na primeira metade do século XX, a importância destes registos fonográficos assume maior pertinência no quadro da implementação de um Arquivo Sonoro Digital, eixo programático do Plano de Salvaguarda apresentado à UNESCO que o Museu do Fado implementará em parceria com o Instituto de Etnomusicologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Neste contexto, queríamos deixar uma palavra de gratidão a António Tilly dos Santos e Pedro Félix, investigadores cujo trabalho técnico resgatou, para esta exposição, dezenas de temas do teatro musicado que, estamos certos, serão ainda maioritariamente desconhecidos do grande público. Esta exposição constituiu-se ainda como oportunidade para o resgate das memórias de uma figura tutelar do Teatro que foi também pioneira na internacionalização do Fado – Mercedes Blasco – percurso aqui ilustrado pela investigadora Júlia Coutinho, a quem muito agradecemos. Porque quando falamos de Fado ou de Teatro tocamos, inevitavelmente, numa dimensão necessariamente efémera e imaterial, desafiámos Manuela de Freitas a partilhar connosco algumas das suas reflexões em torno do tema, sustentadas na sua experiência riquíssima de várias décadas em ambos os palcos, do Fado e do Teatro. Este projecto tem também, para com ela, uma dívida de particular gratidão.
Sara Pereira Directora do Museu do Fado
Revista O 31 Fotografias de José Morais e Maria Vitória, 1913 Colecção Museu Nacional do Teatro Discos de 78 rpm, s/d Colecção Museu do Fado
Figurino “A Severa” do Bailado O Fado (detalhe) Estrela Faria, 1961 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Palmira Bastos S/d Colecção Museu Nacional do Teatro
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Fado – Cantiga ou narrativa popular, muito dolente, ordinariamente acompanhada à guitarra, e que muito agrada quando introduzida em peças populares, principalmente revistas. In Dicionário do Theatro Portuguez, Sousa Bastos, 1908
É no Teatro e com o Teatro que o fado se constitui como um domínio musical de particular destaque na memória cultural portuguesa e se vai consolidando, lentamente, enquanto produto cultural de massas. Saído do ambiente restrito dos prostíbulos, das tabernas e das ruas mal frequentadas ou (estranho paradoxo...) dos salões da aristocracia e da alta burguesia mais boémia, a sua “integração” no teatro, na segunda metade do século XIX, traz-lhe a consagração popular, institucionalizando-o do ponto de vista artístico, urbanizando-o e transformando-o, em definitivo, na canção da cidade de Lisboa e numa espécie de banda sonora permanente da sua vida e do seu quotidiano. De facto, ao explorar o imaginário e o património identitário lisboeta, o fado incorpora, na sua essência, a desgraça, os amores traídos, proibidos ou desencontrados, as amarguras e as canalhices da vida tendo, como ambiente natural, os bairros populares da cidade, como Alfama, Madragoa e Mouraria, que se transformam, também eles, em elementos recorrentes da criação poética, da dramaturgia e, sobretudo, do teatro musicado (revista e opereta) e de todos os elementos que, artisticamente, o constituem: a cenografia, os figurinos, a música e os textos. Mas é a personagem mítica da Severa, “a pobre Maria Severa Onofriana, morta humildemente na Rua do Capelão, num dia áspero de Novembro de 1846”, que, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, se transforma numa figura transversal a todas as artes, como a pintura, o cinema, a fotografia, a música, a dança e, obviamente, o teatro, convertendo-se, de “petulante rameira”, numa espécie de símbolo ou figura de culto e na personificação do próprio fado. “A peça” escreveu Júlio Dantas a propósito do seu drama A Severa “converteu-se em novela, como, no andar do tempo, veio a converter-se em opereta, em filme (o primeiro filme sonoro feito em Portugal), em zarzuela, em ópera, em bailado, em pintura, em escultura de arte, e até (com lamentável mau gosto!) em quadro de revista do ano, sem contar, bem entendido, as imitações, decalques, paródias e apropriações, melhor ou pior disfarçadas, de que o autor no decurso da sua vida literária tem sido vítima”. Até Palmira Bastos, que recusava com grande frequência papéis de mulheres de vida fácil ou de baixa condição social, encarnou o papel de Severa, a quem chamou “a Dama das Camélias da Mouraria”, cuja única ligação, para além das grandes paixões masculinas que despertaram, foi a trágica e precoce morte por tuberculose. A primeira vez que o fado surge nos palcos dos nossos teatros terá sido, segundo Rui Vieira Nery, em 1869, no Teatro da Trindade, com a comédia “Ditoso Fado”, sendo também a primeira vez que um actor, no caso o grande Taborda, cantava, em cena, algumas quadras em jeito de fado, acompanhado ao vivo por uma guitarra, deixando o público praticamente em delírio. Ora, o actor Taborda iniciava aqui uma nova forma de intervenção artística que se iria tornar num hábito ou numa tradição no teatro musicado português, que perdurará praticamente até aos dias de hoje: os actores de opereta e, sobretudo, os de revista (que são muitas vezes os mesmos e que, a grande maioria deles, passa por todos os géneros teatrais e também pelo cinema) cantarem fado, quando em cena. Curiosamente, muitos destes actores e actrizes, que se transfiguram, apenas momentaneamente, em fadistas improváveis, foram os primeiros intérpretes de grandes sucessos, que ainda hoje fazem parte do nosso imaginário musical
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Guitarra de Portugal 10 de Novembro de 1929 Colecção Museu do Fado
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colectivo e que, para além de necessariamente integrarem qualquer antologia ou História do Fado, continuam a ser cantados e gravados, com versões mais ou menos próximas do original, por fadistas contemporâneos. É no teatro de revista que esta transmutação ou metamorfose dos actores e actrizes em fadistas, numa primeira fase e, depois, das próprias fadistas (ou cantadeiras) em actrizes, atinge a sua maior dimensão. Destacam-se, entre muitos e muitos outros, no primeiro grupo, Ângela Pinto, Beatriz Costa, Ilda Stichini, Mariamélia, Justina de Magalhães, Estevão Amarante, Carlos Santos, Vasco Santana ou José Viana e, no segundo grupo, Júlia Mendes, a cantadeira Maria Vitória (curiosamente nascida em Málaga e também precocemente vitima da tuberculose, como Severa), que imortalizou o “Fado do 31” da célebre revista “O 31”, Ercília Costa, conhecida como a “Santa do Fado”, Zulmira Miranda, Maria Albertina, Adelina Fernandes, que em 1920, na revista “Burro em Pé” cantava que “é o teatro que expande/ e dá vida ao velho fado”, Hermínia Silva, Berta Cardoso, Fernanda Baptista, Beatriz da Conceição, Anita Guerreiro, o fadista Carlos Ramos e, claro, Amália. E é precisamente no teatro, na opereta “Mouraria”, em 1947, que Amália irá aparecer vestida de negro pela primeira vez, cor que transformará num dos seus símbolos preferidos e que, rapidamente, será assumida, pela grande maioria das fadistas suas contemporâneas, como uma espécie de tonalidade ou estilo obrigatório naquele momento quase catártico e tão solitário que é o cantar um fado. Mas o fado surge também, no teatro, como uma reacção aos estilos modernos e estrangeirados que invadiam e contaminavam os palcos dessa época, como o shimmy, o fox-trot, o maxixe, o charleston, o tango ou one-step. Como ambiguamente diz a velha sabedoria popular, “se não conseguires derrotá-los, junta-te a eles”, seguindo essa máxima, nas décadas de 20 e 30 do século XX, tempos de mudança e de modernidade, o fado surge também nos teatros lisboetas com uma nova roupagem ou numa espécie de fusão avant-la -lettre: o fado-fox, o fado-rumba, o fado-samba, o fado-slow ou, até, já nos anos 60, como um espécie de retorno fora de tempo, o pop-fado. Surgiram, até, revistas com o título “Jazz- Band”, em 1925, “Fox-Trot, em 1926 e “Fado e Maxixe”, em 1910, tentando “tocar” nas duas formas musicais em simultâneo, para agradar ao público português e ao brasileiro (o maxixe era um estilo originário do Brasil), tendo em conta as constantes digressões das companhias de teatro portuguesas àquele país. Mas, em 1922, na revista “Fado Corrido”, em cena nos Teatros Maria Vitória e São Luiz, tentava-se correr de vez com essa espécie de “canções bolchevistas”, cantando-se “Fora!Fora!Fora!/ Contra esses franchinotes/ que te querem destronar/ shimmys, tangos e fox-trots/ vêm as cordas protestar!”. O fado assumia-se então nos palcos dos nossos teatros, em definitivo, como a canção nacional. Até ao final do século XX, mesmo com o lento e penoso estertor do teatro de revista e com o encerramento ou destruição dos teatros que a ele se dedicavam quase em exclusivo, o fado tornou-se presença obrigatória em todos os espectáculos daquele género teatral levados à cena em Lisboa, no Porto, em muitas cidades da província e, até, nas digressões a África que, sobretudo nos anos 50 e 60 daquele século, se tornaram frequentes. Tal situação levou a que praticamente todos os fadistas de maior popularidade e sucesso junto do público fizessem do teatro uma parte importante das suas carreiras artísticas, mantendo-se também a velha tradição de muitos actores e actrizes participantes em espectáculos de revista se apresentarem como fadistas intermitentes. Ainda hoje, no único e último teatro lisboeta onde o teatro de revista estoicamente resiste, o fado por lá continua, quase arqueologicamente, a ser levado à cena, apesar da grande dimensão universal que, nas últimas décadas, atingiu, desde Amália até à recente classificação pela UNESCO, sem esquecer as notáveis carreiras nacionais e internacionais de muitos fadistas da chamada “nova geração”. É desta longa, rara e muito profícua parceria artística que trata a exposição “O Fado e o Teatro”, que nasceu a partir da conjugação do enorme e valiosíssimo acervo do Museu Nacional do Teatro neste domínio com a excepcional dinâmica e notável capacidade de programação do Museu do Fado, no âmbito da declaração do Fado como Património da
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Mariamélia, A Senhora da Saúde Disco de 78rpm S/d Colecção Nuno Siqueira
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Humanidade. Apresentando-a nestes dois museus, esta exposição nasce também duma parceria museográfica (e também artística, contando com a colaboração e o desenho de exposição do Arq. João Santa-Rita), não podendo deixar de destacar a grande colaboração, disponibilidade e apoio por parte do Museu do Fado, na pessoa da sua directora Dra. Sara Pereira. Assim, a exposição “ O Fado e o Teatro”, pretende evocar uma parte da vastíssima História desta profunda ligação entre o fado e o teatro, através dos mais diversos materiais e documentos, como trajos de cena, figurinos, maquetas e caricaturas originais, fotografias, publicações, manuscritos e objectos pessoais, que representam o património comum e a herança destas duas artes, efémeras e imateriais na sua natureza, mas vivas e cada vez mais presentes na memória e no coração de todos nós. José Carlos Alvarez Director do Museu Nacional do Teatro
Opereta A Rosa Cantadeira Figurino “Rosa de Alfama (Amália Rodrigues e Conjunto)” (detalhe) Jorge Barradas, 1944 Coplas da Opereta Colecção Museu Nacional do Teatro
Caricatura de Adelina Fernandes como “Embaixatriz do Fado” (detalhe) Amarelhe, 1927 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Severa Júlio de Sousa e Costa, 1936 Colecção Nuno Siqueira
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O ESPECTÁCULO MÚSICO-TEATRAL ENSAIO EM DOIS ACTOS COM UM PRÓLOGO “É o teatro que expande E dá vida ao velho fado. Era pequeno e hoje é grande, Era malvisto e hoje é amado. Deixe de ouvir-se na sala Ou na rua, isso é questão. Hajam palcos pra cantá-la, Que é eterna a canção. É a luz da gambiarra, Que a guitarra É mais bizarra E que tem mais magia. Inda hoje no tablado É o fado, Soluçando, A mais doce melodia. Triste voz da Júlia Mendes Inda prendes E reacendes Mil saudades imortais. Voz da Maria Vitória, Teve glória, Transitória, Mas não esquece nunca mais. Saudemos todos o fado Que é a canção nacional E foi nascido e criado, ai! Em terras de Portugal” (“Fado dos Teatros”, da revista Burro em Pé1)
Prólogo A relação entre música e teatro é tão variada e múltipla que qualquer abordagem pecará por ser redutora. Da boémia em que se cruzam cantadores, actores e autores teatrais à formação de uma indústria do espectáculo que envolve avultados investimentos; de operetas que invocam toda a mitologia fadista às apresentações caóticas de cegadas por altura do Carnaval em que têm lugar momentos de improvisação de fados à desgarrada; muitos são os elos que ligam a “música” ao “teatro”, tal como ligam o “fado” ao “teatro”. De todos esses possíveis caminhos, são objecto deste texto as formas teatrais que envolvem o repertório fadista e os seus intérpretes, com especial enfoque no teatro de revista e na opereta. 1 - Revista estreada no Teatro Apolo em 1920, aut. Lino Ferreira e Xavier de Magalhães, música de Luz Júnior e Vasco Macedo.
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Figurino “Fadistas Internacionais (Nancy, Simone, Zula)” Revista Pernas à Vela Pinto de Campos, 1958 Colecção Museu Nacional do Teatro
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A proposta que aqui se apresenta é a de que se tome a relação entre “fado” e o “teatro” na perspectiva de uma “indústria do espectáculo” na qual participa toda uma série de especialistas de diferentes áreas: músicos, compositores, autores do texto teatral, actores, cantores, bailarinos, encenadores, cenógrafos, coreógrafos, figurinistas e aderecistas, empresários e agentes, técnicos de palco, técnicos de som, técnicos de luz, e envolve companhias, redes de palcos, publicações, fonogramas, etc. O facto de se ter afirmado como indústria foi determinante para o desenvolvimento de ambos os universos (do “fado” e do “espectáculo músico-teatral”). O “espectáculo músico-teatral” é um tipo de espectáculo cénico com uma forte componente musical que se propõe entreter o público através da apresentação de uma narrativa ou sequência de cenas mais ou menos articuladas em que intervêm personagens tipológicas em situações-tipo. A temática (a apresentação crítica dos factos do momento e os costumes da época com uma intenção ao mesmo tempo moral e de entretenimento) é abordada de forma essencialmente paródica e romântica, sendo transmitida através de texto representado e do canto. Este tipo de espectáculo pode recorrer, e muitas vezes o faz, a coreografias e outros recursos técnicos como projecções de imagens ou filmes. Mas é precisamente a centralidade, diria mesmo a completa integração, dos elementos musicais no desenvolvimento da narrativa e construção dos personagens que distingue este género teatral de outras formas de performação. O desenvolvimento deste “espectáculo músico-teatral” não-erudito teve lugar na segunda metade do século XIX um pouco por toda a Europa, com especial destaque para a França de onde foi importado para Portugal2. O contexto de industrialização dos países ocidentais, o desenvolvimento das cidades e de grupos sócio-profissionais administrativos, e até a instalação de iluminação nocturna nas principais cidades, tudo contribuiu para a formação de um público cosmopolita com condições para terem acesso a um tipo de espectáculo moderno afirmando-se desse modo uma indústria do entretenimento. Na primeira metade do século XX, o espectáculo músico-teatral era a forma mais corrente de divertimento público. Nesse período, a crescente circulação internacional de profissionais (por exemplo, a digressão de companhias pelo estrangeiro), repertórios e de informação sobre os “sucessos dos palcos” (em publicações genéricas ou especializadas no “negócio” do espectáculo), graças ao progresso tecnológico no que respeita aos meios de comunicação, contribuiu para a difusão internacional deste género, com a partilha de padrões estéticos e técnicos. Rapidamente os profissionais (autores, compositores e actores) envolvidos nesta indústria do espectáculo granjearam visibilidade e reconhecimento público que se tornava elemento de atracção para o público que frequentava os teatros. Os teatros assumiram neste processo uma centralidade própria de uma das poucas instituições que asseguravam esse serviço de ocupação dos tempos livres, hegemonia que só seria alterada já em pleno século XX com a difusão do cinema e da televisão, posteriores concorrentes na disputa de público numa economia do entretenimento. Os teatros eram espaços tecnicamente específicos, acessíveis através do pagamento de uma entrada, que providenciavam espectáculos destinados à crescente população urbana. Estes teatros
2 - No século XIX, na Europa, não só estavam instituídas formas de divertimento público como até se pode falar de uma indústria como o demonstram Rosselli 1984, Talbot 2002 e Clixon e Clixon 2006 no caso da Ópera italiana. No entanto, a assistência deste tipo de espectáculos estava circunscrita a determinados círculos sociais, não se podendo falar de uma indústria popularizada, até porque ainda era incipiente a formação de um espaço público burguês que, esse sim, estará na génese da indústria de entretenimento que aqui se explora.
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“Fado da Rusga” da Opereta Mouraria Partitura, s/d Colecção Nuno Siqueira
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estavam sob exploração de empresários que por sua vez contratavam companhias que ficavam responsáveis pela programação das temporadas divididas em duas épocas, a de Inverno, normalmente dedicada a teatro declamado e comédias; e a de Verão, normalmente ocupada com Revistas, Operetas, Zarzuelas, e espectáculos de Vaudeville. Trabalhavam ininterruptamente, afirmando-se, desde cedo, como uma indústria. Ao longo do séc. XX o desenvolvimento deste espectáculo ficou marcado pela acção de empresários como Florenz Ziegfeld ou os irmãos Schubert, promotores como Charles Morton, o agente William Morris, os compositores George e Ira Gerschwin, Irving Berlin e Cole Porter, as parcerias de autores como Gilbert e Sullivan e Rodgers e Hart, ou os autores Oscar Hammerstein II, Nöel Coward, até ao mais recentemente Stephen Sondheim, os coreógrafos George Abbott ou Agnés de Mille, os intérpretes Fred Astaire, ou redes de salas como o West End londrino, a Broadway nova-iorquina, os espectáculos Mikado (1885), Ziegfield Follies (1907 - 1931), Oklahoma! (1943), My Fair Lady (1956), West Side Story (1957), Música no Coração (1965), canções como “Fascinating Rhythm” (1924) ou “Tea for Two” (1925) (ver Sanjek e Sanjek 1991). Todos estes exemplos, de entre tantos outros possíveis, constituem-se hoje como elementos transversais que servem de base a este tipo de diversão eminentemente urbano. Na segunda metade do século XX, o espectáculo músico-teatral persistiu internacionalmente como elemento de atracção de público (em certos contextos promovido até como atracção turística internacional) e como fundamental indústria que se estende aos mais diversos campos: companhias teatrais e sua digressão, redes de salas de espectáculos, registo audio e vídeo do espectáculo e sua comercialização, tecnologia de som e luz… apresentando produções cada vez mais complexas e tecnicamente exigentes que tantas vezes são apelidadas de “mega-musicais” (Burston 1998) de que são bons exemplos os espectáculos Les Misérables de Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil ou o Cats de Andrew Lloyd Weber. 1º Acto Ao longo das suas primeiras sete décadas (1850 - 1920), o “teatro musicado”, enquanto forma profissionalizada de entretenimento, foi o principal empregador de compositores, músicos, cantores, coreógrafos, bailarinos, arranjadores e directores musicais, bem como de escritores, actores, encenadores e promotores, agentes e empresários. Indirectamente, o desenvolvimento desta indústria afectou outros domínios de actividade como a publicação de partituras e de fonogramas. Em todos estes domínios de actividade foi possível (para não dizer necessário) estabelecer um sistema de produção industrial (em grande escala e contínuo), assente na produção de repertório, montagem de espectáculos e comercialização de produtos subsidiários do espectáculo (partituras, fonogramas, publicações periódicas, etc.). Localmente, a segunda metade do século XIX correspondeu a um período de grande mudança sócio-cultural que o título de uma revista sintetiza na perfeição, a controvérsia entre o Fossilismo e Progresso (1856, aut. Manuel Roussado, estreado no Teatro do Gymnásio), ou seja, entre o conservadorismo nostálgico e o apelo da modernização industrialista no desejo pronunciado pelos intelectuais da época de “ligar Portugal com o movimento moderno”3. Neste contexto ideológico, na lenta conversão do país numa economia industrial, num esforço de modernização das estruturas e meios de comunicação (rodoviárias, 3 - Expressão-síntese surgida no manifesto publicado no jornal A Revolução de Setembro, assinado por, entre outros Adolfo Coelho, Antero de Quental, Eça de Queiroz, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins e Teófilo Braga e que viria a ser a base ideológica das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense.
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Caricatura de Virgínia Soler Revista Coração de Alfama Amarelhe, 1935 Colecção Museu Nacional do Teatro
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ferroviárias, comunicações), foi-se desenhando o embrião de um espaço público de uma classe letrada e progressivamente politizada que se confrontava com um círculo político dominado pela corrupção, pelo caciquismo, e um regime decadente - situação que tinha ficado gritantemente patente na quase-capitulação do país no processo que ficou conhecido por “mapa cor-de-rosa” - suportado por uma ideologia conservadora ultramontana. Esse espaço público foi terreno fértil para que germinasse um movimento de ruptura com o status quo, um movimento genericamente republicano mas que incorporava todos o tipo de nuances (libertário, anarquista, sindicalista, socialista, revolucionário, carbonário, etc.) que mobilizava a pequena burguesia urbana e letrada de funcionários administrativos e comerciais e que progressivamente se iria alastrar ao operariado urbano que crescia em número (e entre o qual as matizes socialistas e anarco-sindicalistas obtinham maior apoio). Na segunda metade do século XIX, greves, folhas volantes, panfletos, jornais, associações, crise financeira, legislação restritiva das liberdades individuais e cívicas, economia debilitada e finanças do Estado desequilibradas, a par da chegada às cidades de uma população iletrada e pouco preparada para uma economia industrial, criaram o clima perfeito para se proceder ao corte radical com o regime político estabelecido. Este processo culminou em 1910 com a instauração da República. Os palcos foram a caixa de ressonância de toda esta convulsão. Nos palcos propagandeavam-se as novas ideologias em momentos de entretenimento. Companhias privadas apresentavam espectáculos tão divertidos quanto críticos da situação (Vaudevilles, Revistas, Operetas, Óperas-cómicas). Contrastando com esta produção, o teatro instituído, declamado, persistia na apresentação de um repertório conservador e hiper-romântico (Rebello 2010) acantonado nos teatros D. Amélia/ República/ S. Luiz/ D. Maria II/ Almeida Garrett. Durante este período foram estreadas mais de 250 Revistas. A versatilidade das companhias e o afã industrioso de empresários teatrais e autores promovia uma muito rápida adequação da sua produção às rápidas movimentações sociais e políticas vividas pela sociedade em convulsão. Essa versatilidade foi fundamental para que este tipo de espectáculo fosse especialmente atractivo pela sua acutilância, comicidade e actualidade, tudo características que as sucessivas vagas censórias procurariam suprimir. Até 1910, o movimento republicano ganhava crescente influência entre uma crescente classe média (urbana e letrada) ansiosa pela modernização tecnológica. Ao mesmo tempo, uma crescente mobilização social, tantas vezes ao nível do bairro, em torno de todo o tipo de associações (bandas filarmónicas, sociedades mutualistas, escolas públicas, universidades populares, cozinhas económicas, centros socialistas, centros espíritas) reforçava um tecido social denso por onde circulavam estes ideais com grande rapidez. Quase todo o repertório levado à cena reflectia o contexto. Às revistas pioneiras Fossilismo e Progresso (referenciada mais acima), Os Melhoramentos Materiais (1860, aut. “Um Curioso Observador”, pseudónimo de Andrade Ferreira), e Viagem à Roda da Parvónia (1879, aut. “Gil Vaz” pseudónimo da dupla de autores Guerra Junqueiro e Guilherme de Azevedo, estreada no Teatro do Ginásio), seguiram-se, com clara atenção à situação política, as revistas Um Rei Pequeno (1882, aut. Júlio Rocha, estreado no Teatro dos Recreios), À Roda da Política (1883, aut. Júlio Rocha, música de Rio de Carvalho, estreado no Teatro de D. Fernando), O Reino de Pantana (1886, aut. Francisco Jacobetty e Anselmo Xavier, estreado no Teatro dos Recreios), O Século XIX (1893, aut. Baptista Dinis, estreado no Teatro do Rato), A Tourada (1894, aut. Marcelino Mesquita e Gualdino Gomes, música de Círiaco de Cardoso, estreada no Teatro Avenida), O Reino da Bolha (1897, aut. Eduardo Schawlbach, música de Freitas Gazul e Tomás del Negro, estreado no Teatro Novo da Rua dos Condes), A Paródia (1899, aut. Baptista Dinis, música de Rio de Carvalho Júnior, estreada no Teatro do Príncipe Real), O Barril de Lixo (1900, aut. Eduardo Schawlbach, música de Filipe Duarte, estreado no Teatro dos Condes), Sombra do Rei (“mágica” 1900, aut. Francisco Jacobetty, música de Rio de Carvalho, estreado no teatro do Príncipe Real), Ó da Guarda (1907, aut. “Luís de Aquino” pseudónimo de Luís Galhardo e Barbosa Júnior, música de
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Cartaz da Revista O 31 Amarelhe, 1913 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Filipe Duarte e Carlos Calderon, estreado no Teatro do Príncipe Real), Garotices & C.ª (1908, aut. Artur Arriegas, música de Hugo Vidal, estreado no teatro Chalet Avenida), ABC (1909, aut. Ernesto Rodrigues e Acácio de Paiva, música de Tomas del Negro e Carlos Calderón, estreado no Teatro Avenida), Sem Rei Nem Roque (1909, aut. João Bastos e Xavier da Silva, música de Dias da Costa e Manuel Canhão, estreada no Teatro Moderno), ou À Brocha (1909, aut. Nazareth Chagas e Rogério Machado, música de Alfredo Mota estreado no Teatro do Chalet). Todas escarneciam da situação do país e a decadência ridícula do regime, criticavam os governos ditatoriais como o de João Franco e apelavam a uma adesão aos ideais socialistas e republicanos que propagandeavam. Em cena em 1910, a Revista ABC (já referenciada) rapidamente foi actualizada nos dias que se seguiram à revolução de 5 de Outubro, e subsequente mudança de regime, integrando dois novos quadros: “O Último Duelo” e “Glória à República”. É certo que o novo regime e os sucessivos governos procuraram uma modernização legislativa do país com a laicização do Estado, a remodelação do sistema de ensino, mas quase imediatamente se assistiu a sanguíneas cisões partidárias que provocavam uma sucessão de governos (12 entre 1910 e 1917), mais greves, atentados, sublevações, numa palavra, tensão. Se o contexto dos governos da primeira república não parecia contribuir para a afirmação de uma estabilidade política, a entrada do país na Iª Guerra Mundial só trouxe um agravamento mais intenso, rápido e radical da já difícil situação económica, financeira, política e social do jovem regime. Mais uma vez, o teatro de revista iria dar conta desse estado de convulsão social com uma incessante produção de revistas, operetas, óperas-cómicas, comédias musicadas, vaudeville, zarzuelas, mágicas, e fantasias, num total de mais de 250 espectáculos de que podem ser ilustrativos exemplos as revistas: Agulha em Palheiro (1911, aut. Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e “Marçal Vaz” pseudónimo de Lino Ferreira, música de Filipe Duarte e Carlos Calderón, estreada no Teatro Apolo), Peço a Palavra (1911, aut. João Bastos e Álvaro Cabral, música de Tomás del Negro e Alves Coelho, estreada no Teatro Variedades), Alerta! (1913, aut. “Luís d’Aquino”L pseudónimo de Luís Galhardo, Alberto Barbosa, Barbosa Júnior, música de Alves Coelho, Carlos Calderón e Tomás del Negro, estreada no Teatro Avenida), A Ferro e Fogo (1914, aut. Arnaldo Leite, Carvalho Barbosa, música de Manuel de Figueiredo, estreada no Teatro S. João no Porto), Paz e União (1914, aut. Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes, João Bastos, música de Filipe Duarte e Alves Coelho, estreada no Teatro Apolo). Na conturbada 1ª República, algumas revistas alcançaram um sucesso que transcendeu o período afirmando-se como pedras basilares na identidade do género (as revistas O 31, 1913, aut. Alberto Barbosa, Luiz D’Aquino pseudónimo de Luís Galhardo e Pereira Coelho, música de Alves Coelho e Tomás del Negro, estreada no Teatro Avenida; Dominó, 1915, aut. Alberto Barbosa, Pereira Coelho, e Gustavo de Matos Sequeira, música de Tomás del Negro e Carlos Calderón, estreada no Eden Teatro; A Rosa Tirana, 1915, aut. Lino Ferreira, Artur Rocha, Henrique Roldão e Álvaro Santos, música de Carlos Calderón e Vasco De Macedo, estreada no Teatro Apolo; Torre de Babel, 1917, aut. Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, música de Tomás del Negro e Bernardo Ferreira, Teatro Apolo). No entanto, a actividade dos especialistas mobilizados na produção contínua de repertório para alimentar os palcos das principais cidades do país nunca alcançou um nível tal de estruturação que permitisse falar de uma gestão estratégica de recursos, sujeita a uma razão técnica e uma lógica industrial segundo modelos comerciais. Exactamente o que não acontecia internacionalmente, em particular nos Estados Unidos da América. Nos EUA, o modelo dominante que se associa a este período ficou conhecido por Tin Pan Alley, que nos primeiros anos do século XX são um exemplo da articulação entre a indústria de repertório (composição), de espectáculos, fonográfica, de broadcast, dos direitos de autor, de publicação e reprodução mecânica. Nos Estados Unidos da América era precisamente o “espectáculo músico-teatral” que movimentava companhias de produção de repertório, editores de partituras, e companhias de publicação de fonogramas.As companhias de produção
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Joaquim Ramos e Virgínia Aço, Fado da Taberna Dina Tereza, Canção da Severa Discos de 78rpm, s/d Colecção Museu do Fado
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de repertório4 congregavam dezenas de compositores, autores de letras, que escoavam a sua produção nas redes de salas de espectáculos5. Os palcos serviam de expositores de excelência para compositores e letristas. Fulcral neste processo era a figura do “song plugger”, um agente que apresentava o novo repertório aos actores de teatro, escritores teatrais e empresários, procurando a inclusão do repertório num espectáculo. O sucesso de uma canção nos palcos levava à sua exploração em outros canais como as partituras e os fonogramas6. A popularidade de determinados actores e determinadas peças, era fundamental para que o fonograma ou a partitura com o repertório extraído também triunfassem comercialmente. Todo o modelo estava sustentado na intensa articulação de compositores, autores de letras, empresários, editores de música, promotores (de espectáculos essencialmente de vaudeville nos Estados Unidos, Opereta, café-concerto e revista na Europa), e companhias fonográficas. Muito desse repertório afirmou-se como sucessos persistentes, fosse “Everybody’s Doin’It” de Irving Berlin, fosse o “Fado do 31”. Este modo de actuação explica o predomínio do repertório de teatro entre aquele que era gravado nos primeiros 30 anos do século XX, internacionalmente e localmente. Em Portugal, ainda que sem um modelo de negócio tão estruturado como o americano, o apogeu desta indústria do espectáculo foi a abertura, em 1922, do recinto Parque Mayer onde, por iniciativa do empresário teatral (e autor sob pseudónimo) Luís Galhardo e da empresa Sociedade Avenida Parque7, se pretendeu criar um aglomerado de espaços de diversão, à imagem das feiras de Verão. Nesse local foram instalados restaurantes, cafés, esplanadas, tendas de jogos, cinemas, recintos para desportos de combate e, principalmente teatros (Teatro Maria Vitória, inaugurado em 1922 com a revista Lua Nova8, Teatro Variedades em 1926 com a revista Pó de
4 - T. B. Harms (fundada em 1875), M. Witmark & Company (1886), Leo Feist Music Publishing Company (1895), Shapiro, Bernstein e Von Tilzer (1900), Jerome M. Remick & Company (1902). 5 - A dimensão dessa rede era tal que se instituíram duas organizações que tutelavam este mercado, a Vaudeville Managers Association dos empresários Keith e Albee, e o Orpheum Circuit de Martin Beck. A united Booking Office, empresa subsidiária da Vaudeville Managers Association agenciava artistas colocando-os nas companhias que exploravam os teatros (ver Sanjek e Sanjek 1991: 8-10). Este modelo manteve-se em intensa actividade até ao advento do cinema sonoro e dos grandes estúdios que comprariam estas companhias como forma de controlo (e obtenção de lucro) destes fornecedores. 6 - Quando uma canção revelava ter impacte público nas representações de uma revista de sucesso ou na voz de um actor famoso, essas associações passavam a constar na capa da partitura do repertório e na própria etiqueta do fonograma. A indicação gráfica do intérprete que havia popularizado a canção contribuiu para o reforço do cantor como figura dominante de entre todos os que intervinham na criação daquele repertório. Ao contrário do repertório erudito da Ópera em que o artista era, logo à partida, o principal motivo para a eventual aquisição do fonograma, com os cantores de repertório não-erudito, dada a prevalência do repertório sobre quem o interpretava, só aqueles que triunfavam nos palcos adquiriam o estatuto de “estrelas”. 7 - Esta sociedade era composta por, entre outros e além de Luís Galhardo, os empresários Elias Azacot, Carlos Borges, Hipácio de Brion e Alberto Pinto Gouveia. Hoje, Artur Gouveia, bisneto de Alberto Pinto Gouveia permanece ligado à sociedade Avenida Parque, SA. 8 - Aut. Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes, João Bastos e Henrique Roldão, música de Alves Coelho.
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Caricatura de Mariamélia Amarelhe, s/d Colecção Museu Nacional do Teatro
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Arroz9, Teatro Capitólio em 1931 com a opereta Fantasmas de Carne e Osso10 e, já em 1956, o teatro ABC com a revista Haja Saúde11). No Parque Mayer ainda funcionou o Teatro Recreio (inaugurado em 1937 com a Revista Faça Sol, autoria de Álvaro Mendes e Eduardo Mota, música de Frederico Valério e Vasco de Macedo, para ser encerrado em 1940 para dar lugar a um recinto de boxe). Entre 1922 e 2002 contabilizam-se em 304 as Revistas aí apresentadas dando trabalho aos mais diversos (e numerosos) especialistas entre empresários, agentes, cenógrafos, aderecistas, actores, músicos, compositores, escritores, coreógrafos, bailarinos, técnicos de cena. Em muitos destes espaços do Parque Mayer era recorrente a apresentação de intérpretes ligados ao fado, fossem integrados em Revistas, seja como atracções em esplanadas e restaurantes, de Armandinho, Alfredo “Marceneiro”, Hermínia Silva, Joaquim Campos, Mariema, Maria José da Guia, até aos mais recentes Marina Mota, Anita Guerreiro, entre tantos outros. Hoje, esta forma de entretenimento terá perdido o impacto que antes teve. São várias as razões apontadas para o esgotamento deste modelo. Francisco Rebello identifica a crescente acção da censura e a reprodução sistemática de modelos de encenação. Mas não se pode deixar de considerar o surgimento de outras formas de diversão (em recintos públicos, como o cinema, ou no espaço doméstico, como a rádio, o disco e a televisão) que contribuíram para uma imagem passadista deste tipo de espectáculos.
Estruturalmente, os espectáculos passíveis de serem definidos como músico-teatrais variam significativamente na sua forma. É por isso fundamental estabelecer as suas principais tipologias. Comum aos diferentes tipos, a presença central da música, seja na forma de números isolados (canções, coreografias), ou como suporte musical ao longo de todo o espectáculo, sempre com uma função dramatúrgica. A utilização destas tipologias, seja à época da produção teatral por parte dos intervenientes, seja nas análises desse repertório feitas a posteriori por investigadores, tem sido por vezes pouco clara conduzindo a uma certa indefinição tipológica dos sub-géneros do espectáculo músico-teatral. No entanto, alguns tipos parecem estar claramente definidos: a zarzuela, o vaudeville, a revista, a opereta, as mágicas, as fantasias, as farsas, as extravagâncias… Por vezes essa indefinição resulta de nuances contextuais e até de questões de tradução dos textos e importação de modelos de que é bom exemplo a proximidade estrutural do vaudeville anglo-americano, a revista portuguesa, a mágica brasileira, as variedades francesas, as operetas europeias e os musicais americanos.
9 - Aut. José Galhardo, Alberto Barbosa, XAvier de Magalhães, Lourenço Rodrigues e Vasco Santana, música de Raul Portela e Tomas del Negro. 10 - Aut. Penha Coutinho e Alfredo Mântua. Pouco se sabe desta opereta produzida pela empresa Operetas Portuguesas e Cinema Sonoro, “uma companhia que se destinava a apresentar operetas em 1 acto, em complemento à exibição de cinema no Teatro Capitólio de Lisboa. Segundo O Século, era uma tentativa «a exemplo do que se faz no estrangeiro», para atenuar a crise teatral. O primeiro e único espectáculo foi com uma opereta de «costumes alentejanos» com o insólito título Fantasmas em carne e osso. [...] Os filmes apresentados [foram] Sombras brancas e El-rei se diverte, ambos musicais.” (Barroca 2008: 132). Relativamente a esta sala de espectáculos é de referir que foi criada com uma intenção clara de modernidade, patente na arquitectura, na engenharia e em pequenos detalhes decorativos como a instalação das primeiras escadas rolantes em Lisboa. No local onde foi instalado, exista a Esplanada Egípcia. 11 - Aut. Carlos Lopes e Frederico de Brito, música de João de Vasconcelos e Ferrer Trindade. Nesta revista participou a fadista Maria José da Guia. Este teatro instalou-se onde antes funcionavam os cafés e esplanadas Alhambra, Casablanca, Galo de Ouro e Pavilhão Português.
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Ercília Costa no quadro “Fadistas” da Revista Boca do Inferno Teatro Apolo, 1937 Colecção Museu do Fado
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A utilização de música em representações teatrais não se esgota no domínio profissional. Um bom exemplo da ligação próxima do teatro e do fado é precisamente um género teatral amador e informal (ainda que por vezes organizado no âmbito de uma associação ou colectividade) conhecido por “cegada”. Nesses eventos de rua, por altura do carnaval, personagens estereotipadas (o “Zé Povinho”, o político, a sopeira, a noiva, a velha, o bêbado, o galego, muitos dos papéis desempenhados por actores travestidos para reforço cómico), representadas por indivíduos mascarados, interpretavam um texto humorístico em verso, com um enredo elementar, que podia ser total ou parcialmente cantado. O carácter caótico dessas representações deixava bastante espaço para a improvisação o que era bastante valorizado pela assistência, ainda que por vezes o texto representado não só estivesse escrito como podia resultar de encomendas a autores especializados. Nessas apresentações havia lugar à interpretação de canções, normalmente fados. De complexidade variável (uma Cegada podia chegar mesmo a incluir dança, acrobacia, adereços e cenários mais ou menos elaborados), o grupo de actores era coordenado por um apresentador (à semelhança de um compére de Revista) que introduzia sucessivas caricaturas do quotidiano local e nacional, doméstico ou público com um propósito claramente crítico. Esse grupo era acompanhado por diversos músicos que utilizavam os instrumentos que tinham disponíveis: pífaros, violas, guitarras portuguesas, concertinas. A comunidade do fado esteve desde sempre associada a estas representações sendo conhecidos textos de poetas como Carlos Conde, Linhares Barbosa, Francisco Radamanto ou Henrique Rego, entre outros, e lembrada a participação de fadistas como Alfredo “Marceneiro”, Frutuoso França ou Carlos Ramos. A regulamentação das apresentações públicas de qualquer tipo de espectáculo e a inerente censura do texto apresentado, a crescente complexificação das representações, fez com que a Cegada caísse em desuso ao ter perdido a sua utilidade crítica. Hoje conhece-se este repertório fundamentalmente através de alguns textos de cegadas que ficaram célebres (graças ao nome do seu autor ou por terem participado num concurso), de fotografias e de relatos jornalísticos. Actualmente, fora das principais cidades, ainda são organizadas Cegadas. Já no campo da produção profissional, desde meados do século XIX, em Portugal, foram levados à cena espectáculos de vaudeville, operetas e revistas. Os vaudeville eram espectáculos especialmente procurados na viragem do século XIX para o século XX. Estes espectáculos eram compostos por uma sucessão de momentos distintos e isolados, sem relação entre si, mas combinados num mesmo momento e num mesmo espaço. Podiam suceder-se números declamados, números musicais, com animais, momentos de magia, momentos em que se apresentavam imitadores, acrobatas, atletas, celebridades, e mesmo projectados filmes. Estes espectáculos de “variedades” culminavam numa “apoteose” (também designada no contexto anglo-americano de “final extravaganza”) musical ou declamada em que toda a companhia se reunia no palco. Transversal a essa “variedade” de números tão distintos era a preocupação de que se adequassem a todo o tipo de público, não chocando a sua sensibilidade, fosse nas palavras usadas em palco, fosse em números potencialmente ameaçadores de uma certa ideia de moral da classe média urbana, propondo assim uma forma de “polite entertainment”12. Menos habituais porque específicas ao contexto lusófono, as mágicas eram outro dos sub-tipos de espectáculos neste período de viragem do século. A origem das mágicas terão sido as féerie do teatro francês na medida em que ambas se baseavam na exploração de soluções cenográficas surpreendentes, espectaculares e até mesmo fantásticas aquando da apresentação de momentos musicais (de áreas de ópera a canções popularizadas, maxixes e modinhas no Brasil, fados em Portugal), 12 - Muito semelhantes a este tipo de espectáculo, outras tipologias surgem referidas. É o caso das extravaganzas, espectáculos com grande liberdade estrutural e estilística que incluía momentos musicais,paródias, burlesco e circo. Neste caso, a espectacularidade visual era o cerne da apresentação e o principal motivo de atracção do público.
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Maria Vitória Coplas da Revista Alerta!, 1913 Colecção Museu do Fado
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danças, representação de texto declamado ou comédias, envolvendo quase sempre elementos sobrenaturais (fantasmas, monstros, fadas) a par de elementos associados ao quotidiano criando uma atmosfera onírica e ao mesmo tempo paródica da realidade circunstancial. Também aqui o final era apoteótico mas agora com uma moralidade que era extraída da narrativa. Ficaram poucos registos destes espectáculos, mas está documentada a apresentação de uma mágica intitulada Tangerinas Mágicas (1925, aut. Eduardo Garrido, Nicolino Milano, Luiz Filgueiras, apresentada no Teatro da Trindade pela Grande Companhia de Operetas, Féeries e Revistas13) e a opereta-“fantasia” Sonho Dourado (1926, aut. Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes, João Bastos, Música de Filipe Duarte, apresentado no Teatro Sá da Bandeira). Mas de entre todas as tipologias, duas surgem como mais recorrentes no contexto português: a opereta e a revista. A Opereta é um género de espectáculo músico-teatral, em tudo semelhante à Ópera, mas considerado mais “ligeiro” em termos temáticos, estruturais e musicais14. Estruturalmente estes espectáculos só tinham normalmente um acto, as temáticas e as personagens remetiam para uma realidade banal, quotidiana, “popular” que era abordada de forma “ligeira”, isto é, apresentavam um enredo em sucessivas cenas ligadas entre si pela música, marcadas pela comicidade e pitoresco das situações que se pretendiam realistas. Musicalmente, as operetas eram compostas por canções que funcionavam à semelhança das áreas de ópera, ligadas por momentos de recitação que podiam ou não ser acompanhados por música que suportava o recitativo recuperando temas melódicos associados a personagens ou situações. Era recorrente a utilização de repertório não-erudito e facilmente identificável como fado ou repertório de dança que circulava internacionalmente (fox-trot, one-step, tango). Estes espectáculos eram acompanhados por pequenos agrupamentos instrumentais ou orquestras. Este género desenvolveu-se na segunda metade do século XIX, um pouco por toda a Europa (do centro difusor parisiense, à nostálgica, virtuosa e nacionalista Volksoperetten alemã, passando pela comédia musical eduardiana inglesa para diversão familiar das “Savoy Operas” de um Gilbert e Sullivan, plenas de canções românticas e personagens cómicas que parodiavam o quotidiano)15. Portugal não foi excepção. Em 1848, quando se estreou no Teatro do Ginásio a “ópera-cómica” A Marquesa (aut. Paulo Midosi, música de António Luís Miró), dava-se início a uma presença, ao longo dos 100 anos seguintes, de operetas nos teatros lisboetas da Trindade, do Ginásio, da Rua dos Condes (ver Magalhães 2007). À óperacómica de Midosi e Miró seguiram-se obras dos compositores Ângelo Frondoni, Freitas Gazul e Augusto Machado. Todas denunciavam uma clara influência genérica do modelo francês e da obra de Offenbach em particular. A primeira tentativa programática de criar uma “opereta nacional” terá sido Intrigas no Bairro (1864, aut. Luís de Araújo, música de Monteiro de Almeida, estreada no Teatro da Rua dos Condes e reposta pelo menos mais nove vezes até 1932) cuja acção se situava num “bairro popular” ou “tradicional” de Lisboa e onde surgiam incorporadas melodias que circulavam na época. Nesta fase de introdução deste tipo de espectáculo em Portugal, o papel do empresário Francisco Palha, ligado à Sociedade Artística do Teatro do Ginásio, ao Teatro Variedades e à criação do Teatro da Trindade, foi determinante na criação de condições profissionais dos actores. 13 - Esta companhia, dirigida por António Gomes e Henrique Santana, com encenações de Augusto Pina e música da responsabilidade de Luiz Filgueiras, Nicolino Milano, Vasco Macedo e Wenceslau Pinto, produziu algumas operetas. De entre os actores que integraram o elenco desta companhia pode-se destacar Almeida Cruz, Alves da Silva, Justina de Magalhães e Raquel Barros, todos intérpretes de que se conhecem gravações. 14 - Relativamente aos musicais, a distinção entre esta tipologia e a opereta nem sempre foi clara, no entanto poderá ser uma pista a aprofundar o facto de serem utilizados elencos de actores que cantam ou de cantores que representam. 15 - Para um estudo mais detalhado da opereta a nível internacional, ver Traubner 2003 e McMillin 2006.
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Júlia Mendes Ilustração Portuguesa, 1908 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Rapidamente se tornou regular a apresentação de operetas com enredos, personagens, elementos musicais associados ao contexto local. A Opereta “nacionalizava-se”16. Podem disso ser exemplo as operetas O Burro do Sr. Alcaíde (1890, aut. Gervásio Lobato e João da Câmara, música de Cyríaco Cardoso, estreada no Teatro Avenida e reposta 11 vezes até 1941), O Solar dos Barrigas (1892, aut. João da Câmara e Gervásio Lobato, música de Cyríaco Cardoso, estreada no Teatro Novo da Rua dos Condes, e reposta 12 vezes até 1936), O Brasileiro Pancrácio (1893, aut. Sá d’Albergaria, música de Freitas Gazul, estreada no Teatro da Trindade, e reposta 5 vezes até 1937), O Chico das Pêgas (1911, aut. Eduardo Schwalbach, música de Filipe Duarte, estreada no Teatro Apolo, e reposta em 1934). Com o novo século, e o trabalho do compositor Filipe Duarte (autor da música de 15 operetas e 20 revistas entre 1902 e 1927), é possível falar de uma renovação do género, a começar na opereta fundadora A Severa (1909, aut. André Brun, música de Filipe Duarte, estreada no Teatro Avenida com Júlia Mendes no papel da protagonista, opereta reposta em 1928) baseada no texto homónimo de Júlio Dantas (1901)17. A peça teatral A Severa estreou-se com impacte no Teatro D. Amélia (actual S. Luiz) a 25 de Janeiro de 1901 com Ângela Pinto no papel de Severa e em 1909, provocado pelo sucesso que a peça havia granjeado, André Brun e Filipe Duarte criaram a opereta homónima contando no elenco os actores Júlia Mendes (no papel de Severa), Abílio Baptista (D. Ruy), Carlos Leal (O Custódia), Sophia Santos (Tia Macheta) e António Gomes (Romão Alquilador). O sucesso parece ter-se renovado pois em 1918 o mesmo texto seria motivo para Leitão de Barros projectar a realização de um filme, que só veio a concretizar em 1931 já como filme sonoro, financiado por José Rebelo, estreado mais uma vez no Teatro S. Luiz, e obtendo novo sucesso (seja pela história, seja pela inovação técnica) com 200 mil espectadores em seis meses de cartaz. A persistência desta obra fica claramente demonstrada quando se verifica que em 1990, foi produzida uma nova adaptação musical da opereta, com texto de Rosa Lobato Faria e música de Fernando Correia Martins, interpretada por Lena Coelho no papel de protagonista e estreada no Teatro Municipal Maria Matos. O impacte público deste tipo de divertimento cénico parece comprovado. O sentimentalismo melodramático, os episódios cómicos, a moralidade que apaziguava, o retrato dos usos e costumes localmente identificáveis, as personagens baseadas em tipos populares como o “fadista”, o “polícia”, o “estudante”, a “sopeira”, a “varina”, o “taberneiro”, a integração de fados e outros temas melódicos identificáveis (provenientes de um repertório tradicional rural), mas também de novas tipologias internacionais (valsa, tangos, fox-trots e one-steps), revelavam-se a combinação perfeita para o público local. Registe-se a apresentação das operetas Miss Diabo (1918, aut. Arnaldo Leite e Carvalho Barbosa, música de Manuel de Figeiredo, estreada no Teatro Politeama18, e reposta duas vezes até 1998), As Lavadeiras (1933, aut. Álvaro Santos, Lopo Lauer e Vasco Matos Sequeira, música de Vasco Macedo, estreada no Teatro Maria Vitória e reposta duas vezes até 1946), Nazaré (1941, aut. Fernando Santos, Almeida Amaral e Fernando Ávila, música de Raúl Ferrão, Raúl Portela e Fernando Carvalho, estreada no Teatro Maria Vitória), O Colete Encarnado (1941, aut. Alberto Barbosa, 16 - Tal como acontecia com a zarzuela no universo da língua castelhana, especialmente caracterizada pela muito recorrente exploração do efeito caricatural de regionalismos. A zarzuela ainda conseguiu significativa circulação em Portugal nas primeiras décadas do século XX. 17 - A conversão de peças de teatro declamado em operetas constituiu, num determinado momento, uma prática comum como no caso da opereta Rosa Enjeitada de João da Câmara por Silva Tavares com música de Vasco Macedo em 1929 e que será tratada mais à frente. 18 - Numa produção que ficou a cargo da Companhia Luísa Satanela e Estevão Amarante, empresa fundada em 1918 e extinta em 1930, após 31 espectáculos que fizeram dela uma das principais companhias activas na primeira metade do século XX.
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Caricatura de Armando Vasconcellos Amarelhe, s/d Colecção Museu Nacional do Teatro
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José Galhardo, Vasco Santana e Amadeu do Vale, música de Raul Ferrão e Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Apolo), O Zé do Telhado (1944, aut. João França, música de Jaime Mendes, estreada no Teatro Avenida), A Invasão (1945, aut. Alberto Barbosa, José Galhardo, Carlos Lopes e Luís Galhardo Filho, música de Raul Ferrão, Fernando de Carvalho e Fausto Caldeira, estreada no Teatro Maria Vitória). Mas em meados do século XX as operetas deixaram de ser produzidas nos palcos locais. Eventualmente terá sido a reposição de 1947 da opereta Mouraria, de que se falará mais à frente, com Amália Rodrigues no papel anteriormente desempenhado por Adelina Fernandes que encerrou a apresentação do género19. A complexificação estrutural e cenográfica das revistas e a já de si algo artificial separação tipológica entre a opereta e a revista, terá determinado a diluição daquele género músico-teatral no segundo. As revistas são espectáculos organizados em dois actos ao longo dos quais se sucedem quadros mais ou menos autónomos, muitas vezes - em especial até meados da década de 50 com a proposta de renovação da Empresa Teatral José Miguel Lda. - coordenados através da intervenção de um actor (ou actores), o “compére”, que, acompanhando toda a acção, comenta e introduz, ligando, cada quadro, numa alternância entre momentos cantados e representados. Nas revistas mais elaboradas, apresentam-se em cena dezenas de personagens em quadros com encenação complexa. O primeiro acto é normalmente mais longo, tendo início com um quadro de “abertura” musical e uma introdução ao tema da revista. Seguemse vários “números” representados, cómicos e caricaturais, invocando situações alusivas a factos ocorridos na altura da produção teatral ou situações do quotidiano (“quadros de rua”). Após um intervalo, num segundo acto, de mais curta duração, são apresentados mais “quadros” (representados ou musicais), sendo corrente repetirem-se determinadas canções (“reprises”). Cada acto termina com uma “apoteose”, quadro final de grande espectacularidade técnica, cénica, musical, quase sempre com todo o elenco em palco, reforçando a ideia de desenvolvimento do espectáculo no sentido de um crescendo de emotividade. Os números musicais podem, com justiça, ser considerados momentos altos destes espectáculos, seja pelo lugar que ocupam na narrativa, seja pela intervenção de vedetas (“atracções”), normalmente um cantor ou cantora reconhecido pelo público, que galvaniza a assistência. As canções interpretadas são compostas propositadamente para o espectáculo, considerando genericamente o seu tema, as personagens representadas e até os actores e/ou cantores que participam na revista. Não era raro que certas canções ultrapassassem o próprio espectáculo para o qual foram criadas, e se fixassem na memória do público, autonomizando-se como o caso do “Fado” da revista O 31 (1913, aut. Luiz d’Aquino pseud. de Luís Galhardo, Pereira Coelho e Alberto Barbosa, música de Tomás del Negro e Alves Coelho, estreada no Teatro Avenida) ou o “Zé Cacilheiro” da revista Zero Zero Zé (Ordem para pagar) (1966, aut. Paulo da Fonseca, César de Oliveira e Rogério Bracinha, música de Fernando Carvalho, Frederico Valério e Carlos Dias, estreada no Teatro Variedades). Neste tipo de espectáculo, cenários extravagantes, adereços e figurinos elaborados, coristas e actores, coreografias e atracções intervêm no sentido de comunicar um texto cómico-crítico, procurando provocar o riso através do confronto caricatural com a “realidade”. Podem ser apontadas quatro estratégias dominantes: a comicidade, directamente geradora de diversão, constitui-se como ferramenta central na concretização da crítica ideológica, política e social do quotidiano banal ou da situação política (local, regional, nacional e até internacional); a insinuação, a metáfora, o duplo sentido e o jogo de palavras, criando múltiplos níveis 19 - Uma única excepção foi a opereta Campinos, mulheres e fado, autoria de Amadeu do Vale e música de Frederico Valério, estreada sem significativo impacte em 1961 no Teatro Capitólio.
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“Arre, Burro!” da Revista Arre, Burro! Partitura, 1936 Colecção Museu do Fado
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de significação que subvertiam o sentido do texto (teatral e cantado), eram instrumentos retóricos para reforço da comicidade, e também dispositivos fundamentais para contornar a censura a que os textos estavam sujeitos, instrumentos linguísticos que reforçavam uma relação de cumplicidade comprometida entre autores, actores e público20; o erotismo, de forma mais ou menos velado, ligado ao “corpo de baile” (“coristas”) e às suas coreografias, era uma constante deste tipo de espectáculos mesmo nas alturas de maior rigor censório; o espanto criado por um fascínio impressionado face ao carácter a-normal ou extra-ordinário do espectáculo, assegurando a atenção do público e marcando de forma indelével a memória com que ficava do evento21. Em resumo, no palco assistia-se ao quotidiano risível, exagerado pela caricatura, apelativo pela sedução, tornado num mundo feérico e divertido pela técnica cenográfica. Tendo este género sido objecto de estudo (Antunes em preparação, Berjeaut 2005, Faria 1972, Rebello 1984 e 1985, Santos 1978, Saraiva 1980), é dispensável aqui detalhar a sua história. Importa, no entanto, considerar três grandes períodos nessa história: um primeiro momento de estabelecimento das suas características por emulação do modelo francês (1850 a 1900), um segundo período de grande sucesso deste tipo de divertimento (1900 a 1940, eventualmente dividido em duas fases marcadas pela instauração da censura prévia em 1927), e uma terceira fase (desde 1940) onde sucessivas ameaças de decadência do modelo deste espectáculo procuraram ser ultrapassadas por subsequentes tentativas de renovação. A montagem do espectáculo Passa Por Mim no Rossio (1991, aut. Filipe La Féria, música João Paulo Soares, Teatro Nacional D. Maria II) pode ser a irónica apoteose da “Revista à Portuguesa” ainda que hoje resista acantonada num solitário teatro do Parque Mayer. A Revista foi introduzida em Portugal em meados do século XIX, por influência do espectáculo francês “revue de l’année”, espectáculo em que se apresentavam revisões críticas dos acontecimentos do ano transacto de forma teatralizada ou cantada, representadas por personagens tipificadas e alegóricas22. O palco do Teatro do Ginásio terá sido o primeiro palco nacional a acolher uma revista23 (Lisboa no ano de 1850, 1851, aut. Francisco Palha, música de António Luís Miró), tendo logo aí adquirido algumas das características que dominariam o género: a música baseava-se em melodias populares e popularizadas, áreas de 20 - Outra estratégia de reforço da comicidade e cumplicidade entre público e actor é enunciada por Luiz Francisco Rebello “(...) e não é verdade que muitas vezes o êxito de uma revista, mais do que ao talento dos actores fica a dever-se à fantasia dos actores, que suprem não só as deficiências do texto mas até tiram partido de «estarem pouco certos dos papéis» e «não saírem a tempo»?” (1984: 57). 21 - Na revista Ó da Guarda! (1907, aut. Luiz d’Aquino pseudónimo de Luís Galhardo e Barbosa Júnior, música de Luiz Filgueiras e Filipe Duarte, estreado no Teatro do Príncipe Real), com cenografia de Augusto Pina, Eduardo Machado, Eduardo Reis (Pai) e Luís Salvador, representava-se na apoteose uma Lisboa em chamas. Nessa revista, num dos seus quadros tinha lugar a projecção de um filme, precisamente o primeiro filme com argumento realizado em Portugal O rapto de uma actriz (realização de João Freire Correia). Alguns anos volvidos, na revista Tiro ao Alvo (1922, aut. Xavier de Magalhães, Luiz d’Aquino pseud. de Luís Galhardo, Lourenço Rodrigues, música de Hugo Vidal, Tomás del Negro, Raúl Portela, estreado no Chiado Terrasse) a apoteose incluía a utilização de um avião que sobrevoava a plateia em homenagem aos mais recentes heróis nacionais Gago Coutinho e Sacadura Cabral. 22 - Por esta altura, por toda a Europa, eram levados à cena espectáculos semelhantes, mas designados de forma diferente: a inglesa extravaganza, o cabaret político e literário alemão, ou a fantasia burlesca e o café-concerto italianos. 23 - Tal como havia sido o palco em que se apresentou a primeira opereta e em que o encenador francês Emile Doux havia introduzido o espectáculo de vaudeville.
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Figurino “Marialvas” do Bailado O Fado (detalhe) Estrela Faria, 1961 Colecção Museu Nacional do Teatro
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óperas conhecidas, a par de algumas canções originais e propositadamente compostas para o espectáculo específico; o texto, cómico, crítico e caricatural, tinha por temáticas recorrentes os costumes, a actualidade política, o meio cultural e mundano, e o próprio meio teatral. Pela observação dos cartazes pode hoje perceber-se que o principal elemento de atracção seriam os actores e, secundariamente, os autores do texto. A autoria da música nem sempre era publicamente promovida. Nas primeiras décadas da revista em Portugal, e à medida que se aproximava o século XX, e depois na primeira década desse século, o debate político foi-se progressivamente tornando o assunto central (quase hegemónico) de grande parte destes espectáculos, em particular a promoção do ideário republicano que se perfilava como inevitável alternativa à decadência do regime (veja-se a revista À roda da política, 1883, aut. Júlio Rocha, música de Rio de Carvalho, estreada no Teatro D. Fernando). Uma síntese dessas temáticas políticas e ideológicas pode ser lida no texto da revista ABC (1909, aut. Acácio de Paiva e Ernesto Rodrigues, música de Tomás del Negro e Carlos Calderón, estreada no Teatro Avenida) em que se tratava dos “problemas do país”: emigração, preguiça, finanças descontroladas, analfabetismo, crise monetária e o “triste fado” que parecia dominar a sociedade da altura, tudo bandeiras dos partidários do republicanismo nas suas diferentes variantes. Entre 1900 e 1927, ano da entrada em vigor da nova lei do espectáculo e a consequente obrigatoriedade de submissão à censura dos textos publicamente representados (decreto-lei nº13564 de 6 de Maio), a revista afirmou-se como uma forma de divertimento urbano tão apreciada pelo público que a sua procura suportava o desenvolvimento de uma produção contínua, envolvendo um significativo número de especialistas, a uma escala tal que Sousa Bastos afirmava crer que um dia seria de esperar ir assistir a revistas no teatro D. Maria e no S. Carlos. Um pouco por toda a cidade, nos diversos palcos - e eram muitos -, as revistas eram apresentadas com regularidade ou até em permanência, dos palcos improvisados nas feiras de Alcântara, Belém ou do Parque Eduardo VII/ “de Agosto” (Teatros Júlia Mendes, Maestrick, Chalet, Salão 5 de Outubro; Chalet, Águia d’Ouro, Lisbonense, Camões; Chalet Avenida e Chalet Delfina Victor; respectivamente) ao Teatro República (futuro S. Luiz), Trindade, Variedades, Ginásio, da Rua dos Condes, do Príncipe Real (em 1910 renomeado Teatro Apolo), Avenida, Moderno, Paraíso de Lisboa, Teatro/ Casino Étoile, Salão Fantástico, Rossio Palace, Teatro do Rato e os recém inaugurados, Salão dos Anjos (inaugurado em 1911), Teatro do Povo (1912), o Politeama (1913), o Éden-Teatro (1914) e o Salão Foz (1914). Como foi dito antes, num curto período de tempo (pouco mais de 25 anos) foram levadas à cena mais de 250 espectáculos - só no ano de 1912 foram estreadas 40 revistas -, com alguns a permanecer longamente em cena, a ser repostos, e colocados em digressão nacional e até internacional, e que ainda hoje permanecem, de certa forma, na memória colectiva como as referidas revistas O 31 ou Capote e Lenço, ou os textos revisteiros d’ “A Parceria” (os autores Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos)24. Entre o final da Primeira Guerra Mundial e a aprovação do decreto-lei nº 13564 de 6 de Maio de 1927, assistiu-se a uma renovação da indústria do espectáculo e das formas de diversão 24 - De entre estes espectáculos, quatro peças merecem destaque pelo impacte significativo que terão tido dada a quantidade de documentação que sobre elas é possível reunir: De Capote e Lenço (1913, aut. Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, música de Filipe Duarte e Carlos Calderón, estreada no Teatro República e reposto em 1923), O 31 (1913, já referenciado), Dominó (1915, aut. Alberto Barbosa, Pereira Coutinho e Gustavo de Matos Sequeira, música de Tomás del Negro e Carlos Calderón, estreada no teatro Éden Teatro) e O Novo Mundo (1916, aut. Ernesto Rodrigues, João Bastos e Félix Bermudes, música de Alves Coelho e Wenceslau Pinto, estreado no Éden Teatro).
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“Fado do Marinheiro” da Revista Água-Pé! Partitura, 1927 Colecção Museu do Fado
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que, procurando modernizar-se, articulava jazz-bands, fox-trot, cabarets (os cabaret e clubes Majestic, Palace, Bristol, Maxim), casinos (públicos e casas de jogo ilegal), cocaína, cabelos “à garçone”, cinemas, danças modernas, serões futuristas, num renovado embate entre o atraso sistémico (ideológico e cultural) e a modernidade a que as elites aspiravam e que o dueto entre a “cocote” e o “preto do jazz-band” na revista Fado Corrido (1923, aut. Luís Galhardo, Alberto Barbosa, Xavier de Magalhães e L. Rodrigues, música de Raul Portela, estreada nos teatros Maria Vitória e São Luiz), tão bem ilustra. Dos primeiros 100 anos do espectáculo músico-teatral em Portugal ficaram na sua história intervenientes que hoje são vistos como responsáveis pelo desenvolvimento dos seus diversos géneros (Opereta, Vaudeville, Ópera-Cómica, Revista): os escritores Eduardo Schwalbach, António de Sousa Bastos, Ernesto Rodrigues, João Bastos, Félix Bermudes, Silva Tavares, Xavier de Magalhães, André Brun, Alberto Barbosa, Luís Galhardo (pseud Luiz d’Aquino), José Galhardo, Fernando Santos, Carvalho Barbosa, Almeida Amaral, Arnaldo Leite, Campos Monteiro; os compositores Ângelo Frondoni, Tomás del Negro, Freitas Gazul, Wenceslau Pinto, Filipe Duarte, Alves Coelho, Carlos Calderón, Raul Portela, Raul Ferrão, Frederico de Freitas, Rui Coelho; os actores Lucinda Simões, Adelina Abranches, Ângela Pinto, Ilda Stichini, Maria Matos, Luísa Satanela, Estevão Amarante, Alves da Cunha, Nascimento Fernandes, Chaby Pinheiro, Ferreira da Silva, António Pinheiro, Carlos Santos, Érico Braga, Palmira Bastos, Alice Pancada, Aldina de Sousa, Sales Ribeiro, Almeida Cruz entre tantos e tantos outros. Muitos deles estenderam a sua actividade a outras áreas de intervenção que acabaram por integrar toda uma constelação de indústrias (ainda que pequenas e à escala local) do espectáculo e do entretenimento. Carlos Calderón, por exemplo, compositor para teatro desde 1895, esteve nos alvores de uma “indústria da música” enquanto editor de partituras e agente da Companhia Francesa do Gramophone através da sua companhia Sociedade Phonográphica Portugueza. O que hoje se começa a saber dos primeiros passos da indústria fonográfica em Portugal apontam no sentido da importância do espectáculo músico-teatral (nas suas diversas tipologias) como fornecedores do repertório que, por extensão, era gravado. De uma revista ou opereta podiam ser retiradas várias canções para publicação enquanto partitura (com arranjos para piano e voz) e fonogramas que eram editados por várias companhias activas localmente. Uma canção ou um “quadro” de uma determinada revista era comummente gravada e publicada por diferentes companhias (Beka, Gramophone Company, Odeon, Pathé, Disco Simplex), interpretada por diferentes cantores que não eram necessariamente aqueles que a cantava em palco. Com a instauração do Estado Novo e a implementação de uma “política do Espírito”, todo o trabalho de inculcação de uma certa imagem de “nação” - tranquila, religiosa, sem incidentes, ciente do seu destino -, de “povo” - rural, bucólico, tradicional, historicamente resiliente, conformado, “não torturado pela dúvida” -, e do seu chefe - sacrificado, abnegado, sebastiânico e providêncialista -, fez com que este tipo de espectáculo perdesse muito da sua capacidade de inovação, intervenção e surpresa, e começasse progressivamente a imitar os seus próprios modelos. Os temas pouco inovavam, limitando-se a maior parte das vezes à caricatura patusca de personagens típicas e tipificadas reforçando a sua quase sagrada singeleza que lhe aguçava o engenho espertalhão25, articulada com recursos retóricos mais
25 - Veja-se as operetas As Lavadeiras (já referenciada), Nazaré (já referenciada), as revistas A Rambóia (1928, aut. Luís Galhardo e Xavier de Magalhães, música de Hugo Vidal, Frederico de Freitas e Raul Ferrão, estreada no Teatro Maria Vitória), Bailarico Saloio (1938, aut. Stélio Gil e Frederico de Brito, música de Camilo Rebocho, Fernando Guimarães e Manuela Bonito, estreada no Teatro Maria Vitória).
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Beatriz Costa “Estudante”, Revista Lua Cheia, Teatro da Trindade, 1934 “Marujinho”, Revista O Mexilhão, Teatro Variedades, 1931/2 Colecção Museu Nacional do Teatro
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ou menos elaborados para contornar as limitações censórias26. Esteticamente, a dimensão decorativa, conservadora, que apelava ao bucolismo rural e lirismo rústico, também não deixou de formatar o espectáculo revisteiro como no caso das revistas Ricócó (1929, aut. Lino Ferreira, Silva Tavares e Lopo Lauer, música de Ramon Torralta e Vasco Macedo, estreada no Teatro Maria Vitória)27, Arre Burro! (1936, aut. Alberto Barbosa, José Galhardo, Vasco Santana e Amadeu do Vale, música de Raúl Portela, Raul Ferrão e Fernando Carvalho, estreada pela Companhia Beatriz Costa no Teatro Variedades). Aos autores já com longas carreiras que permaneciam em actividade desde os anos 20, poucos novos nomes se lhes juntaram (Lino Ferreira; Lopo Lauer; Aníbal Nazaré, Amadeu do Vale, e Lourenço Rodrigues, que em parceria assinavam “Três Marcianos” responsáveis conjuntos por 104 espectáculos distintos; Nelson de Barros; Ascensão Barbosa). Mas corresponde precisamente ao momento em que têm início as carreira de algumas das novas “estrelas”, como Beatriz Costa e Hermínia Silva. Após a Segunda Guerra Mundial e com a aparente (porque cosmética) abertura democrática, cientes da exaustão deste modelo de espectáculo, uma série de intervenientes procuraram introduzir inovações. O Teatro ABC (explorado pelos empresários José Miguel primeiro e Sérgio de Azevedo depois) onde foram estreadas várias revistas da autoria de Eduardo Damas, César de Oliveira, Francisco Nicholson e Rogério Bracinha que trouxeram um refrescamento da escrita deste género teatral; o empresário Vasco Morgado com a sua ambição de desenvolver a indústria do espectáculo local, criou a Companhia Comediantes de Lisboa e assumiu a gerência de uma série de salas de espectáculos, de entre as quais surge destacado o Teatro Monumental, onde, a partir de 1951, concertos, cinema, concursos, operetas e teatro de revista forneciam a diversão não-erudita na cidade de Lisboa, misturando “revista à portuguesa”, “musical americano”, “féerie francesa” com cançonetistas nacionais e internacionais de renome e a presença de actores consagrados; a direcção de Eugénio Salvador do Teatro Avenida (função que assumiu em 1952) e a sua companhia teatral que congregava novos compositores como Fernando de Carvalho, Tavares Belo, Carlos Dias, Jaime Mendes, João Nobre, Melo Júnior e uma nova geração de actores como Humberto Madeira, Irene Isidro, Maria Domingas, Bibi Ferreira, Teresa Silva, Barroso Lopes, Max, Emílio Correia, Curado Ribeiro, os veteranos António Silva, Beatriz Costa e Costinha, e o próprio Eugénio Salvador bem como as fadistas Hermínia Silva, Anita Guerreiro, Fernanda Baptista e Maria José da Guia; a apresentação de novos actores Aida Baptista, Raul Solnado, José Viana, Camilo de Oliveira, Ivone Silva, Mariema, Henrique Viana, Francisco Nicholson, Irene Cruz, Henriqueta Maya, constituíam-se como uma vaga de renovação que, no entanto, não foi suficiente para sustentar o futuro no género que persistia na representação de temas frívolos e com pouco impacte crítico para além da caricatura mundana como nas revistas Mulheres à Vela (1967, aut. Paulo da Fonseca, César de Oliveira e Rogério Bracinha, música de João de Vasconcelos e João Nobre, estreada no Teatro ABC), Gente Nova em Bikini (1963, aut. César de Oliveira, Rogério Bracinha e Francisco Nicholson, música de José de Magalhães
26 - Tome-se o caso da revista Enquanto houver Santo António (1950, aut. Carlos Lopes e Santos Braga, música de Cesário Salvador, estreada no Teatro Apolo), numa clara referência irónica ao presidente de conselho; ou o quadro “Zé dos Cartazes” da revista Ora Agora Viras Tu (1949, aut. Carlos Lopes, M. de Carlos Dias, música autor não identificado, estreado no Teatro Variedades), numa criação de Vasco Santana, colocava o “Zé” a afixar cartazes em que se anunciava o concurso entre o “Fado Novo” e o “Fado Antigo”, numa invocação da recente candidatura de Norton de Matos à presidência da república. 27 - Nessa revista, a cenografia foi responsabilidade dos artistas plásticos Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Ruy Roque Gameiro, Salvador Feio e Fred. Os seus elementos gráficos são perfeitamente enquadráveis na estética do Secretariado Nacional de António Ferro.
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“Fado da Cesária” da Opereta Mouraria Partitura, s/d Colecção Museu do Fado
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estreado no Teatro ABC), Rebola a Bola (1952, aut. Lourenço Rodrigues, Vasco de Matos Sequeira e Aníbal Nazaré, música de João Nobre e Alves Coelho Filho, estreada no Teatro Maria Vitória), Melodias de Lisboa (1955, aut. Fernando Santos, Nelson de Barros, João Villaret, música de Frederico Valério, estreada no Teatro Monumental), com as pontuais excepções em produções de maior arrojo (as revistas Ena Já Fala!, 1969, aut. Paulo da Fonseca, César de Oliveira, Rogério Bracinha, música de João Nobre e João Vasconcelos, estreada no Teatro ABC; ou Cá Vamos Pagando e Rindo, 1972, aut. Aníbal Nazaré, Henrique Santana, Henrique Parreirão, música de João Nobre e Carlos Dias, estreada no Teatro Maria Vitória). O golpe de Estado de 1974 e o fim da censura, através do envolvimento de novos autores (Francisco Nicholson, César de Oliveira, Ary dos Santos e Joaquim Pessoa) e compositores (Braga Santos, Joaquim Luis Gomes e Correia Martins), e especialmente com a criação da pequena companhia do Teatro Adoque (produziu 13 revistas, uma comédia musical e várias peças infantis entre 1974 - 1982) instalada num palco provisório no Martim Moniz, seriam uma das últimas tentativas de renovação do espectáculo músico-teatral através da recuperação de elementos de um teatro de cabaret ou café-concerto de intervenção adequando-o aos novos temas28. Nos últimos anos do século XX este tipo de espectáculo acabaria, mais uma vez, por cair nas malhas de controvérsia, entre a acusação de conservadorismo reaccionário e um esforço de crítica ideológica e política em sintonia com os novos momentos de liberdade. Só que nessa altura, com as novas formas de entretenimento, o público já lá não estava para participar no debate...
2º Acto (mais ligeiro?) Nos espectáculos músico-teatrais a apresentação de fados foi sempre habitual, pode mesmo dizer-se predominante. Recorrentemente, o fado surge “em cena” como motivo na música de um espectáculo ou como canção isolada, através da presença de fadistas na dupla condição de cantores-atracção ou como actores-cantores, mas também surge enquanto tema do próprio espectáculo ou na personagem tipificada do “fadista”. Transversal a todas estas modalidades, muitos dos autores e compositores que trabalharam para companhias de opereta e de revista, também desenvolveram actividade no circuito do fado e vice-versa. Segundo Luís Francisco Rebello, a primeira notícia concreta da apresentação de um fado numa revista data de 1881, quanto o personagem “Zé Povinho” da revista O Tutti-li-Mundi: revista do ano de 1880 (aut. António de Sousa de Menezes, música de Carlos Araújo, Francisco Alvarenga, Rio de Carvalho, estreada no Teatro da Rua dos Condes) o interpreta. O mesmo autor reconhece existirem referências difusas que apontam para a regular apresentação de fado nos palcos de revista (1985: 89-90). Na peça Ditoso Fado (1896, aut. Manuel Roussado e Jorge de Faria, estreado no Teatro da Trindade)29 com os actores Rosa Damasceno e Taborda há toda uma estruturação da história apresentada numa vivência do fado (“Em ouvindo um fadista a explicar-se no instrumento (faz gesto de quem toca guitarra) não está mais na minha mão, começo a sentir cócegas na garganta e nos calcanhares” 1896: 9), uma peça cómica baseada em enganos e mal-entendidos a propósito de uma guitarra, em que os dois actores cantam em dueto que “Eu p’lo fado sou lamecha,/ Não está mais na minha mão./ Quisera ouvi-lo cantar/ A toda a lusa nação” (1896: quadra manuscrita na página 15). 28 - A companhia Seiva-Trupe terá levado mais longe esse esforço, só pontualmente acompanhado por outras companhias de teatro como A Comuna e a Casa da Comédia. 29 - Que por lapso, Eduardo Sucena (1992: 166) data de 1869 e como tal afirma ser a primeira apresentação de fado numa revista.
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O Ditoso Fado Barão de Roussado, 1896 Colecção Nuno Siqueira
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Mais do que a mera utilização de fados na música que suportava as revistas e as operetas, é a formação de um estilo de repertório fadista específico ao contexto do espectáculo músico-teatral que importa aqui sublinhar. Entre as Guerras Mundiais, por acção de compositores como Raul Portela (participou em mais de 30 revistas entre 1921 e 1942), Frederico de Freitas (20 revistas entre 1928 e 1978), Raul Ferrão (mais de 40 revistas entre 1927 e 1951), Fernando de Carvalho (mais de 40 revistas e operetas entre 1934 e 1966), Frederico Valério (mais de 40 entre 1927 e 1979), João Nobre (mais de 70 revistas entre 1937 e 1982), Carlos Dias (mais de 40 entre 1941 e 1972), e os autores de letras (também autores de textos de revistas) como Frederico de Brito, Amadeu do Vale, Silva Tavares ou José Galhardo, se consolidou uma das maiores mudanças no repertório do fado ao desenvolver a forma de “fado-canção”, uma canção estrófica, estruturada na alternância de coplas e refrão, com uma melodia fixa que está intrinsecamente associada à letra cantada, não permitindo a substituição da letra por outra com a mesma métrica como era esperado e valorizado no “fado tradicional” ou “fado castiço”. Esta mudança musical (que é performativa por consequência) despoletou intensas polémicas, que ainda hoje ressurgem em tertúlias de amadores de fado. Independente a essa polémica, este repertório de “fado-canção” acabou por se confirmar como central na biografia dos seus intérpretes e alguns constituíram-se repertório central e definidor do género interpretativo dos seus intérpretes30. A lista é virtualmente infindável mas servem de exemplo os fados: “Fado Afonso Costa” (por Ângela Pinto na revista Coração à Larga, 1915, aut. Marçal Vaz, Henrique Roldão e Artur Rocha, música de Vasco de Macedo e Hugo Vidal, estreada no Teatro Avenida), “Fado do Ganga” (por Estevão Amarante na revista O Novo Mundo, 1916, aut. João Bastos, Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes, música de Alves Coelho e Wenceslau Pinto, estreada no Éden Teatro), “Fado do Chora” (por Chaby Pinheiro na revista Lísbia Amada, 1917, aut. Lino Ferreira, Artur Rocha e Henrique Roldão, música de Luz Júnior e Vasco de Macedo, estreada no Teatro República),“Fado do Cívico” (por Estevão Amarante, na revista Torre de Babel, 1917, aut. Félix Bermudes, João Bastos e Ernesto Rodrigues, música de Tomás del Negro e Bernardo Ferreira, estreado no Teatro Apolo), “Fado das Mãos Criminosas” (por Estevão Amarante, na opereta Miss Diabo, já referenciada), “Fado da Triste Feia” (por Zulmira Miranda, na revista Tic-Tac, 1921, aut. Alberto Barbosa e Xavier de Magalhães, música de Alves Coelho, Raul Portela, António Lopes, estreada no éden Teatro), “Fado dos Teatros” (por Adelina Fernandes, na revista Burro em pé, 1920, já referenciado), “Fado do Xaile” e “Fado da Cesária” (por Adelina Fernandes, na opereta Mouraria, 1926, aut. Lino Ferreira, Silva Tavares e Lopo Lauer, música de Filipe Duarte estreada no Teatro Apolo), “Fado do Caracolinho” (por Hortense Luz Pombeiro, na revista Foot-Ball, 1925, aut. Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes, João Bastos, Alberto Barbosa, Luís Galhardo, Lourenço Rodrigues e Xavier de Magalhães sob nome colectivo “Gregos e Troianos”, música de Raul Portela, estreada no Teatro Maria Vitória), “As Camédias” (por Corina Freire, na revista A Rambóia, 1928, aut. Luís Galhardo e Xavier de Magalhães, música de Hugo Vidal, Frederico de Freitas e Raul Ferrão, estreada no Teatro Maria Vitória), “Cochicho” (por Beatriz Costa, na revista Pim-Pam-Pum, 1931, aut. Lino Ferreira, Lourenço Rodrigues e Fernando Santos, música de Raul Portela e Raul Ferrão, estreada no Teatro Variedades), “Lisboa Antiga” (por Hermínia Silva, na revista Pirilau 1932, aut. “Cicranos e Beltranos”, nome colectivo de Lino Ferreira, Xavier de Magalhães, Lourenço Rodrigues e Alberto Barbosa, música de Raul Ferrão e Raul Portela, estreada no Teatro Variedades), “A Velha Tendinha” (por Hermínia Silva, na revista Zé dos Patacos, 1934, aut. Alberto Barbosa, José Galhardo, Vasco Santana, Xavier de Magalhães e Manuel Santos Carvalho, música de Raul Ferrão, Raul Portela e Afonso Correia Leite, estreada no Teatro Apolo), “Rosa Enjeitada” (por Hermínia Silva, na revista Arre Burro! já referenciada), “Tudo Isto É Fado” (por Irene Isidro, na revista Feira da Avenida 1949, aut. António Porto, Aníbal Nazaré e Nelson de Barros, música de Fernando de Carvalho, 30 - Para Hermínia Silva fazia sentido falar de “fado teatral”, expressão por ela empregue numa entrevista publicada no jornal Guitarra de Portugal de 15 de Julho de 1945 e que explica dizendo “ser um estilo meio castiço, meio canção, (...) por entender que no teatro não poderia sobreviver só com o fado clássico”.
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Margarida de Oliveira, Fado da Maria Vitória Hermínia Silva, Marujo Discos de 78rpm, s/d Colecção Nuno Siqueira
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estreada no Teatro Variedades), “A Rua dos Meus Ciúmes” (por Helena Tavares, na revista A Vida é Bela, 1960, aut. Nelson de Barros e Fernando Santos, música de Frederico Valério e Fernando Carvalho, estreada no Teatro Capitólio), “Ó Tempo Volta Para Trás” (por António Mourão, 1965, na revista E Viva o Velho, aut. Aníbal Nazaré, António Cruz e Eduardo Damas, música de Manuel Paião, João de Vasconcelos, estreada no Teatro Maria Vitória), “Zé Cacilheiro” (José Viana, da revista Zero Zero Zé… Ordem Para Pagar, 1966, já referenciado), “Esta Lisboa Que Eu Amo” (por Simone de Oliveira, da revista Esta Lisboa que eu amo, 1966, aut. Aníbal Nazaré, Nelson de Barros, Fernando de Ávila e António Cruz, música de Fernando de Carvalho, Frederico Valério, estreada no Teatro Monumental), “Cheira a Lisboa” (por Anita Guerreiro, da revista Peço a Palavra, 1969, aut. Paulo da Fonseca, César de Oliveira e Rogério Bracinha, música de João de Vasconcelos, estreada no Teatro Variedades), “Fado Saudades de Júlia Mendes” (por Fernanda Baptista, na revista Ena, Já Fala!, 1969, aut. Paulo da Fonseca, César de Oliveira e Rogério Bracinha, música de João Nobre e João Vasconcelos, estreada no Teatro ABC). Especial destaque deve ser dado ao repertório extraído da revista O 31 (já referenciado) pela quantidade de fados (10) que ainda hoje são lembrados: “Arco de Santo André” gravado por João Rodrigues com Carlos Santos, Ilda Stichini com Carlos Vila Franca; “Fado d’O 31” por Guilhermina dos Anjos, Maria Litaly, Adelaide Ribeiro e Ilda Stichini; “Os Apaches” Maria Litaly com Carlos Santos, Eugénia Ribeiro com Ernesto Silva, Isabel Costa com Duarte Silva; “Alzira e Melenas” por Ilda Stichini com Jorge Bastos, Elvira Costa com Ernesto Silva, Maria Litaly com Carlos Santos; “Fado das Farturas” por vários cantores não identificados; “A Dona de Casa” por Maria Litaly; “A Esturdia” por Guilhermina dos Anjos, Elvira Costa e Manuel Carvalho; “A Última Hora” por Isabel Costa com Jorge Bastos, Isabel Costa com Duarte Silva. Uma parte significativa das canções interpretadas nas revistas e operetas acabou por ser gravada e publicada em fonogramas, repertório que correspondia à maioria do que era gravado localmente até meados do século. Este facto poderá ser uma das explicações para a sua perinidade na memória do público de certos intérpretes e canções. Ao contrário do que alguns autores afirmam (Losa, Silva e Antunes 2005), o teatro de revista não se constituiu como um meio de divulgação de repertório gravado. O teatro de revista foi o responsável pela sua produção. A popularidade granjeada nos palcos suscitava a edição fonográfica, pois o sucesso nos palcos permitia aspirar a que a venda daqueles fonogramas fosse também comercialmente vantajosa. E certamente seria, pois em 1925 os escritores e compositores de teatro organizam-se numa associação (Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, futura Sociedade Portuguesa de Autores) para que os seus direitos enquanto autores, devidos pela representação, execução públicas e reprodução mecânica das suas obras fossem cobrados. Criava-se assim mais um domínio desta indústria do espectáculo, a exploração dos direitos de autor. Este modelo de actividade permaneceu inalterado no domínio do espectáculo músico-teatral até meados do século XX. Musicalmente, os fados-canção compostos por autores como Tavares Belo, Ferrer Trindade, João Vasconcelos, Fernando de Carvalho, Carlos Dias, João Nobre, Manuel Paião ou Pedro Osório, Joaquim Luís Gomes ou Braga Santos, continuavam a basear-se em estribilhos cativantes, como suporte de letras de tipicidade bairrista, castiça ou novelesca. Mas a revista e a opereta não se limitaram a utilizar o fado no suporte musical do espectáculo. O próprio “fado” tornou-se tema do próprio texto teatral. Em revistas como História do Fado (1930, aut. Avelino de Sousa e Álvaro Santos, música de Wenceslau Pinto, Alves Coelho e Raul Portela, estreada no Teatro Maria Vitória) é o próprio género musical, os seus intervenientes, os seus estilos interpretativos, as suas histórias e tipos, que se tornam o objecto do espectáculo.
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“O Meu Filho” da Opereta Coração de Alfama Partitura, 1936 Colecção Nuno Siqueira
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Do personagem “Zé Povinho” que cantava um fado na revista O Tutti-li-Mundi: revista do ano de 1880 (1881, já referenciado) até ao “musical” Fado - História de um Povo (2010, aut. Filipe La Féria, música de Filipe La Féria, Artur Guimarães, Paulo Valentim e Carlos Meireles, estreado no Casino do Estoril), várias foram as revistas, operetas, comédias musicais e musicais que, convocando o “fado” para o próprio título, o situam em cenários populares ou típicos, metonímia da “alma portuguesa”. Dificilmente se pode destacar com justiça um pequeno grupo, mas ter-se-ía certamente de referir as revistas e operetas O Fado (1910, aut. João Bastos e Bento Faria, música de Filipe Duarte, estreada no Teatro Apolo e reposta duas vezes até 1942), O Nosso Fado (1919, aut. Lino Ferreira, música de autor não identificado, estreada no Teatro da República), Fado Corrido (1923, já referenciado), História do Fado (1930, já referenciado), O Fado da Mouraria (1945, Aut. Alberto Barbosa e José Galhardo, música de Raul Ferrão, Fernando de Carvalho e Carlos Dias, estreada no Teatro Apolo), Tudo Isto É Fado (1952, aut. Lourenço Rodrigues e Vasco de Matos Sequeira, música de João Nobre e Belo Marques, estreada no Teatro Maria Vitória), Último Fado em Lisboa (1974, aut. “Badaró”, música de Correia Martins, estreada no Teatro Monumental, numa clara alusão ao filme de Bertolucci O Último Tango em Paris que tanta polémica gerou na altura), e a irónica revista Fardos e Guitarradas (1978, aut. Francisco Nicholson, Gonçalves Preto, Artur Semedo e Henrique Viana, música de Joaquim Luís Gomes e Braga Santos, estreada no Teatro Adoque)31. Quando o tema do espectáculo (no seu todo ou em parte) era o fado, este funcionava como actor nas controvérsias nacionalistas e como ilustração bairrista. A afirmação nacionalista veiculada pelo “fado” é de motivação reactiva face a uma pretensa pressão provocada pela crescente influência de uma “cultura internacional” num jogo metafórico entre o que “é nacional” (fado) e o seu oposto que “é estrangeiro” (os ritmos internacionais como o fox-trot ou as novas tipologias de agrupamentos musicais como o jazz-band). Na revista Fado Corrido (1923, já referenciado), apresentada no Brasil pela Companhia António Macedo com Beatriz Costa como protagonista (Rosa 2003: 88), a “guitarra” apelava à luta contra as “canções bolchevistas”, contra o “general jazz-band” mobilizado pela instauração da “república dos fox-trots”, cantando-se “Fora! Fora! Fora!/ Contra esses fantoches/ Que te querem destronar,/ Shimmys, tangos e fox-trots,/ vêm as cordas protestar/ (…) Vinde todas p’ró meu lado/ combater pela revol’ção/ cordas que gemeis o fado,/ cordas do meu coração./ Não deixeis que o Jazz-Band,/ essa máquina infernal,/ vença a guitarra em que se expande/ ai! Todo o amor de Portugal!” (Rebello 1985: 71, 74). O mesmo apelo ouvia-se no “fado futurista” (da revista Tiroliro, 1925, aut. Luís Galhardo e Lourenço Rodrigues, música de Luz Júnior e Raul Portela, estreada no Teatro Apolo): “o que o vil progresso lhe fez [ao fado]/ tocando-o no jazz-band,/ quando só à guitarra é grande”, ou o “Fado da Sopeira Bolchevique” (criação de Zulmira Miranda na revista Fado Corrido, 1923, 31 - Após 1974 nenhuma revista chamou o fado para seu título com excepção de espectáculos teatrais ou musicais produzidos por companhias exteriores ao domínio: o Teatro Universitário do Porto apresentou O Fado Bandido (1982, aut. Moncho Rodrigues) como “exercício teatral” de uma “ópera dos mendigos” portuguesa; o Persona Teatro de Comédia, CRL o espectáculo O Fado, a Navalha e a Guitarra ou a História da Rosa Enjeitada (1990, aut. Fernando Gomes, a partir do texto Rosa Enjeitada, 1901, de João da Câmara, arranjo musical de “Zé” [Moz] Carrapa, estreada no Primeiro Acto, Clube de Teatro); a Produções Off com o esteticizante musical Fados (1994, encenação Ricardo Paes, direcção musical Manuel Faria, estreado no Centro Cultural de Belém); o Grupo de teatro Maizum numa colagem de textos de José Régio, com dramaturgia de Silvina Pereira, Estranho Fado (2001, estreado em Espinho); o Olho - Associação Teatral com o espectáculo iconoclásta Fado Donald (2002, aut. Alexandre Crespo, estreado no Teatro Municipal de Almada), até o MACAPI - Movimento de Animação Cultural e Artes para a Infância produziu Silêncio Que Se Vai Cantar o Fado (2008, aut. Isabel Silva, Ana Mendes, Hugo Edgar e Joana Cruz, estreado no Espaço Cegada em Alverca) e a Oficina de Teatro da Escola Secundária da Póvoa do Lanhoso Meu Fado (2010, encenação Afonso Fonseca, estreado no Teatro Clube de Póvoa do Lanhoso).
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Maria Albertina Quadro “Última Tipóia” da Revista Vara Larga Teatro Maria Vitória, 1936 Colecção Museu do Fado
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aut. Luís Galhardo, Alberto Barbosa, Xavier de Magalhães e Lourenço Rodrigues, música de Raul Portela, estreada nos teatros Maria Vitória e São Luiz). Na revista O Liró (1937, aut. Lino Ferreira, Xavier de Magalhães, Fernando Santos e Foyos Teixeira, música de Raul Ferrão, Jaime Mendes, Fernando Guimarães e Jaime Baena, estreada no Teatro Variedades), no quadro “A sociedade das canções” representava-se um movimento internacional de contestação ao fado que este inevitavelmente acabava por vencer. Também Hermínia Silva se envolveu nesta “luta” quando, na revista Chuva de Mulheres (1937, aut. Lopo Lauer, Almeida Amaral, Vasco Sequeira, Frederico de Brito, música de Carlos Calderon e Frederico Valério, estreada no Éden Teatro) cantava “Vestiram-me uma samarra toda assim a dar nas vistas/ E deram-me esta guitarra que é a arma de fadistas / Pus-me a cantar, e dei brado, o hino, me prezo, com altivez / Pois, quando se canta o fado, um homem não esquece que é Português. // Ai, minha mãe, jurei bandeira no regimento do fado/ (…) / Embora queira ou não queira, sou fadista, sou soldado/ (…) // Eu vou bater-me na guerra do fado, meu companheiro/ Que partiu da nossa terra e deu volta ao mundo inteiro/ Soldado, embora miúdo, defendo essa canção bem nacional/ Que o fado para mim é tudo, é o coração de Portugal/ (…)” (letra de Frederico de Brito, música de Frederico Valério). A 20 de Dezembro de 1975, Hermínia Silva, no seu regresso aos palcos do teatro de revista (Afinal Como é?, aut. César de Oliveira, Rogério Bracinha e Ary dos Santos, música de João Vasconcelos, Thilo Krasman e Nuno Nazareth Fernandes, estreada no Teatro ABC) representou o quadro “Mãe Severa”, “revolucionária na alma, proletária de profissão e progressista por vocação, fim de citação!”, revista de uma altura “em que já era tempo que o fado tomasse posição nesta revolução”. Nesse quadro ironiza, polémica, a “Mãe Coragem” de Brecht, distribuindo “pastas ministeriáveis moscovitas” a fadistas de acordo com as suas tendências políticas e “ocupações fadistas” a políticos da época. No fim desse quadro cantava “o fadinho moscovita”: “O menu do meu solar/ É sempre à moda da casa/ Pataniscas de caviar/ e Strogonoff na Brasa// Chorai, cossacos, chorai/ que a Severa já morreu/ Fadistas como a Severa/ Nunca Gorsky conheceu”. Nas produções teatrais havia uma invocação nostálgica de uma tradição fadista, de figuras míticas do fado mobilizadas para a luta - se não militar, certamente militante - contra o que era “estrangeiro”, “moderno”, “internacional”32. A única “relação” positiva que, nos textos de revista, o “fado” estabeleceu com outras tipologias musicais “exteriores” foi com o maxixe, quando ambos os géneros cooperaram na luta contra a “italianização” da cidade e dos palcos de S. Paulo (revista Fado e Maxixe, 1906, aut. João Phoca, pseud. de Baptista Coelho e André Brun, música de autor não identificado, estreada no Teatro Novo da Rua dos Condes). Durante as guerras mundiais, esta simbolização do fado tornou-se, não só um símbolo da resistência nacional ao “internacionalismo”, um elemento identitário tradicional português contra os novos elementos culturais transnacionais, mas também como canção popular e patriótica mobilizadora face a uma ameaça de guerra que pairava sobre o país. Nas letras, marialvismo e militarismo, saudosismo e resistência, eram faces da mesma moeda simbólica. Por outro lado, o fado constituiu-se como um veículo para invocar o universo popular e bairrista da cidade de Lisboa e, quase por extensão, do próprio fado enquanto género musical popular e típico. Especialmente reorientador deste tipo de espectáculos, e central na estabilização de elementos simbólicos bairristas, foram as referidas operetas A Severa
32 - Ainda que não fossem raras as vezes em que os fados cantados eram descritos como sendo “fado-fox”, “fado-samba”, “fado one-step” nas etiquetas de fonogramas publicados na primeira metade do século XX.
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Maria do Espírito Santo s/d Colecção Museu do Fado
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(1909, já referenciada) e O Fado (1910, já referenciada33), cujo sucesso ajuda a compreender o quase-périplo pelos bairros “populares” de Lisboa em operetas estreadas posteriormente: Mouraria (1926, já referenciada, reposta 15 vezes até 1946), Bairro Alto (1927, aut. Avelino de Sousa, música de Wenceslau Pinto, Alves Coelho e Raúl Portela, estreada no Teatro de S. Luiz e reposta quatro vezes até 1934), Madragoa (1927, aut. Feliciano Santos, António Carneiro, Francisco Viana e Venceslau de Oliveira, música de Wenceslau Pinto, Alves Coelho e Raúl Portela, estreada no Teatro Apolo), Alfama (1931, aut. não identificada, música autor não identificado, opereta com direcção artística de Pinto Júnior, estreada no Cine Oriental), Coração de Alfama (1935, Aut. Alberto Barbosa, José Galhardo, Vasco Santana e Amadeu do Vale, música de Wenceslau Pinto, Raul Ferrão e Raul Portela, estreada no Teatro Variedades34). O fado, enquanto veículo do bairrismo e tipicismo da cidade, foi-o por vezes com uma veemência verbal algo inusitada: “O Bairro Alto/ vale mais que a Mouraria, / onde a Severa vivia/ e só por isso tem fama!…/ O Bairro Alto,/ mais fidalgo e mais artista,/ É mil vezes mais fadista/ até do que a própria Alfama.” (“Fado do Bairro Alto” cantado por Aldina de Sousa na opereta Bairro Alto, 1927, já referenciada).
Os mais de 150 anos de produção regular de espectáculos músico-teatrais em Portugal tornam complexa a tarefa de enumerar os actores e cantores que neles intervieram. Muitos mais cantores, actores, escritores, compositores e empresários, desenvolveram actividade entre o fado e o teatro. Seria de tal forma numerosa uma eventual lista que torna claro a referida artificialidade da separação entre o género musical popularizado e a forma de divertimento. Ambos os campos estão integrados numa indústria do espectáculo que por sua vez se articula com a indústria de publicação de partituras e fonogramas, congregando-se nas “indústrias da música”. Se é impossível uma listagem exaustiva (ou sequer perto disso), é no entanto fundamental referir que esses intervenientes eram, ou actores que se tornaram cantores por extensão da primeira actividade, ou cantores que foram levados a representar em revistas ou operetas. Se a grande maioria dos intérpretes de fado terão tido alguma experiência nos teatros, alguns desenvolveram mesmo a sua biografia de modo repartido entre o domínio da música e do teatro. É a esses que aqui se dedicará especial atenção. Duas das primeiras actrizes-cantoras a afirmar-se nos dois domínios, e em ambos alcançando grande impacte público - apesar de terem sido duas meteóricas carreiras, pois ambas as cantoras morreram tragicamente aos 26 anos -, foram Maria Vitória e Júlia Mentes. Maria Vitória, activa entre 1908 e 1915, além de actriz e cantora, compôs fados. Depois de uma vida de turbulência (iniciou-se a cantar fado pelas tabernas do Bairro Alto) foi contratada por Luís Galhardo para estrear a revista O 31 (1913, já referenciada) tendo ficado associada para sempre ao celebre “fado [d’O 31]”. Júlia Mendes, activa entre 1902 e 1912, começou por cantar fado nas ruas de Lisboa, tornou-se corista e, boémia, circulava actuando nos teatros improvisados de feira. O momento alto da sua carreira foi o desempenho do papel de protagonista na opereta A Severa de André Brun (1909, já referenciada), papel que lhe valeu grande visibilidade e o epíteto de “fadista lírica”. Estas biografias, tão curtas como as vidas de quem biografam, torna clara a reduzida separação entre a profissão de actor e cantor nas 33 - Na estreia desta opereta participaram muitos dos cantores que hoje podem ser ouvidos em fonogramas: Delfina Vitor, Rafaela Fons, Nascimento Fernandes, João Silva, Sales Ribeiro, Alfredo Ruas, Zulmira Miranda. 34 - A propósito desta opereta, escrevia-se no jornal Guitarra de Portugal (nº 311, de 14 de Fevereiro de 1935) tratar-se de “uma peça de fado”.
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Caricatura de Hermínia Silva Frederico Santana (Fred), 1956 Colecção Museu Nacional do Teatro
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primeiras décadas do século XX, característica que se terá mantido até à constituição de um circuito de casas de fado. Com um percurso um pouco mais longo, e especialmente interessada numa carreira no teatro, Adelina Fernandes iniciou a sua carreira de actriz profissional em 1915 e precocemente suspendeu-a em 1939. Entre operetas e revistas, Adelina Fernandes participou em 21 espectáculos, em dois filmes e gravou mais de meia centena de fonogramas, mas sobretudo, foi a Cesária da opereta Mouraria (1926, já referenciada). Com a sua actividade repartida pela representação e pela direcção de companhias teatrais, Estevão Amarante afirmou-se como um actor especializado neste teatro musicado, tendo participado em 89 espectáculos (óperas-cómicas, operetas, “opereta popular”, revistas, vaudeville, comédia musicada) entre 1900 e 1951. Com Luisa Satanela, após a revista Salada Russa (1918, aut. Félix Bermudes, João Bastos, Ernesto Rodrigues, música de Filipe Duarte, estreada no Teatro Politeama), constituiu a importante Companhia Luiza Satanela/ Estevão Amarante, dedicada à produção de espectáculos de vaudeville e opereta, produções que envolveram mais de 100 actores ao longo de 31 espectáculos montados entre 1918 de 1933. Ao longo da sua carreira, vários fados ficaram-lhe associados como “Fado do Ganga”, o “Fado Cívico” ou o “Fado das Mãos Criminosas” (já referenciados). Estevão Amarante contracenou com Beatriz Costa, figura central na história da representação em Portugal, associada às personagens típicas de “saloia”/ “lavadeira” ou “coquete”/ “costureirinha”, papéis que desempenhou nalgumas das 55 revistas e operetas em que participou entre 1920 e 1960, ano em que se retirou35. Durante este período a sua actividade repartiu-se entre Portugal e o Brasil. A sua capacidade de compor personagens tornou-se a sua principal característica profissional, e o sucesso que alcançou terá contribuído para que constituísse a Companhia Beatriz Costa, empresa basicamente activa no Brasil. Mais recentemente, a actriz Laura Alves desenvolveu actividade entre estes dois domínios do entretenimento. Estreou-se com a peça As Duas Garotas de Paris (versão portuguesa de Eduardo Schwalbach do romance de Feuillade e Cartoux, estreada em 1935 no Teatro Politeama), na revista com a peça Essa É Que É Essa! (1942, aut. Aníbal Nazaré, António Cruz e M. Pires, música de Frederico Valério, Raúl Portela e Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Maria Vitória) e, após passagem pelo Conservatório Nacional (dança), na opereta com Lisboa 1900 (1941, aut. Francisco Ribeiro, Armando Vieira Pinto e Alberto Reis, música de Raul Portela e Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Variedades). A sua carreira esteve especialmente ligada ao Teatro Monumental onde se apresentou regularmente na década de 50 (41 espectáculos entre os 91 da sua longa carreira). A partir dessa altura dedicou-se quase exclusivamente ao teatro declamado, optando claramente por uma carreira de actriz. Por outro lado, a partir da década de 30, começou a ser habitual que cantores fossem levados a participar em espectáculos teatrais seja na qualidade de “atracções”, seja como elementos do elenco. Após as participações de Berta Cardoso e Ercília Costa, e até as participações em montagens semi-amadorísticas de Alfredo “Marceneiro”, é com Amália que, claramente, uma cantora é levada a apresentar-se nestes espectáculos, explorando o impacte que a sua carreira - ainda que no início - já tinha junto do público. Amália foi a “atracção” das revistas Ora Vai Tu! (1940, aut. Aníbal Nazaré e Nelson de Barros, música de Raul Portela, Raul Ferrão e Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Maria Vitória), Espera de Toiros (1941, aut. “3 Aficionados”, nome colectivo dos autores José Galhardo, Vasco Santana e Amadeu do Vale, música de Raul Portela, Raul Ferrão e Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Variedades) e 35 - Papéis desempenhados, entre outras, nas revistas Água-pé (1927, já referenciada), Arre Burro (1936, já referenciada), O Pardal de S. Bento (1938, aut. Heitor de Campos Monteiro e Arnaldo Leite, música de Raul Portela e Vasco Macedo, estreada no Teatro Sá da Bandeira) e que são claras fixações das suas participações nos filmes Aldeia da Roupa Branca (1938, real. Chianca Garcia) e Canção de Lisboa (1933, real. Cottinelli Telmo).
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Amália Rodrigues, Raul Nery e Santos Moreira Peça A Severa, 1955 Colecção Museu do Fado
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Essa É Que É Essa (1942, aut. Aníbal Nazaré, António Cruz e M. Pires, música de Raul Portela, Frederico Valério e Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Maria Vitória). O sucesso dessas apresentações fez com que nos anos seguintes surgisse integrada nos próprios elencos das revistas Boa Nova (1942, aut. Amadeu do Vale, Manuel Santos Carvalho, Fernando Ávila, música de Frederico Valério, estreada no Teatro Variedades) e Alerta Está (1943, aut. Alberto Barbosa, Amadeu do Vale, música de Frederico Valério, Raul Ferrão e Carlos Dias, estreada no Teatro Apolo) e por fim regressaria, já como “vedeta”, nas revistas Estás na Lua (1946, aut. Aníbal Nazaré, Nelson de Barros e António Pôrto, música de Raul Ferrão, Fernando de Carvalho, Frederico Valério e João Nobre, estreada no Teatro Apolo) e Se Aquilo Que a Gente Sente (1947, aut. Alberto Barbosa, José Galhardo, Luís Galhardo e Vasco Santana, música de Raúl Ferrão, Frederico Valério e Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Variedades), altura em que se retirou para desenvolver uma carreira exclusivamente de cantora ainda que pontualmente tenha actuado como actriz em filmes. Consciente do desenvolvimento de uma indústria do espectáculo, Amália constituiu a Companhia de Revista Amália Rodrigues, com a qual regressou ao Brasil, onde permaneceu 10 meses em actuações semanais no Casino Copacabana. É precisamente nesse momento que gravou os seus primeiros fonogramas. No regresso a Portugal actuou nas operetas A Rosa Cantadeira (1944, aut. Amadeu do Vale, música de Frederico Valério, estreada no Teatro Apolo) ao lado de Hermínia Silva, e Mouraria (na reposição de 1946 no Teatro Apolo, da opereta de 1926 já referenciada). Só mais uma vez regressaria aos palcos no duplo papel de actriz e cantadeira na reposição de 1955 da peça de teatro declamado A Severa de Júlio Dantas36. Hermínia Silva é certamente um caso extraordinário de interligação de uma fadista com o teatro. A cantadeira articulava a sua “fadistice” com um rasgo cénico cómico enquanto actriz, a ponto de se ter afirmado como uma das principais intervenientes quer no teatro de revista, quer no fado. Diria a um jornal que “a [sua] forma de cantar alia-se em parte, à maneira de representar” (Ecos de Portugal, Agosto 1950) ainda que reconhecesse diferenças: “O fado no palco é diferente do fado no estrado? Completamente. No palco, distante do público, requer espectáculo; no estrado, toda a nossa alma está pertinho do espectador” (Voz de Portugal, 1 de Abril de 1950). Nas suas próprias palavras (citada em Marceneiro 2004: 31), desde sempre tinha interesse em vir a integrar o meio do teatro, no entanto as suas primeiras actuações foram como cantadeira na Esplanada Egípcia instalada no Parque Mayer, no final da década de 20. Daí transitou para o teatro tendo participado em mais de 50 revistas e operetas entre 1931 e 1976. Enquanto fadista, Hermínia Silva afirmou-se como uma das principais criadoras de fados-canção que, uma vez estreados nos palcos de teatro, foram gravados em disco e tornaram-se sucessos autónomos relativamente ao trabalho teatral em que estavam inicialmente integrados. Ficaram célebres as suas criações “Marinheiro Americano” na revista Estrelas de Portugal (1936, aut. Lino Ferreira, Fernando Santos e Lourenço Rodrigues, música de Raul Portela, Fernando de Carvalho e António Lopes, estreada no Teatro da Trindade), “Fado Mal Falado” na revista Ai bate, bate (1948, aut. Fernando Santos, Almeida Amaral e Fernando Ávila, música de Fernando de Carvalho, estreada no Teatro Avenida), “Velha Tendinha” (Zé dos Patacos, 1934, já referenciada) e “Rosa Enjeitada” (Arre Burro!, 1936, já referenciada) ambos de Raul Ferrão, “Mãos Sujas” (Chuva de Mulheres, 1937, já referenciada) de Frederico Valério. Muito mais cantores, actores, escritores, compositores e empresários, desenvolveram a sua actividade quer no domínio do fado, quer no do teatro. Os autores de letras e ensaístas Avelino de Sousa (também cantor) e Alberto Vitor Machado foram também autores de revistas 36 - Outras revistas em que terá participado Ó Viva da Costa (1944) e Clube das Valsas (1952) e na reposição de 1944 da opereta de 1937 A Senhora da Atalaia. Sobre estas participações não estão disponíveis dados suficientes para poderem ser trabalhadas estas referências.
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Hermínia Silva, Fado Mal Falado Disco de 45 rpm, s/d Colecção Museu do Fado
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e operetas; as actrizes-cantadeiras Fernanda Baptista ou Anita Guerreiro desenvolveram a sua actividade nos palcos e gravaram discos de fado sem nunca terem construído uma carreira fadista convencional no circuito das casas de fado. A “história” do fado faz-se hoje com nomes que trabalharam no meio teatral e graças a ele gravaram repertório identificado como fado (António de Sousa Bastos, Ângela Pinto, Delfina Vitor, Lina Demoel, Cremilde de Oliveira, Nascimento Fernandes, Maria das Neves, Alberto Reis, Zulmira Miranda, Aldina de Sousa, Ema de Oliveira) ou que no teatro acabaram por interpretar fados quando o seu repertório era dominado por “canções românticas” (os “cançonetistas” Alberto Ribeiro, Tony de Matos ou António Mourão). Por último, é importante reconhecer o papel desempenhado pela revista e pela opereta na fixação de um personagem prototípico do “fadista”. Construído do contributo dos autores do texto representado e cantado, a configuração desse personagem muito se deve aos actores que os representaram em palco em “situações fadistas”. Acácia Reis no papel de Severa e Rosa de Oliveira no papel de Rosa Enjeitada (na revista Na Ponta da Unha, 1901, aut. Alfredo Mesquita e Câmara Lima, música de A. Dias da Costa, estreada no Teatro Novo da Rua dos Condes), Júlia Mendes como Severa (na opereta A Severa, 1909, já referenciada), Maria Vitória no papel de Alzira Fadista (na revista O 31, já referenciado), Adelina Fernandes no papel de Cesária (na opereta Mouraria, 1926, já referenciada), Aldina de Sousa como Adelaide Pinóia (na opereta Bairro Alto, 1927, já referenciada), ou Amália Rodrigues a cantar o “Fado do Ciúme” (na opereta Rosa Cantadeira, 1944, já referenciada), todas foram interpretações do personagem “fadista” cujos elementos contribuíram para fixar e que hoje são replicados no teatro e no próprio circuito de apresentação do fado37. Neste tipo de espectáculos, o “fadista” é um personagem recorrente, figura típica de Lisboa, síntese das qualidades e dos defeitos do “ser popular” na cidade. No fantástico espectacular do palco, estes personagens contracenam com entidades simbólicas (Lisboa, os bairros típicos, o próprio fado nos seus matizes, “novo” ou “velho”, “típico” ou “moderno”) consolidando todo o universo referencial do género musical. Ilustração desse processo de gestão dos ícones do fado no palco é a recriação de Maria Albertina do quadro “O Fado” de José Malhoa na revista Vista Alegre (depois re-intitulada Revista Alegre, 1934, Aut. Aníbal Nazaré, música de Georgina Ribas, Gama Lobo e Lopes da Costa, estreada no Teatro do Ginásio com cenários de Sousa Mendes). Se estes personagens reforçam a dimensão existêncial e romântica do “fadista”, a sua atitude boémia e pitoresca foi explorada pelo cómico que possibilitava, em particular o carácter marialva tal como “desenhado” por Estevão Amarante quando interpretou o “Fado Marialva” na revista De Fora dos Eixos (1943, aut. Fernando Santos, Aníbal Nazaré, António Cruz, e Àlvaro Almeida, música de Jaime Mendes e João Nobre, estreada no Teatro Avenida): “eu cá pra mim/ Não há, ó não,/ maior prazer/ do que o selim/ e a mulher./ Rédeas na mão,/ sorrir,/ Amar,/ trotar, esquecer,/ e digam lá se isto é descer// Rapaziada de agora/ Voltai à bota e à espora/ Com orgulho e altivez./ Deixem as coisas modernas/ Arranjem força nas pernas/ Trotar é que é português./ Quem anda ao trote/ Em cima dum bom Alter/ leva no bote/ a mais difícil Mulher!”38.
37 - Na comédia musicada História de uma Fadista (1950, aut. Fernando Santos e Almeida Amaral, com direcção musical de Carlos Dias, estreada no Odeon) Hermínia Silva desempenhou o principal papel como se de uma auto-biografia se tratasse. 38 - Este fado teve um impacte tal que persiste como um dos símbolos maiores do Marialvismo e um dos argumentos recorrentes nas críticas ao universo simbólico do fado enquanto universo conservador, machista.
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Caricatura de Aldina de Sousa e Vasco Santana Opereta Bairro Alto Amarelhe, s/d Colecção Museu Nacional do Teatro
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“A estúrdia! Só dá balbúrdia É que eu vivo e me alimento! Feita só de coração, De alegria e comoção, Toda eu sou sentimento! A moral e convenções Dos burgueses figurões Arrepio à gargalhada! Mas, se a dor me penaliza, Dou a alma e a camisa À primeira desgraçada… Tenho o sangue da Severa Mas os nervos de uma artista… Definir, ai quem pudera, A paixão duma fadista! Nem eu, nem tu compreendes O que dentro em mim eu sinto: A telha da Júlia Mendes, A telha da Ângela Pinto, Ser a Palmira boémia; Da Barriche ter a glória, Mas do fado, irmã gémea Ser da Maria Vitória” (“Fado da Estúrdia” criação de Maria Vitória, na revista O 31, 1913)
Conclusão em jeito de Apoteose Falou-se aqui do espectáculo músico-teatral, de revista e de opereta... e de fado. Falou-se aqui fundamentalmente da “indústria do espectáculo” que, ainda que à escala local, está operativa ao longo de mais de 150 anos. A noção ideológica da “arte pela arte” que tem dominado o contexto de produção ocidental, tantas vezes justificada superficial e transversalmente em discursos de cariz estético-filosófico, tem condenado esta indústria, este campo de produção, a uma curiosa secundarização (porque contrastante com o impacte que tem junto do público que procura o divertimento) quando os estudiosos se propõem analisar as práticas culturais. Tal facto decorre da percepção romântica de se tratar de produtos pouco desafiantes para não dizer alienantes. O teatro de revista, assim como quase todo o teatro musical tem sido tomado como um género menor relativamente às modalidade declamadas ou à ópera que gozavam de um estatuto diferenciado de prestígio (e não como meros produtos de entretenimento que, na verdade, são). O carácter de entretenimento pelo espectáculo tem reforçado uma percepção de futilidade artística que amiúde condenou a sua aceitação entre certos círculos culturais da população. Independente dessa abordagem, os círculos boémios e populares sempre demonstraram interesse pelo teatro de revista, não só como espectáculo de entretenimento, mas também como veículo de promoção de ideologias ainda não estabelecidas e intensa crítica social e política. Sendo um modo de produção de carácter profissional (industrial, pela sua divisão do trabalho em especialistas de determinadas áreas como letristas, compositores, empresários,
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“Fado do Pão de Ló” do Vaudeville Pão de Ló Partitura, s/d Colecção Nuno Siqueira
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agentes, técnicos de cena, actores, editores, etc.), este dificilmente poderia ser legitimamente abordado enquanto produto musical e teatral que era. Grande parte dos estudos realizados limita-se a analisar os textos, considerando as suas implicações políticas, e tomando-os como reflexos sociológicos do contexto. Mas esta parece ser, ainda que importante, uma abordagem superficial. Por isso, afigura-se fundamental pensar o teatro musicado e o fado enquanto indústria (do espectáculo, fonográfica, etc.), considerando o som e as canções, bem como todos os outros actores actuantes neste complexo domínio. Dessa abordagem é possível extrair importantes conclusões, que estudos mais aprofundados detalharão: o teatro funciona como o primeiro motor de uma indústria local de música em geral, e da indústria fonográfica em particular; a indústria do espectáculo é um dos principais promotores do desenvolvimento do universo do fado (pela promoção de intérpretes, autores e repertório); o teatro musical, ao promover alterações estruturais no repertório do fado ao instituir a forma musical específica do “fado-canção”, constitui-se como um dos quatro grandes agentes de mudança neste domínio39; consequência disso, exigiu a afirmação ideológica e estética de um repertório tradicional, o “fado-fado”, estabelecendo claramente as duas posições relativamente a uma ideia de autenticidade inerente à prática fadista; o teatro de revista e a opereta desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento icónico do fado pela sua caricatura dos tipos; a gravação dos fados interpretados nas revistas e operetas da primeira metade do século XX constituem um significativo corpus de estudo do repertório gravado e da música popular que circulava nesse período localmente. A fadista cantava que era “a luz da gambiarra,/ Que a guitarra/ É mais bizarra/ E que tem mais magia”... Esta exposição, repartida entre o Museu Nacional do Teatro e o Museu do Fado, e o seu catálogo é a materialização de todo este argumento, tão conhecido e praticado por fadistas e actores, e que agora, espera-se, lance pistas fundamentais para o estudo da música em Portugal no século XX. Pedro Félix
39 - Os outros seriam a censura, a intervenção de autores legitimados como David Mourão-Ferreira e Alain Oulman e a formação de um mercado de worl music no qual o fado rapidamente se inscreveu.
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Fernanda Baptista s/d Colecção Museu Nacional do Teatro
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Bibliografia
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Opereta Mouraria Fotos das partituras “Canção do Chale” e “Fado Adelina Fernandes” Coplas da Opereta Colecção Nuno Siqueira Jornal Canção do Sul, 5 de Fevereiro de 1927 Discos de 78 rpm, s/d Colecção Museu do Fado
Cartaz da Revista O Senhor da Serra, Teatro Apolo Amarelhe, 1930 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Mercedes Blasco Opereta O Brasileiro Pancrácio, Teatro Trindade, 1893 Memórias de uma actriz, 1907 Colecção da Autora
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MERCEDES BLASCO: O FADO DA SUA VIDA OU “OS FADOS DA MERCEDES”
“Espero que o meu país, cuja opinião prezo, acima de todas [me] fará um dia inteira justiça. E se os meus contemporâneos não souberem fazê-la [tenho] a certeza de que as gerações futuras reabilitarão a minha memória” Carta a Albino Forjaz de Sampaio, (Apud, 1920: 148) “Fui sempre uma revoltada contra a rotina e andei em tudo adiantada. Até vim ao mundo aos sete meses!” (1937:56) “O fado, essa música que não tem igual em todo o mundo, essa melopeia comovedora que perturba os espíritos” (1907:65)
Sabendo música e possuindo uma bonita voz que as lições de mestre Salvini1 educaram e os contemporâneos reconheciam, Mercedes sentiu desde jovem uma apetência grande para o canto e para o teatro, que muito cedo frequentou com os pais, no Porto, onde viviam. Talentos que não foram alheios ao facto de ter sido encaminhada para os géneros de opereta e de revista em que se distinguiu. Não conseguimos determinar como e quando nasceu o seu interesse pelo fado mas sabemos que o cantava com regularidade em festas e convívios particulares, tendo sido numa dessas vezes, já em Lisboa, que o Conde de Ficalho a ouviu e aconselhou a que o cantasse em público (1907: 129). Foi o seu alvitre que a encorajou a aprender guitarra “com o distinto guitarrista Raposo” (1907: 80) e a compor e escrever um fado que introduziu no papel do morgadinho Alberto, criação sua, na opereta de costumes populares - O Brasileiro Pancrácio -, original de Sá de Albergaria e Freitas Gazul (1907: 106-107). Estreada em Junho de 1893 no teatro da Trindade e reposta mais tarde por Mercedes no Real Coliseu, da Rua da Palma, O Brasileiro Pancrácio foi um dos maiores êxitos do teatro português no advento da República “pelo agrado” e pelo “grande número de récitas alcançadas”, como reconhece Sousa Bastos2 no Dicionário do Teatro Português, omitindo, contudo, o nome de Mercedes Blasco (Bastos, 1908). Já no livro anterior, - Carteira de Artista -, menosprezara e ridicularizara, até, esta iniciativa de Mercedes, inédita nos palcos portugueses e que o público tanto apreciara, referindo apenas que fizera o morgadinho do Brasileiro Pancrácio “para o qual ela mesmo compôs um fadinho, que cantava”. Na resenha verrinosa aí deixada concedia-lhe, é certo, muita “inteligência” e “uma bonita voz” para logo acrescentar ser “pena que a tornem inútil uma excessiva vaidade 1 - Gustavo Romanoff Salvini (1805-1894) vivia no Porto e foi autor do Cancioneiro Musical Português, 1ª edição, Leipsig, David Corazzi, 1884. 2 - António Sousa Bastos (1844-1911) empresário teatral, escritor e jornalista português foi o grande impulsionador do teatro de revista em Portugal, levando-o para o Brasil em digressões sucessivas a partir de 1881. Devem-se-lhe igualmente os primeiros escritos sobre teatro em Portugal.
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Figurino para Hortense Luz na Revista A Rambóia José Barbosa, 1929 Colecção Museu Nacional do Teatro
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e a preocupação de agradar pelos requebros libidinosos” (Bastos, 1898: 379-380). Com a “bonita voz” remetida a coisa inútil e não lhe reconhecendo outros talentos artísticos sem, contudo, deixar de assinalar a sua entrada “notavelmente despida” em As Farroncas do Zé, restava a Mercedes Blasco, para a posteridade, muito pouco para se notabilizar como actriz e cantora: a “excessiva vaidade”, os “requebros libidinosos” e o ter sido a primeira actriz que apareceu em cena “despida”; ou seja, em nudez simulada, com um maillot cor de carne, a fim de recriar as célebres “poses plásticas” da princesa de Caraman-Chimay (Clara Ward, 1873-1916), mandado vir de Paris para melhor interpretar a personagem. Seria interessante colocarmos lado a lado as fotos de Mercedes e Caraman-Chimay (que existem) nas respectivas poses plásticas para avaliarmos das semelhanças. Se juntarmos a todos os defeitos apontados pelo referido empresário o facto ter sido a primeira mulher a cortar os cabelos e nunca mais os deixar crescer, pintá-los de louro - “que tão mal lhe ficam” -, mas que, por sua vez Alfredo Gallis compara à cabeça de “um anjo de Boticelli” (1907: 145) ou ainda, ter entrado em palco montada numa bicicleta e ousar andar livremente nela pelas ruas de Lisboa, teremos em Mercedes Blasco a personificação do “escândalo” em Portugal. Aliás esta sua façanha seria assinalada por Henry Lyonnet (1853-1933) em Le Théatre au Portugal, editado em 1899: “(...) la jolie et trés intelligente Mercedes Blasco, poétesse à ses heures, traductrice de piéces françaises, maligne comme un petit diable, chantant et disant à merveille en français nos chansons de café-concert, et renversant tous les prejujés établis (à Lisbonne!) en osant se montrer sur l’Avenue em bicyclette! (Apud 1907: 149) Bastos só não consegue esconder que Mercedes “conseguiu agradar” em Miss Helyett porque o êxito fora inquestionável e, com ele, o nome da actriz fixado a este género teatral. Mas quando trata especificamente daquela opereta e da sua representação no nosso país, não só omite o nome da intérprete como afirma que a peça “não fez o sucesso esperado por deficiências de desempenho” (Idem, 1898: 412). Vejamos agora o que na altura registou no Almanaque dos Teatros3, em finais de 1892, a voz autorizada do seu director4 sobre a estreia de Mercedes na Trindade em Mam’zelle Nitouche, que Bastos afirma ter perdido muito no “confronto com Lucinda do Carmo” e da sua interpretação igualmente censurada de Miss Helyett: “Mercedes Blasco! Eis o nome de uma graciosa artista, que é daquelas que se impõem à minha admiração com o convencimento natural do que valem e do que merecem e para quem é justiça o preito de uma sincera homenagem de respeito e até de entusiasmo, quando, como Mercedes, se ama a arte com verdadeira crença. O público lisbonense teve ocasião de conhecer que Mercedes Blasco era uma das actrizes de mais talento que nestes últimos anos tinha aparecido em Portugal, bastando ver a rapidez com que ela fez a sua carreira, com que passou logo a figurar em lugar de honra entre as primeiras actrizes. (...) Musa de vaudeville, diva de opereta, Mercedes Blasco é uma verdadeira estrela de companhia. Em ambos os géneros brilha notavelmente.” Sobre Man’zelle Nitouche: “(...) vi-a no difícil papel de Nitouche subordinado a um confronto, cheio de tácitas exigências, afirmando desde logo os seus incontestáveis dotes artísticos, a espontaneidade da sua vocação e sobre tudo a beleza da sua voz.”
3 - Almanaque dos Teatros para o ano de 1893, dirigido por F. A. De Mattos, João Romano Torres, Editores, Lisboa, 1892 4 - Francisco António de Matos (1845-1902) jornalista, director do Almanaque dos Teatros, colaborou com Augusto de Castilho (1841-1912) na publicação por este criada: Brasil-Portugal: revista quinzenal ilustrada (1899-1914).
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Memórias de uma Actriz Mercedes Balasco, 1908 Colecção da Autora
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Sobre Miss Helyett: “O modo como Mercedes Blasco interpretou o importante, complexo e um tanto incaracterístico papel de Miss Helyett, foi digno do sincero aplauso da crítica, porque ele revelou da parte da simpática actriz uma fina e espontânea intuição artística, e um valioso documento do estudo perseverante, que a havia de levantar à evidência que lhe está reservada.” (Almanaque 1892: 49-50). Mas voltemos ao aparecimento do Fado com Mercedes Blasco. Como sabemos, nos finais de oitocentos o fado estava ainda demasiado circunscrito e estigmatizado para que uma mulher pudesse aparecer a cantá-lo publicamente num palco, com versos e música de sua autoria, acompanhando-se à guitarra e com a agravante de traçar, as pernas para poder apoiá-la, coisa nunca vista, até porque naquele tempo as mulheres “sentavam-se com os pés muito juntinhos, com muita compostura” (1937: 55) como preconizavam os manuais de civilidade femininos. Foi, portanto, em O Brasileiro Pancrácio que Mercedes Blasco cantou, pela vez primeira, em público, o fado “do Morgadinho” e o êxito foi de tal forma que noites havia em que tinha de o “repetir dez e doze vezes, chegando os artistas e coros que estavam em cena a sentar-se no chão, porque não podiam conservar-se de pé tanto tempo” (1907: 106), afirmando Mercedes ter sido “a primeira artista que cantou o fado em público acompanhando-se à guitarra” e ser a detentora do “recorde de bis” em palcos lusos precisamente com esta opereta (1937: 56). É pena que a letra deste fado não tenha chegado aos nossos dias ou, pelo menos, a não conheçamos. Seria um documento importante. Sabe-se, no entanto, que foi aí o início da popularidade crescente da actriz e os “fadinhos da Mercedes” passaram a ser exigidos nos espectáculos e requisitados para qualquer “festa de caridade” das muitas que então se organizavam. Foi a grande loucura do público lisboeta, acontecendo por vezes encontrar-se, anónima, entre a assistência, e o público, reconhecendo-a, pedir-lhe “o fado com tal insistência, que não tinha remédio senão ir ao palco cantá-lo”. Como curiosidade, diga-se que este seu morgadinho parece ter feito “andar muitas cabeças à roda, não só de homens, mas de mulheres também” recebendo a artista cartas “inflamadíssimas” e até poemas de várias senhoras. De tal forma se integrou na personagem do morgadinho que Mercedes sentia-se “verdadeiramente rapaz (...) naqueles três actos” da peça (1907: 107-108). Sem revelar nomes, apenas as iniciais, - um princípio que se impõe e a que obedecerá sempre -, Mercedes transcreve, no entanto, um curioso poema recebido de uma “dama da alta sociedade” que alude aos lábios grossos da actriz a que as colegas, despeitadas, chamavam “beiços de preta”. “Conta-se que dá a morte O aroma da mancenilha; É pois a flor africana O teu lábio, oh! Maravilha! (...) Na rubra flor dos teus lábios Bebe-se a morte e a vida, Oh! Fugidia quimera, Que me atrai e me intimida.” Mais tarde vem a repor a peça no Real Coliseu, na Rua da Palma, com o mesmo êxito, tendo sido glosada a 9 Maio 1896, em Os Ridículos, jornal humorístico fundado em Outubro do ano anterior por Caracoles (José Maria da Cruz Moreira) e Esculápio (Eduardo Fernandes): “Chega-mo! O belo, o rico Brasileiro Pancrácio! O Augusto a fazer pirraças ao regedor, o mestre-escola a dizer muitas asneiras, o gaiato do morgadinho a cantar o fado, a terna e carinhosa Cristininha a desmaiar apaixonada, a
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Carta de Francisco Valença Memórias de uma actriz, 1908 Colecção da Autora
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Custódia e o Zé da Paula a cantarem à desgarrada, a senhora fidalga a tomar as pitadas do padre, o brasileiro a esbodegar-se com os seus amores, tudo isto é o enredo que diverte o Zé e lhe dá noites de verdadeira alegria. Amanhã e depois são duas enchentes à cunha no Real Coliseu! Grande ideia! Viva o Santos! Viva o Minhava! Viva o Salvador Marques! Viva o Lopes! Vivam todos! Bem dada bola!” 5 Esta opereta de costumes coincidiu, nos salões do Real Coliseu, com a “primeira exibição do cinema” aos lisboetas que ali era apresentado em “quadros muito pífios e cheios de nervoso” mas cuja novidade desencadeou uma inaudita afluência de espectadores que, a par com O Brasileiro Pancrácio e o fado aí cantado por Mercedes levava “todas as noites sucessivas enchentes” àquela casa de espectáculos (Esculápio, 1940: 197). Foi ainda o Real Coliseu palco de uma festa artística de Mercedes, o chamado “benefício”, no dia 11 de Fevereiro de 1898, e que a actriz recorda como a que “maior felicidade lhe trouxe” pela presença de muitos amigos e a profusa distribuição de versos de gente conhecida, destacando os assinados por Fernando Moniz, mas cuja autoria, avisa, pertence a um “fogoso jornalista republicano, meu admirador de sempre, que se oculta sob pseudónimo” e cujo folheto chegou até nós (1907: 172-173). “À DISTINTA ACTRIZ MERCEDES BLASCO (na noite da sua festa artística) Quando à luz da ribalta, ao fogo do proscénio, Aparece teu rosto alegre, encantador, Sente-se faiscar a centelha do genio, A arte a refulgir, aureolando o amor! Qual de mármore antigo, a forma provocante Cinzelada a primor nos faz extasiar, Teu corpo escultural, e teu colo ondeante Pode à Vénus de Milo primícias disputar. Na tua linda voz harmoniosa, suave, Cantam risos de aurora, os hinos de alvorada; Há trinos de cristais como gorjeios de ave, Rouxinóis a saudar a alegre madrugada. Fulgem no teu olhar faíscas de talento, Brilham teus lindos olhos, como se fossem lumes; Deslumbra-se o burgues a fitá-los sedento, Estorce-se a burguesa, ao vê-los, com ciúmes. Quando entras em cena, o público murmura: 5 - O Brasileiro Pancrácio ridicularizava os “torna-viagem”, ou seja, os emigrantes que do Brasil voltavam às suas terras, boçais como antes, mas ostensivos com a bolsa farta de milhões e desejosos de um nome que lhes conferisse estatuto, o que normalmente logravam através de enlaces de conveniência. Por outro lado, investiam em grandes obras de beneficiação em prol da comunidade o que lhes dava prestígio e admiração. Ao contrário, quem regressasse à terra tão pobre como fora, era visto como um falhado e não merecia a consideração dos conterrâneos. Foi uma temática da maior actualidade no século dezanove e particularmente excessiva em Camilo Castelo Branco que criou o esteriótipo do “torna-viagem” rico, ridículo e boçal.
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Figurino “Fado Clássico (Lucy Snow)” Angelilo, s/d Colecção Museu Nacional do Teatro
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«Dou por bem empregado o meu dinheiro!» Então O maestro pasmado esquece a partitura, Desafina a requinta, a flauta, o rabecão. Envergonhada a luz do gas empalidece, Julga-se nos fauteuils a gente da geral. Até de pedir bilhete o porteiro se esquece, A polícia sorri e perde o ar marcial. É porque tu reúnes ao talento a beleza, À forma o sentimento, à arte a inspiração, Ao trabalho a finura, à graça a gentileza, És actriz e mulher, teatro e coração. Montas em bicicleta e montas a cavalo Fazes versos, traduzes peças, a rigor, Sabes cantar o fado a primor, um regalo, És a arte a fulgir, aureolando o amor! Lisboa, 11-2-98 Fernando Moniz “ Em Junho de 1894, já com Sousa Bastos à frente do Teatro da Trindade, estreia-se a revista da sua autoria, Sal e Pimenta, que Mercedes não integra no início por se encontrar doente. É nesta revista que Bastos promove a principal figura na revista, Palmira Bastos6. O público não gostou de ver uma jovem desconhecida ocupar o lugar da célebre Pepa Ruiz7 e recebeu-a com pateadas nas primeiras representações, “o que não impediu o sucesso que a revista teve” (Rebello, 1984: 100) e para o que muito contribuiu o reaparecimento de Mercedes, em Outubro. Vejamos o que diz desse reaparecimento o crítico do Correio da Manhã e o destaque que dá ao fado aí cantado. “Reapareceu quarta-feira no teatro da Trindade a distrinta actriz de ópera cómica, Mercedes Blasco. Logo à sua entrada no 1º acto do Sal e Pimenta foi acolhida com uma calorosa salva de palmas. Mercedes vinha realmente encantadora no seu costume de Comissária de Polícia que traía uma plástica de linhas esculturais. Disse com muita propriedade e graça as coplas do leque, sendo chamada no final do acto. Sousa Bastos foi também chamado, apresentando ao público a sua querida intérprete, abraçando-se os dois afectuosamente no meio de uma chuva de palmas e bravos. No 2º acto Mercedes fez o Pimpão, cantando um fado muito bonito, a que a sua melodiosa voz imprimiu modulações de um agrado extraordinário, Muito aplaudida e tendo de bisar.” 6 - Palmira Bastos (1875-1967) chamava-se na realidade Maria da Conceição Martinez, tendo debutado como Palmira Martins e passando a Palmira Bastos depois de ter casado com o empresário Sousa Bastos em 1 Julho de 1894. Foi ainda com o marido e empresário que Palmira transitou para o teatro declamado, por que enveredou. 7 - Pepa Ruiz (1860-1923) era espanhola tendo acompanhado a irmã num grupo de zarzuela, ao nosso país. Por cá ficou, seduzida por Sousa Bastos que a admirava e com ela fez os maiores sucessos revisteiros, levando-a em sucessivas tournées ao Brasil a partir de 1881. Perdido o lugar que ocupava no coração e nas peças de Bastos, Pepa Ruiz partiu para o Brasil onde era admiradíssima e ficou conhecida como a “Rainha da Revista”, aí falecendo em 1923, com 63 anos. Disse Sousa Bastos em 1908: “ainda não apareceu ninguém como ela para dar vida e animação a uma revista”.
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Mercedes Blasco Postal, s/d Colecção Teatro Nacional D. Maria II
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E o crítico termina, sublinhando: “A revista de Sousa Bastos tem agora um atractivo de primeira ordem e ninguém que se preze deve deixar de ir à Trindade, ver o assombroso trabalho de Mercedes, cheio de verdade e de talento, e que demonstra bem o seu muito estudo” (Apud 1907: 14-15). Tudo leva a crer que, até aqui, Sousa Bastos apreciava o trabalho de Mercedes tendo mesmo a gentileza de pagar-lhe o ordenado por inteiro enquanto esteve doente e não poude trabalhar, o que a leva a desabafar: “não compreendo como os seus sentimentos mudassem sem motivo: só se foi pelo agrado que conquistei na sua revista Sal e Pimenta” (1907: 13-14) ou seja, pela ofuscação que fazia, ou podia fazer, a Palmira Bastos, a jovem por quem se apaixonara e estava empenhado em promover. Foi assim que o Fado não mais deixou de ser cantado, ora integrado na revista, ora sob o formato institudo por Mercedes, nos “entre-actos” ou intervalos das peças, sozinha em palco com a sua guitarra. Habitualmente começava com uma ou duas cançonetas francesas, à moda de Yvette Guilbert8 a célebre musa de Toulouse-Lautrec que reinava no Moulin Rouge e cujo estilo Mercedes adoptou no nosso país, e finalizava com os célebres “fados da Mercedes”, quase sempre com letras suas ou de outros, como Esculápio, o homem das “gazetilhas” de O Século, versando acontecimentos políticos e sociais que estivessem na ordem do dia. Refira-se que Mercedes era bastante culta e poliglota falando especialmente bem o espanhol por ter vivido os primeiros sete anos de vida, em Huelva, e o francês, por tê-lo aprendido com Blanche Aussenac, que, tal como Salvini na música, eram as grandes referências no ensino de oitocentos no Porto, cidade onde a família se instalara no regresso a Portugal (Abreu, 2011: 108). Digressões pela Província Mercedes conta-nos a razão desta sua iniciativa. Estávamos em 1899 e, “como visse que os empresários estavam todos governados e (...) nada tinha aqui a fazer, organizei uma troupe para percorrer as províncias” (1907: 200). Não podemos afirmar que tenha sido a primeira mulher a organizar e dirigir uma companhia para percorrer os pequenos teatros da província, mas saudamos esta iniciativa de Mercedes Blasco ao sentir-se dispensada pelos empresários da capital. Mais uma vez através de O Século, pela mão do jornalista Augusto Peixoto, falecido no ano seguinte e pai do seu primeiro filho9 (Esculápio, 1940: 256) somos informados da forma como decorreu esta primeira tournée que o empreendedorismo de Mercedes levara a terras da província. “Terminou na Covilhã a tournée artística que a companhia Mercedes Blasco há mais de três meses iniciou por vários pontos do país. Principiando a sua digressão em Setúbal, seguiu para Torres Novas, Santarém, Vila Real, Chaves, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Braga, Bragança, Portalegre, Guarda e Covilhã, fazendo-se sempre aplaudir com entusiasmo. Como principal artista do grupo ia Mercedes Blasco, essa primorosa artista de opereta que tanta sensação faz sempre que aparece nos nossos palcos, não só pela sua suprema elegância, como, e sobretudo, pela graça, ar desenvolto e vivacidade que imprime a todas as personagens que desempenha. 8 - Yvette Guilbert (1865-1944) foi uma célebre actriz e cantora de cabaré, francesa, da Belle Époque. Em 1890 era a atracção principal no Moulin Rouge, em Paris, tendo-se tornado a musa inspiradora de Toulouse-Lautrec. Correu mundo e actuou em Lisboa, no Teatro República, (actual S. Luis), em 1911 (O Mundo de 31 Março 1911). 9 - Stélio, nascido em 1900, em Lisboa, e falecido durante a guerra, em Liége, a 3 de Setembro de 1917, sendo enterrado a 5 do mesmo mês no cemitério de Robermon naquela cidade, vitimado pela tuberculose.
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“Fado do Chulo e da Infeliz” da Revista Asnoplano Partitura, s/d Colecção Nuno Siqueira
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É no género ligeiro uma das mais notáveis artistas. De uma mobilidade fisionómica que impressiona, (...) possuindo uma voz de um belo timbre e muito afinada, amoldando-se nitidamente a todas as dificuldades da música, muito ilustrada, poetisa até, Mercedes Blasco tem um lugar notável entre as artistas do seu género. Sempre que se encarrega de qualquer papel, compreende-o sem o menor esforço, dando-lhe a mais harmoniosa interpretação, e criando a sua personagem sem fugir a nenhuma das exigências cénicas. (...) Como cançonetista e cantora de fados, ainda Mercedes conquistou o lugar mais notável, sendo inexcedível na maneira como ela diz a letra francesa com o acento irrepreensível duma parisiense e acompanhando a frase com adequada interpretação de gesto. Nos fados, a sua voz de uma tão doce melancolia, faz daquela deliciosa música nacional um dos seus maiores triunfos de artista. Neste género conquistou foros de verdadeira celebridade, não só entre nós como no estrangeiro, onde se tem feito aplaudir, por várias vezes. [referia-se à viagem que Mercedes fizera em 1897 ao Pará, Brasil] (O Século, 28 Agosto 1899). Em 1900 e “um mês depois de dar à luz o (...) primeiro filho” Mercedes empreende uma nova tournée pela província, desta vez visitando Faro, Tavira e Viseu entre outras terras (1907: 203). Sabemos que foi nesta sua segunda digressão que visitou Elvas, tendo aí ocorrido o episódio que se segue, recordado em 1927 por quem a ele assistiu, e que aqui inserimos por nos parecer paradigmático da personalidade da nossa artista. “Recordo-me que Mercedes Blasco, na sua época de exibicionismo retumbante, fresca de gestos e expressões e sobretudo de vestidos, visitou uma vez Elvas e, num entre-acto, cantou fados. Foram as primeiras manifestações de frescura teatral lisboeta em terras da província. O preconceito julgou-se esbofeteado. Os pais abespinharam-se, as mães coraram e as meninas abriram mais os olhos. Os intelectuais de bom trajar olharam-se indignados. Mercedes Blasco, de pernas trocadas para suporte da guitarra, mostrando as pernas um pouco acima dos joelhos e deixando ver o delineamento dos seios, cantava de olhos em alvo e sorriso brincalhão. Horror! Quando terminou, se ergueu e em seguida se curvou senhoril, aguardando a girândola apoteótica das palmas, ouviu uma destas pateadas que deixam nome no foro dos bastidores. A plateia elvense acabava de castigar o desaforo de uma actriz de nomeada, é certo, mas uma actriz atrevida. Mercedes, curvada ao peso da pateada, foi recuando até que o pano desceu. Artista ilustrada, suportou ali, como lhe cumpria e reverentemente, a opinião do auditório. Admirou-se depois e, sofreando o insulto, aguardou o dia seguinte, em que voltava a representar por obrigação do seu contrato. Ao segundo espectáculo, contra a expectativa dolorosa do empresário e a esperança desolada da companhia, o teatro estava literalmente cheio. Grande enigma da psicologia humana! Mercedes representou um qualquer papel de saloia numa opereta. Foi aplaudida com certa reserva. Em acto final, a sós, Mercedes apareceu vestida de luto rigoroso. Vestido de cauda, manga até ao dorso das mãos e gola até quase às orelhas. Vinha triste de aspecto. A plateia sucumbiu de espanto e parece que de remorso pelo que fizera na véspera. A orquestra rompeu dolente, melodiosa. Mercedes, sintetizando amargura, num jogo fisionómico aterrador, cantou uma canção em francês, que pouquíssimos aqui e além compreenderam. Foi soberba de gesto e de tortura. Ao terminar, levando o lenço aos olhos e soluçando, curvou-se. Os assistentes, de pé, emocionados, deram demoradamente e freneticamente palmas, numa colossal e memorável ovação. Caído o pano, Mercedes encolheu os ombros, sorriu e dirigiu-se ao camarim. No dia seguinte, de manhã, a companhia partia para Lisboa. À partida, alguém que lhe ouvira a canção francesa disse para uns amigos: - «Mercedes Blasco desafrontou-se brutal e ironicamente. A canção francesa era letra dela. Mercedes, num improviso admirável em que de fio a pavio ridicularizou o público elvense acabara por dizer que os elvenses tinham cara de queijo londrino. Eu percebi e calei-me. Agora que partiu já o posso dizer.»
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Folheto da Festa Artística de Mercedes Blasco Real Coliseu, 11 de Fevereiro de 1898 Colecção Biblioteca Nacional
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E no dia seguinte os intelectuais de bom trajar andavam com uma cara que lembrava cadáveres exumados. Mas Mercedes não mais voltou a Elvas.” (Paiva, 1927: 41-43). Sempre muito acarinhada pelos estudantes, chegando a fazer uma conferência em Coimbra a convite da Associação Académica, em 29 de Março de 1930 - Uma hora de amor -, que seria publicada nesse mesmo ano, Mercedes teve nesta digressão de novecentos um acolhimento muito caloroso em Viseu por parte da academia local. Na última noite de representação “toda a academia entrou no palco, rodeando-me, enquanto cantei o fado, e ofereceu-me um lindo bouquet de flores”, acompanhado das quadras que seguem (1907: 173-174): “Homenagem Mercedes, Salvé! Vamos ouvir-te os fados, - obscuros romeiros – admirar-te o génio E em tua guitarra, aos clarões do proscénio, Ouvir corações a chorar apaixonados! Canta-nos os fados, faze-nos sonhar Ao som dessa voz de celestial encanto, Doce colibri que traduzes num canto A alma portuguesa, a alma popular. Adeus. Adeus, pois! Por entre aclamações Meteoro segue a esteira deslumbrante. Sempre a tua imagem ficará ovante No saudoso altar dos nossos corações! A Academia de Viseu” Guilherme Portugal de Faria, irmão do então nosso cônsul em Livorno, também aí lhe dedicou um soneto que distribuiu pela sala: “A Mercedes Blasco Les Vizéens frileux, blottis en leurs demeures, Passaient, auprès du feu, leurs soirs avec ennui; Mais tu viens, Mercedes, et tous, avant neuf heures, Épris de tes chanson, bravent la froide nuit! Ta voix soeur du Zéphyr, est une douce haleine, Qui porte á tous les coeurs le feu de ton Coeur d’or. C’est une melodie étrange de Siréne; C’est une voix céleste, un sublime trésor! Quand gracieusement tu dis: “Laissez-moi rire!”, Quand tu chantes “celui qui rit toujours”, Ou que, sur la guitare – écho de nos amours -, Tu chantes les “fados”: alors, c’est un délire; Alors le coeur palpite, et l’on voudrait te dire: “Oh! reste parmi nous, Blasco, reste toujours! Guilherme Portugal de Faria”
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Maquete de cenário “O Fado em S. Carlos” da Revista Arraial de Lisboa Teatro Maria Vitória, 1959 Colecção Museu Nacional do Teatro
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Esta faceta nómada da agitada vida de Mercedes inspirou ao jornalista republicano Urbano Rodrigues, que veio a ser secretário e chefe de gabinete de Afonso Costa, as palavras publicadas no Novidades, em 28 de Janeiro de 1908: “Esta criatura turbulenta que tanto está num teatro dos primeiros como vai para a provincia com companhias insuportáveis; que ora vive entre estofos, ora habita um casarão velho, mobilado apenas com um piano e uma cama; que escandaliza o burguês pançudo com o seu ruido e vive em camaradagem franca com literatos e boémios: - quando não tivesse mais valor do que o de escrever com a elegância com que focou as Memórias e o de ter sido num meio insípido e apático uma figura de diabólico sucesso, tinha, com isso, direito para se julgar e apregoar a mais interessante rainha de opereta ou estrela de revista” (Apud 1908: 41-44). O Fado no Teatro S. Carlos O ano de 1896 (11 Maio) ficará assinalado como aquele em que pela primeira vez o fado foi levado ao Teatro S. Carlos, pela voz de Mercedes e acompanhando-se à guitarra, como sempre. Aconteceu isso numa récita em benefício da Caixa de Socorros aos Estudantes Pobres, sob o patrocínio da Rainha Senhora D. Amélia, que se encontrava presente. Foi um escândalo que deu brado na pacata Lisboa de então. Dessa récita memorável diz-nos o compte rendu do Universal no dia seguinte: “A festa dos estudantes, em S. Carlos, foi, como eles, um cintilante parêntesis de bom humor, de contagiosa e espontânea alegria, em um microcosmo sonolento. Em seguida à Tuna, alma vibrante do festival, cabe a primeira menção a Mercedes Blasco (…) Ninguém canta melhor os fados, acompanhando-se à guitarra, do que esta inteligente actriz que sente o que canta e cantando nos envolve em toda a dolente e saudosa melancolia que vem de longe, do fatalismo árabe, do convívio do oceano em regiões estranhas, das legendas e das tradições e repassa em um banho de lágrimas estreladas de beijos toda essa música tão caracteristicamente nossa. Uma ovação delirante acolheu Mercedes, que teve de bisar os fados e aos pés da qual os estudantes estenderam as suas capas, correspondendo assim à gentileza da actriz que em uma trova da sua lavra os saudara a eles.” (Apud 1907: 143-145). Terá sido em S. Carlos que cantou pela primeira vez o seu “hino aos estudantes” (1907: 207): “Estudantes, almas de oiro, Que em tudo levais a palma, Deixai que a Mercedes solte Este brado vindo da alma: Benditos sejais, rapazes, Corações feitos de aurora, Que assim espalhais a alegria Pela senda da vida em fora.”
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Mercedes Blasco Memórias de uma Actriz, 1907 Colecção da Autora
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Internacionalização do Fado com Mercedes Blasco Primeiro... o Brasil Mercedes deslocou-se por duas vezes ao Brasil, em 1897 e em 1908, e em ambas teve problemas com os empresários, se bem que agradasse ao público. Na primeira vez embarcou em 16 de Agosto de 1897 no vapor Anselm para juntar-se à companhia de Sousa Bastos que se encontrava a trabalhar no Estado do Pará, tendo-se aí estreado no Teatro da Paz, com a “Mam’selle Nitouche”, a opereta com que debutara em 1890 em Lisboa, no Teatro da Trindade, e ainda “uma canção francesa e fados num dos intervalos” (1907: 155-163). Sobre esta sua actuação dá notícia um dos jornais locais: “Ao fim do 2º acto, Mercedes Blasco cantou irrepreensivelmente uma cançoneta francesa e em português, acompanhando-se à guitarra, os Fados. Foi para a maioria dos assistentes um hors-d’oeuvre em todos os sentidos. A sala pediu bis, reclamou nova copla e aplaudiu com delírio. Notamos então que existe em Mercedes Blasco duas entidades artísticas: a cantora de operetas obediente a uma segura orientação no género e a cantora de fados. E para cada uma destas personalidades tem Mercedes Blasco uma voz especial (…) Seis vezes veio a Blasco ao proscénio, ao terminar o ultimo acto; e já as luzes da sala começavam a apagar-se, quando cessaram os retumbantes aplausos da plateia. Há um facto digno de nota. Ninguém ignora que os frequentadores do teatro da Paz, sempre reservados em suas palmas, redobram de frieza em noites de estreia. Pois anteontem deu-se este caso anormal de estar a sala inteiramente animada, prodigalizando à Blasco incessantes ovações. Foram os aplausos mais espontâneos que desde muito ali irrompem.” (Apud 1907: 158-159). Foi nesta digressão que António Carvalho, um dos “mais talentosos jornalistas do Pará” a homenageou com os versos seguintes: “Aos olhos de Mercedes Blasco Eu canto o fado saudoso, O fado canto ao luar; Mas se o tempo está nublado, Canto-o à luz do teu olhar. Tem a estrela cinco pontas Agudas como punhais; São teus olhos como a estrela: Não ferem mas são fatais! Dá-me os teus olhos, menina, Para atirá-los ao céu; Mais duas gentis estrelas Brilhando no azúleo veu. Neles transluzem virtudes Cintila um negror fatal, De bem eu leio epopeias, Leio poemas do mal.
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Mercedes Blasco Memórias de uma Actriz, 1907 Colecção da Autora
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Ai! …muito embora ao fitá-los Perca a luz dos olhos meus, Guiado pelos teus olhos, Eu irei até aos céus. E a cumprir o triste fado Hei-de arrastar minha cruz, Até achar o caminho Que à tua porta conduz… António de Carvalho” Voltará a deslocar-se ao Brasil em 1908, a bordo do Amazone, na companhia organizada por Afonso Taveira e que o actor José Ricardo também integrava, com o objectivo de actuarem no Teatro Apolo, no Rio de Janeiro. Este convite ocorrera após a saída do Memórias de uma Actriz, em Dezembro de 1907, um livro que causara escândalo e esgotara rapidamente pela franqueza de Mercedes sobre a sua vida pessoal e artística mas, também, pela audácia de vir rebater publicamente o que sobre si escrevera Sousa Bastos em Carteira do Artista, de 1898. Todos os nomes então maltratados se haviam calado. Apenas Mercedes, aproveitando a reclusão após o nascimento do segundo filho10 ousava afrontar este importante empresário lisboeta por considerar haver escrito “uma obra daninha para elucidação das gerações futuras” e fazendo questão de responder “a um livro com outro livro” para defesa do nome e para Memória Futura. Não é difícil imaginar como estaria, ao rubro, o nosso pequeno e atribulado meio teatral. Por sua vez, Sousa Bastos irá lançar nesse mesmo ano (1908) um outro livro, o Dicionário do Teatro Português e, em acintosa retaliação irá simplesmente omiti-la. Redu-la para sempre ao silêncio. É o que de Mercedes ficará para a posteridade. Nesta sua viagem Mercedes leva as Memórias de uma Actriz, em terceira edição, expressamente para o Brasil. Aceitara este convite “desejosa como estava de [se] afastar por algum tempo de Portugal, para apagar (...) a impressão pungente” que lhe causara o recente Regicídio e para se sentir “liberta das garras dos (...) inimigos” mas as coisas não correm bem. As cartas anónimas, essa “praga do nosso país” que mais se assemelha a “uma doença endémica” (1920: 29) e que se haviam tornado uma constante na sua vida, perseguem-na. No Rio encontrará duas, uma com selos e carimbos locais, que lhe suscitam as reflexões: “É curioso que para onde eu vá me siga sempre a calúnia e a inveja. (...) acobertam-se sob a máscara do anonimato. E mais curioso é que não é só a guerra directa que me fazem os meus inimigos. Toda a gente que comece a interessar-se por mim recebe cartas anónimas, caluniando-me e procurando alienar-me as novas amizade.” (1920: 56). Por sua vez o empresário por quem fora contratada, - Eduardo Vitorino -, satisfeito em poder anunciar o seu nome para um êxito certo, “não curou de apresentar-me em peça onde as minhas faculdades de actriz e de cantora se evidenciassem (...). Debutei numa sensaborona opereta O Tio Inglês, num papel anódino, sem relevo”, enquanto promoviam José Ricardo (1920: 57). Será pois o desânimo e a insatisfação sentida com a peça que determinam o seu abandono do Rio de Janeiro, mês e meio após a chegada. No regresso, a bordo do Astúrias, virá a conhecer
10 - Marcelo, nascido em Lisboa a 25 de Maio de 1906 e falecido em Lisboa, vítima de tuberculose, em 13 de Junho de 1922.
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Vagabunda Mercedes Blasco, 1920 Capa de Alberto de Sousa Colecção Biblioteca Nacional
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o homem com quem casará, - Remy Ghekiere11 -, um engenheiro belga de origem alemã que fora visitar a família ao Rio e, com ele, vai rumar a Paris e à Europa. Em Lisboa ficará apenas umas horas para abraçar os filhos e deixá-los com pessoa de confiança. Regressará em 1910, para levá-los para Liége onde a família se instalara e onde viriam a estudar num colégio interno, tendo sido perfilhados pelo marido, resgatando, assim, Stélio e Marcelo do estigma de “filho de pai incógnito”, por que se sentia profundamente culpada. Entretanto, em Lisboa, fazia sucesso Em nome do Padre..., uma revista da autoria de Câmara Lima12 para que escrevera o “Fado do Livro de Memórias” suscitado pela tão badalada “questão do nome” de Mercedes13 que durante anos fora uma das armas de arremesso dos seus detractores, e também empunhada por Sousa Bastos no Carteira de Artista. Conceição Victória Marques - o seu nome de família. Mercedes Blasco, o artístico (1907: 11). “Fado do Livro de Memórias Tal qual a Sarah Bernhardt E mais actrizes notórias, Quis também escrevinhar Minhas patuscas memórias. De actriz me arrogo altas glórias Mil encantos de mulher! Que acredite quem quiser, Que isso a mim não me apoquenta Presunção e água benta Cada um toma a que quer! Para que mais não se grite Que em nome falso me enfrasco, Declaro não ser Judith, Nem ser Mercedes, nem Blasco! Sou Conceição... mas com asco De o mudar deu-me na telha, P’ra não me olharem de esguelha, Do meu talento ao dar prova, Quer fosse Conceição Nova, Quer fosse Conceição Velha!”
11 - Será Remy Ghekiere, muito mais novo que Mercedes, quem perfilhará os dois filhos desta, Stélio e Marcelo. Embora encontremos referências a que terá ficado viúva, Mercedes nunca fala na morte do marido. Tudo leva a crer que o casal se tenha separado, sem contudo se divorciar para que os filhos não perdessem direito ao nome. A isso aludem alguns dos seus escritos. 12 - Teotónio Simão da Câmara Lima (1868-1928) nasceu em Angra do Heroísmo, mas cedo veio para Lisboa com a família. Monárquico. Tradutor, jornalista e dramaturgo. Na imprensa revelou-se um humorista de grande finura de espírito, sendo um dos pioneiros do género em Portugal. Publicou várias obras, na sua maior parte peças teatrais, com destaque para as comédias, e compilações das crónicas publicadas na imprensa periódica. Colaborou com Alfredo de Mesquita em algumas peças e libretos para teatro de revista. 13 - Escolheu o nome Judith Mercedes Blasco, de influência espanhola, “para desnortear a família”, quando fugiu de casa, ainda menor, a fim de poder perseguir a carreira artística nos palcos, que os pais contrariavam, destinando-a a Medicina, para o que estudava na Escola Normal do Porto. Ao vir para Lisboa retirou o Judith “por aqui haver actrizes com esse nome”, ficando Mercedes Blasco como nome artístico.
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Musa Histérica Mercedes Blasco, 1908 Capa de Francisco Valença Colecção Biblioteca Nacional
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Mercedes e o “seu fado”, na Europa Madrid... o início Em 1898, Mercedes faz a primeira viagem a Madrid para representar no Teatro Lara e no Teatro Moderno, voltando mais duas vezes à capital espanhola em 1901 e em 1906. Leva consigo a guitarra e os “seus” fados. Serão os primeiros passos na sonhada aventura europeia antes de se abalançar a Paris, uma década depois, iniciando então uma carreira fulgurante pelos palcos da Europa que só a guerra de 14-18 abruptamente interromperia. Viverá esses quatro anos sob ocupação alemã, em Liége, com privações de tal modo que afectarão a saúde dos filhos e a morte do mais velho. Sem ainda o saber, será a guerra a determinar o início do declínio da sua carreira artística. Mas estamos em 1898 e a sua chegada a Madrid foi saudada pelo jornal Correspondência de España, de 9 de Março: “Há llegado á Madrid la bella y distinguida artista portuguesa Mercedes Blasco, que viene precedida de gran reputacion. Artista lírica mimada por el publico de Portugal, su género predilecto es la opereta y la chansonette, que cultiva lo mismo en español que en italiano y los fados portugueses. De alguno de estos há compuesto ella misma la letra y la musica.” (Apud 1907: 175) Sabemos que a sua estreia madrilena ocorreu a 23 de Março através de carta ao seu amigo Jaime Victor, publicada por este no Correio da Manhã: “Meu caro amigo: Como não é coisa que se veja todos os dias uma artista portuguesa no estrangeiro, vou eu mesma fazer-lhe a resenha das impressões que ficaram da minha estreia realizada ontem. Antes de tudo é preciso saber-se que estou cantando no Lara, um teatro cheio de tradições aristocráticas. A que chamam em Madrid a ante-sala do Real. Público com um feitio especial, como não se encontra noutra casa de espectáculos da capital espanhola, exigentíssimo no que respeita a arte e púdico em extremo no que toca a toilettes; um palmo de perna fora da saia provoca-lhe quase um estremecimento de susto. Artista que consiga ser aplaudida no Lara tem a sua reputação feita em Madrid e faz sucesso noutro qualquer teatro de Espanha. Entrei em cena bastante emocionada, como era de esperar, mas tranquila na aparência, (...) O público cortês e hospitaleiro recebeu-me com palmas. Cantei La sérénade de Gillotin e Laissez-moi rire impressionando agradavelmente o público, e ouvindo muitos aplausos (...) Depois fui buscar a guitarra e comecei dedilhando o fado. Aí senti uma impressão tristíssima ao ver que o nosso idioma é completamente estranho a uma nação tão nossa vizinha e a que nos ligam laços de cordial amizade. Aplausos houve bastantes; mas tive a sensação de que o público, não percebendo os versos, - que eram do grande Bulhão Pato – achava a música muito local e característica, cuja toada languida e triste não se moldava ao seu feitio alegre e buliçoso. Bisando, cantei-o com versos espanhóis e então foi um sucesso. (…) Portugueses assistindo ao espectáculo dois: Guilherme da Silveira, o inteligente empresário do D. Amélia, que se encontrava aqui tratando das representações da Duse em Madrid, e Carvalho Júnior. Madrid, 24-3-98 Mercedes Blasco” (1907: 176-179).
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“Fado Sidonim” da Revista Bola de Sabão Partitura, s/d Colecção Nuno Siqueira
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Em crónica publicada em 1937 na Ilustração Portuguesa, Mercedes recorda que foi numa festa de homenagem a Bulhão Pato, por ocasião do aniversário deste, no Clube dos Makavenkos14, que funcionava na cave do teatro da Rua dos Condes, e a que compareceu com Ângela Pinto, que o poeta lhe ofereceu estes versos pedindo para os cantar. Esta festa terá ocorrido em Fevereiro de 1897 quando as duas actrizes trabalharam juntas no teatro da Rua do Condes, na época 1896-97, tendo O Século 1899 (28 Agosto) elogiado “a maneira primorosa” como ambas cantavam em dueto na opereta Oito, de D. João da Câmara. Nas suas memórias, Mercedes não esquece a boa relação que ambas sempre mantiveram: “na Rua do Condes estivemos duas actrizes, ambas festejadas pelo público, sem nos prejudicarmos, o que prova que em qualquer meio há lugar para todos, sem nos acotovelarmos. Ângela, cujo valor ninguém ignora, nunca me ofuscou, e eu, com os meus mais aplaudidos trabalhos, nunca a suplantei. Ambas brilhavamos dentro da esfera das nossas aptidões. Nunca houve entre nós a mais pequena rivalidade, nem a inveja nos roçou ao de leve o espírito.” (1907: 151). “Fado Bulhão Pato Oh! Geme, guitarra, geme, Que os teus gemidos, agora, A minha alma também chora, Oh! Geme, guitarra, geme! Tudo o que foi me recordas E cada nota sentida Que vibras das tuas cordas São prantos da minha vida! Oh! Geme, que neste mundo Não gemem só desvalidos, Geme na costa o mar fundo No ocaso o sol tem gemidos. Mas o sol tem muita aurora, O mar tem muita bonança, E eu já não tenho uma esperança... Oh! Chora, guitarra, chora!” Paris... finalmente! Em princípios de Julho de 1908 Mercedes chega a Paris com Remy, o homem que conhecera a bordo do Astúrias, que a trouxera do Rio de Janeiro e deveria tê-la deixado em Lisboa. A paixão nasceu e os planos alteraram-se vendo Mercedes a grande oportunidade de rumar a Paris, a cidade da Arte e da Liberdade e poder seguir, finalmente, uma carreira artística de acordo com o seu talento e ambição.
14 - O Clube dos Makavenkos fora fundado, em 1884, por Francisco Grandella e mais 12 amigos que gostavam de patuscadas. Quando aquele empresário comprou o terreno do velho Teatro Condes e mandou reconstruí-lo em 1888, reservou a cave do mesmo para prazeres ligados à dramaturgia, sendo habitual encher-se de autores, actores e actrizes. Mas também para jantares, festas e banquetes por onde passou uma boa parte da alta sociedade e da intelectualidade masculina. Ligados à Maçonaria, por lá se conspirou contra a monarquia e se preparou a implantação da República com nomes como: Francisco de Almeida Grandella, José António Simões Raposo, José Cordeiro Júnior, José de Castro, Machado dos Santos, Miguel Bombarda e outros. (Cf. Anabela Natário in “Revista Única”, Expresso, 30 de Janeiro de 2010).
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Mercedes Blasco, 1882 Almanaque dos Teatros Para o Ano de 1893 Colecção Biblioteca Nacional
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Nesta cidade, e muito pelas boas relações que sempre mantivera com as elites intelectuais e políticas, encontrou Mercedes um aliado fundamental que, a partir de Paris, lhe abriu as portas para a Europa, o que acontecia pela vez primeira a uma portuguesa. Alguém que conhecera no Porto, quando por lá debutara e que, após ler o Memórias de Uma Actriz a desafiara: “o que é que faz por aí nessa sensaborona Lisboa? Não gostaria de cantar e de aparecer aqui num music-hall? Talvez não fosse impossível” (Apud 1907: 278). Esse homem era Xavier de Carvalho15 correspondente de imprensa em Paris desde 1886, republicano e homem de cultura que neste campo conseguiu estabelecer ligações entre os dois países. Foi assim que alguma imprensa, como o Figaro, noticiou a sua chegada: “Mme Mercédes Blasco, uma actriz portuguesa de grande nome, acaba de chegar a Paris. Mme Blasco interpretou, no seu país, as principais operetas do nosso reportório, como o Nitouche, Mascotte, 28 dias de Clarinha, Miss Helyett, etc. Todos estes papéis, nos quais obteve o mais vivo sucesso, valeram-lhe a designação da Judic16 portuguesa” (Apude 1920: 158). Pouco depois teria a sua estreia internacional ao actuar numa matinée do jornal La Française, que noticiou essa mesma actuação: “Mme Mercedes Blasco cantou à guitarra o fado, e depois Dernières Étreintes e uma canção napolitana. Esta encantadora actriz teve um grande sucesso. Ela fala o francês com a correção de uma parisiense. O público fez-lhe uma ovação”. Sendo correspondente de várias publicações no Brasil e em Portugal, entre as quais O Século em Lisboa, e o Novidades, no Porto, Xavier de Carvalho enviou para este último jornal uma notícia da sua estreia: “Mme Mercedes Blasco que, pela primeira vez cantava diante do público francês, obteve um sucesso enorme com os seus fados, acompanhandoos ela mesmo à guitarra. Depois (...) cantou uma ária napolitana e a valsa de Darthy, Les Dernières Etreintes, em francês, acompanhando-a ao piano Melle de Pinho, a filha do conde Sebastião de Pinho” (Apud 1920: 160). Seguiu-se o convite para participar num recital em honra do poeta da Provença Frederico Mistral, nas instalações da Société des Etudes Portugaises, uma organização que Xavier de Carvalho fundara em 1892 e de que foi secretário muitos anos. Do que foi esse evento diz-nos o jornal La Patrie, de Rochefort: “Ontem a Société des Etudes Portugaises deu uma bela festa em honra de Mistral, sob a presidência do visconde de Faria, consul de Portugal, e vice-presidente desta sociedade. Mr. Xavier de Carvalho pronunciou um discurso sobre 15 - José Xavier de Carvalho Júnior (1861-1919). Natural de Lisboa, desloca-se para o Porto, onde trabalha como jornalista, até que, em 1886, parte para Paris, com Mariano Pina, na qualidade de correspondente de vários jornais portugueses e brasileiros, cidade onde morre em 1919. Foi o autor do capítulo sobre “A Literatura Portuguesa após 1865”, integrado na obra Le Portugal, publicado pela Larousse em 1900. Publicou ainda L’Ermitage, publicado em 1895, no álbum organizado pela Sociedade de Estudos Portugueses de Paris. Esteve ligado às comemorações dos centenários de Vasco da Gama (1898) e de Garrett (1899) que se realizaram em Paris. Participou ainda na homenagem a João de Deus (1895) e a Eça. Em 1885/1886. Cronista nos jornais O Século e O Mundo (“Cartas de Paris”), assinadas com o pseudónimo de Octávio Mendes. Em 1907, Xavier de Carvalho, dinamizou a Revue de la Société des Études Portugais, de que se publicaram cerca de oito números. A partir de Outubro de 1910, consegue a colocação como adido de imprensa na embaixada portuguesa em Paris, conheceu quase todas as individualidades intelectuais, políticas e culturais que passavam pela Cidade-Luz. Porém, com a colocação de João Chagas como Ministro Plenipotenciário da República em Paris, Xavier de Carvalho perde a colocação, apesar de ter sido um dos que acolheu João Chagas quando este vive exilado em Paris após o 31 de Janeiro. [Pedro da Silveira, “O que soubemos em 1909 do Futurismo”, Revista da Biblioteca Nacional, vol.1, nº1, Janeiro-Junho de 1981, Lisboa, 1981, p. 90-91]. Em 1915 perde o filho na Batalha do Marne. Faleceu em Paris em 3 de Agosto de 1919 e foi sepultado no cemitério de Pantin. 16 - Anna Judic (1849-1911) actriz e cantora francesa de opereta cujo verdadeiro nome era Anne Marie-Louise Damiens, foi uma intérprete privilegiada de Offenbach e teve grande colaboração com Hervé. Artista residente no Boufles-Parisiens e no Théatre des Variétés onde reinou cerca de vinte anos. A sua obra-prima, Mem’zelle Nitouche, foi precisamente a peça com que os criticos começaram a associar Blasco a Judic.
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Figurino “Marialvas” do Bailado O Fado Estrela Faria, 1961 Colecção Museu Nacional do Teatro
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as relações entre a Provença e Portugal. Mr. Henri Scarabin falou do felibrige e de Mistral. A parte artística foi muito interessante (...) mas o grande sucesso da matinée foi o fado português, cantado por Madame Mercedes Blasco, a grande étoile dos teatros de Lisboa” (Apud 1920: 161). Tempos depois Juliette Adam, uma escritora que muito admirava os portugueses e o seu passado, organizou uma festa nos jardins de sua casa a favor dos sobreviventes do terramoto que havia destruido Benavente, em 23 de Abril de 1909 e convidou Mercedes. Sobre essa festa, escreve René Lara, no Le Fígaro: “Madam Adam orgulha-se de ser uma amiga fiel e sincera dos portugueses. Admira neles a semelhança intelectual com os gregos; admira o seu país, o seu idioma, os seus poetas, o seu passado de heroismo, de grandeza e de decadência. (...) “Quando Mme Mercedes Blasco nos fez ouvir canções populares, acompanhando-se à guitarra, tivemos a ilusão de ser bruscamente transportados para um longínquo país de sol” (Apud 1920: 162). Igualmente presente, Xavier de Carvalho, o “cicerone obrigatório de todo o português que vem pela vez primeira até aos boulevards” e que enviou a seguinte reportagem para O Século: “Tendo a actriz Mercedes Blasco tomado parte, como dissemos, na festa promovida, em Paris, por Madame Juliette Adam em favor dos sobreviventes do terramoto do Ribatejo (Benavente) a notícia do sucesso ali obtido pela referida artista chegou aos ouvidos dos membros da família imperial russa que também se encontram actualmente em Paris. Apressaram-se eles em convidar Mercedes Blasco para ir cantar também ao palácio, ao que esta se prontificou, exibindo o seu vasto reportório, no dia 2 do corrente (Maio) perante o gran-duque Paulo e esposa, as princesas de Yourievsky e Lobanoff, a marquesa de Montebello, a gran-duquesa Maria de Saxe-Coburgo-Gotha, a princesa Beatriz, da casa imperial da Alemanha, etc. Na mesma ocasião foi a inteligente “divette” convidada para cantar em Madrid, por ocasião dos proximos esponsais desta princesa com o príncipe Carlos de Bourbon.17 O reportório exibido por Mercedes Blasco perante a distinta assistência, a que acima nos referimos, foi constituido por canções espanholas, francesas e napolitanas, interpretadas nos respectivos idiomas, e por fados portugueses à guitarra.” (Apud 1920: 164-165). Mercedes dirá deste encontro que todas as “senhoras conversaram demoradamente comigo (...) aplaudindo com entusiasmo (...) o nosso fado, que acompanhei à guitarra, achando-lhe muita analogia com a toada melancólica dos cantares russos” (1920: 163). Sucederam-se os contratos para actuações no Casino de Paris “onde pontificavam Polaire e Mistinguett, Chevalier e Dranem” tendo passado pelos palcos do London Coliseum, onde foi cantar um “reportório cosmopolita” como chamaram ao conjunto das canções francesas, espanholas, napolitanas e portuguesas, que cantava envergando os fatos regionais de cada país, nesta sala “sucedendo no programa a Yvette Guilbert a quem os críticos londrinos me comparam na dicção e no jogo fisionómico” passando pelo Teatro Femina, em Paris, e muitas outras salas de espectáculo europeias, nomeadamente no Ginásio e no Teatro Real, de Liège, cidade onde vivia com o marido e os filhos.
17 - “não poude a princesa cumprir a sua promessa, sendo, como se sabe, interdita a entrada em Espanha a seu marido por ter casado sem consentimento de Afondo XIII (...). Mandei-lhe (...) as músicas de que ela muito gostava: valsa Obsession, de Flamm, criação minha, Clavelitos de Valverde e o meu fado do Brasileiro Pancrácio, o que me valeu uma lisongeira carta” (1920: 160-161).
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Severa e Roza Engeitada Acácia Reis e Rosa d’Oliveira na Revista Na Ponta da Unha Postal, 1901 Colecção Nuno Siqueira
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Movimentada e fulgurante parece ter sido a carreira europeia de Mercedes bem expressa na carta que em 1913 escreve ao amigo Albino Forjaz de Sampaio: “a tua carta andou a passear pela Europa à minha procura. Como os carabineiros da opereta célebre, chegava sempre, quando eu já tinha partido. A correr atrás da vagabunda da arte encheu-se de carimbos que até parece um passaporte. Recebi-a ontem em Colónia onde estou representando com a troupe do Théatre des Varietés de Bruxelas”, confessando ainda as saudades que sente por Portugal: “Saudades da cabeleira do endiabrado Esculápio, do lindo estrabismo da Ângela, da linha serpentina da Lucilia, do encantador sorriso da Maria Pia. Saudades do teu cinismo fingido – sim, fingido! – da piada fina do Tito Martins, dos espirituosos sueltos do Brito Camacho. Saudades do Mónaco, do Tavares, do Silva, do Martinho, do monóculo do Gualdino Pais.” (Apud 1920: 95-99). Curiosas são as impressões que lhe suscitam Londres, num momento crucial da História, em que o Sufragismo estava no auge. “Não conheço nenhum país onde a liberdade de comicio seja mais acatada. A policia não intervem nunca. Cada um segue ou não o movimento, segundo as suas vistas sobre o assunto. (...) Não há amordaçados. O povo tem o que quer: Liberdade de protesto – a verdadeira afirmação da autonomia individual” (1920: 125). E sobre o direito de voto da mulher, afirma: “Eu que nas horas que o teatro me deixa livres, me comprazo em estudar vários aspectos sociais, que inquietam o meu espirito (...), entendo que a mulher pode e deve ser eleitora em todos os países e qualquer que seja a sua condição, sem que este facto influa nas suas faculdades afectivas. (...) E quanto a mim não é só o voto que deve ser concedido às mulheres, mas também o acesso ao parlamento. Não é só a faculdade de eleger fazedores de leis que elas precisam, mas de legislar também” (1920: 131-132). Sobre a questão que a atormentava desde que fora mãe solteira: “Só um coração de mulher poderá acabar com certas injustiças (...) muitas delas com origem nos desdéns da sociedade pela união que não leve o carimbo do casamento (...) Acabe-se com as variadas fórmulas de «filho ilegítimo», «filho natural» e «filho de pai incógnito». Que todas as crianças sejam designadas pela mesma frase no registo civil ou religioso: «filho de Fulano e de Fulana» (...) e igual direito à consideração da sociedade”. E finaliza: “enquanto isto se não fizer, essas palavras luminosas que todas as nações cultas querem por divisa – Igualdade e Fraternidade – ficarão sempre no domínio da ficção.” (1920: 139). Já Paris, a mítica cidade dos seus encantos, deixa-a deslumbrada: “O que mais seduz em Paris é a liberdade que reina em todos os espíritos e em todas as acções. Aqui os pares andam nas ruas amorosamente enlaçados pela cintura e beijam-se em pleno boulevard, sem que o burguês sinta o menor espanto. Em parte alguma se está tão à vontade, sem que ninguém se importe com os actos do próximo. É positivamente a terra do amor e do prazer. Aqui sim, que dá vontade de viver!” (1920: 72-73). E depois de ter presenciado vários espectáculos de revista: “Ah, meus amigos! Que deslumbramento de cenários e fatos nestas revistas. Nós portugueses, que nos espantamos do luxo das peças do Taveira, depois de vermos isto, temos de confessar que isso que aí vemos é uma magnificência de pacotilha (...) Era de toda a conveniência que os nossos cenógrafos e costumiers visitassem Paris uma vez por ano para se apoderarem das novidades que no género aparecem constantemente” (Apud 1920: 75-76).
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Mercedes Blasco, déc. 80 do século XIX Memórias de uma Actriz, 1907 Colecção da Autora
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Gravação de Discos Sobre este assunto revela-nos em Engeitada, um dos livros memorialistas, editado em 1937: “Gravei discos com o fado, por ali [Europa] fora, e nessa modalidade também fui a precursora, entre os portugueses, no estrangeiro (...) e mesmo em Portugal fui a primeira que fez um disco, e foi para um fonógrafo que apareceu aí numa feira. E o homenzinho ganhava um dinheirão com ele, gritando o meu nome à porta da barraca” (1937: 54). Por outro lado, também Xavier de Carvalho já em 1909 noticiara em O Século: “Continua agradando muito, na capital francesa, a inteligente divette Mercedes Blasco, a quem, decididamente, as empresas teatrais estrangeiras fazem mais justiça do que as nacionais. Ultimamente cantou Mercedes em Paris, com o mais retumbante sucesso, uma “valsa lenta”, escrita de propósito para ela pelo ilustre compositor B. Flamm e intitulada “Obsession”, a qual em elegante edição, com o retrato da artista que a criou, se acha à venda em Lisboa, na casa Sassetti & C.ª, da rua do Carmo.” (Apud 1920: 164). Regresso a Portugal: o “cântico do cisne” Após uma década de ausência e dos trágicos quatros anos da guerra, em Liége, que a deixaram sem marido e sem um dos filhos, Mercedes chega a Lisboa, em meados de 1919, com Marcelo minado pela tuberculose. A lembrar os “torna-viagem” da opereta onde cantara o fado em público pela primeira vez, mas, ao invés de Pancrácio, desprovida de recursos e bem mais pobre e infeliz do que quando emigrara. Também a sua vinda não suscitaria dos conterrâneos o apoio e a solidariedade que esperava e de que tanto carecia. Procura apoio na imprensa a fim de encontrar trabalho nos palcos e é nesse sentido que, pela mão de Virginia Quaresma, A Capital destaca na primeira página do dia 22 de Maio o artigo - Uma Artista Portuguesa no Cartaz Mundial -, onde se procura dar a conhecer os triunfos alcançados por Mercedes Blasco durante o seu périplo europeu, salientando: “Debaixo dos meus olhos caem os programas do Colyseum de Londres, do Royal de Liége, do Femina de Paris e em todos esses folhetos (...) vejo com desvanecimento, o nome de Mercedes Blasco citado com especial deferência. Aqui faz a protagonista das operetas mais sensacionais; em outro figura nas canções francesas de maior voga; depois são ainda os nossos fados – a nossa dolência de viver, o fatalismo da raça. Nenhuma outra artista portuguesa transpôs assim tão intensamente e tão notavelmente as fronteiras. Nenhuma outra fez sentir tanto, entre multidões cosmopolitas, a nossa profunda sensibilidade.” (Apud 1924: 16-20). O Século e A Capital abriram-lhe as portas tendo neste último jornal iniciado as suas crónicas curtas de que foi inovadora. De resto, apenas uma empresa de verão dirigida por Macedo e Brito a chamou para o Apolo, onde, diz, “tive de apresentar-me em péssimas condições, numa revista já pronta a subir à cena, podendo só cantar uma cançoneta francesa e fados à guitarra”. Também faz uma série de apresentações no Salão Foz, com os seus fados, “para tirar a empresa de embaraços (...) uma coisa à pressa, anunciada no mesmo dia da estreia” (1920: 286). Os poemas levados ao palco, de sua autoria, eram ainda da guerra que falavam, reflectindo o horror por que passara e por que estava a passar, com o filho doente e sem meios para tratá-lo.
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Artigo “Do tempo que já lá vai… Saudades de Bulhão Pato” Mercedes Blasco Ilustração Portuguesa, 1937 Colecção Biblioteca Nacional
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Lembrando os horrores da guerra... “Passaram meses sem conto Dum martírio sem igual; Mas hoje de novo me encontro Em terras de Portugal. Livre enfim da algema boche, Vendo da paz o arrebol, Vim beber a longos haustos A aurea luz do nosso sol. E nessas horas históricas Tristes, trágicas por vezes, O soluçar da minha alma Era por vós, portugueses!” E quando voluntária da Cruz Vermelha cuidara dos nossos soldados: “Lá nos hospitais de sangue, senti-me um pouco feliz, ao dispensar meus cuidados aos homens do meu país. Que olhar tão reconhecido que eles tinham para mim quando eu dizia: «meu filho, que tens tu? Estás bem assim?» Oh! Santa mãe portuguesa! do negro horror sobre os trilhos, fiz tudo quanto em mim coube para salvar os teus filhos.” Mercedes Blasco Houve quem a censurasse por ter aceitado cantar em casas que não corresponderiam à sua categoria. Blasco retorquiu: “gostava de ver os censores chegarem a Lisboa depois de quatro anos de miséria, com um filho, a ver se como eu não tinham aceitado a primeira proposta para ganhar a vida honradamente” (1920: 287). Talvez não fossem os “seus fados” os fados que a Lisboa do pós-guerra queria ouvir. Ou precisava de ouvir. O mundo tinha mudado. O país tinha mudado. Outras actrizes haviam surgido nos palcos lusos. A ausência fora longa. Estava com 52 anos. Já não era a alegre e sedutora rapariga de outrora. Ninguém a conheceu. Ninguém a reconheceu. Ninguém a aceitou. Haviam-na esquecido. O que outrora em si fora subversivo era agora anacrónico. E não consta que tenha voltado a cantar o fado. A lúcida e viva inteligência de Mercedes fê-la perceber de imediato que os palcos haviam terminado para si. Pelo menos da maneira com que sempre o fizera. Decidiu então enveredar pelas letras e, numa luta contra o tempo, publicou no início de 1920 o segundo livro de
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Diário do Governo, I Série, nº 98 19 de Maio de 1922 Colecção Biblioteca Nacional
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memórias – Vagabunda -, que desencadeou uma onda de solidariedade, sobretudo da imprensa e dos políticos republicanos, que possibilitou dar um pouco mais de conforto ao filho e dulcificar os seus últimos tempos de vida. Marcelo Ghekiere, morreria a 13 de Junho, com dezasseis. O funeral seria a expensas de O Século. Vivia, então, num modesto quarto cedido por pessoas amigas, na Rua do Século, 37-1º. Todas as portas se haviam fechado perante a doença do filho. A tuberculose era a grande inimiga pública. Tentaram os homens da República assegurar-lhe meios de subsistência em nome do passado artístico e do muito que fizera em Liége pelos soldados portugueses feridos em La Lys. O deputado Júlio Ribeiro18, do Partido Democrático, apresentou em Agosto de 1920, no Senado, um projeto-lei que a tornava societária do Teatro Nacional e que mereceu a unanimidade dos senadores. Mas ficou retida no ministério das Finanças e seria publicada no Diário do Governo apenas a 19 Maio 1922. No Teatro Nacional esbarrou com as maiores resistências e nunca a chamaram ou lhe distribuiram qualquer papel. Já antes haviam tido idêntico procedimento com Amélia Vilar, entretanto falecida, também tornada societária por despacho governamental e oriunda do teatro de opereta e revista, onde tivera problemas com Sousa Bastos, no Trindade. (Esculápio, 1940: 258-259). Sabe, “a Mercedes passou da craveira habitual e não lho perdoam!” (1937: 34) dissera-lhe alguém tentando justificar o comportamento dos colegas. No entretanto, foi extinta a Sociedade Artística que geria aquele teatro e novos estatutos foram aprovados. Embora com dificuldades, nunca deixou de pagar as quotas para a reforma a que teria direito ao fim de dez ou vinte anos. Mas, quando finalmente a pediu, recusaramlha, invocando nunca ali ter trabalhado (!). Depois de levar o assunto aos tribunais através do Dr. Matos Cid19, apenas condescenderam em devolver-lhe o valor das quotas pagas, coisa de que não há memória (!), em finais de 1936 (1937: 94-95). O advogado aconselhou-a a não levantar o dinheiro, pois mais tarde haviam de ganhar a causa. Mas Mercedes tinha absoluta necessidade e claudicou. Estávamos na década de trinta. O regime mudara, o puritanismo redobrara e a aura escandalosa do seu passado continuava a persegui-la e a condená-la. Alguns jornais onde escrevia, com a censura, fecharam-lhe as portas. Restavam-lhe as revistas, sobretudo a Ilustração Portuguesa. E os livros que ia produzindo, numa escrita frenética, quase sempre memorialistas, quer fossem escritos na primeira pessoa ou disfarçados de novelas e romances, pois, como afirmara um dia: “Não sei inventar, fantasiar romances. Só sei descrever cenas vividas. Preciso sentir para me expressar” (1920: 92). Entre 1920-1940 irá publicar mais de trinta livros sendo o último, Brasa Viva, um arrojado 18 - Júlio Augusto Ribeiro da Silva (1872-1941) era natural da Guarda, tendo fundado aí o jornal republicano, O Povo. Foi director político dos jornais A Montanha e A Lanterna. Eleito para Senador da República em 1919, pelo Distrito da Guarda, pelo Partido Democático. Governador Civil de Coimbra de 14 Nov 1921 a 3 Fev 1922. Membro da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Escreveu peças de teatro que nunca publicou. Editou: Horas Vagas, Portalegre, 1903; Canção da Guarda, Porto, 1934. 19 - José do Vale de Matos Cid (1871-1945) , advogado natural de Viseu e deputado desde a Constituinte de 1911. acompanhou politicamente Brito Camacho, de quem era amigo. Em 9 de Abril de 1919, foi nomeado vogal extraordinário do Supremo Tribunal Administrativo. Em 1921, assumiu a pasta da Justiça no Governo presidido por Tomé de Barros Queirós. Por várias vezes foi convidado a ser bastonário da Ordem dos Advogados, cargo que recusou.
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“Fado do Ciúme” da Revista De Capote e Lenço Partitura, s/d Colecção Nuno Siqueira
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livro de poemas que causou escândalo e foi silenciado. Tinha 74 anos. Estavamos longe do Musa Histérica, de 1908, com capa de Francisco Valença que, não obstante o muito que o título e a capa sugeriam, eram, afinal, uma singela homenagem a alguns amigos, personalidades da nossa vida política e artistica. Títulos subjectivos, na senda do que viria a fazer em 1932 com Hipócrates, livro que dedica a alguns colegas do teatro. O título ficara-lhe de uma conferência do doutor Agostinho Fortes, na SNBA, a quem ouvira “ser assim que chamavam aos actores na velha Grécia, cinco séculos A.C.”, tendo aquele professor da Faculdade de Letras de Lisboa escrito uma carta explicativa que Mercedes inseriu no preâmbulo do livro (1932: 9-10). A partir da década de quarenta, e enquanto a saúde permitiu, dedicou-se à tradução tendo, entre outros, traduzido o célebre romance A Cabana do Pai Tomás. Publicou crónicas, contos, reportagens e poesias que se encontram dispersas pela mais variada imprensa da época. Escreveu uma peça de teatro que enviou para todos os empresários na altura, incluindo o Nacional, mas, como de nenhum recebeu resposta, acabou por publicá-la. Fez conferências, entre elas – Das qualidades magnas do artista dramático -, na Associação de Classe dos Trabalhadores de Teatro, em 1923, e que por esta entidade foi publicada nesse mesmo ano. Sempre à frente do seu tempo, veio a tornar-se na primeira autora a assinar publicamente as suas obras, em contacto directo com os leitores, na Feira do Livro de Lisboa de 1932, realizada na Avenida da Liberdade. Uma ousadia bem ao estilo de Mercedes Blasco que contra si levantou vozes despeitadas, mas encontrando desta vez a seu lado, ao invés do ocorrido no passado, uma voz a defendê-la: a do editor, José Afra, no Diário de Lisboa. Na derradeira fase da vida, vagueando de café em café para vender os seus livros, (Vasques, 2012) único e magro rendimento de que vivia, deviam ainda soar-lhe aos ouvidos reminiscências de um passado em que fora idolatrada e brilhara na opereta, no vaudeville, na revista, e nos “seus fados” que afirmara e difundira. - “Ditosos tempos, esses, em que eu cantava o fado, dedilhando uma guitarra, rodeada de capas negras, nos palcos de Portugal. Hoje, só canta a minha alma um fado soluçado, um fado trágico – o meu fado...” (1926: 114). “Mensagem Estudantes e poetas: Quando eu me for desta vida Não me deis castas violetas. Dai-me antes uma flor rara Que tenha formas estranhas. Como a minha vida rara. (...) E mais: - Não choreis por mim, Como pranto: uma tocata De guitarra e bandolim. É a mais certa homenagem Para quem de alegria e dor Viveu sempre, na voragem Do século. Maravilha Que iludiu a natureza E foi de si mesmo filha. (...) ” (poema que encerra o seu último livro - Brasa Viva -, publicado em 1940)
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[Assento Nº 65 - Aos três dias do mês de Novembro do ano de mil oitocentos e sessenta e sete, nesta paróquia de N. Sra da Conceição, do Corte do Pinto, concelho de Mértola e diocese de Beja, baptizei solenemente e pus os Santos Óleos a um indivíduo do sexo feminino a quem dei o nome de Conceição, a qual nasceu na Mina de S. Domingos no dia quatro de Setembro às duas horas da tarde, filha legítima de José Marques, natural de Tentúgal, Bispado de Coimbra, e de Carlota da Conceição, natural de S. Marcos, neta paterna de José Marques e de Teresa Vitória, e materna de José Coelho e de Isabel Maria. Foram padrinhos João António Castilho e Maria Teresa de Jesús. Os quais todos disseram ser os próprios. E para constar lavrei em duplicado este assento que depois de ser lido e conferido perante os padrinhos o assinaram. a) João António Castilho, Maria teresa de Jesus. O Pe. João Honório Policarpo de Abreu] Arquivo Distrital de Beja
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Morreu de miséria e solidão, em 12 de Abril de 1961. Completaria 94 anos a 4 de Setembro. No seu enterro, “algumas flores, uns amigos fiéis, a familia que a acolhera em casa – [Alberto Bartissol, Trav do Rosário, 6 - onde faleceu] e o resto... esquecimento e a mesma ingratidão que a amargurou no período dramático da existência” (DL, 13 Abril 1961, p. 11). Chamava-se Conceição Victória Marques. Nascera a 4 de Setembro de 1876 em Mina de S. Domingos, Baixo Alentejo. Seus pais foram José Maria Marques e Carlota da Conceição.
Mulher Livre e independente. Culta e inteligente. Transgressora. Inovadora. Pioneira. No palco e na vida. Nunca lhe perdoaram não se ter limitado a ser, apenas, uma divette. Júlia Coutinho
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Mercedes Blasco Memórias de uma Actriz, 1907 Colecção da Autora
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Bibliografia Abreu, Ilda (2011), “Mercedes Blasco e o Feminismo na I República. Convergências e Contrastes”, in Faces de Eva, 26, Estudos sobre as Mulheres, Lisboa:FCSH, Colibri; Bastos, Sousa (1898), António, Carteira do Artista, Lisboa:Antiga Casa Bertrand; Bastos, Sousa (1908), Dicionário do Teatro Português, Lisboa: Imprensa Libânio da Silva; Blasco, Mercedes (1907), Memórias de uma Actriz, Lisboa: Liv Editora ViúvaTavares Cardoso; Blasco, Mercedes (1908), Apreciações e Críticas 1907-1908, ap Memórias de uma actriz,2ªe. ; Blasco, Mercedes (1920), Vagabunda, (1908-1919), Lisboa: J. Rodrigues & Cª, Editores; Blasco, Mercedes (1924), Desventurada, Lisboa: Portugália Editora; Blasco, Mercedes (1926), Esta vida… , Lisboa: Portugália Editora; Blasco, Mercedes (1937), Engeitada, Lisboa: J. Rodrigues & C.ª Editores; Fernandes, Eduardo (Esculápio) (1940), Memórias, Lisboa: Parceria António Maria Pereira; Matos, F. A. de (Dir) (1892), Almanaque dos Teatros para o ano de 1893, Lisboa: João Romano Torres, Editores; Paiva, Jerónimo M.S. (1927), Do Alto Alentejo: descritivos, figuras e factos de há 30 anos, Beja: edição Alma Ferroviária. Rebello, Luís Francisco (1984), História do Teatro de Revista em Portugal, 1º vol., Lisboa: D. Quixote; Vasques, Eugénia (2012), A escola de teatro do Conservatório (1839-1901): contributo para uma História do Conservatório de Lisboa, Lisboa: Gradiva.
Caricatura de Glória May e Anita Guerreiro Revista Toca a Música, Teatro Maria Vitória Frederico Santana (Fred), 1957 Colecção Museu Nacional do Teatro
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“Canção do Triste Fado” da Revista No Paiz da Guedelha Partitura, s/d Colecção Nuno Siqueira
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OFÍCIOS INQUIETOS tudo isso disposto para a inquietação de um ofício Herberto Helder
Um dia, numa passagem por Lisboa, Peter Brook foi ouvir fado e disse: “Isto é tragédia grega”. É natural que um grande mestre do teatro o tenha dito porque são muitas as semelhanças entre o fado e o teatro que herdámos da Grécia Antiga: acto de vida que só se cumpre quando o fadista, tal como o actor, se entrega totalmente no aqui e no agora; experiência secreta e sagrada que existe no instante e que vive ainda e apenas na experiência lembrada de quem o viveu. O fadista tem a arte de contar uma história, através da letra e da música que interpreta. A letra do fado é o texto através do qual também no teatro se conta uma história. A música é como se fosse uma encenação em que o fadista contracena com os músicos acompanhantes. E do mesmo modo que no fado não se pode separar a letra da música nem da maneira como é cantada, também no teatro são inseparáveis o texto, a encenação e a interpretação do actor; o fadista torna o texto e a música seus, do mesmo modo que o actor torna seus o texto e a encenação, fazendo com que as palavras tenham todas um peso e um significado, sejam matéria com carne, emoção e pensamento. No teatro, uma grande peça pode dar um mau espectáculo mas palavras simples e cotidianas podem estar na base de um grande espectáculo; e o mesmo acontece no fado. Com um grande texto numa má encenação deixa de haver teatro; com uma boa letra numa música inadequada deixa de haver fado. Dê-se um grande texto e uma grande encenação a um mau actor e nada de grande acontece; dê-se uma grande letra e uma grande música a um mau fadista e o grande torna-se pequeno. Porque o conjunto (actor/fadista, texto/letra, encenação/música) tem de estar em harmonia e de fazer sentido, um sentido maior do que o intérprete e maior do que o público. O fado depende do fadista na mesma medida em que o teatro depende do actor. Conta-se que Alfredo Marceneiro não queria gravar discos porque achava que o fado é para ser cantado ao vivo nas casas de fado, à frente das pessoas. Quando finalmente conseguiram levá-lo a um estúdio continuou a não querer cantar, até que alguém lhe sugeriu que pusesse uma venda nos olhos e assim gravou doze fados seguidos. O fadista, porque a música é parte integrante da sua simbiose de linguagens e a musicalidade é condição indispensável do seu talento expressivo (swing, capacidade de improviso, síntese de estilo), tem, apesar de tudo, a possibilidade de fixar as suas interpretações em registos fonográficos – os discos – onde alguma coisa sobrevive desse insubstituível encontro presencial, o que não acontece nos registos filmados de representações teatrais. Em interpretações gravadas de fados há uma espécie de “memória do momento ao vivo” que nos emociona, talvez porque a música, arte mais subjectiva que todas, arte sonoplástica, acaba por conseguir recriar uma “encenação diferida” que no teatro é impossível. O fado é uma arte pobre, no sentido em que Grotowski falou em Teatro Pobre. A sua maior riqueza não é o ornamento, a exibição, o espavento, mas sim o essencial: o intérprete despido de efeitos e de enfeites, em carne viva, totalmente presente, através de algo de novo que cria diante do público convocado para uma celebração da vida, das entranhas da alma, da alma das entranhas. Ao actor e ao fadista não basta a emoção subjectiva e contingente. Depois de lá chegarem, eles têm de percorrer o caminho que os conduz à emoção objectiva e universal, ao arquétipo que os transforma em plenos representantes da Humanidade, em indivíduos emergentes do colectivo que a ele estão ligados indissoluvelmente e que com ele
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Caricatura de Humberto Madeira Revista Toca a Música, Teatro Maria Vitória Frederico Santana (Fred), 1957 Colecção Museu Nacional do Teatro
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estão comprometidos. Porque, como disse Nietzsche sobre o teatro, o fado resulta do sempre tenso equilíbrio entre a individuação e a diluição no coletivo, entre o rigor e a demência, em suma, entre o apolíneo e o dionisíaco. Só assim o actor e o fadista, tão humanos e ao mesmo tempo tão fora do cotidiano, “acontecem” num espaço e num tempo e sabem levar o público a “acontecer”, não assistindo passivo a uma exibição, mas sendo co-criador daquele acto único e irrepetível. Só a presença absoluta e inteira, como crianças ou deuses, faz de um pequeno instante um grande momento de vida; uma vertigem iluminada por uma consciência lúcida e lúdica; uma perdição que se redime no encontro; uma solidão que se torna solidária na partilha; uma desrazão tornada grande razão. A obra de arte é inútil como a vida, e o fadista e o actor sabem-no e sabem-se «todo o mundo e ninguém», fazendo com que aquilo que dão – tão pessoal e próprio e único – possa ser reconhecido e tornar-se pertença e instrumento de todos: dádiva sagrada de si próprios, impalpável e indescritível, na mais profunda intimidade, com confiança, como no amor, sem defesas mas também sem excessos que se tornam impudor em vez de revelação. Fazendo presentes as misérias e as grandezas dos seres humanos e os conflitos que originam, os fadistas e os actores também sabem o que qualquer artista sabe: que a obra de arte não é uma cópia da vida e que é capaz de dizer – condensando num gesto, num traço, num som, numa palavra, numa imagem – o que nem todas as cópias da realidade conseguem dizer, operando uma transposição poética da realidade e permitindo que se veja para além da pequena história que é contada. Mergulhando a fundo na representação do real, o fadista «faz com que a máscara tombe, põe a nu a mentira […] e vence a inércia asfixiante da matéria que se apodera até do mais claro testemunho dos sentidos», como diz Artaud para o teatro, «compelindo cada um a ver-se tal como é». Por isso, o fado, como o teatro e como a peste, é «uma crise que só se resolve ou pela morte ou pela cura» (Artaud) e também o fadista é um «viajante do tempo e, pensando nos melhores, o aflito viajante das almas» (Camus). Quando não é assim, só há mau teatro e mau fado. E, sobretudo agora que o fado está mais prestigiado, «anda o fado noutras bocas que não são bocas pró fado». É que, como o teatro, o fado parece fácil. E é-o – quando é mau. E quando é mau é insuportável. Não é coisa nenhuma. Porque nem um nem outro suportam a vulgaridade, o efeito por mais bem elaborado que este seja, o enfeite por mais bom gosto que exiba, os formalismos decadentes e os experimentalismos inconsequentes. Nem suportam o despojamento com que por vezes a falta de talento mascara o vazio, na tentativa de atingir uma estilização que parece autenticidade mas não passa de ausência. No teatro como no fado, não há fronteira entre o amador e o profissional: porque o profissional é amador na entrega e na recusa de negociar o seu ofício – nunca se esquece de que é amador-amante; e o amador é profissional na consistência ética, estética e técnica. Por isso um e outro se exercitam para aperfeiçoar a expressão, sabendo que as técnicas não são truques mas caminhos para a significação. E despertam os sentidos para serem como antenas a que nada é alheio, para que o talento possa ser posto, não ao serviço do salário ou da fama, mas de uma estética cada vez mais apurada. Não imitam nada nem ninguém, são aqueles e não outros, com os seus nomes, corpos, vozes, emoções, inteligência, memórias, experiências e opções. Com as suas qualidades e os seus defeitos, a sua grandeza e a sua pequenez. Sabem que não há lugar para estereótipos, que a repetição mecânica e o cliché são actos mortos e mortíferos. Com generosidade, risco e exigência, permanecem vigilantes e disponíveis para começarem sempre tudo do princípio, para percorrerem sempre caminhos desconhecidos. Amador ou profissional, o fadista, como o actor, é a matéria-prima da criação artística, é um instrumentista virtuoso cujo instrumento é ele próprio. O que implica uma ética: quer exprimir-se cada vez melhor e que o material de que se serve tenha cada vez mais qualidade. Por isso trabalha, trabalha, trabalha, porque sabe que «a inspiração é uma grande dama que só entra numa casa bem arrumada”. Tem de controlar a respiração, de ter a voz bem colocada, de apurar a dicção não alterando vogais ou comendo sílabas. Tem de
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“Fado do Teatro” da Revista O Burro em Pé Partitura, s/d Colecção Nuno Siqueira
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saber estar no palco nada fazendo que seja dispensável, banal ou excessivo. Tem de aprender uma técnica de memorização que não seja mecânica, que o leve verdadeiramente a decorar aquelas palavras – a gravá-las no coração. Para que passem a ser suas. Como o actor se torna autor do texto que representa, o fadista torna-se autor do fado que canta. Não é por acaso que se diz: “aquele fado do Carlos do Carmo” não sendo dele nem a letra nem a música. No fado as heranças e as referências são, como no teatro, inesgotáveis fontes de aprendizagem renovadamente assumidas e transfiguradas: o fadista é discípulo de mestres que foram discípulos de alguém que foram discípulos de alguém que foram discípulos de alguém, sucessivamente passando uns aos outros a essência eternamente revivescida da sua arte. Por isso quando o fadista canta, tal como quando o actor representa, o público está perante o visível histórico de um invisível património. Infelizmente os clichés, os tiques e os «truques» também se transmitem, mais facilmente ainda, porque a mediocridade é fortemente militante quando o caldo cultural é fraco e a compensação social e económica é convidativa. E para o fadista, como para o actor, a busca intransigente de novos companheiros de viagem, de novas formas de desvendar limites, de enfrentar o desconhecido e confrontar desacertos e desafios, consiste em ir abrindo portas para esse mistério que faz da repetição uma permanente recriação, inscrevendo a sua crença num chão que só tem por garantia ser antigo e lhe permite caminhar sobre o abismo sem perecer. Com “tudo isso disposto para a inquietação de um ofício”, o fadista e o actor, conformados à condição de serem divinos na sua pequenez, em tão pouco espaço e em tão breve tempo, fazem do corpo o emissário da alma – nome do que de grande se dá e que maior se torna quando dado, porque mais humanidade e divindade concede e revela. Nome dessa coisa a que Agustina chamou um vício. Sabendo que há uma oposição insanável entre exprimir-se e exibir-se, o fadista, como o actor, tem de escolher: ou ser mais um malabarista habilidoso para entretenimento e negócio rentável da pequena vida das pequenas gentes; ou (tantas vezes inútil, frustrante, incompreensível e incompreendidamente) condenar-se à paixão, ao desassossego e à insatisfação desse outro negócio – o da alma – que, diz-nos Miguel Rovisco, «embora leve à falência, é negócio para sempre». Manuela de Freitas
Caricaturas de Beatriz Costa Revistas Arre, Burro! e Eh Real, Teatro Variedades Amarelhe, 1939 Colecção Museu Nacional do Teatro
PROJECTO MUSEOGRÁFICO
João Santa-Rita
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O FADO E O TEATRO Co-produção: Museu do Fado / Museu Nacional do Teatro Comissariado e Coordenação: José Carlos Alvarez, Sara Pereira Apoio à Coordenação: Sofia Bicho, Sofia Patrão Projecto Arquitectura/Museografia: João Santa-Rita Projecto Luminotecnia: Vítor Vajão Investigação Fotográfica: Paulo Batista Investigação Documental: Isabel Cartaxo, Cristina Sampaio, Sofia Bicho Textos: José Carlos Alvarez, Júlia Coutinho, Manuela de Freitas, Pedro Félix, Sara Pereira Imagem Exposição/Design Catálogo: Luís Carvalhal Comunicação e Divulgação: Manuela Gomes Santos, Rita Oliveira Construção e Montagem: Oficina de Cultura Montagem de Trajos de Cena: Edite Coelho, Glória Ribeiro Secretariado: Ascensão Martinho, Cristina Almeida, Sónia Dias Serviço Educativo: Arlindo Santos, Mariana Branco, Melissa Rafael, Olga Monteiro, Ricardo Almeida, Ricardo Bóia, Sara Sequeira Seguros: Hiscox Impressão Catálogo: RPO ISBN: 978-989-96629-8-8 Depósito legal: Com a Colaboração: Museu do Fado: Agostinha Sousa, Ana Rodrigues, Arlindo Santos, Mariana Branco, Melissa Rafael, Ricardo Almeida, Ricardo Bóia, Sara Sequeira Museu Nacional do Teatro: Amélia Marcos, Graça Dias, Alice Almeida Francisco, Mafalda Lourenço, Céu Silva, Rui Mourão, Rita Oliveira, Fernando Almeida, Lurdes Marques, Graça Almeida (Manutenção), Beata Nowak (Estagiária), Beatriz Neves (Voluntária), Carlos Barreiros, António Videira (Segurança) Agradecimentos: BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL – Maria Inês Cordeiro Ana Clóe, Ângela Dionísio, António Tilly dos Santos, Aurélio Vasques, Carlos Caetano, Júlia Coutinho, Luiza Albuquerque, Manuela de Freitas, Margarida Nogueira, Nuno Siqueira, Pedro Félix, Rui Melo, Rui Rebelo, Sofia de Portugal, Wilson Frazão