O Livro dos Fados - 180 Fados Tradicionais Em Partituras

por

PREFÁCIO RUI VIEIRA NERY

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Sobre o Autor Mestre António Parreira é hoje uma figura incontornável da prática do Fado. Antes de mais, pela solidez da sua carreira profissional como acompanhador, chamado ao longo de mais de quarenta anos a tocar para muitas das vozes mais relevantes da cena fadista, que se habituaram a confiar no seu conhecimento aprofundado do repertório, na sua sensibilidade apurada de músico, na inspiração dos seus contracantos, na segurança do seu apoio rítmico, na cumplicidade discreta que estabelece com o canto, sem nunca se lhe sobrepor mas procurando, pelo contrário, pô-lo em evidência, emoldurá-lo, reforçá-lo. Depois, pelo seu papel fundamental como professor, começando logo pela formação de dois filhos que são eles próprios notáveis guitarristas, Paulo e Ricardo Parreira, e prosseguindo pelos cursos que rege no Museu do Fado, procurados hoje por dezenas de jovens instrumentistas, alguns já a começarem uma carreira profissional, outros destinados antes a tornarem-se parte de um público conhecedor que pode estimular os padrões de qualidade do circuito fadista. Mas, por último, também pelo seu interesse no estudo da tradição fadista, na recolha de repertório, na fixação de autorias duvidosas, no registo da memória do Fado. Nesta última vertente, revestiu-se de particular importância a publicação, em 1999, do volume Notas de Música, integrado na colecção Um Século de Fado, da editora Ediclube, em que recolheu a melodia de 120 fados estróficos, acompanhados da indicação dos respectivos suportes harmónicos. Foi um trabalho pioneiro, que desde então tem sido de uma enorme utilidade para todos os estudiosos do género, apesar de algumas trocas de títulos ocorridas na fase final de impressão do volume, naturalmente já à revelia do autor, que viriam a provocar outros tantos erros involuntários de identificação. O Livro dos Fados, que agora nos oferece, leva ainda mais longe o contributo de António Parreira para o nosso conhecimento alargado do repertório fadista. Desta vez os fados recolhidos são já 180, apresentados simultaneamente em notação standard e num sistema de tablatura para a guitarra portuguesa que pode facilitar a aprendizagem por executantes amadores sem formação musical escolar. Mais ainda, Mestre Parreira inclui nas suas transcrições aqueles que são as introduções e os contracantos mais tradicionais para cada um destes fados consagrados, dando-nos assim uma informação preciosa sobre a prática performativa do acompanhamento instrumental, numa tradição que remonta ao grande Armandinho e em cujo seio se pode reconhecer – o que, como bem se compreenderá, muito me sensibiliza – o contributo significativo do meu Pai, Raul Nery, com quem o autor teve sempre uma relação de grande afecto, de resto inteiramente correspondida. O resultado é uma obra que, sem qualquer dúvida, passará a constituir uma das peças-chave do programa editorial previsto no Plano de Salvaguarda constante da candidatura do Fado à Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO). Fadistas e guitarristas, investigadores e estudiosos, profissionais e amadores poderão encontrar aqui um repositório cuidadosamente seleccionado daquilo a que poderíamos chamar “O Grande Cancioneiro do Fado”, por analogia com a designação de “Great American Songbook” com que nos Estados Unidos se refere o repertório fundamental do music hall norte-americano, de Irving Berlin e George Gershwin a Cole Porter e Richard Rogers. Era um trabalho essencial que estava por fazer e que não podia ter ficado confiado a melhores mãos. Mestre António Parreira presta assim mais um serviço distinto à causa do Fado, com um livro que dificilmente deixará de ser reconhecido, a partir de agora, como uma referência incontornável na bibliografia sobre o género. É para mim um privilégio poder ficar associado a esta edição e agradeço ao autor o convite tão honroso que me dirigiu para redigir esta nota introdutória, esperando que ela possa de algum modo, para lá de testemunhar a minha estima e a minha admiração, contribuir para a leitura proveitosa do seu livro.

Sobre o conceito de Fado Tradicional A primeira constatação a fazer quando abordamos o repertório coberto por este livro é a de que ele se estende, do ponto de vista cronológico, por mais de século e meio. É este, com efeito, o arco temporal que separa José Maria dos Cavalinhos, a quem se atribui a autoria do Fado Anadia, ainda em meados do século XIX, dos jovens Diogo Clemente e Pedro Pinhal, que começaram a compor já na viragem para o século XXI. É, pois, quase toda a história do Fado de Lisboa que está aqui representada, cobrindo as sucessivas fases da sua evolução, desde o tempo da Severa e do Vimioso

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ao de Carminho e Ricardo Ribeiro, e poderia parecer, por isso, que estaríamos perante uma tradição basicamente imutável ao longo de todo esse período. A segunda constatação, contudo, é a de que esse arco temporal de cento e cinquenta anos não é contínuo: em cento e oitenta fados, não chegam a uma dezena os compostos até inícios do século XX e a uma vintena os escritos nos últimos cinquenta anos, o que significa que quase noventa por cento do presente corpus data de um período de menos de quatro décadas entre meados dos anos 20 e finais da década de 50 ou quando muito inícios da de 60. Este repertório representa, assim, acima de tudo, do ponto de vista histórico, o gosto e a prática do Fado na época da sua “estabilização castiça”, como eu próprio já a designei, ou seja, a que abre no momento em que ocorrem, em simultâneo, dois grandes factores de transformação substancial do género: em primeiro lugar o estabelecimento gradual da rede das casas de Fado e a imposição da legislação de 1927 que obriga à profissionalização dos fadistas e institucionaliza a censura prévia dos textos cantados; depois o nascimento da Rádio e a segunda fase de enraizamento e expansão da indústria fonográfica, a partir da introdução da gravação electrónica, em 1925. No que respeita ao momento da sua criação, a tradição aqui representada situa-se, de facto, predominantemente numa época em que o Fado transitava definitivamente dos espaços de sociabilidade popular informal para os novos recintos performativos regulamentados e vigiados pelas autoridades administrativas e policiais; em que os fadistas deixavam de ser amadores que acumulavam o canto com outra profissão e actuavam esporadicamente perante a comunidade popular dos seus pares, para passarem a ser profissionais remunerados que tinham de assegurar uma prestação artística regular diante de um público afluente que pagava para os ouvir; em que a Rádio e o disco os colocavam no quadro mais geral do mercado da Música Popular urbana, expondo-os nesse processo à influência de tendências oriundas de outros géneros musicais, tanto portugueses como internacionais. Neste novo contexto, o repertório fadista não poderia deixar de se transformar. Na tradição oitocentista e primo-novecentista, a duração de cada fado era ilimitada, e cada melodia estrófica podia ser repetida tantas vezes quantas as necessárias para suportar um longo poema narrativo, sendo frequente, por exemplo, o recurso a uma quadra glosada em quatro décimas, que correspondia, no plano musical, a treze exposições sucessivas da melodia de base. Um caso extremo, neste sentido, era o dos fados de sextilhas – como o Fado Bacalhau, com música de Armandinho – onde a sextilha do mote era glosada em seis estrofes de quinze versos cada, obrigando assim, musicalmente, a dezanove exposições melódicas. Fados como estes, que representavam três a quatro vezes a duração possível de registar numa face de um disco de 78 rotações e contrastavam demasiado com o ritmo padronizado da sucessão de números musicais numa emissão radiofónica, eram agora excluídos para darem lugar a peças que não ultrapassassem, de um modo geral, os três minutos. Por outro lado, onde antes predominava a variação melódica livre sobre bases harmónicas simples, sempre diferente de execução para execução, segundo regras performativas informais, e onde por conseguinte o fenómeno da autoria individual reconhecida dessas músicas era limitado, tendia-se agora a dar a estabilização de melodias fixas que passavam a circular sob o nome dos seus criadores. Muitas dessas melodias resultavam ainda da prática improvisatória anterior, preservando a memória de desenhos melódicos que tinham resultado de forma particularmente eficaz numa determinada execução e que o próprio autor passava em seguida a repetir, podendo ser depois imitado por outros; outras vezes eram já cantores e instrumentistas com especial talento criativo que decidiam assumidamente produzir novos fados, por transformação de outros já consagrados. Essa transformação assentava, por vezes, na inserção de acordes de passagem entre as funções principais de tónica e dominante – em geral subdominantes, dominantes da dominante, ou incursões breves por tonalidades relativas maiores ou menores. Possivelmente por influência da Copla andaluza, então em pleno desenvolvimento, tornou-se igualmente frequente o recurso à chamada “escala espanhola” – a progressão descendente, no modo menor, entre a tónica, o sétimo grau, o sexto e a dominante, como sucede, por exemplo, no Fado Menor do Porto, atribuído a João Black, ou no Fado Vitória, de Joaquim Campos. Refira-se, no entanto, que não existe propriamente neste repertório uma progressão unidireccional no sentido da complexidade harmónica. Tal como já nos fados editados em partitura desde meados do século XIX encontramos o uso de funções harmónicas diversificadas, de entre as que acima enumerámos, também

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em muitos fados inequivocamente compostos já nas décadas de 1930 a 50 nos deparamos ainda com estruturas de alternância simples de tónica e dominante. Apesar de se perceber que os fados matriciais mais adequados à prática improvisatória, como o Corrido ou o Menor, são naturalmente baseados nas duas funções harmónicas principais, o número de acordes não pode ser usado consistentemente como critério de cronologia interna do repertório. Para lá dos aspectos de variação harmónica, um fado de quadras podia também dar origem a um de quintilhas, pela simples inserção de um verso intermédio entre os dois versos do segundo dístico, ou a um de sextilhas, pela aplicação do mesmo processo aos dois dísticos da quadra. A redondilha maior, ou verso de sete sílabas, continuava a predominar, em qualquer destes formatos estróficos, mas as quadras de dez (decassílabos) e doze sílabas (alexandrinos) foram também ganhando alguma presença neste repertório em expansão. As formas musicais eram simples. De um modo geral, cada estrofe musical correspondia a uma das estrofes do poema e era em geral bipartida (ou, excepcionalmente, tripartida). A secção musical A recebia a primeira metade da estrofe poética (um dístico ou um terceto), podendo ou não ser repetida, e à secção musical B aplicava-se o segundo dístico ou terceto, igualmente susceptível de repetição. Qualquer das secções podia ter um final alternativo – um primeiro, de carácter suspensivo, para a primeira apresentação do texto, um segundo, de carácter conclusivo, para a repetição. Em casos mais raros, em vez da repetição da secção musical B podia haver uma secção C que recebia a repetição do último dístico ou terceto do poema. Este modelo bem definido e conhecido por todos os intervenientes permitiu a produção intensa, nestas quatro décadas acima referidas, de múltiplos fados individuais novos. Alguns dos mais antigos devem-se a figuras que vinham ainda de antes da era da profissionalização, como João Black, Carlos da Maia, Francisco Viana “Vianinha”, Franklin Godinho, Pedro Rodrigues ou Borges de Sousa. Na sua maioria, porém, é a partir do final da década de 1920 que vemos multiplicarem-se os compositores, umas vezes fadistas (Alberto Costa, Alfredo Duarte “Marceneiro”, Filipe Pinto, Joaquim Campos, Manuel Maria Rodrigues, Júlio Proença), outras guitarristas (Acácio Gomes, Armando Freire “Armandinho”, Casimiro Ramos, Fernando de Freitas, Jaime Santos, José António Sabrosa, José Marques “Piscalarete”), outras ainda violistas (Armando Machado, Martinho d’Assunção, Miguel Ramos). Se a improvisação melódica livre regrediu significativamente com a transição para a prática profissional do Fado, em finais dos anos 20, o improviso poético foi ainda mais afectado por esta mudança, em particular pela imposição da Censura Prévia, que obrigava à aprovação expressa de cada letra pela Inspecção dos Espectáculos para permitir a sua execução em público. Num quadro de estrito controlo político, ideológico e moral dos conteúdos poéticos pelos censores, emergiu, em alternativa, no circuito do Fado uma plêiade de poetas populares de enorme talento, capazes de navegar por entre as balizas temáticas permitidas pela Censura e profundamente conhecedores das convenções métricas inerentes às formas musicais praticadas pelos compositores. Henrique Rego, Fernando Teles, Linhares Barbosa, Carlos Conde, Francisco Radamanto ou Frederico de Brito “Britinho”, entre muitos mais, moviam-se na rede das casas de Fado como figuras carismáticas e ofereciam aos fadistas a possibilidade de, sobre melodias que eram partilhadas pela comunidade, cantarem letras que eram à partida, por assim dizer, propriedade individual de cada cantor. Os fados estróficos de composição mais tardia, desde os de Fontes Rocha e do próprio António Parreira aos dos compositores mais jovens já referidos, e os textos dos letristas igualmente activos nas últimas décadas, de Amália Rodrigues a José Luís Gordo ou Tiago Torres da Silva, tendem a seguir os mesmos moldes, em particular o desta separação funcional entre melodia e texto, que acaba por ser, juntamente com a forma estrófica, a característica mais marcante daquilo a que nos últimos anos se tem convencionado chamar “fado tradicional”. Essa é, portanto, a linha de continuidade unificadora que mais justifica o conteúdo da presente antologia. Importa, no entanto, ter a consciência de que no repertório efectivo do Fado, isto é, naquilo que na prática os fadistas a cada momento de facto foram cantando ao longo do século XX, os fados estróficos conviveram desde muito cedo com os fados de refrão e coplas de textos únicos – os chamados “fados-canção” –, sobretudo por influência do repertório da Revista. Exemplos particularmente populares destes últimos, como o célebre Fado do 31, de 1913, ou o Fado do Ganga, de 1916, são muito anteriores à composição da maioria dos fados estróficos que hoje se consideram “tradicionais”, e

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o mesmo se pode dizer de numerosos fados-canção de grande sucesso de Alves Coelho, Raul Portela, Frederico de Freitas, Raul Ferrão ou Frederico Valério, contemporâneos de outros tantos fados estróficos consagrados dos irmãos Casimiro e Miguel Ramos, de Alfredo Marceneiro ou de Joaquim Campos. E é curioso constatar que em alguns casos as melodias desses fados-canção de maior êxito foram elas próprias adaptadas em vários momentos a textos alternativos, como se fossem fados estróficos – foi o caso do Fado do Ganga, que logo após a sua estreia por Estêvão Amarante no Teatro serviu de base a numerosas versões contrafactas, algumas de sátira política a acontecimentos da I República, outras da autoria dos soldados portugueses nas trincheiras da Flandres. A expressão “fado tradicional” deve assim entender-se numa mera acepção de senso comum, para designar o tipo de melodias estróficas de textos variáveis de que a presente recolha constitui uma escolha extremamente representativa. Em termos históricos ela não implica uma precedência cronológica em relação a outros modelos formais do repertório do Fado que com elas conviveram lado a lado – e em muitos casos as precederam – no seio de uma mesma tradição global do género. No entanto, não há dúvida de que, independentemente das questões de natureza histórica, existe um grande consenso no seio da comunidade fadista em torno do princípio de que é neste modelo estrófico que reside o núcleo duro da própria prática fadista, na medida em que a variabilidade dos textos permite ao cantor encontrar, para cada um destes, soluções interpretativas muito diversificadas sobre uma mesma melodia, e que a sucessão das várias apresentações do mesmo desenho melódico de base constitui uma oportunidade privilegiada para a demonstração da capacidade de “estilar” do intérprete. É nesse sentido, porque na verdade eles potenciam e inspiram de forma particularmente eficaz um dos pilares da tradição interpretativa do Fado, que lhes podemos aplicar, latu sensu, a classificação de “tradicionais”, desligando-a de quaisquer conotações cronológicas.

Sobre os critérios de edição O sistema da notação musical erudita, pensado para as necessidades do repertório da Música dita “clássica”, tem uma enorme dificuldade em registar a prática performativa característica das tradições musicais populares. No que respeita ao canto, por exemplo, está concebido de forma exclusiva para a afinação segundo o sistema temperado, e não pode, por isso, dar conta das variações microtonais que são parte integrante, por exemplo, dos melismas ornamentais de muitas das tradições de vocalidade das culturas mediterrânicas, incluindo, naturalmente, a do Fado. Mas é no plano rítmico que esta inadequação se torna ainda mais evidente, em qualquer tipo de Música que não assente exclusivamente numa subdivisão binária ou ternária regular das unidades de tempo. No caso do Fado, por exemplo, uma das componentes rítmicas mais constantes desde sempre – e porventura aquela em que mais se manifesta a relação de continuidade com as suas origens remotas afro-brasileiras – é a presença de células rítmicas sincopadas, ou seja, assentes numa subdivisão de cada unidade numa nota curta com um quarto da respectiva duração, uma nota longa com meio tempo e uma nota curta de novo com um quarto do tempo. Ao contrário dos géneros musicais similares que permaneceram e se desenvolveram no Brasil, em Portugal a tendência foi, desde muito cedo no século XIX, para uma execução irregular desta síncopa, transformando-a numa simples distribuição desigual da duração das três notas de subdivisão da unidade, prolongando qualquer delas sem no entanto a encaixar em qualquer estrutura de subdivisão rigorosa binária ou ternária. Perante esta situação na prática, os critérios de transcrição de melodias de Fado para notação erudita foram sempre muito variáveis, assentando em compromissos que vão desde a fixação de uma síncopa exacta (1/4 + 1/2 + 1/4) ao uso de uma tercina (1/3 + 1/3 + 1/3), ou mesmo à opção por uma estrutura de uma nota longa, com metade da unidade, seguida de duas notas curtas, cada uma delas correspondente a um quarto do tempo (1/2 + 1/4 + 1/4). É esta última a escolha preferencial de Mestre António Parreira para a maioria das situações desta natureza que ocorrem nos fados que transcreveu, o que é perfeitamente aceitável, dado que todas as demais soluções são tão imprecisas como esta e que não há, por isso, nenhuma escolha perfeita. Importante é o intérprete que lê estas transcrições ter consciência de que lhe cabe reintroduzir, no momento da execução, a flexibilidade rítmica que o sistema de notação não permite salvaguardar no momento do registo escrito.

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Por outro lado, o intérprete deve também ter em mente que o desenho melódico registado na transcrição é, em muitos casos, apenas uma das múltiplas possibilidades de condução da melodia fundamental do fado em causa. António Parreira tem, de resto, o cuidado de muitas vezes, nas repetições de uma mesma frase, demonstrar esse alto grau de variabilidade que é próprio do “estilar” do Fado, introduzindo em cada apresentação variantes melódicas mais ou menos acentuadas. Um eventual executante, a partir deste volume, precisará de encontrar em cada momento a sua própria opção para o desenho melódico a introduzir a partir desta matriz, em muitos casos meramente exemplificativa, aqui oferecida. O mesmo se aplica, como é evidente, às introduções e aos contracantos da guitarra aqui propostos, que são apenas sugestões, ainda que em muitas instâncias assentes em tradições de acompanhamento muito generalizadas. Seria caricato – e nada poderia estar, estou certo, mais longe da intenção do autor – do que converter estas transcrições numa versão “Urtext” supostamente inalterável, o que contrariaria a natureza essencial da interpretação do Fado. Por último, importa lembrar que a questão da determinação precisa da autoria é, no Fado, particularmente complexa, e que circulam, por isso, no meio fadista, versões contraditórias – e em muitos casos bastante duvidosas – de atribuições de autoria de certos fados mais antigos. Por vezes, as dúvidas e os erros advêm apenas do facto de certos intérpretes terem ficado associados de uma maneira tão forte a versões idiossincráticas de alguns fados, que estes acabam por lhes ser atribuídos como autores, sobretudo quando eles procederam, em alguns casos, com base nessa atribuição implícita entretanto generalizada, de um modo geral já numa fase tardia das respectivas carreiras, ao registo dos mesmos em seu nome na Sociedade de Autores. Encontramos exemplos de erros crassos dessa prática mesmo em capas e etiquetas de discos e CDs, antigos e modernos, e só uma investigação sistemática a partir dos registos fonográficos mais antigos nos permitirá resolver alguns dos enigmas que prevalecem. Um exemplo típico desta situação é o do uso do versículo como acrescento aos versos de redondilha maior dos fados mais remotos, como o Corrido e o Menor, uma prática de que encontramos vários registos inegáveis já desde a viragem para o século XX, e que por isso não pode ser atribuída como um caso de autoria, no sentido estrito deste termo, a nenhum dos intérpretes que os estilaram de diversas formas segundo esse processo, mesmo aos mais carismáticos, como Alfredo Marceneiro, por exemplo. Há, pois, entre os fados repertoriados neste volume, alguns em relação aos quais necessitaremos todos de continuar a investigar mais fontes para podermos chegar a uma atribuição definitiva de autoria, mas o registo agora efectuado por Mestre António Parreira constituirá sempre, pela autoridade de que se reveste, um contributo fundamental para essa pesquisa.1 Rui Vieira Nery

1 - Para um aprofundamento de algumas das reflexões históricas e analíticas apresentadas sumariamente nesta “Nota Introdutória”, cf., da minha autoria, Para uma História do Fado (Lisboa: 1.ª ed./Público-Corda Seca, 2004; 2.ª ed./Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012); Pensar Amália (Lisboa: Tugaland, 2010); Fados para a República (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012); A. Vítor Machado: Ídolos do Fado (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012); Fado: Um Património Vivo/Fado: A Living Heritage (Lisboa: CTT, 2012); “Toco, Canto e Danço: Alguns Aspectos da Prática Performativa do Fado nas Fontes Mudas do Século XIX” in Rui Vieira Nery e Salwa Castelo-Branco, eds., Fado: Percursos e Perspectivas (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, no prelo).

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FADOS EM PARTITURAS ANTÓNIO PARREIRA

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Nesta obra, alguns fados tradicionais encontram-se transcritos apenas com uma repetição, ou seja, estão preparados para duas quadras, pois não existe uma obrigatoriedade de cantar um determinado número de quadras, o que não invalida, todavia, que possam ser cantadas duas, três, quatro ou cinco quadras. Tudo dependerá do modo como o poeta escreveu o seu poema e da forma como o fadista deseja interpretá-las, ou seja, este fenómeno ocorre, não somente com as quadras, como igualmente com as quintilhas, sextilhas, alexandrinos, versículos… Conviria, impunha-se mesmo, esta explicação! Todos os fados têm introduções escritas, sendo que, usualmente, a introdução é a última parte do fado, quando a música não é muito extensa, ou então, metade da última parte, quando a música possui maior extensão. Na minha qualidade de guitarrista, permito-me o direito de, sobretudo em certos fados, os tocar completos, por serem relativamente pequenos e, porque sendo melodias tão lindas e tão fascinantes, não apetece fraccioná-las… Tocam-se até ao fim e só depois a voz entra para começar a cantar. No que concerne aos acompanhamentos, em minha opinião, quando se trata de fados tradicionais, deverão ser simples, deter apenas o papel de alindar os espaços ou pausas em que a voz não canta, isto é, frasear musicalmente, conforme as tonalidades ou a harmonia da própria música. Como é evidente, qualquer procedimento será necessariamente muito ao gosto dos músicos, desde que o acompanhamento e a voz, em perfeita simbiose, estejam em sintonia com o que se está a passar. A título de exemplo, cito o Fado dos Sonhos – e tantos outros há, apetecíveis de tocar por inteiro – antes que a voz entre para os interpretar. Ao transcrever as melodias dos fados tradicionais, procurei reproduzi-las na sua forma mais básica e simplificada para a voz, deixando ao gosto pessoal a improvisação que o fado permite, na certeza porém de que é no improviso que reside toda a capacidade interpretativa. Em face desse mesmo improviso, naturalmente alguns fados estão ligeiramente diferentes, não fugindo, todavia, ao original… Eu, como guitarrista, também improviso sobre essas pérolas que são os fados tradicionais… e tantos artistas fizeram e fazem carreira com eles. Em relação à tablatura (TAB) – escrita musical feita com linhas e sinais convencionais – da guitarra portuguesa, é colocada por baixo do pentagrama (pauta musical), com seis linhas que correspondem às seis cordas duplas, a começar pelas primeiras, as mais agudas, seguidas das outras, usualmente correspondentes às notas: Si – Lá – Mi – Si – Lá – Ré. Cada número corresponde à respectiva nota que se encontra acima, escrita na pauta musical, a qual contém cinco linhas e quatro espaços. Como guitarrista, ao escrever na tablatura os números que correspondem às notas, tento fazê-lo o mais próximo do registo da harmonia ou dos acordes em que se está a tocar. Por exemplo, a nota Dó pode ser executada nas primeiras cordas no 1.º ponto, ou nas segundas no 3.º ponto, ou nas terceiras no 8.º ponto, ou nas quartas no 13.º ponto, ou nas quintas no 15º ponto e, nas sextas, está acima do 17.º ponto. A partir daí, já não classifico, embora se encontre som apreciável de Dó. Portanto, esta nota Dó pode ser escrita na tablatura na posição mais conveniente, bem como todas as outras notas. A música de cada fado está apresentada nas partituras com um conjunto de atributos que passamos a descrever. Quanto à descrição, o nome do fado encima a página, seguido da estrutura da estrofe e da métrica (em itálico). Apresentando alguns exemplos, o Fado Acácio: ACÁCIO Sextilhas – Setessílabo; o Fado da Rainha: RAINHA (da) ou O CHICO DA MOURARIA Quintilhas – Setessílabo. Os autores da música e da transcrição são indicados. Quanto à notação musical, utiliza-se o par constituído por uma pauta para as partes melódicas instrumentais e da voz, e por uma tablatura para a guitarra com a afinação de Lisboa.

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Esta tablatura contém seis linhas, correspondentes às seis ordens de cordas duplas da guitarra. As três primeiras linhas, de cima para baixo, representam os pares de cordas de arame de aço iguais, afinados em uníssimo, sendo, nos três últimos pares, uma corda de arame de aço e outra de arame de aço coberto – o bordão – afinado uma oitava abaixo. A linha superior corresponde à nota mais aguda: Si4/Si4, seguindo-se as outras, Lá4/Lá4, Mi3/Mi3, Si4/Si3, Lá4/Lá3 e Ré3/Ré2 (ou, respectivamente, B, A, E, B, A e D na notação anglo-saxónica). Os números escritos sobre as linhas da tablatura indicam os pontos que devem ser pressionados, para que a nota correspondente na pauta seja tocada pelo dedo indicador, na maioria dos casos, ou pelo polegar (são estes dois dedos que tocam as notas na guitarra, habitualmente reforçados com unhas postiças). O tempo vem indicado no canto superior esquerdo. À pauta juntam-se cifras, em forma de texto e de gráfico, indicando os tons e os respectivos diagramas, em cinco trastos da guitarra. Optou-se por indicar a cifra de acordes de reforço, sequencialmente repetidos, no início e fim de frases musicais, com a função de salientar o fraseado harmónico e permitir uma leitura mais facilitada ao instrumentista leitor, condizente com a intenção do transcritor. A cifra de acordes de transição (que poderiam ser dispensáveis), comuns na guitarra portuguesa, é escrita em formato mais pequeno. Nas cifras, vemos frequentemente acordes de sétima, também comuns na guitarra portuguesa, algumas vezes apresentados em acordes semelhantes de diminuta. A notação musical da parte instrumental vem escrita num tamanho inferior à notação referente à parte da voz. As repetições inscritas nas partituras correspondem ao canto de novas estrofes, pelo cantador ou cantadeira. Algumas vezes, na repetição, é exemplificada uma segunda versão de variação instrumental (na guitarra) – um contracanto, numa outra pauta suplementar, de tamanho menor. O primeiro caderno de partituras contém cento e setenta Fados Tradicionais, ordenados por ordem alfabética dos seus nomes. Sobre cada uma das músicas destes fados, podem cantar-se letras cuja estrutura estrófica e métrica corresponda à classificação indicada abaixo dos nomes. O segundo caderno de partituras agrupa outros dez Fados Tradicionais, ordenados por ordem alfabética dos seus nomes. Detém a particularidade de apresentar um sistema com dois grupos de pauta e tablatura, sendo o primeiro dedicado à parte melódica, instrumental e de voz, e o segundo ao acompanhamento típico da guitarra em cada um desses fados. Exemplifica-se a associação de letras às músicas expressas em cada partitura, da autoria de Conde de Sobral, D. António de Bragança, Fernando Farinha, Henrique Rego, Mascarenhas Barreto, Clemente Pereira, Manuel de Andrade, João Fezas Vital e João Linhares Barbosa. No entanto, outros poemas podem ser cantados, desde que as suas características correspondam à classificação mencionada em cada fado. António Parreira

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António Parreira, Museu do Fado © José Frade, 2005

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PARTITURAS

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CADERNO 1 O primeiro caderno de partituras contém 170 Fados Tradicionais, ordenados por ordem alfabética dos seus nomes. Sobre cada uma das músicas destes Fados, podem cantar-se letras cuja estrutura das estrofes e métrica dos versos corresponda à classificação indicada abaixo dos nomes.

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ACÁCIO Sextilhas - Setessílabo Música: Acácio Gomes Transcrição: António Parreira q=104

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