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Pracana, o Aprendiz Mais Antigo
from José Pracana
Pedro F Lix
Retira-se grande vantagem em sair dos modos convencionais de pensar quando nos propomos invocar pessoas como José Pracana. Para conhecer com mais justiça a sua plural identidade (músico, caricaturista, estudioso, colecionador) devemos abandonar a faixa reduzida criada pela ultra-racionalidade descritiva e tipológica, e aventurarmo-nos usando ideias “amaldiçoadas e proscritas” por uma ciência neo-positivista no seu afã legitimador. Devemos falar do músico e esquecer o caricaturista? Falar do colecionador e esconder o imitador? Quando coleccionava melodias, jornais antigos, ou construía a “sala de fados” na sua casa açoriana, Pracana estava a traçar mapas da sua história pessoal e, ao mesmo tempo, consubstanciar a comunidade a que pertencia, a comunidade que o procurava para esclarecer alguma dúvida ou refinar e ajuizar alguma interpretação.
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Eu, ambicionando amar aquelas músicas, julgava precisar da “tralha” moderna que acreditava ser o caminho correcto. Pracana, suave e discretamente, propôs-me um outro caminho. Não fizemos nenhuma entrevista etnográfica formal, mas a etnografia fez-se da conversa simples entre quem ama o fado e o neófito que desejava ser amador.
O adjectivo “amador” é vulgarmente usado para descrever aquele que “por gosto e não por profissão” exerce uma qualquer actividade. Consequência dessa definição, vulgarizou-se a ideia do “amador” como aquele que, pela relação apaixonada relativamente ao objecto do seu gosto, fica impedido de operar criticamente com a sua razão, toldado que está pela emoção. Não. O “amador” é aquele que elabora um constructo reflexivo sobre a sua actividade. O amador não crê num gosto inerente às coisas e está longe de ser o actor manipulado por forças que ignora (ou desconhece). Pelo contrário. O amador testa constantemente o seu gosto, inquirindo e explorando as propriedades do objecto do seu amor. Isto faz do “amador” um sujeito altamente mobilizado, com intenções claras, competências codificadas, e meios técnicos para levar a cabo a sua acção, acção que planeia com desvelo e rigor. Quanto ao gosto, o amador sabe que não decorre nem determina o objecto. Não é um enunciado estético, autónomo, neutro (e naturalizado) que regula a relação entre o sujeito (que determina) e o objecto (que se sujeita). O gosto é, entre os amadores, uma pragmática crítica dirigida ao objecto, assente numa perplexidade inquisitiva e atenta aos sinais. O “amador” é o virtuoso da experimentação (técnica, corporal, conceptual, estética). Cada acção suaacção que exige preparação, obstinação, obsessão, envolvimento, treino e repetição - visa o estabelecimento de ligações absolutamente simétricas e bidireccionais entre o sujeito (o amador) e o objecto (do seu amor). Cada som, cada gesto tem, para o amador, o gosto das possibilidades associativas que encerra, unindo passado, comunidade, memória, modos de fazer, técnicas, identidade(s). O acto faz o fado, o fado faz o acto; o processo é de co-criação simultânea.
Para cumprir este modelo ideal, José Pracana explorava duas capacidades, tão raramente reunidas: a técnica de tocar e a técnica de ouvir eram, aos seus olhos, igualmente necessárias, não dando prevalência a qualquer delas. Sabia que quando se focasse numa delas em detrimento da outra tornar-se-ía um sujeito tipológico (historiador, musicólogo, etnomusicólogo,…). Mas Pracana era todos esses sujeitos, e mais ainda: era “amador” no sentido completo (e complexo) do termo.
II
Se o “amador” faz do gosto uma prática de mediações incertas e dinâmicas entre actores (sujeitos e objectos), a ideia de “comunidade de prática” torna-se central.
É na comunidade de prática que reside o saber colectivamente construído e partilhado pelos seus membros. O conhecimento; que congrega e define a comunidade de prática; baseia-se necessariamente na mediação entre saber e prática, reflexão e acção, abstração e experiência, memória e criação, sujeito e objecto, indivíduo e colectivo. Nestas comunidades, o conhecimento não é um conjunto de ideias sem prática, nem uma trama de conceitos reificados nos actos. A comunidade de prática não se faz de relações entre elementos atomizados, mas do envolvimento de actores mobilizados que, detendo em si saber e “arte de fazer” altamente especializados, fabricam a comunidade.
Nas comunidades de prática, aprender é integrar a própria comunidade e, a partir dela, gerar práticas significativas em que o legítimo e o ilegítimo, a tradição e a inovação, o transmitido e o construído, se dissolvem num processo de “fazer comunidade”. Conhecer é “existir na comunidade”, o que supõe que aquele que se revê como membro absoluto e total da comunidade é também aquele que a constrói, reflecte, dinamiza e muda.
Deste modo, a comunidade de prática é o garante da transmissão de saber e, ao mesmo tempo, espaço vivo de criação. Não basta aprender e reproduzir para ser reconhecido como membro da comunidade, é sobretudo necessário que o actor se envolva no próprio acto de ser membro. Pensar com as mãos, pensar no que faz e fazer o que sabe e pensa são as suas funções. Se, convencionalmente, aprender é adquirir conhecimento, nas “comunidades de prática” conhecer é “ser-se no mundo”. Por isso, as comunidades de prática não se estruturam em relações assimétricas entre “mestres” e “aprendizes”.
Era assim que José Pracana estava no mundo, que encarava o seu papel e via a sua comunidade. Pracana era o ponto de encontro a que tantos caminhos desembocavam. Poder-seía, naturalmente, abordar a comunidade de prática do fado de muitas maneiras, mas o caminho que fazíamos ao lado de José Pracana era seguro, certo, útil, rico e, de certa forma, muito raro (para não arriscar introduzindo a ideia que seria “único” como, no entanto, julgo ser). Pracana era o anfitrião da comunidade de prática do fado. Não se revia como mestre (por saber que os mestres eram distantes e tinham de impôr a sua legitimidade), via-se antes como “o aprendiz mais antigo” a quem cumpria acolher, com alegria e disponibilidade, os “aprendizes mais novos” na comunidade que sabia estar a construir com esse gesto de imensa dádiva.
Raros, muito raros, são aqueles que estão confortáveis nesse lugar onde os Mestres sabem que são aprendizes, reunindo, gerindo e partilhando o que sabem sobre aquilo que amam, participando na construção da comunidade de prática onde buscam o que sabem, num fluxo virtuoso e perfeito.
Com uma arte de fazer tão própria e gentil, José Pracana tudo relacionava: aprender e ensinar, conhecimento e prática, o impulso de exploração de todo o potencial de cada registo sonoro e o movimento de mão sobre as cordas da guitarra portuguesa, a consciência discreta da modelização das identidades da, e na comunidade. Todos estes elementos que entram em conflito em tantos contextos, afirmavam-se com naturalidade em Pracana como uma unidade. Pracana, e nós com ele, participávamos no mundo, construindo comunidade.
Para Pracana não havia uma mundivisão utilitarista, ainda que soubesse que a realidade estava tristemente dominada por objectivos, propósitos, tarefas e aquisição de conhecimento… mas também não havia “idealismo”. Havia, pelo contrário, um gesto bem prático e concreto. A sua pessoa e os objectos do seu amor eram actores epistemológicos criadores de comunidade. Também não havia um uso didáctico da linguagem enquanto discurso que enforma a prática. Falando de dentro da comunidade, contando histórias e anedotas, Pracana coordenava saberes, sincronizava conhecimento, reforçava memória, ilustrava ideias. A mim, neófito, não me cabia aprender o que era verbalizado, mas aprender a verbalizar… Hoje, simplesmente espero que a minha falta de conhecimento tenha gerado perguntas construtivas e que estas tenham desencadeado reflexão.
Pracana, “o aprendiz mais antigo”, provocou em mim um novo modo de entender o mundo, um modo que envolve aprendizagem, técnica, conhecimento, memória, comunidade de prática… Um modo que suavemente ultrapassa a concepção objectivista do gosto (enquanto propriedade física dos objectos) e, ao mesmo tempo, a conceptualização sociologisante (o gosto como construção social). Transmitiu-me o modo pelo qual é possível abandonar um mundo de dualidades e de actores autónomos, inertes, passivos e isolados. Para Pracana o mais importante era a mediação, a ligação, a associação, os gestos produzidos em conjunto, mutuamente e em simultâneo.
Silêncio. Aquele momento transiente do silêncio, surpreso e reflexivo [não no sentido Moderno, mas enquanto sofisticação de acto de conhecer o mundo], perante o objecto que provocava e desafiava. O objecto (uma melodia antiga ouvida num 78 rotações acabado de digitalizar) impunha uma interrupção. Silêncio, e um momento fortuito instalava-se, suspendia o tempo, mobilizava conhecimento, memória, comunidade, saber, e prática. Aquele segundo deixava de ser uma divisão do “tempo” e tornava-se num constante presente em que se movia a comunidade de prática viva. Era assim que Pracana me mostrava a comunidade.