Corpus Internacional da Língua Portuguesa
1. Modalidade: língua escrita 2. Tipo de texto: Carta administração Privada – Cartas entre membros de Ordens religiosas. CILP1BMCRSP 3. Assunto: Descrição dos contatos com índios durante uma viagem catequética pelo Rio Tietê. Observações: carta ao Padre Belchior Nunes Barreto 4. Autor: Pero Correia 5. Qualificação do autor: Homem / Irmão jesuíta 6. Data do documento: 08 de junho de 1551 7. Local de origem do documento / Dados de imprenta: São Vicente (SP) - Brasil 8. Local de depósito do documento: Seleção e digitalização por Marcelo Módolo, 58 pp. Trabalho feito a partir de: LEITE, Serafim (1954) Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil (1538-1553). São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 3 volumes. Arquivo Público: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: [S. Roque, Lisboa], 1-5, 2,38. ff. 194v-195v. Título: « Copia de huma [carta ] do Irmão Pero Correa, o qual foi morto dos brasis, a oito de Junho de 1551, pera o Padre Mestre Belchior Nunez em Coimbra ». Apógrafo português, coevo, com algumas palavras ou letras já hoje ilegíveis. 9. Editor do documento: MODOLO, Marcelo. Dez cartas dos primeiros jesuítas no Brasil. São Paulo: Projeto PHPB/SP, 2005,CD-rom Carta 1. 10. Data de inserção no CILP: 31 de outubro de 2005 11. Número de palavras: 923
A graça e a paz de Christo seja sempre em nossos corações. Amen.
1.
Charissimo Padre. Com o pouco conhecimento que elle de my tem e eu
d[elle], verá que se alguma migalhinha de charidade causou esta carta se [escre]ver, não hé minha, mas de quem me tem a obediencia1 que ma man[dou fa]zer. A primeira cousa que lhe diguo hé estarmos todos mui desc[onsolados] de não termos reposta das cartas que por tres vias escrevemos a [esse Colle]gio aguora há hum anno2, e outro 1 2
P. Leonardo Nunes. Desta data (Junho de 1550) não se conhece nenhuma carta mandada de São Vicente.
tanto há que não temos recado da Baya [de To]do Sanctos, donde está o Pe Nobregua. A isto não sabemos que dizer ma[is] que louvar a Nosso Senhor e estar esperando que no[s] socorrão Padres, que esperamos que de llaa venhão pera que com sua vinda começarmos de sair por entre o gentio desta terra, com o qual há assás que entender pelo pouco conhecimento que tem de Deus.
2.
O Padre3 foi deste Sam Vicente entre os Indios [195r] jornada de quinze
dias e levou consiguo alguns Irmãos e eu era hum delles. Por todos os luguares e povoações que passavamos me mandava preguar-lhe nas madruguadas, duas horas ou mais; e era na madrugada porque emtão era custume de lhe preguarem os seus Principaes e Pagés, a que elles muyto crem. E por laa por onde fomos fallando com todos os Principaes, nos diziam que queriam aprender a fee de Christo, e mostravão-se alguns delles escãodalizados porque não começavão loguo a os emsinar. E o Padre se lhe escuzava, dizendo que não poderá ser atee não virem Padres do Reino, pollos quaes esperavamos cada dia; que se aparelhassem elles entretanto com as vontades, que elles não tardarião. A tudo nos davão muito boa resposta, mas comtudo á-de aver mui grande trabalho em os meter a caminho.
3.
Em esta jornada que fizemos, fomos alguns oyto ou nove dias por hum
rio abaixo4 em cascas de paos, e primeiro que tirassemos as cascas em que aviamos de embarcar se nos guastou o mantimento, porque nos posemos a fazer almadias de hum pao molle; e quebrarão-se depois de feitas. E andando em trabalho de fazer em que nos embarquasemos, cheguarão huns Indios que vinhão pollo rio assima com huma casca, a qual por ser pequena não podia com maes que com o fato e sete pessoas, e outras sete não tinhão embarquação nem de que a fazer,e era-nos necessario ir pollo rio abaixo a
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Leonardo Nunes. Rio Tietê. Só na ida gastaram 15 dias (carta 25 § 1).
huma certa parte onde estavão os paos dos que tem aquellas casquas pera tirar alguma, porque não nas há em todo mato. E dos que forão polla agoa, ora a pee, ora a nado, foi o nosso Padre hum delles, e iria polla agua me parece bem huma legoa, e era polla menhãa e em tempo de inverno; e quando se acolheo à canoa5, que asi se chamão aquellas casquas, não se podia valer com frio, e aquelle dia pousamos onde tiramos duas quascas e com outra que já traziamos eram tres.
E assy fomos nosso caminho passando por aquelle rio passos muy periguozos de saltos muytos que tinha em luguar de pedra, e a fome apertava comnosco e comiamos alguns palmitos cozidos em agoa tal6 e algumas fruitas 32 agua sup. „ 45 eu del. fazia bem desengraçadas, de maneira que quando chegamos a povoado levamos as cores muy demudadas. Outras muytas miserias passamos que não tem conto.
4.
Mui grande principio á já quaa em algumas almas deste gentio desta
Capitania, as quaes [195v] almas tem feito grandes mostras, em especial alguns que o Padre doutrinou aqui nesta nossa cassa, onde todos os dias de manhã lhe fazem doutrina e sobre a doutrina pratiqua em a sua lingoa, a qual lhe eu soia fazer hum dia e outro não, e agora lha faço às quintas-feiras, dominguos e dias santos. E huma india destas doutrinadas se alevantou huma noute a preguar por estas ruas de São Vivente, e com tanto fervor que poos a homens e molheres em muita confusão. E hé de maneira que
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Canoa é nome comum em português. Quer-nos parecer que no original estaria escrito ubá, em embarcação indígena, de uma só peça de madeira ( « huma casca » ), e que o copista traduziu pela palavra, que achou seria o sentido dessa espécie de embarcações. 6 A tradução espanhola suprime esta palavra « tal »: « cozidos en agua ».
algumas destas indias assi doutrinadas são espelho não tam somente a seus parentes e parentas, mas a muytas das molheres de Portugual7 que caa há.
5.
E huma destas8 se achou humas dez legoas9 daqui, onde quiserão tratar
mal a nosso Padre e o ameaçarão com hum pao, e o ameaçador foi hum homem10 que há quarenta annos11 que está nesta terra, e tem já bisnetos e sempre viveo em peccado mortal, e anda escommunguado12, e o Padre não quiz dizer missa com elle, e daqui veo, depois da missa acabada, a querê-llo maltratar, porque elle hé posante, mas a india alli preguou muito rijo e com mui grande fee, offerecendo-sse a padecer de companhia com o Padre se comprise. Eu não me achei alli, mas comtarão-mo dous Irmãos muito boas lingoas que ião com o Padre, hum delles se chama Manoel de Chaves13 e o outro Fernando14, moço de quinze até dezoyto annos.
6.
Há quá tanta miseria que se as ouvesse todas d'escrever, sei que lhe
porião grande magoa em seu coraçam; mas as mores sam as destas pobres almas que por todo este Brasil e toda esta costa se perdem, em que averá mais de duas mil legoas,
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« Muytas » portuguesas. Uma delas, a mulher de Luís de Góis, a que se referirá Nóbrega (carta 58 § 12). Costuma-se identificar esta índia com Isabel Dias (Bartira ou Mbci) com quem vivia João Ramalho. No Campo de Piratininga, que parece ser S. André da Borda do Campo, onde o P. Leonardo Nunes fez que se erguesse uma ermida, onde celebrou missa (carta 18 § 7). João Ramalho. « Tem já bisnetos », o que confere com a carta de Tomé de Sousa de 1 de Junho de 1553 (Hist. da Col. Port. do Brasil III 365). Segundo este cômputo, chegou ao Brasil em 1511. « Anda excomungado », pena pública, já antiga por ser casado em Portugal e viver com outra mulher. A esta situação irregular procurará Nóbrega dar remédio na sua carta de 31 de Agosto de 1553 (carta 75 §§ 4-5). Manuel de Chaves, nasceu na Vila de Moreira (Moreira da Maia), diocese do Porto, por 1514. Diz-se que faleceu em 1590, com 73 anos, mas o Cat. de 1574 tem que entrou na Companhia em 1550 com 36 anos (Bras. 5-1, f. 14v). Grande língua. Nóbrega considerava-o « muito boa coisa », e o Provincial, por ocasião da sua morte em São Paulo de Piratininga, a 18 de Janeiro de 1590, diz que foi « o melhor ou dos melhores operários que até agora tem tido esta Província para a conversão » [dos Índios]. No fim da vida, quase cego, « só com pele e ossos », ainda andava a pé a visitar as Aldeias, com « infinitos trabalhos ». LEITE 1 294; cf. ib. X 57. Fernando não torna a aparecer; mas aparece Fabiano, e talvez seja desdobramento da abreviação de Fº.
e tudo gente que não conhece a Deus. Ora pois, charissimo Padres, em tamanha vinha bem á hi que cavar, mas faltão os cavadores.
Nosso Senhor nos dê muyto em que o sirvamos e nos acabe em seu serviço. Amen.
Pobre servo.
Pero Correa.
66 vinha in margine sinistro; prius del. necessidade