SECULO 16 / Dialogo da viciosa vergonha

Page 1

Corpus Internacional da Língua Portuguesa

1. Modalidade: Língua escrita 2. Tipo de texto: Texto de divulgação sobre a língua portuguesa. Código: CILP1PADDVV 3. Assunto: Diálogo entre pai e filho, de conotação pedagógica, com vistas à edificação moral. Observação: parte integrante do que se convencionou chamar de Obra Pedagógica de João de Barros, que se compõe ainda da Cartinha, da Gramática da Língua Portuguesa e do Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem 4. Autor: João de Barros 5. Qualificação do autor: Homem/Escritor/Português 6. Data do documento: 1540 7. Local de origem do documento / Dados de imprenta: Lisboa – Portugal 8. Local de depósito do documento: Arquivo Público: Biblioteca da Ajuda – Lisboa - Portugal 9. Editor do documento: BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Gramática da Língua Portuguesa: Cartinha, Gramática, Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem e Diálogo da Viciosa Vergonha. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1971. Edição digital do Projeto BIT-PROHPOR (Banco Informatizado de Textos do Programa para a História da Língua Portuguesa), coordenado pela Profa. Dra. Rosa Virgínia Mattos e Silva, Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia 10. Data de inserção no CILP: setembro de 2005 11. Número de palavras: 13.660


JOÁM DE BÁRROS EM O DIÁLOGO DA VIÇIÓSA VERGONHA

E

M o prólogo da Cartinha e Gramática da nóssa linguágem que deregimos ao prínçípe nósso senhor, prometemos um Diálogo da Viçiósa Vergonha, por ser matéria conveniente à idáde dos mininos, em cujo proveito as outras pártes se ordenáram. Agóra que chegamos a ele, paréçe que a neçessidáde péde dármos aqui razám de seu fundamento, porque o impre[s]sor, pelo que lhe tocáva, como a Cartinha foi impréssa, procurou proveito déla, sem olhár a nóssa órdem. Porque, depois que os mininos sáem das lêteras, que é o leite de sua criaçám, coméçam a militár em costumes pera que lhe[s] convém ármas convenientes aos víçios naturáes de sua idáde. E, como a viçiósa vergonha é o primeiro imigo que ôs cométe, forjámos, neste seguinte Diálogo, ármas com que se déla pódem defender. DIÁLOGO

PÁI

FILHO

<PÁI> – Vem cá, António, vái á minha livraria e tráze uns cadérnos número quinze, que estám na estante segunda, na párte número seies. F<ILHO> – Sam os cadérnos da gramática da língua portuguesa, que compôs pera o prínçipe nósso senhor? P<ÁI> – Esses sam ôs que péço. F<ILHO> – Lá ficam outros cadérnos número deza[s]seies, e diz a cóta: Tratado de Cáusas. Sam também aqueles da matéria da gramática? P<ÁI> – Nam, esse é um tratádo deregido a ti, o quál vou compoendo pelo discurso dos tempos. F<ILHO> – Que quér, senhor, dizer de cáusas, porque ainda nam ouvi tál títolo? P<ÁI> – Nam ouviste tu já falár nos Problemas de Aristóteles? F<ILHO> – Si. P<ÁI> – Pois esses de cáusas trátam. F<ILHO> – Lógo, tratádo será de filosofia naturál? Porque meu méstre tem uns problemas, e diz ele que sam questões de folosofia. <PÁI> – As cáusas do teu tratádo nam sam naturáes, mas moráes, ou, por falár verdáde, sam de hómens temporáes, que em u)as mesmas óbras déram divérsos frutos, por divérsas cáusas, donde naçeu o títolo ao teu tratádo. Tem-lhe muito amor, cá eu tô lei/xo como herança de minha possibilidáde; e se te nam leixár outra maiór, aí acharás também éssa cáusa, que será a[s]saz pera saberes que tenho amor de pái, limitádo na lei de Deos. Levanta-te, [h]ájas a sua bênçam e a minha. E, por galardám déssa cor que te veo ao rostro, pois estamos em cáusas, quéro-te dizer a cáusa déla, e quam louváda nôs de tua idáde é a neçessária e quam viçiósa em todos a sobeja. E nisto farei ô pera que pedia estes cadérnos da gramática, que éra escrever algu)a cousa morál pera doutrinar ôs de tua idáde. E se, àçerca désta matéria da viçiosa vergonha, desejáres saber algu)a cousa pódes perguntár. E assi, das tuas perguntas e minhas repóstas, faremos um diálogo inoçente pera inoçentes.

–1–


F<ILHO> – O outro dia estáva meu méstre lendo um tratádo de Plutárco, cujo título também éra da viçiósa vergonha. P<ÁI> – Muitos autores tratáram de u)a matéria, mas o módo e caminho que cada um levou, fez a variaçám de quantos tratádos vemos. Plutárco, dádo que seja dos máis gráves autores que tratáram matérias moráes, nem por isso seguirei em tudo seu caminho, mas daqueles que seguiram ô do Avangélho de Cristo que ele nam seguiu nem alcançou, no quál acharás máis enleváda filosofia da que tratáram todolos gentios escritores. E, porém, porque a prática é contigo, e ordenáda aôs de tua idáde, os quáes já das escólas tendes ouvido ditos e sentenças / de moráes escritores, como Plutárco, traremos as sutoridádes e exemplos daqueles que nos ocorrerem à memória, roubádos deles como de injustos possèdoros, à imitaçám dos hebreos <Exodi. XII. c.> que roubáram os vásos e preçiósas jóias dos egíçios. E daqui te dou liçença que âs póssas alegár, quando te ocorrerem a prepósito da matéria. E, por nam preambulár máis, quéro fazer ô que diz Túlio <Lib. I de off.> no Livro dos Ofíçios: Começár da difinçám pera se estender aquilo de que se tráta. <Difinçám da vergonha> Aristóteles quér que a vergonha seja u)a dor e torvaçám dos máles presentes ou futuros <Lib. II Rethoricorum>, os quáes, sobrevindo, trázem infâmea. Santo Tomás diz <S. Tho.II.II.q.c.VI.ar.II.>: Vergonha é um temor de torpeza reprensível, que prinçipalmente ólha ao vitupério e, per consiguinte, à culpa, e isto em duas maneiras:çe[s]sando ou encobrindo. F<ILHO> – Lógo, segundo éssas difinções, tem éla três nomes, dor torvaçám e temor? P<ÁI> – Os nomes diferentes sam segundo as cáusas donde éla proçéde. E daqui vem outros lhe dárem divérsos epítetos em suas distinções. Nós, pera nósso propósito, diremos ser u)a afeiçám generósa do ânimo, que proçéde de honra e humildáde, com respeito de três tempos. F<ILHO> – Éssa difinçám nam entendo eu, por ser contra natureza dous contráiros em um sojeito, como diz a sentença comum. E máis, segundo os lógicos <Aris.in II.topico.ca.XXI>, a difinçám [h]á-de convir com o difinido, e ambos se [h]am-de converter um em outro. P<AI> — ouvirás as divi/sôes déla, e entám sentirás como honra e humildáde, per lei de Cristo, donde nós fundamos ésta difinçám, se contém debáixo de um sojeito, com respeito de três tempos, que correspondem aos três nomes que apontáste, das primeiras difinções. <Divisám da vergonha> E quanto à primeira, que é dor, [h]á i u)a vergonha que tem respeito ao tempo passádo, a quál se gérá da memória do pecádo cometido. E o primeiro a[s]sento désta foi no paraiso terréal, quando, depois que Adám <Gen.III ca.> pecou, s'escondia antre as árvores do paraíso, e respondeu a Deos que ô chamára: Senhor, ouvi a tua vóz e escondi-me, porque éra nu. Ésta vergonha, por cáusa dô que se ségue a éla, que é perdám, póde-se chamár penitência. <Isa.XXXVIII.Reg. XXIIII.Luc.VII.ca.Luc.XXII.c.> Este perdám, conseguiu el-rei Ezequias, e David, e a Madalena em cása de Simám leproso, e a a[a]dúltera, quando â presentáram a Cristo que â condenásse, e Pedro, quando chorou amargòsamente. E este perdám conseguira Judas <Mat. XXVII.> se, quando disse: Pequei em trair o sangue do justo, esperára na sua misericórdia, porque, sem ésta esperança, pouco aproveitam lágrimas, vergonha e dor. Outra vergonha [h]á i, que corresponde à torvaçám e tempo presente; a quál se póde chamár filha da humildáde, porque se gerá quando alguém ouve cousas de seu louvor. Ésta naçeu no tempo que o anjo saudou a Nóssa Senhora, quando se tornou nésta palávra, gratia plena <Luc.I capi.> . Ésta vergonha quérem imitár / aqueles em cuja álma reina inoçência e pudiçíçia virginál. A outra vergonha , que é filha do temor, e tem respeito ao tempo foturo, é quando, de palávras ou feitos desonéstos, per si ou per outrem cometidos, alguém téme que lhe póde sobrevir dano de infâmea ou reprensám. Ésta tevéram Sem e Jafet, filhos de Noé <Genesi.IX.cap.> quando, com os rostros virádos, da desonestidáde que o vinho causou em seu pái, ô cobriram com suas cápas. E ésta tevéram também os sérvos de Susana, sendo acusáda de adultério <Danie.XIII.cap.>. <Três pártes da vergonha>. Aqui, nestes três respeitos de vergonha, vam três pártes suas, que nam es espeçificamos em nome, peró que dissé[s]semos seus efeitos, por nam termos a cópia

–2–


de vocábulos que tem os Gregos e Latinos, cá eles tem estes três: pudor, verecundia, erubescencia. E dizem que diférem nisto: pudor, é das cousas torpemente feitas; vrecundia, nam sòmente das torpes, mas ainda dâs que sam bem e honestamente acabádas; e erubescencia, paréçe que parteçipa d ámbas, sòmente está em tempo presente. Das quáes pártes, por âs nam termos em nome, trataremos em género, de baíxo deste vocábulo: vergonha. F<ILHO> – Em que párte do hómem está situáda ésta vergonha, porque vemeos, quando alguém â padéçe, vir-lhe cor ao rostro? P<ÁI> – <Em que párte do hómem está a vergonha>. Aristóteles quér que na vista dos ólhos. Donde Alexandre Afrodiseu, em seus Problemas, diz que aqueles â tem trabálham por esconder / os ólhos. E tem por tam çérto este apousentamento déla, que quérem alguns que os çégos â nam tenham, ainda que ouçam cousas de que se póssa [h]aver. E daqui viéram os antigos pintár Cupido çégo, por ser deos d'amor desonésto. E Sócrates, quando, no diálogo de Platám quis tratár dele, cobrio, os olhos porque eles sam ôs que padéçem. E assi ô diz o provérbio grego: A vergonha nos ólhos. F<ILHO> – A que idáde convém máis ésta vergonha? P<ÁI> – <A que idáde convém [h]aver vergonha> – A idáde dos moços, como quér Platám <Plato in dialogo de temperantia>, e enquanto durár no ânimo de cada u) (segundo Séneca) [h]averá nele algu)a boa esperança <Seneca in epistola XXV.> E assi ô disse Diógenes a um mançebo que se fez vermelho <In apoph[th]e[g]matibus>: Confia, filho, porque a vergonha é cor da virtude. E isto quis dizer Pítias, filha de Arist., quando lhe perguntáram quál éra a cor máis fermósa, respondeu <Ibiden>: A vergonha que se géra nas fáçes. E é tam naturál nos maçebos e contra natureza em os vélhos, que dizia Arist<óteles> <Aristote. Lib. III. thico> tam mál lhe pareçer o vélho vergonhoso, como o moço desavergonhádo. F<ILHO> – Por que se louva máis em u)a idáde que na outra? P<ÁI> – Porque a virtude tráta àçerca das cousas defiçes, e onde [h]á maiór ázo de peçar, aí se louva a austinênçia do pécádo. E, como a concupiçênçia, que inclina a todolos víçios, tem maiór força em os mançebos que nos vélhos, ô que é louvor em uns, é vitupério em outros, porque na guérra está o louvor da vitória. F<ILHO> – Se a vergonha é virtude, como se [h]á por víçio nos vélhos?/ P<ÁI> – <Em que difére a vergonha da virtude> A vergonha difére da virtude nisto: a virtude é um hábito que convém à idáde robusta e consumáda, e a vergonha é paixám própria da idáde juvenil. A virtude tem, por ojeito, bens confóromes à razám, e a vergonha, cousas torpes. E, por isso, diz Aristó <teles> <lib. IIII. EThi.> que nam convém a toda idáde, senám à juvenil, e que néssa é louváda. E Santo Ambró[sio] <lib. I de offi. cap.XVII> ô declára máis, dizendo: Como em os vélhos a gravidáde e nos moços alegria, assi em os mançebos se louva a vergonha, cási como um dóte da natureza. E, por ser neles tam naturál, dizia Catám <In apopht[h]ematibus> que máis ô contentávam os mançebos que se faziam vermelhos, que ôs que se tornávam amarélos, porque uns denótam vergonha e outros o contrário. F<ILHO> — Na construiçám da língua latina me lembra que ouvi alguns louvores déla, assi como em ü comédia de pláuto, onde diz <Plaut. In Bacchide>: Aquele pereçeo, a quem falaçeo vergonha E Euripides, em üa tragèdia <Euripides in Medea>, reprovando o contráiro déla, disse que nam [h]avia maiór viçio em os hómens que ter pouca vergonha. E paréce que isto reçeáva a rainha Dido, segundo Vergilio conta <Verg. In. IIII.> quando dizia: Ante morrerei, que ofender a vergonha, ou desatár a abrigaçan déla Peró, nam sei de que sérvem tantos louvores em üa cousa que diz ter por ojeito cousas torpes. P<ÁI> – Nésta semelhança ô entenderás: como sam de maiór estima as érvas que presérvam o corpo de infermidade, que aquélas que lhe restáuram a saúde, assi é de máis exçe/lência o estádo inoçente que ô de penitênçia. Porém, nam leixa de ser louváda, porque nos

–3–


tórna a gráça perdida. Assi, o sojeito de que tráta a virtude, peró que seja máis puro que ô da vergonha, nem por isso leixa éla de ser louváda, por razám dos efeitos que déla procédem, cá denótam ânimo generoso. E, por isso, dizia Jerónimo <Hieronimus ad Pammachium>.Os engenhos bem criádos, máis fáçilmente ôs vença a vergonha que o medo; e aqueles a que os tormentos nam vençeram, às cousa é máis amável que o mançebo vergonhoso; quam clára pédra preçiósa de costumes é a vergonha na vida e rostro do mançebo, e quam verdadeira núnçia de boa esperança nele, por ser u)a vára de diçiplina, destroidor dos máles, defensor da pureza, espeçiál glória da vezes a vergonha ôs vençeu. E diz Bernárdo <Ber. super cantica sermone LXXXVII> por estes: Que conçiênçia, naturál galardám da fama, fermosura da vida, a[s]sentamento e premíçias da virtude, louvor da naureza, e sinál de toda cousa honésta. <Em que a vergonha é louváda e em que [é] vituperáda> . E, peró que estes e outros louvores [h]ája déla, pera que em ti sela louváda, [h]ás-de consirár o módo e limitaçám que lhe sam Gregório nestas palávras dá <Greg.super Ezechielem ca.x>: No mál, a vergonha é louváda e no bem reprensível; no mál, é sapiênçia, no bem sandiçe. E aquele que [h]á vergonha do mál que fez, virá a ter a liberdáde da vida, mas ô que [h]á vergonha de fazer bem, este cái do estádo da virtude e vái ter à conde/naçám, como diz o Redentor <Luca.IX.ca.> Aquele que [h]á vergonha de mi, [h]á dos meus sermões. Nésta limitaçám ( como diz a Escritura) pendem todals leies, e néla está o sojeito da nóssa prática, que é da sobeja vergonha nas cousas honéstas, sobeja em conçeder as torpes. FILHO – Como se lemita esse mál e bem, em que éla é louváda em um e vituperáda em outro? Porque, nas cousas que tem estremos, é neçessário algu)as balisas de salvaçám, que avisem os simples do pirigo. PÁI – Porque se nam pódem particularizár quantas tem ésta paixám, poerei sòmente, três géneros deles, debáixo dos quáes estám muitas espéçias, que, no discurso da prática, irás alacançando, peró que de todos nam tráte. [H]á i uns defeitos <Defeitos de que se cáusa a vergonha> que os hómens naturalmente avorréçem, os quáes, quando sam maniféstos, géram neles vergonha, e por isso ôs desejam encobrir. Estes táes defeitos, ou sam naturáes, ou temporáes, ou da vontáde. Os naturáes, ou sam espirituáes ou corporáes. E, como nam está em nósso poder apartár de nós os naturáes e temporáes, nam temos neles tanta culpa como nos defeitos que a vontáde cométe, per comó[s]sám ou permi[s]sám, por ser livre, em cujo poder está quéro e nam quéro. FILHO – Máis clára [h]á mistér o meu intendimento cada párte déssas, pera âs poder alcançár. PÁI – Assi esperáva de ô fazer, por nam ficáres confuso. Os defeitos naturáes espirituáes, estám no juizo, na memória, e em todolas outras pár/tes e potênçías, a que chamam orgânicas, per meio das quáes o intendimento reçébe todalas cousas. E, como da perfeiçám déstas potênçias, os hómens se gloriam máis que de todalas perfeições corporáes, assi os seus defeitos lhe[s]cáusam maiór vergonha, quando tem capaçidáde pera ôs julgár. Porque, se algum é tam çégo que ôs nam conhéçe, a tál inorânçia é, par[a] ele, vida descansáda, per aquéla autoridáde <Ecclesiástes. VI. capi.>: Em muita sapiênçia, muita indinaçám, e aquele que acreçenta çiênçia, acreçenta dor. Peró, quando alguém em si conhéçe defeitos inteleituáes, e ôs nam quér confessár, se a prática das cousas onde estes defeitos aparéçem (como em tóque), é ante pessoas que conhéçem os quilátes de cada um, aqui está o trabálho de ôs encobrir, por nam encorrer na vergonha de lhôs encobrir. F<ILHO> – Segundo Túlio <Tusc. I. de of.>, o louvor da virtude consiste em obrár, e, como nô que cada um fáz, se póde conheçer os quilátes do seu intendimento, que módo póde alguém ter pera encobrir defeitos de inorânçia? P<ai> – Sábes quam sotil é soberba que, dos inorantes fáz industriósos ou, máis verdadeiramente, [h]ipócritas daquilo que quérem contrafazer, por nam perderem a opiniám que

–4–


eles queriam que se deles tevésse. E entám, vem a confessár defeitos corporáes que estám a ólhos e a fáçe de todos pera encobrirem com estes os espirituáes, que máis estimam. E daqui vem que uns se fázem moucos, outros de curta vista, / outros de pouca fála, e assi outros remédios que tómam, de encobrir defeitos espirituáes. F<ILHO> – De que cautélas póde alguém usár, nam sendo leterádo, mostrár que ô é? P<ÁI> – Çérto está que, quem nam soubér matemática, por ser çiênçia demostrativa, que todos â conçederám aos professores déla, e assi outras çiênçias que estám debáixo do temor da palmatória e da sua deçeplina. Peró, os negóçios que se trátam sem estes preçeitos e estám em juizo e saber naturál, nam [h]á quem conçeda o intendimento e governo deles a segunda pessoa. Todos dizem: eu disse; eu fiz; eu mandei; eu aconselhei . E assi, nunca se as cousas dam a quem bem milita nélas, mas a quem âs blásona por suas. F<ILHO> – Lembra-me que diz Terênçio <Terentius in Eunucho> que nam é pequena indústria saber-se aproveitár das indústrias alheas. E, quando tachávam a Vergílio que furtáva os vérsos de Homéro pera a sua Eneida, dizia: Nam é pequena vitória tomár a máça da mam de Hércules. P<ÁI> – Prudênçia é seguir os bons conselhos e imitár honéstos costumes e gloriósos feitos, mas traiçám e latroçínio roubá-lôs. Corra a moeda com o crunho do senhor, e aproveite-se quem quiser déla, porque maiór vergonha é roubos alheos que defeitos próprios, quando nam sam por comissám ou permissám da vontáde. E, dádo que a matéria que tu abriste, tinha campo pera se correr ésta pessoa, eu, leixemos erros alheos, cá minha tençám é dár-te / doutrina e nam descobrir indústrias alheas, de pouco louvor. E isto báste pera sentires ô que tóca à sobeja vergonha por párte dos defeitos naturáes espirituáes. <Defeitos corporáes> Quanto aos corporáes, estes estám na composiçám e estatura de todolos membros, e na saúde deles. Os quáes, quando, com toda perfeiçám acontéçem a alguém, juntamente com os espirituáes que dissémos, este tál se póde gloriár da liberdade da natureza. F<ILHO> – Que culpa tem os hómens nos defeitos da natureza, pois nam foram em sua mam, cá, segundo sentença de Aristóteles <ARist. I. Ethi.cap. XVI>, das cousas que nos vem per natureza, nem somos louvádos nem vituperádos? P<ÁI> – Por isso é éla sobeja e escusáda vergonha. Que culpa tenho eu na fraqueza de meu juizo, da confusám do intendimento, da pouca memória, da vista curta, da lingua bléfa, dos ólhos trocádos e nam dereitos, do cabelo crespo e nam corredio, da bárba ruiva e nam preta, do nariz grande e nam pequeno, das pérnas gróssas e nam delgádas, curtas e nam compridas, e doutras composições naturáes, em que as máis vezes tem culpa a openiám e nam a natureza? Por ventura o váso envergonhár-se-á, porque o oleiro ô fez púcaro e nam gorgoleta? Sábe que estes defeitos espirituáes e corporáes, ou a imaginaçam deles, nam ôs deu Deos a alguém pera com eles ô avergonhár pera mál, mas encaminhár pera bem de sua salvaçám, cá eles abátem ô que as / perfeições enlévam, as quáes, pela maiór párte, sempre vem acompanhádas com maiór opiniám de si, do que cada um déve ter, e por isso muitos cairam em confusám eternál. Quem derribou Lúçifer da alteza de tanta bem aventurança, senám os dótes com que ô Deos criou? Nam te paréçe que lhe fora mais saudável menos perfeições intelectuáes? Pois, se deçermos à térra, começando em nósso primeiro pádre Adám e, desi, descorrendo per muitos dos seus filhos, que acharemos senám exemplos de condenaçám, causáda das perfeições naturáes, por mál usárem délas? E, por isso, manda Cristo <Mathei. Cap.XVIII.> que, se a minha mam ou pé me escandalizár, que ô córte e lançe de mim, cá melhór é entrár fráco e manco no paraíso , que, com duas mãos ou pés no fogo eternál. E que, se o meu olho me escandalizár, que ô arrinque e lançe de mim, cá melhór é, com um olho entrár na vida etérna, que com dous ser lançádo no inférno. F<ILHO> – Um bem dizem que tem a vergonha que se cáusa pelos defeitos naturáes: trabalhárem algu)as pessoas por recompensár isto com algu)a virtude, ou contriá[re]m tanto ao defeito, té que ô convértem a sua perfeiçam.

–5–


P<ÁI> – A primeira razám de recompensár, muitas vezes acontéçe; a segunda nam é comum, porque, converter um defeito naturál a sua perfeiçám, cási paréçe contradizer aq[ue]la máxima de Aristóteles <ARistóteles lib. I. predicae mento...>: Da privaçám ao hábito, nam [h]á regre[s]sám. E, porque a primeira está / em nós, por ser áuto da vontáde, que é livre <Apuleus.de magia. lib.I>, mandáva Sócrates aos seus deçípulos que se contemplássem no espelho e, vendo-se nele fermósos, fezéssem as óbras que convinham à forma, e, pareçendo defórmes, ô que na fáçe é menos, isto recompensássem com fermosura de costumes, cá estes, por serem bens d'álma, dam louvor á vida e a éla glória. Quem teve máis defeitos na pe[s]soa que Sócrates, segundo Platám, nos Silenos de Alçibíades? Quem máis monstro que Isopo? Quem máis desprezível e hórrido que Diógenes? Peró, com suas doutrinas, reçebemos exemplo de bons costumes, os quáes nam leixou a fermosura de Narçiso, nem os cabelos de Absalón. Como diz Séneca <Epi. LXVII>, debáixo de qualquér péle se póde encobrir fórte e beatíssimo engenho, e de corpo defórme, báixo e pequeno, sair ânimo fermoso e grande, porque nam se afea o ânimo com a deformidáde do corpo, mas, com a fermosura do ânimo, é o corpo ornádo. <Defeitos temporáes> Os outros defeitos, a que chamámos temporáes, estám na honra da linhágem, dos ofíçios, dinidádes, privança de prínçipes, riquezas, e outras glórias do mundo, ou, por milhór dizer, opiniões de trabálhos, por os muitos que os hómens pássam em âs aquerir e sostentár, porque éstas opiniões sam âs que inventáram conquistár, navegár, tratár, escambár, onzenár, perjurár, murmurár, retratár, com todalas outras indústrias que Satanás / inventou, de ganhár honrra e fazenda. F<ILHO> – Aí irám de vólta os defeitos da vontáde, cometidos ou permitidos? P<ÁI> – Çérto é que poucas vezes se supre um defeito temporál, sem algu)a comissám ou permissám da vontáde. F<ILHO> – Lógo, esses vocábulos que disse serám os meios per onde quem quisér se póde fazer rico e honrrádo? P<ÁI> – Estes sam os materiáes, de que se compõem a peçonha e veneno destes dous máles, honrra e fazenda. Peró, o módo de como se fáz ésta composiçaám, aqui está toda a árte. F<ILHO> – Éssa árte folgaria eu de saber. P<ÁI> – Disso ando eu fogindo. Ante queria que, quando ouvisses os termos désta má çiênçia, tevésses a indústria da serpente: pegár a orelha na térra, por nam ouvir a vóz do encantador, porque, como diz Páulo <ad corin. capit. XV>, as más práticas corrompem os bons costumes. F<ILHO> – A esse fim ô desejáva eu saber, pera me conformár com o Avangélho que diz <Math. X. ca.> que sejamos prudentes como as serpentes e simples como as pombas. P<ÁI> – Fólgo de te lembrár éssa autoridáde, porque convém às duas pártes da vontáde: a simpleza à comissám e a prudênçisa à permissám. Cá o coraçám simples e puro, per si em cometer poucas vezes péca e, se nam é serpente em prudênçia, muitas vezes cái em permitir víçios alheos. E também, àçerca da árte que folgarias saber, quéro-me eu abonár contigo. Sábes quem é déstas cousas bom teórico? Quem é prático. F<ILHO> – Já ô entendo, que / na cápa se conhéçe seu dono. P<ÁI> – Assi ô diz o provérbio, peró, por nam ficáres descontente, responder-t-ei com u)a máxima de Aristóteles <ARist. li. I de generatione>: A géraçám de u)a cousa é corruçám doutra. E, segundo ésta régra, nam se fáz um hómem honrrádo senám com muitas desonrras doutrem, nem rico senám com fazer muitos póbres. F<ILHO> – Paréçe que, per essa maneira, máis çérta está nesses táes a pouca que a muita vergonha, per aquele provérbio: Quem nam tem vergonha, todo mundo é seu. P<ÁI> – Eu te darei a razám dô que disse. Diz Juvenál <Inven. Satyra III.> que nenhum mál máis duro tem a pobreza em si que fazer aos hómens que â tem poderem ser zombádos e ridos. E sábes donde isto vem? Porque quanta estima eles poséram na honrra e riqueza, máis que em

–6–


todalas outras cousas temporáes e opiniões do mundo, tanto tem por abatimento desfaleçer-lhe algu)a párte déstas. E como do abatimento se cáusa vergonha, trabálham eles, fogindo ésta que vem à fáçe, por cobrár outras que lhe enchem a bolsa. F<ILHO> – Pois paréçe ser proveitósa aquéla que fáz trabalhár os homens em honéstos exerçíçios, té chegárem àquele termo em que está a estima do mundo, a que também sam obrigádos, porque deste desejo de alcançár u)a cousa e fogir outra (segundo ouvi) naçeram todolos bons feitos. P<ÁI> – Â que óbra táes efeitos, os quáes vam reguládos com razám, ésta tál se póde chamár frutuósa. Mas â que fáz ne / gár pái, mãe, irmãos, molhér, parentes, por nam estárem póstos na estima do mundo, e conféssam outros postiços, por serem favoreçidos dele, ésta tál vergonha nam sòmente é viçiósa, mas mui estranha ante Deos e os hómens. Porque, como é víçio envergonhár-se alguém com os defeitos da natureza em que ele nam é culpádo, assi ô cométem quando se envergonham com os defeitos temporáes. Cá estes, como nam sam párte da virtude, e muitas vezes ázo de víçio, máis sam pera reçeár que gloriár. E a esperiênçia nos móstra que muitos se perderam na confiança dos bens naturáes e temporáes. E outros, que tevéram os seus defeitos, tanto trabalháram por ôs recompensár com óbras de virtude, que foram glória a todolos de sua linhágem. F<ILHO> – Se é verdáde que ésta paixám da sobeja vergonha é máis naturál em mançebos que nos vélhos, antre estes mançebos nam [h]averá alguns que sejam máis sojeitos a ésta infermidáde que outros? P<ÁI> – Porque melhór reçebas ô que sobr[e] isso dissér, q[ue]ro entrár com u)a compa[ra]çám com que entrou Plutárco <Plutarch de viciosa verecundia>, quando quis tratár désta matéria. Das cousas que a térra dá, [h]á i u)as q[ue] nam sòmente da sua p[ró]pria natureza sam agréstes e infrutuósas, mas ainda empeçives ao creçimento das plantas de proveito. E q[ue] assi seja, nem por isso julgam os lavradores q[ue] provém isto da maldáde da térra, mas da sua grossura. Assi [h]á i u)as afeições do ânimo q[ue] per si nam sam boas. Porém sam como u)a semente e fról de boa índole e sojeito. E per semelhança está claro q[ue], quan/to a planta ou hérva estevér em máis gróssa térra, tanto máis frutificará. Mas se o fruito será p[ro]veitoso ou nam, aq[ui] está a p[er]feiçám dele. <Em que pessoas é máis naturál a vergonha>. Assi, quanto o mançebo é máis nóbre em sangue e criaçám e composiçám de bons humores (segundo os médicos), tanto naturalmente sam máis benévolos, clementes, mansos e piadósos que aqueles que caréçem désta nobreza de sangue e compleissám. E nésta tál térra náçe comummente a vergonha, e ás vezes pula em tanta maneira, que vem a pecár o fruito de víçio. F<ILHO> – Lógo, quanto um mançebo for melhór condiçám, tanto será máis vergonhoso? P<ÁI> – Os médicos a todalas complexões déram seus atributos, assi como à melenconia, tristeza; à cólera, ira; à flema, remissám; e ao sangue, entre outros atributos que tem é a vergonha. E bem se vê ser ele ô que padéçe, pois no tempo deste açidente, ele se móstra o máis solíçito em acodir com socorro de sua presença. F<ILHO> – Paréçe que nam déve ser reprendida a óbra cujo efeito pende da força da natureza. E assi ô quér sentir Aristóteles néstas palávras que ouvi dizer <Aristote. III. Ethico>: Em os naturáes desejos, poucos pécam. E Séneca, em u)a sua epístola <Ad Lucilium Epistola II> , paréçe que ô ségue, dizendo: Com nenhu)a sapiênçia os víçios naturáes do ânimo e do corpo se leixam. Qualquér cousa fixa e naturál, per árte se abranda mas nam vençe. E a alguns ( e estes ainda mui constantes) em fáçe de povo, o suór lhe saltou no rostro, nam de outra maneira que aos mui afrontádos. E a / muitos [h]aviam de falár lhe[s] tremeram os giolhos, bateram os dentes, titubou a língua e traváram os beiços. E a todas éstas cousas, nem deçeplina nem uso lançou fóra. Mas a natureza exerçita sua froça e amoésta ao seu víçio ( e ainda aos máis robustos). E antre estas cousas, sei que [h]á i vergonha, a qual aos gráves barões sobrevem de súbito. Peró, máis se exerçita nos mançebos, por terem máis cópia de calor naturál.

–7–


P<ÁI> – Nam digas máis, que, segundo tu trázes decoráda éssa epístola, e éla vái comprida, e sempre na confirmaçám desse propósito, nam gastaremos o dia em outra cuisa. E, contudo, será forçádo fazê-lo, por te mostrár o contráiro, que pera mi será máis trabálho por aquéla régra de Timoteu, grande preçeitor de ensinár fráutas, o quál pedia maiór preço pelos moços que já sabiam algu)a cousa que por aqueles que nam vinham prinçipiádos. Porque os danos de costume tem doçes máles: hábito, que é segunda natureza, e exemplo a quem imitem, que provóca muito. E os males e vícios naturáes de que óra tratamos, tem sòmente a naturál inclinaçám, que tem máis léve remédio do que diz a tua epístola. E nam m'espanto de â trazeres tam decoráda, cá os infernos, nunca lh'esquéçem as mèzinhas de que se pódem aproveitar, e outro tanto fázem ôs que sam tocádos d'algum víçios: qualquér autoridáde que lhe[s] paréçe fazer por eles, bem entendida, mál entendida, lógo sái à prá/ça, em desculpa de seu defeito. E daqui vem que os dádos ao vinho trázem sempre na boca um sálmo de David <Psalmus CIII> e um vérso de Horáçio <Hor.ad.Tircatum>: O vinho alégra o coraçám do hómem. As táças, cheias a quem nam fizérám avisádo? Nam [h]á víçio, como diz Séneca <Se.in pverb.>, que nam tenha seu defensor. E como ele afirma que ao aváro nunca faléçe cáusa pera negár, assi ao vergonhoso pera conçeder. Éssa autoridáde de Séneca tam comprida que alegáste em favor dô que padéçes, sábes quam contráira é a seu dono, que ele ô testemunha néstas palávras <Se. de morib.>: a criaçám e deçeplina fázem costume. E na p[ró]pria espístola, no fim déla, acharás éstas palávras, contráiras às de çima <Idem ad Lucil.> : <<Grande párte dos pecádos se tiram aôs que [h]am de pecár, se alguém é presente, por testemunhas>>. O ânimo [h]á de ter alguém ao quál acáte e, pela autoridáde dele, ainda o seu segredo fáça máis santo. Bem aventurádo aquele que nam sòmente o áuto mas o pensamento emendou, e bem aventurádo aquele, o quál assi póde reçeár alguém, que, pela memória dele, se componha e ordene. E per aqui adiante vái na continuaçám déstas palávras, té concluir a sua epístola com dizer que básta pera se alguém emendár d'algum víçio, ter presente pessoa a que tenha acatamento. Pois se per lembrança ou presença d' algum gráve barám a que desejamos imitár ou acatár, os víçios se retream e abátem, como nam terá máis força a deçeplina e o uso q[ue] fáz ou / tráta nóva natureza? E ainda quéro que vejas como se enganam ôs que sentem éssa autoridáde como â tu sentes. E será com um silogismo que a outro prepósito fáz o mesmo Séneca <Sene.de moribus> : Todo pécado é obrár e todo obrár é voluntário, quer seja torpe quér honésto: lógo, todo pecádo é voluntário. Pois se na vontáde está QUÉRO E NAM QUÉRO, como açidentes sem corruçám do sojeito, como crês tu q[ue] com nenhu)a sapiênçia os víçios naturáes do ânimo ou do corpo se leixam? Como diz Jerónimo, cousa impossível é nam sobrevir um movimento intrínsico, e nam sentir u)a quentura naturál. Porém, aquele é louvádo e dito bem aventurádo, que matou o pensamento no prinçípio dele. Sábes como [h]ás-d[e] entender a autoridáde que alegáste de Séneca; nam por os víçios da comissám ou permissám da vontáde de que óra tratamos, cá seria palávra herética, mas entende-se dos víçios naturáes do ânimo e do corpo de que atrás falamos. Porque a virtude morál nam está nas potênçias naturáes ou sensuáes, mas no bem da razám, posto que pela esposiçám que ele vái fazendo da proposiçám, paréçe que se refére aos outros víçios. F<ILHO> – Çérto, senhor, muita confusám me tirou o módo de entender ésta autoridáde de Séneca, porque, como é barám gráve e (segundo dizem) ô que máis religiosamente tratou matérias moráes, pareçia-me crime de magestáde reál apartár-me de seus preçeitos. P<ÁI> – Pera tua salvaçám, ôs da doutrina de Cristo te convêm e nam outros / e deles, por amor de mi, nunca cansses de beber, e seja com repouso. Dos preçeitos de Séneca e doutras doutrinas humanas bébe de passáda, imita nésta sagáz idáde aos cães do Egito que, com temor dos grandes lagártos, a que chamam crocodilos, que andam nas águas do Nilo, bébem correndo sem demóra. F<ILHO> –Pois como se aproveitam tanto das autoridádes gentias muitos que escreveram catòlicamente?

–8–


P<ÁI> – Já te disse no prinçípio que nos servíamos dô que bem disséram, como de cáusa que nam éra sua mas do Espírito Santo, porque qualquér cousa bem dita, dele é dita ( segundo Ambrósio). Exemplo temos de Páulo que, trazendo no peito aquéla doutrina divinál, em suas epístolas <Ad Corint. Cap. XV; Ad Titum .i. c. Actu. Apost. XVII cap.> alegou ô que Menandro, Epiménides e Aráto poétas disséram, porque, como doutrináva gentios, judeus e a todalas bárbaras nações, queria-ôs ganhár com a doutrina que antre'les éra máis conheçida. E, por isso, dizia ele que aos judeus se fizéra judeu, como se fora judeu, e infermo aos infermos, e a todos as cousas, porque podésse ganhár a todos. A quál régra ainda nas cousas humanas vemos guardár áçerca dos sérvos que quérem aprazer ao senhor. Donde vem que muitos contrafázem a natureza, fazendo-se caçadores sem ô ser, manhósos sem manhas, cástos sem castidáde, devótos sem devaçám e assim praticam na virtude, como se no coraçám tevéssem algu)a, tanto poder tem o interesse humano. Este é o prinçipál conselho que tem o caçador: buscár os / logáres onde a cáça pásta. E como vós outros, mançebos a quem é meu intento caçár, nenhum pásto vos é máis deleito do que lêteras humanas, apresento-vos este, que fáz ao propósito da matéria que tratámos. Este artefíçio me ensinou Augusto Iero Latânçeo e outros santíssimos barões, com o quál eles ganháram sérvos do Senhor. E peró que algu)as vezes, em matérias gráves, deçessem a cousas jocósas e fizéssem digressões, reçitando ditos e opiniões gentias, nem por isso ôs enevergonhou o juizo alheo. Se Páulo, com zelo da salvaçám dos seus hebreos <Ad Roma IX cap.> desejáva ser anátema de Cristo, nam te paréçe que é menos reçitár exemplos de virtude morál que guardarám hómens os quáes, nam tendo lei, eles foram a si mesmos lei <Ad Romanos II cap.> ? Ante pera confundir e avergonhár aqueles a quem foi dáda â da Escritura e da Gráça, convém poer-lhe ante os ólhos os Çítas, gente bárbara por natureza, os quáes naturalemente se apártam do latroçínio, ô que muitos da religiám cristã nam fázem com tantos preçeitos que ô defendem. E, por isso, dizia Cristo <Matth X> que no dia finál seria máis tolerável à terra de Sodoma e Gomorra que às çidádes que nam quiséram reçeber sua doutrina. Assi que nam sem cáusa mas per conselho de santíssimos e gráves barões, antre a semente da palávra do Avangélho, imos plantando éstas flores da gentilidáde pera recreaçám dos sentidos materiáes, pois, por nóssas culpas, o espírito é tam fráco e frio em caridáde, que nam léva mèzinha espirituál sem cheirár um marmélo ou mor / der um limám. F<ILHO> – Esse módo de plantár doutrina católica é permitido a todos ou aos saçerdótes sòmente? Porque o outro dia me queria dár a entender um saçerdóte que tratádo que Vóssa Mercê compôs da Mercadoria Espirituál nam lhe convinha pelo hábito e negóçio que tem. P<ÁI> – E tu que lhe respondeste? F<ILHO> – Que fosse a esse tratádo, à parábula do livita e fariseu que aí trouxe a este propósito, porque os livitas como ele éra, éram ali respondidos. P<ÁI> – Bem sei eu que me pódem arguir, vendo a órdem da vida que tenho, querer-me antrementer em obrigações a que eles chamam alheas, e mi paréçe que sam próprias de todo fiél que conféssa a Cristo. E porque aqui concórrem duas cousas, ocupaçám do ofíçio e atrevimento em tratár de lêteras sagrádas, pois tu já respondeste a esse livita, neçessário é que te responda ô que responderás quando algum fariseu te arguir. E quanto à ocupaçám do ofíçio, dize que se vam aos negóçios de Túlio, cônsul, e aos de Çésar, ditador, e de Alexandre, monárca, e de Tolomeu, rei de Egito, e, em nóssos tempos, aôs de Cárlo Mano, que compôs em árte a língua dos alemães e u)a retórica latina, e aôs de el.rei dom Afonso de Castéla, eleito emperador, e de el-rei Afonso de Nápoles e aôs de muitos prínçipes e gráves barões que, quanto leváram em lêteras e magestáde de estádo, tanto na ocupaçám dos negóçios. Os quáes assi compriram com a obrigaçám de seus ofíçios, que nam / ôs envergonhou o fruito das lêteras a que éram dádos, ante lhe derám maiór louvor pois, em meio de tam gráves negóçios como tinham, estávam tam inteiros, que nam confundiam, mas aproveitávam todolos tempos. Finalmente, quando por ésta párte do ofíçio me quisérem reprender, eu me acolho a dous pastores da Igreja, que sam o Pápa Pio, o quál, tendo o governo da religiám Cristã, compôs a sua Ásia, e o Pápa Adriano que ontem passou, sendo

–9–


cardeál, compôs um tratádo do módo de fálar latinamente. E, peró que fossem matérias máis pera Gramáticos que pastores da Igreja, como diz o Pápa Pio, as [h]óras de vigia deu ao ofíçio e âs do repouso àqueles trabálhos. E quanto ao atrevimento em tratár as lêteras sagrádas, dirás que escodrinhem bem as Escrituras, porque ali está escrito de mi e de todo fiél sérvo que quér dar a usura o talento do Senhor. E coméçem ler o livro da lei, onde acharám ésta obrigaçám <Deutero. VI et XI capi.>: Serám éstas palávras em vósso coraçám, em todolos dias de vóssa vida e contálâs-ás e encomendá-lâs-ás a teus filhos e nétos que âs guárdem e cumpram, e cuidarás nélas a[s]sentádo em tua cása, andando e dormindo e velando. E atá-lâs-ás assi como sinál serám em tua mam, e mover-se-ám ante os teus ólhos, e escrevê-lás-ás no lumiár e pórtas de tua / cása. E isto mandou e encomendou também Cristo, quando disse aos Apóstolos <Mathei Xc.>: Ô que digo a vós, a todos ô digo. E em outra párte ôs reprendia porque defendiam aos pequenos chegár a ele <Mat. XIX. c.>, como quem se queria comunicár a todos, sem destinçám de pessoas. Donde S. Páulo, escrevendo aôs de Éfeso <Ad Ephesios.VI cap.>, lhe[s] mandáva que criássem seus filhos na instituiçám e amoestaçám de Cristo. E daqui tirou Crisóstomo, quando em u)a homilia mandou que os moços fossem ensinádos e ocupádos nas lêteras divinas. E ainda em público e privadamente, os maridos, com suas molhéres e filhos, pratiquem e disputem nas llêteras sagrádas. E assi está constituído em o Sínodo Niçeno que nenhum do número dos Cristãos estê sem os livros Sagrádos da lei. Nam fez Deos diferença de género, de idáde, de ofíçio ou d[e] algum estádo que desobrigue deste cuidádo d[e] aprender e ensinár os preçeitos da lei: a todos em comum está encomendáda. Como diz David em espírito <Sal. XVII>: Em toda a térra saíu o som deles, e nos fins da térra as suas palávras. Que máis fins da térra pódem ser ante a congregaçám cristã que nós outros, ôs do estádo seculát, prinçipalmente aqueles a que a órdem da sua vida nam deu muito tempo pera contemplár na lei e doutrina do Senhor, peró, nem por isso ficamos desobrigádos déla. Nam te pareça que este cuidádo da lei está sòmente encomendádo a / doutores agraduádos em Paris: a gráça do bautismo [h]abilitou todos. E quando dissérem que este cuidádo da lei encomendou Cristo a Pedro néstas palavras <Joan. XX c.> : << Pedro,apaçentas as minhas ovelhas>>, e que a ele e aos seus soçessores é dádo conheçer o mistério do reino de Deos, e aos outros em parábulas <Luc. VIII c.> responde: Si, peró também nos diz o Evangélho de quam pequena estatura éra Zaqueu e, nam confiando em si alcançár ver a Cristo por defeito do corpo que tinha <Luc.XIXc>, e aos Apóstolos e as outras companhas lhe empederam a vista dele, sobio-se na figueira da contamplaçám de seus milágres, com que mereçeo ter Cristo por [h]óspede. Muitos ofereçeram no templo grandes ofértas <Luc.XXI c.>: e sòmente louvou Cristo a meálha da próve viúva, porque deu de coraçám toda sua possebilidáde. O tabernáculo do Senhor, peró que fosse ornádo de tanto ouro, pédras preçiósas, panos de sitim, e com outros ornamentos de gram preço, também mandou que fosse ornádo com péles de carneiros e doutras alimárias de vil preço <Exo. XXVI. i>. Porque o reino de Deos ( como diz S. Augustinho) tem preço, e nam vál máis que quanto cada um tem <Sup. Psalmum, XCIII de spiritu et anima>. Todos corremos em aprazer ao Senhor, e quem zelár a sua lei, mereçerá ser espirádo pera o ministério déla, como mereçeo Sines, quando matou os dous ajuntádos contra o mandamento déla. E, dádo que eu nam seja dos escolhidos pera o ministério de doutrinár. / sou dos chamádos pera ousequeo da lei. Nem pósso cometer tam sobejos erros no módo de doutrinár, que nam fosse máis sobeja vergonha a que me tolhe[s]se dár a multiplicaçam o meu talento. E se me por isso reprendem, bem aventurádos aqueles que padéçem persecuçám pela justiça. Mas nam mereço tanto ante Deos, que veja ésta bem aventurança. F<ILHO> – Paréçe que menos autoridádes bastávam pera os hómens sentirem quanta obrigaçám tem de ensinár a doutrina de Cristo, prinçipalmente aos filhos, cá deles, per lei de obediênçia, com máis amor reçeberám sua doutrina, pois espéram de lhe[s] herdár sua herança. P<ÁI> – Aqueles que ô pódem fazer (peró que aí [h]ája levitas que ô reprendam, como essoutro reprendia a mi), meu conselho seria criár, ante, os filhos aos peitos de boas doutrinas, que entregá-los a poder de amas ou amos, que põem máis amor no preço da criaçám que no criádo. E eu m[e] espanto tratando os escritores tantas e tam divérsas matérias, como algum nam tomou ésta

– 10 –


impresa de querer limitár a obrigaçám que os páies tem a seus filhos, pois vemos quam trastrocádo antre os hómens anda este cuidádo de filhos, desobrigando-se deles em u)as cousas e obrigando-se por eles a outras, e em ambas nam tem respeito à comissám ou permissám da vergonha. F<ILHO> – Per ventura leixarám de ô fazer, porque dizem que tanto se déve fazer por eles, quanto a lei naturál obriga a cada um. E também tómam por régra os cásos e pe/rigos a que se muitos paies ofereçeram por filhos. P<ÁI> – Muitos cásos [h]á i néssas duas obrigações, naturál e exemplár, que máis sam pera avergonhár que cometer, pois vam fóra da lei divina a que máis obrigaçám temos, Quiséra, pois os jurisconsultos fizéram lei do poder que o pái tem sobre os filhos, que a si promulgáram outra, do que cada um é obrigádo fazer por eles. E sábes donde me isto veo à memória? Désta gèrál desculpa a que todos se acólhem, quando alguém ôs quér reprender em negóçios de cobiça: <<Tenho filhos>>. Porque, se perguntáies a um hómem de oitenta anos pera que nòvamente coméça fundár cásas de mil câmaras e retrétes, diz: << Para meus filhos>>. Se vái à India, çérca o mundo descubérto e por descubrir, responde: <<Tenho filhos>>. Se anda nos ímpetos da corte dos reies: <<Por meus filhos>>. Finalmente, se fáz ô que nam déve, com que obriga a álma, pérde a honra, aventura a vida, tudo é: <<Por amor de meus filhos>>. E paréçe-lhe que néstas cousas lhe sam obrigádos, e que máis ôs póde envergonhár leixá-lôs sem fazenda, que sem costumes de boa doutrina. F<ILHO> – E ô que tem esses oitenta anos, nos quáes nunca comeo, bebeo, vestio, nem teve amigos, honrra ou algum bem da vida conversável, tudo por amor de fazenda e nam de filhos (porque os nam tem), com que escudo se defende? P<ÁI> – Também com filhos. Sábes que filhos sam estes? Os máos desejos, naçido da cárne / e nam da razám. F<ILHO> – Lógo, máis por causa desses que dos outros, com que se alguns desculpam, cométem os hómens os máles que disse? P<ÁI> – A esperiênçia confirma éssa verdáde que dizes, cá vemos muitos que nunca canssam per bons e máos caminhos de aquerir e soleçitár fazenda com títolos de filhos. E eles, se tem algum, por quem conféssam levárem tanto trabálho, anda o coitádo máis cheo de miséria que das culpas que lhe põem, e máis se póde chamár deserdádo que herdeiro. E esses ambos padéçem defeitos da vergonha: o pái da mingoáda e o filho da sobeja. F<ILHO> – A esse tál, máis lhe dana, lógo, a esperança de herdár do que lhe aproveita a herança, porque, se â nam esperásse, faria fundamento da vida que tómam aqueles cuja herança [h]am-de ser seus trabálhos. P<ÁI> – u)a cousa te saberei afirmár: que muito melhór herdádos ficam os filhos criádos em bons costumes, que na esperança de herdár muita fazenda, ajuntáda da maneira que disse. Porque, além do pái por isso perder muitas pártes em que está a boa opiniám da vida ( que toda se funda em honésta vergonha), nam ficam os filhos com isso herdádos, mas azádos pera lançár mam de todolos víçios e pera perderem tanto da honrra de seus avós, quanto ganháram outros que nam herdáram ésta isca de erros. E daqui me fica dizer que nam seria sem fruito terem os hómens alguns preçeitos que limitássem a obrigaçám paternál e nam / trazerem em sóma: <<Tenho filhos>>. Por que h]á hómens que nam reçébem vergonha da má criaçám de seus filhos e do módo de lhe aquerir fazenda. Muito lhe[s] convém um freo da Escritura que ôs tórne ao verdadeiro caminho da vida, pois ô que lévam, tam infernál é aos páies como aos filhos. Peró, como meu intento, ao presente, nam é tratár désta matéria, fique a tál impresa a quem primeiro â ocupár, que eu lhe conçedo a propriedáde. E nam te pareça. depois que máis idáde tevéres pera julgár ô que óra disse, que usei o módo dos médicos, que preambulam cousas primeiro que dem suas mèzinhas aos infermos, pera lhe[s] ser doçe e suáve ô que, no seu gosto, é azedo e áspero. Cá, çérto, aos mançebos mui triste cousa será ouvir quam pouca obrigaçám tem seus páies de trabalhar em máos negóçios por ôs leixár herdádos, pois todos ô quérem ficár, venha donde for. Nam sam estes os defeitos que ôs a eles avergonham, ante muitos filhos, criádos sem vergonha, trázem aquele desonésto provérbio italiano: Bem aventurádo o filho cujo pái está no inférno. Eu, porque ô nam

– 11 –


queira ganhár por amor de ti, levarei contigo outro caminho que paréçe máis seguro a nós ambos, e será o módo que muitos páies tevéram com seus filhos, que máis ôs quiséram herdár em bons costumes e doutrina que em fazenda. Muita teve Aristóteles, peró lemos os livros moráes que / escrevo a seu filho Nicómaco e nam as quintas e herdádes que leixásse. Túlio, com seu filho Márco, este caminho levou, compoendo-lhe o Livro dos Ofíçios, com que ô fez máis lembrádo àçerca de nós do que ô podéra ser com grandes e maníficas heranças. A estes e a outros que tál caminho leváram, máis seguro e glorioso lhe[s] pareçeo pera si e pera seus filhos, que ô que óra lévam alguns leterádos deste nósso tempo. Os quáes, assi se envergonham de criár seus filhos nas lêteras que a eles deu nobreza, como se â eles tevéssem da parte dos gálgos, gaviães, açores, e outras opiniões de vã fidalguia, em que ôs criam, a quál pérdem aos dous lanços da vida, e muitos ficam no piám de que se fizéram. Eu, como sou diferente em saber e lêteras, com os primeiros, e contráiro à opiniám dos segundos, nam te mandarei muito filosofár nem muito caçár, mas tomarei um meio confórme a tua idáde e minha possibilidáde. E será doutrinár-te nésta prática e em outras, em que te eu queria leixár bem herdádo, por ser herança compósta de minhas próprias achegas. E trabalharei por te nam envergonhár com edefíçios que tem a magestáde e opiniám da torre de Babilónia, os quáes, depois de compóstos, vem a confusám etérna que ôs divide em tantas línguas, quantas foram as achegas de que se fundáram. E daqui vem quantas heran/ças vemos sem próprios herdeiros porque, como se ajuntáram de estranhas fazendas, estranhas âs hérdam. Crê-me que nunca alguém perdeo o próprio. E, por isso, me fica[m], deste meu trabálho, duas esperanças: u)a, que nunca por ele serás çitádo, pois sam noites minhas veládas, e a outra, que tempo virá em que serei julgádo por hómem zeloso do bem da pátria. Assim, neste trabálho que, por tua cáusa e dos outros mininos, tomo, como por outros que sam em louvor déla, e em memória de quanto sangue português é derramádo nas conquistas de África e Ásia. E porém, se, por razám dalguns defeitos que pódem achár em minhas palávras, alguém te quisér envergonhár, dize por mi este responsoo de Ovídio <Ovidi. De Ponto lib. III.> : Quando desfaléçem as forças, [h]á-de se louvár a vontáde. Quanto máis que, como dos defeitos naturães, é maiór o defeito da sobeja vergonha que cada um tem, que a cáusa donde éla proçéde, por serem óbras da natureza, em que a vontáde nam péca. Assi, negár a execuçám deste desejo de bem fazer, com reçeo de reprensões, nam sòmente seria viçiósa vergonha, mas eternál confusám. Portanto, a tençám me julgue, a quál, como diz Ambrósio, é â que põe nome à óbra. F<ILHO> – Se a tençám põe nome às obras, lógo, os mançebos que cometerem ou permitirem cousas injustas, com sobeja ver/gonha, por razám de parentesco ou d[e] amizáde, a tençám de quererem a outrem e nam a si mesmo[s], comprazer ôs salvará? P<ÁI> – Nam tómes tam crua ésta autoridáde de Ambrósio, porque a tençám nam básta ser julgáda per ti, mas aprováda per Deos. F<ILHO> – E como pósso eu conheçer quando lhe é açeita a óbra que proçéde da minha boa tençám? P<ÁI> – Oulha tu a que fim vái deregida e, se o fim é amor de Deos, descansa na tál óbra. E, se este amor e caridáde nam entra néla, que tenhas dom de profeçia, e conheças todolos mistérios e toda çiênçia, e tenhas tanta fé que trespás[s]es os montes de u)a outra párte (como diz Páulo) <i. ad Corint. XIII.cap.>, nam tendo caridáde, és náda. Donde pódes entender que todalas óbras sem caridáde, dádo que lévem tençám de piedáde humana, nam sam açeitas a Deos. E nam sòmente nésta epístola de Páulo, que toda se vái derretendo em caridáde e amor de Deos, mas em muitos exemplos nos representa a Sagráda Escritura serem bõas as tenções reprovádas, por nam levárem este fundamento. Nam te paréçe que éra clemênçia de prínçipe perdóar a um culpádo e dár liberdáde a um cativo, como fez el-rei Acab de Israél a Benadád, rei de Síria <Reg. III.XX. cap.>? E, por nam levár caridáde e ser contra o preçeito de Deos pagou ésta culpa com perder a vida. Grandeza e acolhimento reál era ô que del-rei Ezequias <Reg. III. XX. cap.> fez aos embaixado/res de Babilónia, quando lhe mandou mostrár todolos seus tesouros. Mas, enquanto nam foi per vontáde de Deos e caridáde sua, denunçiou-lhe o proféta Esaias, da párte do Senhor,

– 12 –


que sua cása e filhos, com todo seu estádo, se, trespassaria em servidám e senhorio dél-rei de Babilónia. Zelo de humanidáde mostráva Pedro nam consentir lavár-lhe Cristo os pés <Ioan. XIII ca>: e, porque éra contra vontáde de Deos, [h]ouve por repósta que nam teria párte com ele em seu reino, se nam consentisse. Nam te enganem boas tenções, e guárda-te de u)as óbras que tem aparênçia de virtude. assi da tua párte como de quem te cometer, porque, quando nam lévam diante, por fim, a vontáde de Deos, comummente lhe[s] chamamos complaçênçias humanas de molhér, de filhos, de parentes, de amigos e doutras pessoas, forçádos da vergonha dos quáes lhe[s] queremos complazer em seus requerimentos. E, ô que piór é, que, por nam encorrer na vergonha particulár de cada um destes, vimos a cair em outra gèrál que dura perpètuamente neste mundo e etérna no outro. Dos quáes exemplos estám os livros cheos, como se conta de Hércules que, vençedor de tantos trabálhos e pirigos, com sua péle de liám às cóstas, e com os cálos na mam de sua máça, vençedor dos monstros da terra, por comprazer ao requerimento de u)a fráca molhér, leixou éstas insínhias de seus glo/riósos feitos, e tomou u)a roça na çinta, a[s]sentádo a fiár entre a cachópas de Onfále. Salamám que diz de si <Ecclesiastes> que foi rei em Jerusalém e que preçedeo em poder e sapiênçia aos que foram ante [e]le, com toda ésta magestáde de saber e poder, leixou o Criador e, por complazer a u)a molhér, adorou o ídolo Moloc <III. Reg.XI>. Sansám , todas suas forças que lhe proveitáram, pois todas levou u)a tisoira, na mám de u)a molhér a que quis comprazer <Iudicum XV.>. Sam Joám, quem lhe cortou, a cabeça e â entregou a u)a cachópa em preço de um báilo, senám querer Heródes conçeder em seu requerimento? <Math.XIIII>. Pilátos, contra sua vontáde, condenou a Cristo à mórte e, por zélar benivolêncía dos judeos e nam cair em ódio de Çésar, caío em crime de injusto e cruél julgador. <Ioan. XIX ca.> Finalmente assi nos abrangeo ésta maldiçám da viçiósa vergonha, daquéla primeira em que nósso pádre Adám encorreo por comprazer a sua companheira Éva <Gene. III. ca.>, que cási a maiór párte dos crimes por párte déla se cométem. E nisto véras camanho mál é, que todolos outros víçios em algum tempo tem deleitaçám e este da viçíosa vergonha em requerimentos, com tristeza se ouvem, com pésar se permitem e conçédem. E paréçe que, como sam conçebidos em tristeza, que assi morteficam os espíritos, de maneira que empédem a língua pera negar, as mãos pera defender, e os pés pera fo/gir. Tudo áta e sojeita à vontáde de quem quisér lançar mam de toda sua liberdáde, e fica cási u)a estalágem graçiósa onde se agasálham todolos máos e pervésos requirimentos, porque aqui se ácham más companhias, té que, por se fazer companheiro délas, pérde a fról de sua pureza. Aqui juramentos fálsos, aqui traições, aqui mórtes de hómens, aqui más sentenças, aqui empréstemos, fianças, abonações, té leixár os filhos por pórtas. Finàlmente, é tam lá[s]sa e sogeita a quem lhe achega à pórta, que nam sábe dár com éla no rostro a alguém. E assi como se diz: <<Nunca vi rico engenhoso que lhe nam custásse cáro>>, assi se póde dizer, com razám: <<Nunca vi rico vergonhoso que se nam fizésse próve injusto>>. E ô que é piór, é que lhe fica por galardám de seus benefíçios muita ingratidám de quem ôs reçébe, porque este é o galardám que tem a caridáde mál ordenáda. F<ILHO> – Todos esses víçios paréçe que nam proçédem tanto da fraqueza do paçiente quanto dalgu)as obrigações que ele terá a quem, com sobeja vergonha, conçeder os táes requirimentos, assi como o sérvo ao senhor, o vassálo ao rei, o fráco ao poderoso, o próve ao rico. E daqui paréçe que este defeito máis está nôs de pequena fortuna que nôs de grande estádo, porque estes, como nam tem amor ou temor, dévem ser livres désta paixám. / P<ÁI> – Com amor ou temor? F<ILHO> – Porque aviçiósa vergonha se cáusa déstas duas cáusas e, como o prínçipe nam é sogeito à lei, por ser senhor déla, nam tem que temer, e onde nam [h]á temor, nam déve [h]aver a vergonha, pela difinçám que lhe deu no prinçípio. Amor também neles nam sem jurdiçám, porque, como diz Ovídio <Ovid. I. Met.>, amor e majestáde nam se ajuntam bem, ou seja pela mesma autoridáde deles, que dizem os reies nam ter parentes. Pois amigos, eles ôs tem menos que todolos outros hómens. Logo, isentos sam de todolos nóssos defeitos do ânimo.

– 13 –


P<ÁI> – Todalas cousas que dependem da humanidáde, todas tem jurdiçám em todos. Como diz Foçílides, as paixões sam comu)as. Peró, tem ésta diferença que, segundo a pessoa, assi é o víçio estranhádo, donde disse Juvenál <Saty.VIII.>: <<Todo o víçio do ânimo tanto tem máis crime, quanto é maiór aquele que ô cométe>>. Porque maís se estranha no pái que no filho, máis no Senhor que no sérvo, máis no rico que no próve, e máis em poderoso que no fráco. E, se o filho se peja ante ó pái, o diçípulo ante o méstre, o sérvo ante o senhor, e o vassálo ante o rei, cousa naturál e divida é, cá este pejo é sinal de acatamento e reverênçia filiál e servil, a quál assi é louváda nos pequenos como a vergonha em os mançebos. E isto nos aconselha Páulo, dizendo <Ad. Coll. III. cap.>: <<Sérvos, obedeçei aos senhores carnáes em todalas cousas, nam ser/vindo ao olho com que quereies aprazer aos hómens mas em simpliçidáde de coraçám temendo do Senhoe>>. E, em outra párte, segunda vez nos amóesta <Ad. Ephe.VI.>: <<Sérvos, obedeçei aos senhores carnáes em tremor e temor e em simpliçidáde de coraçám , como a Cristo. E assi o diz Pedro <Epist. I.ca.I>: <<Sérvos, sede súditos em todo o tempo aos senhores>>. E, quando ésta órdem naturál se tróca, que os sérvos envergonham aos senhores e ôs que [h[aviam de temer ficam temidos, podemos entám arguir u)a de duas cousas: ou que a vida e costumes do súdito sam tam justos, que ficam desobrigádos da lei da sojeiçám, per aquéla autoridáde de Páulo <I. ad Timot. capi I>: <<A lei nam é pósta ao justo>>. Ou é o superior tam sojeito a ésta infermidáde da viçiósa vergonha que, dádo que sua vida e costumes sejam pera emendár a outros, tem o sérvo tam pouca, que tóma por preço fazer-se glorioso com mansidões do senhor. E de qualquér maneira que isto proçeda, nam póde ser maiór vergonha per aquéla autoridáde <Prover. XIX.>: <<Nam convém ao sandeu riquezas nem ao sérvo senhoreár os prínçípes>>, porque, como diz Séneca <tragédia III> : <<gráve cousa é reino cair em servidám>>. F<ILHO> – Se a sobeja tem éssa calidáde, que cáusa trocar-se a órdem das cousas, per ésta maneira os sérvos que â tevérem menos, terám máis artelharia pera conquistár a liberdáde do senhor. P<ÁI> – Posto que eles [h]am ésta régra / por çérta per aqueles dous provérbios : <<O hómem vergonhoso, seu pecádo ô levou ao páço>> e <<Sem proveito é a vergonha em hómem neçessitádo>>. Outra régra tem eles por máis çérta, quando quérem alcançar algu)a cousa daqueles que sam sojeitos a ésta infermidáde, se, na primeira bateria de palávras nam pódem levár aquele lanço por que todas lhe[s] embáçam nas orelhas sem conçeder: convértem-se aos ardis e indústrias da guérra, lançando çiládas de terçeiros corredores, por ser pirigo entrár a escála ou fála vista. E, se o senhor é confiádo désta párte e, no tempo de seu repouso, se nam vigia, ali ô tómam às mãos, ou, por falár máis próprio, às línguas. E sempre ô cométem com u)a aparênçia de virtude, como fez o demônio a Cristo <Luc. III.cap.>: quando ô vio com neçessidáde humana, veo-lhe com um requerimento que mostráva zelo de piadáde. E com este que éra brando e piadoso, meteo três máis fórtes, em que pedia todo o patrimônio de Cristo que éra a honrra e glória de Deos. F<ILHO> – Pera um mál tam pestífero, nam [h]averá lagum remédio, de que se póssa usár, como de antídoto medeçinál? P<ÁI> – Como a natureza nunca foi escássa em suas óbras, sem dár os remédios pera todolas infermidádes corporáes, assi os doutos barões que â quiséram imitár em suas escrituras nos leixáram remédios contra todolos víçios hu/manos, da botica dos quáes te darei éstas duas péças d'ármas, convém a saber: ólhos e palávras <Dous géneros de ármas contra a víçiósa vergonha>. E cada u)a déstas ármas é neçessário qu tenha dous gumes, cá, sem eles, serám como férro morto. A um gume chamam espírito, e ao outro constância. Este espírito nam ô [h]ás-de conçeber em ti quando estevéres em páz paçífica, mas no áuto da guérra, quando te cometerem os amigos com vergonhósos requerimentos. Nam queiras imitár a Xérxes na sua passágem de Gréçia, que, segundo conta Justino <Iusti. Lib. III.>, entrou tam poderoso em número de gente e aparáto de guérra, que secáva os rios , derribáva os montes, iguáva os váles, e muitas outras façanhas, como se fora senhor da natureza. E, quando se via tam poderoso em ausênçia de seu imigo, inflamáva-se

– 14 –


contr[a] ele, com palávras de máis escuma que um javaril. Peró, tanto que o imigo éra na práça, a ponto de dár batálha, aquéla fúria de liám, aquele bramir de touro, aquéla soberba giganta, se convertia em mansidám de cordeiro e, sem esperár no campo, éra o primeiro que se punha em fogida. E Artemísia, rainha de Halicarnásso, que ô ajudáva nesta guérra, assi como se ambos trocáram o séxo, quando éla punha as mãos, punha ele a língua, oulhando, de logár seguro, como éla pelejáva. Assi, ôs que sam tocádos désta infirmidáde, quando estám fóra de pirigo, ninguém é máis ousádo nem máis animoso em responder e es/grimir em seco, com palávras ásperas e tesas. contra aqueles que ôs cométem com gráves requerimentos. Peró, como cada um deles põe os ólhos na vista do paçiente, paréçe que tem contr[a] ele a virtude do lobo que lógo embuça e emudéçe, sem poder responder ô que meréçem ousádos requerimentos em máos negóçios. Portanto, pera que ólhos do paçiente désta infermidáde córtem pela ousadia de quem ôs cométe, déve conçeber em si um espírito livre, generoso e nam sojeito a vontádes alheas, mas confórme à razám, e cuidár que é género de servidám e cativeiro aquele primeiro encolhimento que cáusa a viçiósa vergonha. Reçebido este espírito, o primeiro desvio que déve dár é levantár a primeira árma que sam os ólhos, poderósos, isentos, com magestáde livre, porque, como no abaixár e cobrir deles viste que está a vergonha , assi em ôs levantár está, da tua párte, o vençer, e, do requerente, ser vençido e confuso. Cá neles está a virtude das sétas de Filotetes, de que escrévem os poétas <Ovidi. II. de remedio amoris> as quáes assi como chagávam, assi éra[m] mézinha das próprias chágas. Mas este levantar de ólhos nam seja com a segurança de Alexandre, o qual <Iustin. Lib. IX.>, estando infermo, foi avisádo, p[or] u)a cárta, que Felipo, seu médico, lhr [h]avia de dár peçonha em úa purga. E, quando veo ao tomár déla, por mostrár o esforço de seu ânimo e a confiança que tinha em Felipo, dando-lhe a cárta, bebeo a purga. ter confiança nos súditos boa cousa é, porque doutra maneira seria escândalo, e do escândalo náçe ó/dio, e désta semente vem todolos máos frutos, peró seja sempre com honésta cautéla, cá é sinál de prudênçia. E nam póde ser milhór cautéla que alevantár os ólhos pera ver ô que se contém nos vásos que te apresentam, porque, ainda que o médico seja tam leál como éra Felipo, e sua tençám seja dár boa mèzinha, se nam é douto que a sábe regulár, máta o paçiente, porque, muitas vezes, ô que paréçe saúde nam é sáude, nem a justiça justiça, nem a fazenda fazenda. Cá éstas cousas se quérem reguládas com amor da complexám das pe[s]soas a quem os negócios compétem e com os tempos, ligáres e outras çircunstânçias que nam cábem no juizo de todolos que tem nome de médicos. Ca, muitas vezes, aqueles a que Deos deu boa ventura, nam deu bom conselho e saber, o quál está no temor de Deos per aquéla autoridáde <Prover. I. ca.> : <<Sinál de sapiênçia, temor de Deos>>. E daqui vem que alguns negóçios que ao mundo paréçem bem reguládos, dam consigo e com seu dono através, porque secrètamente lévam máis escamónea de interesse humanoo que amor ou temor de Deos. E entám os táes médicos págam todolos danos de suas mézinhas com dizer: <<Assi ô entendi>>, como dizem os juristas quando põem algu)a má tençám em u)a sentença. Quanto à segunda péça d'ármas, depois de levantar os ólhos conta o imigo, sam as palávras que lhe déves dizer, as quáes [h]am-de levár os / fios de constânçia , cá é sinál de fortaleza broil, a quál nos encomenda Jerónimo <Hieronimus super Esaiam>, dizendo: <<A fortaleza e constânçia é u)a via reál, da quál, aq[ue]le q[ue] declina pera a mam direita é sandeu e pertináz e ô que declina perà esquerda, medroso e espantádo. E ô que cair na párte de sandeu será, como diz Ambrósio <In epistola ad Simplicianam>: <<O sandeu é mudável como lu)a, o sapeinte, ainda com medo, se nam quebranta>>. Nam se muda com poderio, nam se levanta com sousas prósperas, nam se amérge com as tristes. Onde [h]á sapiênçia, [h]á i virtude, [h]á i constânçia e fortaleza. Portanto, o sapiente tem um mesmo ânimo, que se nam diminue nem acreçenta com a mudança das cousas, nem, como menino, anda flutuando com qualquér vento de doutrina, mas está perfeito em Cristo, findádo em caridáde e a[r]reigádo em fé. E, por te nam carregar com quantas amoestaçoe)s [h]á de párte da constánçia e do perseverár nas cousas honéstas, quéro-te a[s] somár tudo nésta palávra de Cristo <Math. x. Ca.>: <<Aquele que perseverár até fim será sálvo>>.

– 15 –


F<ILHO> – Se a constânçia [h]á-d'estár nas palávras, que [h]ei-de responder aos requerimentos? a fórma déssas palávras desejo eu saber, pera âs enrestár na vista do requerente P<ÁI> – Os negócios sam máis que os vocábulos, por isso nam se póde dar régra a todalas cousas, porque, como diz Aristóteles <Aris. primo posteriorum>, dos individos nam [h]á çiênçia. Porém, usarei dô que fázem os méstres d'ensinár a escrever: dam uns treládos da maneira que se [h]am / de terçár e dilineár as lêteras e, com élas, ajuntár as sílabas e vocábulos. Depois, per ali compõem cada um ô que [h]á mistér em seus negócios. A primeira entráda com que sam cometidos ôs de tua idáde é com jogo. Quando, por nam ser cousa honésta, te nam conviér, e teus amigos te provocárem a ele, responde ô que disse Xenófane a um que lhe chamou cóvardo porque nam queria jugár: << Eu nam sómente sou covárdo, mas mui medroso pera cometer cousas desonéstas>>. FILHO – E se me pedirem algu)a cousa emprestáda, que é a máis comum amizáde que se tráta? PÁI – Segundo forem as pessoas e a obrigaçám que lhe[s] tevéres, assi responderás. Teócrito, entrando em um banho, pediram-lhe dous hómens u)a toálha d'alimpár emprestáda, e a um, que éra estrangeiro, respondeo que ô nam conheçia, e ao outro, por ser ladrám conheçido, disso que ô conheçia mui bem. Tu pódes-te servir désta repósta áçerca dos hómens de tál calidáde. E, se for amigo, nam [h]ájas vergonha de fazer escritura do empréstimo, cá diz Hsíodo: <<Lembrar-te-ás que, rindo pera teu irmám, busques testemunhas>>. E, quando se mostrár agravádo pela desconfiança da escritura, responde ô que disse Perseu a um amigo que se queixáva dele por outra tál: <<Amigo, ante quéro que me págues com prazer que com demandas>>. Isto será quando tevéres ô que te pedirem, cá / nam ô tendo, ou tendo máis obrigaçám de pagár ô que déves que fazer gráças, responde ô que disse Foçiom, capitám ateniense aos seus cidadãos, que lhe pediam ajuda pera óbras de um templo : <<vergonha teria se ô désse a vós e nam a este a quem ô devo>>, amostrando um crédor a que devia u)a sóma de dinheiro que lhe tinha tomádo a logro. FILHO – E se a pessoa que me requerer for de obrigaçám, assi como criádos que ô meréçem por seu serviço? P<ÁI> – A esses nam págues com a justiça alhea. Págue a fazenda e nam a álma. Usa daquéla maneira q[ue] teve Artaxérxes com Satibarzane, seu camareiro, q[ue] por lhe nam conçeder um albítri[o] injusto que pedia, que podia valer trinta mil dáricos, moeda que óra seriam trezentos mil cruzádos, mandou ao seu tesoureiro que lhos désse e convertendo-se a ele, disse :<<Tóma Satibarzane, q[ue] ésta mercê nam me fáz póbre, e ô que pedias me fazia injusto>>. E, quando a pessoa nam for de mereçimento, mas com audáçia pedir ô que nam meréçe e compéte a outrem, usa do módo que teve Arqueláu, rei dos Maçedónios, com um despejádo que lhe pedia um váso d'ouro. mandou que se désse o váso a Eurípedes, poéta que estáva diante, e disse contra o despejádo: <<Tu és dino de nam reçeber quando pedires e este de reçeber sem pedir>>. FILHO – E quando me algum amigo requerer q[ue] dê por ele testemunho fálso? PÁI – Respondo ô que disse Péricles, / capitám ateniense, a um que lhe requeria outra tál : <<Amigo, até o altár, pódes usar de minha amizade>>, dando a entender que os requerimentos em que a álma reçébe detrímetro nam sam de conçeder aos amigos, nem mostrár fragueza em lhe responder. E por isso reprendeo Zeno, filósofo, a um mançebo que andáva escondido de um seu amigo a quem tinha prometido dár por ele um testemunho fálso: Ó desaventurádo e fráco de espírito, ele ousou de te injuriár e nam [h]ouve vergonha, e tu, pela justiça, nam ousas contradizer seu requerimento?>> FILHO – já que por meus amigos nam pósso fazer táes óbras, ouvir-lhe[s]-ei más palávras quando ás quisér dizer em vitupério d'outrem? PÁI – Sábes ô que fez Menon, capitám de Dário, a um soldádo que trazia no exército, começando de lhe dizer mál de Alexandre? Deu-lhe com a lança pela cabeça e disse: <<Cála-te,

– 16 –


que eu nam te dou soldo pera que digas mál de Alexandre, mas pera pelejáres contr[a] ele.>>. Pois se este, sendo um gentio bárbaro, teve tanto primor, que nam quis ouvir mál de seu próprio imigo, e ante quis contender com ele per meio da espáda que da língua, que dévem fazer ôs que militam debáixo da bandeira de Cristo, o qual nos manda <Mat. VII. ca ., Luc. VI cap.> que nam julguemos por nam sermos julgádos e que aparemos u)a fáce a quem der na ou/tra? FILHO – Pois u)a das grandes amizádes que dizem ser agóra mais usáda é ajudár com os ouvidos e com a língua. Com os ouvidos em terdes sabor neles de quanto vos eu dissér de meus imigos, e com a língua me ajúrdades com outro tanto de vós pera mi e pera quantos vos quisérem ouvir. E a isto chamam amigo d'amigo e imigo de imigo, como diz que sam as ligas e amizádes que fázem as potestádes de Itália. PÁI – Eu nam respondo ás tuas ligas ou línguas, porque outrem terá cuidádo de ô fazer por mi. mas quanto á obrigaçám da amizáde, peró que Platám diga que o amigo é outro eu, ainda estou bem com ô que disse Plutárco <Plutar, de viciosa verecundia>: que ô nam contentára muito Péricles querer chegár com amizáde até o altár, por ser já cousa mui chegáda a álma, em que ninguém tem jurdiçám senán Deos. E tem Plutárco razám nisto, porque ainda os hómens tem outras pártes em que nam tem párte os amigos. Cá grande ornamento tira da amizáde aquele que quér tirár déla a vergonha. E também, como diz Salamám <Ecclesiast. V.>: <<por cáusa do amigo nam [h]avemos de ser imigo do próximo>>. E sábes de quem [h]ás-de tomár as leies da amizáde? Nam de Platám, nem de Túlio, mas da doutrina de Cristo que nos diz <Luc. VI. cap.>: <<Amái vóssos amigos e fazei bem e dái emprestádo, nam esperando por isso cousa algu)a, / e o vosso galardám será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque ele é benino sobre os ingrátos e máos. Portanto, sede misericordiósos, assi como vósso pádre é misericordioso>> <Lucal cap. VI.:> <<nam queiráies julgár e nam sereis julgádos, nam condeneis e nam sereis condenádos, perdoai e sereis perdoádos, dái, dár-vos-ám, dái boa medida e chea e dár-vo-lâ-ám avondósa em vósso seo. Porque, çertamente, pela medida per que medirdes, per éssa vos medirám>>. Portanto, amemo-nos uns aos outros, porque a caridáde é de Deos, como diz Sam Joám na sua Canónica <Ioannis I . cap. IIII.> Todalas outras amizádes, assi âs que vês em tratádos, como algu)as que se trátam, pódes-lhe[s] chamár mercadoria de tanto por tanto. E sábes quál é este tanto? Os requerimentos de que óra te dei exemplos, dos quáes pódes tomár liçám pera todolos máis que te sobreviérem. E terás ésta régra: Quanto o requerimento te chegár á alma, tanto máis ousadamente responde. Imita a Cristo que, quando os fariseos e doutores da lei ô tentávam nô que tocáva á sua humanidáde, porque vinha a padeçer vitupérios e injúrias néla, com sua paçiênçia, nos deu exemplo dâ que devemos ter nas próprias injúrias. Péro, quando lhe Tocávam na divindáde em que estáva a honrra e glória de Deos, respondia <Math. XXII. cap.>: <<Por que me tentáies, [h]ipócri/tas? Géraçám de bíboras, como podeis falár boas cousas, pois sois máos <ibidem>? A géraçám má e adúltera quér sinál, et cétera, Donde disse Crisóstomo <Chrisóst. super Math.>: <<Ser paçiente nas próprias injúrias é cousa louváda e sem piadáde dissimulár âs de Deos>>. FILHO – u)a cousa notei, que todalas repóstas com que exemplificou âs que eu pósso dár a quem me requerer injustos requerimentos, todas sam dev Gregos e Romanos. Nam [h]á i algu)as doutras nações, assi como de prínçipes e capitães destes nóssos tempos e pátris? Porque com éstas, por serem da cása, máis familiarmente âs agasalharemos . PÁI – Os Gregos e Romanos é propiadáde comum: todos pódem lançár mam déla, assi pera dizer suas virtudes como seus víçios, sem por isso ser levádo a juizo. E também qualquér cousa, pera ter preço antre nós, [h]á-de ser dita em grego ou latim, cá ésta magestáde tem o antigo e estrangeiro. Que autoridáde te paréçe terá ésta palávra Esgueva, q[ue] é o despácho de um prínçipe dos nóssos mandou poer em u)a petiçám de um requerente que nam mereçia, por seu serviço, ô que pedia? E como o despácho nam fosse entendido pelo ofiçiál que despacháva, nem menos pela párte, foi neçessário tornár ao prínçipe a lhe pedir o entendimento dele. Ao quál ele

– 17 –


mandou acreçentár: <<Quem nam suár nam beba>>, que óra se tráz em provér/-bio contra aqueles que nam meréçem ô que requérem . FILHO – Nam paréçem éssas palávras repósta de magestáde reál. PÁI – Sábes porquê? Por seren nóssas e ditas em linguágem. E que máis magestáde tem em sentença éstas; <<Conhéçe-te a ti mesmo>>; <<todalas cousas com tempo>>; <<Apréssa-te devagár>>; <<sejas semalhante a ti>>; <<De nenhu)a cousa muito>>; <<Depende com proveito>>, e outros çem mil ditos, os quáes, per serem de Gregos, assi andam çelebrádos pelo mundo, como se fossem máximas do Avangélho? Se nam quiséres dizer esgueva, que disse um prínçipe nósso, Cristianísmo, dize: <<Quem nam trabalhár nam coma <d. Tessalo. III capi.>>>; <<Cada um reçeba a merçê segundo seu trabálho <Ad Co. I c. III>>>; <<Nam será coroádo senam ô que ligitamamente pelejár <Ad Timoth. cap.II>>>, que sam setenças de Páulo. Ou dize: << Órdem desordenáda é ante do meriçimento demandár o prémio < Bernard, super cantica> e ante do trabálho tomár o mamár>> (como diz Bernárdo), e outras muitas sentenças católicas que tem o mesmo sinificádo que esgueva. Como sempre os hómens [h]am de andár dizendo: dizia Sócrates, dizia Platám, dizia Zeno, dizia Aristóteles, dizia Catám, dizia Túlio, dizia Çésar. Nam dirám também: dizia el-rei Chárles de França, el-rei Afonso de Nápoles, el-rei Dom Fernando de Castéla, el-rei Dom Joám de Portugál? e assi, ô que disséram prínçipes e capitães seus natu/ráes, que, na páz e na guérra, em feitos e ditos lévam a Gregos e Romanos? Por aí nam [h]aver um Plutárco que recolhesse os seus apótemas em grego ou latim perderám as cousas seu preço? Sábe que a moéda nam tem valia pela imágem de Alexandre, de, Çésar, de Pompéo ou d'algum dos monárcas de Ássia. Opiniám é do povo: o peso e quilátes do ouro lhe dá a valia. FILHO – paréçe que já o mundo [h]á-de acabár nésta opiniám, de estimár máis o antigo que o modérno, máis o passádo que o presente, e máis o estranho que o naturál. Sentença é de Cristo <Mar. VI. ca .> que nenhum proféta tem honrra em sua pátria. P<ÁI> – Eu te direi lógo ô que fáças, pois éssaverdáde de Cristo nam póde faleçer <Luc. XXIIII. ca.> e ante o çéo e a térra trespassarám que suas palávras. E, como diz a Escritura <Psal. CXV et XIII ca.> omnis homo mendax et nom est qui faciat bonum usque ad unum. E os máis deles andam rastejando per térra a virtude em ditos, istórias, livros moráes e outras escrituras profanas de palávras mórtas.Toma o jugo do Avangélho <Mat. XI. cap.> que é cárga léve e suáve, a quál te póde livrár de todolos pirigos da sobeja e minguáda vergonha. FILHO –Muito desejo eu trazer na memória um cavide d'armas avangélicas, pera lançár mam délas ou élas de mi, ao tempo da tentaçám. P<ÁI> – Éssas ármas que tu pédes, pera que óbrem em ti esforço de cava/leiro, da mam dos púlpitos, onde se ármam ôs que quérem militár por Cristo âs [h] avias de reçeber. Peró, com liçença daquéla divina magestáde que fáz a todos liçençiádos em zelár a salvaçám do próximo ( porque tenho ésta auçám e outra de pái), apresentár-te-ei algu)as, tirádas da armaria da Santa Escritura, com aquele lustro da latinidáde com que a Santa Igreja âs véste aôs que militam debáixo da bandeira das Reáes Quinas de Cristo. E quero-te lógo dár a máis gèrál, porque tem dous fios, da quál, se bem soubéres usár, nam [h]ás mestér outra deçepár todolos máos requerimentos da párte da cárne, do mundo e do diábo. Quando te cometerem algum, em ofensa de Deos e do próximo, responde: Diliges Dominun Deum tuum ex toto corde tuo ex tota anima tua et ex omnibus viribus tuis et ex omni mente tua; et proximum tuum sicut te ipsum <Luc. X. cap.>. Porque, segundo Páulo <Ad Romanos VIII ca.>, Diligentibus Deum, omnia cooperantur in bonum. FILHO – Éssa árma é a máis gèrál que aí [h]á pera todalas tentações e, como é dobráda, nam é assi maneável a todos pera âs q[ue] sam particuláres. Queria as péças apropriadas às tentações: assi como quando me cometerem com peitas, que é a primeira entráda pera dár sentença injusta. PÁI – Defende-te com ésta <Esai. VI. cap.>: Veh. qui justifica/tis empium pro muneribus et justitiam iusti aufertis ab eo. Ou defende-te com estoutras duas, quál máis quiséres <Pro. XVIII. ca.>: Qui cognoscit in judicio faciem, non bene facit iste, et pro bucella panis deserit

– 18 –


veritatem. <Deu. XVII. ca.>: Maledictus qui accipit munera ut percutiat animam sanguinis innocentis. FILHO – E se, por razám de parentesco ou amizáde, ou qualquér outra familiár obrigaçám que máis provóca que a estranha me pedirem favor em seus negócios, que responderei? PÁI – <Deu. I. c.> Audite illos et quod justum est, judicate sive civis sit ille sive peregrinus nulla erit distantia personarum. Ita parvum audietis ut magnum, nec accipietis cuiusquam personam, quia dei judicium est. E, se for parente que viér com tál requerimento, como a mádre dos Zebedeos, responde ô que lhe disse Cristo <Mat. XX. c.>: Nesciis quid petatis. Non est meum dare vobis, sed quibus paratum est a patre meo. FILHO – E se me requererem algum juramento fálso? PÁI – Responde <Deu.VI. c.>: Non perjurabis in nomine meo, nec pollues nomen dei tui. Ou responde: Non usurpabis nomen domini dei tui frustra, quia non erit impunitus qui super re vana nomen ejus assumpserit. F<ILHO> – E quando alguém, mostrando zelo de minha honrra, me quisér provocár a tomár algu)a vingança? P<ÁI> – Essa repósta nos ensina Cristo / <Mat.VI. ca.>: Si enim dimiserittis hominibus peccata eorum, dimittet et vobis pater vester coelestis delicta vestra; si autem non dimiseritis hominibus, nec pater vester dimittet vobis peccata vestra. E isto quis aconselhár Salamá [m] néstas palávras <Prov. XX.c.>: Fatuus statin vindicat iram suam. Qui autem dissimulat injuriam, callidus est. E máis adiante diz <Pro. XXIIII. ca.>: Ne insidieris et quaeras impietatem in domo justi nec vastes requiem ejus. Septies enim cadet justus et resurget. FILHO – E se me pedirem gráças d'álgu)a óbra que fizérem em dano d'outrem e meu proveito? PÁI – Pága com éstas palávras <Ose.VI. ca.> Misericordiam volo et non sacrificium. Ou com estoutra de Esaías <Esai I ca.>: Quo mihi multitudinem victimarum vestrarum? Porque, como diz Páulo <Ad Ga.VI.c.>: Qui seminat in carne sua de carne et metet corruptionem; qui autem seminat in spiritum de spiritu metet vitam aeternam. F<ILHO> – E quando algum viçioso me indimár contra seu próximo que tem menos defeitos? PÁI – Ésta é a sua repósta <Luca. III. ca.>: Medice, cura te ipsum. E se â quiséres máis comprida contra todalas murmurações, dize <Mat.VII.ca.>: Nolite judicare et non judicabimini. Nolite condemnare et non condemnabimini. In quo enim judicio judica veritis judicabimini et in qua mensura mensi fueritis, remetietur vobis. Quid autem vides festucam in oculo fratris tui et trabem in oculo tuo non vides? Aut quomodo dicis fratri tuo, frater, / sine ejiciam festucam de oculo tuo et ecce trabs est in oculo tuo? Hypocrita ejice primum trabem de oculo tuo et tunc videbis ejicere festucam de oculo fratris tui. Finálmente nam [h]á gólpe que a cárne, mundo ou diábo te póssam lançar, que na Sagráda Escritura nam áches ármas defensivas e ofensivas, porque néla está magestáde, virtude, santidáde, descriçám, represám, amor, ódio, galardám e todo outro género de ganhár triunfo, máis gloriosamente do que ganhou Hércules ô de seus trabálhos. Porque este, nem olho ô vio, nem orelha ouvio, nem subio em coraçám d'algum hómem, o quál está em Cristo Jesu que, com o Pádre e Espírito Santo, vive e reina in saecula saeculorum. Amen. A louvor de Deos e da Virgem Maria. Acábasse o Diálogo da Viçiósa Vergonha, Imprimido em casa de Luís Rodrigues Livreiro d'el - Rei Nósso Senhor Com privilégio reál Aos XII de Janeiro de M.D.XL.

– 19 –


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.