VAGAS LEVES - ROSTOS DO RIO
“Se a vila nos oferece um panorama; se o campo, desde as terras de aluvião às terras altas de areia ou de argila, se desdobra numa diversidade imprevista, o rio é outro mundo repleto de vida e de mistérios”. Margarida Ribeiro
FICHA TÉCNICA
Catálogo Edição Câmara Municipal de Coruche Museu Municipal de Coruche
Exposição Organização Câmara Municipal de Coruche Museu Municipal de Coruche
Organização, pesquisa e textos
Coordenação Cristina Calais
Cristina Calais, Domingos Marques, Fátima Galhardo, José Alberto Carvalho, Luís Batalha
Conceito e concepção Domingos Francisco
Revisão de textos Ana Paiva
Pesquisa e textos Cristina Calais, Fátima Galhardo, Joana Marçal, Luís Batalha
Fotografias Capa: José Casanova António Quiaios Ramusga, Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Coruche, Encarnação Mesquita, Heraldo Bento, José Casanova, Jornal «O Sorraia», José Luiz Pereira
Apoio à investigação Dulce Patarra
Projecto gráfico e paginação Domingos Francisco Pré-impressão, impressão e acabamento Gráfica Moderna Agradecimentos Suzanne Daveau Luís Manuel Leal Agostinho Dias, Suzanne Daveau, Ruy Llera Blanes Tiragem 1000 exemplares 1.ª edição/ ano 2003 Depósito Legal N.º ISBN 972-98829-2-4
Revisão de textos Ana Paiva Imagens Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Sorraia, Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Coruche, Encarnação Mesquita, Heraldo Bento, José Casanova, José Luiz Pereira, Museu Municipal de Benavente. Impressão digital OPTIMO, Publicidade LDA, Serviço de Desenho e Reprografia da C.M.C. Limpeza, conservação e restauro Dulce Patarra, D.O.E./Serviço de Oficinas da C.M.C. Execução e montagem Equipa do Museu Municipal Divisão de Obras e Equipamento/Serviço de Oficinas da C.M.C. Maqueta António Quiaios Ramusga Iluminação Divisão de Obras e Equipamento da C.M.C Autores de empréstimo António Quiaios Ramusga Maria José César Freire Agradecimentos António Luís Veloso, António Manuel Ferreira Pólvora, Encarnação Mesquita, Fátima Galhardo, Heraldo Ferreira da Costa Bento, Joaquim Garcia Casanova «Quineta», José Alberto Carvalho, José Casanova, José Domingos Marques, José Luiz Pereira, Luís Manuel Leal Agostinho Dias, Manuel Roberto, Rafael Rodrigues, Roberto Caneira, Suzanne Daveau, Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Sorraia, Foto África, Jornal «Vida Ribatejana», Grupo DHV / FBO, Jornal «O Sorraia», Junta de Freguesia do Couço, Museu Municipal de Benavente, Museu da Marinha
Sumário ABERTURA
O ROSTO DO RIO 1) A flora (breve caracterização) 2) O Sorraia enquanto corredor ecológico
O RIO, O CURSO DA HISTÓRIA O RIO, A PESCA 1) A pesca - os pescadores e o rio Sorraia
O RIO, A AGRICULTURA 1) A agricultura... do Sorraia ao Canal de Rega
O RIO, O FUTURO 1) Emissário e ETAR da vila de Coruche - Apontamentos
Passeio de barco no Sorraia. Couço, 1945 (foto de JosÊ Casanova)
ABERTURA O rio Sorraia - ou muito simplesmente «a ribeira» - está intrinsecamente ligado a Coruche e às suas gentes em todas as vertentes da sociedade e da economia deste território. No imaginário popular, na toponímia, na poesia, nas designações comerciais, na gastronomia, na tauromaquia, na zoologia, enfim, na vida de todos nós o Sorraia é insubstituível. Ali aprendemos a nadar, a pescar, a amar; por ele chegaram e partiram as embarcações ao longo dos séculos, com ele regamos e fertilizamos os campos, com ele sofremos as inquietações das grandes cheias navegando as ruas de Coruche em vigílias nocturnas entre o receio e a euforia. No futuro queremos um Sorraia mais limpo e mais lindo. O rio «da nossa terra» apresenta hoje um enorme potencial na ocupação saudável dos tempos livres. Devemos, com a requalificação das margens do Sorraia, criar condições para podermos privar de mais perto com o rio, que deverá ser lugar de lazer, encontro e prazer… Esta exposição representa uma abordagem ligeira à história do rio e daqueles que mais directamente privaram com ele, constituindo também uma proposta de diálogo com a população, que conduzirá eventualmente a uma recuperação frutuosa de memória local relativa ao Sorraia.
O Presidente da Câmara (Dionísio Simão Mendes, Dr.) 5
O ROSTO DO RIO
1 - A FLORA (BREVE CARACTERIZAÇÃO)
Fátima Galhardo Engenheira Bio-Física
O rio Sorraia, ao longo do seu traçado, é acompanhado por um diversificado ecossistema que tipifica as características de uma zona ribeirinha. A acompanhá-lo estão amplas áreas agricultadas que interferem significativamente no seu equilíbrio ecológico. A forte aposta no sector primário é bastante visível e o impacte paisagístico é notório, sendo relevante a acção antropogénica. Deste modo, assistimos ao longo dos tempos a uma alteração da dinâmica ecológica do rio Sorraia. As galerias ripícolas, então dominadas por comunidades de salgueiros, Salix sp., freixos, Fraxinus sp., e choupos, Populus sp., reflectem actualmente a acção massiva e a relação biunívoca, desde sempre estabelecida entre o rio Sorraia e a população. Resistem exemplares de ch o u p a i s e s a l g u e i r a i s, acompanhados por tímidas comunidades de caniços, Phragmites australis, de juncais, Scirpus sp., em que os silvados, Rubus sp., revelam uma elevada Salgueiro-chorão adaptabilidade às condições edafo-climáticas, para além de denunciarem a forte intervenção humana. Deparamo-nos com um ecossistema ribeirinho, com margens profundamente intervencionadas, ecologicamente mais pobres, onde o fenómeno erosivo é facilitado, quer pela inexistência ou fraca abundância de espécies florísticas, que garantam a sua sustentabilidade, quer pela forte intervenção agrícola. 7
Resultante da componente agrícola e do ar rastamento de materiais, surgem em alguns troços do rio, principalmente em zonas de Jacintos-de-água. Rio Sorraia corrente fraca, o desenvolvimento de comunidades de macrófitos flutuantes. Tratam-se dos conhecidos jacintos-de-água, Eichhornia crassipes. A sua proliferação denuncia a existência de compostos azotados na água e alerta-nos para o fenómeno da poluição aquática, nomeadamente da eutrofização. Será possível a revitalização do ecossistema ribeirinho que «nos abraça» todos os dias? Obviamente que passará por uma adequação das necessidades ao meio e de uma maior aposta na sustentabilidade do rio Sorraia. É fundamental promover o desenvolvimento de comunidades rípicolas, quer ao nível das margens quer ao nível do leito de cheia. Será através do enriquecimento do estrato arbóreo, arbustivo e herbáceo que o rio Sorraia recuperará a sua vitalidade e dinâmica ecológica.
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2 - O SORRAIA ENQUANTO CORREDOR ECOLÓGICO
Abibe
José Alberto Lima Carvalho Vigilante da Natureza
O Sorraia é um importante corredor ecológico de fauna, em particular de avifauna. Principal afluente da margem esquerda do rio Tejo, este valor natural tem sido desde há várias dezenas de anos alterado do seu leito primário consoante as modificações efectuadas pelo homem para aproveitamento das suas margens e vale em práticas agrícolas. Devemos destacar o facto de a lontra ainda utilizar este corredor para as suas migrações anuais, que efectua ao longo das linhas de água, deslocando-se para o interior do País, onde se alimenta e reproduz. Mas a avifauna é, por excelência, a grande beneficiária do Sorraia como ecossistema ribeirinho que, embora a sua vegetação ripícola tenha sido bastante delapidada pelas novas práticas de limpeza de margens, detém ainda valores ecológicos para muitas espécies de aves, insectívoras e limícolas, utilizarem como habitat. Poderemos dividir em dois grupos os tipos de aves que utilizam o rio Sorraia, as suas margens e vale, não só para nidificar como para a chamada «invernada» e sua alimentação. Assim, temos as aves residentes todo ano e as migratórias, das quais poderemos destacar a cegonha-branca (Ciconia ciconia), o peneireiro-cinzento (Elanus caeruleus), a tarambola-dourada (Pluvialis apricaria), o abibe-comum (Vanellus vanellus), o abelharuco-comum (Merops apiastester) e a alvéola-branca (Motacilla alba). Nas sua margens muitas espécies residentes encontram na vegetação
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nidificação, onde se pode observar o pato-real, a garça-branca, o rouxinol-pequeno-dos-caniços, a galinha-d'água, o mocho-galego, o guarda-rios, o cartaxo-comum, o pintarroxo-comum, o trigueirão, etc. Recuperando e protegendo o rio e as suas margens valorizar-se-á um ecossistema importante para muitas espécies que dele dependem, incluindo o Homem. .
Galinha-d’água
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O RIO, O CURSO DA HISTÓRIA
Lavadeiras. Couço, s/d (foto de Encarnação Mesquita)
EM TORNO DA ETIMOLOGIA DO TERMO SORRAIA - Desconhece-se o nome deste curso de água ao tempo do domínio romano e islâmico, sendo que a referência mais antiga que se conhece data de um texto, de 1262, que contém os termos de doação de uma herdade situada em Coruche «inter Soor et Sorraya», indiciando a existência de dois cursos de água identificados por estes topónimos. Já nos finais do século XIV, em 1391, uma carta de D. João I, respeitante a uma demanda ente Coruche e a Erra por causa de uma barca para passagem de gado e peões, na época das cheias, refere um «logo de Sorraya”. Segundo Margarida Ribeiro1 este lugar do Sorraia situa-se, pelo contexto da carta, num cruzamento de caminhos e poderá o nome deste rio ter tomado a designação daquele lugar. A autora refere ainda que, «salvo
1) In Ribeiro, 2001, p. 50. 2) O Sor é mencionado desde 1199 na região de Benavente. In Daveau, 1984, p. 119.
melhor interpretação, a existência daquele lugar foi de curto tempo, em virtude de não se encontrar referido nos censos do século XVI». Ainda a delimitação pormenorizada de 1421, entre Coruche e a Erra, mostra que o braço Soor2 corria a Norte do braço Sorraia e que estavam ligados por alvercas ou canais das cheias. Igual situação é descrita por Claude Bronseval (monge cisterciense francês que em 1532 e 1533 atravessa o Vale do Sorraia), aquando da sua passagem por Coruche, pois no seu relato de viagem identifica um primeiro curso de água à saída de
Cristina Calais Mestre em Arqueologia Responsável Técnica do Museu Municipal de Coruche cristinacalais@clix.pt
Coruche, a ribeira de Soor, e uma outra ribeira, cerca de 2,5km adiante, chamada Sorraia. Todavia, sobre a designação deste curso de água imediatamente à entrada de Coruche reza a passa-
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3) A transcrição da passagem diz o seguinte: «[...] a Ribejra da Erra a que chamão soor ainda que nom seia fique em termo de Cur uche [...]». In Ribeiro, 1959 (Documento n.º 35), p. 283. 4) In Daveau,1984, pp. 125-126. 5) «1.º- Chamasse o Rio Soro, por passar por huma villa chamada a Pontte do Soro nestta Provincia, e anttigamentte Sorraya, por nelle se meter a ribeira que passa pellas villas de Fr o n t t e i r a , F i g u e i r a , Er vedal, Aviz, Cano, e Mora, que tem seu Nascimentto perto da Raya de Casttella e luntto Raya a - Soro, se denominaua Sorraya e devidios esttes Rios que anttiguamentte levavão todas as suas correnttes pello meyo dos campos destta villa e hoje partte das suas Agoas pelos mesmos campos e a mayor abundancia comjuncta a villa ficou a menor correntte do campo com o nome de Sorraya, e a mayor abundancia com o Nome de Soro.» In, Ribeiro, 1959, (Documento n.º 42), p. 307.
gem de uma sentença de D. Afonso V (1438-1481), transcrita em 1508, que este curso de água, vulgarmente designado de Soor, é a ribeira da Erra,3 a qual vê o seu curso inferior alterado passados cerca de 320 anos sobre esta data. Terá sido, pois, por volta do ano de 1828 que se realizaram as obras de canalização do curso inferior da ribeira da Erra que se mantém na zona elevada, a Este do Cabeço do Pé da Erra, e que vai confluir com o Sorraia não longe do Divor. Com base nos estudos feitos por Suzanne Daveau, este traçado artificial muito anguloso não aparece ainda na carta de Jeffrey (1790), mas está representado sobre a carta de Alentejo de Ch. Bonnet (1851) e na Carta Geographica de F. Folque (1865).4 Já no século XVIII, em conformidade com as Memórias Paroquiais de 1758 e o Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso, os párocos de Coruche e Erra apresentam algumas divergências relativamente aos nomes do rio e ao seu percurso, certamente instável. Assim, e segundo descrição do Padre Leite Pitta5 (pároco de Coruche), o rio de Coruche dividia-se em dois braços principais, denominados Sor e Sorraia. O Sor, com maior abundância de água, corria junto à vila e o Sorraia, com menos corrente, passava no campo.
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Contudo, o prior da Erra refere que o Sorraia apenas se divide em dois rios da freguesia de Santa Justa para cima, o Sor e o Raia, e que para baixo não consta que tenha outro nome para além de Sorraia. Por outro lado, ainda, se atendermos à leitura do Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso, no que concerne à área de Benavente, pode ler-se que o rio Sorraia apresenta várias designações, sendo, no seu percurso de Bilrete até Coruche, chamado de Sorraya e, de Coruche 6 para cima, apelidado de Sôro. Deparamos, assim, na análise de fontes coevas, com alguma dificuldade interpretativa, decorrente muito possivelmente da instabilidade do percurso. É pois evidente que a falta de fixação do nome resulta, pelo menos em parte, de um traçado inconstante dos rios, o qual não é estranho, por sua vez, às dificuldades de travessia da planície aluvial. No século XIX, atendendo à carta de F. Folque, datada de 1865, constatamos a existência de dois braços de rio frente à vila de Coruche, sendo que, então, a ribeira da Erra já se encontra com o seu 7 actual percurso, confluindo com o Sorraia próximo do Divor. Nesta carta a designação de R. Sorraia é feita imediatamente a jusante de Coruche, no ponto em que confluem os dois braços de rio localizados frente à vila, formando como que um mouchão. O mesmo se pode constatar na planta da vila de Coruche, à escala 1:500, levantada em Julho de 1908. Na memória das pessoas, e ainda hoje constatável em período de pré-cheia, o braço de rio observável mais a sul, na zona do campo, é conhecido como «o Sorraia Velho»...
6)«12.º Desta Villa [de Benavente] até Bilrêtte conserva o nome de Ribeyra de Benavente. Deste monte até Coruche lhe chamão Sor raya. De Coruche para cima Sôro, ainda que muitos uzão de alguns dos referidos nomes sem esta differença, e costuma de ordinario ter o nome das terras por onde passa: e he tradição vulgar que se chamava esta Ribeyra o Rio Juliano.» In, Azevedo, 1926, p. 250. 7) Ambos os cursos de água - Divor e Erra - são descritos para o século XVIII como só correndo no Inverno. In Ribeiro, 1959, p. 313.
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BREVE RESENHA HISTÓRICA - A antropização do Vale do Sorraia remonta à Pré-História, tendo, desde então, as comunidades humanas usufruído de uma extensa área de captação de recursos e de terrenos férteis à prática agrícola e à pastorícia. Este espaço geográfico, onde o rio foi desde há muito utilizado como eixo de comunicação privilegiado, beneficiou enquanto afluente do Tejo da sua ligação ao mar. Foram-lhe, assim, facilitados os contactos locais e
Ânfora vinária (Lusitana 3) Mata-Lobinhos. Coruche
o intercâmbio de produtos e matérias-primas entre regiões. Ainda que não existam vestígios arqueológicos que possam comprovar a presença fenícia no Vale do Sorraia (a partir de meados do século VIII a.C.), a existência de uma importante feitoria comercial no baixo vale do Tejo - Almaraz (Almada) - serviu, certamente, o vasto estuário e, muito possivelmente, o Vale do Sorraia. Certo é, atendendo à abundância de sítios arqueológicos identificados nas prospecções arqueológicas, que à chegada dos romanos (século I a.C.) o Vale era já uma área intensamente ocupada. Ao período de ocupação romana é de realçar a existência de um povoamento concentrado ao longo do Vale do Sorraia. A recolha de inúmeros fragmentos e de contentores anfóricos são testemunho inequívoco de um tráfico fluvial, seguramente mais fácil, menos dispendioso e com maior capacidade de carga que os transportes terrestres.
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NO SÉCULO XVI
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A TRAVESSIA DA PLANÍCIE
ALUVIAL FRENTE A CORUCHE - Cruzando a informação resultante do estudo da cartografia antiga - nomeadamente da Carta de Portugal de Álvaro Seco (1560) e do Atlas do Escurial (c. de 1585) - com os testemunhos escritos de Claude Bronseval e de Gaspar Barreiros (cânone da Catedral de Évora que na Primavera de 1546 vai de Lisboa a Roma), deparamos com uma paisagem curiosamente diferente da actual. Ponto comum é o da existência de uma ponte em madeira sobre uma larga ribeira à saída de Coruche, referida como sendo uma 8
grande ponte por Gaspar Barreiros, certamente no local em que C.
8) Com base no texto de Daveau, 1986, p. 185. 9) Idem, p. 183.
Bronseval9 refere, catorze anos antes, «haver uma que não valia nada», motivo pelo qual no dia 11 de Outubro de 1532 ele e os seus companheiros atravessaram a ribeira a pé. Todavia, uma meia légua mais à frente (cerca de 2,5km), uma outra ribeira, muito profunda, impede-os de passar, tendo eles de seguir a sua margem durante «uma g r a n d e l é g u a » , s o b f o r t e ch u va d a , a t é à p e q u e n a
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e elevada aldeia da Erra. Aí, descem um vale que percorrem durante «uma meia légua» e atravessam a vau uma ribeira muito larga e perigosa chamada Sorraia. Sete meses mais tarde, no regresso, a 16 de Maio de 1533, os mesmos viajantes, acompanhados por monges espanhóis, atravessam o vale mais facilmente. As ribeiras estavam então menos cheias. O primeiro curso de água, o Sorraia (Horraye), é atravessado de barca - a barca do comendador da Ordem de Avis. Depois atravessam uma segunda ribeira, sobre a ponte de madeira (sem dúvida então reparada...), atingindo assim a vila de Coruche (Crouche), onde pernoitam na estalagem. Na manhã seguinte atravessam a charneca até ao Porto de Escaroupim.
Glossário: C l a u d e B r o n s e va l - m o n g e c i s t e r c i e n s e f r a n c ê s q u e a c o m p a n h a o S u p e r i o r d e C l u n y, D. E d m e de Saulieu, em tournée de inspecção dos conventos e mosteiros da ordem, tendo redigido um jor nal dos aspectos práticos de toda a viagem Gaspar Barreiros - cânone da Catedral de É vo r a q u e f o i e n v i a d o a Ro m a p e l o a r c e b i s p o D. Henrique para ag radecer ao Papa a atribuição do título de Cardeal. Da sua viagem, iniciada na Pri m avera d e 1546, resul ta um a C or ogr a fi a , o n d e descreve e comenta os lug ares mais curiosos do seu itinerário. Légua - antiga medida itinerária que valia entre 5 e 6 km.
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1 0 ) D. P e d r o t e r á frequentado Coruche por várias vezes, sobretudo no âmbito das suas caçadas no Ribatejo. In Daveau, 1984, p. 121. 11) In Ribeiro (Documento n.º 15), 1959, pp. 236-240.
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assim, que o corregedor - devido a uma queixa apresentada aos 12
juizes pelo procurador do concelho e por dois vereadores ordenou o cumprimento dos antigos procedimentos e obrigou o comendador a ter a barca no porto público, bem como a pagar ao barqueiro. Por infracção ao regulamento estabeleceu uma multa de 12) «Queixava-se o concelho que o comendador retirava a barca do porto de Évora pedindo exagerada quantia pela passagem dos moradores da vila e termo, impedindo ainda a passagem dos que chegavam pela noite.» In Ribeiro, 1959, p. 132. 13) In Ribeiro, 1959, p. 133.
10 libras e a indemnização ao queixoso que declarasse ter pago mais 13
do que o determinado.
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PONTES DE MADEIRA - É de meados do século XV a primeira referência concreta à existência de pontes em Coruche. Num 14
documento de 1450 D. Afonso V deter mina que os produtos das multas impostas no concelho deixem de ser destinadas à chancelaria do 15 Mestre de Avis e sejam aplicadas na reparação e manutenção das
pontes, quer para os pregos quer para as madeiras, sendo certo que estas pontes são de grande utilidade tanto para os habitantes como para os viajantes de passagem. Como refere Suzanne Daveau, uma tal decisão implica, evidentemente, a existência de pontes bem 16
anteriores , as quais completavam, seguramente, a função da barca de passagem sobre o principal curso de água - o rio Sorraia. A inexistência de ponte sobre este é atestada, para o século XVI, não só pela leitura do texto de Claude Bronseval mas também pela observação da carta de Álvaro Seco (1560). Ambos os documentos mostram que entre Santarém e Évora todas as ribeiras eram providas de pontes, à
14) In Ribeiro (Documento n.º 27), 1959, pp. 267-268. 15) Os habitantes de Coruche parecem desempenhar um papel cada vez mais importante na exploração do tráfico. O Comendador mais não fazia do que defender os seus privilégios, tal como se pode verificar aquando da passag em de C. Bronseval por Coruche. In Daveau, 1984, p. 122. 16) Segundo Suzanne Daveau, é provável que já em 1400, no reinado de D. João I, uma ou mais pontes de madeira tenham sido construídas sobre outros braços do rio pelos habitantes de Coruche, com a ajuda dos monarcas, que as aliviavam de certas imposições. In Daveau, 1984, p. 122.
excepção do Tejo e do Sorraia.
Ponte de madeira. Coruche, final da década de 20 (foto de José Luiz Pereira)
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CORUCHE COMO ETAPA DOS ITINERÁRIOS REAIS A importância de Coruche enquanto ponto de passagem no percurso dos itinerários reais - realizados quer entre Santarém (a segunda mais importante vila do reino) e a cidade de Évora quer entre Lisboa e Évora, por Escaroupim17 - é, conforme referimos anteriormente, assegurada já desde o século XIV e testemunhada 17) Ver Mattoso, 1989, p. 20. 18) Em 1395 o comendador da Ordem fechava nele o gado que, sendo pertença dos habitantes, vagueava pelas terras da Ordem. In Ribeiro, 1959 (Documento n.º 10), p. 226. 19) Já destruído em 1532. In Ribeiro, 1959, p. 62.
por alguns documentos, nomeadamente por uma série de acordos celebrados, por interesse dos próprios reis, entre o comendador da Ordem e o concelho. Todavia, a fixação e importância da passagem frente a Coruche - na zona em que a planície aluvial é mais larga e com numerosos braços mortos e áreas pantanosas resultantes da ocorrência das cheias deveu-se - seguramente à existência do castelo18 no alto do monte e, consequentemente, mesmo depois do seu desaparecimento,19 ao estabelecimento/manutenção de todo o equipamento de passagem e acomodamento com que a vila, ao longo dos séculos, se foi apetrechando para apoio dos viajantes, nomeadamente da realeza e sua comitiva. Pelo que, nos inícios do século XV (em 1403), a instalação de uma estalagem na vila - da responsabilidade do Comendador da Ordem de Avis, sob
Ponte de madeira. Coruche, final da década de 20
autorização de D. João I - vem dar apoio de forma privilegiada à
(foto de José Luiz Pereira)
passagem dos itinerários reais. É, todavia, curioso verificar que, à semelhança do que se aconteceu com a barca de passagem do comendador, também com a estalagem se atestam conflitos de interesse relativamente à comunidade local, porquanto só a partir de 21
1513 o Foral Manuelino vem regulamentar a possibilidade de os habitantes da vila poderem receber em suas casas, de dia e de noite, gratuitamente ou por dinheiro, qualquer pessoa com o fim de descansar, dormir ou comer. O direito de abrigar os animais em troca de dinheiro ficaria, no entanto, reservado à estalagem. O concelho ganha, assim, com a faculdade de hospedagem privada, benefício decorrente da estada dos viajantes e da sua passagem 20
frente a Coruche, a qual conta também com o apoio do poder real ao nível da construção de pontes. Pelo que, em prol do bom funcionamento do caminho, já D. Afonso V em meados do século XV prescinde de certos rendimentos destinados à chancelaria do Mestre de Avis. Os habitantes de Coruche desempenham progressivamente um papel cada vez mais importante na exploração do tráfico, procurando o comendador da Ordem, sempre que possível, tirar partido do uso da barca (sob sua gestão), conforme fica atestado pela passagem de Claude Bronseval, no ano de 1533, em Coruche. Todavia, ainda que irónico, não há para o século XVI nenhum texto que refira a existência de um tráfico fluvial significativo. A este respeito há apenas que salvaguardar as referências indirectas feitas no Foral Manuelino às matérias-primas usadas muito provavelmente
20) Ainda que em tempo de cheia a passagem do vale fosse bem mais fácil a montante da Erra. 21) «E outros tres Reaaes [...] por todallas cousas feitas desparto Palma ou Junquo Assy grossas como delgadas E assy de tabua ou de funcho [...].» In Ribeiro, 1959 (Documento n.º 37), p. 291.
na manutenção das embarcações, 21 bem como a alusão, supostamente irónica, de Gil Vicente à Caravela de Coruche, feita no ano de 1527 na Nau de Amores. 22
Contrariamente, são claras as referências à existência de um importante tráfico terrestre de mercadorias, testemunhado pelo Foral Manuelino (1513), ao nível da grande quantidade de produtos que, vindos de fora, eram transportados por animais de carga e alvo de portagem (pagamento) ao entrarem no concelho. Mas em 1580, com a união de Portugal à coroa de Espanha, o período áureo da vida de Coruche é bruscamente interrompido e as viagens da corte perderam o seu significado. Ainda que para o século XVII a documentação sobre a região seja praticamente inexistente, podemos antever que, face aos 60 anos de domínio filipino, no tocante à manutenção e reparação das pontes, a regularidade dessas obras deixou, seguramente, de ser feita com a prontidão desejável para os 22) «[...] Pelos capítulos de Coruche nas cortes de Évora de 1491 (Documento n.º 33), em que foi procurador do concelho Vasco Nunes, D. João II havia retirado uma parte dessas rendas (seis mil rrs) para ser aplicada na construção de um chafariz, no concelho da Erra, obra que não chegou a ser executada, pelo que o procurador requereu ao rei que esses dinheiros voltassem a Coruche para serem empregados nas pontes, as quais umas haviam sido levadas pela cheia do Inverno, e outras danificadas. Concede o rei a graça pedida, por 5 anos seguidos.» In Ribeiro, 1959, p. 112. 23) In Daveau, 1986, p. 187.
utilizadores da vila e seu termo. Recordamos aqui que, dada a sua frequente destruição pelas cheias, o peso de manutenção das mesmas era alto e, como tal, eram muitas vezes reconstruídas ou reparadas 22
com o apoio dos nossos reis destacando-se, assim, a importância do percurso em que Coruche era ponto de muda e de passagem. Não é, pois, de admirar, como refere Suzanne Daveau, que os caminhos da região de Coruche se tornaram, supostamente, muito desertos, atendendo ao facto de um bandido, denominado Sol Posto, aí ter desafiado as autoridades durante mais de quatro anos.23 A este respeito não deixa de ser curioso e importante anotar o topónimo Monte Velho do Sol Posto, ainda hoje registado na margem sul do Sorraia, de onde, muito provavelmente, o homem era natural.
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O SORRAIA DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XX - Ainda que para o século XVIII, contrariamente à centúria anterior, as fontes documentais sejam abundantes,24 da sua análise Suzanne Daveau comenta parecer Coruche um lugar de passagem algo 25
apagado.
Relativamente ao Sorraia, retratado nas Memórias Paroquiais de 1758 e no Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso, podemos aferir acerca da navegabilidade do rio e do seu equipamento de passagem. Equipamento de passagem - Ao longo dos séculos, na sua contínua luta contra o isolamento, Coruche (re)constrói pontes, nomeadamente de madeira, situação confirmada documentalmente para a segunda metade do século XVIII e que se mantém actual até à construção da ponte metálica «General Teófilo da Trindade», 26
inaugurada em 1930. Assim, em conformidade com o que é descrito pelo Padre Leite Pitta em 1758 (então pároco da Vila de Coruche), sabemos da existência de uma ponte de pau sobre a vala 27
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que o Soro tinha aberto, bem como de uma ponte de pedra , nos campos da vila, sobre o Sorraia, ambas destruídas durante o Inverno, muito provavelmente por causa das cheias. Relativamente à de pau, refere ter sido grande o prejuízo para os viajantes e para o povo. Segundo Margarida Ribeiro, no Livro das Rendas e Encargos da Misericórdia de Coruche, datado de 1788, há a referência a uma ponte de pedra nas delimitações de uma courela (Marinhas) - «que
24) Dada a existência de g randes obras, como sejam, a título de exemplo, o Diccionario Geographico [...] do Padre Luís Cardoso (1751), as Memórias Pa r o q u i a i s d e 1 7 5 8 (transcritas por Margarida Ribeiro e Álvaro Rodrigues d'Azevedo), bem como algumas corografias p o r t u g u e s a s , nomeadamente a Chorographia Portuguesa do Padre António Carvalho da Costa (1707-1712). 25) Nomeadamente o recenseamento da população e do gado de Coruche em 1789 [...] mostra que, em 883 homens exercendo uma profissão, só estavam ligados aos transportes 19 almocreves, 9 mercadores e apenas um estalajadeiro, o que não é indício de uma grande actividade. In Daveau, 1984, p. 124. 26) No dia 16 de Agosto, pelo Presidente da República, General Carmona. 27) Ver nota 5. 28) «Tem a Sorraya nos campos destta villa huma Pontte de canttaria que o prezentte Inverno ficou aruinada, Tinha mais huma valla que o Rio Soro tem aberto, huma Pontte de Pao que Totalmente ficou o prezente Inverno perdida em perjuizo do Povo e Passageiros.» In Ribeiro, 1959 (Documento n.º 42), p. 308.
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confinava a E com a Herdade das Romeiras e a S com a alverqua da Ponte de pedra»29 - que lhe faz admitir a hipótese da existência de uma outra ponte que, devido aos aluviões trazidos pelas inundações, se 29) In Ribeiro, 1959, p. 97.
encontrava já numa alverca.
Ponte da Coroa. Coruche (foto de José Luiz Pereira)
Quanto à enigmática Ponte da Coroa, assim chamada por ter sido mantida pelas receitas da coroa, é monumento nacional e apresenta a data de 1828, porquanto terá sido neste ano que foi alvo de construção ou reconstrução. Construída em tijolo, ela testemunha a passagem de um antigo caminho, sobre o Pego das Armas, de que subsistiam, ainda não há muito tempo, outras duas pontes que transpunham braços mortos do rio. A persistência de pontes de madeira foi, todavia, uma constante até à primeira metade do século XX. Ainda no ano de 1904, para fazer a passagem do Sorraia foi, segundo Francisco Câncio, necessário construir-se uma ponte de barcas, havendo, até à inauguração da 25
da ponte metálica, no dizer do mesmo autor, uma fraca ponte de madeira, que o Sorraia cobria à menor cheia, bem como uma barca 30 de passagem. Joaquim Casanova do Couço, também conhecido por Mestre Casanova do 31 Beco, fez, durante anos, com a sua barca, a travessia das pessoas, carroças, burros e mulas entre o Couço e Santa Justa. Em tempo de cheias o seu «braço possante manejando certeiramente a vara de seis a sete metros, a borda a rasar a 32 água» substituiu, até à década de 70 do século XX, a antiga ponte de madeira, sistematicamente destruída pela corrente, isolando as populações de ambas as margens. NAVEGABILIDADE DO RIO - Com base no Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso e nas Memórias Paroquiais de 1758 constatamos da navegabilidade do rio Sorraia, ainda que com algumas incongruências, tal como também já se verificou a propósito da nomenclatura dos cursos de água frente a Coruche. Assim, segundo o prior da Erra, o Sorraia era navegável no século XVIII, durante todo o 33
ano, por bateiras , até aos rápidos do Furadouro, ainda que pareçam existir alguns condicionalismos no período estival como podemos
Barca de passagem. Couço, 1956. (foto de José Casanova)
30) In Câncio, 1939, pp. 12-13. 31) N. 1902 - m.1982. 32) In Labaredas, 1999, p. 89. 33) Segundo o Prior da Erra: «Da freguezia de Santa lusta que dista duas legoas asima desta villa para a parte do Nascente para baxo he caudalozo este rio, e corre todo o anno em muita abundancia [sendo] este Rio da Sorraia [...] navegavel com bateiras thé donde chamam O Furadoiro lunto á Villa de Mora.» In Ribeiro, 1959 (Documento n.º 43), p. 313.
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34) Segundo o Pároco de C o r u c h e : « Po d e s e r Navegavel thé estta villa com a despeza de se lhe abrir vala, como a de Benavente, ou Salva Terra, e quatro legoas asima destta villa tem cachoeira e ainda rotta estta não poderá ser Navegavel por faltta de Agua na Sorraya.» In Ribeiro (Documento n.º 42), 1959, p. 307. 35) Segundo o Pároco do Couço: «Athe ao Furadouro que fica hua legoa desta freguesia pera a vila de Mora no inverno he navegavel e capas de navegarem os barcos de Riba Tejo porem do Furadouro pera sima não pode ser navegavel por cauza de Pinhascos.» In Ribeiro, 1959 (Documento n.º 44), p. 316. Segundo o Pároco de Benavente: «Com as enchentes he navegável em bateis até Coruche, sinquo legoas de distancia pello rio acima, e quando leva muita quantidade de agoa he capaz de embarcação mayor com grande trabalho.» In Azevedo, 1926, p. 249. 36) Segundo o Pároco de Coruche: «Em ocazião de cheyas de Inverno enttra athe estta villa embarcassoins Da de Benaventte e alguns fazem carga de quarentta moyos de Trigo. [...]» In Ribeiro (Documento n.º 42), 1959, p. 307. 37) In «A Hora», 1938, p. 119. 38) In Labaredas, 1999, p. 87. 39) In Garcia, 1948, p. 14.
depreender do testemunho do Padre Leite Pitta (Pároco de Coruche). Segundo ele, a abertura de uma vala como a de Benavente ou Salvater ra, ainda que implicando custos, permitiria que o mesmo fosse navegável até à vila.34 Para a estação invernal, no período das águas altas de Inverno, a sua navegabilidade está comprovada pela subida, até ao Furadouro, de Rio Sorraia. Barco de transporte de mercadorias. s/d embarcações maiores, admitindo mesmo (foto do Museu Municipal de Benavente) «barcos do Ribatejo».35 As embarcações chegadas a Coruche, vindas de Benavente, podiam transportar 40 moios de trigo, ou seja, entre 33 a 35m3 deste cereal.36 Já para os finais do século XIX, inícios do XX, a navegabilidade do Sorraia é confirmada pela subida das fragatas até ao Couço,37 carregadas de mercadorias, nomeadamente de sal, as quais, no regresso, transportavam essencialmente cereais e cortiça até Lisboa. A importância destas deu inclusive nome a um porto, o Porto da Cortiça, de onde partia a fragata de Francisco Casanova (do Couço) - avô de Mestre Casanova do Beco -, para o estuário do Tejo, carregada com 38
fardos de cortiça e cereais. Em meados do século XX, devido ao assoreamento, já só era navegável 39 por pequenos barcos de pescadores locais. 27
Barca de passagem atracada junto ao porto de João Felício. Coruche,1909 (foto de Heraldo Bento)
PORTOS FLUVIAIS - Segundo 40
Margarida Ribeiro, o porto principal do Sorraia era o Porto de João Ferreira, local onde se situava a alfândega comarcã e onde os oficiais do fisco vigiavam as entradas e saídas das mercadorias. O Porto de João Felício e o Porto de Évora, mencionados nos documentos, eram portos de passagem e de pequeno tráfego concelhio. Apesar do seu completo desaparecimento, a sua memória mantém-se no registo toponímico, dando, os dois primeiros, nome a duas praças abertas sobre a avenida marginal ao rio Sorraia e, o terceiro, o Porto de Évora, localizado no Monte da Barca onde, por força da história, é, ainda hoje, sítio de cruzamento de caminhos. Era aí que se efectuava a permuta dos produtos agrícolas, nos quais se destacam os cereais, nomeadamente o trigo, a cevada e o centeio, e a cortiça, produtos estes da região, mas igualmente aqui chegados vindos de outras terras do Alentejo. A troca era feita pelo sal, peixe e outras 41
mercadorias. Além dos barcos, como nos refere Antunes Pinto, havia jangadas, usadas sobretudo para dirigir a madeira flutuante que seguia, rio abaixo, para locais das margens do rio até à sua foz no Tejo.42 É quase inquestionável a importância que, já no período dos descobrimentos, a condução de troncos, rio abaixo, teria para a
40) In Ribeiro, 1959, p. 157. 41) In Pinto, 1987, p. 74. 42) A propósito do Tejo e dos produtos que circulavam pelos seus braços, refere Cláudio Torres que, a partir do século IX: «Desde Abrantes ou Tomar, de Coruche, Coina ou Alcácer do Sal, chegavam [a Lisboa] as grandes fragatas, varinos e buques com armações de sobro e tabuado de pinho para as naus, com os mármores e tijolos para a construção, com louças, legumes e pão para os mercados.» In Torres, 1992, vol. I, pp. 392-393.
indústria de construção naval.
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Sobre a história dos portos fluviais no rio Sorraia muito haveria ainda a dizer. Outros portos existiram no rio, como é o caso do Porto Zambado (cujo nome subsiste numa travessa do núcleo urbano de Coruche) e do Porto da Palhota (confirmado por documento de 1816,43 localizado a montante do Monte da Barca, entre a Herdade dos Pavões e a da Amoreira. Ainda que com menor movimento do que o do Monte da Barca, o Porto da Palhota fazia a ligação do Ribatejo com o Alentejo, por meio de uma barca, usada para transporte de peões, gados e mercadorias. É muito provável que estes portos remontem à Idade Média, quer enquanto localizados no cruzamento de caminhos, como é o caso do Monte da Barca, quer enquanto localizados no extremo destes. A sua lenta e progressiva decadência deveu-se, seguramente, a factores que se 43) «Existiu, no Sorraia, no concelho de Coruche, um Porto da Palhota, cujo pedido de conservação provocou uma demanda com Salvaterra de Magos. A mercê foi concedida a Coruche, em virtude deste concelho alegar que era por aquele porto que se fazia, desde tempos antigos, o embarque dos seus produtos agrícolas e de outras terras do sul do Tejo. O documento é datado de 1816 e acha-se exarado na Chancelaria de D. João VI [...].» In Ribeiro, 2001, p. 57.
prendem com a evolução do meio no período pós-glaciar (ocorrido durante os últimos dez mil anos) e, de forma mais imediata, ao assoreamento do rio, paralelamente a situações decorrentes da construção da via férrea (inaugurada em 1904), da abertura de estradas e do desenvolvimento dos meios de transporte terrestres, entre outros.
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Suzanne (1986), «La Barque de Passage et les Ponts de
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Cultural, Assembleia Distrital de Santarém. ꜠ PINTO, J. Antunes (1987), Coruche e suas Gentes, Coruche. ꜠
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Municipal de Coruche, Coruche. ꜠ RIBEIRO, Margarida (2001), Estudos Sobre Glória do Ribatejo, Cadernos Culturais, n.º 3, Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural de Glória do Ribatejo. ꜠ TORRES, Cláudio, «O Garb-Al-Andaluz», História de Portugal (Direcção de José Mattoso), vol. I, Círculo de Leitores, Lisboa, pp. 392-393. 30
Pescadores colocando as nassas. Rio Sorraia, anos 50 (foto de Heraldo Bento)
O RIO, A PESCA
1 - A PESCA - OS PESCADORES E O RIO SORRAIA
PESCA NO RIO SORRAIA - Embora se possam encontrar nos séculos XII e XVI referências ao pescado na região, a actividade piscatória não alcançou, no concelho de Coruche, a mesma dimensão que conheceu noutros locais ao longo do Tejo (nos quais a pesca ainda é uma das bases de sustento da comunidade),1 não podendo sequer
1) Como na comunidade Avieira de Vila Franca de Xira, por exemplo. 2) In Ribeiro (Documento n.º 42), 1959, p. 307. 3) In «A Hora», 1938, p. 119.
falar-se, actualmente, na existência de uma comunidade piscatória. Podemos falar somente de famílias que, durante a primeira metade do século XX, se dedicaram à exploração do rio Sorraia como forma de subsistência, algumas naturais do concelho e outras, no caso dos Ramusgas, vindas de Vieira de Leiria. No século XVIII, tendo por base as respostas aos Interrogatórios do Marquês de Pombal, são claras as indicações sobre a abundância de peixes no rio: «Cria Barbos, Muges, Fattassas, Cumbos, Bogas, e Pardelhas e Eirozes e em tempo compettentte muntta abundancia de saveins e lampreyas»,2 e permite a existência de pescarias. Para o século XX existem testemunhos da exploração piscícola em
Luís Batalha Antropólogo Museu Municipal de Coruche luis.batalha@iol.pt
Coruche, que sugerem a existência desta actividade, no rio Sorraia, durante os anos 30, «que [abastecia] os seus moradores circunvizinhos de abundante pesca [...]».3
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4) Foram atraídos pela abundância de peixe, como o barbo, o sarmão, o carmão, a boga, o bordalo, o robaco, o pimpão, a fataça ou muge e a enguia, e principalmente peixes migratórios como o sável ou a lampreia. In Ribeiro, 1959, p. 200. 5) In Soares, 1991, p. 272.
AS MIGRAÇÕES - A riqueza e abundância de peixes, do Tejo e do Sorraia, que se faziam notar no século XVIII, e ainda no século XIX, terão contribuído para um aumento na exploração piscícola na região. Estas condições tornaram-se particularmente aliciantes para 4 pescadores oriundos do litoral centro e norte do país, que partiam em busca de melhores condições de vida. Viajavam em grupos, quando na região de origem se viviam épocas de maior escassez. Apesar de existirem poucos registos sobre o início das migrações sazonais, estas ter-se-ão dado, segundo Micaela Soares, a partir da segunda metade do século XIX, existindo depoimentos que confirmam este movimento sazonal, praticamente até aos anos 40, resultando na fixação destes 5 pescadores em comunidades ao longo das margens do Tejo. OS PESCADORES DE VIEIRA DE LEIRIA - Os pescadores, apelidados de Avieiros, designação que deriva do nome da Praia de Vieira de Leiria, eram simultaneamente pescadores de mar e de rio, pois alternavam entre o Verão de Vieira de Leiria e o Inverno das margens de rios como o Tejo e o Sorraia. A fixação dos pescadores às margens do rio ocorreu de forma progressiva e, ainda hoje, alguns pescadores mantêm contacto com as suas terras de origem. Mesmo depois de se terem fixado no Vale do Tejo e do Sorraia, em várias situações tiveram que recorrer a outras ocupações para garantir a subsistência. Deste modo, a pesca articulava-se com a actividade agrícola e, no caso específico de Coruche, podemos encontrar situações de divisão do trabalho entre os diferentes elementos da família. As famílias Avieiras sempre foram mais isoladas e, apesar de serem descritas como muito pacíficas, a sua integração foi difícil e em 33
variados locais a rivalidade com outras comunidades ou famílias era uma constante. Aqui em Coruche a escolha dos locais para colocação de redes era o único pólo de discórdia, mas nunca assumiu os contornos de competitividade de que temos conhecimento, nomeadamente nas margens do Tejo, em Vila Franca de Xira, com pescadores oriundos de Ílhavo ou da Murtosa;6 na península de
6) In Soares, 1986, p. 75 [5]. 7) Apelido dado à família dos Tomás que, de acordo com José Labaredas, se dedicavam também à tanoaria, no fabrico e reconstrução de barris para os pequenos vinicultores da região.
Setúbal, em Fonte da Telha; no litoral alentejano, em Sines e Porto Côvo; ou noutras localidades. Quando indagamos acerca da forma como se relacionavam, esboçam um sorriso e dizem que se davam todos bem, embora seja relativamente frequente ouvir-se falar de algumas rivalidades no rio. AS FAMÍLIAS DE PESCADORES NO SORRAIA - Durante praticamente todo o século XX a pesca no rio restringiu-se a um número muito pouco significativo de famílias, sendo que a pesca nunca foi representativa para a produção económica do concelho. Algumas famílias que podemos encontrar na vila de Coruche são os Tanoeiros7 e os Robertos, naturais de Coruche, e os Ramusgas, vindos da Praia da Vieira. A presença destes últimos é um marco significativo de um dos movimentos migratórios importantes para a identidade e património do Vale do Tejo. Para pescadores Avieiros, como os Ramusgas, muito do tempo era passado em viagens, que se foram tornando cada vez mais 34
Robertos e Tanoeiros pescando sáveis e lampreias. Coruche, anos 50
dispendiosas; a constituição de uma família tornava-se difícil e os recursos do rio eram, de facto, mais estáveis. Assim, não será de admirar que muitos destes pescadores tenham preferido a segurança do rio e a fertilidade dos campos à instabilidade da vida no mar.
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O senhor António Ramusga,8 indica-nos que os seus pais nasceram em Vieira de Leiria e que já o seu avô vinha para o Vale do Sorraia, tendo o seu pai chegado a Coruche nos anos 30. Trata-se de uma das três famílias que aqui se dedicaram a esta actividade. Era uma família numerosa. O seu avô começou por deslocar-se com outros familiares para esta região, no início do século XX, vindo mais tarde com o pai do Sr. Ramusga, que aqui viria a constituir família. Durante muitos anos ocorreram deslocações, sendo que, por vezes, se repartiam entre o Ribatejo e a Beira Litoral, ou seja, alguns dos irmãos ficavam por Coruche, onde estavam a residir, enquanto outros procuravam retirar o maior rendimento possível da pesca na Praia da Vieira. Geralmente, às mulheres estava reservado o trabalho da terra; todavia, quando a pesca escasseava, todos tinham que se dedicar ao trabalho agrícola. Embora em alguns casos se dedicassem exclusivamente à pesca, havia pescadores que trabalhavam também a terra, praticavam a caça e tinham mesmo outras actividades, como a tanoaria. Em
8) Foi pescador no rio até 1973. Actualmente ainda se dedica à pesca no rio, mas não para subsistência.
Coruche, raramente a mulher era considerada «um companheiro de trabalho», enquanto noutros locais tanto o homem como a mulher se empenhavam em conjunto, quer na pesca quer na lavra da terra. As mulheres tornaram-se conhecidas por venderem o peixe, dando visibilidade ao vestuário fortemente marcado pelas características da Beira Litoral. Noutros casos dedicavam-se a outras actividades, como o trabalho da terra, a costura, ou mesmo empregadas em trabalhos da vila. 36
Durante o Inverno, as sucessivas cheias tornavam difícil a prática da pesca no rio, sendo que alguns pescadores ganhavam a vida com o transporte de pessoas entre as duas margens e não propriamente com a pesca. No Verão, as situações de seca, anteriores à inauguração do canal de rega, tornavam o rio, muitas vezes, num local de difícil navegabilidade. Assim, apesar da abundância de pesca, a exploração desta actividade nunca foi muito aliciante face a outras com mais potencial e rentabilidade, como a agricultura. O VESTUÁRIO - A riqueza do rio Sorraia trouxe parte da cultura de Vieira de Leiria, sendo o vestuário um exemplo disso: «Saia um tanto curta, de riscado garrido ou de flanela escura, conforme as estações, menos rodada que antigamente e sem os dispendiosos favos de mel que, além do mais, já ninguém sabe executar; blusa de manga comprida em belo padrão de ramagens coloridas, ou mais ou menos engalanada de fitas, rendinhas ou outros enfeites; avental de apetecidas riscas largas ou bordado em tons muito vivos, se liso; 9) In Soares, 1986, p.85 [15].
lenço vistoso e colocado de modos vários, na cabeça ou sobre os ombros, mas preferentemente atado ao alto, com duas grandes 9
pontas.»
Por outro lado, também no traje masculino podemos encontrar muitos pontos de contacto entre o que está patente na exposição, cedido pelo Sr. António Ramusga, e o de Vieira de Leiria, embora com algumas modificações, como nos descreve Micaela Soares: «[...]camisa imprescindivelmente axadrezada, em tons castanhos 37
ou amarelados de preferência, e não já de pano cru; calça de fazenda ou de cotim, arregaçada, tal como a ceroula interior, ou largas bragas de zuarte antigamente, mas de ganga, hoje; boina de pala curta em vez do barrete de outrora, em geral preto, mas que também fora azul 10
ou vermelho, com ou sem borla (...); pés descalços, sempre.»
Este vestuário permanece em Coruche ligado à família que o trouxe, assim como o hábito do arregaçar da bainha esquerda só a meia perna, e o próprio padrão das camisas axadrezadas, que são características dos pescadores vindos de Praia da Vieira, e que ainda podem ser observados na zona de origem. Entre os pescadores naturais de Coruche, como os Robertos, a indumentária era um pouco diferente, muitas vezes com ceroulas ou calção de ganga, calça também em ganga, camisa em tons de cinzento, geralmente lisa, mas não necessariamente, e um boné ou boina para proteger do sol. Não existia um padrão, nem uma regra que regesse a forma como estes se deveriam vestir, uma vez que não se inseriam em nenhuma comunidade piscatória.
10) In Soares, 1986, p. 86 [16].
AS EMBARCAÇÕES - Os pescadores que vinham de fora de Coruche deslocavam-se de comboio, de carroça ou na camioneta da carreira. Chegavam nos finais do Outono e regressavam a Vieira na Primavera. Viviam em construções de lona e ou de madeira, construídas na margem do rio. Quer viessem da Praia da Vieira quer fossem naturais de Coruche, construíam as suas embarcações nas margens do Sorraia. 38
Em Coruche alguns pescadores construíam as próprias bateiras, também chamadas de chatas ou simplesmente barcos, outros compravam-nas. Tinham normalmente uma forma côncava, com uma proa mais alta; no entanto, estas bateiras eram barcos de rio e, como tal, na sua construção não necessitavam ter uma proa tão alta como as utilizadas no mar, pois, nesse caso, tornariam as embarcações mais difíceis de manobrar. Tinham um fundo chato e podiam ter várias dimensões; algumas podiam albergar três pessoas,
Mulher avieira. Quinta Grande. Coruche, década de 50 (foto de António Ramusga)
outras, maiores, tinham muitas vezes uma cobertura de lona (que 11) Apesar de ser frequente em comunidades ao longo das margens do rio Tejo, não há qualquer registo da utilização dos barcos como casa em Coruche.
servia de protecção contra as intempéries) e podiam transportar até oito ou mais pessoas. Noutros locais, nomeadamente de forte presença Avieira, estas bateiras permitiam a sua utilização como casa, albergando toda a família.11 Eram casas flutuantes, pois era nestas embarcações que, além de pescar, comiam e educavam os filhos. 39
Noutros casos, ainda, os pescadores tinham que encontrar ou fabricar as suas próprias habitações junto das margens, a escassos metros do rio. Eram fabricadas com madeiras e juncos e podiam ter muitos quartos. Em qualquer dos casos, a bateira era a mais-valia destes pescadores, pois normalmente quando casavam pouco mais tinham do que um barco e o rio para procurar sustento. REDES DE PESCA - Os pescadores, homens e mulheres, fabricavam as redes e os cestos essenciais à actividade piscatória e na maior parte das vezes dedicavam-se ao arranjo das redes que frequentemente ficavam danificadas. Conforme a espécie de peixe, assim era a forma e o tamanho das redes de pesca, bem como a sua forma de emprego. Os pescadores do rio utilizavam na pesca vários instrumentos, dos quais destacamos vários tipos de redes: • a nassa é constituída por vários arcos de diferentes tamanhos e tem uma forma cónica; é utilizada sobretudo na pesca da enguia, fixada ao fundo do rio, em zonas menos profundos, onde a corrente é mais forte, sempre orientada a sua boca para o lado onde o rio corre; • o tresmalho, ou estremalho, é uma rede comprida, com malha pequena, que possui numa das partes bóias em cortiça e, na outra, pequenos pedaços de chumbo, com cerca de 4cm, que criam uma espécie de uma barreira, pelo que se ligavam duas outras redes com 12 malha mais larga, paralelas a esta (uma de cada lado), e que fazem com que o peixe fique enleado. Estas redes servem para apanhar principalmente a boga, o barbo e a carpa. Por seu turno, para a fataça
12) Chamadas alvitanas.
Pescador avieiro a fazer uma nassa Coruche, 1960 (foto de António Ramusga)
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para a fataça a mesma rede é cerca de cinquenta centímetros mais alta e é chamada de branqueira: «[ficava] junto da rede submersa, uma espécie de plataforma com esteiras entrançadas de caniços e buinho e suspensa por varas, encostada a montante dessa plataforma, outra rede esticada.» 13
•
a tarrafa é uma rede com cinco metros de diâmetro,
lançada ao ar a partir das embarcações e caindo aberta sobre a água, apanhando todo o tipo de peixe, excepto a enguia;
•
14
existe ainda o buturão, um tipo de rede fixa, presa por duas
canas, utilizada para apanhar todo o tipo de peixes, incluindo enguia grande. Para muitos pescadores, com o intuito de proteger as redes contra possíveis furtos, existiu a necessidade de as marcar. Assim sendo, cada pescador inscrevia nas redes que fabricava uma assinatura, como afirmou o senhor Ramusga, «(...) uma marca, como que uma assinatura qu´eu reconheço a minha rede no meio dumas 15
quinhentas (...).» 13) In Labaredas, 1999, p. 91. 14)Também chamado viturão por José Labaredas. 15) Excerto de entrevista em Coruche, 10 de Março de 2003.
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A PESCA E O DESENVOLVIMENTO NO SORRAIA - O rio Sorraia conheceu durante a sua história várias transformações; de entre as mais recentes, a que teve maior importância foi a construção de um canal de irrigação, que veio permitir uma distribuição mais eficiente e abundante de água às terras da várzea do Sorraia e um incremento da produtividade de algumas culturas, como o arroz, o milho ou o tomate. Anteriormente à construção do canal de rega já existiam áreas com cultura de regadio. As águas para a fertilização das terras eram retiradas a partir das valas escavadas ao longo do rio, que eram alvo de uma manutenção regular. Muita da actividade piscatória girava, assim, não só em torno do leito do rio Sorraia mas também em torno da exploração piscícola de valas e pegos. Com a construção do canal de irrigação, esses pegos foram assoreados, deu-se a regularização do rio, a diminuição das alvercas e as valas deixaram de ser limpas, muitos arbustos tornaram-nos locais menos acessíveis. A água nestes locais tornou-se nociva para a fauna piscícola e, como tal, para a actividade piscatória. Logo após a construção da Obra de Rega, o abandono a que foram vetados os pegos e as valas deu origem ao consequente desaparecimento da pesca naqueles locais. Para além da construção do canal, outro factor relevante para a diminuição da pesca no rio é a poluição. Segundo nos indica Ana
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Firmino, o «[...] predomínio da monocultura e (ab)uso de herbicidas e outros químicos [...] lentamente vão induzindo fenómenos de resistência, responsáveis pela imunidade que algumas espécies criaram a certo tipo de fitofármacos.»16
Daqui resultam duas
consequências imediatas: a menor eficácia dos produtos e, como a autora indica, o aumento do uso destes mesmos pesticidas, dando origem à consequente contaminação dos solos e necessariamente do rio. Isso mesmo nos confirmou António Ramusga, a propósito da diminuição da variedade de peixes devido ao uso de químicos, principalmente na monda química do arroz. Estes produtos, ao provocarem situações de contaminação, propiciam a diminuição das espécies aquícolas. De qualquer maneira, a Obra de Rega, nas transformações que exerceu sobre o rio, foi responsável pela estabilização do caudal, tornando a corrente mais estável durante todo o ano e permitindo 16) In Firmino, 2003 (publicação no prelo). 17) Antes de inaugurada a Obra de Rega, em 1959, a actividade piscatória estava condicionada durante o Verão, visto que no mês de Agosto era praticamente possível atravessar o rio a pé, como nos indicam alguns testemunhos.
que fosse possível pescar durante o Verão,17 altura em que a actividade da pesca se tornou, assim, mais intensa, como nos confirmou o senhor Manuel Roberto. Deste modo, não será possível explicar, somente com a existência do Canal de Rega, o declínio da pesca no Sorraia, podendo este estar mais dependente de factores sociais inerentes à própria comunidade do que ao desenvolvimento da cultura de regadio.
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O FIM DA PESCA NO SORRAIA? - Com o passar do tempo, estas numerosas mas escassas famílias acabaram por encontrar o seu sustento noutras actividades, dedicando-se inteiramente ao trabalho no campo ou a trabalhos na vila, que entretanto começaram a proliferar; outros, ainda, partiram para a Europa Central, em busca de melhores condições de vida. Os Ramusgas, por exemplo, eram catorze irmãos; alguns ainda se dedicam à pesca mas, entre estes, uma parte casou, partindo para outras localidades, e outros emigraram, tal como o senhor António Ramusga, que só em 1993 voltou para Coruche. Seja qual for o motivo, a pesca deixou de ser, no Sorraia, uma actividade cativante para os mais novos, que procuraram fugir ao árduo trabalho no rio. As bateiras que noutros tempos sulcavam as águas do rio, em busca de sustento, desapareceram. É certo que o sável e a lampreia, abundantes no início do século XX, também já não existem, mas é frequente verem-se os pescadores desportivos, ora aos fins-de-semana de cana às costas, ora marcando presença em campeonatos nacionais, que passaram a fazer do Sorraia ponto de referência a nível nacional e internacional. Outros, são os pescadores ocasionais, que vagueiam sozinhos ou em grupo em pegos e aguadas, pelo entretenimento e não pela necessidade.
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O RIO- A AGRICULTURA
Canteiro de arroz. Coruche, 1896 Arquivo Fotogrรกfico da C.M.C.
1 - A AGRICULTURA... DO SORRAIA AO CANAL DE REGA
A ligação entre o rio e a agricultura é antiga e não se trata de um fenómeno isolado, acontecendo ao longo da história nos mais variados pontos do globo. Em Coruche a actividade agrícola remonta ao Neolítico/Calcolítico, sendo abundantes os testemunhos arqueológicos no Vale do Sorraia. Também para o primeiro milénio a.C. os sítios arqueológicos registados ao longo do Vale evidenciam da sua forte ocupação antes da chegada dos romanos. Quanto à presença romana, esta teve um carácter fortemente rural, sendo que a base da economia assentava sobretudo na exploração agrícola. Ao tempo do domínio romano, a utensilagem de ferro, como a da Quinta Grande, evoca os trabalhos agrícolas que se desenvolveram nas villae. Os Romanos não só introduziram novas culturas e desenvolveram outras como concorreram com novas técnicas, nomeadamente ao nível do regadio Na área do Vale do Sorraia existem vestígios de ocupação romana, e é Luís Batalha Antropólogo Museu Municipal de Coruche luis.batalha@iol.pt
precisamente ao longo do rio que a maior parte destes vestígios se localizam. Todavia, de acordo com Vasco Mantas, a ausência de caminhos e estradas entre esses vestígios pode sugerir que estes não teriam nem as dimensões nem a qualidade de outras Vias Romanas, que podemos encontrar noutros locais. Deste modo, «[...] o padrão dominante do povoamento romano, nitidamente concentrado ao 47
longo do vale do Sorraia, sugere de imediato a utilização do rio como eixo de comunicação privilegiado, animado por um tráfico significativo [...]».
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O rio Sorraia aparece assim, desde que há registo, como elemento vital para o desenvolvimento da economia rural e das populações. Quer pela sua navegabilidade quer pelo fenómeno das cheias - elemento de fertilização -, o rio tornou-se um recurso extremamente importante para o desenvolvimento da agricultura na região. Por um lado, fornecendo água para a irrigação das terras, contribuiu decisivamente para o desenvolvimento agrícola, por outro, era o meio através do qual as embarcações faziam o escoamento da produção. DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XX - Durante o século XVI, Coruche aparece como um local fortemente agrícola, com uma diversidade e riqueza consideráveis, com produções como o trigo, o centeio, a cevada, o milho painço, a aveia, a farinha, o vinho, o vinagre, a linhaça, os melões e a hortaliça, produções essas referenciadas a propósito do pagamento de portagens no Foral Manuelino de 1513.2 Em resposta aos Interrogatórios de Marquês de Pombal, foi enviada uma carta ao Senhor Arcebispo de Évora, datada de 1758, na qual podemos encontrar informação, fornecida pelo Padre Leite Pitta,3
1)In Mantas, 2003 (publicação no prelo). 2) In Ribeiro, 1959, p. 163 (Documento n.º 37), pp. 288 a 292. 3) Pároco de Coruche.
relativa às principais produções de Coruche: «Os fruttos que os .
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moradores destta villa recebem communta abundancia são, Trigo e Milho grosso, senteyo; sevada, e legumes em menos quanttidade e se perduzem nos seus campos excellenttes Mendoins e Melancias.»4 Podemos verificar ainda, para o século XVIII, que na vizinha Erra se «colhia trigo, cevada, centeio, milho, feijão-frade e cortiça».5 Era aos lugares interiores como a Erra que o cingeleiro da Glória ia permutar 6
as suas cargas com os cereais e a cortiça .
A fertilidade dos terrenos é um facto incontornável, assim como a tradição agrícola na área do concelho, sendo que podemos destacar a 4 ) I n R i b e i r o, 1 9 5 9 (Documento n.º 42), p. 305. 5) In Ribeiro, 1959, p. 78. 6) Como refere Margarida Ribeiro, «o cingeleiro da Glória [nas suas viagens] procurava também alguns lugares interiores, como a Erra, Lamarosa, Raposa e outros, aonde ia buscar, para embarque, a lenha e a cortiça ali produzidas. [...] Os carros deixavam a aldeia [da Glória] alta madrugada, chegavam ao Monte da Barca (Coruche) onde se cruzavam os caminhos da bacia alta do Sorraia com o de Lavre e Montemor, faziam carga e, ao pôr do Sol, estavam na Glória». In Ribeiro, 2001, pp. 58 e 61. 7 ) I n R i b e i r o, 1 9 5 9 (Documento n.º 42), p. 306. 8) In Neto, Vaquinhas, 1993, Nova História de Portugal, p. 329.
produção de cereais, uma constante nas referências daquele século, não só em relação a Coruche, à Erra mas também ao Couço, bem como a várias localidades importantes ao longo do Vale do Sorraia. Assim, além destas informações que confirmam a manutenção da exploração das principais culturas entre os séculos XVI e XVIII, surge ainda, no mesmo documento, uma alusão à produção de trigo e de milho, relacionando com a utilização e gestão da água para o benefício destas culturas.7 Durante o século XIX, a agricultura vai desenvolver-se, apesar de a introdução de tecnologias ter sido mais lenta do que noutros países da Europa. A estabilidade política alcançada em Portugal, em meados do século, vai favorecer «o desenvolvimento da agricultura, que se fará, simultaneamente, pelo aumento da superfície cultivada e pelo aperfeiçoamento das técnicas de cultivo e dos instrumentos de trabalho».8 49
Esta situação de estabilidade permitiu aumentar a área cultivável, através do arroteamento dos solos, «particularmente acentuado nos vales dos grandes rios (Douro, Mondego, Tejo, Sado) ou dos seus afluentes (Ponsul, Zêzere, Sorraia)»,9 e do desbravamento de terras, sendo que «a utilização de adubos químicos e a mecanização são duas das principais novidades técnicas do século XIX» .10 Como consequência, os níveis de produtividade aumentam e novas culturas, como a batata ou o arroz, começam a ser exploradas, como indica Ana Firmino, em relação à exploração da cultura do arroz, «[passou a] haver registo desta produção na Herdade do Monte da Barca já em 1846».11 Contudo, no Vale do Sorraia foi somente no século XX que a cultura do arroz ganhou importância. SÉCULO XX - PONTO DE VIRAGEM - No início do século XX a navegabilidade do Sorraia fez deste a principal via para a circulação de mercadorias. Testemunhos há que dão conta de fragatas 12
que subiam até ao Couço, local de onde partiam com «cereais, legumes, aves de capoeira, fruta, carvão, etc. No regresso traziam várias mercadorias, tais como têxteis, calçado, ferramentas, barricas com atum em salmoura»13 e outras mercadorias. Esta intensa actividade no rio é comprovada pelo número de portos existentes. Nos derradeiros tempos de navegabilidade, estiveram em
9) In Neto, Vaquinhas, 1993, Nova História de Portugal, p. 329. 10) In Neto, Vaquinhas, 1993, Nova História de Portugal, p. 330. 11) In Firmino, 2003 (publicação no prelo). (12) In “A Hora”, 1938, p. 119. 1 3 ) I n B e n t o, 2 0 0 3 (publicação no prelo). 14) Dos quais ainda subsistem registos na microtoponímia e na memória popular.
funcionamento dois portos.14 O porto de João Felício era o maior da vila e chegou a ter uma praça de peixe; por seu turno, o porto de 50
O Cacilhas, s/d (foto do Jornal O Sorraia)
Cacilhas era um verdadeiro entreposto comercial, que possuía uma taberna/ tasca, onde eram deixadas as mercadorias. O progressivo fenómeno de assoreamento do rio acentua-se até aos anos 20/ 30, provocando sérias restrições à navegação. Deixa de ser possível a circulação de fragatas e embarcações de maiores dimensões, estando esta limitada às mais pequenas. Como via de comunicação, o Sorraia deixou de poder competir. Todavia, com a inauguração, em 1904, do ramal entre Setil e Vendas Novas, a linha férrea vem colmatar o isolamento a que a vila ficou sujeita. Surge um meio de carga mais rápido, mais económico e com maior capacidade de transporte. Esta nova via de comunicação, aliada ao desenvolvimento dos transportes terrestres, bem como o crescimento do mercado interno, permitiu um maior escoamento da produção e, deste modo, o crescimento da agricultura.
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O CANAL DE REGA - Na primeira metade do século XX, na região de Coruche manteve-se a cultura de sequeiro como o trigo e o milho ou a vinha, com produções muito baixas, mas começava já a haver uma tradição de rega. Ainda antes da construção da Obra de Rega (1955-1959), cerca de 3000 hectares de arrozal já usufruíam da rega (através da água retirada de valas, pegos ou mesmo de furos) nos anos mais favoráveis.15 Nos anos 50, no âmbito de um programa hidroagrícola nacional, o governo da nação empreendeu a construção
15) In Gusmão, 1968, p. 9.
da Obra de Rega do Vale do Sorraia, concluída em 1959, e que visava o desenvolvimento da agricultura, até então subaproveitada.
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A Obra de Rega do Vale do Sorraia inclui o aproveitamento da água armazenada nas barragens de Maranhão (1957) e de Montargil (1958) e a respectiva distribuição através de duas estações elevatórias e de canais de rega. Esta obra implicou uma mudança radical no tipo de culturas existentes, ou seja, as culturas de sequeiro passaram para segundo plano, sendo agora exploradas as culturas de regadio. No entanto, as expectativas não se colocavam somente ao nível do aumento da produção agrícola passaram, também, pela «valorização e equilíbrio das estruturas económicas e a melhoria das condições de 16
vida das populações», numa região com um espaço privilegiado para a produção de determinados produtos e, até esta altura, subaproveitada. Desde o início de actividade da Obra de Rega que as mudanças ao nível das culturas produzidas se podem observar. O trigo (cultura exclusivamente de sequeiro) era ainda relativamente importante nos anos 50; «produzindo a melhor e a maior quantidade de cortiça do país, cerca de 1 milhão e 600 mil arrobas em 1957; e tendo produzido ainda 16) In Avilez e Ferreira, 1970, p. 11. 17) In RIBEIRO, 1959, p. 163.
no mesmo ano 17 milhões de quilogramas de arroz; 5 milhões de quilogramas de trigo».17 Desde então, tornou-se praticamente inexistente. O milho de sequeiro deu lugar ao milho híbrido e tornou-se numa das produções mais importantes, em conjunto com o arroz. A área regada aumentou de 2342 ha em 1959, para 11 099 ha em 1969. Podemos observar que a área de regadio não só aumentou exponencialmente, como rapidamente atingiu um nível estável de 53
distribuição de água, não se verificando, como tal, grandes oscilações na área total coberta pela rega, entre 1969 e 2001. Tal facto permite-nos ter uma ideia em concreto das oscilações ao nível da evolução da produção das várias culturas. AS MUDANÇAS NA PRODUÇÃO - Em 1959, quando começou a funcionar o Canal de Rega, o arroz era a única produção relevante da região, com 1409 ha, para um total de 2342 ha de área regada. Em 1969 podemos verificar um aumento na área de rega do arroz superior a 300%, enquanto o tomate, uma cultura sem qualquer registo em 1959, surge destacado como a segunda maior exploração, com 2199 ha. Em relação às restantes culturas, na generalidade registaram-se também pequenos aumentos, excepto no feijão (praticamente sem alteração), na batata e no pimentão. No ano de 1979 podemos verificar a existência de uma nova exploração de regadio. O milho, outrora de sequeiro, começa então a afirmar-se como uma das principais produções da região e nesse ano representa já a terceira maior exploração ao nível de área regada, com 1122 ha. Em 1989 será de destacar uma diminuição na área regada de arroz (face ao valor de 1979), diminuição esta que virá a acentuar-se nos 20 anos seguintes até 2001. Ao nível das restantes produções, existiu também, de um modo geral, uma regressão, excepção feita ao milho, cuja área irrigada aumentou mais de 100%. . 54
CULTURAS REGADAS E SUAS ÁREAS EM HECTARES (18)
18) Os dados relativos às produções referem-se a culturas regadas dentro e fora do perímetro do a p r ove i t a m e n t o c o m Pagamento de Taxa de E x p l o r a ç ã o e Conservação. Este valores foram recolhidos a partir dos Relatórios da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Sorraia: Campanhas 1959/ 1991; 1970/ 1997; e 1990/ 2001; esta última consta do Re l a t ó r i e C o n t a s Exercício de 2001, Coruche.
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Se olharmos para a tabela podemos verificar que existe um predomínio de três grandes explorações que representam alterações substanciais para a agricultura do Vale do Sorraia: A cultura do tomate, uma produção que tem vindo a decrescer nos últimos anos (1389ha em 1999, face a 804ha em 2001) e cuja exploração teve de sofrer uma contenção para poder corresponder à quota de produção atribuída pela União Europeia; A cultura do arroz é, desde 1959, a produção mais favorecida pela Obra de Rega (3552ha), sendo o regadio o tipo de exploração propício ao desenvolvimento desta cultura; A cultura do milho, cujo crescimento tem sido muito expressivo. Em 1979 eram 1122 ha e em 2001 esse valor é de 6404ha. Estas são, sem dúvida, as explorações mais significativas abrangidas pela Obra de Rega na actualidade. É de ter ainda em consideração que a introdução da cultura da beterraba, nos anos 90, vem trazer a perspectiva de uma nova grande produção. Trata-se, de facto, de uma produção sem raízes históricas, que surge com um forte incremento por parte da União Europeia. O ARROZ - Uma das características fundamentais para o desenvolvimento da cultura orizícola prende-se com a riqueza do solo, predominantemente de tipo aluvião, ou seja, os sedimentos transpor-
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tados pelo rio vão-se acumulando nas margens, tornando os terrenos mais produtivos, sendo que toda a zona contígua às margens do rio beneficia de um solo mais rico, que se torna mais fértil quanto mais distante estiver da sua origem. Assim, justifica-se o facto de existir uma maior fertilidade a jusante da vila de Coruche. Com a Obra de Rega do Vale do Sorraia, áreas que até então estavam privadas deste cultivo passaram a ser irrigadas e, mesmo nas zonas onde a exploração já se fazia, tornou-se mais simples e económica, «visto não ser necessário proceder à abertura de largas e extensas valas no leito do rio para conseguir levar a bom termo o abastecimento dos seus arrozais».19 19) Valores recolhidos a partir do Relatório da exploração da Obra do Vale do Sorraia, 1958, p. 17. 20) Valores recolhidos a partir do Relatório da exploração da Obra do Vale do Sorraia, 1958, pp. 25 e 26. 21) In Rolo, 1996, p. 112.
A propósito da importância da cultura do arroz no Vale do Sorraia, podemos verificar que, já em 1958, do volume total de 10 868 760,5m3 de água fornecida, 8 692 076,4m3 se destinaram à cultura do arroz. É possível destacar também, desde logo, o aparecimento do milho como cultura economicamente viável 20. Em 1980 o Alentejo, o Ribatejo e o Oeste partilhavam cerca de 80% do V.A.B. (Valor Acrescentado Bruto) para a produção de arroz. No entanto, em 1990 só o Alentejo vê essa participação aumentar e tanto o Vale do Tejo e afluentes como o Baixo Mondego vêem essa percentagem diminuir consideravelmente.21 Demonstrando, assim, uma predisposição cada vez maior para o cultivo de produções mais rentáveis como o milho, em detrimento do cultivo do arroz. Curioso é verificar, também, que em anos de maior escassez de água 57
ou de seca na região do Vale do Sorraia, a área de rega resultante da totalidade das restantes culturas é superior à de anos em que existe maior abundância de água, mesmo havendo um decréscimo substancial na área regada da cultura de arroz. Para os anos de maior escassez de água para rega, como em 1976, 1981, 1983, 1992, 1993 (ano de seca), a distribuição de água através da Obra de Rega torna-se muito inferior à dos restantes anos. Tendo em consideração que a pouca água acumulada nas barragens não era suficiente para irrigar a totalidade das áreas de rega pretendidas, e que a sua divisão pelo número de regantes tornaria esse valor ainda mais reduzido (isto porque existe sempre perda de água ao longo do canal, quer por evaporação quer por infiltração), a opção foi distribuir a água pelos pegos e valas, bem como estabilizar a corrente no rio Sorraia. Daqui resultou que a água libertada pelas barragens possibilitou um aproveitamento para as regas de outras culturas que normalmente são menos exploradas. Assim, a exploração de arroz, que é a que maior quantidade de água exige, ficou nos anos de maior seca com valores de área regada bem
22) In Relatório e Contas Exercício de 2001, Coruche, Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Sorraia.
abaixo dos normais: em 1991 esse valor de área regada foi de 6419 hectares, tendo em 1992 descido para 3004 hectares, sendo que em 1993 registou um valor ainda mais baixo, 1230 hectares (que contrastou com o valor máximo alcançado pelas restantes produções de 8640 hectares); voltando a aumentar novamente em 1994, ano em que se registaram 3403 hectares.22 58
REPERCUSSÕES DA OBRA DE REGA - A Obra de Rega teve repercussões que vão muito além do aumento e reorganização da produção: levou à construção de infra-estruturas, como estradas de acesso às barragens, pontes em estradas nacionais e municipais, construção de passagens submersíveis, edifícios e outras construções; promoveu o nivelamento de terras, construção de silos, instalações agrícolas e estábulos; aumentou a produtividade, com o desenvolvimento e o surgimento de novas culturas, tais como a soja, o rícino e o pimentão, além das que já foram referidas, e que fomentam também o surgimento de indústria transformadora, assim como da pecuária e o desenvolvimento do comércio; por fim, trouxe consigo a melhoria na qualidade da rega, que desta feita passa a ser efectuada da encosta para o rio, com a diminuição das alvercas, e originando novas fontes de energia. A partir do Relatório de exploração da Obra, datado de 1958, podemos aferir da boa receptividade do Canal de Rega, tendo em conta as consequências sociais decorrentes da sua construção: aumento do número de postos de trabalho; melhoria do poder de compra; a elevação de salários; o desenvolvimento da indústria e do comércio; o aumento da quantidade e da qualidade das habitações; bem como o alargamento na rede eléctrica (que em alguns casos era mesmo inexistente).
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INDÚSTRIAS - Este aproveitamento do rio para o desenvolvimento de culturas de regadio não dependeu, no entanto, só do bom funcionamento da Obra de Rega. Muito do sucesso das explorações agrícolas resultou da articulação da produção com a indústria transformadora e com os meios de transporte. Em 1958 tornava-se fundamental a existência de uma eficaz rede de transporte e distribuição dos produtos, de modo a que estes tivessem colocação no mercado, isto é, «uma parte considerável dos produtos de regadio saem frescos das explorações e, para que cheguem em condições de serem consumidos ou transformados, não podem andar a sofrer cargas e descargas, ou transportes por estradas em péssimas condições».23
23) In Relatório da exploração da Obra do Vale do Sorraia, 1958, p. 6.
O tipo de exploração agrícola que existia antes da construção do canal mudou radicalmente e, tal como já foi referido, as culturas de sequeiro (como o trigo, por exemplo) deram lugar às culturas de regadio. Assim, também ao nível dos processos de transformação se deram alterações de relevo, tendo a tradicional indústria artesanal dado lugar a uma indústria transformadora mecanizada. A fábrica de descasque do arroz, a indústria do tomate, a Moagem do Vale do Sorraia, a Liga de Panificação, a Cooperativa Transformadora dos Produtos Agrícolas do Sorraia e a fábrica da Tabaqueira são exemplos de indústrias que vieram consubstanciar o projecto da Obra de Rega. Mais recentemente, a fábrica de beterraba começou a laborar na área do concelho de Coruche, fazendo face às exigências da 60
União Europeia. Trata-se de uma indústria transformadora cuja matéria-prima é quase na sua totalidade do exterior, visto que a produção do concelho, no ano de 2001, não excedia os 356 ha de área regada. Embora algumas destas indústrias tenham já desaparecido, este tecido industrial constitui uma das faces mais visíveis do corpo produtivo do Vale do Sorraia.
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Cheias em Coruche - 1907-1908 (foto de Heraldo Bento)
O RIO, AS CHEIAS
As cheias acompanham toda a história de Coruche. Durante largos séculos puseram em causa a passagem do vale, dada a recorrente destruição das pontes - sistematicamente alvo de (re)construção e manutenção -, bem como impediam a passagem a vau, comum para o século XVIII no período de estiagem, porquanto o caudal era fraco. Em 1758 o Sor corre todo o ano junto à aglomeração de Coruche e, ainda que seja o curso de água mais abundante, pode atravessar-se a pé.1 As cheias deixavam atrás de si não só a Inundações. Coruche, 1963
destruição dos elementos de
(foto de Heraldo Bento)
1) «[...] comjuncta a villa ficou a menor correntte do campo com o nome de Sor raya, e a mayor abundancia com o Nome de Soro. [...] Nasce com munto pouca quanttidade de Agua e nestta villa corre todo o Anno mas dá pasage a pé.» In Ribeiro (Documento n.º 42), 1959, p. 307. 2) «Athe ao Furadouro que fica hua leg oa desta freguesia pera a vila de Mora no inverno he navegavel e capas de navegarem os barcos de Riba Tejo porem do Furadouro pera sima não pode ser navegavel por cauza de Pinhascos.» In Ribeiro (Documento n.º 44), 1959, p. 316.
passagem como também áreas pantanosas e braços mortos do rio que importava transpor. Todavia, em termos de navegabilidade as águas altas de Inverno permitiam, no segundo quartel do século XVIII, a subida até ao Furadouro de pequenas barcas e, até Coruche, de barcos do Ribatejo,2 do tipo dos de Benavente. Por outro lado, é inquestionável a sua forte acção benéfica
Cristina Calais Mestre em Arqueologia Responsável Técnica do Museu Municipal de Coruche cristinacalais@clix.pt
ao nível da fertilidade dos solos, em proveito da prática agrícola. Anteriormente à construção das barragens de Maranhão e Montargil, respectivamente em 1957 e 1958, os braços principais do rio não 64
eram acompanhados de nenhuma vegetação arbustiva, precisamente devido à duração e intensidade das estiagens, como se vê nas fotografias antigas. O desenvolvimento de florestas-galerias consequência do escoamento estival constante assegurado pelas referidas barragens, associado entre meados de Março e Outubro às ressurgências da rega que são conduzidas para o rio - permitiu proteger as margens, contribuindo talvez para tornar menos instável o traçado dos braços do rio, o qual foi também, até 1957/58, de uma grande irregularidade interanual. As barragens são duas obras de grande importância do ponto de vista agrícola, dada a sua efectiva contribuição para o aumento da riqueza regional, participando também de vantagens adicionais, porquanto permitem a regulação das descargas e, consequentemente, o controlo do caudal em altura de cheias, mas também porque no período de estiagem permitem a manutenção do leito do rio. Todavia, não vieram anular a questão das cheias em Coruche, ainda que possam contribuir para a sua menor frequência. As cheias estão, antes de tudo, dependentes da frequência e intensidade da precipitação a montante de Coruche. É evidente que se, no início de um Inverno fortemente chuvoso, as barragens podem reter nas suas albufeiras uma grande quantidade de metros cúbicos de água, também é certo que, quando estão cheias, o seu escoamento é uma consequência necessária. Assim sucedeu com a cheia do dia 11 de Fevereiro de 1979, ainda muito 65
presente na memória das pessoas, que provocou a inundação de toda a planície e invadiu a parte baixa da vila de Coruche, atingindo a cota de 18,35m. Resultado das fortes e longas precipitações ocorridas nesse mesmo inverno de 1978/79, o Furadouro registou à data a sua maior 3
descarga instantânea, tendo sido debitados 1178m
por segundo,
valor que, no entanto, fica muito aquém do caudal máximo previsível, ou seja, 2900m3 por segundo.3 Todavia, será esta questão das grandes cheias resultado apenas das modificações recentes da bacia, ou seja, resultado da evacuação brutal das águas retidas pelas barragens, ou existirão outras questões de índole evolutiva, nomeadamente as que
3) In Daveau, 1986, p. 129.
se prendem com o assoreamento do vale? Conforme refere Suzanne Daveau, apenas o conhecimento exacto da evolução do meio (relevo, vegetação e águas) durante os últimos dez mil anos (período holocénico ou pós-glaciário) permitirá uma apreciação correcta das modificações históricas, situando correctamente a amplitude e o significado da dinâmica actual e, por conseguinte, sustentar qualquer obra/arranjo que venha a ser feito.
BIBLIOGRAFIA DAV E AU, S u z a n n e ( 1 9 8 4 ) , Géographie Historique du Site de Coruche, Étape sur les Itinéraires entre Évora et le Ribatejo, «Revista da Faculdade de Letras», 5.ª Série. DAVEAU, Suzanne (1986), La Barque de Passage et les Ponts de Coruche, «Estudos em Homenagem a Mariano Feio», Lisboa. RIBEIRO, Margarida (1959), Estudo Histórico de Coruche, Câmara Municipal de Coruche, Coruche. RIBEIRO, Margarida (2001), Estudos Sobre Glória do Ribatejo, Cadernos Culturais, n.º 3, Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural de Glória do Ribatejo.
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O RIO, O FUTURO
EMISSÁRIO E ETAR DA VILA DE CORUCHE - APONTAMENTOS
APRESENTAÇÃO DO PROJECTO - O projecto de investimento, que genericamente se designou por «Emissário e ETAR da Vila de Coruche», tem por objectivo central criar as infraestruturas necessárias para proporcionar um tratamento adequado às águas residuais domésticas da Vila de Coruche. Deverá dar um contributo decisivo à despoluição da bacia do Sorraia que, a jusante de Coruche, ainda envolve os concelhos de Salvaterra de Magos e Benavente. Em simultâneo, as condições específicas da Vila de Coruche, facilmente inundável, muitas vezes só com o refluxo dos esgotos, exigem que a construção deste sistema de tratamento de efluentes seja acompanhada de uma infra-estrutura de protecção contra as inundações mais frequentes e da consequente integração paisagística do espaço. O dique de protecção contra as inundações do rio Sorraia tem uma extensão aproximada de 2250m, sendo uma parte em aterro e outra, que se localizará em frente à área urbana, em betão. O emissário gravítico desenvolve-se ao longo da marginal de
José Domingos Marques Economista Chefe de Divisão Administrativa e Financeira da Câmara Municipal de Coruche
Coruche, numa extensão total aproximada de 1160m, com diâmetros entre os DN1000 e DN1400, para transporte de um caudal máximo 3
de 2m /s. 68
O interceptor de cintura, de colecta e transporte de águas pluviais, com origem acima da cota 20m, a construir ou remodelar nalguns troços, será constituído por valetas e colectores, ao longo de aproximadamente 3000m. Normalmente este interceptor de cintura conduz os efluentes ao emissário gravítico, para que sejam tratados na ETAR, mas, em períodos críticos de cheia, o sistema de válvulas está preparado para a emissão directa no rio, evitando a afluência ao emissário para não saturar o sistema elevatório. O sistema elevatório integra: - Uma estação elevatória de águas residuais para a ETAR, com uma altura de elevação de 38m e um caudal máximo de 80,5 l/s; - Uma estação elevatória de águas residuais pluviais para o rio 3
Sorraia, com uma altura de 10m e um caudal máximo de 2m /s. A bombagem para o rio só se processará em situações de emergência, quando o tanque de retenção atinja um determinado nível e o caudal de afluência ao tanque continue superior à capacidade de elevação para a ETAR. - Bacia de retenção em betão armado com capacidade para 5000m3. A flexibilidade que este tanque induz no sistema permite, entre outras coisas, ter uma estação elevatória de águas residuais para a ETAR com menor capacidade de caudal, com benefícios inegáveis em termos de despesas de investimento, de consumos energéticos e de custos de manutenção.
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A ETAR baseia o esquema de tratamento no sistema de lamas activadas, com vala de oxidação, antecedido por um tratamento preliminar de gradagem e desarenação, seguido por filtração em areia e desinfecção por ultra-violetas, para um caudal médio diário de 1159m 3 /dia, um caudal de ponta máximo de 80,5l/s, correspondentes a 7250 habitantes equivalentes servidos por um sistema de drenagem unitário. O arranjo paisagístico incidirá sobre a envolvente dos diques e infra-estruturas complementares na frente ribeirinha de Coruche, promovendo a articulação desta área com o restante tecido da vila. DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO ACTUAL - Actualmente o esgoto doméstico deste aglomerado populacional, com mais de 5000 habitantes, é emitido directamente no rio Sorraia sem qualquer tratamento prévio, contribuindo para agravar os níveis da poluição daquele curso de água sensível, que percorre uma vasta área habitada, relativamente industrializada e sujeita a uma actividade agrícola intensa. Esta situação torna-se mais preocupante durante o Verão, quando os caudais são inferiores. Considerando que, fruto do investimento das autarquias da região, as redes de saneamento vêm aumentando, em número e dimensão, muitas vezes sem serem acompanhadas de sistemas de tratamento adequados, a quantidade de esgoto lançado ao rio tende a aumentar. Nos períodos em que são mais intensos os tratamentos agrícolas com produtos fitofármacos, a conjugação de todos os factores provoca 70
picos de poluição mais acentuados, com consequências nefastas, bem visíveis ao nível da fauna piscícola. Na ausência deste projecto, a situação descrita tende a perpetuar-se, em prejuízo da qualidade de vida e do ambiente da região. Paralelamente, fica comprometida a estratégia da valorização turística, empreendida pela Câmara Municipal de Coruche, centrada no aproveitamento do rio Sorraia, cada vez mais importante para a economia local. Note-se que o segmento do rio junto à vila de Coruche é considerado um dos melhores pesqueiros do Mundo, atraindo semanalmente inúmeros amantes da pesca desportiva, tendo já sido palco de três campeonatos do mundo de pesca desportiva em água doce. Por outro lado, a vila continuará a ser fustigada pelas inundações, mais acentuadas em anos de maior invernia. OBJECTIVOS / RESULTADOS ESPERADOS É muito difícil quantificar os resultados a obter, até porque os aspectos ligados à preservação ambiental e à qualidade de vida em geral dificilmente são mensuráveis. Deverão ser resolvidos os problemas resultantes das deficiências da actual rede, em períodos de cheia, quando o rio atinge cotas superiores às de implantação dos colectores e que se caracterizam por:
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- Inundação das ruas; - Colectores em carga com tampas das caixas a saltarem; - Esgoto a sair pelas sanitas; - Refluxo de caudais; - Grandes volumes de areia depositados nos colectores; Deverá também assegurar-se uma melhoria significativa na qualidade da água da linha receptora, com benefícios evidentes para todos os municípios do Vale do Sorraia. Estarão então criadas as condições para se proceder à reorganização da zona ribeirinha e implementar um conjunto de acções que animem e valorizem todo aquele espaço. O rio ficará dotado das condições ideais enquanto espaço de recreio e lazer, com características ímpares a nível mundial para a prática de modalidades como a pesca desportiva, a canoagem e outras actividades, melhorando a atractividade turística do concelho e dinamizando o tecido de comércio e serviços. Em síntese, com a implementação do projecto são, assim, esperados os seguintes resultados: melhoria da qualidade ambiental em toda a região do Sorraia - principal resultado; redução dos efeitos nefastos das cheias; arranjo paisagístico da margem, através da qualidade paisagística do dique de protecção; disponibilização de condições adequadas para a requalificação e o arranjo urbanístico de toda a zona ribeirinha; dinamização da actividade turística; disponibilização de espaços de desporto e lazer. 72