LCRP - O MEDO - 2017

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lisboa capital república popular

o medo

abril 2017

distribuição gratuita

O MEDO A tempestade perfeita

“Em Portugal descobri que vou ficar bem, aconteça o que acontecer”

A colher que vai à boca

Pegas contra a queimadura do medo

“Há um acordo tácito entre o terrorismo islamista e a extrema-direita europeia”

“Ele morreu num bombardeamento e isso mostrou-me que a revolução era verdadeira”

O medo por Valério Romão, Cláudia R. Sampaio, Vasco Araújo, Tiago R. Santos, António Jorge Gonçalves e JP Simões

“Mas não é só o caos que nasce, e não é só o medo que vem, é tanta coisa boa que chega”

Por Daniel Oliveira P4/5

Testemunho de uma estudante síria P7

Por Cláudia Marques Santos P10/11

Por Rui Cardoso Martins P16


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Índice

03

Sofia Lorena editorial

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Direcção de Projecto

Gonçalo Riscado e Alexandre Cortez

Direcção e Coordenação Editorial Marta Gamito

por daniel oliveira 04 comentário tempestade perfeita na europa por mamadou ba 06 crónica (fechados nas ruas) de medo como quatro letras e uma palavra condicionam vidas

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testemunho “em portugal descobri que vou ficar bem, aconteça o que acontecer”

Editor

Sofia Lorena

Ilustração

Miguel Feraso Cabral

Design & PaginaÇão Desisto — desisto.pt

Coladoradores

Daniel Oliveira, Mamadou Ba, Ana Luísa Rodrigues, Cláudia Marques Santos, Alda Rocha, Cristiana Pereira, Rui Cardoso Martins, Sofia Lorena, Valério Romão, Cláudia R. Sampaio, Tiago R. Santos, JP Simões, António Jorge Gonçalves, Vasco Araújo, Dulce Maria Cardoso, Marta Lapa, Nuno Rodrigues, Pauliana Valente Pimentel, Raquel Nobre Guerra, Rui Portulez, Vasco Mendonça.

Equipa CTL

por ana luÍsa rodrigues 08 reportagem um paÍS nas entrelinhas

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vox populi por cláudia marques santos a colher que vai à boca

Gonçalo Riscado, Alexandre Cortez, João Torres, João Riscado, Pedro Azevedo, Débora Marques, Marta Gamito, Benedita Blattman, Sara Pita, Ana Viotti, Hugo Baptista e Natacha Rodrigues.

Impressão

Grafedisport – Impressão e Artes Gráficas S.A.

Tiragem

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entrevista: a cristiana pereira por alda rocha o medo do medo

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testemunho “penso que no minuto a seguir posso não estar vivo”

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crónica por rui cardoso martins pegas contra a queimadura do medo

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Sofia Lorena “o meu sonho é ser piloto para conhecer o mundo”

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Comentário por antónio marujo religião. a liberdade contra o medo

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Eduardo Galeano Excerto de entrevista

10 000 Exemplares

Tipografia

JeanLuc by Atelier Carvalho Bernau carvalho-bernau.com

Juntando o pregão de quatro jornais já desaparecidos, o projecto Lisboa Capital República Popular (LCRP) recupera o pregão agitador entoado pelos ardinas antes do 25 de Abril, para invocar e valorizar o papel da imprensa enquanto espaço de exercício da democracia. Criado em 2009, este projecto surge com o objectivo de lembrar Abril através da reflexão sobre a actualidade de ideais, valores e conceitos que, sendo de Abril, são de todos e são de sempre.

www.ctlisbon.com office@ctlisbon.com facebook.com/LISBOA.CAPITAL. REPUBLICA.POPULAR/ T. 21 343 0107

Projecto de:


editorial

sofia lorena

“Lisboa, Capital, República, Popular”. Diário de Lisboa, A Capital, República e Diário Popular: quatro jornais de um tempo em que os jornais faziam parte da vida da cidade, de um tempo em que havia vespertinos e ardinas. Foi um ardina que ensaiou o pregão e conta-se que a PIDE não achou piada. As quatro palavras, gritadas assim, juntinhas, pareciam mais que o nome de quatro jornais. Também eram e o pregão ficou. Mas estes não eram quaisquer quatro jornais. Era neles que se lia “um país nas entrelinhas”, um país escrito com coragem e imaginação, como nos conta Ana Luísa Rodrigues (P8/9). Este jornal é uma homenagem a esses jornais e aos jornalistas que o fizeram. Numa edição dedicada ao medo, não podíamos deixar de homenagear os que enganaram o medo para continuar a fazer jornalismo. O medo faz parte da nossa matriz cultural e é intrínseco à religião, não necessariamente por razões negativas. “O medo nasceu, assim, quase ao mesmo tempo que a liberdade e a criação”, explica António Marujo (P18/19). “Até porque o medo enfrenta a própria morte.” O medo é um mecanismo de sobrevivência. Mas bloqueia. “Aristóteles tem razão” e tudo depende da medida, sublinha o escritor Valério Romão, um dos seis artistas desafiados por Cláudia Marques Santos a escrever sobre os seus medos (P10/11). O medo que cada um de nós sente pode impedir-nos de andar de avião, de mudar de emprego ou de cidade, de escrever este texto em vez daquele. Pode até tomar conta de nós, se nos apanhar inseguros e num momento de ansiedade extrema – clinicamente, falamos de “medo de ter medo”, diz a psicóloga Cristiana Pereira, entrevistada por Alda Rocha (P12/13). O medo colectivo pode calar todo um povo. Instalar-se até condicionar a vida de muitos, impedir que se questione o absurdo, fazer com que se aceite o impensável. A estudante síria que nos fala dos seus medos e sonhos (P7) demorou a acreditar na revolução do seu país. Os sírios, pensava, “eram demasiado cobardes”. Foi preciso perder um amigo para acreditar que a revolução era verdade. O 25 de Abril é especial. Não foi preciso vermos morrer ninguém. Não houve praças e avenidas repletas de manifestantes antes da queda da ditadura. Os militares vieram e as multidões foram atrás. Para muitos, o medo ficou para trás nesse dia. Outros começaram a perceber o que era o medo nessas horas. Há ainda os que nunca deixaram de ter medo. É sobre eles que escreve o activista Mamadou Ba, sobre pessoas para quem a frase “Os jovens estão fechados na rua!” pode fazer sentido (P6). O que é que hoje nos bloqueia, medo de quê? A cada um de nós, a todos nós? Nas redacções, diz-se, há medo e é por isso que há menos liberdade. E fora delas? Em todos os lugares, há medo de perder o emprego, de não ter como pagar as contas? Medo de viver amanhã pior do que hoje? Esse medo bloqueia como a mão forte de um ditador? Temos medo uns dos outros? E de um refugiado que não conhecemos nem queremos conhecer? Do imigrante que escolheu e conseguiu acreditar, que conseguiu deixar a esperança falar mais alto? Temos e há quem nos queira exactamente assim. “A globalização criou uma ansiedade colectiva e uma sensação de desprotecção que deixou as populações muito mais vulneráveis à estratégia do medo”, escreve Daniel Oliveira (P4/5). JP Simões teve “medo de escrever sobre o medo”, “receio de errar, de ser impreciso”, “de falhar o alvo”. “Podia ter ficado quietinho”, não ficou. Eu, que estive em guerras e até já entrei na Síria literalmente a correr, também tive medo desta empreitada, “de falhar o alvo”, de não estar à altura. Como o músico, não fiquei quietinha. E foi assim que pude ler “Pegas contra a queimadura do medo” (P16), a crónica de Rui Cardoso Martins que acaba em jeito de agradecimento ao poeta Al Berto. “Mas não é só o caos que nasce, e não é só o medo que vem, é tanta coisa boa que chega. Temos é de usar as pegas para não queimar as mãos.”. Termino com uma frase inscrita nas paredes de Lisboa, uma sugestão que tento seguir e que várias vezes me salvou: “Em caso de dor, dance”. Para saber ao som de quê basta procurar a playlist espalhada por estas páginas.

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comentário

Daniel Oliveira (jornalista)

Playlist ► THE CLASH “GUNS OF BRIXTON” Cláudia Marques Santos (jornalista)

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Tempestade perfeita na Europa

Ilustração: Miguel Feraso Cabral

A globalização criou uma ansiedade colectiva e uma sensação de desprotecção que torna as populações muitíssimo mais vulneráveis à estratégia do medo


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A cena passou-se numa praia do Sul de França e os telemóveis registaram. Um grupo de polícias cercou uma mulher muçulmana para a obrigar a despir-se. Os veraneantes aplaudiram e alguns gritam: “Vai para casa!”. A perseguição, tão inútil que as vendas dos burquínis dispararam naqueles meses, foi apresentada como uma medida em defesa da dignidade da mulher. A ministra da Igualdade francesa disse que tapar o corpo é uma forma de controlo sobre a mulher. E por isso, o Estado decretou até onde ele pode ser tapado e destapado. A medida exacta da liberdade a que têm direito. Claro que os ingénuos bem-intencionados acreditaram que é disto que se tratava num tempo em que a extrema-direita cresce e o centro lhe pede emprestados os seus valores. E, fazendo questão de manterem a sua ingenuidade, não estranham que ao seu lado, neste combate, encontrem rostos e nomes que nunca apareceram em qualquer luta feminista. “O acesso à praia será banido a todos os que não tiverem roupa de banho adequada, que respeite os bons costumes e o secularismo”, lia-se no comunicado do presidente da Câmara de Cannes. Com as devidas diferenças, conhecemos bem a polícia de costumes. A que veste, em Teerão, e a que despe, em Cannes. Os menos impressionáveis com medidas “simbólicas” que distraem da crise e agradam a xenófobos sabem que a autodeterminação das mulheres não se faz com “dress code”, mas garantindo os instrumentos para o exercício da liberdade: igualdade no trabalho, independência económica, planeamento familiar, direito a decidirem sobre a sua gravidez e protecção judicial contra o abuso e a discriminação. Por mais que nos desagrade o que os burquínis significam – e a mim desagrada-me muito –, o Estado obrigar uma mulher a vestir-se ou a despir-se em nome dos “bons costumes” é o oposto da autodeterminação.

soldado involuntário da campanha de medo. Essa é a grande vitória dos terroristas. Mas a campanha do medo tem outros militantes. Há um acordo tácito, que ninguém escreveu ou negociou, entre o terrorismo islamista e a extrema-direita europeia: cada atentado permite aos xenófobos crescer, cada novo crescimento político dos xenófobos permite aos islamistas arrebanhar novos elementos. E as suas agendas coincidem no tempo e no espaço. A utilização dos atentados para fazer a Frente Nacional passar um discurso de ódio trabalha no mesmo medo que os islamistas querem alimentar. O terrorismo não é uma novidade. Na Europa, os anos 1970 e 80 até foram bem mais mortíferos, graças a vários movimentos radicais de extrema-esquerda e aos conflitos basco, irlandês e corso. A diferença é que tinham objectivos tangíveis, que podiam ser transferidos para o plano da racionalidade política e da negociação. E o impacto mediático de cada ataque era muitíssimo menor. O mesmo que hoje têm os ataques no Médio Oriente ou em África, com muito mais vítimas e uma crueldade sem fim. Mesmo que a comunicação social decidisse não mostrar imagens dos efeitos dos atentados na Europa para reduzir a eficácia do

e velhos, pobres e ignorantes, temerosos do exterior e prontos a regressar ao tempo das trevas do nacionalismo. Mas infelizmente foi este simplismo que dominou as leituras que se fizeram dos resultados das eleições norte-americanas, do Brexit e da ascensão da extrema-direita em vários países europeus. A reacção dos excluídos é recusar um mundo onde não têm lugar. É a essa revolta legítima, dirigida aos alvos errados, que a esquerda tem de responder. A esquerda que se contenta em aliar minorias – étnicas, religiosas, sexuais e culturais – e, no meio disto, desiste da representação da maioria popular, abandona a sua razão de ser. Desistindo da representação de classe, que tantas vezes conseguiu unir trabalhadores de credos, raças e culturas diferentes, atira os excluídos para representação étnica e religiosa, baseada no medo do outro, que a extrema-direita tem para lhes oferecer. Sem uma narrativa emancipadora, a reacção à pulsão xenófoba tem sido, ela própria, baseada no medo. Longe vão os tempos em que o projecto europeu se baseava numa ideia partilhada de prosperidade e na ideia, real ou imaginada, de um modelo social comum. Hoje, a União Europeia é um projecto de liberalização económica, desmantelamento do Estado Social e redução dos mecanismos de

A esquerda que se contenta em aliar minorias e, no meio disto, desiste da representação da maioria popular, abandona a sua razão de ser. Desistindo da representação de classe, atira os excluídos para representação étnica e religiosa, baseada no medo do outro, que a extrema-direita tem para lhes oferecer.

A cena da mulher cercada por polícias, entre insultos dos que supostamente a querem libertar, é mesmo o que parece: perseguição religiosa e cultural. E uma perseguição determinada pelo mais rasteiro oportunismo eleitoral. A cena coincidiu com um interminável estado de emergência decretado por um governo socialista, limitações ao direito de manifestação e aprovação de leis laborais por decreto. E coincidiu com o sentimento de medo e revolta depois do Bataclan e de Nice. Na realidade, ninguém estava a tentar destapar os corpos das muçulmanas. Estavam a querer tapá-las. Tornarem invisível a sua insuportável presença, escondendo todos os sinais de diferença. Porque essa presença causa pânico. Um pânico que os terroristas querem que associemos a todos os muçulmanos, mesmo que seja uma mulher na praia, ao lado da sua filha, aterrorizada com as exigências policiais. Aos nossos olhos, cada muçulmano é um

terror, as redes sociais tratariam disso. Mas, acima de tudo, a globalização criou uma ansiedade colectiva e uma sensação de desprotecção que torna as populações muitíssimo mais vulneráveis à estratégia do medo. Esta ansiedade coincide com um processo de desprotecção social na Europa. A globalização e a financeirização levou a uma transferência sem precedentes de recursos da economia real e do Estado para os grupos financeiros. Uma sangria que torna os ciclos de crise cada vez mais frequentes esvazia os Estados de capacidade financeira para manter a protecção das populações. O terrorismo associado a culturas diferentes e cada vez mais eficaz no seu impacto mediático, a implosão dos países mais próximos da Europa e os movimentos migratórios a ela associados, um ambiente de ansiedade e a desprotecção social dos que ficam de fora do processo de globalização económica... É a tempestade perfeita. Perante este cenário, nada mais inútil do que dividir o mundo entre jovens tolerantes, modernos e informados, abertos ao mundo e dispostos a correr riscos e a navegar nas tumultuosas águas da globalização;

soberania popular sobre as elites. Um projecto onde cabe mais facilmente Viktor Orbán do que Aléxis Tsípras. E por isso mesmo a resposta europeísta aos nacionalistas baseia-se hoje, também ela, quase exclusivamente no medo. Já poucos se dão ao trabalho de explicar o que realmente une os estados europeus numa organização e, bem mais difícil de justificar, o que os une em torno de uma moeda. Limitam-se a desenhar terríveis futuros fora de uma União castigadora mas protectora. Claro que é possível manter os povos unidos pelo medo. O medo, como sabem os terroristas, é um motor político assombroso. Mas é raro nele crescer qualquer coisa pela qual valha a pena lutar.

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Crónica

Playlist ► PJ Harvey “Who Will Love Me Now” Dulce Maria Cardoso (escritora)

mamadou ba (activista)

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“Fechados nas ruas” de medo Como quatro letras e uma palavra condicionam vidas “Medo

Eu tenho medo da detenção, do frio da madrugada Da polícia, da milícia que atira sem falar nada Do click da samsung da foto mal registrada Com os jornais mostrando a minha cara furada Dizendo que morreu porque envolveu com canalia Aqui o crime não e creme o crime não aceita falhas Estamos indo irmão pro final da era Terremotos, maremotos, grandes crateras na terra Medo da certeza que seria necessário comprar lugar no céu e 10% do salario Dízimo, propina sei lá ninguém receia. Mercenário aumenta a fé quando vê a casa cheia Medo da flor, do perfume que exala. De sentir o odor quando eu tiver na vala Medo da falência da crença que se desfaz Medo de ter medo Medo de não temer mais Tenho medo de não encontrar a paz Medo de temer Medo de não temer mais Eu tenho medo de me encontrar só Mais vivo só e sem medo” Excerto de Medo, do Grupo de Rap, Tribo da Periferia No final da década de 90 do passado milénio, num debate em torno do clássico filme “Outros Bairros” de Inês Gonçalves, Kiluanje Liberadade e Vasco Pimentel, que retratava a situação dos bairros periféricos da Área Metropolitana de Lisboa e da Margem Sul, ficou-me para sempre um comentário de um ex-morador do Bairro das Fontainhas que resumia o desespero de quem tinha medo de já não ter sequer onde esconder o medo da violência do estigma, ao dizer num tom revoltado e de desespero: “Os jovens estão fechados na rua!”. Como é que alguém havia de ficar “fechado na rua”? Este era um grito de revolta e de medo de quem sabia que a sociedade havia decidido que o seu único lugar era a clausura real ou simbólica, o acantonamento e a periferização ou a exclusão. O grito de quem sabe que o medo se tornará a própria sombra que terá de a carregar sempre, em todas as circunstâncias da vida. No dia 27 Julho de 2012, durante uma operação de demolições de casas ordenada pela Câmara Municipal de Amadora, uma moradora que “antes da revolução”

– como ela própria gosta de enfatizar com orgulho – erguera a sua casa no desaparecido Bairro Santa Filomena com o seu companheiro agora acamado com uma doença crónica, enquanto retirava os alimentos do frigorífico que havia sido atirado ao chão no meio dos escombros das demolições, resmungava para mim: “Oh filho, nós aqui temos medo que os miúdos deixem de ter medo, porque nesse dia eles já não voltam inteiros para casa. Acontecem coisas horríveis aos miúdos que não têm medo.” Depois, levantou a cabeça, olhou para mim e disse, com a serenidade de quem estava habituada a conviver e controlar a violência do medo: “Sabe, aqui toda gente tem medo. Eles estão cheios de medo. Mas nós é que devíamos ter medo. Eles têm a força e nós só temos a vontade. Mas Deus é Pai, a gente não tem como desistir. Vamos seguir em frente.” Isto não era conversa de resignação nem de desistência, mas uma afirmação de dignidade de quem, contra tudo e todos, construiu a vida com sangue e suor. De quem, contra a força do medo, ergueu a decisão de seguir em frente com dignidade, até a sua determinação se transformar no medo de quem tinha o poder de usar o medo como modo de relacionamento. Para aqueles e aquelas para quem o fim da ditadura não significou o fim do medo da repressão quotidiana, a dialética ali é simples: contra a força do medo, opor a vontade de resistir.

minorias subsídio-dependentes que sugam o Estado e mais um par de botas... E o circo mediático para alimentar o pânico da insegurança alimenta-se, por sua vez, desta fábrica do medo. A instrumentalização do medo passa muitas vezes por uma conseguida agenda da indústria da comoção colectiva. Ora, um dos muitos perigos da fábrica da comoção colectiva é a facilidade anestésica com que a indiferença se instala face ao mal e a sua banalização. Indiferença que, para além de selectiva, é absolutamente cínica e racista. Na verdade, o elefante na sala que se alimenta a si próprio e ao discurso do medo é a tal coisa que toda gente tem medo de nomear, mas que está suficientemente subjacente: a maldita “raça”. Para cumprir Abril, o medo tem definitivamente de mudar de lado, pois “no outro lado de cada medo, está a liberdade.” Termino como diria Karl Marx: “Que aqui se afaste toda a suspeita. Que neste lugar se despreze todo o medo.” Face ao Inverno moral – do medo em democracia –, cumpre-nos resgatar Abril e os seus sonhos.

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Dois pedaços da história de uma palavra – quatro letras apenas – que desmentem uma certeza que tínhamos por adquirida: a certeza de que o medo havia morrido com a ditadura. Infelizmente, estes dois pedacitos de histórias de vida mostram que a ideia de que a liberdade havia vencido o medo não abrange todos os espaços nem toda a gente na nossa sociedade. O medo, mais do que um sentimento subjectivo intangível e incomensurável, transformou-se numa instância de legitimação política. Para justificar as suas opções, o poder político construiu toda uma retórica sobre a perigosidade de determinados lugares e pessoas. Assim, assistimos à construção da narrativa do medo dos bairros perigosos e dos jovens delinquentes, dos migrantes que roubam os nossos empregos, dos terroristas camuflados de refugiados, dos muçulmanos que ameaçam a nossa identidade, das

Ilustração: Miguel Feraso Cabral

É irmão todo mundo tem medo de alguma coisa Tem porque cê tá vivo Num é uma pedra ou um objeto E não adianta falar que não tem não, porque tem. Eu tenho vários e vou te falar alguns deles...


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testemunho*

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“Em Portugal descobri que vou ficar bem, aconteça o que acontecer” Tinha 18 anos. Passaram-se seis, de violência e mortes, metade na Síria, metade em Portugal, onde estuda Arquitectura. Pedimos-lhe que nos falasse sobre os seus medos e sonhos, lá e cá. Um testemunho cosido a partir de notas escritas à mão, pedaços de conversa e mensagens de voz

“Quando era pequena tinha medo do escuro. Ainda tenho, não sei porquê mas odeio a escuridão, principalmente com pingos de água a cair. Quando me perguntavam o que é que eu queria ser respondia sempre que queria descobrir o mundo. Em casa, víamos a informação de meteorologia todos os dias, mostravam muitas cidades e eu dizia à minha mãe ‘quero ir ali, quero ir ali…, quero ir ver como aquelas pessoas vivem’. Só queria ir. Nunca quis ser professora ou médica.

* a autora pediu para não ser identificada

Quando a revolução começou, estava no último ano do liceu. No princípio não acreditei, pensava que os sírios eram demasiado cobardes. Depois ouvi o que estava a acontecer em Deraa [cidade do Sul da Síria, onde houve os primeiros protestos, depois de uns miúdos que escreveram frases anti-regime na parede da escola terem sido presos]. Lembro-me de pensar que aquelas pessoas eram corajosas, não eram como nós que não fazíamos nada. Pensava mas não falava com ninguém, porque ‘as paredes têm ouvidos’ – isso não era só uma expressão, nós vivíamos segundo essa frase. Saber sobre as crianças de Deraa também me deixou assustada. O meu pai disse que eles iam queimar e destruir a área toda, como tinham feito nos anos 1980 em Hama. Eu sabia dos anos 80, mas não se falava. Foi a primeira vez que o meu pai falou disso, dos seus medos escondidos. Lembro-me de descobrir que tinha havido protestos em Hamidiyah [Cidade Velha de Damasco]. Ninguém me disse, vi na televisão. E fiquei chocada, aquilo estava a acontecer em Damasco e ninguém falava sobre isso. Depois, aconteceu o primeiro discurso de Bashar al-Assad. As pessoas tinham esperança, achavam que ele era inteligente por ser médico, que era bom, diziam que

o problema eram as pessoas à volta dele. Sai da escola e fui para casa a correr, sentei-me em frente à televisão com a minha mãe. Começámos a ouvir e ele riu-se, estava a rir-se apesar de haver pessoas a morrer em Deraa. Estava a gozar com elas, a dizer que eram terroristas e germes…Só me lembro de começar a chorar. Tinha 18 anos mas senti que o país se ia transformar num inferno. Continuei a ir às aulas e o país já estava em chamas. No último ano do liceu, havia protestos e disparos. Nessa altura achava que ia acontecer como o meu pai dizia, que eles iam queimar tudo, acabar com tudo. Mas tinha um amigo em Homs [terceira maior cidade da Síria, no Ocidente do país, foi conhecida como “capital da revolução] que participava em protestos pacíficos. Era o único que falava comigo sobre o que estava a acontecer e começou a enviar-me fotografias. Ele estava no último ano da universidade e tinha um visto para França. Eu não acreditava no país e perguntava-lhe do que é que ele estava à espera para se ir embora. Ele dizia que não podia ir. ‘Isto é a nossa liberdade’, dizia-me. Eu ouvia mas ainda não percebia. Até 3 de Fevereiro de 2012 não fui a nenhum protesto. Nesse dia, o Mazhar acabou com as minhas dúvidas. Ele morreu num bombardeamento e isso mostrou-me que a revolução era verdadeira, provou-me que o que estava a acontecer era real. Tudo mudou, foi como se tivesse renascido. Enquanto estive na Síria, até ao fim de 2013, não tinha medo da morte. Tinha medo de ser presa nos protestos e de criar problemas para a minha família, não lhes dizia nada sobre o que fazia. Sempre que ia a um protesto era como se já não me sentisse uma pessoa, sentia que era parte de um ‘nós’. Acreditar em ‘nós’ fez-me sentir diferente. Nessa altura, eu não me

queria vir embora. Sentia que tinha de fazer aquilo, que era o meu sonho… Ainda é o meu sonho. Mas não me esqueço das alturas em que fugíamos ou quando alguém era ferido… A verdade é que tínhamos medo de tudo, até de construir memórias. Sair da Síria não foi bem uma decisão. Aconteceram várias coisas em dois dias. Um amigo meu foi preso e eu não sabia se também estava em perigo. Ainda antes, houve um ataque aéreo que atingiu um sítio onde estavam crianças a brincar. Quando vi os corpos daquelas crianças houve alguma coisa que mudou. Percebi que não podia viver assim, que não me podia adaptar àquela normalidade, eu a viver ali e as pessoas do outro lado [nas zonas controladas pela oposição] a serem mortas. Só podia passar completamente para o outro lado ou vir-me embora. Escolher o outro lado teria consequências para minha família. Acabei por sair, por decidir continuar com a minha vida. Estive no Egipto, na Turquia. E apareceu a oportunidade de vir para Portugal. Portugal, Europa, direitos humanos, pessoas abertas… foi nisso que pensei primeiro. Depois, quando vim, comecei a ter medo do que os outros pensam. Especialmente a seguir a cada atentado. Tenho medo dos olhares das pessoas, medo que tenham medo de mim por ser síria, por ser muçulmana. Às vezes, quando sei que vou conhecer alguém mas só por umas horas nem sequer começo essa conversa, escolho outra nacionalidade. Sinto-me encurralada, parece que só há duas recções. Ou oiço ‘síria, hum’, como se fossemos todos radicais, ou então é ‘oh, coitadinha’. As pessoas não sabem que a Síria é tanta coisa. Deve haver sírios mais abertos do que alguns europeus…

Agora tenho muito medo pela minha família, especialmente depois da loja do meu pai ter sido bombardeada. Ele perdeu quatro amigos, foi o único sobrevivente. Até comecei a vê-los nos meus sonhos, vejo-os em perigo. Eu perdi amigos, muitos amigos, mas não perdi ninguém da minha família. Acho que não ia aguentar. Viver em Portugal ajudou-me a ver o mundo com outra perspectiva, a partilhar mais. Aqui tornei-me mais eu, uma mulher independente, mais estável. A revolução mudou-me, mas a minha bolsa fez-me acreditar que há sempre pessoas que te vão ajudar, por mais difícil ou impossível que seja uma situação. Em Portugal descobri que vou ficar bem, aconteça o que acontecer. Já sei que a Síria nunca vai ser a mesma. Mas acredito no futuro, sei que há muita gente boa na Síria. Acredito que podemos fazer a mudança, ser as raízes do futuro. Já ninguém acredita mas eu tenho de acreditar. Não posso pensar que as pessoas morreram em vão. Reconstruir a Síria é fácil, reconstruir os sírios é que vai ser difícil. Nunca acreditei em nacionalidades, mas sinto-me síria, orgulhosa porque o meu povo foi capaz de se revoltar. Por causa disso, tudo em mim mudou, foi o melhor que me aconteceu. Mas não esqueço a parte escura, os meus amigos, a minha casa… Sinto falta de tudo.”

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reportagem

ana luÍsa rodrigues (jornalista)

Playlist ► Fausto “Como um Sonho” Marta Lapa (coreógrafa)

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Um paÍs nas entrelinhas Durante quase meio século escrever num jornal e contar factos incómodos para o poder era um exercício diário contra o medo. Combatia-se a censura oficial da ditadura e a auto-censura na cabeça de cada um. Ironias, metáforas, aportuguesamento de nomes estrangeiros, a imaginação era a grande arma que alguns usavam para desafiar as restrições à liberdade

“Eu tinha entrado para o ‘República’ em Janeiro de 1974, como editor da secção de Desporto”, recorda Eugénio Alves: “E qualquer notícia podia servir para tentar driblar a censura.”

Em Março de 1974, arriscou noticiar o falhado “golpe das Caldas”, espécie de prenúncio do 25 de Abril, aproveitando um jogo em Alvalade entre Sporting e Porto. Saiu a 18 de Março nas páginas do jornal “República”, exactamente dois dias depois da coluna militar que partiu das Caldas da Rainha em direcção a Lisboa para mudar o regime, mas falhou. “Com medo que a direcção não achasse piada, não contei a ninguém, só ao gráfico que fazia a maquetagem em chumbo.” O jornalista desfia a história, juntando

pormenores quase cinematográficos: “Lembro-me até hoje que se chamava Sereno. Combinei com ele e dei-lhe uma entrada alternativa, com o mesmo número de caracteres, para que, se houvesse problemas com a censura, ser logo substituída e não atrasar a edição e o envio do jornal nos comboios para fora de Lisboa.” Era uma notícia normal a descrever o jogo, ganho pelo Sporting por 2 a 0, mas tinha uma entrada de 9 linhas bem metafórica: “Os muitos nortenhos que no fim-de-semana avançaram até Lisboa,

sonhando com a vitória, acabaram por retirar, desiludidos com a derrota. O adversário da capital, mais bem organizado e apetrechado (sobretudo bem informado da sua estratégia), contando ainda com uma assistência fiel, fez abortar os intentos dos homens do Norte. Mas parafraseando o que em tempos disse um astuto comandante ‘perdeu-se a batalha, mas não se perdeu a guerra…’” O censor não deu conta da mensagem implícita e assim ficou. O artigo deu brado. “A imprensa internacional fez eco daquilo. O ‘Le Monde’

Ilustração: Miguel Feraso Cabral

Foi a finta mais prazenteira da sua vida. Eugénio Alves era desde jovem jogador de futebol: foi treinado por Pedroto nos juniores do Futebol Clube do Porto e na faculdade alinhava nas equipas universitárias. Mas foi como jornalista que fez a finta mais famosa. Fora das quatro linhas — mais propriamente nas entrelinhas.


publicou um artigo sobre o episódio com o título ‘Jornal República desafia a censura’ e depois a BBC também pegou no assunto.” Por isso, e porque o fim do regime já se anunciava, o redactor não sofreu, desta vez, consequências. Já o jornal, sim. Até ao 25 de Abril, a censura apertou ainda mais o vespertino. “Exigia antecipadamente as provas de página, em vez dos textos simples, o que dificultava e atrasava mais o processo”, recorda Eugénio Alves. Como explica o jornalista Fernando Correia havia três jornais particularmente visados pela censura: “República”, “Diário de Lisboa” — com uma postura editorial de oposição clara – e parcialmente o “Diário Popular”, pouco contestatário mas onde trabalhavam redactores opositores do regime como Baptista Bastos. Eram aqueles que mais abertamente usavam os subterfúgios, as metáforas, as entrelinhas, para dizer aquilo que a ditadura não queria que se soubesse. O público destes jornais ia-se habituando a esse não dito. “Não eram leitores do ‘Diário de Lisboa e do ‘República’ por acaso. Procuravam jornais incómodos que tinham outro tipo de informação”, precisa Eugénio Alves. “Não era a mesma coisa do que serem leitores d’“O Século’ ou do ‘Diário de Notícias’.”

Alto, onde estavam também quase todas os jornais na época. O contacto dos oficiais de censura era sempre com as chefias de redacção ou os directores, os jornalistas basicamente recebiam o recado. A acção da censura tinha efeitos práticos muito claros nos jornais, que podia ir das multas à suspensão da publicação. Para donos e directores representava uma pesada rotina diária de negociação com os censores, a tentar obter o carimbo de “visto”, e os malabarismos para preencher os espaços em branco em cima da hora. Havia as consequências profissionais e pessoais mais temidas: jornalistas despedidos, presos, interrogados, torturados. Em 1972, Eugénio Alves esteve três meses preso em Caxias. Na prisão, foi sujeito a uma semana de tortura do sono, uma das técnicas mais usadas pela polícia política. Jornalistas portugueses e estrangeiros mobilizaram-se. “Houve um abaixo-assinado pedindo a minha libertação com mais de 100 nomes, incluindo alguns acarinhados pelo regime, como Artur Agostinho”.

Marcelo Caetano. O texto tinha como título “Gorilas, os vigilantes da selva”. Baseando-se numa enciclopédia da vida animal, descrevia literalmente os hábitos e comportamentos desta espécie. “A malta da redacção não acreditava que o texto passasse, mas o facto é que passou”, recorda o autor, entre risos. A descrição detalhada assentava na perfeição numa espécie portuguesa da altura: “Gorilas” era a alcunha dada pelos estudantes aos seguranças do regime que os controlavam na universidade — “vigilantes” era a designação oficial. A junção dos dois termos resultou no chamado título perfeito. “Isto deu uma confusão dos diabos, porque os estudantes tiraram cópias do artigo e espalharam-nas pelas paredes e os gorilas andaram a arrancá-las.” As pequenas vitórias saborosas, que hoje quase parecem caricaturais, não apagam o medo subterrâneo nem as consequências da falta de liberdade para o país. De facto, durante 48 anos, Portugal foi praticamente um cemitério informativo. Aliás, a 25 de Abril de 1974, o primeiro “República” em liberdade vincava logo

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Tudo o que não havia No livro “Os Segredos da Censura”, César Príncipe, emblemático jornalista portuense do “Jornal de Notícias”, enumera os efeitos do lápis azul. “‘Não havia’ EXAME PRÉVIO. Nem presos políticos. Nem suicídios. Nem barracas. Nem cólera. Nem aumento de preços. Nem abortos. Nem guerra. Nem hippies. Nem greves. Nem droga. Nem gripes. Nem homossexuais. Nem crises. Nem massacres. Nem nudismo. Nem inundações. Nem febre amarela. Nem imperialismo. Nem fome. Nem violações. Nem poluição. Nem descarrilamentos. (…) E os governantes não viajavam, não adoeciam, não comiam e, quando eram exonerados, faziam-no sempre ‘a seu pedido’. Era o país ficção contra a evidência do país real.”

“República”, “Diário de Lisboa” — com uma postura editorial de oposição clara – e parcialmente o “Diário Popular”, eram os jornais mais visados pela censura, explica o jornalista Fernando Correia. Trabalhar numa redacção era um exer- Eram aqueles que mais abertamente usavam os subterfúgios, cício diário de luta: contra a censura de as metáforas, as entrelinhas, para dizer aquilo que a ditadura escritório montado e a auto-censura na não queria que se soubesse. cabeça de cada um. Escrever ou editar um texto era um processo condicionado logo à partida.

Mesmo em jornais mais alinhados com o “Estado Novo”, alguns redactores também tentavam atravessar o risco. Roby Amorim, jornalista d’“O Século”, entrevistado no livro “Jornalistas — do ofício à profissão”, relembra a felicidade, mas também a extrema frustração do quotidiano. “Ficávamos felicíssimos quando conseguíamos meter qualquer coisa, uma linha, duas linhas, uma palavra num texto que conseguia passar na censura.” Mas muitos leitores não liam nas entrelinhas: “Era um bocado inútil, havia uma dúzia de pessoas que percebia a intenção mas a maior parte dos leitores ficava perfeitamente à margem.” O semanário “Expresso”, que foi pela primeira vez publicado a 6 de Janeiro de 1973, usava anúncios ao próprio jornal para preencher os espaços em branco, numa estratégia que contava com a cumplicidade do seu público. Os anúncios avisavam os leitores dos cortes: “Expresso — um jornal para saber ler” ou “Expresso — o semanário dos que sabem ver”, por exemplo. No livro “O que a censura cortou”, o jornalista José Pedro Castanheira recupera as notícias que o jornal quis dar e que foram mutiladas ou totalmente cortadas. Ao todo, nas 68 edições publicadas antes do 25 de Abril, “foram censurados mais de 1800 artigos e feitos cerca de 4500 cortes, dos quais 500 cortes integrais”. Em Lisboa, os serviços de censura ficavam na Rua da Misericórdia, em pleno Bairro

A censura tinha mão bem mais pesada com os diários vendidos em banca do que com as revistas, mesmo as da oposição: “Eram sobretudo vendidas por assinatura e chegavam a menos pessoas, tinham um impacto mais restrito”, justifica Fernando Correia, que trabalhou na “Seara Nova” e na “Vértice”. Ainda assim, era preciso ser engenhoso. “Recorríamos ao aportuguesamento de nomes: Karl Marx era Carlos Marques; Peter Weiss era Pedro Branco; e Lenine era Ulyanov”, sorri Fernando Correia. “Isto passava, mas nem sempre, daí que os censores se fossem especializando neste tipo de publicações. Outra técnica consistia em recorrer a citações de autores consagrados como Eça, Antero, Garrett, que dificilmente eram cortados e que serviam como uma luva para descrever a situação da época.” Algumas secções da “Seara Nova” eram particularmente emblemáticas, como “Factos e Documentos” e “Extractos”. Nesta última citavam-se frases de pessoas do regime que permitiam uma interpretação oposta ao sentido original. “Os nossos preferidos eram o Presidente da República, Américo Tomás, e o Afonso Marchueta, na época governador civil de Lisboa.” Os seus discursos em inaugurações e outros actos públicos eram particularmente propensos à ironia. A ironia era sempre uma arma poderosa. Eugénio Alves recorda uma das primeiras vezes que, na redacção do “Diário de Lisboa”, driblou o exame prévio — nome que a censura passou a ter no tempo de

na página três: “Não caberiam nos jornais de um mês, sequer nos de um ano inteiro, todos os artigos ou notícias que a Censura e mais recentemente o Exame Prévio nos impediu de publicar”. Já se escrevia sem precisar de carimbo, mas ainda havia redactores na cadeia. A libertação dos presos políticos só se deu às primeiras horas de 27 de Abril. Fernando Correia estava, juntamente com outros dez jornalistas, em Caxias. E o seu primeiro texto sem censura foi escrito dentro da cela, enquanto o Movimento das Forças Armadas decidia quem podia ser libertado. Ao relembrar esses momentos iniciais de liberdade, o rosto de Fernando Correia ganha uma luz especial: “Tinha a minha mulher e os meus cunhados cá fora à espera. E a primeira coisa que fiz, em vez de ir para casa festejar, foi ir à redacção do ‘Diário de Lisboa’, apesar dos protestos da minha mulher. Entreguei o texto ao contínuo para ser publicado no jornal dessa tarde”. O artigo que encheu a página 3 do diário de 27 de Abril arrancava assim: “Escrevo sob a maior emoção e nem sei como começar. As últimas horas foram, para mim, simultaneamente as mais angustiosas e as mais inesperadas de sempre.” Um turbilhão de factos e emoções, no primeiro texto sem entrelinhas mas ainda entre grades. Depois de anos a escrever com subterfúgios e amarras, a prosa limpa, livre, custava a sair.

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A bola preta contra o lápis azul O jornal “República”, fundado em 1911, assumido defensor dos ideais republicanos e antifascistas, era provavelmente o jornal em circulação mais fustigado pela censura. Ao longo de décadas foi resistindo, sobretudo com assinaturas, muito mais do que com a venda em banca, ao contrário dos outros diários. No início dos anos 70 ganha novo fôlego, com a chegada de Raul Rego à direcção editorial e o reforço da redacção com jornalistas como Assis Pacheco, Vítor Direito, Afonso Praça. Raul Rego – conhecido pela oposição frontal ao Estado Novo e um dos fundadores do Partido Socialista – entrou para a direcção do jornal em 1971. Assinava diariamente, na página 3, a coluna “Momento”, que passou a ser uma das marcas do vespertino, quase com estatuto de “editorial”. A coluna, como tantos outros textos e reportagens, era retalhada pela censura. Muitas vezes parcialmente, outras vezes na totalidade. Como não se podia deixar espaços em branco, arranjou-se outro engenho: quando havia cortes ao artigo original, o espaço era ornamentado com uma bola preta. Bola preta que aumentava consoante a intensidade da censura. Quantas mais frases cortadas, maior era a bola do “Momento”.


vox populi

cláudia marques santos (Jornalista)

Playlist ►The National “Afraid of Everyone” Nuno Rodrigues (programador e director do festival Curtas Vila do Conde)

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A colher que vai à boca Lembrou-o o JP Simões: há um livro do Astérix que fala sobre o medo. Em ‘Astérix e os Normandos’, de 1966, os descendentes de vikings descem até terras da Gália para aprender o que é o medo. Acreditam piamente que o medo ensina a voar. Chegados à aldeia gaulesa, os normandos decidem raptar o sobrinho de Abraracourcix, Goudurix, o rapaz mais medroso à face da terra. Astérix e Obélix, que vivem com o medo de que o céu lhes caia em cima, puseram Assurancetourix a cantar e os normandos, apavorados com a sonoridade, decidem regressar a casa. Valério Romão, Cláudia R. Sampaio, Vasco Araújo, Tiago R. Santos, António Jorge Gonçalves e JP Simões escrevem sobre o medo

Valério Romão, escritor

Cláudia R. Sampaio, poeta

Falar do medo é sobretudo falar de uma complicada relação que duas instâncias da mesma identidade mantém entre si. O medo e a consciência – no sentido ético – são dois mecanismos de travagem fundamentais em que existe um desdobramento da identidade: por um lado, há uma instância que dita o que é certo ou errado, o que é perigoso ou não, e, por outro, uma instância que decide se respeita ou não as indicações que lhe chegam. Como dizia o Eça algures sobre a consciência: “aquele cavalheiro que te trava pelo braço”. O medo também tem esse formato. E, como em quase tudo na vida, Aristóteles tem razão. O problema do medo situa-se na determinação da quantidade adequada de cautelas que um sujeito deve ter vida fora. O problema da “justa medida”. Aos pusilânimes e aos intrépidos – pontos limite da função medo – parece estar reservada uma sorte semelhante: uns porque o medo não os deixa viver nada e outros porque a ausência de medo os faz viver muito pouco.

Ter a razão dos dedos esticados em direcção ao abismo. Cegar as pupilas na direcção oposta ao sol. Os passos pequeninos numa escada com pressa. A impossibilidade de nos sermos mas continuarmos vestidos. A colher que vai à boca, decidida, e que cai sem encontrar o seu fruto. E assim sucessivamente. Os frutos que vão caindo sem colher que os acolha. Encontrar-te perdido e depois perder-te encontrado tão vivo. Morrer-te nas artérias da casa. A loucura sentada nas costas da mãe erguida. A mãe eufórica acenando ao filho em loucura. Dois pés de amantes que nunca se tocam no tempo. O tempo sem tempo. Avançar sobre o expoente da palavra e evitar sempre a frase certa. Um tecto que não vê o céu. O céu desabrigado das coisas. Passar como quem desmaia de tédio, ficar como quem explodiu. E assim sucessivamente, desatento à folhagem do mundo. Despi-lo das ruas todas com a saudade morta no canto da folha. A folha amarelecida. O medo é não saber da saudade.

António Jorge Gonçalves, desenhador O medo é um par de olhos no escuro do paleolítico. O medo é a piranha no rio do teu inconsciente. O medo é a amante que se entrelaça de noite na tua cama. O medo é o vórtice no meio da barriga. O medo é cola nos teus dedos. O medo é a merda na sola estriada do teu sapato novo. O medo é a ordem, que disfarças de necessidade. O medo é uma pastilha elástica colada debaixo da tua cadeira. O medo é aquilo que te salva, matando-te. O medo devia ser o último dos argumentos para tomar uma decisão. E eu queria tanto viver sem medo, mas não consigo.

Tiago R. Santos, argumentista Não conseguia viver sem medo. Talvez porque me assuste a ideia do conforto. Será importante definir a diferença entre susto e medo: o primeiro é temporário, um disparo de adrenalina ao qual se pode escapar; o segundo é permanente, aquela sensação que vive dentro de nós, ali entre o coração e os pulmões e que não vai a lado nenhum. Não sei se conseguia viver sem medo, dizia, até porque o considero um bom companheiro. Mas não tenho medo de aranhas ou de morrer. O meu medo é existencial: que as pessoas descubram que sou uma fraude, um humano incapaz que, por vezes, bloqueia quando precisa desempenhar as mais básicas funções civilizacionais. E é esse medo, que tem ligação directa com o tímpano e ao cérebro, que me vai empurrando para ser melhor, para me esforçar mais, para camuflar a incapacidade com o esforço. Ter o medo como motivação, e não o resultado de uma ameaça, é um privilégio que tento valorizar todos os dias. Recearia, se assim não fosse, perdê-lo. E aí estava tudo lixado.


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JP Simões, músico

Ilustração: Miguel Feraso Cabral

Porque estou com medo de escrever? Medo de escrever sobre o medo? Estou claramente com receio de errar, de ser impreciso, de ficar mal visto se fizer uma análise superficial do assunto, de falhar o alvo. Podia ficar quietinho e não fazer nada – como Bartleby, que preferia não o fazer. Podia inventar uma desculpa e não arriscar, como faço com tanta coisa: seria mais prudente. Mas depois poderia ficar com medo de ter perdido uma oportunidade, de ter deixado escapar um bom pretexto para reflectir sobre uma questão tão presente na minha vida. O mesmo receio que muitas vezes me ficou quando era muito puto e não conseguia dirigir uma palavra que fosse às pessoas por quem me sentia atraído, humanos mágicos que me deixavam a garganta seca e uma dificuldade extrema em respirar só de pensar na sua presença. O medo do ridículo, da rejeição, da descriminação: o medo de levar um pontapé da realidade e ser jogado pela porta dos fundos de estar vivo. O medo de morrer em vida: sim, porque o medo de viver em morto é algo ainda mais assustador. Viver para sempre ao lado de tanta gente que não conheço e que se calhar nem aprecio grandemente: que medo! E o grande maestro do Universo que nunca aparece: medo dos malucos que falam com amigos imaginários e se fazem explodir no meio dos parques onde as crianças brincam. Medo de pensar que são os próprios Estados democráticos que encomendam estes eventos culturais para incentivar o empreendedorismo das lucrativas empresas de segurança, de armamento, de solidariedade social. Medo de ser paranóico. Medo de não ser paranóico. O mundo vive do medo: o medo é a melhor ferramenta de controlo que existe: toda a gente, nas suas raízes profundas, está atenta ao primeiro sinal de predadores, de hecatombes, de armadilhas, de competidores, estrangeiros, estranhos, desconhecidos: a ignorância é a melhor aliada do medo: o medo cresce no infinito espaço de tudo o que não sabemos. E isso representa um enorme pasto para quem pretende controlar as hordas humanas. Medo de nunca chegarmos a ser verdadeiramente livres, nós cujo coração insignificante a tudo dá significado.

Vasco Araújo, artista plástico MEDO: o problema do medo... uma misteriosa forma que ocupa a mente daqueles que vivem situações assustadoras. O medo, por ser contagioso, pega-se de um homem a outro ainda mais depressa do que as banais constipações. Pode ser por contágio instantâneo, ou propagar-se como doença silenciosa, com a lentidão que usam os micróbios. O medo é sempre extravagante, como os chapéus de senhora, os vestidos de noite e a vegetação tropical. Quer dizer, tem aparência firme mas, na realidade, consiste num impulso que se decide num instante. Aliás, o medo é estúpido e não depende de elaborados raciocínios. Distribui-se por camadas, tem cores berrantes, é imodesto e inconstante, muda conforme sopra o vento. Por vezes, torna-se um sentimento caprichoso, ou mantém um lado frívolo e outro inabalável, mas pode ser tão absoluto que acaba por dominar todos os pensamentos primitivos da sua vítima. Sobretudo, deve pensar-se nele como uma emoção que conquista a alma à maneira dos parasitas, obrigando-a a inventar desculpas e a encontrar disfarces para enganar a coragem que resta. O medo enfraquece mas, em alguns casos, dá-nos força.

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entrevista

cristiana pereira (Psicóloga)

Playlist ► Nick Cave “Weeping Song” Pauliana Valente Pimentel (fotógrafa)

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O medo do medo O medo “tem a função de nos proteger e é um mecanismo de sobrevivência”. Mas inseguranças aliadas a uma ansiedade extrema podem desencadear um momento de colapso – um ataque de pânico

Ilustração: Miguel Feraso Cabral

Entrevista por Alda Rocha


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“O coração começa a bater muito rápido, começamos a ter suores, tremores, a sentir tonturas, podemos perder um bocadinho a noção da realidade à nossa volta, de onde estamos, como é que estamos — e tudo isto levado a um nível extremo de ansiedade.”

Medo de “passar em pontes, espaços abertos, espaços fechados”, medo de andar de autocarro ou de comboio, a sensação de estar “num beco sem saída”, de só querer sair de onde se está. São estas as descrições mais comuns ouvidas pela psicóloga Cristiana Pereira. Na Oficina de Psicologia, onde a encontramos, há psicoterapia individual e de grupo para a perturbação do medo. Às vezes, quem chega, nunca ouviu falar de um ataque de pânico, não sabe o que se passa consigo. Na terapia, trabalha-se a desconstrução dos medos e estratégias para os enfrentar. A psicoterapeuta fala de uma taxa de sucesso a rondar os 80%. Há um momento em que clinicamente falamos de medo de ter medo ? Sim, normalmente o medo do medo está relacionado com um quadro de grande ansiedade, nomeadamente na perturbação de pânico. Pode dar um exemplo ? Temos um ataque de pânico na fila de supermercado e depois, por associação, criamos esse medo de estar novamente numa fila de supermercado, com medo de ter novamente aquele ataque de pânico. O que é que caracteriza um ataque de pânico ? É como se fosse uma situação de ansiedade levada ao extremo. O coração começa a bater muito rápido, começamos a ter suores, tremores, a sentir tonturas, podemos perder um bocadinho a noção da realidade à nossa volta, de onde estamos, como é que estamos — e tudo isto levado a um nível extremo de ansiedade.

Essa resposta do nosso corpo pode ser grave ? De um modo geral, não. Acaba por ser uma resposta fisiológica natural e o nosso organismo está preparado para isso. Muitas vezes temos uma sensação de quase desmaio. Parece que vamos perder a consciência, porque já estamos a respirar muito rapidamente — a chamada hipervigilância ou hiperventilação. O nosso organismo fica com oxigénio a mais e parece que estamos a adormecer. É apenas uma forma natural que o nosso organismo tem de responder. Um ataque de pânico tem sempre uma origem ? Não consigo dizer que sim nem que não. Vamos imaginar que estamos com várias preocupações, a atravessar um momento de stresse. Estamos com muita pressa, com um grande nível de ansiedade. Voltando ao exemplo da fila de supermercado — estamos ali com os nossos pensamentos, à espera de tentarmos adivinhar o que se vai passar a seguir, como é que vamos lidar com tudo isto e, de repente, entramos em colapso. Começamos a sentir taquicardia, suores e muita pressa de sair dali. A fila de supermercado acaba por ser o nosso túnel sem fim. As sensações são extremadas. Exactamente. Quando é a primeira vez a pessoa não sabe o que tem, não conhece as sensações físicas e fica com receio de ter alguma coisa muito grave. Depois acaba por viver com o medo de voltar a sentir aquele medo. É aí que se começam a evitar certas situações — neste exemplo, as filas de supermercado. Esse medo do medo pode ser muito paralisante ? Bastante. Nós também vivemos muito consoante as nossas inseguranças. Estamos constantemente à procura de algo que nos proteja e o medo, de certa maneira, ajuda-nos a sobreviver. Não atravessamos a estrada sem medo. Primeiro temos de olhar para um lado e para o outro, porque o medo tem a função de nos proteger e é um mecanismo de sobrevivência. No entanto, quando começamos a ficar muito presos a este medo das inseguranças, o medo de falar, o medo de sair, de expor as nossas opiniões, tudo isto acaba por não nos permitir viver os momentos da nossa vida de uma forma adequada. Vivemos sempre em fuga, a tentar controlar essas situações que nos afligem ? Exactamente. O medo depois leva-nos àquela ansiedade constante por antecipação. Temos sempre tendência para antecipar o que vai acontecer, para nos protegermos.

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Tomamos consciência de que temos um problema e precisamos de ajuda ou ainda temos muitas reservas em aceitar que há situações que não conseguimos resolver sozinhos ? Muitas vezes, este medo que nos leva a evitar certas situações, acaba por ser um medo de conforto. Não vou fazer um exame médico, porque tenho receio do resultado. O medo parece estar associado a algo negativo, o que não é bem verdade. Podemos fazer um exame e receber um resultado que nos deixa descansados. Muitas vezes, este medo acaba por estar aqui numa fronteira que não é transparente. Num primeiro momento estamos muito seguros do que vamos evitando: OK, estou a fazer o melhor para mim. Mas, depois, há muitas pessoas que começam a aperceber-se que estes medos e estas inseguranças do dia-a-dia acabam por condicionar muito a sua qualidade de vida. Um ataque de pânico é um momento de alerta tal que não deixa dúvidas de que é preciso ajuda ? A tendência é recorrer às urgências, porque os sintomas são muito intensos. Mas, até há poucos anos, não se falava de ataques de pânico. Muitas vezes as pessoas iam ao hospital e regressavam a casa com medicação. Só há pouco tempo é que se começou a falar de ataques de pânico e os médicos já começam a ter a sensibilidade de recomendar a psicoterapia. Por haver uma associação especÍfica, entre uma situação e uma reacção de medo ? Exactamente e precisa de ser desconstruída. Até que ponto é que é real eu estar numa fila de supermercado e ter um ataque cardíaco? E ter medo de morrer? Estas sensações acabam por levar-nos a este extremo: começo a evitar ir ao supermercado e estar em filas, porque tenho receio de ter um ataque cardíaco e poder morrer ali. Pode falar-se de medos caracterÍsticos — um conjunto de medos que tipicamente se associam a este medo do medo ? Referiu o medo de falar em público. O medo de passar em pontes, o medo de espaços abertos, de espaços fechados. Parece que estou num beco sem saída. A questão das pontes, dos autocarros, dos comboios — as pessoas relatam esse medo de estar num beco sem saída, só querem sair. Sentem que não controlam a situação ? Sim, este medo do medo muitas vezes está associado a essa necessidade de controlo. Preciso de tentar controlar o que está à minha volta para me sentir mais seguro, o que acaba por ser pouco realista. A psicoterapia é importante para tentarmos desconstruir uma visão muito simplista: OK, é quase o medo que comanda a minha vida. São as minhas inseguranças que comandam a minha vida e muitas vezes deturpam a realidade tal qual ela é.


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Ainda há muitas reservas em relação à validade da psicoterapia ?

De uma forma geral, a taxa de sucesso ronda os 80%. Aqui, na Oficina da Psicologia, temos a psicoterapia individual e a psicoterapia de grupo, precisamente para a perturbação de pânico. A psicoterapia em grupo junta várias pessoas que têm a mesma problemática. O sucesso resulta muito da partilha, que ajuda a desconstruir os medos de cada um, juntamente com técnicas e estratégias levadas pelos terapeutas.

Sim, mas menos do que há uns anos. A psicoterapia ainda é vista como uma fraqueza. Se procuro ajuda é porque não sou capaz de lidar com as minhas questões, com os meus problemas.

Começa-se logo por fazer psicoterapia de grupo ? Varia de caso para caso. Faz-se uma avaliação inicial e vemos com a pessoa o que é melhor. Há pessoas que têm logo alguma estrutura para avançarem para o grupo. Há outros casos em que aconselhamos algumas sessões de psicoterapia individual e depois, então, integrar o grupo. Há também quem faça terapia individual, ao mesmo tempo que faz parte de um grupo. O Que significa ter alguma estrutura ? Ter uma noção bem clara do que são ataques de pânico, da sua sintomatologia. Também acontece haver pessoas que vêm até nós à procura de um diagnóstico, sem nunca terem ouvido falar de ataques de pânico. A partir daí, começamos a estruturar com elas os conceitos, para saber onde se encaixam, juntamente com esta avaliação psicológica. Há um tempo mÍnimo para se resolver este tipo de questões ? De uma forma geral, propomos que ao final de 12 sessões, ou seja, três meses, a sintomatologia já esteja mais controlada. Os grupos terapêuticos também são de 12 sessões, para darmos espaço para trabalharmos estratégias. Três meses já nos dão espaço para superar a sintomatologia e sentir estabilização. A pessoa sente-se mais segura, com capacidade de questionar mais e reflectir sobre os seus medos, perceber quais são as suas inseguranças, perceber o que são inseguranças e o que são medos, qual é o realismo dos medos que sente.

Se temos um problema no joelho achamos normal precisarmos de fisioterapia, mas em relação ao cérebro, achamos que temos de ser nós a cuidar dele, por muito paradoxal que seja, sendo um órgão tão complexo. Ainda faz parte da nossa cultura, se temos um problema, temos de o saber resolver. Somos muito comportamento, acção. Se pensamos, então, temos de agir, mas não parecemos estar muito confortáveis com a expressão das nossas emoções. Procuramos resultados para ontem. Vivemos numa sociedade com muita pressa. Tomamos uma aspirina para a dor de cabeça, porque sabemos que passados cinco minutos não nos dói a cabeça. A psicoterapia ainda é vista como algo que demora muito tem-

po, mas felizmente não é assim. Existem várias abordagens — nós fazemos uma abordagem mais integrativa, em que vamos procurando nas várias abordagens existentes na psicologia para dar resposta a estas pessoas que procuram um trabalho psicoterapêutico mais focado nos seus objectivos. Neste sentido, procuramos corresponder às expectativas e se alguém nos diz “quero resolver apenas isto, este é o meu objectivo ao fazer psicoterapia”, vamos trabalhar directamente nessa questão. Mas nunca é tão rápido como tomar um comprimido. Exactamente. Temos um cérebro fantástico, porque é plástico. Podemos moldá-lo, mas é como em tudo. Se estamos há 30, 40, 50 anos com um determinado comportamento e o nosso cérebro está estipulado para aquela fórmula, é natural que demoremos algum tempo a modificá-lo e a remoldá-lo.

quando se faz psicoterapia e se muda alguma coisa no comportamento, isso também tem uma expressão fÍsica no cérebro, também estamos a mudar fisicamente o nosso cérebro ? Por isso é que é possível mudarmos certos comportamentos e determinadas reacções com a psicoterapia. Quimicamente existem diferenças — e isto está estudado cientificamente — no funcionamento do nosso cérebro. Há de facto mudanças, até pela tomada de consciência de certos padrões de funcionamento que temos, da forma como expressamos as nossas emoções, como é que o corpo reage. Muitas vezes esquecemo-nos da relação que existe entre o corpo e a mente, como quando não nos apetece ir trabalhar no dia seguinte e desejamos que nos doa a cabeça. E no dia seguinte acordamos com uma dor de cabeça que nos proíbe de ir trabalhar. Esta relação entre o corpo e a mente é muitas vezes esquecida. Por isso é que, por vezes, através do corpo temos reacções que não compreendemos. Vamos ao médico e afinal não temos nada, é tudo psicológico. Como se não houvesse uma expressão fÍsica do que é psicológico. Exactamente. Por isso ouvimos a expressão “isso são coisas da cabeça”. Parece que não existe algo específico e importante que nos leva a alertar e a tentar perceber o que se está a passar connosco e com o nosso próprio corpo. Ainda existe aquela ideia, falsa, de que se são coisas da nossa cabeça também as podemos esquecer, também as podemos pôr de lado. E não é assim tão fácil tomar conta do cérebro. Pois não.

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Ilustração: Miguel Feraso Cabral

Qual é a eficácia da psicoterapia no tratamento de perturbações de pânico ?

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Playlist ► Lou Reed “Perfect Day” Raquel Nobre Guerra (poeta)

testemunho*

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“Penso que no minuto a seguir posso não estar vivo” Já passaram mais de dez anos e consegue escrever sobre os ataques de pânico sem reservas. Mas naquela altura não sabia o que tinha

“Era domingo no Verão. Saí do túnel e olhei uma vez mais pelo retrovisor. A minha filha mais nova dormia na cadeira, no banco de trás. Era domingo no Verão e a casa estava a cinco minutos. Um túnel, uma descida. Cinco minutos. No instante a seguir uma pancada, barulho. O espanto, a sensação de perder o controlo, sentir o carro a deslizar e não saber o que vai acontecer a seguir. A parede, outra pancada, um carro que se imobiliza logo à frente. A minha filha de repente acordada. E estar acordada era bom. Sair do carro. Tentar abrir a porta. Ouvi-la chorar. E chorar era bom. Entrar no carro. Acalmá-la. Antes de a acalmar, senti-la. Contá-la. A cabeça, os braços, o peito. Contá-la de novo. Chora. Mas chorar é bom.

o engraçadinho da turma. Sou daqueles que pagam para não aparecer. Posso estar a morrer, mas não vejo razão para alterar esta forma de ser.

E eu, mais ou menos. E ela, então. Conto. São ataques de pânico, diagnostica. Não sei o que é. Conta-me. Já teve. É assim, sentes isto.

Respira. Se respirares vais ficar bem.

Os sinais coincidem. Já não sei de que forma, sou encaminhado para consulta de psiquiatria. Saio de lá com dois comprimidos. Um a que a médica chama SOS, o outro para me equilibrar.

Sinto uma dor nas costas. Eu não choro. Procuro o triângulo. Procuro o telefone. Procuro o carro que se imobilizou lá em baixo. A minha filha já não chora e isso é bom. À noite já posso chorar. Choro muito. Podíamos ter morrido ali.

Não tenho nada, dizem os exames. Tenho tudo, penso eu. Custa-me conduzir. Não sei como consigo subir a serra até ao hotel. Custa-me conduzir, custa-me manter o equilíbrio. Não tenho nada, tento convencer-me. Não morri desta mas vou morrer ali à frente. Se me deitar morro. Mas se me deitar é porque passaram mais uns minutos.

Semanas mais tarde. A primeira longa viagem depois do acidente. Todos num carro novo, que o outro ficou lá atrás, a única verdadeira vítima do choque. Chegamos, quatro horas depois.

* o autor pediu para não ser identificado

É um fim-de-semana depois daquilo. Estamos todos juntos. Chegamos. Hotel, descanso, passeio, sair para jantar. Tudo está bem. É sábado à noite, o restaurante está cheio. Pedimos, a comida vem. Tudo está bem. De repente, sinto a garganta a fechar. O coração acelera. Penso imediatamente que afinal alguma coisa não está bem. Penso outra vez. Alguma coisa está verdadeiramente mal. Suo. O coração não sossega. Continua a ser difícil respirar. Acho que no minuto a seguir posso não conseguir. Penso que estou a sofrer um ataque cardíaco. Penso que no minuto a seguir posso não estar vivo. Se apanhar ar isto melhorará. Vou ficar bem de novo. Saio para a rua, tentando ser o mais discreto possível. Nunca tive feitio para ser

Tarde de mais. Todos perceberam. Sinto que estou branco, que o sangue se evapora. O minuto passa. Depois outro. Continuo a respirar. Mas também continuo a achar que vou morrer. Hospital. Não me lembro de como cheguei lá. De carro? Táxi? A pé? Não me lembro. Chego às urgências e não admito esperar. Estou a morrer. Espero. Faço exames. Mais tarde volto ao hotel. Acho que a conduzir.

Regressamos. Custa-me conduzir para baixo. Conto ao meu pai, uns dias depois. Estou a contar-lhe e de repente outra vez a garganta a apertar-se. Outra vez o coração, cavalo que se escapa do peito. Desta vez ambulância, outra vez urgência. Mais testes. Nada. O caminho a seguir foi o habitual: exames, provas de esforço, não me lembro exactamente do quê. Já passaram mais de dez anos e consigo escrever sobre isto sem problemas. Mas naquela altura não sabia o que tinha. Talvez continue sem saber. Mas desconfio. Nunca tinha ouvido falar de ataques de pânico. Ouvi pela primeira na rua, por acaso. Encontro uma amiga. Como estás?

O SOS para tomar quando acontecer. Se acontecer. O outro para tomar durante um período. Aquilo continua a acontecer. Agora que acho que sei o que é, consigo controlar-me. Na altura os ataques sucediam-se. Se fico parado numa fila de trânsito, tenho de abrir os vidros. Só assim respiro, penso. Na fila do refeitório tenho de segurar-me para não desmaiar. Disfarço sempre. Vou ao bolso pequeno das calças, tiro o SOS e coloco-o debaixo da língua. Espero que passe. Felizmente passa. Acalmo. Provavelmente hoje não se repetirá. Em minha casa nunca senti nada de extraordinário. No refeitório começa a ser difícil entrar. Conduzir passou a ser um acto difícil. Agora tenho vertigens. Na minha cabeça, os ataques de pânico foram consequência do acidente. Mas não sei se foi exactamente assim. E nem sei se de facto tive ataques de pânico. Acho que sim, que foi isso. Mas não tenho a certeza. Os comprimidos para equilibrar passaram. O SOS andou comigo no bolso semanas, depois meses, passaram anos. Um dia esqueci-me e não aconteceu nada. De vez em quando um ou dois iam para a máquina de lavar. Esqueci-me de comprar. Quase sem perceber, um dia já não precisava. A chave para controlar os ataques, penso eu agora, foi enfrentá-los. Quando aquilo nascia em mim, forçava-me a pensar

que era só um ataque. Estava bem e se me mantivesse calmo, continuaria bem. Ajudou partilhar. Fui falando nisto e foi surpreendente descobrir o número de pessoas perto de mim que já tinham tido ataques de pânico. Viviam com eles. Tinham aprendido a viver com eles. Felizmente, há anos que não vivo um desses momentos. Talvez por eles terem percebido que agora eu sou mais forte. Como dizem os fanfarrões, podem vir todos. Estou pronto.”

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Crónica

Playlist ► José Mário Branco (poemas de Alexandre O’Neill) “Perfilados do Medo” Rui Portulez (radialista)

rui cardoso martins (escritor)

Pegas contra a queimadura do medo

Num canto da minha sala, de costas para o limoeiro da varanda, tenho o último retrato do poeta Al Berto tirado pelo fotógrafo Paulo Nozolino. Só as mãos em cima da cara, numa faixa de luz, e um olho claríssimo que aproveita uma nesga aberta nos dedos. Ou o olho nos vigia, ou está a esconder-se, ou já não quer ver mais nada. A fotografia na minha sala é o original da capa de Horto de Incêndio, o último livro do Al Berto. Vou contar tudo da maneira mais simples para não assustar ninguém, muito menos a mim. Isto tem uma ordem mas não quer dizer que faça sentido. Conheci o Al Berto à noite no Bairro Alto, há trinta anos. Recordo-me de conversar com ele no Frágil, mas principalmente num bar escuro, o Sudoeste, nome adequado para a sua geografia atlântica, Sines. Eu nasci do outro lado do Alentejo mas passei em Sines muitas férias de Verão, só que depois estragaram a praia com a refinaria. Uma vez fui ver o Al Berto num recital com Mário Cesariny no Chiado, os dois liam muito bem os seus próprios poemas roucos e acho que chegaram a trocar. Eu não sabia que um dia me ia casar com uma das suas maiores amigas, a Tereza Coelho. Anos antes, em 1992, o Al Berto assinara para mim “um abraço amigo, sempre” na sua colectânea O Medo, com a bela capa colorida em que aparece como mártir ou místico à maneira de Caravaggio, encenada por Nozolino. Quando comecei a namorar, em 1994, ele chamou-me ao balcão: — Trata bem da Tereza. — Está bem. A Tereza, por essa altura, escrevia coisas que não ia publicar e que falavam de famílias normais, isto é, de “jantares estragados e portas a baterem”, ou sobre uma mulher que “sobreviveu a um acidente em princípio mortal”. Também inventava aforismos cómicos insuperáveis como “quando deus fecha uma porta, abre uma janela... no oitavo andar”. E a minha preferida, que até transformei em epígrafe de livro: “Não gosto de pessoas que se matam, acho uma falta de educação.” Era

uma das razões para o Al Berto e ela se darem bem, outra era andarem em grupo pelas roulottes quando Lisboa fechava, o Paulo aliás fotografou essa solidão, é um mestre nisso e em muito mais. E o Al Berto escreveu: pressente-se já a pequenez do país submerso quando atei a minha idade ao coração da terra era porque a morte se aproximara suicidei-me há muito se era isso que desejavam saber Entretanto aconteceram muitas coisas, como é habitual na chamada vida, e a Tereza e o Al Berto até morreram os dois. O Al Berto há vinte anos e a Tereza há oito. Ele tinha 48 anos e ela 49 no dia da morte. Como acabo de fazer 50, já vivi mais do que eles os dois, mas isto não são contas em que se deva pensar. Quando o Al Berto descobriu que tinha um linfoma continuou a viver como um valente, na minha opinião. Ele ria e era sarcástico com essas coisas tétricas, e com Portugal, como sempre, é a ideia que tenho. Isso era comovente. Quando eu e a Tereza pensámos em casar-nos e ter filhos, o Al Berto fez-nos uma visita doméstica, com uma boinazinha na cabeça, porque já não tinha aqueles fios de ouro compridos do cabelo. Veio com o JP e subiu as escadas com calma, era um terceiro andar sem elevador. Ainda há o sótão, mas ele sobe o último vão de madeira e oferece-nos uma prenda do mais útil que há: pegas de cozinha em crochet branco, duas debruadas a azul, “para o rapaz”, e duas debruadas a cor-de-rosa, “para a menina”. E pediu que fossem postas a uso na cozinha porque podiam dar jeito para não nos queimarmos. Uma bela prenda. O Al Berto morreu algum tempo depois e à Tereza custou-lhe muito vê-lo ser metido numa gaveta dos Prazeres. Tenho aqui as pegas à minha frente e a última foto do Al Berto na parede, impressa com luz em papel coberto de nitrato de prata, salvo erro. Também tenho o livro O Medo autografado. Estive um pouco aflito à procura dentro do livro porque,

fora a capa e, naturalmente, o cimo de cada página, a palavra medo é escassa no livro. Na verdade, só a encontrei uma vez e — é curioso — logo num poema dedicado ao amigo que depois nos ofereceu a foto: RETRATO DE FUGITIVO POR PAULO NOZOLINO caminha pela solidão nocturna dos quarto de hotel e de fotografia em fotografia chega exausto ao minucioso poema a preto e branco mas já não o surpreende a violenta visão do mundo este lento destroço que um líquido sussurro de prata revela a partir de iluminada fracção de segundo e bebe e ama e foge de si mesmo com a leica pronta a ferir com uma bala ecoando no fundo da memória um néon uma pedra uma arquitectura de luz e sombra ou um deserto onde se debruça para retocar os dias com um lápis na certeza que sobreviverá a estes perfeitos acidentes a estes restos de corpos a pouco e pouco turvos pelo tempo pelo sono ou pela melancolia mas regressa sempre à transumância das cidades quando a alba do flash prende o furtivo gesto sobre o papel fotográfico morre o misterioso fugitivo depois vem o medo que se desprende do olhar imobilizado e do rosto nasce uma vida de infinito caos Mas não é só o caos que nasce, e não é só o medo que vem, é tanta coisa boa que chega. Temos é de usar as pegas para não queimar as mãos.

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43%

“O meu sonho é ser piloto para conhecer o mundo”

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P das crianças sÍrias dizem temer pela sua segurança – as palavras guerra, ataques aéreos e explosões foram mencionadas frequentemente. “Quando os ataques aéreos chegavam perto da nossa casa, eu ficava muito assustado. Ficava assustado. O barulho era tanto que eu tapava os ouvidos. Ainda era mais novo do que agora. Tinha muito medo. Ainda tenho.” Hamza, 10 anos, Síria

15%

Os medos das crianças que fugiram da guerra são muito diferentes das que sempre viveram em paz? E quem cresce rodeado de violência continua a ter sonhos típicos de um miúdo?

23%

Aos dez anos, Hamza diz que o seu maior medo são os bombardeamentos, uma resposta muito comum entre as crianças sírias e que não passa pela cabeça de nenhum miúdo da Alemanha, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia, Coreia do Sul ou Canadá. Apesar disso, há miúdos nestes países com medo do terrorismo ou medos que resultam de conflitos que o seu país viveu antes de eles terem nascido. Quando lhes pedem para falar dos seus sonhos, muitos sírios falam do que querem ser quando crescerem, tal como as crianças dos outros seis países. Hamza, por exemplo, quer pilotar aviões. Pelo menos quatro em cada dez crianças sírias foram obrigadas a abandonar as suas casas nos últimos seis anos. Metade dos 4,8 milhões de refugiados sírios contabilizados pela ONU são crianças. A organização não governamental World Vision trabalha com muitos destes miúdos que atravessaram a fronteira em fuga da violência. No sexto aniversário do conflito, em Março, decidiu perguntar-lhes sobre os seus medos e sonhos. “Para compreender melhor como é que a exposição à violência influencia a visão que uma criança tem do mundo e a sua capacidade de permanecer optimista” fez as mesmas perguntas a miúdos de seis países que vivem em paz. Todas as crianças questionadas para o relatório Medos e Sonhos têm entre 7 e 17 anos.

50%

“Um dos meus sonhos é voltar a ver minha avó na Síria. Tenho saudades da minha avó e das minhas tias, só as quero voltar a ver e abraçar.” Jasmine, 8 anos, Síria

Kristen, 14 anos, Irlanda

“O que mais me assusta é a minha mãe não estar comigo.” Ye Kyung, 7 anos, Coreia do Sul

das crianças sul-coreanas dizem que sonham com uma profissão em particular – as ocupações mais populares são pop-star, reverendo e astronauta “O meu sonho é ser inventor e pastor” Jisun, 8 anos, Coreia do Sul

Emma, 12 anos, Alemanha

“O meu sonho é ser piloto para conhecer o mundo. Por exemplo, para visitar os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, qualquer sítio. Poder andar pelo mundo.”

22%

22% das crianças alemãs dizem que sonham com a paz e ajudarem os outros de alguma forma, enquanto 14% referem a paz e a igualdade como o maior sonho; a maioria, 59%, diz que o grande sonho é ter um bom emprego ou sucesso “O meu sonho é que todas as pessoas tenham uma vida feliz e não vivam com medo.” Talina, 12 anos, Alemanha

das crianças canadianas têm medo dos tubarões, das aranhas e do escuro “Tenho medo do escuro e de aranhas.” Maddy, 6 anos, Canadá

33% 38% 33% das crianças neozelandesas dizem temer pela sua segurança – guerra e morte são as palavras mais vezes mencionadas; mas a maioria dos miúdos do seu paÍs, 38%, dizem ter medo de alturas, aranhas ou tubarões “O meu medo é uma Nova Zelândia instável.” Lochie, 11 anos, Nova Zelândia

23%

Iskander, 9 anos, Austrália

dos miúdos sIrios sonham ter uma profissão especÍfica quando crescerem, tal como acontece com as crianças dos paÍses em paz

14%

“Do que tenho mais medo é da guerra porque é estranho que as pessoas sejam mortas sem razão.”

“O meu maior medo são pítons gigantes.”

Hamza, 10 anos, Síria

84%

das crianças alemãs dizem temer pela sua segurança – terrorismo e uma guerra atómica são as situações concretas mais mencionadas

das crianças australianas falam de medos tÍpicos nestas idades, como o medo do escuro e de animais como aranhas

33%

73%

64%

21%

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59%

Mohammed, 16 anos, Síria

“O meu maior medo é que a minha vida mude demasiado depressa.”

12%

50% das crianças sÍrias dizem sonhar com a paz e poderem regressar a casa, enquanto 12% querem voltar a ver familiares que deixaram para trás

“O meu maior medo é que alguma coisa aconteça às minhas irmãs mais novas.”

das crianças irlandesas têm medo da pobreza, da desigualdade e do racismo no mundo

das crianças sul-coreanas têm medo de monstros e fantasmas

das crianças sÍrias falam de perder algum membro da famÍlia como o seu principal medo

44% 44% das crianças irlandeses sonham com a felicidade e poderem ter uma famÍlia feliz no futuro; na Irlanda, a preocupação com a desigualdade surge em muitas respostas – 23% das crianças irlandesas têm medo da pobreza, da desigualdade e do racismo no mundo “Quero que os meus filhos vivam num mundo em que toda a gente é igual.” Kristen, 14 anos, Irlanda

43% das crianças australianas dizem sonhar com o que querem fazer quando crescerem – as respostas mais comuns são atleta profissional (basquetebol e crÍquete), médico e professor “O meu sonho é tornar-me bailarina profissional.” Erika, 9 anos, Austrália

65% das crianças canadianas sonham com uma profissão – a resposta mais comum é atleta (jogar nas ligas de basquetebol e de hóquei profissional são as opções mais referidas), polÍcia e médico “O meu sonho para quando crescer é ser papá.” Micah, 4 anos, Canadá

33%

30%

33% das crianças neozelandesas sonham com uma profissão em particular – a maioria diz que quer ser atleta ou médico; quase tantas, 30%, dizem sonhar com a paz no mundo e a igualdade “O meu sonho é ter boas notas e ser bom em desporto.” Lochie, 11 anos, Nova Zelândia


ensaio

antónio marujo (jornalista)

Playlist ► Ária de Tarquinius “Within This Frail Crucible of Light” da ópera de Benjamin Britten “The Rape of Lucretia” Vasco Mendonça (compositor)

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Religião: a liberdade contra o medo Uma experiência de liberdade que, muitas vezes, foi – e ainda é – embrulhada em medo ou mesmo no terror. Todas as religiões se fundam em actos de criação e liberdade, mas todas incluem, na sua história, episódios – por vezes largos – de destruição e medo. Curta viagem espiritual, através de medos vários, em direcção à liberdade

O medo nasceu, assim, quase ao mesmo tempo que a liberdade e a criação. Num texto sobre “O medo e a segurança na religião”, Bento Domingues recorda que já Lactâncio dizia que “sem medo não há religião”. E isso foi verdade (é ainda, muitas vezes) em questões como o modo de encarar a vida e a morte, a sexualidade, a participação ou a afirmação pessoal.

Nos primeiros relatos bíblicos, o medo aparece cedo. A narrativa, de carácter mitológico, pretende explicar o mundo: um Deus criador através de um acto de bondade; o homem e a mulher como semelhantes de Deus; a promessa da imortalidade e do paraíso, quebrada por uma transgressão. Surge aí o primeiro medo: “Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me...”, responde Adão, símbolo da humanidade inteira, ao seu Deus, depois de quebrar a promessa feita. O medo surge inicialmente como quebra da relação com o outro, como consequência da desconfiança. A ruptura com essa quebra e com a desconfiança dá-se precisamente através da fé. Não é por acaso que, logo depois do relato bíblico da criação, aparece Abraão, considerado por judeus, cristãos e muçulmanos como pai na fé. Será ele o iniciador de uma aventura em que o medo está definitivamente ausente, quando parte para uma terra que não sabe o que é. O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855), no seu livro “Temor e Tremor” (ed. Relógio d’Água), escreve: “Pela fé, partiu Abraão da terra dos seus pais e tornou-se estrangeiro na terra prometida. Deixou uma coisa para trás, levou outra consigo; deixou para trás o entendimento terreno e levou consigo a fé; caso contrário, nem sequer teria partido, antes teria pensado que tal coisa era de todo irrazoável.” A fé, em Deus ou num outro, é o que rompe o medo. Ela não mede a razoabilidade, as conveniências. Antes se atira em frente, sem medo, sem temor de enfrentar o estranho, o arriscado ou o que se ignora. Será disso também que Jesus vai falar, no seu Sermão da Montanha: “Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. (...) Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Não

valeis vós mais do que elas? (...) Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles.” (Mateus 6, 25-30) O medo enfrenta a própria morte. No budismo, a ultrapassagem do sofrimento é uma forma de recusar o medo. No islão, a “jihad” é sobretudo um caminho de luta interior, em que o crente se purifica de modo a ficar livre diante de Deus. Antes de morrer, Jesus diz aos seus discípulos: “Levantai-vos e não tenhais medo.” E depois, nos relatos das aparições aos seus seguidores após a ressurreição, Jesus começa por lhes dizer “Não tenhais medo.” Perante a morte ou perante a estranheza de uma nova forma de vida, a primeira coisa a vencer é sempre o medo. A expressão “Não tenhais medo” será retomada por João Paulo II, em 1978, na noite da sua eleição, desafiando um catolicismo envergonhado a sair de si mesmo – o que fez muito do seu sucesso mediático e da sua força como Papa. E foi assumida já muitas vezes por Francisco. Ainda no início de Abril de 2017, ao homenagear as vítimas dos sismos de 2012 no centro de Itália, o Papa Bergoglio afirmou: “Não nos deixemos aprisionar na tentação de ficar sozinhos e desconfiados, a lamentarmo-nos por tudo o que acontece; não cedamos à lógica inútil e inconsequente do medo, quando repetimos resignados que está tudo mal e já nada é como dantes.” Essa, acrescentou, é a lógica “do sepulcro”, que deve ser contrariada pelo espírito “da ressurreição do coração”. A história de Abraão, que não teve medo na aventura do desconhecido, inclui ainda, no entanto, um episódio em que o medo aflora de novo. Ao receber três misteriosos visitantes que lhe anunciam o nascimento de um filho, Abraão duvida e Sara ri da


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notícia. Deus, configurado nos visitantes, pergunta porque ri Sara. E ela, “cheia de medo”, nega, dizendo: “Não me ri.” Mas Deus diz-lhe: “Não! Tu riste-te mesmo.” Mulheres e homens foram feitos para a vida, escreve a teóloga católica italiana Bruna Costacurta. Portanto, também para o riso, mesmo o riso diante de Deus. No sufismo muçulmano, por exemplo, “a troça ainda é um caminho de sabedoria mística, uma forma de sacudir a religião do recitar, gesticular e repetir”, escrevia frei Bento Domingues numa das suas crónicas sobre o humor e o riso como antídotos contra um cristianismo fundado nos medos (“O Bom Humor de Deus e Outras Histórias”, ed. Temas e Debates, p. 482). A questão, para as pessoas, é que a sua condição de criatura as torna “constantemente” ameaçadas pela morte. “O medo é o sinal e a denúncia dessa fragilidade estrutural, mas ao mesmo tempo testemunha, no horror de morrer, a tendência radical do homem para viver e, portanto, também a sua necessidade constitutiva de ser salvo”, acrescenta Costacurta, num livro em que aprofunda o tema do medo na Bíblia hebraica, sob o título “La Vita Minacciata” (A Vida Ameaçada). O medo nasceu, assim, quase ao mesmo tempo que a liberdade e a criação. Num texto sobre “O medo e a segurança na religião”, Bento Domingues recorda que já Lactâncio dizia que “sem medo não há religião”. E isso foi verdade (é ainda, muitas vezes) em questões como o modo de encarar a vida e a morte, a sexualidade, a participação ou a afirmação pessoal. E o medo não deixou ninguém sossegado: “À suposta religião da tranquilidade – hinduísmo e budismo – opôs-se mais que nunca (séc. XIII-XVIII) a religião da ansiedade, própria do Ocidente”, escreve frei Bento (“Cadernos ISTA”, nº 1, 1996). “Do medo dos outros (turcos, idólatras, heréticos, bruxas, etc.) passou-se ao medo de si próprio, mediante a confissão e a febre dos escrúpulos e sacrilégios em série que ela fabricava ou intensificava.” A vida passou a ser um vale de lágrimas ou uma guerra, o inferno (em visões como as de Fátima, na religiosidade popular) traduzia o medo do castigo, Deus passou a ser o juiz mau que esperava o prevaricador para o punir...

Ilustração: Miguel Feraso Cabral

É verdade que hoje, em muitos casos, a situação inverteu-se: para muitos crentes (sobretudo cristãos, a religião actualmente mais perseguida no mundo) o medo passou a ser uma condição com a qual têm de viver, entre perseguições, massacres e marginalizações. Escrevia Bento Domingues no texto citado: “A religião é a viagem permanente (símbolo) que impede a fixação definitiva do provisório, a idolatria. Não uma viagem de evasão do quotidiano, mas de penetração nos seus abismos e de transfiguração.” Na Carta aos Gálatas, São Paulo dizia aos crentes: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão.” Mas uma tal mensagem pode ser identitária para crentes ou não-crentes. Ou não será o desafio da liberdade o apelo maior da humanidade?

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*https://vimeo.com/21731584

O que eu gostava de fazer escrevendo: ser capaz de olhar [...] os grandes mistérios da vida, o mistério da dor humana, mas também o mistério da humana persistência nesta mania, às vezes inexplicável, de lutar por um mundo que seja a casa de todos e não a casa de pouquinhos e o inferno da maioria. E outras coisas mais. A capacidade de beleza, a capacidade de formosura das pessoas mais simples, às vezes das pessoas mais singelas, que têm a insólita capacidade de formosura que, às vezes, se manifesta numa canção, num grafite, numa conversa qualquer, a que as crianças têm. [...] Temos de ver o que é uma criança, não é? São todas pagãs. [...] Nessa idade somos todos pagãos e, nessa idade, somos todos poetas. Depois o mundo ocupa-se de apequenar a nossa alma, isso a que chamamos crescimento, desenvolvimento. Excerto de entrevista a Eduardo Galeano no programa “Sangue Latino” do Canal Brasil*


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