Jornal Sujo_01

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Rio de Janeiro, abril de 2011 | Ano I | Número 1

jornalsujo@gmail.com

JornalSu j o o jornal literário dos alunos do Instituto de Letras da UERJ

Foto: Wikimedia Commons

entrevista poesias contos crônicas informação

Antonio Cicero Bruno Leandro Felipe Magni Marcella Carvalho Mauro Siqueira Rachel Ventura Victor Hugo Pereira Victor Ribeiro


editorial

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dicas suja

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A 9ª edição da Flip, ocorrerá entre os dias 6 e 10 de julho de 2011 A bienal do livro do Rio acontece dos dias 1 à 10 de setembro de 2011

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ste número é menos experimentação. No final do ano passado, visávamos começar um projeto de jornal literário para os alunos do curso de letras. Experimentamos, dentro das nossas possibilidades, o início de um espaço de publicações para as dezenas de alunos-escritores/escritores-alunos, dentre as várias licenciaturas do 11° andar. Agora, a prioridade é definir. Com a colaboração de pessoas interessadas em trabalhar, decidimos um layout, colunas fixas e objetivos mais sólidos para o Jornal Sujo; que, sendo assim, passa a ter a sua cara, com seus traços e feições definidos, e outras características a se construir. A nossa tentativa é disponibilizar espaço às variedades de gêneros literários produzidos por você, aluno do curso de letras. Entrevistas, contos, crônicas, poemas e informações estarão presentes no Jornal Sujo. Neste número, entrevistamos o poeta e filósofo Antonio Cícero, que fala na página 4 sobre as suas expectativas para a Oficina que ministra neste semestre. Temos poemas de alunos de várias licenciaturas, crônica de Bruno Lacerda, um texto de opinião do professor Victor Hugo Pereira – que disserta sobre “o futuro do livro” – e a crônica “Manual do isqueiro zen”, de Mauro Siqueira. Estamos apenas começando. O caminho até o estabelecimento de um jornal sólido no instituto de letras será bem demorado, cheio de obstáculos e incertezas. Mas reconhecemos a importância deste espaço, e conseguiremos solidificá-lo, certamente, com a ajuda de todos os interessados. Como disse o poeta Vinicius de Moraes: por mais longa que seja a caminhada, o mais importante é dar o primeiro passo.

Fique atento

Dênis Rubra | editor-chefe

Lembre-se de que é preciso muita sujeira para se criar uma bela flor. O porco tornou-se sujo apenas depois de entrar Jacob Cass em contato com o homem. Em estado selvagem, é um animal muito limpo. Só tem que seu jogo Pierre Loti é sujo e eu não me encaixo. Racionais mc’s Meu amor ora é sujo, ora é limpo. Erika Antonelli A vida é um filme arranhado e sujo. Nada há de mais sujo do que o amor-próprio. Tiago Oliveira Silva Marguerite Yourcenar

expediente Editor-chefe Dênis Rubra

Reportagem Marcella Carvalho

Projeto Gráfico MVS²

Agradecimentos Antonio Cicero, Victor Hugo Pereira e Italo Moriconi

Contato jornalsujo@gmail.com


catando contos Manual do isqueiro zen por Mauro Siqueira

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omeçou simples, eu estava no ônibus quase fazendo o mesmo que a jovem na minha frente fazia: cochilando num estado de abandono, ela, com a cabeça encostada na janela, dormia de dar inveja. Era meio-dia e a hora ruim dos almoços trazia a lentidão necessária para o trânsito – ideal para uma siesta. Alguém levantou perto de mim – e acho que foi isso que não me fez dormir. Nem vi o rosto da pessoa, apenas senti o vulto passar pelo canto do meu olho; olhei naturalmente para o lado, para o banco já vazio, nele um isqueiro prateado. Não tive a reação de chamar pelo seu dono ou dona, num automatismo com a sensação de estar sendo vigiado, olhei para os lados – ninguém dando a mínima, o trocador também cochilava de cabeça baixa... eu ainda fiquei olhando o isqueiro mexer e dançar no assento fundo e cinza do banco do ônibus, vibrando, trepidando por conta do deslocamento. Então mudei de lugar e peguei órfão para mim. Era um isqueiro pesado, aço escovado, tinha um desenho num dos lados – parecia uma miniatura de alguma coisa budista, não sei, era essa a impressão que me passava; um monge meditando e de sua cabeça saia luzes vermelhas e amarelas em várias direções, formando a moldura do desenho, era diferente... holográfico. Debaixo, o nome da marca: Zippo. Quanto será que valeria? Era uma marca famosa... Fiquei brincando com o isqueiro e seu peso, abrindo a tampa e fechando, abrindo e fechando, clic!..., clic!..., clic!..., clic! Me dei conta de que naquela altura da vida eu nunca fumara um cigarro, era até curioso, cresci numa época em que fumar era culturalmente aceito. As estrelas de Hollywood fumavam, meus pais fumavam, minha professora do primário provavelmente fumava... “Ei, amigo: tem um cigarro?” – demorei a perceber que era comigo, por ser nova aquela frase para mim. “Não, não... tenho não.” Era menina que cochilava – devia ter acordado como os clics-clics. Ela ficou sem entender então porque de eu ter um isqueiro, eu só consegui dizer a única coisa que faria razão naquele momento: “E que eu coleciono...” Ela deu um muxoxo e se virou mais uma vez para a janela e o vidro e meio que instantaneamente voltou a dormir. Não gosto que me deem muxoxos! Desde que era professor e pai, ai de quem fizesse “tchuks” para mim: era suspensão ou castigo! “O que você fez?”, perguntei já pegando a maluca pelo braço, “O

QUE VOCÊ FEZ?!”, disse gritando para que ela acordasse de uma vez, ela estava atônita – todos os poucos no ônibus ficaram. Fodam-se. Eu queria que ela se desculpasse que pedisse perdão pelo gesto mal-educado e inadmissível. “Vamos, diga, peça desculpas!”, “Mas o que eu fiz?! Eu só te pedi um cigarro cara, tá louco! Socorro! Motoristaa!”. O trocador, como ela, parecem que só acordam no susto. Mas não deixei ele sair do alto da sua cadeirinha: levei a mão a cintura no clássico gesto “tenho uma arma, seu babaca!”. É lógico, não tinha arma alguma, apenas o estojo dos meus óculos escuros, mas hoje o pavor social coletivo é tão grave que todos jurariam que eu carregava uma 747 (e todos saberiam exatamente o modelo da arma só de vê-la). O pânico só fez aumentar – e daí? O controle era meu. Estávamos numa pista movimentada e engarrafada, o ônibus parado só piorou o quadro... mas eu me sentia o mais sozinho dos homens. Queria dizer que não entendi os porquês de fazer o que fazia, mas no fundo do meu ser: EU SABIA. Eu estava farto. Simplesmente cansado de atuar num palco que não era meu, um texto artificial que não fora escrito por mim ou só para mim. Desde manhã à noite eu interpretava. Não entendia quais as sucessões de (acertos) (erros) cometidos por mim me levaram até ali... Tudo muito batido, não? Quantas vezes (fezes) vocês já não esbarram (espalharam) por ai como essa? Variações sobre o mesmo tema. Mais do mesmo... Monocórdio... Eu sei, também penso assim e estranhamente ali, num ônibus posto em pânico por mim, pessoas assustadas que certamente era tão atores e atrizes quanto eu, pensavam em uníssono que “Se eu sair dessa mudarei a minha vida.” E as mas sinceras: “Será que vou sair no Jornal Nacional?”. Essa era a chama que eu vi incendiar em cada íris daquele coletivo. E eu que provoquei aquilo... clic. Confesso orgulho. Fico imaginando o café da manhã deles amanhã...

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como naquele filme, de uns caras que brigavam. O isqueiro acendeu e eu ascendi de alguma forma, aconteceu de forma simples: olhando para o pequeno ícone no isqueiro Zippo, essa era a marca escrita no fundo dele, tive a vaga ideia de me reconhecer no gordinho sentado e os raios saídos da sua cabeça eram tão reais... Um estranho isqueiro zen, me dizendo o que fazer como num manual muito particular e esperando só um perdido como eu para entender sua mensagem e então, como num clarão, veio a minha ideia aquele protesto feito por um monge tibetando nos anos 60, uma das capas mais famosas da Life e também a capa do primeiro álbum do Rage Against The Machine. Zack de La Rocha tinha razão: “Anger is a gift”. “Quem esta na chuva é para se molhar não é?”, pensei comigo; e para falar a verdade eu já não estava mais aí para nada, o estado de abandono pertencia a mim; aquele isqueiro, como os raios saídos do monge me deu uma direção e um sentido, um caminho solitário para mim. Eu não tinha muito mais tempo, gritei para que todos descessem, inclusive a cochilona. Eles pareceram não acreditar e demoraram a reagir e como num cardume de sardinha, que se movimenta em sincronia instintiva, aquelas pessoas, antes letárgicas, ganharam ‹anima› e feito insetos tentavam sair por onde era possível. Foi bom ficar sozinho. Eu e meu isqueiro de marca, com raios vermelhos e amarelos saindo da cabeça do monge zen. Fiz como o desenho e me sentei em posição de meditação. Clic!... clic!... era mântrico aquele som do isqueiro e agora eu entendia o desenho... clic, ooom.., clic, ooommm, clic, oommm... clic. Não era uma chama azulada como dos isqueiros comuns, o meu era de marca. (Acho que tinha até cheiro...). Com ele ainda queimando o devolvi ao banco em que o encontrei, a chama rapidamente beijou o lugar e num piscar de olhos lambeu os bancos da frente em fogo; detrás, as borrachas e tiras da janela pingavam o plástico retorcido. Eu fui para o fundo do ônibus, esperando a minha vez de ser lambido também, no chão que já ia quente, me sentei feito o monge de cabeça de raios e em vez do ommm eu repeti um novo mantra: clic... clic... clic... Mauro Siqueira é graduado em letras pela UERJ, em 2008 publicou seu primeiro livro: De vermes e outros animais rastejantes e finaliza o segundo. Sempre viver cercado de livro e atualmente, trabalha como assistente editorial na EdUERJ.


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com as palavras...

Antonio Cicero

por Marcella Carvalho

Jornal Sujo - Quais são suas expectativas sonho de busca de liberdade por meio da para a oficina de poesia que esta escrita e a necessidade de nos apegarmos ministrando na UERJ? à rotina, por vezes embrutecedora.Como não deixar que essa resistente busca por Antonio Cicero - Espero que, a partir da uma subjetividade não se perca? minha experiência de leitura, de escrita e de reflexão sobre poesia, eu consiga mostrar aos AC - Vou citar o francês Stéphane Hessel alunos certas atitudes, técnicas e informações que, com 93 anos, escreveu um livro que lhes sejam úteis e estimulantes para a chamado “Indignai-vos”, que se tornou apreciação e, no caso dos que escrevem, para best-seller na França e na Europa em geral. a produção de poesia. Quando o entrevistador lhe perguntou onde, com essa idade, ele encontra forças, JS - Qual a importância de uma oficina de Hessel respondeu que sabe cerca de cem poesia para a faculdade de letras? poemas de cor. “Quando me aborreço ou atravesso momentos difíceis”, diz ele, AC - Creio que a oficina tem a função de, “basta-me recitar um deles para me reerguer. por assim dizer, pôr o aluno tanto com a Ao lado de minha disciplina intelectual, cabeça quanto com a mão na massa. apoio-me no imaginário, na fantasia. Busco outro ritmo de pensamento”. É isso que JS - Como espera trabalhar com os alunos? eu diria: para não embrutecer, busque, na poesia – e na arte em geral – outros ritmos AC - Por um lado, espero conversar com eles de pensamento. sobre a poesia em geral e sobre alguns poemas, em particular. Entre estes, alguns serão clássicos, outros contemporâneos; destes últimos, alguns serão poemas de autores já amplamente reconhecidos e outros serão É possível mostrar alguns dos próprios alunos que queiram discutir a caminhos que podem sua própria produção. Além disso, proporei determinadas tarefas ou exercícios aos alunos ser estimulantes, mostrar que pretendem escrever, e conversarei sobre algumas armadilhas que aquilo que resultar disso.

AC - É possível mostrar alguns caminhos que podem ser estimulantes, mostrar algumas armadilhas que devem ser evitadas etc. Contudo, a poesia só é boa quando é excepcional; e nada pode garantir que, a partir de um curso – ou de seja lá o que for –, uma pessoa passará a escrever poesia excepcional. JS - O que diria para nós universitários, que estamos sempre oscilando entre o

JS - É possível ensinar poesia?

devem ser evitadas etc. Contudo, a poesia só é boa quando é excepcional Antonio Cicero é poeta, filósofo e escritor brasileiro. Seus poemas fazem parte de importantes antologias, entre as quais Os cem melhores poemas brasileiros do século XX, organizada por Italo Moriconi (Objetiva, 2001). É também autor de inúmeras letras de canções, tendo parceiros como Marina Lima (sua irmã), Adriana Calcanhotto e João Bosco, entre outros.

amost®a g®átis Guardar Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro Do que um pássaro sem vôos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar.

Alguns versos As letras brancas de alguns versos me espreitam em pé no fundo azul de uma tela atrás da qual luz natural adentra a janela por onde ao levantar quase nada o olhar vejo o sol aberto amarelar as folhas da acácia em alvoroço: Marcelo está para chegar. E de repente, de fora do presente, pareço apenas lembrar disso tudo como de algo que não há de retornar jamais e em lágrimas exulto de sentir falta justamente da tarde que me banha e escorre rumo ao mar sem margens de cujo fundo veio para ser mundo e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.

Simbiose Sou seu poeta só Só em você descubro a poesia Que era minha já Mas eu não via. Só eu sou seu poeta Só eu revelo a poesia sua e à noite indiscreta você de lua.

Fonte: www.uol.com.br/antoniocicero


sujeira-mor O futuro do livro é quase certo... por Victor Hugo Pereira

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ara pensar o futuro do livro por que não pensar em outras sucessivas transformações e multiplicações de meios e suportes da comunicação? O que ocorreu quando surgiu a fotografia? Será que não se suspeitou que poderia substituir a pintura, já que nesta, há alguns séculos, dominava a tradição figurativa? É bom lembrar, no entanto, que embora não a tenha feito desaparecer, a fotografia exerceu pressões para que se repensasse a pintura e se conferisse a ela funções específicas, se exigisse dela o desenvolvimento de uma linguagem particular. O cinema que explora a narrativa de ficção também coloca ainda questões em sua interface com o romance. Essas questões suscitam um debate sobre a visualidade, seu estatuto, limites e perigos, que remonta à condenação bíblica da imagem e se imiscui nas discussões sobre os perigos da cultura midiática. Em uma das conferências de Italo Calvino, na coletânea denominada Seis propostas para o próximo milênio, aquela denominada “Visibilidade”, encontra-se um depoimento interessante sobre as dúvidas que reinavam desde meados do século XX sobre os prejuízos possíveis ao desenvolvimento da imaginação, principalmente entre as crianças, ocasionados pela expansão de uma cultura de exploração da imagem, na qual se incluía a ampla difusão das revistas de histórias em quadrinhos. Temia-se que o fornecimento da imagem correspondente ao texto narrado pudesse inibir o potencial inventivo do receptor. Certamente um argumento que pode ser dirigido para acusar o cinema do mesmo empobrecimento. O que não dizer da sequência ininterrupta de imagens e mensagens que assolam o espectador televisivo, em contraste até mesmo com os novos procedimentos trazidos pela linguagem cinematográfica – que tantas questões suscitaram a quem pensava sobre a reviravolta da cultura pela transformação técnica no século XX, como Walter Benjamin? E, nessa sucessão de transformações, chegamos ao computador e aos novos usos que proporciona de todas essas linguagens e que, ultimamente, inclui a ousadia de armazenar e tornar disponíveis centenas de livros e ainda acrescentar a eles recursos inacessíveis com o suporte em papel – e substituindo o espaço físico de uma estante volumosa de biblioteca pelo equivalente ao de um livro. Para discutir se essa transformação,

capaz de baratear (em futuro próximo) o acesso ao conteúdo de um imenso volume da produção cultural letrada, substituirá o livro, é bom lembrar, em primeiro lugar, que esse veículo ou artefato contém o livro. Ou seja, remete-se a esse suporte original, é utilizado em continuidade a ele (e não em oposição), pois serve para dar acesso ao que foi produzido em livro. Em segundo lugar, não parece haver diferença grande entre o processo de transformações que ocorreu com outros suportes e meios de comunicação: domina na história dessas mudanças uma lógica cumulativa, em que, no máximo, especializam-se funções, desenvolvemse potencialidades, mas uma inovação não elimina totalmente o veículo tradicional. Por exemplo, na relação entre o jornal e a internet, pode-se constatar uma diminuição na venda de jornais, e o surgimento de uma nova linguagem jornalística (de notícia e comentário) específica da mídia eletrônica – assim como ocorreu na televisão, com o espaço do noticiário e dos programas de debate opinativo. Para voltar ao livro, já se percebe, nas experiências que vêm chegando ao mercado, explorações específicas de novos potenciais, como a do “link” em histórias infantis – o que poderia ser muito bem utilizado, por exemplo, em publicações de livros de artes visuais, remetendo ao espaço do museu ou da coleção de um mesmo artista. Veja-se, nesse exemplo, que não se elimina o museu, mas se abre uma nova utilização do mesmo. A relação do leitor, desenvolvida em tradição de séculos, com uma série de práticas de leitura, não parece tender a uma eliminação (pelo menos por algumas décadas), por questões visuais, por uma adaptação do receptor maior ou menor à letra sobre o papel ou sobre a tela; por motivações táteis, sensoriais (por que não? o hábito de manipular o objeto livro enquanto se solta o raciocínio e a imaginação) e emocionais (associações de memória a esse objeto privilegiado da cultura), pelo menos por algumas gerações que tiveram o contato com a educação e o letramento com a presença do papel. Ocorre-me, agora, um argumento contrário a essas últimas considerações, a de que a técnica que se desenvolveu de utilização do papel para fabricar o livro fez declinar e sair pratica-

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mente de uso os pesados manuscritos anteriores à era da imprensa. Se isso ocorrer com o suporte de papel impresso – cujo desaparecimento parece ameaçar apocalipticamente muitos de nós – será sinal de que uma nova técnica substituiu, com êxito, as vantagens de portabilidade e o contato sensório com esse veículo tradicional da escrita e da difusão da cultura. Como lembrava Umberto Eco, diante de tantas transformações culturais ocorridas no século XX, parece ainda dominar a cena cultural o embate entre os “apocalípticos” e os “integrados” – aqueles que em tudo vêem sinais ameaçadores de decadência e aqueles que relevam apenas o lado positivo dessas transformações. Quanto a essa inovação, tendo a me distanciar dos primeiros, porque suspeito de que o temor das mudanças na difusão da cultura – no caso, no acesso ao livro - corresponda ao desejo de manter os mesmos mecanismos que preservam marcas de prestígio e privilégios... Por que lamentar ou temer tanto essa mudança nos suportes da leitura ou até mesmo a substituição do livro por outro veículo que se torne, em pouco tempo, mais barato e acessível? Vamos dar um voto de confiança de que ela pode trazer benefícios – como a ampliação ao acesso a idéias, sensações e sonhos a serem compartilhados por um espectro muito maior de seres humanos.

Victor Hugo Pereira é professor-adjunto do Instituto de Letras, possui diversos livros publicados, entre eles A Musa Carrancuda - teatro e Poder no Estado Novo (FGV, 1998) e Teatro e Dança como expereiência comunitária (Eduerj, 2009).


sujeira poética

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Palavras

Eu de lá

por Rachel Ventura

por Felipe Magni

Jogada assim, no branco cru Do papel em que escrevo Sei que nada significas, Sei que nada simbolizas, Sem os olhos meus. Olhos de analisar e traduzir, Olhos de decodificar, Esses que lanço a ti.

Paralelos por Felipe Magni

Ah, Palavra Me digas tu, que não me podes mentir (posto que és reflexo de mim), Me digas como irei tirar de mim Toda e qualquer significação? Me digas como e de que matéria Seria feita a minha Poesia!

Na fresta do tempo mora um tempo; que pára para anunciar que o tempo pode ser velho e mata, que abriga gente e anda e pára. De perto morre, de longe apenas espera o tempo, e ora vai, ora volta. É tempo, e faz tempo que não vejo a fresta do tempo

Se mesmo as mais ricas rimas Por si sós, a nada enfeitam. Se mesmo a mais livre métrica É sempre presa a tantos conceitos, Amarrada sempre a cegos nós de significação. Se a mais concreta forma é pura representação... Palavra,

marchei meu ensejo, abdiquei dos mais sólidos para confessar que fui. curioso. acabei assim, por expulso de mim, solto, me testemunhando em detalhes. falei a ele com tal voracidade meia dúzia de lembranças, tão desconexas, desonestas ao cenário, que exitei por novamente enxergar ; talvez quisesse eu que fosse qualquer roteiro imposto pelas cobertas, num devaneio, ou talvez fosse mesmo eu aquela pessoa. um era. outro também eu. e, mareado pelo tom fatigante, instigava a um assunto a fim de certezas, de praxe ao singelo, como de comum aos dois. e quando já se passava das cinco me conheci melhor, percebi que era eu, me abraçando por tê-lo encontrado. hoje sou um o eu, de poucos e brancos na cabeça, certo de somente um. e sempre que me encontro, imploro por enxergar. me receio de que eu - ou ele - me leia tal roteiro na sua página final, afirmando saudade e querendo outro abraço.

A moça coma bíblia na mão

por Marcella Carvalho

Arrebenta as cordas que atam minhas mãos. Liberta a minha alma para o que é vazio De entendimento e associação. Me leva a esse não-lugar, tão sombrio... Em que trem eu devo entrar? Em que verão irei chegar? Em que estação ficou esquecida A Poesia?...

Rasgos

por Victor Ribeiro Quando te vi luziu-me uma centelha. Perdi o rumo, o chão: perdi a fala. Fiz-me cortês e, então, p’ra conquistá-la Rasguei uns versos com tinta vermelha Mas foi em vão tal poesia torta Porque não te iludiam os pronomes Para que me notasses, nossos nomes Rasguei na casca duma árvore morta E vendo qu’inda tinha fracassado, Tentei um método desesperado: Rasguei a pele em tatuagem rasa! E ao perceber que não serias minha Te amei da forma como me convinha: Rasguei-te o peito e te pus toda em brasa!

Recebera-a de uma evangélica qualquer Com a ousadia e o desleixo de um hippie E após levantar os pés Efeito da inércia de sentar-se Eis que punha a mão sobre o bendito livro Diminutas descargas de risos Abafadas com ar de respeito Me intrigava, tal qual um menino Que quer mexer no tapa-olho da pirataria Será que jurava amar ardentemente? Ou pecar como um feijão no dente? Ou rezar como alegoria Para todas as baixarias Condensadas naquele momento Assim como Jesus no Horto Ou para consertar o pé torto Do seu filho que está para nascer? Ou será que prepara-se para beber O seu cálice mais sofrido E procura Jesus como amigo Um parceiro de mesa de bar Não sei nem quero explicar Atiro essa dúvida ao mar Mas, anjos! Rogo-lhes! Sustentem o mundo enquanto contemplo a moça com a bíblia na mão.


espaço crônico

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Os homens invisíveis por Bruno Leandro

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stava eu dia desses passando pelas ruas do Rio de Janeiro, quando encontrei um homem invisível. Estava lá, na minha frente, eu juro! Daí, vocês vêm e me perguntam: mas como, de que maneira, você conseguiu ver um homem invisível? Se é invisível, não dá para ver, não é mesmo? Mas eu explico: quantos de nós já viram os homens que colocam e tiram os cartazes dos “outdoors”? E os letreiros dos teatros e cinemas de bairro? (Sim, eu sei que quase não existem mais cinemas de bairro, mas ainda estão por aí.) Ou, quem sabe, os montadores de vitrines? São essas as pessoas invisíveis de quem falo. Pessoas que fazem um trabalho importante, que nós não somos acostumados a ver. Alguns invisíveis, pelo menos hoje em dia, já se tornaram visíveis, como por exemplo, os garis, os funcionários da limpeza, os responsáveis por obras dentro de shoppings e, pasmem, até mesmo os entregadores que, se antes entravam pelas portas dos fundos e só eram vistos pelos funcionários, hoje em dia estão aí, para quem quiser, ou não, os ver. Eu mesmo nunca havia me perguntado quem fazia a maioria desses trabalhos. Quer dizer, obviamente nunca acreditei que tudo ficava pronto em um passe de mágica, mas também nunca me preocupei em descobrir mais sobre isso. Até que, pela primeira vez, eu vi um invisível. Na verdade, três. Eram os responsáveis por trocar “outdoors”. Aliás, será que existe um nome pra quem faz isso?

descubra

Será que essa profissão é chamada de “trocador de cartazes” na carteira profissional do indivíduo? Acho que eu nunca vou saber. A bem da verdade, não sei sequer se me interesso. Afinal, quantos de nós se interessam pelos invisíveis? Acho que eu me interesso, sim, pelo menos um pouco, ao menos o suficiente para escrever este pequeno texto sobre eles, para lembramos que existem. E o meu motivo de escrever, seria acaso um pedido de “salvem os invisíveis”? Ou, quem sabe, “prestem atenção e não esqueçam os invisíveis”? Na verdade, não creio que seja nada disso, pois os invisíveis realmente não são para serem vistos por nós, mortais comuns. Na verdade, o meu brado é mais simples, menos emblemático. Consiste apenas no seguinte pedido: saibam que os invisíveis existem, mas, quando forem tratar com eles, lembrem que, antes de invisíveis, são pessoas de carne e osso, assim como eu e você. E quanto ao invisível de quem falei no início do texto? Estava nas ruas, fazendo o seu trabalho. E eu, em um ônibus, seguindo até o meu destino. Nós nunca nos falamos, nem chegamos a nos conhecer, e, enquanto eu percebi a existência daquele homem, ele, um dos invisíveis, nunca soube da minha, eu, um dos visíveis.


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livros|ideias

ESTUDOS GARRETTIANOS

EUCLIDES DA CUNHA - presente e plural

Este livro apresenta aspectos da vida de João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, pontuando seu lugar nas transformações ocorridas na literatura portuguesa do início do século XIX. Escrito pela pesquisadora Ofélia Paiva Monteiro, catedrática da Universidade do Porto, a obra não se furta de contextualizar a produção desse renomado escritor português com a história de seu tempo, relatando sobre as contingências sociais, política e culturais que influenciaram a sua produção artística. Destaque para a influência do pensamento romântico europeu e do liberalismo sobre Almeida Garrett que o conduziram a ocupar cargos políticos, atuar como jornalista, além de construir a sua identidade de escritor.

O livro de Anélia Montechiari Pietrani reconhece a importância do legado que nos deixou o escritor, jornalista e engenheiro Euclides da Cunha. A obra expõe a forma com que, em suas obras, o autor demonstra sua paixão pela ciência, história, engenharia; num exercício que reúne técnica, arte, estilo e sensibilidade. Sua vasta obra, desde o monumental Os sertões, atravessando as Ondas poéticas, até os documentais Contrastes e confrontos; À margem da história, dentre outros, abre-nos à reflexão sobre a formação e construção do complexo processo literário brasileiro, especialmente no que concerne às teorias críticas voltadas a discutir os vínculos entre literatura e sociedade.

Livro ou livro-me

Infância e Literatura

Ofélia Paiva Monteiro

Frederico Coelho

A estrutura do livro se monta sobre duas atividades e um desejo: o ler, os escritos e o livro. No interior desse percurso, costurando a aventura intelectual que alimentava o cotidiano do artista em seus ninhos-gabinetes de criação, o diálogo franco, produtivo e caótico com quatro personagens fundamentais da vida cultural brasileira: os irmãos Campos, Silviano Santiago e Wally Salomão. De cada um, tendo em vista as diferenças de temperamento e formação, Oiticica absorvia energia poética e incorporava inventividade e rigor ao seu desejo de escrita, à sua ânsia de leitura, ao seu prazer de pensar/criar/viver no limite da experimentação e do exercício da liberdade.

Anélia Montechiari Pietrani

Márcia Cabral

Este livro destina-se a uma reflexão sobre a produção de literatura dedicada ao público infantil produzidos no Brasil nas últimas décadas. Tendo como objeto de análise a Coleção Estrelinha, umas das principais publicações do gênero, a professora Márcia Cabral procura evidenciar concepções de infância, valores ideológicos e fundamentos estéticos contidos na obra, utilizando como ferramenta de análise algumas referencias conceituais, como a palavra elevada ao status de signo ideológico defendida por Bakhtin e a compreensão histórica e cultural da infância postulada por Walter Benjamim.


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