De Vermes & Outros Animais Rastejanes

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De vermes e outros animais rastejantes Mauro Siqueira

Rio de Janeiro, 2008


Agradecimentos Grande parte de um livro longamente gestado e recém acabado, como este, não é somente de competência e propriedade de quem o criou; também o é daqueles que das mais variadas formas colaboraram com o seu artífice, seja opinando sobre apenas uma personagem ou uma história inteira; discutindo ou corrigindo passagens; gostado ou não de um conto; que propuseram uma ou outra reescritura, uma ou outra modificação aqui e ali ou que humildemente apenas LERAM. E assim sem saber diziam: “siga em frente”, dando-me a segurança necessária para continuar pelo caminho. A esses amigos, meu muito sincero obrigado e respeito. De forma que, e como não poderia deixar de ser, De vermes e outros animais rastejantes também é: Juliana Figueiredo, Dóra da Silva Alves, Diego Alves Marques, Daniel da Silva Baraúna, Gabriela da Silva Baraúna, Átila Bezerra, Aytel Marcelo Teixeira, Camila Mourão Dias, Andréa Soares Dutra, Ricardo Wagner, Bruna Mitrano, Elisa “Gaivota” Corrêa, Elisa Tavares Pires, Ricardo Freitas, Julianna Bonfim, Taissa Suzanne Souza, José Alexandre Oliveira, Karen Alves, Luísa Guimarães, Profª Fernanda Freitas, Profª Henriqueta do Couto Prado Valladares, Profº Italo Moriconi, Alexandre “Raisamsung” Moura, Andréa Souza, Carlos Henrique dos Santos, Helena Lúcia Ferreira, Edimar Ferreira, Diego Maruff, Emerson & Daniele Lima, Cláudia & André Rocha Nunes, Fabiana Ferreira, Márcio Souza, Geanini Pena, Yoko Yogi, Manoela “Çodadis” Porto Rónai e a TODOS AQUELES QUE POR RAZÕES ESPACIAIS E MNEMÔNICAS NÃO AQUI ESTÃO. Um forte abraço.


Índice Apresentação

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Algo de “noir”

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Dilema ou 47 Segundos

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Ontem dormi tarde.

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O “Carona”

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4 x 1

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Sonambulismo À Carioca

37

Uma Lua...

39

Harmonia e evolução

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Dor-De-Cabeça Às Duas E Trinta E Cinco Da Manhã Em Copacabana

43

Ojos Niegros

45

A Estranha, Incrível E Singular Narrativa Do Sr. Silva 47 O que seria do azul se todos gostassem de rosa?

55

Post-it®

61

7


F... EM BERLIM

63

Até a última gota

69

Um Conto de InSônia

75

Femina Pulchra

77

Horário de Verão

81

Um Conto de Natal

89

Filosofia Barata

95

[si.mu.la.cro]

97

Lullaby

101

Sala de Edição

103

Escada Espiral

107

Um atalho para o bosque

115

De Vermes e animais rastejantes

8

119 129


Apresentação Nos contos do livro de De vermes e outros animais rastejantes, os sentimentos dos leitores dançam em balé de rodopios incessantes, múltiplos e díspares. Estes sentimentos são extremamente fortes e contundentes. Nas linhas dos contos escritos por Mauro Vinícius S. Siqueira, muitas vezes, os leitores ficam suspensos por um fio tênue no ar, como fazem os artistas equilibristas, andando em corda bamba, entre verdade/mentira, realidade/ficção, vida/morte, sonho/realidade, frieza/sensibilidade. Outras vezes, os leitores permanecem estatelados no chão em busca de alguma solução, que não se configura, para a vida dos personagens que o autor cria. Mas tais soluções não vêm. A escrita não se completa nem mesmo no papel. Há uma última palavra que está incompleta no final do conto “Um atalho para o bosque”. O fim se transmuta em início com a palavra que não acaba – “escre”. Abrem-se dessa maneira possibilidades de infinitas leituras, ou vários atalhos nos bosques das ficções criadas por Mauro Siqueira. Há ainda os contos do livro que podem ser lidos de trás para frente ou vice-versa (“Dor-de-cabeça às duas e trinta e cinco da manhã em Copacabana”), desafiando os leitores acomodados à ordem que impõe a língua, que o autor, embora a use, também a subverte. Lê-se em papéis diferentes, em bilhetes rápidos, como os do Post-it® mensa11


gens subliminares. Desfilam títulos em que as letras cedem lugar às imagens que se nublam entre o possível e o impossível, no conto. Aparecem, ao invés de letras, desenhos tomando conta da cena, que se torna por vezes real, por vezes, onírica. No conto , o leitor se desconserta, novamente, quando lê as últimas considerações do personagem, em diálogo com a esposa – e que não convém antecipar. Nos pequenos grandes contos do autor, reconhecemos ainda a qualidade de um tema significativo que, segundo diz Júlio Cortázar, em “alguns aspectos do conto” deverá ser comparado a “um tremor dentro de um cristal”. Foi o que esta leitora particular sentiu com a leitura de “Lullaby”. Deixo assim o convite para alguns estremecimentos no momento do ponto final que, por sua vez, desencadeia uma sucessão de emoções contraditórias nos seus leitores, incitando-os às releituras do mesmo conto. Leiam saltando trechos dos contos de De vermes e outros animais rastejantes e o prazer da leitura do livro não se completará. Ao contrário, os leitores dos textos escritos serão construídos pelos discursos que lêem. As histórias não estão prontas, porque não pré-existem à obra. São textos de fruição, como os quer Roland Barthes. Porque abalam certezas que trazem os leitores, desfiguram rostos de contornos nítidos de personagens, de frases prontas e de histórias com finais previstos. Terão de ler tudo, sem a possibilidade de saltar algum trecho ou parágrafo. Alguns contos só têm um. “De vermes e outros animais rastejan12


tes”, conto que dá título ao livro, tem duas partes. A parte II que fecha (ou abre?) com a citação de F. Kafka – “quando certa manhã Gregor Samsa acordou de uma noite de sonhos intranqüilos, viu-se metamorfoseado num...”, revela a leitura apreciada pelo autor-leitor-Mauro Siqueira. Tornase significativamente único tal parágrafo ainda porque remete a todo o livro de contos De vermes e outros animais rastejantes que a editora Multifoco nos apresenta, com esta publicação. É ainda a reunião de contos assinados por Mauro que nos faz pensar na possibilidade que nos dá a literatura de conhecer realidades outras, vozes outras do Outro e de outros animais rastejantes... Por isso mesmo as leituras dos contos de Mauro Siqueira trazem aos leitores a sensação de estarem lendo em uma espécie de língua estrangeira, no sentido que Gilles Deleuze afirma a seguir: “a literatura traça uma espécie de língua estrangeira que não é outra língua, nem um dialeto regional redescoberto... mas uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante”. Não adiemos o feitiço desta leitura. Encaremos a “Escada Espiral”, nas narrativas dos contos de De vermes e outros animais rastejantes..., que nos leva muitas vezes a estranhas paisagens à beira de um penhasco. Henriqueta do C. Prado Valladares (Profª Drª de Teoria da Literatura/ UERJ)

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Mauro Siqueira

Ontem dormi tarde. ATO 1 Sentado ali no balcão, diante do café e do bolinho Ana Maria ele voava em seus pensamentos: “Todos os dias são como os anteriores: entro, peço o café e, antes que esfrie, engulo-o rápido; na saída encontro o mesmo guarda barrigudo e armado com o .38 velho e enferrujado no coldre, sigo pro banco do outro lado da rua e nem sequer olho para os clientes que atendo, que, um a um, como vacas sagradas hindus, vêm de uma fila que nunca acaba. Ainda, sou perseguido pelo gerente; a loira dos meus sonhos do guichê ao lado me trata como uma das samambaias que enfeitam o banco e nem sabe que existo.” Nem ao menos havia tocado o café. Já estava ali parado há uns cinco minutos. Vestido como um típico bancário – camisa branca, gravata, cabelos alinhados, o perfeito engomadinho – resignado em sua condição. Estava pronto para uma revolução. Estava pronto para despertar. Levou a xícara à boca, parou no meio do caminho. Nos décimos de segundo decorridos entre o balcão e ato de beber, uma idéia desconcertante queimou seu cérebro. “Por que não me levanto, tomo a arma daquele guarda, mato meu gerente e arrasto aquela garota pelos cabelos e a levo comigo?” 23


De vermes e outros animais rastejantes

Ele observa com atenção a xícara de café em suas mãos, olha ao redor. Toda aquela perfeição cotidiana o incomoda. Tão perfeita quanto a xícara. Ele estava pronto para uma revolução.“Por que não?”, indaga-se. Estava pronto para despertar. Num gesto rápido ele levanta e arremessa todas suas frustrações junto com a xícara que, em milhões de pedaços espatifa-se contra a parede de azulejos brancos impecáveis, tão brancos quanto a xícara, tão brancos como sua camisa. Tão brancos como sua vida... O café que ele bebia todos os dias escorria, agora, numa enorme mancha pela parede... como sangue.

ATO 2 “Vai ser só uma festa”, disseram. No dia seguinte, segunda-feira teria de estar às oito horas no banco. “Será só um encontro de amigos, coisa pequena”, insistiam. Três e meia da manhã e eu ainda não tinha voltado pra casa. Jack Daniels, José Cuervo, ecstasy, especial K e Drum ‘n’ bass foram alguns dos convidados da festinha. No dia seguinte, no balcão da lanchonete onde sempre tomo o café, ainda mastigado, ainda entorpecido, fui incomodado pelo atendente que sempre me via arrumado e bem vestido; perguntando: “O que é que você tem hoje?” “Ontem, dormi tarde”, respondi, muito depois, quando voltou com meu café. 24


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ATO 3 A ressaca ferrava com a mente dele, talvez a sensação de repetição. Todos os gestos daquele dia pareciam tão iguais aos outros feitos por ele que... “Dejà vu”, pensou, lembrou-se de Matrix, mas também se lembrou de viver numa eterna rotina, como uma máquina a dar voltas numa pista redonda, um hamster na roda da gaiola – sempre em movimento e sempre estagnado; ou um daqueles macacos que foram ao espaço: “push the button”, “pull the switch”, “turn the key”. Uma peça branca de um quebra-cabeças também branco... como sua xícara. Olhou para o relógio na parede: o ponteiro parecia retroceder. Olhou para o seu: parecia parado. “Foda-se!”, pensou em voz alta mais uma vez. “Bom dia!”, disse o guarda barrigudo ao passar por ele. Seus ouvidos doeram ao ouvi-lo. Sentia-se desconfortável naquela manhã, sentia-se diferente, deslocado, por que não dizer outro. Uma inquietação pertinente crescia dentro dele, tomando conta. Um grito primal que do âmago mais escondido, surge pouco a pouco reivindicando LIBERDADE. A seu ver tudo parecia fora do lugar, pequenos detalhes que mal ele mesmo sabia. “Sonho?”, uma possibilidade. “Realidade?”, outra possibilidade. Idéias estranhas passavam por sua cabeça, dominavam-no... guardas, loiras, armas, gerentes... muita merda numa cabeça cheia dela. Ele estava pronto para uma revolução. Estava pronto para o despertar. Já ia bebendo o café quando pensou: “Por que não?” 25



4x1 “Quero fazer certo dessa vez”, disse em alto e bom som... se houvesse alguém para ouvi-lo – o cão só levantou as orelhas e tornou abaixar a cabeça e aninhá-la nas patas. Carregava o revólver, herança do seu pai, com quatro balas de um tambor de cinco – quatro por um. Naquele muquifo que escolhera, ninguém, senão o cachorro (Brás. Leu o nome numa vitrine) que passou a segui-lo, por solidão ou piedade, inevitavelmente seria a testemunha da sua “coragem”: ouviria o tiro, afinal era quatro por um. Eram apenas ele, o cão, a arma (e as balas), a mesa bamba, um caixote que virara cadeira e a pinga e nada mais relevante – quase um quadro naïf. Sentado, esfregava as mãos na calça rota num misto de ansiedade e frio que não saberia determinar onde começava um ou outro; na mesa coxa a arma herdada brilhava de limpa, “Uma relíquia de guerra”, dizia seu pai. “Quatro por um”, pensava ele, roleta iraquiana, como apelidaram aquele jogo novo e que muitos americanos jogaram durante a Guerra do Golfo, há dez anos ou mais. Agora era ele: quatro por um; uma chance em quatro de continuar vivo e, assim, dar um novo sentido à vitae mediocris que vinha levando há anos sem mesmo saber o porquê; quatro chances em uma de dar cabo de vez àquela existência que não fará falta a ninguém, nem mesmo ao cachorro. Pegou a arma, a pinga, e tomou o resto no gargalo... suas mãos tremiam e não era frio, girou 33


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o tambor e antes que parasse o empurrou dizendo: “Alea jacta est”, mostrando um pouco de erudição inútil, que não lhe servia para nada a não ser tornar o momento, talvez, solene, quiçá lírico – para ele e para o cão? –; pôs a arma primeiro na têmpora direita, a arma estava desconfortável, lembrou-se de que seu pai dissera: “Filho, olha, está vendo essa empunhadura? É pra gente canhota....”; mudou a arma de mão, agora estava desconfortável para ele­ – ficava nervoso –, o cão percebendo a agitação desistiu de dormir e sentou-se sobre as patas traseiras para assistir ao espetáculo. Ele não atirou. Sentiu medo e de como estava sendo estúpido, “Deus, quatro por um!! Por que razão não posso ser normal como os outros e fazer um roleta russa?!”. Resolveu que aumentaria suas chances, mas como? Tiraria uma bala? Não, feriria as regras do jogo: uma vez girado o tambor não se podia mais abri-lo. Então olhou para o cão. Brás, ali de língua de fora, esperando alguma ação abanava o rabo. Ele teria essa coragem?, suas mãos vaci­laram ao apontar a arma para o cachorro, apenas babava descom­ pro­missadamente. Buscou a garrafa no hábito humano de tentar encontrar consolos nos lugares mais insó­litos, e o cão ali: olhos grandes e úmidos, amigos mesmo; fechou seus olhos, puxou o cão da arma, juntou as duas mãos na estranha coronha, elas ainda tremiam, não conseguiu... era um cachorro!!!! O melhor amigo do homem! O seu único amigo no momento. Desviou os pensamentos da baboseira 34


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sentimental que sempre o impedia de fazer as coisas certas, levantou-se rápido, o caixote-cadeira caiu, a mesa-coxa também – ainda assim parecia naïf –, abriu, não agüentou, fechou os olhos e atirou no animal. Abriu primeiro um olho, depois o outro; Brás, ainda de língua de fora e babando achou que era melhor deitar de novo a ver, sem entender, o homem na sua frente. Ele estava em choque. O quatro por um dera um... o dele! Se fosse valente (estúpido?) para atirar contra seus miolos ainda estaria na merda da sua vida, mas vivo! Mas nããão.... teve que se cagar e atirar num cachorro inocente! e desperdiçar a sua chance, a experiência de passar por uma situação de morte e de sair dela outro – transformado. Gastou-a com um cachorro. A não-bala, o buraco vazio, o lance de sorte, sua única chance, o um, o acaso, a oportunidade, a probabilidade ínfima, o 1 x 4, naquele maldito cachorro, agora, deitado ali. Mordia-se de ódio. Então olhou para o cão. Agora, QUATRO por ZERO. Ao ouvir o barulho, o cachorro sobressaltou-se e saiu mais rápido do que suas patas puderam lhe fornecer de tração; correu para fora do barracão, seu faro logo destingiu um odor novo, uma lactescência ora acre, ora, por que não, metálica no ar, notas aromáticas difusas por todo lugar, descendo, subindo, espalhando-se e tomando todo o espaço respirável ali, parou de fora a observar, a tentar sentir o movimento do lugar, um silêncio seguro se fez e assim entrou. Seu amigo parecia dormir numa posição estranha no chão, 35


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“Não é incomum”, pensou, aproximou-se e o cheiro forte de sangue fez sua sensibilidade recuar – reconheceu o aroma da morte. De pêlos eriçados, movia-se com seu rabo entre as pernas. Afastou-se de mansinho, em respeito; deixou o barracão, não havia nada que ele pudesse fazer. Desceu as ladeiras e chegou à cidade, asfalto, de longe e por todos os lados sentia os odores únicos daquele mundo, sentia dúvidas se algum dia iria se esquecer daquelas lembranças mal cheirosas. Pelas ruas tristes do centro: bandidos, bêbados, drogas, depravação, crianças e famílias ali, “O melhor da sociedade humana”, pensou. Nas escadas de uma igreja, viu um monte de homens em papelões e jornais como o seu acompanhante anterior, ia se aproximando, ali, entre eles, estaria quente e Brás era um sem-vergonha: gostava da companhia deles, ia repensando a sua experiência com aquela raça, o muito que ouviu nas ruas, mito e/ou verdades sobres os homens, aquilo que testemunhou; descobriu-se farto, parou no meio do caminho e contemplou o espetáculo. Recuou: “É melhor estar sozinho mesmo”.

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Dor-De-Cabeça Às Duas E Trinta E Cinco Da Manhã Em Copacabana Matou sem querer matar; embora não pudesse pôr de volta na arma a bala que, agora, estava alojada em algum lugar do rosto daquele estúpido. Sacudia-o alucinadamente pelos ombros como se assim o fizesse cuspi-la a qualquer momento... Atirou na esperança de só assustar, enfim era ela a apavorada ali!, nunca tivera uma arma na sua mão, quanto mais ter de usar uma – apertar o gatilho não era fácil como nos filmes, afinal. Pulou no afã de recuperar a arma. Arrebatou aflita a arma daquele estranho, que agora parecia mais estranho ainda ao perceber que era ele a vítima, e não mais ela. Uma experiência nova ser vítima e algoz para ambos que, aquele que testemunhasse a cena, parecer-lhe-ia ter um final certo e trágico. Gritou quando percebeu o que ia acontecer (àquela hora na cidade violenta nem mesmo Deus a escutaria); imaginando a dor que se seguiria, não esperou pelo óbvio: quando sentiu de um lado uma mão que não conhecia. Do outro o metal frio da arma na espinha. A dor-de-cabeça explodia. Ao balançar o corpo já morto há minutos pelos ombros, sofria sozinha notando a besteira que fizera – não fora por falta de aviso: “Minha filha, vida de puta ou dá sífilis ou delegacia”. [leia de cima para baixo ou de baixo para cima]

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Ojos Niegros Tudo ali era embaçado, no ar as nuvens dos cigarros e dos charutos; a visão inebriada de álcool dos convivas. No palco mal iluminado, a grande diva: Sara, a divina – Sarita para mim. Despejava todos seus talentos no tango que cantava no seu timbre inconfundível, cantava um demônio. Desceu do palco – a hora mágica – andava por entre as mesas seduzindo a todos, iludia um demônio. Pelos cavos decotes escorria as pernas exibidas e tenras, minha Sarita, o colo ainda rijo (dois demônios). É certo que já não era o auge, mas a aura ainda estava lá, nem tão loquaz e convincente, mas ainda conseguia; muitos dos clientes já conheciam as artes da minha Sara. Estava a duas mesas da minha e dali já podia ver o brilho dos olhos, ojos niegros, ria para um grupo de jovens que não tinham idade nem permissão para estarem ali, mas o dinheiro abre muitas portas. Tirou o mais moço para uma dança, falou nos seus ouvidos, deixouse apalpar, riu alto, ele já estava tragado por aqueles ojos, ojos niegros – minha Sarita ainda não estava acabada como diziam. Jogou-o de volta aos amigos, que o receberam com alegria e galhofa, ganhara sua noite – o próximo seria eu. O ar ali era embaçado, e o caráter também. Sara, a divina, também me tirou para dançar e falou no meu ouvido: “Mitad y mitad”. Colocou a carteira de couro no meu bolso e me beijou de leve nos lábios. Aqueles ojos ainda não estavam mortos. 45



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