o (en)canto caboclo

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As cantigas dos encantados da Bahia

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© Fernanda Pinheiro, 2014 Capa Fernanda Pinheiro Ilustrações Davi Correia Projeto Gráfico Fernanda Pinheiro Revisão Ingrid Oliveira

Pinheiro, Fernanda, 2014 O (en)canto Caboclo / Fernanda Pinheiro Salvador, 2014 Inclui 28 ilustrações ISBN 817525766-0 1. Religião 2. Etnografia 3. Candomblé

Fernanda Pinheiro nandapc@gmail.com


Dedico este livro à essência. Aos encantados que me guiam. A Oxum, que reluz minha vida ‘com sua mão de água e ouro’ e me conduz; A Boiadeiro, pelas lições e pelo carinho de Pai; A Marujo, pelo companheirismo e pelo bom humor; A Baronesa, pela alegria de viver; A Colondina, pela estrada larga.


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“(...) Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico Do objeto-sim resplandecente descerá o índio E as coisas que eu sei que ele dirá, fará Não sei dizer assim de um modo explícito (...) E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos não por ser exótico Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio.” Caetano Veloso



Sumário 21 Introdução

70 As Cantigas dos nativos

25 Notas

42 Notas | As Cantigas dos nativos

28 O Candomblé

76 Cantigas de Invocação

37 Notas | O Candomblé

92 Salvas

40 Música Sacra no Axé

114 Sambas

47 Notas | Música Sacra no Axé

116 Sambas Históricos

48 O Caboclo no Candomblé

134 Sambas de Caboclo

57 Notas | O Caboclo no Candomblé 58 A Festa de Caboclo 67 Notas | A Festa de Caboclo

146 Sotaques 154 Despedidas

174 Referências Bibliográficas


Prefรกcio


Em O (en)canto Caboclo, Fernanda Pinheiro se debruça sobre uma das menos abordadas das vertentes do Candomblé pelos autores - o Candomblé de Caboclo - visto que pululam trabalhos de viés nagôcentrista. Os caboclos são seres encantados que, primordialmente, foram cultuados pelos africanos bantos em terras tupiniquins quando do contato com os povos autóctones, dando surgimento a um caso eminentemente afro-brasileiro, e que até hoje figura no panteão desta religião, sendo reverenciados por seus filhos e filhas. A partir de sua vivência dentro do universo religioso afro-brasileiro Fernanda homenageia os donos da terra dando um tratamento cuidadoso não só na escrita e nas questões que traz no corpo do texto, mas também na estética que resolveu adotar no invólucro de suas elucubrações, atribuindo-lhe uma brasilidade merecida e respeitosa, pincelada por belas imagens que revelam arquétipos, insígnias e alguns momentos dos encantados nas festas em sua homenagem, apresentando assim algo que lhe parece mais coerente entre conteúdo e forma do que ela percebeu ser comum em toda sua vida acadêmica e de leituras em geral. Designer por formação, Fernanda Pinheiro, é filha de santo.


Oxum, a dona da sua cabeça, lhe dá a licença para que ela nos apresente um belo trabalho que envolve os Caboclos do Candomblé baiano. Destarte, aliando fácil linguagem ao rigor que um trabalho acadêmico exige, ela passeia pelo tema com a maestria e a autoridade de quem conhece bem o que está a tratar, vide sua qualidade de Òmo Òrisà, auxiliando o leitor pouco familiarizado com o assunto com suas pontuais e bem-vindas notas explicativas ao fim de cada capítulo e sendo auxiliada aqui e acolá por gente que dedicou parte de sua vida aos estudos de uma religião que é sinônimo de espaço privilegiado de preservação da cultura negra. Além do mais, como ponto central de seu trabalho, somos presenteados com um cuidadoso inventário das belas cantigas dos encantados (apresentadas em ordem ritual) e de sua função dentro dos ritos religiosos, que revelam um pouco de suas histórias, costumes e culturas. Vale ressaltar, que as cantigas nas religiões de matriz africana são umas das principais formas de se obter o aprendizado necessário sobre os ritos e seu funcionamento no seio da religião, por essa razão o registro se torna fundamental em uma cultura essencialmente oral como é o candomblé.



Além do grande inventário, Fernanda tem o cuidado de realizar uma categorização para facilitar a apresentação das cantigas dos nativos. Ela toma emprestado, aí, a sabedoria aglutinada durante anos de leituras e apreensão de conhecimento da Etnografia como modo de metodologia neste projeto. Seu livro é, de fato, uma bela contribuição ao tema devido ao seu apuro estético e ao seu cuidado em apresentar e evidenciar essa rica cultura, o que, eventualmente, pode abrir outros caminhos para novas possibilidades de desdobramentos e de estudos. Os deuses que nos guiam devem estar agraciados.



Agradecimentos


A bênção, antes de tudo e todos, a Ive, minha mãe, que carrega diariamente um mundo inteiro em seus ombros para que a vida seja mais leve para mim. Mãe, meus ombros são seus. Carrego o universo, se necessário. Respire fundo, Ibes! Conseguimos! A benção, Raimundo, meu pai, pela vida, pelos vinte e oito anos. Meu amor pelo senhor permanece intacto. A benção, Ingrid, por absolutamente tudo. Pelo amor, companheirismo e pelas madrugadas. Sem você, nada se materializaria. A meus amigos, que são a base de minha felicidade, a bênção a cada um de vocês, irmãos que escolhi para mim. Obrigada a todos, especialmente a Iury, que me presenteou com um belo prefácio e a Vanessa, pela arte que respira! A bênção, meu dofonitinho Franklin, obrigada pela inquietação das críticas! A Tássia, pelo orunkó e a Cêssa, pela colaboração com as cantigas. A Leo, meu irmão e a Cunha, a bênção a vocês, que eu amo muito e que permitiram a vinda na Terra de um ser mais que especial, minha Babinha. Pequena, um dia você vai ler o livro de dinda e


vai entender porque ela ficou careca por um tempo! Ao axé que me foi plantado, a bênção! Aos professores Marianne Hartmann, Carina Flexor e Daniel Marques, obrigada pela beleza e toda a sabedoria ensinadas. Vocês são docentes diferenciados, a bênção! A benção, talentoso Tarcísio, pela parceria nesses quatro anos. Muito obrigada a Walter Mariano, pela inspiração e pelos primeiros passos na caminhada acadêmica, a sua bênção! A bênção também a Davi, pelas incríveis ilustrações. Você entendeu o que é ser as mãos de alguém. Obrigada pela sensibilidade! Finalmente, a bênção à eterna espiritualidade que me presenteia todos os dias com o sopro da vida. Nesse mundo, ‘eu estou só começando’!



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Introdução

Este livro apresenta um grande inventário das cantigas dos Caboclos do Candomblé da Bahia. Digo da Bahia, mais especificamente soteropolitanos, porque, além da pesquisa desta obra ter sido realizada em ilês baianos, em Salvador e Região Metropolitana, é notório que existem distinções entre os cultos aos encantados 1 nas diversas regiões do país, como acontece com o Jarê, na Chapada Diamantina e o Tambor de Mina, no Maranhão. Para tal, acredito ser necessária uma pequena introdução acerca de certos aspectos sócio-históricos e antropológicos que nos traz a secular religião afro-brasileira, assim como do caminho que, historicamente, o Candomblé percorreu para chegar ao século XXI com um culto crescente e disseminado por todo o país. Creio que o chamado dos Orixás pode vir de diversas maneiras. O meu não poderia ser mais encantador: foi através de um livro que meu olhar foi despertado para meu real destino. Em 2005, li o capítulo 14 de Viva o Povo Brasileiro, do genial João Ubaldo Ribeiro – que retrata a guerra do Paraguai sob a perspectiva dos Orixás e de como eles intercederam por seus valorosos filhos naquele conflito – várias vezes seguidas, sem fechar o livro. Daí, para mergulhar no mundo dos Orixás não foi preciso muito tempo ou esforço.

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Sou orgulhosamente Omo Orixá 2, raspada e catulada 3 nas doces águas de Mãe Oxum, minha raiz e razão para continuar. Os projetos mais relevantes para minha caminhada dentro da academia tiveram como temática o axé, sempre privilegiando o culto aos Orixás; portanto, nada mais oportuno que fechar meu percurso com um projeto com a mesma tônica, porém com uma distinção: os homenageados são os velhos Caboclos, os encantados, donos da terra que hoje chamamos de nossa. Desde esta época, após meu olhar ser despertado para o tema, me tornei uma leitora voraz de publicações que tem o Candomblé como objeto de estudo. Li farto material entre relatos, estudos e contos acerca de nossos encantados, mas sempre senti falta de algo que privilegiasse e enaltecesse sua linguagem, sua forma de expressar sua identidade e seu lugar no mundo. Todos sabemos que é através da oralidade que, desde a África, o conhecimento ritual na cultura negra é passado adiante. Não é diferente com os Caboclos, que usam de forma extraordinária os ritmos do Angola para entoarem suas cantigas, contando sua história e seus feitos. É através delas que temos a oportunidade de conhecer mais a fundo os encantados, elas refletem suas per-

Introdução


Introdução

sonalidades e seu jeito de ser. Elas são encantadas, assim como os seus emissários. Depois desses nove anos e algumas centenas de leituras, também percebi a carência de um projeto que abarcasse a temática afro-brasileira e que apresentasse coerência entre conteúdo e forma. Todos estes livros usam cada elemento da construção da obra baseado em dogmas que nunca sentiram o calor úmido ao sul do equador ou nunca se deixaram levar pelas belezas e vicissitudes do novo mundo. Como trazer conteúdo eminentemente brasileiro, sul-americano, alicerçado na riquíssima cultura africana, com padrões unicamente eurocêntricos? É de encontro a isto que trago este livro. Com elementos essencialmente latino americanos, construí uma ideia-base de publicação e dei forma a este discurso. Em se tratando do conteúdo deste livro, reunir estas cantigas não foi tarefa fácil. Com uma cultura oral por excelência, o Candomblé deixa grandes brechas para diferenciação no teor das cantigas entoadas em diferentes casas. A cantiga cantada em um terreiro pode ter diferenças de palavras ou até mesmo de frases inteiras em outra casa de axé. As escolhas deste projeto seguiram a lógica

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da repetibilidade em diferentes ilês e obras estudadas, além do meu conhecimento empírico do axé. Sigo, também, o fundamento da representatividade da cantiga no repertório conhecido dos Caboclos. Como referido anteriormente, elas tem a potencialidade de refletir a personalidade do encantado que a entoa. A etnografia, neste momento, me serviu como base metodológica para o recolhimento e a aglutinação das cantigas, além da trabalhosa classificação realizada. Tarefas árduas não foram escassas nesta iniciativa. Desde a escolha da temática até a finalização do projeto, foram inúmeras idas e vindas, com modificações de método e projeto ao longo de cerca de um ano de composição deste livro. Este trabalho, inicialmente, se limitaria à aglutinação das cantigas dos Caboclos, o que, com o passar do tempo, se ampliou, visto que percebi a necessidade de situar o leitor acerca de pontos-chave da temática para uma melhor compreensão. Desse modo, dividi o livro em duas grandes partes. Na primeira, de forma sintética, na tentativa de influenciar o leitor a buscar outras bibliografias com explanações mais profundas, trago um pouco do universo do Candomblé; da utilização

Introdução


Introdução

1. Diz-se que os encantados são espíritos que já tiveram um corpo material e viveram neste mundo, mas que pelo seu destino ou seus grandes feitos em vida não morreram, simplesmente entraram na terra e encantaram. Prandi (1998) os define como “personagens lendários que um dia teriam vivido na Terra mas que, por alguma razão, não conheceram a morte, tendo passado da vida terrena ao plano espiritual por meio de algum encantamento”. 2. Em forma aportuguesada, Omo Orixá, do iorubá Òmo Òrìsà, quer dizer ‘filho de Orixá’, disseminado pelo Brasil como ‘filho-de-santo’. 3. Katula na cultura banto é o ritual de raspagem da cabeça do ìyàwó na sua iniciação. No sentido empregado, refere-se às kuras, cortes rituais feitos em partes do corpo do iniciado. 4. Kindembo, Nkisi originário de terras bantos que está diretamente ligado ao tempo cronológico e mitológico, simbolizado nos terreiros por um mastro com uma bandeira branca ao alto. É assentado na Gameleira Branca, grande árvore sagrada.

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O CandomblĂŠ


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O Candomblé

Derivado do culto aos ancestrais em terras africanas, o Candomblé é uma religião brasileira que reverencia os Orixás, Voduns ou Inquices 5 , cuja essência foi trazida para o Brasil pelos homens e mulheres escravizados dentro dos porões dos navios negreiros que começaram a aportar no litoral brasileiro a partir da segunda metade do século XVI e perdurou pelos três séculos seguintes do regime escravocrata no país. Os negros que foram desrespeitosamente arrastados para a nova terra deixaram aqui uma rica herança linguística e cultural, já que “na inevitabilidade desse processo de influências culturais recíprocas e em resistência a ele, o negro-africano terminou impondo, de forma mais ou menos subliminar, alguns dos mais significativos valores e traços expressivos do seu patrimônio cultural e linguístico na construção da sociedade nacional emergente e da língua portuguesa do Brasil” (PESSOA DE CASTRO, 2005). Essa riqueza e pluralidade que marcam o Candomblé são reflexo das diferentes marcas culturais e identitárias enraizadas em nosso território pelos grupos para cá trazidos. Os escravizados vieram de duas procedências, que formavam na sua terra de origem dois grandes grupos linguísticos, os negros sudaneses

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e os bantos. Nessa divisão, os sudaneses são aqueles vindos da zona do Niger, na África Ocidental 6 ; e os bantos, do sul da África e Contra-Costa 7. O panteão africano, resultante de tão ampla distribuição geográfico-cultural, reunia mais de 400 divindades espalhadas pelo continente, mais concentrados na África subsaariana e no seu litoral oeste. Cada uma das diferentes regiões possuía seu Orixá regente que, acredita-se, era o ancestral mais antigo dos clãs e protegia a localidade onde era louvado: Xangô em Oió; Iansã à beira do rio Níger; Ogum em Ifé, Oxum em Ijexá, entre outros. O culto aos Orixás em África é anterior ao surgimento da codificação escrita e tinha na oralidade, desde os seus primórdios, a única forma de transmissão do conhecimento no interior das grandes famílias e clãs. Além de ser a forma tradicional da aquisição do saber religioso, a oralidade exerceu o importante papel de difusora da sabedoria litúrgica e mantém-se, até hoje, devido à ausência de livros oficiais como existentes em outras práticas religiosas, como principal alicerce da apreensão e disseminação dessa ritualística.

O Candomblé


O Cancdomblé

Já em terras brasileiras, foi no interior das senzalas que a amálgama das distintas culturas formou uma sapiência sólida baseada em tradições regionais, mas que se universalizou em nome, primordialmente, da sua sobrevivência, dando origem ao que hoje conhecemos como Candomblé. Durante os séculos seguintes da chegada dos escravizados da África ao Brasil, a religião conseguiu se camuflar e sobreviveu a décadas de perseguições, ataques e proibições. Numa vã tentativa de ceifar a relação dos escravizados com seus Orixás, os senhores brancos e a Igreja tentaram introduzir compulsoriamente os negros aos costumes religiosos do catolicismo, porém, a riqueza e a profundidade dos laços dos africanos com sua fé permitiu que ela perpetuasse ao longo dos séculos, com modificações internas de ritual, como a necessidade pontual do culto sincrético e sigiloso aos Orixás através dos santos católicos. José Beniste (2005) 8 afirma que “o sincretismo valeu como poderosa arma para os negros manterem suas tradições. Sem ele, provavelmente, nem mesmo teriam podido manter os traços religiosos que ainda hoje se conservam. A assimilação santo-Orixá era aparente e [...] sua aceitação não interferiu nos ritos de

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forma direta a ponto de reverter e modificar o que deveria ser feito”. Em virtude das inúmeras perseguições sofridas, a permanência de quilombos e irmandades 9 como centros de resistência, nos séculos XIX e XX, foi de fundamental importância para a longevidade do Candomblé. Estas estruturas foram locais de manutenção da sabedoria africana e salvaguardavam o conhecimento religioso em seus interiores. A forma de culto e socialização do conhecimento nestes locais pode ter sido a primeira manifestação do que hoje conhecemos como terreiro. Nas últimas décadas do século XIX, surgem as primeiras casas de Candomblé 10, chamadas a partir de então de ilê axé. Porém, já no início do século XX, mesmo com a Constituição Brasileira garantindo o direito da prática de religiões além da católica 11, sob a acusação de feitiçaria e charlatanismo as casas de Candomblé continuaram sendo alvo de perseguições, dessa vez, paradoxalmente, pelo Poder Público através da força policial e o culto novamente se internalizou. Assim, os terreiros passaram a ser os grandes centros de resistência da cultura afro-brasileira, responsáveis pela continuidade

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e disseminação da religiosidade no interior dos ilês. Mesmo com todas as dificuldades de culto, o Candomblé se manteve fiel às suas raízes históricas configurando-se como uma religião iniciática não-proselitista que se fundamenta teologicamente no conceito de axé, sopro de vida de cada indivíduo e força que sustenta o universo. Desse modo, está sempre aberta àqueles que a procuram e que, conforme crê tradicionalmente o povo-de-santo, tem uma missão dentro do axé. A religião afro-brasileira não busca angariar adeptos ou fiéis, mas acolhe em seu seio todos aqueles que se identificam com seus princípios e fundamentos, mantendo preservado o que foi fincado nas senzalas e quilombos e que permanece até hoje nos inúmeros terreiros existentes no país. Sua liturgia forma uma complexa rede de culturas e costumes, traduzindo em rituais o universo simbólico e a cosmogonia africana, cujo aprendizado é repassado tradicionalmente através da oralidade. Os ritos de passagem são de vital importância para cada adepto, pois permitem a manutenção e propagação do axé recebido. De forma sintética, são eles: o Bori - associado ao orixá Iemanjá, mãe e dona de todas as cabeças 12 - que se constitui como um ritual de

O Candomblé


O Cancdomblé

pré-iniciação que dá a força necessária ao ori 13 do postulante; a iniciação propriamente dita, também chamada de feitura, com recolhimento mínimo de 21 dias, nos quais é realizada uma série de rituais de acordo com cada tradição, culminando na festa de celebração ao nascimento do Orixá dono da cabeça, o qual grita o seu nome - orunkó, em iorubá. Este é o momento em que o novo filho é apresentado à comunidade do axé e é uma das ocasiões mais importantes de sua caminhada dentro da religião; além das obrigações de 1, 3, 7, 14 e 21 anos pós-feitura, cada uma com seu tempo de recolhimento e obrigações necessárias. É válido salientar que o Candomblé é uma religião monoteísta e possui como Suprema Divindade Olorum 14 na cultura iorubana ou Zambiapongo, corruptela de Zambi-ampungo, como chamavamno os africanos de língua banto. Para ele não existem altares, materializações ou culto organizado. Tudo o que poderia ser-lhe ofertado já é de Sua propriedade. Na Mitologia africana, Olorum criou o mundo e dele se desmembraram elementos naturais personificados nos Orixás, seres que seriam responsáveis pela manutenção do que foi criado, assim como pela evolução do ser humano. Após a divisão de responsa-

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bilidades, Olorum subiu ao ponto mais alto do mundo e não mais interveio na sua criação. A herança iorubá ensina que não é necessário o sofrimento para a purificação e que na essência de tudo há um pouco de Deus e Ele é alegria. Portanto, tudo que é feito deve transbordar felicidade, por esse motivo, para tudo dentro do axé, se canta.

O Candomblé


Notas | O Cancdomblé

5. Divindades das nações Iorubá/Nagô, Angola e Jêje-Mahin. 6. Oriundos das nações nagô (iorubá), mina, jeje (ewe/fon), haussá, galinha, tapa, bornus e os fulas mandês (mandingas). 7. Da divisão geografica atual, dos países Angola, Congo, Benguela, Cabinda, Mossamedes, Moçambique e Quelimane. Para mais detalhes ver Edson Carneiro (1936; 1937) 8. BENISTE (2005, p. 23). 9. A constituição de confrarias religiosas, sob o amparo da Igreja Católica, formava blocos entre os negros africanos na Bahia. Os negros de Angola formavam a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo, fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho, hoje conhecida como Rosário dos Pretos. Os daomeanos reuniam-se sob a devoção de Nosso Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção dos Homens Pretos, na Capela do Corpo Santo, na Cidade Baixa. Os nagôs, em sua maioria da nação Ketu, formavam duas irmandades: uma de mulheres, a de Nossa Senhora da Boa Morte, com grande representatividade no Recôncavo baiano e outra reservada aos homens, a de Nosso Senhor dos Martírios. 10. A primeira casa de Candomblé da Bahia, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, tem mais de 300 anos e é conhecido como Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. Foi construído na Barroquinha e depois, pela perigosa proximidade com o centro da cidade e consequentemente com o Palácio Real, foi levado para o Engenho Velho do Rio Vermelho de Baixo, na atual Av. Vasco da Gama, em Salvador. De dissidências, formaram-se dois grandes terreiros, o Ilê Iyá Omin Axé Iyámassê, popularmente co-

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nhecido com Gantois, situado na Federação e o Ilê Axé Opô Afonjá, do São Gonçalo do Retiro. 11. A liberdade de culto foi reconhecida na Constituição Brasileira de 1937, embora a prática doméstica das demais religiões já tivesse sido liberada desde a Primeira Constituição Brasileira, de 1824. Seu artigo 5° define que “a Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”. 12. Iemanjá é considerada mãe de todos os Orixás de origem nagô. As divindades cultuadas na nação Ketu que não possuem filiação de Iemanjá e Oxalá são originalmente de outras nações, como Oxumarê, Obaluaê e Yewá, que advêm da nação Fon. 13. A cabeça – ori, em yorubá - do iniciado é o templo do seu Orixá. Ela é de extrema importância na ritualística do Candomblé e sempre recebe suas homenagens antes de qualquer Orixá. 14. Olórun ou Olódùmarè, o Elédá, Senhor da Criação, em yorubá.

Notas | O Candomblé


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Música Sacra no Axé


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Música Sacra no Axé

“Cada coisa com sua cantiga própria, o repertório parece interminável. Nas cerimônias públicas, canta-se para que os deuses venham conviver com os mortais durantes os toques no barracão dos terreiros. Canta-se para que os orixás em transe sejam levados do barracão para serem vestidos com seus paramentos e se canta para trazê-los de volta ao público. No barracão festivo, canta-se para que os orixás dancem, cada qual com seu ritmo, cada um com seu hinário próprio e coreografia característica. Canta-se depois, quando eles vão embora, deixando o corpo das filhas-de-santo, exaustas, acordadas de seu transe dançante” (PRANDI, 2009, p. 10) A importância da música no culto aos Orixás é imensurável. Ela, cujo componente essencial é a percussão rítmica, tem um papel primordial e é de vital relevância para tudo que concerne à liturgia do candomblé. Está presente em todas as cerimônias e rituais, internos ou públicos, e representa grande fonte para o entendimento dos ritos afro-brasileiros. Gerard Béhague também corrobora dessa percepção em seu minucioso estudo sobre as correntes regionais e nacionais na música do candomblé baiano, de 1976, ao afirmar que “o menor ato litúrgico é acompa-

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nhado de cantigas rituais ou música de percussão, constituindo, portanto, um repertório muito extenso”. O aprendizado dos ritmos, cantigas e toques é incorporado aos primeiros ensinamentos passados aos mais novos. A forma de apreensão e disseminação da lírica das cantigas configura-se como um processo mnemônico estimulado desde a pré-iniciação. Os cânticos entoados nos cultos em homenagem aos Orixás no Candomblé são, em sua totalidade, em línguas africanas 15, a depender da nação que se descende podem ser cantados em iorubá, banto ou ewe/fon. Sua entoação possui distintas formas de apresentação e finalidades no contexto ritual, ou seja, cada Orixá possui cantigas e toques peculiares que se embebedam na riqueza e pluralidade da mitologia africana ao interpretar feitos míticos das divindades nas letras de cada cantiga. Assim, é por meio delas que o universo mitológico é sacralizado e transposto para o real. O momento inicial de uma cerimônia pública no Candomblé é chamado de Xirê 16, no qual se homenageia, em ordem pré-determinada 17, os Orixás do panteão louvado em terras brasileiras, composto de pouco menos de duas dezenas de divindades. Todos cantam e os filhos-de-santo, em ordem hierárquica, dançam

A Música no Axé


Música Sacra no Axé

em uma roda formada ao centro do barracão. Para cada toque, diferentes danças são puxadas pelos mais velhos seguidos de perto pelos iaôs, cujos “movimentos são estilizados, suaves. As filhas de santo cantam e expressam-se com gestos que explicam acontecimentos míticos integrantes da história e vida de cada Orixá” (LÜHNING, 1990, p.117). Após o Xirê, cantigas específicas do Orixá homenageado pela casa, de acordo com o seu calendário festivo, são entabuladas para chamá-lo à terra. Algumas outras cantigas de fundamento 18, que tem o poder de invocar todos os Orixás, são pouco utilizadas. Estas cantigas não são entoadas aleatoriamente, cada pormenor é sacralizado e a música conduzida por instrumentos consagrados. Nos rituais é utilizado um trio de atabaques, que são tambores oriundos do continente africano, feitos de madeira e envoltos em sua parte superior por pele de carneiro. Sua afinação, em muitos casos, é realizada pela tensão das cordas que o abraçam. Chamados rum, rumpi e lé, eles são tocados, a depender do ritmo e nação, com as mãos ou um par de varetas chamadas agdavis. Outro instrumento muito importante é o agogô, composto por um par de sinetas forjadas em ferro e tocado por uma vareta de

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metal. O agogô é um instrumento primordial no Candomblé cujo som quase sempre introduz as cantigas devotadas aos Orixás. Algumas casas de axé também utilizam o xequerê em seus rituais, sua sonoridade provém de uma cabaça seca envolta por uma rede de contas, sementes ou conchas, produzindo um som que dá uma cadência mais dinâmica à música nos terreiros.

A Música no Axé


Notas | Música Sacra no Axé

15. Há uma grande discussão em torno dessa questão, de que, com o passar do tempo, vem existindo uma deturpação da linguagem original das cantigas, já que o processo de aprendizado destes cânticos é essencialmente oral. A tendência é que os mais antigos saibam as palavras mais fielmente que os mais novos. As palavras de uma mesma cantiga, em diferentes casas, podem ser pronunciadas de formas diferentes, mas sem perder o sentido simbólico. 16. Em iorubá, sirè significa brincadeira. É a primeira parte da festividade para o Orixá, onde são puxados cânticos para todas as divindades cultuadas na Casa. 17. A ordem comumente utilizada nos ilês é o xirê iniciando-se com cânticos para Ogum e terminando, na primeira parte, com cantigas para Iemanjá. As homenagens a Exu são realizadas antes do início da festa e para Oxalá ao final da cerimônia, depois de todos os Orixás terem dançado e todos os rituais finalizados. As alterações possíveis de serem encontradas são neste entremeio – de Ogum a Iemanjá – são provenientes da tradição da Casa ou da ritualística específica da festa. 18. Existem cantigas que são específicas para cada fim. Estas são chamadas de cantigas de fundamento, que tem grande poder dentro da liturgia, algumas, inclusive, podendo invocar Orixás de iniciados antigos.

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O Caboclo no CandomblĂŠ


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O Caboclo no Candomblé

Trazidos compulsoriamente ao Brasil, os africanos escravizados mantiveram laços com os povos indígenas brasileiros durante suas fugas do cativeiro e tentativas de fincar raízes em quilombos no Centro e Nordeste do país. Somado à tradição do povo banto de cultuar os seus ancestrais donos da terra, se fez presente o grande respeito à ritualística indígena recém-conhecida, o que culminou na inserção da figura do homem nativo e morador-primordial da terra brasilis em um novo panteão. Com o passar do tempo, esse panteão se estabeleceu ora como uma nação isolada numa religião brasileira por excelência, também chamada de Candomblé de Caboclo, ora como um culto que coexiste com o panteão africano, ocupando lugar de destaque na liturgia dos ilês. Foi no contato nativo/africano que surgiram as primeiras raízes do culto ao elemento tipicamente brasileiro – inicialmente, o indígena – num culto originalmente estrangeiro. A professora e etnomusicologista Sônia Chada, ao refletir acerca da musicalidade dos Caboclos, afirma que “os estudos afro-brasileiros dão conta do deslocamento dos primeiros povos bantos, mais abertos a influências externas, para a zona rural, onde começam a estabelecer contatos e trocas com índios, facilitadas pela possível

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natureza animística de suas crenças, compartilhadas de maneira mais visível” (2006, p. 42). O Caboclo é uma entidade essencialmente brasileira, um amálgama de elementos indígenas e negros cujo culto apresenta características próprias, mas que dialoga com o tradicional culto aos Inquices da nação Angola, apresentando elementos comuns de ambas as tradições. No início do século XIX, com a fundação da primeira casa institucionalizada de Candomblé Angola na Bahia 19, o culto aos nativos foi se restringindo paulatinamente a esses locais, já que os demais terreiros de Candomblé estabelecidos, com maior representatividade religiosa no estado, eram de origem nagô e pregavam o que hoje é chamado de nagôcentrismo, uma espécie de purismo que acabava por inferiorizar as outras vertentes religiosas afro-brasileiras que não tinham o panteão africano como base única de culto. Reginaldo Prandi ao falar sobre este processo, afirma que “o termo candomblé de caboclo teria surgido na Bahia, entre o povo-de-santo ligado ao candomblé de nação queto, originalmente pouco afeito ao culto de caboclo, justamente para marcar sua distinção em relação aos terreiros de caboclos” (1998, p.2). Esse movimento culminou na eventual abertura de casas de culto ex-

O Caboclo no Candomblé


O Caboclo no Candomblé

clusivo aos ameríndios que sempre se mostraram, e se mostram até hoje, orgulhosamente patriotas e não deixam de esbanjar sua brasilidade em seus discursos ou cantigas. Existe uma clara distinção entre o Candomblé de Nação Cabocla e o culto ao Caboclo inserido no contexto do Candomblé. O primeiro construiu-se, em sua gênese, como um culto exclusivo ao ancestral nativo e tem especificidades reservadas unicamente a eles, ao passo que o segundo mantém as tradições africanas de culto aos Orixás, todavia engloba o panteão Caboclo, que é cultuado em momentos distintos. Devido à natureza festiva dos encantados e à proximidade que desenvolvem com seus filhos, com o passar do tempo, a figura do Caboclo foi sendo inserida naturalmente nos terreiros Lesse Orixá 20, com homenagens distintas daquelas prestadas às divindades africanas. O culto foi ganhando força e tomando corpo nas demais nações que se estabeleciam – Ketu, Jêje, Nagô, Ijexá e Angola – o que, consequentemente, foi tornando rara a existência de casas restritas ao culto Caboclo. De acordo com o mapeamento dos terreiros de Salvador (2008), coordenado pelo professor Jocélio Teles dos Santos, do universo de 1164 casas de axé em Salvador, apenas 0,1% se declarou de

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nação Cabocla e 0,7% dos ilês agregou a designação “Caboclo” a outra nação, como “Angola-Caboclo” ou “Caboclo-Ketu”. Todavia, não há uma regra que dita a obrigatoriedade da incorporação do nome “Caboclo” à nação que o terreiro descende para haver o culto às entidades. Boa parte das bibliografias aponta que quase a totalidade dos terreiros baianos, de variadas nações e descendências, cultuam a figura nativa. É comum na Bahia a reverência aos Caboclos no 2 de julho 21, época da comemoração da independência do estado, pois estes tiveram grande importância e participação ativa como nativos guerreiros nas lutas pela liberdade do país, principalmente na capital e no Recôncavo baiano. Por isso, tradicionalmente, as casas de Candomblé que cultuam os encantados em suas diferentes modalidades – caboclos de couro, índios e marujos – o fazem especificamente nesta data. No Candomblé, os encantados são espíritos nativos de grande relevância no que tange o relacionamento matéria/espírito, pois cada um, de uma maneira peculiar, traz consigo um conselho, um alento aos problemas cotidianos ou um recado dos Orixás. Não é necessária uma iniciação rígida como no culto aos Orixás, Inqui-

O Caboclo no Candomblé


O Caboclo no Candomblé

ces ou Voduns ou até mesmo uma preparação preliminar do ori do adepto para a incorporação do nativo, mas é comum realizar uma bela cerimônia de batismo do filho-de-santo à crença Cabocla 22. Os ameríndios que são cultuados no Candomblé, cujas atividades principais em vida eram a caça e a pesca e tem seus trabalhos realizados no interior das matas são espíritos de natureza livre e trazem consigo uma dança solta, remontando a uma caça ritual, ao atirarem simbolicamente flechas ao ar. Suas cantigas comumente ressaltam atributos de suas tribos e comunidades, sempre com caráter ufanista, bradando o orgulho de ser brasileiro. Eles são chamados Caboclos de Pena e trazem nomes como Laje Grande, Pena Branca, Pena Verde, Pena Dourada, Pedra Preta, Sultão das Matas, Caboclo Eru, dentre outros. Há também Caboclos oriundos de outras linhagens, como os Caboclos de Couro, que são espíritos de trabalhadores da lida do gado no sertão brasileiro, que empunham chapéu e gibão de couro em sua indumentária e carregam consigo o grito característico de sua função 23. São encantados frequentemente encontrados nas casas e trazem seus nomes ao se apresentarem pela primeira vez em terra, como Boiadeiro, Capangueiro, Vaqueiro e Gentileiro.

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Existem também os bem humorados Marujos, espíritos de velhos navegadores, capitães de sua própria barca e que sempre louvam em seus discursos Iemanjá, rainha das águas salgadas e protetora do seu ambiente de trabalho. São Caboclos charmosos e galanteadores, que estão quase sempre ébrios e cambaleantes assim como os seus barcos ao tombarem no mar. Apresentam-se sempre de branco e chapéu, encantando a todos com as histórias dos muitos portos que já ancorou.

O Caboclo no Candomblé


O Caboclo no Candomblé

19. A primeira Casa de Candomblé Angola da Bahia, chamada de Raiz do Tumbensi, foi fundada por volta de 1850, por Tata Kimbanda Kinunga, angolano escravizado, de propriedade da família Barros Reis. Se ramificaram, daí, várias tradições e Casas como a centenária casa-de-axé Tumba Juçara. 20. Os terreiros que tem os Orixás como base fundamental do seu culto são chamados ilês Lesse Orixá. 21. Para uma minuciosa e riquíssima descrição do 2 de Julho na Bahia e de suas raízes, ver o artigo O Triunfo dos Caboclos, de Ordep Serra, no livro organizado pelas professoras Maria do Rosário e Ana Magda Carvalho (2012, p.55). 22. Reginaldo Prandi (1998, p. 9) descreve belamente uma cerimônia de batismo para os Caboclos.

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A Festa de Caboclo


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A Festa de Caboclo

Um Ilê Axé é o espaço religioso escolhido pelas divindades e destinado a acolher os ritos sagrados do Candomblé. Suas portas separam, simbolicamente, o sagrado do profano e esse deve ser nutrido e respeitado como tal. É um templo que possui estruturas físicas necessárias para a organização de um tempo-espaço divino para o bom andamento das festividades. O espaço é rigorosamente dividido e o trânsito interno depende, invariavelmente, da graduação do adepto. Em circunstâncias ideais, deve estar em um local isolado dos centros urbanos, não sendo, porém, condição sine qua non para sua instalação. Ele é construído por causa de e para o Orixá, por isso, seguir as suas orientações através do oráculo 24 é de vital importância para o firmamento e manutenção do axé da Casa e de seus filhos. Os Orixás têm sempre um local determinado reservado exclusivamente para a fundação de seus símbolos sagrados e recebimento de obrigações, este local possui construção simplificada com apenas um cômodo e é chamado de Ilê Orixá, ou quarto-de-santo 25. Contudo, alguns Orixás como Exu, Irôko e Oxumarê são assentados no espaço externo da Casa. Por se organizar hierarquicamente, o Candomblé possui ambientes restritos a inicia-

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dos, como o Roncó, onde é realizado o recolhimento dos iaôs. A cozinha do terreiro é também uma área sacralizada na qual só entram pessoas iniciadas e confirmadas 26 para aquela função específica e crucial para o bom andamento da casa – cozinhar as oferendas para o Orixá. A construção principal do ilê é o barracão, dependência que abriga as cerimônias públicas da Casa. Lá permanecem os atabaques e é onde o axé do terreiro é plantado, num local central chamado de cumeeira 27. É em sua volta que a roda das filhas de santo é feita. É neste ambiente que a celebração da festa de Caboclo é realizada, o mesmo em que ocorrem as festividades dos Orixás, porém em momentos distintos. A festa começa alguns dias antes, com a chegada dos filhos que irão ajudar na preparação das homenagens aos encantados. Toda a estruturação da festa é planejada nestes dias, como a compra de mantimentos para a subsistência daquele grupo e a aquisição de grãos e frutas para oferecer aos encantados, assim como os animais para o sacrifício ritual. O assentamento dos Caboclos se encontra em um espaço externo arborizado ou em uma Cabana, sempre em local apontado pela divindade. É lá que serão ofertados os sacrifícios animais e

A Festa de Caboclo


A Festa de Caboclo

oferendas para os nativos, um ou dois dias antes da festividade aberta ao público. Antes de qualquer homenagem realiza-se sempre uma oferenda para Exu 28, pedindo que tudo ocorra como planejado, sem incidentes ou problemas. No dia da festa, o banquete é preparado. Mesas abundantes de frutas são comuns nas festividades e, posteriormente, são distribuídas para a comunidade do entorno. O barracão é enfeitado com cores vibrantes, de preferência o verde e o amarelo, cores orgulhosamente estampadas pelos Caboclos em referência direta à bandeira brasileira. É preparada, também, a Jurema, bebida muito apreciada pelos encantados, feita com a casca do arbusto da jurema, dentre outros ingredientes. Todo este processo é encarado com muita seriedade e sacralidade devido à importância que tem para os encantados. São entoadas, nesse momento, cantigas para a reza desta jurema que, posteriormente, é dividida com os Caboclos e convidados presentes na festa. A festa é um momento de regozijo para as divindades e os adeptos da religião, é a ocasião em que se reúne grande parte ou todos os filhos de santo da Casa, além de convidados ilustres de outros terreiros, parentes, amigos e simpatizantes do culto.

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Antes do início das homenagens é realizada outra oferta para Pambu Njila 29, sempre com o intuito de apaziguar o Inquice para o bom andamento do ritual. Comumente, a cerimônia é iniciada com um xirê para os Inquices, toca-se para Roximucumbe-Incôci, Catendê, Gongobira-Mutalambô, Cafunã-Cavungo, Angorô, Tempo, Nzázi, Vúngi, MatambaBamburucema, Dandalunda, Nzumba, Cucuetu-Caiá e, por fim, no encerramento 30, para Lemba Dilê. Após a reverência aos Inquices são puxadas cantigas para o chamamento dos encantados. É um momento muito aguardado da festa, pois, finalmente, os homenageados da ocasião se farão presentes. Geralmente, o ogan 31 mais velho presente na Casa puxa32 cantigas para invocação dos Caboclos, sempre respeitando a graduação hierárquica dos iniciados. Após a virada 33 dos nativos, uma roda é feita e as divindades são retiradas do barracão e encaminhadas para o sabaji 34 para sua paramentação. Neste momento, é comum nos terreiros uma pausa no toque dos atabaques, é servida água e, por vezes, algo de comer para os convidados. Alguns ilês, porém, tocam cantigas

A Festa de Caboclo


A Festa de Caboclo

para Tempo neste ínterim. Já vestidos, os Caboclos adentram ao barracão e começa a festa propriamente dita. A alegria é notória e gritos de homenagens como Xeto Marrombaxeto! Xeto Navizala! Êla Marujada! São proferidos pelos convidados e filhos não-rodantes. Eles formam uma roda e dançam de uma a três cantigas. Logo depois, o Caboclo mais velho silencia os atabaques para sua salva. De joelhos e inclinado à frente dos instrumentos, cada Caboclo puxa sua cantiga, do mais velho para o mais novo, e, após este momento, o samba começa. Cada Caboclo, em sua ocasião, puxa sambas e dança com os seus irmãos e convidados. “Ouve-se um misto de louvações sobre as coisas e lugares do Brasil, saudações aos Orixás ou alusões a Jesus Cristo e santos católicos, emergindo daí todo um sincretismo presente com certeza nesse culto dos Caboclos, os ditos senhores desta terra” (PRANDI, 1998, p. 18). Ogans e Caboclos, livremente, puxam cantigas contando histórias sobre suas vidas e encantamento, fumam charutos – costume típico apreendido dos índios – e tomam sua Jurema. É o momento mais alegre da festa, no qual são toleradas brincadeiras entre eles, muitas vezes em tom burlesco, porém, ainda assim respeitoso.

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Os Caboclos estão livres para circular pela festa e conversar com os convidados, dar conselhos, indicar tratamentos e dar consultas. Neste momento, o banquete é servido. As comidas preparadas são provenientes dos sacrifícios realizados anteriormente e são acompanhadas por grãos e frutas. Antes de voltarem ao sabaji para irem embora, são entoadas cantigas que mostram gratidão a Nzambi pela presença abençoada dos encantados. Logo após, cada um se despede com uma cantiga agradecendo a todos pela presença e a roda é refeita para o cumprimento da porta, da cumeeira e dos atabaques. É comum que a festa continue, desta vez, com os filhos que estavam virados. Agora é sua vez de comer, beber e conversar com seus convidados. Em algumas casas, no dia seguinte, um samba-deviola é realizado em comemoração ao sucesso da festividade do dia anterior.

A Festa de Caboclo


Notas | A Festa de Caboclo

24. O oráculo no Candomblé é chamado de Ifá, sistema de divinação originado na África Ocidental entre os iorubás. É relacionado com o Orixá Orunmilá e é chamado em África de Agbonniregun, “aquele que é mais eficaz do que qualquer remédio”. Só pode ser lido por um sacerdote (Babalawo, Iyalorixá ou Babalorixá) e é jogado com sementes, conchas ou búzios. 25. Em alguns lugares mais abastados de espaço útil, os quartos podem ser substituídos por casas-de-santo. 26. A feitura de um não-rodante é chamada de Confirmação de Cargo e, na maioria das Casas, não há abertura de kuras ou orô – a raspagem da cabeça. 27. A cumeeira é o ponto central da energia do barracão, o cerne do axé da Casa. Ela faz uma conexão dos elementos da terra com Olorum e Orunmilá. Encontra-se na parte mais alta do barracão, geralmente em um poste, pilar de madeira ou em cavilhas projetadas do teto. Para ser plantada, requer uma grande liturgia, que exige muita preparação. 28. Alguns mitos explicam o fato de Exu ter a primazia nas oferendas. Um deles traz a história da criação do mundo, onde Olorum reuniu todos os sábios do Orum para que o ajudasse na criação do mundo, mas as idéias de todos não eram de todo úteis para o que Ele desejava. Exu, então, propôs o sacrifício de um pombo e, ao guiar Olorum por todos os lugares onde se deveria verter o sangue do animal, tornou possível a concretização do intento de Olodumare, sendo, então, recompensado. “Muito me ajudaste e eu bendigo teus atos por toda a eternidade. Serás reconhecido, Exu, serás louvado sempre Antes do começo de qualquer empreitada”.

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Para mais detalhes deste e outros 300 mitos do povo iorubano, ver PRANDI (2001). 29. Pambu Njila é o Nkisi equivalente ao Orixá Exu. 30. Virar para Caboclo, na tradição do Candomblé, é o momento de passagem dos toques dos Orixás para o toque de Caboclo. Marca claramente a distinção entre os atos litúrgicos. 31. Homens não-rodantes suspensos e confirmados para um determinado cargo. São escolhidos pelas divindades, que na sua iniciação, gritam seu orunkó na cerimônia aberta ao público. São pessoas importantes dentro do axé, existindo tarefas exclusivas para eles, como o toque dos atabaques e o sacrifício animal. 32. A expressão puxar cantiga é semelhante a entoar um cântico. O ogan ou o Caboclo, na oportunidade, pede agô – a licença – e puxa uma cantiga propícia para aquele momento. 33. Expressão conhecida no Candomblé semelhante à chegada dos nativos. 34. O sabaji, onde não-iniciados podem permanecer, é uma antessala do roncó, que é exclusivo para iniciados.

Notas | A Festa de Caboclo


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As Cantigas dos Nativos


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As Cantigas dos Nativos

As músicas de Caboclo têm conexão direta com os sambas de roda – canções curtas e bem humoradas de caráter popular entoadas, principalmente, no Recôncavo baiano – e têm um papel fundamental no reconhecimento da personalidade de cada Caboclo. É nas palavras que os encantados trazem em suas toadas que pode se distinguir uma persona da outra. Por ser uma cultura essencialmente oral, uma das principais formas de transmissão da sabedoria ritual se dá por meio das cantigas. São nestas circunstâncias que há, potencialmente, uma riqueza de conteúdo e significação seculares ainda pouco exploradas, já que é através da linguagem e da sua compreensão que ocorre o aprendizado. É sabido que para uma completa compreensão do léxico de uma comunidade é necessária uma imersão naquele contexto, mesmo não participando diretamente de suas atividades. Na ponderação acerca do objetivo deste livro, procura-se provocar uma reflexão acerca do papel dos formadores da cultura Cabocla como grandes responsáveis pela formação de nossa língua e cultura. Essa imersão, de fato, é necessária, porém ela já existe em nosso imaginário coletivo, já está impregnada em nossa formação, pois os negros advindos da linhagem banto e os índios, donos desta

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terra, foram atores primordiais na constituição da cultura e linguagem brasileiras. A imersão está no nosso dia a dia, no contato com nossa terra e nosso povo. Foi produzido, para a segunda parte deste livro, um agrupamento dessas cantigas. Através dos princípios do método de coleta de dados qualitativos, foram realizadas observações in loco, de forma não-participante, no ambiente original dos compositores do conteúdo e subsequente pesquisa bibliográfica para engrandecimento do corpus. Notas de campo foram produzidas a partir dessas observações, fornecendo documentação de grande parte das cantigas que compõem esta obra. Partindo deste cenário, foi realizada uma categorização que se ramifica num grande inventário de cantigas, o que permitiu a classificação dos dados em subcategorias segmentadas conceitualmente pelas semelhanças e diferenças do material do corpus. As toadas presentes nesta obra são aquelas que se mostraram mais representativas, no sentido de refletirem os costumes, identidades, cultura e história dos encantados. Não se pretende realizar nesta obra uma análise do corpus coletado. O que por ora apresenta-se aqui é um estudo prévio, com potencialidades para posteriores desdobramentos, podendo servir também

As Cantigas dos Nativos


As Cantigas dos Nativos

como fonte de dados e material de pesquisa para outros estudos. Existe uma ordem litúrgica pré-determinada nas festas dos terreiros de Candomblé. A separação das etapas de uma festa é visível, iniciada com a oferta a Exu e finalizada com os cânticos a Oxalufã, pai de todos os Orixás. Na festa em homenagem aos Caboclos não é diferente. A organização ritualística também é segmentada para um melhor desenrolar do rito. A classificação das cantigas segue a organização ritual, categorizadas nos seguintes tipos: Cantigas de Invocação; Salvas; Sambas; Sambas Históricos; Sambas de Caboclo; Cantigas de Sotaque; Cantigas de Despedida. Esta é a organização básica de uma festividade Cabocla nos Ilê Axés baianos, salvo raras exceções possivelmente existentes pelas mudanças pontuais de acordo com cada tradição e linhagem. Além destes tipos de cantigas, existem também as rezas que, por serem, em sua maioria, em língua banto e não se enquadrarem em uma ordem litúrgica pré-determinada não figuram neste corpus. Em análise preliminar, estas cantigas revelaram um grande potencial para pesquisa, podendo, inclusive, contar com estudos específicos para elas.

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Cantigas de Invocação

Cantigas de Invocação Muitas vezes, em uma festa, cantigas de fundamento são puxadas para o chamamento de Caboclos que ainda não se apresentaram. Estas cantigas irão preencher a categoria das Cantigas de Invocação. Elas rogam aos Caboclos a sua presença, ora enaltecendo suas qualidades, ora desafiando-o em sua honra de nativo para sua vinda à Terra. Na cerimônia é um momento de muita apreensão, pois o fundamento deve ser puxado de forma que não ofenda o encantado, mas o provoque a comparecer. Após o aceite da invocação, a alegria sobrepuja a aflição e os Caboclos começam as celebrações.

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Cantigas de Invocação

Gostou do índio, porque não vem ver? Gostou do índio, porque não vem ver? Se és caboclo venha obedecer! Se és caboclo porque veste pena, venha ver a força que tem a Jurema

Invocação Caboclo Pena Dourada

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Cadê minha corda de laçar meu boi? O meu boi fugiu eu não sei pra onde foi!

Invocação Caboclo Gentileiro

Cantigas de Invocção


Cantigas de Invocação

Ô, lua nova que clareia o mundo inteiro! Ô, lua nova não me deixe vacilar! Tatetu Oxóssi não me deixe vacilar. Tenho saudade dos meus companheiros tenho saudade dos caboclos de lá!

Invocação Caboclo Marujo

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Ô, abre-te, campo formoso abre-te, campo formoso cheio de tanta alegria cheio de tanta alegria!

Invocação Caboclo Pena Branca

Cantigas de Invocção


Cantigas de Invocação

Aê, Juçara Tumba Juçara, eu vim te ver aê, Juçara Tumba Juçara, como vai você?

Invocação Caboclo Capangueiro

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Cantigas de Invocação

Cai, cai,cai chuva de ouro cai, cai,cai chuva de ouro no terreiro de Angola no terreiro de Angola!

Invocação Caboclo Pena Verde

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Eu dei um tiro na sapucaia, não tem Caboclo que não ouça que não caia!

Invocação Caboclo Pena Verde

Cantigas de Invocção


Cantigas de Invocação

Pisa Caboclo aqui nesta aldeia mostra o seu sangue que corre nas veias!

Invocação Caboclo Sultão das Matas

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Tomba ê, Caboclo (tomba lá e cá) tomba aê, guerreiro (tomba lá e cá) tomba aê, meu pai (tomba lá e cá) não me deixe só!

Invocação Caboclo Marujo

Cantigas de Invocção



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Ainda tem caboclo debaixo da samambaia, debaixo da samambaia debaixo da samambaia!

Invocação Caboclo Sultão das Matas

Cantigas de Invocção


Cantigas de Invocação

Na minha boiada me falta um boi ô me falta um, ô me faltam dois!

Invocação Caboclo Pena Azul

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Salvas

Salvas Logo após a invocação e a entrada dos Caboclos, os encantados se apresentam à frente dos atabaques. Demonstrando profundo respeito àquele momento, ajoelhados e de cabeça baixa, puxam suas salvas, que são cantigas próprias de cada Caboclo, as quais são trazidas pelo encantado na primeira vez que se apresenta em Terra. Esta cantiga acompanhará o Caboclo em toda a sua trajetória e é, geralmente, uma reverência ao Orixá de Cabeça do iniciado ou uma homenagem à Casa que o acolheu. São cantigas de cunho emocional, muito bonitas e que não contam com acompanhamento de instrumentos. Neste momento, os atabaques se calam para escutar as palavras dos encantados.

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Salvas

Daquele lado me caiu uma estrela que só se apaga quando Deus mandar, ê mas eu sou um bom filho só me apuro com Oxum Apará, ê!

Salva Caboclo Boiadeiro Navizala

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Zai, zai, zai boa noite, meus senhores zai, zai, zai, boa noite, eu venho dar zai, zai, zai, eu me chamo Boiadeiro zai, zai, zai, n達o nego meu natural!

Salva Caboclo Boiadeiro

Salvas


Salvas

Apanha folha por folha tatamirô apanha maracanã tatamirô eu sou filho de Oxóssi, tatamirô Sultão das Matas me criou tatamirô!

Salva Caboclo Sultão das Matas

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Na toalha que Jesus nasceu diante dela eu me ajoelhei me abençoa, meu paizinho, me abençoa. me abençoa pelo amor de Deus! Me abençoa meu paizinho, me abençoa me abençoa que eu sou filho seu!

Salva Caboclo Sultão das Matas

Salvas



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Bandeira branca trago de um pai forte trago no peito uma estrela brilhante sempre visito essa casa santa com toda minha forรงa de guerreiro!

Salva Caboclo Pena Branca

Salvas


Salvas

Chegando aqui nesta aldeia com arco, flecha e meu cocar ĂŞ, boa noite, meus senhores eu sou um caboclo leal!

Salva CabocloPedra Preta

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Quem quiser saber meu nome vá no pé da Juremeira pisa na rama da Junça me chamo, aqui Seu Boiadeiro

Salva Caboclo Boiadeiro

Salvas


Salvas

Três pedras, três pedras aqui nesta aldeia uma maior, uma menor a mais pequena é que nos alumeia

Salva CabocloPena Branca

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Deus vos salve casa santa, ê aonde Deus fez a morada, ê aonde mora o cálice bento, ê e a hóstia consagrada êui!

Salva Caboclo Pena Azul

Salvas


Salvas

Andei, andei,ó pai pra conhecer A minha sina, pai é padecer ô abre a porta, pai venha me ver eu sou filho de Oxalá neto de Obaluaê!

Salva Caboclo Pena Branca

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Salvas

Foi agora que eu cheguei, dona! Foi agora que eu cheguei, dona! Cheguei agora!

Salva Caboclo Sult達o das Matas

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Eu venho de longe sem conhecer ninguĂŠm venho colher a rosa que a roseira tem!

Salva Caboclo Boiadeiro

Salvas


Salvas

Quem vem lá sou eu o maior é Deus no bater das cancelas sou eu, Boiadeiro, sou eu

Salva Caboclo Boiadeiro

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Salvas

Ê, curimã, rumei minha rede no tempo ê, curimã, mas veio tanto peixe dentro!

Salva Caboclo Pena Branca

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Mas eu sou t達o pequenininho meu paizinho, olhe eu! olhe eu, meu paizinho olhe eu!

Salva Caboclo Marujo

Salvas


Salvas

Tindorerê auê, caíza tindorerê sangue real eu sou filho, eu sou neto de Aruanda tindorerê auê, caíza!

Salva Caboclo Serra Negra

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Sambas

Sambas O momento de maior alegria em uma festa de Caboclo é quando estes estão livres para puxar seus sambas. São cantos alegres, com toques de congo e barravento, e letras bem humoradas, sempre enaltecendo os Orixás, sua Casa, sua pátria e sua história. Muitos Caboclos aproveitam o momento de descontração e puxam seus filhos e filhas para dançar no barracão. Bebem e dançam em frente aos atabaques, descomprometidos com as obrigações de dar consultas ou fazer limpezas. Esta hora é de confraternização e muito samba-de-roda. Duas subcategorias contemplam esta seção: os sambas históricos e os sambas de Caboclo. Ambos têm ritmo semelhante e são tocados no mesmo momento da festa. A diferença básica está no conteúdo, enquanto o primeiro toma como temática o orgulho, a brasilidade e a história do encantado que a entoa, o último é um canto solto, livre de tema e bem humorado.

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Sambas Hist贸ricos Sambas Hist贸ricos


Sambas Históricos

Maré já encheu maré já vazou de longe, bem longe, eu avistei Irará a minha casinha coberta de sapê meu arco, minha flecha minha cabaça de mel ô, Irará, Irará, Irará!

Samba Histórico Caboclo Guarani

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Seu Boiadeiro por aqui choveu seu Boiadeiro por aqui choveu choveu que abarrotou foi tanta 谩gua que seu boi nadou!

Samba Hist贸rico Caboclo Boiadeiro

Sambas Hist贸ricos


Sambas Históricos

Eu atirei eu atirei, ninguém viu Sultão das matas é quem sabe aonde a flecha caiu

Samba Histórico Caboclo Sete Flechas

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O verde é esperança amarelo é desespero azul é liberdade pro caboclo brasileiro!

Samba Histórico Caboclo Mata Cerrada

Sambas Históricos


Sambas Hist贸ricos

Sou brasileiro, brasileiro sou brasileiro imperador eu nasci foi no Brasil 么 brasileiro o que 茅 que sou?

Samba Hist贸rico Caboclo Sete Serras

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Meu Brasil, rei minha p谩tria amada com ela eu tenho tudo sem ela, n茫o tenho nada

Samba Hist贸rico Caboclo Eru

Sambas Hist贸ricos



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Ningu茅m me tira o que Deus me deu nasci no Brasil brasileiro sou eu

Samba Hist贸rico Caboclo Boiadeiro

Sambas Hist贸ricos


Sambas Históricos

Pedrinha miudinha de Aruanda, ê lajedo tão grande tão grande n’Aruanda ê!

Samba Histórico Caboclo Capangueiro

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Ai ai, minha Angola Ai ai, meu Angolá! É de Kitembo a minha bandeira é de Kitembo a bandeira real!

Samba Histórico Caboclo Sete Flechas

Sambas Históricos


Sambas Históricos

Bóia, bóia, Boiadeiro bóia, Bóia sem parar bóia, bóia, Boiadeiro que bela novilha da minha sinhá!

Samba Histórico Caboclo Tibiruçu

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Bóia, Boiadeiro Boiadeiro bóia se eu contar a vida moço, você chora!

Samba Histórico Caboclo Sete Flechas

Sambas Históricos



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Eu vi a lua, eu vi a lua eu vi a lua eu falei com ela eu vi a lua, eu vi a lua tateto Ox贸ssi mora dentro dela

Samba Hist贸rico Caboclo Pena Verde

Sambas Hist贸ricos


Sambas Histรณricos

Eu subi o morro eu desci a serra dei de cara com a onรงa, quase que a onรงa me pega!

Samba Histรณrico Caboclo Tupinambรก

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Tava caminhando pela mata do amazonas como vai? Como passou, sinha dona? Deus lhe d锚 boa noite, sinha dona!

Samba Hist贸rico Caboclo Pena Branca

Sambas Hist贸ricos


Sambas Históricos

Caboclo quando viu pavão Caboclo se admirou quando Caboclo foi pegar pavão pavão bateu asa e voou!

Samba Histórico Caboclo Tupinambá

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Sambas de Caboclo Sambas de Caboclo


Sambas de Caboclo

A menina foi embora a menina foi embora foi embora e me deixou nas asas do passarinho ela voou, voou nas asas do passarinho ela voou, voou!

Samba de Caboclo Caboclo Marujo

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Sereiá, sereiá sereiá, sereiá ó, sereiá eu nunca vi tanta areia no mar sereiá, sereiá!

Samba de Caboclo Caboclo Marujo

Sambas de Caboclo


Sambas de Caboclo

Mina hora ĂŞ mina hora mina hora ĂŞ sou de Angola!

Samba de Caboclo Caboclo Gentileiro

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O pandeiro não quer que eu sambe aqui a viola não quer que eu vá embora ô, pandeiro ô, viola!

Samba de Caboclo Caboclo Laje Grande

Sambas de Caboclo


Sambas de Caboclo

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Sem beber não faço samba Sem beber, não sei sambar sem beber não faço samba sem beber, não sei sambar!

Samba de Caboclo Caboclo Marujo

Sambas de Caboclo


Sambas de Caboclo

Bate tambor solta a piaba Caboclo do junco Caboclo da mata!

Samba de Caboclo Caboclo Sult達o das Matas

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ร , moรงa, me tire uma rosa me tire uma rosa, moรงa me tire uma rosa!

Samba de Caboclo Caboclo Boiadeiro

Sambas de Caboclo


Sambas de Caboclo

Minha senhora onde é que você mora? minha senhora onde é que você mora? vou fazer minha morada por cima do morro é lá, é lá minha morada é lá!

Samba de Caboclo Caboclo Boiadeiro

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Sou Caboclo brabo sou Caboclo grande sou Jequiriçá Caboclo e rei dos montes

Samba de Caboclo Caboclo Jequiriçá

Sambas de Caboclo


Sambas de Caboclo

Mamãe reclamou tô na beira d’água venha de balão, mamãe que eu tô comendo água tô comendo água de domingo a terça feira se a senhora reclamar eu bebo a semana inteira!

Samba de Caboclo Caboclo Marujo

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Sotaques

Sotaques Os sotaques, dentre todas as categorias organizadas, são as únicas cantigas que não tem uma ordem litúrgica pré-determinada para ser puxada. Geralmente, elas surgem entre os sambas, porém podem ser entoadas na despedida dos encantados ou até mesmo na sua salva. São temas desafiadores, que puxam a competição entre os encantados e os ogans da Casa. Muito bem humoradas, na maioria das vezes são tocadas em ritmo de samba.

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Sotaques

Ai, pai meu na sua boiada o seu melhor boi fui eu na sua boiada o seu melhor boi fui eu, pai meu pai Boiadeiro tenha d贸 de eu!

Sotaque Caboclo Sult茫o das Matas

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Sotaques


Sotaques

Você diz que sabe coisa, seu moço lagartixa sabe mais ela sobe nas paredes coisa que você não faz!

Sotaque Caboclo Marujo

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Ô dona da casa por Deus e Nossa Senhora dá-me o que beber senão eu vou-me embora!

Sotaque Caboclo Marujo

Sotaques


Sotaques

E lá fizeram efó me chamaram pra comer o efó saiu mal feito eu quero efó dê no que dê!

Sotaque Caboclo Marujo

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Minha jurema é doce é bom com muito mel quem não sabe beber dela é amarga como fel!

Sotaque Caboclo Gentileiro

Sotaques


Sotaques

Lá nas matas lá na Jurema é uma lei severa é uma lei sem pena!

Sotaque Caboclo Sultão das Matas

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Despedidas

Despedidas São cantigas que expressam o saudosismo e sempre mencionam a volta para Aruanda, seu lugar de origem. Não é incomum nestas cantigas, o encantado responsabilizar os Orixás pela chamada de volta à sua terra. Sempre, ao entoá-las, o Caboclo distribui bênçãos e axé para os participantes da festa, prometendo voltar em nova oportunidade. São cantigas bonitas e que enfatizam a alegria dos momentos de festa do Caboclo.

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Despedidas

Eu jรก vou embora para minha aldeia eu jรก vou embora, camarada para a Juremeira lรก tem sete estrelas sรฃo sete os caminhos todos levam a Deus, camarada nunca estou sozinho

Despedida Caboclo Sete Flechas

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Eu já vou, já vou eu já vou prá lá o meu pai me chama, eu sou filho obediente eu não posso mais ficar

Despedida Caboclo Boiadeiro

Despedidas


Despedidas

Um abraço dado de bom coração é o mesmo que uma bênção uma bênção uma bênção!

Despedida Caboclo Pena Dourada

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Eu vou embora num bal達o de vento meus camaradas se contentamento!

Despedida Caboclo Pena Branca

Despedidas


Despedidas

Aê, tata Ngoma cabula tá me chamando cabula tá me chamando cabula tá me chamando!

Despedida Caboclo Eru

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Despedidas

Mãe Oyá Quem chamou fui eu Mãe Oyá Sou um filho seu Mãe Oyá Quando eu for me embora Mãe Oyá Todo mundo chora

Despedida Caboclo Eru

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Eu jaziê, eu jaziá eu jaziê maiangolê maiangolá!

Despedida Caboclo Pena Branca

Despedidas


Despedidas

Despedida de Caboclo faz chorar despedida de Caboclo faz chorar, faz soluรงar!

Despedida Caboclo Eru

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Olha a folha do coqueiro, olha lรก. Se meus caboclos forem embora Eu vou buscar.

Despedida Caboclo Pena Branca

Despedidas


Despedidas

Adeus, camaradinha, adeus adeus que eu jรก vou embora e no balanรงo das รกguas eu vim e no balanรงo do mar eu vou agora!

Despedida Caboclo Eru

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Adeus, meu lírio verde adeus, meu lírio verde vou me embora pra Aruanda adeus, meu lírio verde!

Despedida Caboclo Pena Branca

Despedidas


Despedidas

Sambei, sambei sambei atĂŠ a madrugada acabou o samba agora, vou rever minha boiada!

Despedida Caboclo Eru

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Com a licenรงa do senhor com a licenรงa da senhora vem rompendo a madrugada Boiadeiro vai embora!

Despedida Caboclo Pena Branca

Despedidas


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Referências Bibliográficas BENISTE, José. As águas de Oxalá. 3ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand, 2005. 336 p. BÉHAGUE, Gerard. Correntes regionais e nacionais na música do candomblé baiano, in Afro-Asia, n° 12, Salvador, jun. 1976. BRASIL, Constituição. CARNEIRO, Édison. Religiões negras: notas de etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936. 188 p. CARNEIRO, Édison. Negros bantus: notas de ethnografia religiosa e de folk-lore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. 187 p. CHADA, Sonia. A música dos Caboclos nos candomblés baianos. Salvador: Fundação Gregório de Mattos: Edufba, 2006. 212 p. LÜHNING, Ângela. Música: coração do candomblé. In Revista USP, n° 115, São Paulo, 1990. PRANDI, Reginaldo. A dança dos caboclos: uma síntese do Brasil segundo os terreiros afrobrasileiros. 1998. Disponível


em http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/dancacab.htm PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade e religião. Revista Usp, São Paulo, nº 46, pp. 52-65, 2000. PRANDI, Reginaldo. Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. São Paulo: Pallas, Jan 2001 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SANTOS, Jocélio Teles dos. O Dono da Terra: O Caboclo nos Candomblés da Bahia. Salvador: SarahLetras, 1995. SANTOS, Jocélio Teles dos. Mapeamento dos terreiros de Salvador. 2008. SERRA, Ordep. Truinfo dos Caboclos. In CARVALHO, Maria, Ana. Índios e Caboclos: a história recontada. Edufba, 2012.


Este livro foi composto com a tipografia Alegreya Pro - da Huerta Tipografía - nos textos corridos e cantigas. Títulos em Candombe Regular. Impresso em papel pólen soft 80 g/m2. Projeto gráfico de Fernanda Ominibonarè Pinheiro e Ilustrações de Davi Correia.


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