Revista Verbo - Segunda Edição

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ÍNDICE EXPEDIENTE EDITOR Luiz Ribeiro

EDITOR ASSISTENTE Clarissa Assis

DIRETORA CRIATIVA Rayanne Elisã

EDITORIA DE FOTOGRAFIA Nichole Andrade Adelvando Neto, Edward Alejandro, Adeílton Bruna Santos

6 Editorial 8 A dor e a delícia de poder ser o que se é 12 Complexo de Édipo 13 A sociedade ama a prostituição e odeia as prostitutas 18 Qual é o gesto de segurança do seu corpo 22 Como vivem as amebas? 26 Tem que mostrar mesmo pras inimigas morrerem nas curvas 30 Próxima Primavera 31 Aprendendo com o corpo da pessoa com deficiência 35 Um devorador de mentes, corpos e sonhos: vamos falar

REDES SOCIAIS

sobre bullying

Editor: Pedro Gomes

38 Reminiscências da pele

Editor Assistente: Bruna Santos

BLOG Editor: Clarissa Assis Editor Assistente: Lucas Melo

EQUIPES DE REPORTAGEM Bruna Santos, Clarissa Assis, Iran Correia, João Marcelo, Luiz Ribeiro e Sarah Rego Thainara Amorim, ThâmaraAmorim Felipe Barros, Girlene Oliveira, Mariana Gonçalves, Rebeca Larissa e Vitória Lima

43 O corpo da mulher metalúrgica: saúde e patriarcado no trabalho

46 Literatura e sensações 47 O corpo da mulher, na universidade, é um campo de batalhas 52 Os limites do corpo 56 Imagem 58 Senhores do tempo

Giovanna Trajano, Luiza Moura, Noemí Fragoso e Pedro Brito

62 Corpo, arte e política

Adeilton Oliveira e Edward Lucena Joelson Augusto

66 Um corpo no mundo

Adelvando Queiroz, Gabriela Reis, Hanna Aragão, Márcio Correia, Maria Souza


A Revista Verbo é um produto da disciplina Narrativas Midiáticas do curso de Comunicação Social do Núcleo de Design e Comunicação do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco. O professor Diego Gouveia foi o responsável pela disciplina em 2018.1.


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ED I TO R I A L O mercado de notícias no mundo vem passando por intensas e aceleradas transformações provocadas, principalmente, pelos impactos das novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). O avanço dos estudos em Inteligência Artificial (IA) tem provocado transformações na produção de conteúdos informativos. Embora não esteja com amplo uso nas redações, acredita-se que, em breve, esse modo de produção domine o campo da comunicação. A IA impõe novas demandas à área quando provoca reflexões relacionadas ao fim do jornalismo. Tem-se percebido, por um lado, a precarização do trabalho na mídia corporativa, a diminuição do emprego formal e, por outro lado, o investimento em reportagens investigativas que priorizem a subjetividade como metodologia para o desenvolvimento de narrativas na contemporaneidade. Nesta segunda edição da Revista Verbo, produzida pela turma do terceiro período do curso de Comunicação Social do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco, optamos, mais uma vez, por mergulhar em textos que demandam mais tempos para serem redigidos e que passam longe do modelo da linguagem jornalística objetiva e positivista em que sentimentos e emoções são atributos inferiores. Ao longo das reportagens, o nosso leitor vai poder sentir e compreender os sentimentos envolvidos durante o processo de realização de apuração, redação e edição. O empenho dos estudantes envolvidos na realização deste produto de disciplina também merece destaque. Sem a coragem, ousadia e força de trabalho de cada um, não teríamos esta edição. O tema geral escolhido para esta revista foi: Corpo. Todas as reportagens e colunas abordam questões relacionadas aos corpos de alguma maneira. A mim, enquanto professor, fica o respeito pelo profissionalismo com que trabalharam e o orgulho de quem acompanhou cada etapa e viu o empenho para que tudo desse certo. E deu! Diego Gouveia, professor 6



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dor e a delícia de poder ser o que se é (Quase) todos os (não) clichês adolescentes vividos por Raí, um homem trans de 20 anos, olindense e futuro farmacêutico, repleto de sonhos e vontade de mudança Por Ana Maria, Rosana Menezes e Sarah Rêgo Fotos Wagner Henrique

entado no chão da sala da casa de uma amiga, pós-festa, com um sorriso despreocupado e um rosto amassado de quem ainda nem dormiu, Rainard, um homem trans, de 20 anos, mas conhecido como Raí, conversou sobre tudo aquilo que povoa a mente dos rapazes da sua idade e revelou um pouco mais. Enérgico, decidido, afetuoso e acima de tudo transparente, ele não tem medo das palavras e nem evita assuntos dolorosos. A ânsia de conhecer o mundo é reflexo da sua busca pela liberdade e o rap, sua vontade de ser ouvido e lembrado. Os maus bocados, vividos em tão pouca idade, não foram suficientes para fazê-lo desistir. A perseverança faz parte de sua personalidade. Estudante de Farmácia, resiste com classe a preconceitos de uma cidade do interior de Pernambuco, anseia melhorias ao lugar onde mora e reivindica seus direitos como de tantos outros trans. Como Raí diz quase como um mantra: “acredite em si, ame a si, porque você vai chegar lá”.

COMO FOI SUA INFÂNCIA? Tenho um irmão três anos mais novo. Vivemos juntos desde o nascimento dele até os seus nove anos. Quando a gente foi crescendo, ficou complicado porque olhava para ele e queria ter as coisas dele. Quando diziam “sai daqui que isso não é coisa para menina”, me incomodava, pois queria estar ali e não entendia o porquê. A primeira coisa que descobri foi que gostava de meninas, mas pensava que era lésbica, porque quando se é criança não passa na sua cabeça a ideia de ser outro gênero. É tanta inocência que você não compreende.

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V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M E COMO VOCÊ LIDOU COM ISSO?

Q UA N D O C O M E Ç O U TRANSFORMAÇÃO?

Aquilo que me contaram a vida toda foi de encontro ao que de fato eu sou. Então, precisei escolher outro caminho mesmo sabendo que nem todo mundo estaria comigo durante esse processo. Meus amigos e as pessoas que acreditam em mim são o que me dão forças.

SEU

PROCESSO

DE

Faz uns dois anos e parece que não faz quase nada porque é uma adaptação que o pessoal só vai acreditar mesmo quando eu começar o meu tratamento. Foi já na faculdade. Aos poucos, fui percebendo coisas que eu não gostava no meu corpo. Percebi que eu tinha incômodo com os meus seios. Com o tempo, fui me reconhecendo, sabendo o que eu queria e o que eu gostava, sem que me dissessem, igual fazem com a gente na infância, que dizem o que a gente tem que gostar, do brinquedo certo que a gente tem que brincar. A transformação com terapia hormonal e cirúrgica é uma coisa que eu estou bem em débito comigo mesmo. Eu passei um ano refletindo sobre isso, vendo os pós e os contras. Eu não queria tomar uma decisão precipitada. Assim que arranjar um emprego, eu consigo fazer.

COMO É A RELAÇÃO COM O SEU IRMÃO HOJE EM DIA? Meu irmão sempre foi muito aberto, é religioso, mas não desrespeita ninguém mesmo sendo educado pelo meu pai. Ele não aceita minha identidade, porém não a crítica. A educação recebida pelo meu pai contribui para uma certa rejeição, mas, quando não está na frente dele, chega até a me tratar como gosto de ser chamado.

COMO FORAM OS PROCESSOS DE DESCOBERTA?

E ATUALMENTE VOCÊ TEM UMA BOA CONVIVÊNCIA COM SEUS PAIS?

Tive momentos de loucura. Insanidade mesmo. Meu signo é uma coisa muito intensa, parece que tudo é o fim do mundo. Na minha adolescência, a coisa mais drástica que eu cheguei a fazer foi me mutilar. Cortei meu braço e escrevi a palavra liberdade. Não foi uma tentativa de suicídio. Foi uma cena para chamar atenção e dizer o que estava gritando dentro de mim e o que eu queria. Eu queria minha liberdade de ser eu mesmo. Queria usar as roupas que eu queria, cortar o cabelo do jeito que eu quisesse. Queria que minha família me amasse, me compreendesse e me aceitassem do jeito que eu sou. Eu estava me transformando em alguém que eles não conheciam. Eu estava me transformando em mim mesmo e não na pessoa que eles sonharam, na pessoa que meu pai idealizou.

Com meu pai é mais difícil, pois ele acha que pelo fato de eu ser um homem trans eu quero ser mais do que ele. Minha mãe não me critica, me aceita, tenta me tratar do jeito que eu quero, mas eu sei que é difícil também para ela. Teve uma fase em que eu não tinha me descoberto e ela cortou todas as minhas roupas masculinas, mas aquilo era o começo e o começo de tudo é sempre drástico e intenso, demora para você se acostumar. Com meu pai ainda não ocorreu isso, creio que ele nunca irá me aceitar. Ele paga a faculdade como uma obrigação, como um desencargo de consciência. Quando eu tiver minha independência, acredito que ele não vai mais querer fazer parte da minha vida. Ele mesmo disse que, se eu seguir o que eu quero e tomar hormônios, vai parar de me reconhecer como filho e é o que eu realmente acho que vai acontecer, mas isso não me impede, pois creio que a coisa mais triste é você viver reprimido dentro de si com uma coisa que sufoca, rasga, grita. EM RELAÇÃO A QUANDO VOCÊ FALOU QUE CHEGOU A SE RECONHECER COMO LÉSBICA. COMO FOI A REAÇÃO DAS PESSOAS? Teve uma coisa que me impressionou muito quando eu me reconheci lésbica. Na época, eu ainda morava com meu pai e ele ficou muito decepcionado. Ele me expulsou de casa e mandou eu morar com a minha mãe. Eu não queria aceitar aquilo e meu avô chegou para mim e perguntou: “Mas você só gosta de meninas ou você sente vontade de ser um menino?”. Na minha cabeça essa ideia era algo tão distante ainda, que, na hora, eu encarei aquilo como um preconceito dele. Eu não entendi o que ele estava querendo dizer. Eu não sabia a possibilidade de ser transexual.

Raí divide seu tempo entre a faculdade e os ensaios da banda de rap

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA esquema bem mochilão. Assim que eu tiver estabilidade financeira para eu deixar minha mãe bem e eu saber que meu pai está bem, vou fazer minha vida. Família a gente faz em todo lugar e raiz não é só onde a gente nasce, mas em qualquer lugar. Tem muita gente boa por aí. Gente diferente e linda.

EM ALGUM MOMENTO VOCÊ PENSOU EM DESISTIR? Já. Várias vezes. Você pensa: “eu vou pelo caminho mais fácil. Eu vou parar com isso e vou dizer que foi tudo brincadeira. Vou seguir pelo caminho que vai me dar um emprego massa e, depois, no futuro, eu decido se vou fazer isso”. Mas você não consegue. Tem uma parte de você que ou vai morrer, ou vai querer ficar gritando. Querer ficar rasgando você e isso é bem mais doloroso. Eu não vou ser feliz de outro jeito. Então, eu não tenho opção. Eu vou ter que ser eu mesmo.

QUAIS SÃO SEUS SONHOS? Música. Eu tenho muito sonho. Eu gosto muito de rap. Eu tenho muito sonho de engajar também numa profissão de eletrônica. Eu gosto de música eletrônica. A viagem é boa, mas o rap é a raiz, é aquela coisa, você fala em poesia, palavras rimadas, toda a dor de dentro para fora. Eu gosto disso porque no fim de tudo eu quero que tenha um recado meu deixado aí no mundo, na humanidade de alguma forma.

COMO VOCÊ LIDA COM O FATO DAS PESSOAS NÃO TE CHAMAREM PELO SEU NOME? Incomoda. Sempre incomoda. Depois que eu me reconheci como “ele/dele”, a cada vez que me tratam como “ela/dela” me sinto incomodado.

A SOCIEDADE EVOLUIU CONSIDERAVELMENTE NOS ÚLTIMOS ANOS, MAS EU TENHO CERTEZA QUE FALTA MUITO PARA EVOLUIR. O QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ FALTANDO?

COMO VOCÊ EXPLICARIA SEU ENVOLVIMENTO COM O UNIVERSO MASCULINO?

Falta educação. A estrutura básica de todo ser humano é uma educação que não diga o que você tem que fazer, mas uma educação que mostre quem você quer ser e de uma forma boa.

Eu me sentia atraído por ambos os sexos, mas a atração pelas mulheres era algo sexual, enquanto a do homem era de admiração. Eu queria ter aquele corpo, ter a fisiologia. São dois tipos de atrações diferentes e, com o decorrer dos anos, eu confundi muito esses tipos, porque eu achava que desejava os homens sexualmente e quando chegava na hora toda vez era uma decepção. Demorou muito para descobrir que a questão não era querer o cara e sim querer ser o cara.

E QUAL O RECADO QUE VOCÊ DEIXARIA PARA QUEM ESTÁ PASSANDO POR UMA TRANSFORMAÇÃO COMO A QUE VOCÊ PASSOU? Força. Tenha força. Acredite em si. Acima de tudo ame a si mesmo. Aposte em si porque você vai chegar lá. Você vai conseguir por mais difícil que seja e eu sei que é. Cada passo é difícil na caminhada. As críticas não são fáceis não.

NA SUA OPINIÃO, QUE MELHORIAS CARUARU PODERIA OFERECER PARA A COMUNIDADE TRANSEXUAL? Eu acho que em Caruaru a coisa que mais me incomoda e me impossibilita de começar o meu tratamento é que só existem hospitais encarregados de dar solicitação de encaminhamento para Recife. Daí as pessoas precisam estar se deslocando daqui para a capital. Caruaru é um ponto central, já devia ter um posto de assistência, ao menos psicológica, para adiantar o processo. Além disso, as pessoas ainda têm que se submeter a uma lista de espera, que é um processo que demora muito, por isso, estou optando por fazer meu tratamento quando tiver condições em vez de esperar pelo tratamento público. COMO É QUE VOCÊ VÊ SEU FUTURO? SUAS RELAÇÕES PROFISSIONAIS? COMO VOCÊ SE VÊ DENTRO DESSE CAMPO? Eu faço minha faculdade muito mais para ajudar meu pai, para ajudar minha mãe do que por mim mesmo. Se dependesse de mim, eu já estava mundo afora. Rodando em um

Os amigos de Raí são fundamentais na constituição de quem ele é

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Complexo de Édipo

Luiz Ribeiro @tupinamb4ch_

“O que fazer?” Todo músico, arranjador ou compositor, quando se propõe a realizar algo, sozinho ou com outras pessoas, a partir do seu eu criativo, daquilo que o faz debruçar-se sobre o instrumento ou sobre a própria voz, à procura de um sentido maior ou simplesmente pelo seu prazer individual (e monetário), se faz essa pergunta. A verdade é que compor deriva menos da inspiração do que do contexto e do trabalho que muitas vezes se assemelha a um trabalho convencional. Construindo peça por peça, ele destoa totalmente da figura romântica do compositor que recebe toda a canção por um sopro divino e misterioso. Mozart, Beethoven, Tchaikovsky ou qualquer um desses grandes europeus que costumamos ter quase medo de ouvir suavam e muito a camisa. Mas o que quero mesmo falar, com a intenção de não tomar (muito) o seu tempo, é daqueles músicos que, tal como engenheiros e arquitetos de prédios do futuro, erigidos sob e sobre o mar e com zero impacto ambiental, constroem músicas do futuro, capazes de quebrar as barreiras singulares do ouvir, em direção ao sentir, numa experiência quase transcendental. Um exemplo: “Ocean (Bloom)”, versão de uma música do Radiohead pensada pela própria banda e por Hans Zimmer, um dos melhores e mais requisitados compositores de trilhas sonoras em atividade, explora os limites da criação ao incorporar o pontilhismo, uma técnica de pintura, na composição. Nos seus cinco minutos e pouco, a canção se assemelha a ondas do mar, em que o nascer e o morrer de um violino é seguido pelo nascer e morrer de outro. Nesse ciclo contínuo, mergulhamos numa espécie de oceano musical. A peça foi encomendada para a série Blue Planet II, da BBC de Londres. Os anos 1960 e 1970 foi o período em que a música pop começou a experimentar mais e mais, desafiando a ideia de um rótulo musical específico. Eu, sendo você, embarcaria nas inúmeras camadas (sons de carros, conversas e metais dialogando com percussões) da canção “Épico”, de um Caetano Veloso experimental em “Araçá Azul”, disco de 1972, e de “Jóia”, música homônima do disco de 1975. Em “Jóia”, a coisa é mais sofisticada ainda por se dar unicamente pelo aspecto melódico e lírico, com vozes em coro, percussões indígenas e uma letra simples. Em um minuto e meio, viajamos de um Brasil pré-colonizado à Copacabana dos anos 70. [...] Beira de mar na América do Sul Um selvagem levanta o braço Abre a mão e tira um caju Um momento de grande amor De grande amor [...] Copacabana Louca total e completamente louca A menina muito contente Toca a coca-cola na boca Um momento de puro amor De puro amor (Jóia - Caetano Veloso)

Não sei se você vai ouvir essas três músicas. Aconselho que ouça. Aconselho também, rapidamente, antes de eu ter que me despedir e você pular para outro texto, que assista ao TED Talks de Evelyn Glennie, uma percussionista escocesa totalmente surda. Talvez dessa forma e de outras, indo sempre atrás de coisas novas, a gente consiga entender que música é muito mais que ouvir, é sentir.


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sociedade ama a prostituição e odeia as p r o s t i t u ta s Aquele que não tiver pecado atire a primeira pedra. Em tempos de fácil acesso a vídeos na internet e aos corpos, a prostituição continua levando pedradas enquanto importantes questões trabalhistas e de saúde são negadas Por Bruna Santos, Clarissa Assis, Iran Correia, João Marcelo, Luiz Ribeiro e Sarah Rego Fotos: Bruna Santos


V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M Glamourizadas na TV, julgadas na vida real. A sociedade julga, aponta e cospe. “Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!”, diz Chico Buarque em Geni e o zepelim, uma de suas canções mais famosas. A prostituição incomoda. A prostituição feminina, ainda mais. A sociedade fundamentada no patriarcalismo é feroz. Ela rasga, maltrata, mastiga e cospe o pouco que resta desse gênero tão forte e subjugado. Em Caruaru, essa realidade não seria diferente. A Revista Verbo foi conferir essa realidade de perto por alguns dias. Nas ruas de Vitalino e Israel Filho, no roteiro do barro e da música, nossos pés se acostumaram, na companhia de muitos sóis e luas, a percorrer ao longo dos anos o lado turístico da capital do forró. Dessa vez, a proposta era caminhar em busca de Marias, Anas, Verônicas, Josés, Amaros e outros tantos nomes de batismo ou inventados por conveniência. Bar do Pepeu, Taty Drinks, Rosana’s Drinks e Casa Verde Bar foram os locais visitados. Em todos os cantos, fomos bem recebidos com um ar de curiosidade e compartilhamos as histórias agora com vocês.

pudéssemos ver que pelo contato já eram clientes da casa. Uma das moças o abraçou e disse “que bom que você pôde vir’’. Ao caminhar na parte interna do local, vários quartos temáticos, luzes coloridas e garotas lindas e produzidas por todos os lados. Mesmo a chegada de alguns policiais, fora do seu horário de trabalho, não pareceu intimidar a confiança ensaiada daquelas mulheres. Sabrina, como se apresentou a loira de belo rosto que comungou conosco o sabor da gelada cerveja, disse estar ali motivada por uma meta: construir sua casa. Acrescentou que gosta do que faz. Com orgulho, nos contou sobre como conseguiu fazer a mudança da sua vida trabalhando com o seu corpo, como não tinha vergonha alguma de fazer o que fazia e que sua renda mensal chegava até R$ 20 mil por mês, em encontros que chegam a R$ 300. Riu quando comparada a Britney Spears e disse que ouvia isso com bastante frequência. Diferente dos outros ambientes que visitamos, Taty tinha uma atmosfera menos crua, menos afetada pela realidade. Um ar de luxo que não estava presente nas outras casas que fomos. A realidade que existe por trás da luzes e do álcool pôde ser vista na entrevista que tivemos com ela alguns dias depois. Apesar da sua condição social, Sabrina afirma ter tido uma vida humilde e difícil. Sem a presença do pai, sua mãe também era prostituta e tinha que sustentar os três filhos. Aos 14 anos, um tio adotivo que morava no exterior e com boas condições financeiras

Bar do Pepeu No Bar do Pepeu, o barulho de carros e vozes nas oficinas e lojas contrastam com o som do bom brega que teima em ecoar de uma iluminada radiola de fichas. Bar ou cabaré? A dúvida permanece até deparar-se com belas e arrumadas mulheres, educadamente enfileiradas nas cadeiras das mesas, logo na porta de entrada. Uma jovem loira, boca de um ardente vermelho, pernas e coxas torneadas à vista sob o minúsculo vestido, de forma simpática aponta para Pepeu que, por trás do balcão, se destaca como proprietário do estabelecimento, a comandar com o olhar atento todos os movimentos. Após explanar sobre nosso intento, de forma amistosa, Pepeu nos convida a retornar no final da tarde, mas, antes, diz que seu bar funciona das 8h às 17h, que possui dormitórios nos andares de cima do bar e não se oporia a nenhuma entrevista dada pelas meninas. Não há passante que suspeite que na rua funciona um cabaré ladeado por lojas, oficinas e lanchonetes. No final da tarde, as ruas de Pepeu, Rosana, Taty viram roteiro de corpos e vidas, arrastados sob o trânsito caótico e intenso das ruas da centenária Caruaru. Taty Drinks A rua totalmente deserta é iluminada pela lua fraca de uma noite nublada. Estamos no Taty Bar. “A entrada custa R$15 por pessoa, com direito a uma cerveja”, anuncia a recepcionista de voz grave, que nos recebe no cabaré. Forró estilizado tocando ao fundo, com os maiores sucessos, as luzes neon e um grupo de garotas ao fundo, dançando e cantando como se estivessem em uma festa com suas amigas mais próximas. Com roupas brilhantes, que combinavam com a atmosfera do local, fomos bem recebidos. Não demorou para que os primeiros clientes chegassem e

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA se ofereceu para criá-la. Ele prometeu educação e uma boa vida, mas a seduziu e tirou sua virgindade, não oferecendo nada que havia prometido e acabando com seu sonho de ser juíza. A relação resultou em três filhos que, segundo Sabrina, são o amor da vida dela. Começou a trabalhar com prostituição quando, sem conseguir emprego e sem estudos, precisou fazer programas. Casa Verde Bar Salete: Boa tarde? Boa tarde, Salete. Salete é a mulher que relata com precisão os detalhes de uma vivência na prostituição e sua ascensão até se tornar dona do cabaré em que começou sua vida. Ainda jovem, Salete se tornou fruto do desejo de vários homens que queriam tê-la como troféu. Cheirosa, sexy, pele radiante, ápice do tesão daqueles que querem saciar seu desejo. Seus relatos se dão dentro da sua casa. Em um sofá, nos convida a sentar. Ela fala sobre seus momentos prazerosos, quase prazerosos e aqueles que são duros de acreditar que existiram, mas são reais. A prostituição não dá poderes para adivinhar quem tem uma arma na cintura para te obrigar a realizar o desejo do outro, ou quem sabe só uma necessidade tremenda de conversar, tendo como companhias aquele copo com uma bebida qualquer, um cigarro aceso e uma mulher. Salete começou a trabalhar no bordel quando ainda era adolescente e permanece lá até hoje, aos 36 anos. Mas depois de alguns anos na profissão, ela assumiu os cuidados com o local e com as meninas que trabalham lá. Mesmo com mais responsabilidades, Salete ainda possui dois clientes fixos, os únicos que ela se envolve atualmente. Ela conta que a maioria das meninas que trabalham lá, assim como ela, estão na profissão por necessidade e não por gosto pelo que fazem e que, muitas vezes, mentem sobre suas profissões, dizendo que trabalham em lanchonetes. Explica que já houve exceções, mas que, em sua grande parte, as meninas estão lá porque precisam ajudar em casa ou cuidar dos filhos. Sobre sua permanência no ramo, Salete deixa explícita sua vontade de abandonar tudo, principalmente por diversos traumas que chegou a passar e a fizeram ser dependente de acompanhamento psiquiátrico com medicações para melhorar sua qualidade de vida. Salete conta que uma vez em que estava no meio de uma relação sexual com um cliente ele queria forçá-la a fazer algo que ela não queria. Sem aceitar o pedido, Salete teve uma arma engatilhada apontada para a sua cabeça. Segundo ela, esse comportamento chegou a diminuir com a Lei Maria da Penha. Na falta do Centro de Orientação e Aconselhamento Sorológico (Coas), o papel de instrução e cuidados fica por conta de Salete, que admite saber do risco que essa ausência acaba causando para o trabalho das meninas, que também não davam atenção às palestras.

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Rosana’s Drinks

salão, parecia ser a mais entediada das três. No final da conversa, começou a sorrir de algumas das nossas perguntas. Natural de Catende, aos 18 anos, por intermédio da sobrinha de uma amiga e por necessidade extrema, virou prostituta. Não tinha o que comer e também não tinha estudo ou algum conhecimento para qualquer emprego. Acabou encontrando no bar da Marquês de Tamandaré uma forma de ganhar dinheiro e ajudar a família. Dez anos depois, sem pretensão de sair, continua. Seus parentes não sabem. Uma vez, o marido da prima chegou a encontrá-la na frente do bar, mas, se falou para outras pessoas, não repercutiu muito. Ester, a última a se juntar a conversa, tinha um tom tímido e respostas curtas, como se quisesse evitar qualquer pena ou idealização que nós viéssemos a ter. Se separou de um namorado que começou a entrar no tráfico e viu que não tinha emprego para ela. O mercado das drogas não era uma alternativa. O Centro de Orientação e Apoio em Aids/Centro de Testagem e Aconselhamento (COAS/CTA) é quase uma lenda, aparecendo ali muito raramente. A Igreja, facilmente deixada de lado, só tem conversa. “Eles ficam dizendo que não era para gente estar nisso. Falar é fácil. Resolver é difícil”, afirmam quase em unanimidade. O que Rosana’s Drinks, da Marquês de Tamandaré, tem a nos dizer? O que quer que seja é dito com diversas músicas tocadas numa jukebox vintage. É dito pelas paredes vermelhas e pelas mesas e cadeiras de plástico ao longo do bar. É dito pelos dormitórios espalhados por ali. E é verbalizado por aquelas mulheres que, complexas e tão diferentes entre si, trabalham juntas e compartilham um afiado senso de coletividade.

A música e a luz contrastam com o fim do expediente no comércio. Em torno das 19h, na rua Marquês de Tamandaré, no Divinópolis, área central, as lojas vão fechando e os funcionários indo jantar ou pegar o ônibus para casa. Dali em diante, tem início outro expediente que vai até as primeiras horas de sol, quando a bebida acaba e todos e todas estão cansados demais para qualquer coisa. No Brasil, nós amamos a prostituição e odiamos os prostitutos. Fomos recebidos por Rosana, dona do bar, e seu filho, que marcou e observou a conversa. Sentamos frente a frente com Patrícia e Roberta. Ester chegaria depois. O nível econômico é claramente diferente em relação ao Taty Drinks, que tem prostitutas jovens e clientes bem-vestidos, recém-saídos de escolas particulares da cidade, filhos de empresários e políticos. No salão de danças do bar, em meio à luz caleidoscópica e a música que ia e vinha, Roberta foi a primeira que encontramos sentada para conversar com a gente, mas Patrícia, que chegou depois, se portava quase como uma executiva dando uma pausa no trabalho para dar uma entrevista sobre o mercado financeiro. Tinha olhos rápidos por trás dos óculos e do cabelo escovado. Foi a primeira a falar sobre sua história. Patrícia terminou um relacionamento conturbado, teve depressão. Conseguiu se livrar da doença e da falta de dinheiro ao ser chamada por uma amiga para trabalhar no município de Santa Cruz do Capibaribe, cidade vizinha a Caruaru. Tempos depois, mudou-se para a maior cidade do Agreste pernambucano. Agora, aos 48 anos, não quer mais muito tempo ali. Ao mesmo tempo que almeja terminar de construir a casa e abrir uma lojinha, afirma que sustenta os quatro netos e os dois filhos com o trabalho. Roberta, que, de vez em quando, baixava a cabeça para olhar o

* Nomes fictícios, utilizados para preservar a identidade das entrevistadas.

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Qual

é o gesto de segurança do seu corpo? Nem só de chicotes, velas, látex vivem as pessoas que curtem o BDSM. Nesta reportagem, a gente quer desconstruir o senso comum e ressignificar a Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo, estilo de vida que conta com código de conduta para dar segurança aos praticantes Por Bruna Santos e Luiz Ribeiro


F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA História do BDSM O termo BDSM, por mais estranho que possa parecer, já deve ter passado despercebido por você alguma vez, nem que tenha sido com o termo sadomasoquismo. Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo (BDSM) é uma sigla que agrupa diversos tipos de práticas sexuais que envolvem relações de poder entre submisso e dominador e suas diversas abordagens. Não existe muita certeza acerca do início das práticas de BDSM. Aparentemente, o começo foi há mais tempo do que muita gente imagina. Uma pintura rupestre foi encontrada em um cemitério Etrusco, dentro da Tomba dela Fustigazione, tumba do século VI antes de Cristo, em que dois homens foram retratados flagelando uma mulher com uma cane, vara flexível usada para castigos disciplinares, em uma situação erótica. Definir com precisão o início de tudo é uma tarefa difícil até para os estudiosos da área. Por se tratar de uma soma de práticas, cada uma delas teve seu auge em momentos diferentes da história. Algumas delas práticas, como o spanking, disciplinar o parceiro com pequenas tapas, teve origem por meio do Kama Sutra, quando, no livro, são descritos quatro locais diferentes do corpo humano em que se poderia bater durante as relações sexuais. Falar de BDSM atualmente é ser direcionado ao universo de “Cinquenta Tons de Cinza”, franquia de best sellers de E. L. James sobre o milionário Christian Grey, que, em sua intimidade, é adepto das práticas de sadomasoquismo e dominação. Diante do sucesso dos livros e filmes, é complicado dissociar a imagem passada na história da realidade das relações desse universo que, segundo nossos entrevistados, é bem diferente do que foi mostrado nas cenas da saga de Mr. Grey. Há quem considere que o BDSM não se restringe à relação sexual. É, no entanto, antes de tudo, uma filosofia de vida e não apenas um fetiche. Por muito tempo, o BDSM foi mais conhecido a partir do termo sadomasoquismo, como frisamos no início do texto. Duas personalidades estão ligadas às nomenclaturas sadismo e masoquismo, Marquês de Sade e Leopold Ritter Von Sacher Masoch, que inspiraram os nomes adotados para as práticas. O termo “sadismo” é inspirado em Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, que popularizou o que é conhecido como perversão sexual e sentimento de prazer com a dor física ou emocional do seu parceiro. Já Leopold Ritter era um escritor e jornalista austríaco que inspirou o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing na criação do termo ‘’masoquismo’’ graças ao seu romance “Vênus de Peles”, no qual o personagem principal atinge o ápice sexual após ser espancado pelo amante de sua esposa. A significância desses termos evoluiu com o passar do tempo e passou também a agregar novas modalidades. A sigla BDSM propriamente dita foi criada entre os anos 80 e 90 com disseminação mais forte entre os grupos homossexuais e teve seu auge com o início da internet. Hoje, representa uma clareza entre a relação de dominação consensual em busca do prazer de ambas as partes, saindo do estigma de perversão e abuso.

Dominação 1. 2.

ter grande ascendência ou autoridade sobre. conhecer e saber empregar com proficiência.

Os dicionários são claros com o significado do termo dominação. E é justamente essa conceituação que faz com que, ao se pensar em dominadores e a prática de dominação, haja pensamentos negativos e de desaprovação. O senso comum tende a considerar o BDSM perverso e patológico. No entanto, é importante quebrar essa visão e entender que esse estilo de vida existe e que muitas pessoas são adeptas. Há, por exemplo, o uso do conceito SSC para dizer que a atividade é Sã, Segura e Consentida. Nenhuma das atividades BDSM deve ser praticada sem que todos os indivíduos concordem com o que esteja acontecendo. O dialogo é muito importante entre seus praticantes. No BDSM, o dominador é alguém que sente prazer no poder que tem em controlar física e psicologicamente uma personalidade submissa. O desejo não está somente em quem domina, mas também no dominado, que sente prazer em ocupar esse papel. Algo interessante de se apontar é que não se deve acreditar que o dominador é melhor que o dominado.

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V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M tentativas de ‘apimentar’ a relação, mas preferem dizer que não concordam”, completa Marcos. Apesar de termos dois personagens homens como dominadores, é importante destacar que existem muitas mulheres que atuam como dominadoras e em relações homossexuais masculinas também é comum um dos parceiros sentirem prazer na submissão.

Submissão “Shiny, shiny Shiny boots of leather” Venus In Furs - Velvet Underground & Nico Essa música é conhecida por incluir temas sexuais associados ao sadomasoquismo, escravidão e submissão. Além da música, outra associação que Assunção, de 22 anos, faz, quando pensa em BDSM, é com o filme “A Secretária”, produção hollywoodiana dirigida por Steven Shainberg. No enredo, uma mulher recém-saída de um hospital psiquiátrico começa a trabalhar como secretária para um advogado. Aos poucos, a relação dos dois se transforma num romance sadomasoquista. Aos 16 anos, depois de assistir ao filme, Assunção começou a pesquisar mais a fundo. Com a Internet e o Facebook a seu favor, não foi difícil encontrar mais e mais grupos que praticavam e conversavam sobre as mesmas coisas que ela conheceu com o longa. Descobrir e se juntar àquelas pessoas foi decisivo para seu empoderamento e pertencimento enquanto praticante. Ela deixa claro que não existem níveis, em que, no último, se faria de tudo e, no primeiro, quase nada. Na verdade, muito do que acontece entre duas ou mais pessoas é acordado antes da relação e é possível misturar formas de atuação que vão muito além da fórmula yin e yang de dominador e submisso. O BDSM, antes de tudo, se pauta pelo consenso. No caso de Assunção e, segundo ela, de muitas outras pessoas, há também muito sexo baunilha, isto é, o tipo de relação sexual mais comum, vista e mencionada com mais frequência. Para ela, isso não é ruim. Assunção, inicialmente, se encarava como submissa, mas, aos poucos, essa postura foi mudando e desembocando numa categoria intitulada brat, espécie de jogo de poder em que a brat tenta ser dominada pelo tammer, uma derivação mais complexa do dominador. A tentativa de dominação é o que movimenta e intensifica o sexo. “Não é tão fácil arrancar o lado submisso dessa pessoa”, diz. Longe de tudo que envolva chuva marrom (com fezes), chuva romana (com vômitos) e mordidas - ela as odeia -, Assunção é pansexual e se entendeu enquanto pan muito antes de descobrir o BDSM. A heteronormatividade a irrita e muito do que a fez detestar a franquia de “50 tons de Cinza” foi a padronização de beleza, de orientação sexual e de gênero presente nas obras. “Não há pessoas LGBTQIAs nessas histórias”, comenta. Em suma, não há a diversidade que o BDSM é.

Socialmente, se estabeleceu que precisamos ser dominadores e não dominados. O BDSM rompe essas fronteiras, quebrando essa noção. Para os praticantes, não existe uma função melhor que a outra. São apenas formas de vida diferentes. Existem dominadores que apenas assumem essa personalidade durante as relações sexuais e em momentos íntimos, em seus diversos níveis da prática, mas também existem pessoas que fazem da dominação um modo integral de viver, levando sua relação para fora do quarto e assumindo uma responsabilidade de instruir, ensinar e zelar pela segurança de seus submissos. Um dominador não é sempre um mestre, mas um mestre sempre será um dominador. O mestre no BDSM é alguém muito conhecedor e experiente numa determinada prática. Bruno, de 21 anos, conheceu o BDSM com 17 anos por meio da internet. De acordo com ele, compreende muito quando se trata de dominar. A demonstração de poder é a matriz das relações que ele mantém. Associando essa dominação às questões sensoriais, ele atinge prazer quando causa dor/prazer na outra pessoa, por isso passou a utilizar o BDSM como uma prática constante. Já Marcos, de 23 anos, se reconheceu nesse universo ainda muito novo, sem nem mesmo saber que suas preferências tinham nomes específico e muitos adeptos a elas. Ele só passou a nomear de BDSM alguns anos depois em uma conversa entre amigos. Para Marcos, grande parte do prazer está diretamente ligado à confiança que é dada pela pessoa submissa que o acompanha. “Estar no comando e ver que aquela pessoa depende de você para se sentir bem de alguma forma é o que me dá prazer”. Marcos conta que hoje está completamente familiarizado com as práticas de dominação, tendo parceiras apenas que o acompanhem em suas preferências. Tanto Marcos quanto Bruno consideram que há preconceito e estranhamento com as práticas do BDSM porque as pessoas não conhecem o assunto. “Muitas delas já experimentaram naquelas

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA Entenda melhor os conceitos do BDSM na lista abaixo:

Sex Toys Bondage: é a arte de amarrar ou ser amarrado. Pode ser feito tanto com cordas quanto algemas, correntes ou grilhões. Disciplina: é a técnica de disciplinar ou ser disciplinado por uma pessoa para diversos fins, normalmente associado às práticas sexuais, mas também podendo ser praticado no dia a dia. Sadismo: é quando uma pessoa sente prazer em provocar dor em outra pessoa. No BDSM, essa prática é sempre consentida pelo parceiro. Masoquismo: é quando uma pessoa sente prazer em sentir dor. No BSDM, essa prática é consentida pelo parceiro. Dominador ou dominadora (Dom/me): É quem sente prazer em controlar, física ou psicologicamente, o parceiro. Lembrando que os termos foram acordados previamente entre os dois. Qualquer gênero pode ser dominador. Não existe um Dom sem um sub. Submissos ou submissas (sub): É quem sente prazer em receber e acatar as vontades de seu Domme. Novamente, pode ser de qualquer gênero. Não existe um sub sem um Dom. Também existem as pessoas que gostam de ocupar as duas posições, tanto de dominante quanto de submisso. São os chamados switch. Palavra de segurança: Uma ou mais palavras - podem ser movimentos ou gestos também - usadas pelo submisso para comunicar ao dominador que chegou ao limite. No livro, Anastasia utiliza as palavras vermelho e amarelo. Código de boas práticas: Todo relacionamento seguro baseado no BDSM deve ser regrado por um contrato em que são colocados limites e traz proteção para os envolvidos. Na prática, os praticantes devem seguir o código de boas práticas. Um deles, por exemplo, é sobre o consumo de drogas e álcool, que não é recomendado que os praticantes façam uso antes ou durante a prática. Também é recomendado que os participantes façam alguns exames de saúde, para saber os limites e as restrições de cada um.

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Como

vivem as amebas Uma nova cor no arco-íris da diversidade Por Thainara Amorim, ThâmaraAmorim Ilustrações: Ana Maria

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oucas pessoas se atentam para o + na sigla LGBTQI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros, queers, intersexuais), símbolo que representa quaisquer outras identidades sexuais ou de gênero que não se encaixem na cis ou heteronormatividade. Entre elas, existe um grupo de pessoas que se caracterizam como assexuais. Não, eles não podem se dividir em duas partes como uma ameba em reprodução assexuada por divisão celular, pois, nesse caso, dominariam o mundo. Ser assexual apenas significa que você sente pouca ou nenhuma atração sexual seja por qual gênero for. A estudante universitária Miranda, de 19 anos, se identifica como ace (sigla diminutiva para assexual) arromântica, que não experimenta atração romântica por nenhum gênero, desde o último ano do Ensino Médio e afirma que a descoberta da própria orientação foi mais difícil do que se assumir publicamente. “Eu nunca tinha sentido necessidade de beijar, namorar e minhas amigas sim, o que me fazia questionar o porquê de eu ter quase 18 anos e nunca ter feito ou querido nada dessas coisas”. Miranda se sentia constrangida nos eventos sociais dos amigos, pois sempre estavam falando sobre ficar ou namorar com outras pessoas e isso nem passava pela sua cabeça. “Foi quando comecei a pesquisar sobre o que seria essa minha falta de interesse. As informações sobre assexualidade são muito escassas, o que mais tem é especialista falando sobre a orientação mais como uma patologia do que como uma coisa normal”. Essas configurações podem ser explicadas pela novidade do termo, que foi apenas divulgado na internet no começo da década passada por ativistas como David Jay, assexual norte-americano que fundou, em 2001, a comunidade Asexual Visibility and Education Network (AVen). Até hoje a Aven é a mais prolífica e acessada comunidade nas mídias sociais. Uma pesquisa promovida pelo Kinsey Institute for Research in Sex, Gender and Reproduction, instituto de pesquisa nos campos de gênero, sexualidade e reprodução humana, contabilizou que 1% da população norteamericana não tinha qualquer interesse de cunho sexual por ninguém, mas, desde lá, 22


F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA as pesquisas nesse campo vêm aumentando. De acordo com o Estadão, dados do Programa de Estudos da Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP estimam que 7, 7% das mulheres brasileiras e cerca de 2,5% dos homens brasileiros se encaixam nas características da assexualidade. De acordo com Miranda, a novidade da classificação cria obstáculos não somente para autoidentificação da comunidade, mas torna a tarefa de se recomhecer assexual para os pais e amigos ainda mais complicada, “Decidi falar para os meus amigos no meio de uma conversa comum. Tive sorte, pois eles não pareceram se importar muito. Só tiveram certa curiosidade e me faziam perguntas de vez em quando”. Para Miranda, falar para os pais é mais complexo, pois, por serem religiosos, gostariam muito de ver a filha casando-se e formando uma família “Não contei pra eles porque tenho medo de ficarem tristes”. Miranda revela que já tentou namorar na adolescência e que o namoro representou uma esperança para os pais. “Antes de eu namorar, minha mão perguntava porque eu não gostava de ninguém. Depois que eu namorei, meus pais ficaram felizes. Devem ter pensado ‘Graças a Deus, ela é normal’”. O maior empecilho para essa “saída do armário” na comunidade aceseassemelha ao preconceito sofrido pelos bissexuais. De acordo com Miranda, muitas pessoas duvidam que a assexualidade realmente exista e muitas vezes afirmam que a pessoa se considera ace pois ainda não achou a pessoa certa ou que ela não deveria dizer que não precisa de sexo quando ainda não experimentou uma relação sexual. “Não posso dizer que uma pessoa que fala que é hétero é na verdade gay e não achou a pessoa certa ou que uma pessoa não pode se considerar hétero sem ter tido relação sexual com alguém do mesmo sexo”. A falta de visibilidade na mídia é o principal fator para perpetuação dessa deslegitimização. “O que torna ainda mais complicado pra comunidade é que não existe representatividade é lugar nenhum”. Figuras históricas como o escritor Oscar Wilde e a artista Frida Kahlo podem ser claramente citados quanto a personalidades LGBTQI+ na história mundial, mas esse tipo de representatividade é quase nula quando o assunto é assexualidade, ainda que haja algumas especulações sobre a “sexualidade controversa” do John Ruskin, escritor e crítico literário que foi casado com a primeira mulher a se divorciar na era vitoriana, ou a falta de interesse sexual do pianista romântico Franz Liszt. Nenhum desses rumores, no entanto, são oficialmente confirmados. Isso porque a

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V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M assexualidade é um termo que tem menos de duas décadas de existência. Ainda assim, os assexuais decidiram por tomar personagens da ficção que se encaixam nas características do espectro para representa-los. Entre eles, temos a grande criação de Arthur Conan Doyle, o famoso detetive Sherlock Holmes. Felizmente, depois da disseminação do termo, alguns personagens contemporâneos vieram a formalmente representar a comunidade, tais como o Jughead dos quadrinhos Riverdale e o Todd da série da Netflix, Bojack Horseman. Segundo a pesquisadora Andrea Brighenti, no seu artigo “Visibility in Social Theory and Social Research”, visibilidade é uma relação de poder capaz de empoderar ou não certos grupos ou indivíduos, além de definir o que é socialmente normativo. É por isso que assexuais, carentes de qualquer representação, sequer são vistos como seres humanos, o que explica o título sugestivo da tese “Minha vida de ameba”, escrita pela pesquisadora brasileira Elisabete Oliveira. Como há grande desinformação geral do que é assexualidade, a acefobia, descriminação contra sujeitos assexuais, tende a ser silenciosa, mas não menos violenta. Infelizmente, estupros corretivos e relacionamentos abusivos podem ser uma realidade para quem se identifica como ace.

Ademais, representatividade é um processo muito importante para autorreconhecimento e autoaceitação. Se sentir parte de um grupo é substancial, especialmente na adolescência, mas não se encontrar em ninguém ao seu redor, nem em nenhuma das suas séries preferidas é um gatilho intenso para a juventude, coisa que os diretores de Riverdale dissimularam, transformando um personagem assumidamente ace nos quadrinhos em heterossexual nas telas da Netflix. Por incrível que pareça, amebas, como eles carinhosamente se apelidam, também não são muito melhor aceitas no lado colorido da sociedade. Aparentemente o A da sigla LGBTQI+ significa Aliados, mais uma prova de que a sociedade ainda tem a mente extremamente fechada. E assexuais é que são os conservadores celibatários! Além do mito do celibato, Miranda acrescenta que ainda se acredita na impossibilidade de expressar amor entre os assexuais. “Assexuais não são incapazes de amar”. Em uma sociedade extremamente hipersexualizada, o conceito de amor é frequentemente ligado à sexualidade, uma ideia freudiana que afirma que o amor tem essencialmente um caráter físico e libidinal. Contudo, Miranda afirma que muitas são as formas de amor por ela experienciadas que não são motivadas por uma natureza sexual. “Eu amo muitas pessoas de

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA diferentes formas e não sinto a necessidade de me relacionar romântica ou sexualmente com elas. A sociedade nos faz acreditar que estaremos incompletos sem um parceiro, que não estaremos vivendo corretamente, mas isso é irreal”. Outro estereótipo bastante recorrente é que os assexuais são frios, sérios ou distantes e, para isso, Miranda explica que é só mais um arquétipo infundado, como dizer que todos os gays têm uma expressão de gênero afeminada ou que todos os bissexuais são indecisos. Como espectro, a assexualidade é extremamente diversa. Ser assexual não significa se encaixar somente em um padrão. As orientações divergem do cinza ao roxo, cores da bandeira que representam a diversidade que compõe a comunidade. É possível não sentir atração sexual por qualquer dos gêneros sob nenhuma circunstância, como é também possível sentir depois de um laço de afinidade. Assexuais que não sentem atração sexual são chamados estritos, mas os que dependem de ligação afetiva são os demissexuais. Há ainda o ace Gray-A, cuja intensidade de atração pode ser baixa ou fluida. A assexualidade não é uma caixa, caracteriza-se mais como um guarda-chuva e embaixo dele as orientações são muitas.

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Além disso, há uma diferença entre afetividade e sexualidade que outras comunidades não costumam considerar, entretanto, dentro dos fóruns ace essa diferença é muito importante. Atração sexual não caracteriza atração romântica. Alossexuais e assexuais podem ser arromânticos, pessoas que não têm inclinação romântica por nenhum gênero, assim como alorrômanticos, as que têm. Sexualidade e afetividade não são sempre relações interligadas. Como alorrômantico, é possível ser heterorromântico ou homorromântico, por exemplo, mas as possibilidades também são muitas. Assim, assexuais estritos podem ser heterorromânticos, como homossexuais são arromânticos sem problema algum! Ainda que haja um longo caminho a percorrer em termos de visibilidade, a comunidade assexual avança em passos lentos, mas significativos. Na última parada LGBTQI+ em São Paulo, a bandeira ace foi discretamente lembrada, o que foi objeto de satisfação para muitos fóruns e páginas assexuais nas redes sociais digitais. Espera-se que, além de uma sútil representação, o futuro seja de reconhecimento e aceitação, pois a assexualidade não é menos válida do que nenhuma outra orientação subversiva à heteronormatividade, pois, nas palavras da doutora Elisabete Oliveira, trata-se apenas de “uma nova cor no arco-íris da diversidade”.


“Tem que mostrar mesmo pras inimigas morrerem nas curvas” De uma forma descontraída e com muita empolgação, os entrevistados plus size nos contaram suas trajetórias rumo ao empoderamento e à autoaceitação Por Felipe Barros, Girlene Oliveira, Mariana Gonçalves, Rebeca Placido e Vitória Lima Fotos: Sérgio Lucas


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egunda-feira. 23 de abril. Batemos, cansados e suados, à porta da loja Estilo GG. Não podíamos perder a chance de entrevistar Raquel Késya, de 24 anos, que estava fazendo um stories para o Instagram da loja. A Miss Plus Size Toritama 2017 é digital influencer e modelo desse segmento de moda que ganha mais visibilidade a cada temporada. Na nossa cabeça já tínhamos o roteiro dos temas que iríamos abordar durante a entrevista. Aceitação, bullying, representatividade, preconceito e outros assuntos já falados e abordados pelas mídias, mas Raquel nos pegou de surpresa com suas respostas repletas de atitude e empoderamento diante das questões sociais envolvendo o corpo plus. “Na verdade eu nunca tive problema em me aceitar. Tem aquela história: ‘Você tem o rosto tão lindo, por que não emagrece?’ Eu dizia: ‘Não, porque eu estou bem assim, nunca tive problema’. Eu sempre gostei de praticar muito exercício. Teve uma época em que eu emagreci bastante e não me senti bem estando magra. Eu me olhava e não me reconhecia: ‘Tô muito magra, tô estranha’”. Assim como Raquel, mais de 18% da população brasileira, segundo dados de 2016 do Ministério da Saúde, está acima do peso, porém os padrões de beleza impostos pela moda e disseminados pela mídia e sociedade fazem com que esse corpo seja depredado, não apenas fisicamente, mas emocionalmente e psicologicamente. Todos nós já ouvimos relatos de pessoas que já foram excluídas e humilhadas, em decorrência dos padrões corporais, em diversas situações, seja no colégio, no trabalho ou na paquera, como relata Fernanda Guerra, de 31 anos, Miss Plus Size Caruaru 2017, que, por surpresa, também encontramos na loja. “Eu fiz redução de estômago aos 18 anos de idade. Fui uma das primeiras pessoas a fazer a redução de estômago aqui em Caruaru, mas não tive o sucesso real que a redução de estômago precisa ter. Tive complicações na minha redução, mas diminui muito. Eu tinha 186 kg e hoje tenho 130 kg quilos, mas nunca tive problema comigo. A sociedade exclui quem é gordo. Eu era bem excluída, mas nunca tive problema com minha autoestima por essa questão”. Muitos podem não acreditar, mas a Primeira Guerra Mundial teve uma forte influência sobre esses padrões de beleza ligados à magreza, libertando as mulheres do espartilho e propagando um ideal de “quanto mais magro, melhor”, pois com a ida dos homens à guerra, as mulheres precisaram assumir os postos de trabalho nos campos, nas cidades e nas fábricas. A mobilidade prevaleceu com a fina silhueta.

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V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M Estilistas como Chanel e Paul Poiret fortaleceram esse ideal do magro por meio das características estéticas de suas criações e, com isso, as mulheres precisaram manter os traços corporais já difundidos pelo espartilho. A mulher que quisesse estar nos padrões deveria ser alta, ter longas pernas e, principalmente, ser magra. A Gisele Bündchen do século XX. Agora, no século XXI, não é mais o espartilho que assume a função de encaixar o corpo plus nos padrões estéticos, mas a cirurgia bariátrica. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, em 2016, foram realizados mais de 100 mil procedimentos. Porém, esse não é único jeito de a mulher plus se ver feliz com seu corpo. A aceitação também é um importante passo para enfrentar as pressões sociais, como nos contou Yasmin Ruana, modelo da loja Michelle. “Não foi um processo fácil. Até 2014, me negava, apesar de transparecer o contrário, porém, internamente, não era feliz com meu corpo. Posso dizer que foram anos construindo um novo pensamento na terapia. E, desde que floresceu a aceitação, não fui mais a mesma. Passei a me olhar mais positivamente, deixando de lado os defeitos, que por sinal todos temos, e passei a enaltecer as qualidades. Essa decisão foi crucial para a pessoa que me tornei hoje, mais autêntica e convicta que meu interior e exterior são muito valiosos e amáveis. Quando entendi isso, passei a contar minha história a outras pessoas para que pudessem sentir a liberdade de serem elas mesmas”. Ainda na loja, conseguimos entrevistar Claudia Melo, dona da marca Estilo GG, especializada em roupas plus size. A empreendedora veio de Fortaleza para Caruaru há 14 anos e, tendo um corpo fora dos padrões, teve dificuldades em encontrar roupas despojadas, com estilo e que se ajustassem ao seu corpo. Foi então que decidiu investir no segmento, apropriando tendências e inovações da moda para criar uma marca pioneira na cidade e que está há dez anos no mercado. Desde então, esse nicho tem crescido e se desenvolvido e hoje, mais do que nunca, está mais exigente. “Antigamente, era muito ruim comprar uma roupa de ‘gordinho’. Tinha aquela coisa de botou na cabeça, vestiu, está vestido. Agora não, o ‘gordinho’ está bem exigente, quer roupa arrumada, estilosa. Do jeito que o magrinho se veste o gordinho também se veste. Eu acho que atualmente o gordinho ainda está se vestindo melhor que o magro”, diz Claudia. De acordo com dados da Associação Brasileira do Vestuário (Abravest), o mercado plus size cresce 6% anualmente e movimenta cerca de R$ 5 bilhões. Esse percentual corresponde a aproximadamente 300 lojas físicas e 60 virtuais. A expectativa, segundo a associação, é de um crescimento de pelo menos 10% ao ano.

Yasmin Ruana não tem vergonha do seu corpo

Júlio César conhece e respeita o seu próprio corpo

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA Esse incremento no mercado sinaliza um avanço na quebra de padrões, no processo de aceitação e no combate ao preconceito do corpo plus. A moda também tem papel fundamental nesse processo, pois tem poder de excluir e também de incluir. A professora do Núcleo de Design e Comunicação do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco Teresa Lopes acredita que a moda plus size está relacionada ao sentimento de autoaceitação. “Historicamente, o corpo da mulher é uma zona de batalha entre o desejo dela e a expectativa da realidade, por isso, algo que está intrinsecamente envolvido com o plus size é o empoderamento feminino. Você não vai ver homens plus size, você vai ver mulheres dizendo ‘sim, eu sou gordinha, eu sou linda’. Então é também uma relação que está associada a pautas emancipatórias por demandas de consumo”. Por mais que a ditadura da magreza recaia mais sobre o público feminino, os homens também sofrem com pressões da sociedade em relação ao seu corpo. Realmente, achar as meninas que iriam ser as personagens desta reportagem não foi difícil, entretanto foi uma verdadeira luta encontrar um homem que se reconhecesse plus size e que aceitasse participar da reportagem. A nossa busca passou desde enquetes nos stories do instagram até contatos de amigos, e então, graças a Yasmin, finalmente encontramos o estudante de Psicologia Júlio César, de 28 anos, que afirmou não sofrer mais com as pressões do padrão estético. “Isso já foi um problema pra mim, mas nunca fui muito bom em manter a forma. Então, passei a me amar como sou e, quando você se ama, você também é amado, aceito. Hoje em dia eu faço até sucesso e para os olhares maldosos a gente manda três beijos de luz e joga bem muita autoestima na cara deles”.

A autoaceitação é o principal meio de se libertar das amarras de uma sociedade notoriamente gordofóbica. Para muitos, o gordo deve se esconder atrás de roupas largas e a sensualidade é algo que não dá match com esse tipo corpo. Engana-se quem pensa assim. De acordo com Raquel, corpo como o dela e o de tantas outras pessoas “tem que se mostrar mesmo pras inimigas morrerem nas curvas”. Mostrar que não é só o corpo de uma Angel, modelos magros de desfiles de lingeries, ou de tanquinho definido que pode despertar olhares. “A sensualidade para mim é uma coisa que é despertada de dentro para fora. Não tem a ver com ser gordo ou magro, tem a ver com aflorar isso que está em nós e deixar isso como marca na nossa identidade”, diz Júlio César. Podemos perceber que Yasmin, Júlio e Raquel carregam consigo o orgulho de serem o que são, pessoas plus size, que não têm medo do que é imposto pela sociedade e dos olhares maldosos muitas vezes direcionados a eles. Esses jovens não só aceitaram participar da nossa reportagem, mas também da nossa última etapa, as fotos e filmagens para a revista. Em uma sexta-feira, agendamos com modelos, reunimos a equipe desa reportagem e convidamos outros estudantes de Comunicação Social, Rayanne Elisã e Sérgio Lucas, para ajudar no ensaio que foi realizado no Armazém da Criatividade em Caruaru com apoio da loja Michelle Lingeries. Foram cinco horas de trabalho árduo, com mudanças de roupas aqui e ali, trocas de posição de luz e de ventilador, fotos em pé, no sofá, na mesa de sinuca, sorrindo e com carão, ala. Foram fotografias que nossos entrevistados puderam encarar as câmeras com total liberdade sobre o seu próprio corpo, sem vergonha ou timidez, com total felicidade e realização pessoal. Um tapa na cara dos padrões sociais.

Raquel e Yasmin vestem lingerie da Michelle Lingeries, roupas estilo GG e assessórios Maria Assessórios. Júlio veste cueca cedidade pela loja ZerO’81

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Próxima Primavera Clarissa Assis Willowdean Dickson, a Dumplin’, 16 anos. Uma garota normal, gorda e com muito orgulho, mora em Clover City, uma cidade interiorana e fictícia do Texas, onde o sol é castigante na maior parte do dia, mas principalmente onde é sediado o Miss Jovem Flor do Texas, um concurso de beleza. O sonho de qualquer adolescente, menos de Will. Sua mãe é a presidente do concurso e ex-vencedora, que exibe seu vestido todos os anos na época do concurso. Will acha a maior tolice já que o concurso é nada mais que a persistência de um estereótipo que dita que a mulher bonita é a magra, sarada, alta, com um lindo sorriso no rosto. E ela pouco se importa com isso. Trabalha em um fast food todas as noites e faz questão de não ligar nem um pouquinho com seus vários quilinhos a mais que as esqueléticas do concurso. “A palavra gorda deixa as pessoas constrangidas. Mas, quando alguém me vê, a primeira coisa que nota é o meu corpo. E o meu corpo é de uma gorda. Por exemplo, eu posso notar que algumas garotas têm peitos grandes, cabelos oleosos ou joelhos ossudos. São coisas que é permitido dizer sem rodeios. Mas a palavra gorda, que é a que melhor me descreve, deixa as pessoas desconfortáveis. Mas essa sou eu. Gorda. Não é nenhum palavrão.” Mas é aí que a confiança de Will em relação ao próprio corpo é posta a prova. Parece que seu crush supremo Bo, o garoto da escola particular, retribui seus olhares e não fica desconfortável ao segurar a mão de Will. E quando Bo beija Will, bem, ela já não se sente lá tão bem com seu próprio corpo não. “Minha autoestima vai por água abaixo sempre que ele encosta em mim. Como se meu inconsciente dissesse: não tenho valor. Não sou bonita. Não sou magra.” Will é como qualquer um de nós, meninas ou meninos, que passamos pela fase do primeiro amor da adolescência. É passar por uma tremenda prova de autoconfiança e não tem nada mais humano do que assumir ser humano e se sentir inseguro às vezes. Willowdean é a filha de uma ex-vencedora de um concurso de beleza e melhor amiga da garota mais popular da escola que namora um quarterback, jogador de futebol americano. Ela costumava não ter vergonha alguma de receber olhares e comentários maldosos ao ir à piscina. Nada disso a fez sentir mais deslocada do que se sentir interessada em Bo. Claro que a personagem mais incrível que eu já conheci não ia deixar isso assim. E se Will se candidatasse ao Miss Jovem Flor do Texas, no meio de dezenas de meninas magras e esguias? Ela reúne toda coragem que ainda tem e, ao lado de sua musa Dolly Parton, vai pra guerra. “Participarei desse concurso porque não há qualquer motivo para não fazer isso. Vou em frente porque quero cruzar a fronteira que me separa do resto do mundo.” Não é só a representatividade. É toda a essência. Li Dumplin’ me divertia e me fazia ver em uma protagonista em que alguns dias estava se sentindo a própria Beyoncé e em outros mal queria sair do quarto. O que importa é que ao som de Jolene, Willowdean sempre levantava a cabeça e defendia não só seu corpo, mas a representatividade em geral. Me emocionei, torci muito pela Dumplin’, odiei umas garotas bem sem sal junto com ela, também acabei me rendendo a música country e me apaixonei perdidamente pelo Bo, claro. Já percebi que muitos outros livros estão com essa proposta mais humanizada das personagens e a própria autora, Julie Murphy, promete mais histórias assim, como Puddin’, também com uma protagonista fora dos padrões, que está em pré-venda agora mesmo. Além disso, é lindo ver que os direitos de Dumplin’ foram comprados e ainda esse ano as telas do cinema também vão ter um pouquinho mais de representatividade porque não é só de clichês que a gente tem que viver. “Eu sou Dumplin’. Will e Willowdean. Gorda. Feliz. Insegura. Corajosa” http://www.proximaprimavera.com/

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Aprendendo com o corpo da pessoa com deficiência Se você acha que as pessoas com deficiência são incapazes, conheça as histórias que vamos contar nessa reportagem. São cidadãos cheio de direitos que lutam diariamente por uma vida melhor Por Giovanna Rebeca, Luiza Moura, Noemí Fragoso e Pedro Brito Fotos por Bruna Santos

Lavínya Fragoso reaprendeu a sorrir e a ser grata


V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M De segunda a sexta, por volta das 11h, ele termina o banho, veste a roupa e almoça. Por volta das 11h30, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde, chega o carro, o primeiro, que o leva até o ponto de ônibus. Quando entra no ônibus, o relógio marca perto de meio-dia e, quando desce, quase 14h. Pega, então, outro ônibus, o último, que o deixa no Polo Caruaru, onde funcionam as instalações do curso que faz. São aproximadamente 70 km a distância entre Gravatá e Caruaru, percurso percorrido diariamente por Nilson dos Santos, de 19 anos, estudante de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para ter acesso ao ensino superior. Além das longas e cansativas viagens diárias, Nilson ainda enfrenta dificuldades em relação à acessibilidade nos ônibus. O jovem tem dificuldades de locomoção. “Os degraus dos coletivos são muito altos e muitas vezes os elevadores não funcionam ou não existem”, avalia. Desde a saída até a volta para casa, além dos motoristas e colegas, o principal auxílio de Nilson são as órteses que usa nas duas pernas e o andador. Na hora do parto de Nilson e de seu irmão gêmeo, ocorreram complicações que comprometeram as habilidades motoras das pernas e braços, fazendo com que ele tenha limitações de coordenação e necessite da ajuda de aparelhos ortopédicos para se locomover. O andador e as órteses funcionam como uma extensão do corpo de Nilson e possibilitam o equilíbrio necessário para que ele possa andar e realizar suas atividades de maneira autônoma. Para a estudante Lavínya Fragoso, de 11 anos, as muletas também funcionam como uma extensão corporal. Depois de passar por um longo e doloroso tratamento contra um câncer no fêmur, Lavínya teve sua perna amputada aos 9 anos de idade, mas seu principal medo não eram as ruas com buracos ou ônibus com elevadores que não funcionam. “Eu não queria amputar a perna. Não queria contar para ninguém o que eu estava sentindo porque eu tinha vergonha”. Vergonha. Vergonha dos olhares de “pena”. Vergonha de ser tratada como o “outro”, como “diferente”. Vergonha de ter toda sua identidade definida pela falta de uma parte do seu corpo. Hoje, Lavínya enfrenta o desafio de lutar pelos seus direitos e parar de ser vista como alguém incapaz. Em uma sociedade repleta de padrões estéticos, a limitação do funcionamento ou falta de alguma parte do corpo da pessoa com deficiência física acaba se tornando a parte mais visível e a identidade da pessoa é reduzida, muitas vezes, a essa falta. A deficiência vem antes da pessoa, do humano. Os próprios termos usados ao longo da história para se referir às pessoas com deficiência são carregados de uma visão hierarquizada sobre o “outro”. O termo “deficiente”, originário do latim deficiens, no sentido de falta, traz por si só uma carga de significados.

Ao longo da história, foi atribuído ao termo um sentido pejorativo, trazendo a ideia da pessoa com deficiência como sendo “anormal” e colocando um forte estigma em relação ao corpo da pessoa com deficiência. A sociedade tende a colocar a pessoa com deficiência em um esquema de comparação em que a falta de alguma parte ou função corporal se torna

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA a principal característica de definição da identidade da pessoa. Há também uma forte tendência a tratar a pessoa como um ser especial e livre de direitos. Anjos não precisam que direitos sociais sejam assegurados. A partir dos anos 2000, diversos movimentos mundiais liderados por pessoas com deficiência começaram a ver os resultados de suas lutas entrando em vigor. Em 2006, a ONU aprovou o uso da nomenclatura “pessoa com deficiência” ou “PcD” para se referir à pessoa com deficiência. O termo frisa primeiramente a pessoa, para depois se referir à deficiência, para que dessa forma seja abolida a ideia de que alguém é “portador”, que carrega uma deficiência. A criação de um vocabulário para se referir às pessoas com deficiência não se trata de uma simples conquista, mas traz consigo uma caminhada de empoderamento e luta por visibilidade da pessoa com deficiência. Além disso, abre caminhos para que a pessoa com deficiência possa olhar para si, se reconhecer e não negar ou esconder a deficiência. Além da questão léxica, outra forma de dar visibilidade e voz às pessoas com deficiência física é a prática esportiva. Nas diversas modalidades esportivas, princípios como o respeito, a interação do grupo e a viabilização do potencial de cada um são responsáveis por criar um ambiente harmônico no meio do esporte. Em Caruaru,

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há um instituto responsável por dar assistência a qualquer pessoa com deficiência e, nele, há profissionais que trabalham com acompanhamento psicológico até incentivo à prática esportiva. A Associação de Pessoas com Deficiência de Caruaru (Apodec) é conhecida nacionalmente também pelos grandes feitos nos jogos nacionais, como o Pan Americano 2007 e a competições entre as regiões Norte e Nordeste de esporte adaptado. Wallison Patrício, de 28 anos, conheceu o Bocha por meio da associação há quase seis anos e, desde então, não deixa de participar de nenhum treino. “Eu terminei os estudos e fiquei só em casa. Quando conheci o Bocha, gostei da modalidade e até hoje estou praticando”. Por causa de um acidente automobilístico, Wallison ficou paraplégico e, hoje, a cadeira de rodas exerce a função das pernas. Para Wallison, mais do que um passatempo ou uma forma de inclusão social, o esporte é uma forma de movimentar o corpo, de vivenciar novas experiências. “O esporte foi onde eu encontrei a possibilidade de fazer um tipo de atividade que eu gosto porque, antes do esporte, o que eu fazia era só jogar videogame dia e noite, não saía para lugar nenhum. Por meio do esporte, conheci pessoas novas, outras cidades, outros lugares. O que eu achei interessante que me chamou mais atenção no esporte foi isso. Você vive mais, anda pelo mundo, conhece novas pessoas”. Adeilson Antônio, assim como Wallison, é atleta da categoria BC1 do Bocha adaptado. O Bocha adaptado é similar ao Bocha convencional e nele o jogador tem como objetivo encostar o maior número de bolas na bola-alvo. O jogo pode ser jogado por duas pessoas ou duas equipes e possui um conjunto de seis bolas azuis, seis bolas vermelhas e uma bola branca (bola-alvo). No adaptado, há divisão de equipes conforme o grau de comprometimento motor. Tanto Wallison quanto Adeilson fazem parte da categoria BC1, que é composta por atletas com limitações de coordenação nas pernas, braços e tronco que conseguem arremessar a bola sem o auxílio de equipamentos. O esporte é, para eles, uma diversão. Diversão que eles se esforçam para praticar. Treinam três vezes por semana, fazem fisioterapia e academia e se aproximam cada vez mais de atingir o alvo. Dessa vez o alvo não é a bola e sim o sonho de disputar nas Paraolimpíadas. “É um sonho, né? Mas aí tem que jogar muito, porque tem muita gente boa na minha frente para chegar lá”, diz Adeilson sorrindo. Esforço é o que não falta tanto em Adeilson quanto em Wallison. A ida aos treinos na maioria das vezes conta com atrasos, não por culpa deles, mas porque os transportes públicos nem sempre têm a estrutura necessária para que eles possam circular de casa até o destino deles. Adeilson e Wallison sempre estão preparados para as idas e vindas de ônibus, porém nem sempre os ônibus estão preparados para eles. As barreiras físicas não os deixam imóveis. O


V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M que os paralisa é, na verdade, a falta de recursos e estrutura para atender necessidades básicas. Ônibus quebrados, buracos, falta de rampas e outras dificuldades que impedem a autonomia e prejudicam o direito de ir e vir. A Apodec surgiu a partir da percepção sobre a inexistência de um tipo de movimento em prol das pessoas com deficiência. Conforme dito pelo secretário Esnandes Silva, desde que a instituição foi criada, as tentativas de melhorar a situação dos deficientes em Caruaru são inúmeras e algumas mudanças foram realizadas no centro da cidade, como mais faixas de pedestres, rampas mais baixas e de acesso facilitado. “É um caminho longo a ser percorrido para se ter aquilo que merecemos”, diz Silva. A Apodec cobra do poder público, insistindo para que as pessoas com deficiência tenham seus direitos assegurados. “Na teoria, temos diversas leis que garantem os direitos, porém na prática poucas delas funcionam. A associação participa de três conselhos do município. Com esses conselhos, reivindicamos principalmente melhorias na área da saúde e da locomoção na cidade. É uma batalha diária para garantir os direitos das pessoas com deficiência”, comenta Esdandes. Adeilson, Wallison, Nilson, Lavínya e Esnandes. Esses não são apenas nomes, são representações de resistência, força e coragem. Antes de tudo, são pessoas com sonhos e objetivos, que não querem ser vistas como limitados e incapazes, como o “outro”, mas como pessoas completas, corpos completos que podem se movimentar e lutar pelos seus direitos. Corpos que carregam uma identidade plural e que não deve ser padronizada.

Nilson dos Santos estuda no CAA e todos os dias vem de Gravatá para Caruaru

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Um devorador de corpos, mentes e sonhos: vamos falar sobre bullying? Corpos todos os dias são vítimas de bullying em escolas, universidades e empresas. Combater o preconceito é a chave para uma sociedade que valorize as diferenças Por Pedro Gomes e Lucas Melo Fotos: Bruna Santos


V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M Imagine a seguinte situação: Joaquim é um garoto negro do subúrbio, e por conta das fortes influências dos mercados paraguaios na sua região, suas vestimentas vão desde a Hollister até a Ralph Lauren. Alice é uma garota de 15 anos, seus familiares comumente a chamavam de “cheinha”, mas a menina pesava 80kg, uns quilinhos que a garantiam nos números de pessoas com sobrepeso. Já Ronaldo é descendente de índio, sua família toda tem o conhecido “cabelo de franjinha”, a pele escura e moldada pelo sol. Agora, é hora de deixar de lado a biografia desses personagens, pois, na escola, na vida real, corpos como o de Joaquim, Alice e Ronaldo são vítimas do bullying no Brasil. Jovens como eles, fora dos padrões criados cruelmente pela indústria e pela sociedade, são alvos de violência. Para quem não faz parte do padrão estabelecido culturalmente, eles só são o grupo dos “largados no fundão da classe”. Nas sociedades modernas, há uma incessante devoção ao culto do corpo perfeito. Assim, muita gente se submete a uma grande preocupação com a aparência e a estética. Se é difícil para os adultos lidarem com a ditadura da beleza, imagine como deve ser para os jovens, em especial os adolescentes, que sofrem discriminação em relação a sua aparência, e, com isso, sentem-se inseguros consigo mesmos já que estão iniciando o desenvolvimento corporal e hormonal. Hoje, histórias de pessoas que se valorizam são ainda produtos que faltam no estoque das mídias. Parece até soar que os produtos colocados nas vitrines são aqueles que já direcionam um padrão de beleza. A valorização do padrão passou a ser também uma forma de comercializar, mas será que isso é positivo ou negativo? Há um lado? Mariana e Ricardo responderão. Essas duas figuras sofreram, durante um grande período, bullying na escola. A diferença é que suas histórias representam uma crescente trajetória de valorização pessoal e hoje ambos estão neste texto para relatarem um pouco de suas vidas. Mariana Carvalho, ou Marisflora, username nas redes sociais, é estudante de Psicologia, autônoma, e hoje envolvida na área de Argiloterapia. Em entrevista, revelou que, na sua adolescência, chegou a tomar diversos remédios para engordar, já que sua fisionomia na época – e ainda hoje – era mais magra. “Mesmo assim não engordei e minha mãe sempre ficava na minha cabeça: ‘Você precisa comer!’. Eu tinha na faixa de uns 6 anos, acho que pesava uns 35 kg ou menos até porque agora eu estou com 20 anos e tenho 46 kg. Então, não mudou muito nesse intervalo de tempo”, diz ela. Ricardo Lemos tem 18 anos, trabalha como fiscal de segurança e é vestibulando. Diferentemente de Mariana, ele sofreu impactos mais fortes do bullying na escola. Certa vez, em 2011, Ricardo diz que pensava que a forma do seu corpo – gordo, alto e de cabelo grande – era o motivo que fazia com que as pessoas o insultassem ou até nem falassem com ele. “Eu estou errado. Eles não têm que se adaptar

Ricardo Lemos luta contra o preconceito

a mim. Eu tenho que me adaptar a eles”, comenta como pensava na época. Mariana também discutiu que hoje analisa de uma forma totalmente diferente o bullying sofrido no passado. Por exemplo, quando ela brincava com as meninas de sua rua, era alvo de piadinhas maldosas porque era a única que corria menos que os outros. “Hoje eu percebo que eu tinha mais resistência que elas. Eu era pequena e minhas pernas não tinham aquela largura toda pra alcançar mais passos”. Em outro momento, Mari revela que a intensidade do preconceito foi aumentando com o tempo. “O meu corpo não foi se desenvolvendo como a sociedade quer que se desenvolva e eu fui percebendo que isso me afetava muito. Eu me achava feia, mas meu corpo nunca foi feio”. É possível afirmar que, na adolescência, período de alta absorção de informações e construção do indivíduo, a percepção de muitos jovens é modificada pelo meio em que estão inseridos, ou seja, esse é um período em que várias referências chegam para a juventude, que acaba vivenciando diversas experiências. Com Mariana não foi diferente. “Antes era bem complicado porque eu via outras garotas comendo e eu dizia: ‘por que eu como o que elas comem e não engordo?’. Para mim, engordar era a coisa mais perfeita do mundo”. Ricardo passou de gordo a magro num curto período de tempo a base de remédios, mas, apesar das mudanças, continuou sendo alvo de insultos. “Havia também preconceito com o meu cabelo que era grande”. As pessoas acham que falar não machuca, mas elas não têm ideia do mal que isso pode causar para quem escuta as ofensas”, acrescenta. Tentando fugir do bullying, Mariana chegou a desregular sua alimentação. Passou a comer alimentos mais gordurosos. “Desenvolver anemia, pois os nutrientes necessários para saúde não eram suficientes na nova dieta. Por ano,

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA quase 370 mil pessoas morrem de câncer ou doenças relacionadas ao consumo excessivo de fast foods. Depois desse período, compreendi que a gente tem que entender a nossa fisiologia e respeitar o nosso corpo”, pontua. O bullying é, muitas vezes, superado com a ajuda de outras pessoas. Mariana contou com a ajuda da amiga Jéssica Lima. “Ela é mais magra que eu, mas sofreu bullying por ter cabelo afro”. Ricardo recebeu apoio de Mariana. Eles são amigos desde a infância. “Ela me ajudou muito para que eu pudesse me conhecer”. A mãe de Ricardo, Rosimar Lemos, também teve papel fundamental para que o filho entendesse que ser diferente não motivo de vergonha. “Minha mãe sofreu muita pressão por ser gorda. Ela se submeteu a processos estéticos, readaptações alimentares, mas nada resolveu. Então, o processo de aceitação dela acabou contribuindo para que eu também aprendesse a me respeitar e me amar”. É com respeito e valorização da diversidade dos corpos que se pode mudar essa realidade.

Como combater o bullying? Discutir o tema Responsabilizar os agentes do preconceito Garantir às vítimas o direito de falar sobre o assunto em ambiente acolhedor Promover uma cultura de valorização da diferença e de respeito ao outro Ter comportamento empático, colocando-se no lugar do outro Falar sobre o assunto com o maior número de pessoas possíveis Não participar de ações que induzam ao bullying Questionar as atitudes dos agressores e não apoiá-las

O que é bullying? É uma situação que se caracteriza por agressões intencionais, verbais ou físicas, feitas de maneira repetitiva, por uma ou mais pessoas contra outro indivíduo. Tipos comuns de bullying: - Físico: inclui beliscões, socos, chutes, empurrões - Verbal: é o mais comum. É composto por apelidos, xingamentos e provocações Escrito: quando textos são usados para atacar - Material: ter objetos danificados ou furtados Cyberbullying: a agressão se dá por meios digitais, como e-mail ou redes sociais Moral: a tática aqui é difamar, intimidar ou caluniar imitando ou usando trejeitos - Social: criar rumores, ignorar, fazer pouco caso, excluir ou incentivar a exclusão - Psicológico: pressão na saúde mental provocada a partir de diversas táticas

Vítimas comuns de bullying - Negros: o racismo faz com que pessoas negras sejam vítimas de preconceitos. - Pobres: a falta de poder aquisitivo é comum ser alvo de chacota por quem tem melhores condições de vida. - Homossexuais: a homofobia mata diversos jovens anualmente e é também um tipo de bullying muito comum. - Pessoas com deficiência: como não atendem aos padrões estabelecidos, costumam ser ridicularizados.

Mariana Carvalho torce para um mundo

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Reminiscência da pele A singularidade das histórias de cada indivíduo está presente na forma de olhar para o passado estampado na pele Texto por Rosana Menezes e Stephannie Batista Fotos: Bruna Santos


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screver sobre recordações é caminhar sobre uma corda bamba. Falar sobre sentimentos nunca é fácil e trazer marcado na pele as lembranças torna tudo, muitas vezes, mais difícil de lidar. A pele não esquece o que sofreu, consequentemente, a gente também não. Enquanto alguns ostentam as cicatrizes como marcas da batalha, outros as carregam como lembretes do que sofreram.

Um objeto de estudo Émile Durkheim, em seu livro intitulado “O Suicídio”, explana sobre os motivos que levam alguém a tirar própria vida. Marina, estudante da Universidade Federal de Pernambuco, alguns instantes antes da sua segunda tentativa de suicídio, buscou na tese do sociólogo fundamentos para explicar o que levariam ela, uma garota que tem família relativamente bem estruturada, amigos fiéis e um futuro pela frente, a cortar os próprios pulsos. Depressão não é algo linear. Tudo começou com a falta de vontade de levantar da cama para ir às aulas. Aos poucos, medos irracionais foram se somando ao pacote e, em pouco tempo, sair de casa era um dos maiores desafios enfrentados pela jovem. Numa tentativa frenética de se sentir viva e bem consigo mesma, Marina bebia e fingia esquecer todo o vazio que a cercava. As músicas da Xuxa, que ela sempre colocava para tocar nesses momentos, era uma forma de se lembrar da infância, de momentos felizes e de como a vida tinha sido, em algum momento, prazerosa. As marcas, ainda recentes, em seu pulso são lembretes de como a fragilidade da vida a torna preciosa. Todas as grandes coisas a serem vistas, todas as músicas ainda não lançadas, todos os amores ainda não vivenciados tornam-se pouco diante da vastidão de coisas a serem conhecidas por ela. Marina não tem uma relação íntima com a família do pai, mas isso não é um problema. O lado materno supre toda a necessidade de carinho e atenção que a garota possa ter, no entanto, nem toda essa fonte de amor é capaz de saciar a sede que a depressão faz com que ela sinta. Os dias ruins são caracterizados pela transfiguração da garota em sua própria cama. Elas passam tanto tempo juntas que é quase impossível distinguir quem é o quê. O vazio se espalha por todo o seu corpo e ela não tem certeza até que ponto continua sendo ela mesma e o que a doença a faz ser. Os dias bons são marcados pelo vazio. Levantar e ser um pouco produtiva é sua vitória diária. “É difícil se manter motivada quando o seu cérebro insiste que você é um fracasso e todo o seu corpo parece pesar dez vezes mais”. O senso comum explica a depressão como uma tristeza profunda, mas a realidade é bem mais complexa que isso. Depressão é um estado de apatia, em que não se sente nada. Marina conta que, às vezes, é como se o mundo estivesse em câmera lenta, como se ela fosse mera espectadora da própria vida e a sua doença seria a protagonista.

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No entanto, apesar dos dias ruins (que não são poucos), ela sabe que vai melhorar. É uma luta diária e constante e, apesar de se sentir muitas vezes sozinha, Marina tem consciência de que isso é só uma das muitas mentiras que a depressão conta. Ela não está sozinha, nunca esteve. Os amigos, a família, a namorada... Todos sempre estiveram (e estão) ali, estendendo a mão para puxá-la do poço. As marcas do pulso vão desaparecer com o tempo. A profundidade do corte não foi o suficiente para marcá-la para sempre. E, junto com as marcas, também há de ir embora a doença. É tudo uma questão de tempo, de paciência e de cuidado consigo mesma. É difícil, mas não é impossível e Marina sabe disso. Ela já é uma sobrevivente, cheia de sonhos e vontades, mesmo que pequenas e isso já é o suficiente para continuar nessa grande aventura que chamamos de vida.

Cerveja e Suor Aos 12 anos, Antonio já ansiava pelo mundo. Os olhos sempre em busca de um horizonte longe da realidade e as mãos sempre inquietas, numa tentativa falha de se manter entretido e não pensar sobre o que vinha acontecendo em casa. Aos 22, enquanto conversámos numa lanchonete em um bairro simples na cidade de Caruaru, suas mãos pareciam ter encontrado o sossego no calor do próprio colo, no entanto, seus olhos ainda se perdiam diante da vastidão azul do céu que se colocava sobre nossos corpos. Mais para contar a história de Antonio, precisamos voltar novamente no tempo. Filho mais velho de uma família desestruturada, como ele mesmo analisa, Antonio, entrando na puberdade, dividia sua casa com quatro grandes figuras: seu pai, sua mãe, sua irmã mais nova e o medo. Esse último havia se instalado há pouco tempo e ele não sabia ainda lidar direito com ele, ao contrário dos outros três, cujos temperamentos já eram velhos conhecidos. A primeira visita do medo veio numa tarde chuvosa e, apesar de dez anos terem se passado desde esse primeiro encontro, Antonio ainda lembra o cheiro e o gosto amargo que sentiu, sentado sozinho na cama ao olhar para o próprio sangue no chão. Tudo começou com a voz do seu pai chamando-o no quarto, algo incomum, visto que sua existência era pouco percebida pelo seu genitor. Ele recorda de caminhar a passos lentos, terminando a leitura de um gibi aleatório enquanto sons de gemidos ecoavam do cômodo ao qual se dirigia. Ao entrar, se deparou com uma cena digna das revistas proibidas que os garotos mais velhos levavam ao colégio: seu pai, totalmente despido e embriagado, se tocando enquanto homens e mulheres nuas passavam na TV em sua frente. Nojo foi a primeira coisa que sentiu, enquanto seu pai cambaleante, sob efeito de álcool, tentava se levantar e se dirigir até Antonio. Suas mãos grudentas tocaram o rosto de Antonio, que prendeu a respiração tentando não sentir o cheiro forte da cerveja que exalava do seu pai. Os próxi


V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M mos acontecimentos são lembrados apenas em flash. Antonio não lembra da sequência dos fatos até o momento em que se encontrava despido na cama com seu pai sobre ele. Tudo pareceu durar uma eternidade. O pai jogava toda a raiva e luxúria dentro de Antonio, que permanecia estático sem entender muito bem em que momento a sua vida tinha se transformado naquele inferno que cheirava a cerveja e a suor. Mal sabia ele que aquele seria só o primeiro dia que o levaria a fazer o mesmo questionamento. O cheiro da cerveja e do suor se tornaram conhecidos. Todas as tardes ao ficar sozinho com seu pai em casa, Antonio era despido e tocado contra sua vontade. O inferno se tornou um lar conhecido e o demônio era aquele que deveria oferecer amor sem medidas e proteção. De acordo com Antonio, foram quatro anos de violência psicológica e sexual. Aos 16, a situação se tornou insuportável. Sentar à mesa de café da manhã de frente ao seu abusador e fingir carinho era algo que definitivamente não conseguia mais fazer. Em uma tarde, quando seu pai o chamou no quarto, Antonio pela primeira vez, em quatro anos, disse não e permaneceu sentado na sala. O silêncio perdurou por alguns minutos e ele se permitiu sentir alívio, no entanto, o sentimento foi interrompido pelo som da porta se abrindo e o arrastar de chinelas do seu pai. O primeiro golpe foi com o cinto. A fivela bateu em seu pescoço deixando uma marca escura que durou algumas semanas, contrastando com a pele branca do garoto. Os socos vieram depois, seguidos também por chutes. Quando ele já estava caído no chão, vendo sua própria coragem esvair junto com o sangue que sujava o chão, pediu desculpas. O pai, entretanto, continuou. Pegou uma cadeira de ferro quebrada e jogou nas costas do filho. Antonio lembra da dor forte, da vista escurecer e de somente recordar das luzes do hospital. Quando acordou, nenhuma pergunta do que havia acontecido foi feita. As enfermeiras pareciam estar sob o mesmo efeito que a sua mãe durante todos aqueles anos. Antonio nunca entendeu como sua mãe não enxergava a verdade apesar de todas as pistas deixadas por ele mesmo. A marca das feridas em suas costas nunca foram embora. O traço na vertical que segue da costela até o fim da coluna é a marca da sua sobrevivência.

Hoje, no fim do curso de Psicologia, Antonio lembra do passado não com medo, mas com tristeza. As cicatrizes, em sua pele, não são nada comparadas àquelas gravadas no seu emocional. Foram quatros anos difíceis, mas que passaram. E como passaram. Atualmente, estruturado, com uma namorada que segura sua mão nos momentos complicados da vida, mantém uma casa só para eles. Antonio diz que nunca pensou em desistir. A dor física e emocional o tornaram uma pessoa empática, disposta a ajudar os outros, principalmente aqueles que passaram por situações parecidas. Ele quer continuar crescendo dentro daquilo que acredita, formar uma família e ser o pai que nunca teve. Apesar de não sentir raiva, ele se mantém distante de quase toda a família, visitando apenas a irmã mais nova de tempos em tempos. Só para garantir que está tudo bem. Seu pai morreu há alguns anos e Antonio não foi ao enterro. Disse que seu progenitor havia morrido muitos antes disso e que não havia necessidade de enterrar o corpo de um completo estranho. A sua mãe é a única que ele não fala. Diz que é não é por mágoa, mas porque não sabe como a colocar na história sem fazê-la parecer uma vilã. É difícil distinguir se ela se manteve calada por também conhecer o medo ou por puro comodismo e Antonio prefere não saber.

Love On The Brain O título que faz referência a música da artista pop Rihanna, tocava no momento em que Priscila chegou pra conversar conosco sobre sua história de vida. “amor na cabeça” é tudo o que ela demonstra ter ao falar das suas cicatrizes e toda a luta vitoriosa por trás delas. Natural de Caruaru e desde seu nascimento residente na mesma cidade, Priscila Emanuele da Silva Santos, nascida no último ano do século XX, tem 19 anos, cursa enfermagem e é a caçula de 2 irmãos. Aos 4 anos de idade foi diagnosticado um câncer em seu rim. Deu-se assim a necessidade de deslocar-se para o IMIP (Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira) no Recife, onde deu início a série de quimioterapias e radioterapias necessárias para o tratamento em busca da cura. Após um ano e nove meses teve a primeira recaída e descobriu um novo câncer no pulmão direito, depois de oito meses recebeu a notícia de que ele tinha passado para o esquerdo.

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corpo da mulher m e ta l ú r g i c a : saúde e pat r i a r c a d o n o tr abalho A partir do perfil de duas trabalhadoras, vamos conhecer como o trabalho e o machismo afetam o corpo de mulheres que resistem firmes e fortes os desafios no dia a dia Por Nichole Andrade Fotos: Nichole Andrade É um desafio na sociedade patriarcal ver mulheres ocupando cargos que majoritariamente são aplicados a homens. Desde 1980, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico (SindMetal), em um discurso com registro audiovisual, é possível observar a quantidade de homens no local. Eles são maioria quase absoluta, dando, assim, para mensurar e refletir sobre esse campo de trabalho não ter tanto espaço para as mulheres. Para elas, hoje, ainda é difícil e complicado ocupar postos de trabalho nesses lugares. No entanto, mais de 400 mil mulheres atuam no setor metalúrgico brasileiro.Em Pernambuco, 56 homens ocupam a direção do SindMetal. São apenas seis mulheres com atuação no movimento sindical, representando diversos trabalhadores da área. O número ainda é baixo, mas a luta é diária. O corpo feminino enfrenta muitos desafios na metalurgia. Não é fácil o trabalho, pois diversos problemas de saúde surgem no dia a dia de trabalho nas fábricas. As mulheres têm jornada dobrada, fazem grandes trabalhos repetitivos e pesados iguais aos dos homens e o salário normalmente é dividido por setor. Se é igualitário ou não, varia de acordo com as empresas. A maioria das mulheres metalúrgicas tem entre 30 e 39 anos, com alto índice de acesso ao ensino superior e baixa taxa de analfabetismo, mas ainda há dificuldade de promoção na carreira por conta do gênero e, em algumas empresas, a mulher chega a receber 28,79% a menos que o homem no mesmo trabalho. Nessa reportagem, vamos conhecer duas mulheres que atuam nesse setor, Josenilda Paulino e Adriana Augusto, mães, militantes, diretoras do SindMetal e mulheres que resistem apesar das dificuldades. Josenilda Paulino, de 43 anos, é mãe de quatro filhos, soldadora e representa 3.600 trabalhadores na sua base sindical. Ainda na dura rotina, cozinha, lava, passa, faz compras e, nas horas vagas dos finais de semana, sai com os filhos. Como se não bastasse a rotina corrida, encontra tempo para vender cosméticos. O trabalho pesado trouxe problemas de saúde. Josenilda desenvolveu varizes por subir muitas escadas, dores nas pernas, no joelho e na coluna. Para ela, os movimentos repetitivos e os pesos levantados constituem o maior fator que desencadeou os problemas, pois, apesar de terem um bom plano de saúde e garantia dos direitos trabalhistas, os movimentos no trabalho se repetem por muito

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V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M por um nervo comprimido no punho. Adriana conta que deve ter envelhecido uns dez anos devido ao desgaste no trabalho. Quando fez os exames, o médico considerou que ela estava inapta para trabalhar. Dessa forma, foi afastada. Após três meses, retornou e começou a ser perseguida na empresa. Foi trocada de fábrica e ficava sozinha numa mesa com a ordem dada aos outros funcionários para não fazerem amizade com ela senão seriam demitidos. Procurou o Sindicato dos Metalúrgicos e contou sua história. Por causa disso, mesmo doente, foi demitida pela empresa. Os advogados do sindicato entraram com um pedido de reintegração que foi aceito pelo juiz. A empresa recorreu, foi para a segunda instância e a desembargadora deu o prazo de 48 horas para a reintegração. Para os patrões, foi melhor reintegrar do que pagar a multa. Quando reintegrada, numa sexta-feira, houve eleições para delegação sindical. Adriana foi eleita com 200 votos. Na segunda-feira, foram demitidos 70 funcionários. A ordem era votar nos gerentes e o dono gostaria de saber quem foram as 200 “misérias” que tinham votado nela para que ele demitisse. Hoje, sua rotina é atuar com outras sete mulheres fazendo caixas de proteção, extensões, tomadas e o que for pedido. Mesmo com vários laudos médicos, trabalha normalmente e faz fisioterapia três vezes por semana. A empresa tentou reduzir para dois dias, mas ela, como delegada sindical, contatou o setor de Recursos Humanos e disse que cabe ao profissional de saúde essa decisão, fazendo cumprir a orientação médica. Muitos funcionários fazem poucos dias de fisioterapia ou nem fazem por medo. Recentemente mais duas mulheres foram reintegradas à empresa por meio do sindicato e sempre é o mesmo problema: a saúde. Por ter muitas funcionárias doentes, uma gerente inseriu todas numa só mesa e, covardemente, passou a chamar a mesa de UPA, em referência à unidade de saúde. A gerente cobra produtividade elevada de profissionais que até cirurgia fizeram. Para Adriana, é difícil ocupar esse espaço. É perseguida por machismo e injustiça, mas todos os dias levanta para a batalha diária de cabeça erguida e sente orgulho por compor uma direção sindical que ajuda quem passa por esses problemas. Ela espera que dias melhores cheguem para todos os trabalhadores que atuam no segmento da metalurgia e, confessa, que torce para que boas condições de trabalho sejam dadas a mulheres.

tempo, causando bursite e tendinite, males presentes na grande maioria dos trabalhadores. Também, por trabalhar muito no sol, exposta à radiação, mesmo usando proteção solar, percebe muitas alterações nas suas linhas de expressão. Apesar de alegar ser um trabalho muito puxado, ela ama sua função, diz que vale a pena ser soldadora, mas gostaria de uma mudança no salário dos novatos, que é baixo para o exercício. Também acredita que deveria haver mais mulheres ocupando o serviço. Josenilda se sente privilegiada por entrar em um espaço que é ocupado por muitos homens. “As mulheres têm a mesma capacidade e devem permanecer nesses locais para mostrar que podem fazer e que também gostam da área”. Diferente de Josenilda, Adriana Augusto, de 41 anos, mãe de dois filhos, trabalha por necessidade, pois o acúmulo de problemas de saúde é tanto que nenhuma empresa a contrataria após o exame médico. Trabalhadora de uma empresa de componentes eletrônicos, que tem 60% de mulheres no quadro funcional, Adriana entrou na fábrica como ajudante de montagem, mas, em três meses, surgiu uma vaga para sistemas e o currículo dela tinha essa especialidade. Dessa forma, Adriana passou para o setor de planilhas e, após dois anos, começou a constar na sua carteira de trabalho a função de contadora de produção. Dentro da empresa, existem várias mesas que comportam aproximadamente 15 pessoas e são diversas linhas de montagem. Todas eram contabilizadas por ela para analisar as metas que variavam de quatro mil produtos até dez mil, dependendo da dificuldade da peça, mas sempre existindo muitas cobranças aos funcionários. A fábrica tem cerca de 800 trabalhadores e a função de Adriana era a única. Para não acumular trabalho, ela costumava ir em dois horários, tanto que seu salário chegava a triplicar, mas não era posto no contracheque. Recebia informalmente e ia porque não tinha ninguém para ajudá-la. Muitas vezes chegava às 5h20 e saía 22h. Acabou tendo aceleramento cardíaco e o médico diagnosticou estafa, ou seja, esgotamento físico e mental. Começou a sentir o ombro inchado, avisou ao departamento da empresa que precisava de alguém para auxiliá-la, mas não foi ouvida. Ao procurar um médico e fazer uma bateria de exames, viu que adquiriu várias lesões no braço, tem líquido retido no ombro e no punho e falta força no braço direito, que é quase perdido. Além disso, o médico suspeita da síndrome do túnel do carpo, que é dormência e formigamento na mão e no braço causados

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Corpo e Cinema O Oscar 2018 trouxe à tona temas que há muito tempo foram abafados e camuflados. Na premiação mais importante do cinema mundial, diversas atrizes e atores se posicionaram diante dos casos de assédio e estupro envolvendo o ex-produtor cinematográfico Harvey Weinstein por meio dos movimentos “Me Too” e “Time’s Up”. Além disso, o discurso da atriz Frances McDormand, premiada como melhor atriz, clareou ainda mais o que já vinha sendo discutido em relação à necessidade de diversificação na Academia e, de certa forma, a diferença notória de salário entre atrizes e atores. Como uma das grandes mídias massivas de nosso século, o cinema tem o poder de representar histórias reais e ficções. Inserido no universo das artes e da indústria, ficou sob o controle dos poderosos e seus ideais, fortalecendo e criando estereótipos, padronizando e excluindo certos grupos da sociedade. O poder da linguagem fílmica demonstra, então, que não é somente nos palcos das premiações cinematográficas que questões sociais, como as relacionadas à mulher, são abordadas. Quando Marilyn Monroe aceitou interpretar o papel de Lorelei Lee em “Os Homens Preferem as Loiras”, de 1953, mal sabia que estaria garantindo seu posto como sex symbol dos anos 50 e se firmando como modelo feminino ideal a ser seguido pelas mulheres nas próximas décadas. O cinema tem dessas coisas: estabelecer padrões que acabam moldando comportamentos e contribuindo para a construção da identidade de indivíduos inseridos numa sociedade na qual o poder de excluir e incluir está nas mãos dos efêmeros padrões de beleza, que desde a antiguidade já sofreram diversas mudanças. A sexualização do corpo feminino é algo claramente visível em tantas obras cinematográficas que não caberia, aqui nesse espaço, elencar todas elas. Buscando fazer uma crítica a esse tipo de construção que muitos filmes fazem das mulheres, um vídeo feito pelo site norte-americano “The Cut”, que circulou na rede, denunciando uma prática comum nos cartazes de divulgação de filmes, mostrou as mulheres desses cartazes aparecendo sem a cabeça ou com ela escondida, deixando mais visível a silhueta ou atributos do corpo da mulher ao invés do rosto. O cinema é um espaço para representação, mas é fato que, durante muito tempo, sempre coube à mulher atriz se contentar com papéis que sub-representavam a mulher na sociedade, com personagens femininas orbitando em torno de protagonistas masculinos. Com o tempo e muita luta, tais questões passaram a ter mais visibilidade e espaços para discussão e a indústria do cinema precisou se adaptar às novas gerações que adentravam as salas de cinema com novas crenças e valores acerca da posição da mulher na sociedade. Reese Witherspoon alavancou sua carreira ao encarnar a personagem Elle Woods no filme “Legalmente Loira” (2001), que trouxe uma perspectiva diferente do que se costumava ver em Hollywood em filmes com mulheres ricas e loiras. A quebra da imagem da “loira burra” e “da menina frágil e indefesa” fez de Elle Woods uma heroína carismática e determinada que conquistou e continua conquistando o público. A loira, apaixonada por rosa, mostrou que os estereótipos podem ser quebrados e que amar a si mesma é o primeiro passo para alcançar os objetivos. O filme inovou o cenário cinematográfico da época, trazendo um discurso de empoderamento feminino de uma forma acessível a várias faixas etárias. O cinema, assim como qualquer outro meio de comunicação, carrega, nas narrativas que transmite, valores, tradições e crenças. Significados emaranhados nas cores, nas músicas, nos personagens, em todos os aspectos que completam a obra. É importante, ao assistir a um filme, não somente vê-lo, mas estudá-lo, compreender que até mesmo um posicionamento de câmera possui uma carga ideológica. Ser mulher no cinema, tanto dentro quanto fora dos filmes, é enfrentar barreiras e estereótipos pejorativos ao gênero. É tentar barrar o machismo e o sexismo tão disseminados na sociedade para se chegar, de fato, a uma representatividade que valorize a mulher como alguém que é protagonista da sua própria história.

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Rebeca Placido

Vitória Lima


Literatura e Sensações “Você lê muito. Por quê?” Perguntou, certa vez, meu professor de Matemática, da sétima série, que parecia irritado por não conseguir entender o que motivava uma adolescente a falar tão pouco, mas ler tanto. Em minha defesa, eu só pegava meus livros depois que as atividades de sua matéria estavam prontas. Lembro que fiquei um pouco constrangida com o tom da pergunta e não consegui responder nada muito melhor que um “eu gosto”, que tenho quase certeza de que ele nem ouviu. Não estava atrás de uma resposta, o meu professor, mas, depois disso, fui tentar entender. Então, algumas semanas atrás, li uma matéria curiosa no portal da livraria Nobel sobre uma pesquisa feita em 2015 na Universidade de Elmory nos Estados Unidos, com o intuito de entender as mudanças cerebrais causadas pela leitura de um romance. Consistia, basicamente em analisar, por meio de ressonância magnética, 21 estudantes que liam o mesmo livro (Pompeia, Robert Harris) antes de dormir. Quando analisados na manhã seguinte, os estudantes apresentavam alta conectividade no córtex temporal esquerdo, região cerebral ligada à recepção da linguagem, mesmo que não estivessem lendo naquele momento. Foi observado também que a região sensório-motora, responsável pela representação sensorial do corpo, ativada quando pensamos em correr, por exemplo, também estava ativada, mas quem tinha corrido eram os personagens de Pompeia. “Nós já sabíamos que boas histórias podem te colocar no lugar de outra pessoa, em um sentido figurado. Agora, estamos percebendo que algo assim também ocorre biologicamente”, afirmou Gregory Berns, neurocientista e principal autor do artigo. Penso como Bern (e Emma Bovary), mas é preciso estar preparado inteiramente para a experiência literária, para que ela possa tocar e modificar. É necessário Se entregar inteiramente na narrativa, enxergar os personagens, andar pelas ruas de Paris com d’Artagnan, sentir o cheiro das camélias de Marguerite e o movimento das ondas sob o Ghost. É verdade que geralmente isso só acontece com certos livros, aqueles que produzem signos que nós já percebemos do mundo, que conversam com nossas memórias do passado e emocionam nosso eu do presente. Isso acontece quando, por exemplo, visualizamos a frente da nossa casa de infância num conto da Lygia Fagundes Telles ou nos vemos nas páginas de Clarice. Entretanto, até narrativas longe das nossas experiências de vida despertam sensações. Eu nunca estive numa escuna de caça a focas do século XIX, mas tenho certeza de que, de alguma forma, já estive. Ler pode ressignificar o indivíduo, e movimentá-lo em variadas direções, a partir de uma nova compreensão da realidade e de si. A criação literária não acaba na última edição que o escritor faz no livro, mas é infinita e toma rumos diversos a partir da percepção de cada leitor. O leitor é um viajante. E ele viaja do escrito a seu próprio eu. A leitura, portanto, é capaz de fazer sentir emocionalmente e fisicamente, porque corpo e alma são interligados e as sensações estimuladas por palavras postas num livro, que fechado é só um amontoado de papéis, mas aberto pode representar todo um mundo, podem ser ilimitadas. O físico como metáfora na experiência literária é tátil à medida que corpo e mente se conectam no processo de percepção. Assim, matéria e espírito se fazem necessários ao ato de ler ou à arte de ler, como diria Nietzsche. Acredito piamente nisso. Dá-se que, enquanto leio um livro e mesmo após fechá-lo, sinto e vivo as coisas de maneiras diferentes. Percebi, pela primeira vez, e nunca esqueço uma manhã de segunda, sete anos atrás, quando li “O Fantasma da Ópera”, de Gaston Leroux. Já tinha terminado o livro, quando, sentada num banco da vã que me levava à escola, eu não conseguia conter meu corpo de bater o pé no chão e até minha respiração era mais ansiosa. Porque não era somente eu ali naquele corpo, era o idealismo de Christine, o amor inquietante de Raul e principalmente a angústia de Eric que me movia os pés e me fechava a garganta. Eu me sentia fisicamente outra. Essa sensação durou alguns meses e, nesse tempo, por incrível que pareça, mudei. Não era só “O Fantasma da Ópera”, era a adolescência, mas o livro se tornou expressão. Vestia-me diferente, tinha um novo gosto para peças pretas e vermelhas e as paredes do meu quarto foram preenchidas com fotos de todas as adaptações do livro possíveis, do cinema ao teatro. Até minha fala mudou. Percebia nela referências a Leroux o tempo todo. Parece demasiadamente intenso dizer, mas o caso é que depois daquela leitura o mundo tinha novos ares para mim. A comuna de Paris tornara-se refúgio para a menina esquisita de 12 anos não muito popular entre seus colegas e professores de Matemática. Foi quando entendi o que Saramago disse: “A leitura é provavelmente uma outra maneira de estar em um lugar”. Eis a resposta!

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“A leitura é provavelmente uma outra maneira de estar em um lugar” Escrito diretamente de Paris, 1625


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corpo da mulher, na universidade, é um campo de batalhas O direito de estudar, conferido às mulheres constitucionalmente, precisa ser garantido e é papel de todos contribuir para que elas tenham plenas condições de acesso ao ensino Por Thainara Amorim Colaboração Rebeca Larissa Ilustrações: Ana Maria

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primeira mulher a se formar numa universidade brasileira foi Rita Lobato Velho Lopes, em 1887. No entanto, será que a academia deixou mesmo de ser “lugar de homem”? Alyne, graduada numa universidade caruaruense, foi assediada pelo coordenador do seu curso. “Me senti agredida, suja”. A colega de classe Carolina foi assediada pelo professor nas redes sociais. “Em sala de aula, ele agia como se nada tivesse acontecido, com um cinismo assustador”. A graduanda Maria Caroliny precisa usar o transporte público todas as noites para chegar à universidade, mas o percurso que deveria ser normal e rotineiro, torna-se sempre um momento de insegurança. “Me sinto insegura quando entram alguns homens ‘suspeitos’ no transporte. Todos os dias, meu pai, que é idoso e usa bengala, me espera no ponto de ônibus para me acompanhar até em casa, pois a localidade em que moro é esquisita e a gente tem medo de coisas piores”. Essas histórias são mais comuns do que se pensa. O preconceito contra a mulher é o mais antigo da humanidade e está presente em diversos âmbitos do corpo social. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a taxa de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo. Uma em cada cinco mulheres pode sofrer estupro ou tentativa de estupro no decorrer da vida. Dados coletados por duas revistas norte-americanas contabilizam que 46% das mulheres trabalhadoras já sofreram alguma violência de cunho sexista no exercício de seu ofício. E esses são números que crescem assustadoramente. A universidade não está livre dessa realidade. Para a pedagoga Carolina Reis, a universidade está inserida em um tempo e espaço, e é importante pensar em uma construção social que permeia as relações que acontecem ali dentro. Desse modo, esse ambiente vai refletir os aspectos sociais e culturais do contexto social no qual está inserido. O machismo e o sexismo estão presentes na estrutura da sociedade, moldando e padronizando comportamentos. “Já escutei diversas vezes que colegas homens do curso de Pedagogia não poderiam exercer a profissão porque Pedagogia era ‘coisa de mulher’”. A doutora em Design e professora do Núcleo de Design e Comunicação do Centro Acadêmico do Agreste Teresa Lopes é especialista em empoderamento feminino baseado na estética e afirma que o papel das mulheres na academia não é fácil, nem como aluna, nem como professora. “Na vida acadêmica, é muito difícil, porque é uma disputa ego a ego. Você precisa se colocar”. É preciso se impor nesses espaços, por ser mulher, pois é muito fácil ser silenciada. Para Teresa, a solução desse impasse pode estar na educação. “Acho que o melhor esclarecimento é o histórico, para que você saiba que hoje estamos aqui porque muitas mulheres sofreram diversos tipos de abuso e diversos tipos de preconceito”, acrescenta. O machismo na universidade está espelhado não só em atos hediondos, mas em violências simbólicas, como no fato de as mulheres serem frequentemente deslegitimadas em debates acadêmicos. Muitos cursos predominantemente masculinos são conhecidos por esse tipo de atuação silenciadora. A construção social patriarcal é o principal elemento constituinte dessas configurações. Como explica Alyne, a maioria dos acadêmicos está lá com essa mentalidade machista. “Até as mulheres reproduzem isso, por causa da criação. É muito cultural”. É comum que as mulheres sejam muitas vezes relacionadas a discursos que caracterizam prostituição. Segundo Alyne, as estudantes são vistas como incapazes, que precisam da sexualidade para conseguir se graduar com excelência. “E quando ela não quer fazer isso, é prejudicada, perde notas, é tirada de projetos. Fazemos mais que os homens, diversas vezes, e eles sempre ganham mais, são mais divulgados”.

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A escritora e youtuber Pam Gonçalves lançou em 2016, pela editora Galera Record, o livro “Boa Noite”, que trata justamente das dificuldades da mulher universitária em eventos promovidos pela academia. O livro, sucesso de vendas, ajudou muitas mulheres a perceberem os atos machistas que já haviam sofrido e caminharem para um processo de empoderamento. Adicionado recentemente ao catálogo da Netflix, o documentário “The Hunting Ground” também aborda essas questões de preconceito às mulheres na universidade. De acordo com Ana Carolina, a literatura e as mídias, em geral, podem ajudar a combater essa violência silenciosa e quase invisível. Para muitas mulheres, o medo de denunciar atos machistas vem, à princípio, do fato de não saberem se, de fato, sofreram violência. A partir de 2009, qualquer violência de cunho sexual é considerada crime de estupro. Segundo o artigo 213 do Código Penal brasileiro, caracteriza crime contra a dignidade sexual qualquer forma de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. De modo que tocar o corpo de uma mulher, sem seu consentimento, é estupro. Fora da sala de aula, a insegurança também está muito presente. A maioria das estudantes procura transportes privados para chegar à universidade, por medo de usar transportes públicos. É o que confirmam as estudantes Luanna Lima e Maria Caroliny da Silva, que foram obrigadas a procurar vans, por questão de segurança física. Ainda assim, muitas mulheres são assediadas por motoristas de transportes particulares, como afirma Alyne. A universidade não é pensada para as mulheres. E se forem trans, negras e/ou estiverem grávidas precisam se esforçar ainda mais para permanecer nesses espaços. De acordo com Reis, além da dificuldade de acessar o ensino superior, elas enfrentam desafios para permanecer. “Já vi casos de amigas minhas levarem os filhos para assistir à aula, pois não tinham com quem deixar as crianças”. Falta de representação, invisibilidade, silenciamento, assédios morais e sexuais e outros diversos tipos de violência sexual e simbólica contra as mulheres passam a ser tão frequentes na universidade quanto o ato de estudar uma matéria. O caso é que não só a academia precisa de uma reestruturação, mas a sociedade. Machismo é institucional e o patriarcado é um sistema que constitui todo o contexto social brasileiro. Para erradicar esse problema, é preciso mais do que políticas públicas e de conscientização, mas coragem e empoderamento. Ainda que essa seja uma tarefa de persistência e perseverança, pequenas ações podem ser capazes de influenciar o contexto opressor e torná-lo mais acolhedor para as mulheres, tais como estudantes homens praticarem o respeito para com suas colegas de classe e tentar conscientizar outros alunos a fazerem o mesmo. Muitas mulheres conseguem ter uma experiência positiva e transformadora dentro da universidade e o cenário ideal é que essa seja uma realidade para todas.

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Os limites do corpo De Crossfit a Yoga, os exercícios físicos conquistam cada dia mais adeptos. Saúde para o corpo e também para mente Por Adeilton Oliveira e Edward Lucena Com colaboração de Luiza Moura e Joelson Augusto Fotos: Bruna Santos


V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M Em busca do corpo dos deuses, os gladiadores terão que lutar soltos na arena contra seus limites. Será que existe uma modalidade de atividade física melhor que as outras? Será que todas proporcionam o sentimento de que se chegou ao limite? A moda do corpo perfeito é algo que está em destaque há muito tempo e a onda de ser Body Building (estilo de vida voltado à construção de um novo corpo) parece que nunca vai cair. Mesmo com toda a aceitação vista nos dias de hoje, em que o seu corpo não precisa ser sarado para ser bonito, ainda notamos muito a busca pelo corpo ideal, mas talvez isso tenha agregado um novo olhar para as pessoas e elas estão buscando muito o conforto mental e o bem-estar consigo mesmas e sua saúde. Escola de gladiadores Sob as colunas de mármore do ginásio e o sol que prevalecia, gladiadores e olimpianos desafiam seus limites à busca do corpo perfeito também visto como um sinônimo de mente perfeita. Treinam de forma árdua e pesada, exercitando-se com bolas e aros, praticando corrida e fazendo saltos a distância, transformando todas as suas forças em músculos. Toda uma preparação por meio de treinamentos de guerreiros para obter a vitória contra os oponentes em batalhas. Levantar mais que o peso do próprio corpo como um gladiador e procurar a perfeição da mente e do corpo como os espartanos nos remete à estrutura analítica do Crossfit, que tornou-se sinônimo de força bruta.

Essa modalidade foi iniciada no Brasil no ano de 2009. Inicialmente praticada nos parques, posteriormente adotada por vários famosos e influencers fitness, que alavancaram a modalidade tornando-a uma febre, o Crossfit, para os olhares de muitos, é a forma mais eficaz e certa de conseguir o desejado “corpo dos deuses”. No entanto, muitos acreditam que há apenas brutalidade e exaustão nos treinos. Segundo Wagner Moraes, coaching da CrossFit Cordel, não é só em força bruta que essa atividade física é estruturada. O professor explica que são trabalhadas dez capacidades físicas dentro do Crossfit. “Todas elas são essenciais para o funcionamento do corpo, para que possamos funcionar de forma mais adequada. São elas: resistência cardiorrespiratória, resistência muscular, força, flexibilidade, potência, velocidade, coordenação, agilidade, equilíbrio e precisão. Então, o Crossfit é um treinamento funcional só que nós acrescentamos um pouco de alta intensidade. Os exercícios funcionais seguem os movimentos diários como sentar, levantar ou pegar alguma coisa no chão”. O Crossfit mistura movimentos de modalidades olímpicas, como ginástica e levantamento de peso, com técnicas de musculação funcional e de calistenia (que utiliza o peso corporal como resistência). Porém, como explica Wagner, o Crossfit é uma atividade planejada e, devido a isso, há uma série de aquecimentos que ajudam preparando o corpo para suportar todos os exercícios que serão executados. A prática é estruturada geralmente por uma aula básica com várias técnicas de movimentos, força, habilidade e pelo Workout Of The


V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M Day (WOD), que é basicamente a parte metabólica. “Há pessoas que irão suportar as cargas que vamos estipular no treino e outras pessoas terão que adaptar o peso. Então, a intensidade será igual para todos, dentro do limite do corpo de cada um”. Um grande exemplo disso são mulheres no período de gestação que possuem restrições necessárias para o bem-estar de si mesma e da própria criança, mas isso não as impede de praticar atividades físicas. Grávida de cinco meses, a dentista Anna Rebecca, de 28 anos, pratica Crossfit e afirma que é uma forma menos entediante de condicionar o corpo para as práticas do dia a dia. A atividade física, para Anna, é algo natural. Ela conheceu outras modalidades quando mais nova e optou pelo Crossfit como forma de sair do comum. “Eu modifiquei muito meu treino. Antes, de fato, eu fazia até o meu limite e, quando acabava a aula, eu estava muito cansada. Agora, mudou bastante a rotina de treinos. Eu não deixei de ir mesmo sendo criticada. Você faz Crossfit? Como assim? Você está grávida! Gravidez não é doença. Eu pratico, mas em outra intensidade, diminuindo a carga, com menos repetições e utilizando o frequencímetro que acompanha meus batimentos cardíacos”. Além da prática do Crossfit, também faz aulas de Pilates, que, de início, foram feitas para melhoria da postura e alongamento, mas agora estão ajudando também nesse período de gestação.

prática não é apenas para idosos, gestantes e que não é baseada apenas em alongamentos. Ele reforça que não é algo leve devido às técnicas, pois, em apenas um exercício, é possível trabalhar várias partes do corpo. “Os benefícios se enquadram em melhora da postura, flexibilidade e funcionalidade de cada pessoa, potencializando os efeitos musculares do corpo”. Anna Rebecca, como já dissemos, pratica Pilates há oito anos e afirma que não é só alongamento. Proporciona também fortalecimento da musculatura do corpo e da coluna, muito importante no seu dia a dia e no seu trabalho. Ela conseguiu unir as duas modalidades, Crossfit e Pilates, para o seu bem-estar especialmente nesse momento importante de sua vida, a gestação. Defendendo essa linha de raciocínio, a professora de Yoga, Melina Martins, que trabalha há dez anos em Caruaru com a modalidade Hatha Yoga e pratica desde os 16 anos de idade, explica os conceitos dessa prática desconstruindo os estereótipos de “aula do sono”. Ela afirma que existem dois mitos terríveis sobre a prática da Yoga. O primeiro é que todo mundo acha que consiste apenas em ficar parado em uma posição por muito tempo. O segundo que você só irá ficar em posturas que são inatingíveis para 95% das pessoas. “Quando alguém vê alguma foto de famosas praticando Yoga com determinadas poses já imaginam que vão ficar uma hora fazendo aquilo. Não tem nada a ver com isso”. A Yoga é uma prática que utiliza respiração, posturas físicas, consciência do corpo e relaxamento durante uma hora de aula. “Os tratados mais antigos da Yoga explicam que existe o nosso corpo físico e também uma frequência de vibração que atualmente a física quântica explica. Além disso, existe o fotokidding que vê a coloração áurea do corpo. Então, o nosso corpo vai trabalhando junto com a nossa mente. Tudo que fazemos no corpo tem reflexo na nossa mente”, explica Melina. Nem dorminhoco como Hypnos, nem sanguinário como Ares Quando a questão é levar o corpo ao limite, os treinos funcionais ficam entre o meio termo do que seria considerado “leve” e “hard”. Eles estão, muitas vezes, relacionados apenas com o emagrecimento e muito procurado para quem quer perder uns quilinhos na hora do desespero, sendo jogado de lado quando o desejo é ficar sarado. Segundo Milena Veríssimo, profissional de Educação Física, não é bem assim. “Os exercícios funcionais não

Com essas duas, até Hypnos acorda! No pensamento de muita gente, se as práticas do Pilates e do Yoga pudessem ser personificadas, se resumiram em um único nome: Hypnos. Na Grécia Antiga, esse era o nome do deus da sonolência e muita gente associa essas duas modalidades de atividade física a movimentos lentos e de relaxamento. Há também quem ache que são a mesma coisa. Dormindo está, assim como Hypnos, quem pensa dessa forma. Yoga e Pilates carregam a imagem de calmaria e leveza com séries de exercícios que trazem relaxamento para o corpo e a mente. Muitas vezes relacionada à reabilitação, confundindo com técnicas de Fisioterapia e Psicoterapia, as duas são diferentes, porém complementares. O Pilates tem técnicas para o desenvolvimento e condicionamento do corpo e a Yoga se estrutura em movimentos para obtenção de resultados físicos e mentais. No entanto, ambos trabalham com base na respiração e postura baseados em resistência corporal. O professor de Pilates e fisioterapeuta Thiago Andrade diz que a

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA servem somente para emagrecer. Existem vários benefícios, inclusive algumas literaturas afirmam que também há ganho de hipertrofia, proporcionando mobilidade articular, flexibilidade, ajuda na melhora estética”. Os exercícios funcionais acabam estruturando também várias outras modalidades de exercícios físicos e esportes até nas artes marciais como o boxe, modalidade que gera um certo receio na maioria da população devido a toda a agressividade e violência que as pessoas acreditam existir. Se engana quem acha que praticar boxe vai te deixar agressivo como Ares, deus da guerra. Sede de sangue e matança personificada são características que só esse Deus tem. Mesmo com o grande crescimento dos adeptos dessas atividades de grande impacto, ainda existe um grande medo das pessoas de levarem uma “surra” ou o pensamento de que é muito pesado para que qualquer pessoa possa fazer. O professor de boxe Mario França, que pratica há 20 anos e ensina há oito, afirma que tudo é uma questão de adaptação do corpo e que todos podem praticar sem medo. Nós educamos o nosso corpo para certas condições, então, dessa forma, nenhum exercício será pesado se você começar no seu nível, colocando um limite”. Além de trabalhar o corpo, o boxe não é só força, ele proporciona inúmeros benefícios “melhora o seu bem-estar, alivia o estresse e você fica de bem com a vida”, diz Mario.

velhas veem a prática com maus olhos. “Para mim, ainda é um desafio porque, mesmo eu explicando, minha mãe não aprova e diz que essa modalidade não é para mulher”. Podendo ser comparada a uma amazona, guerreiras da mitologia grega, além de belas, lutavam com toda sua força na época, eram exemplos de resistência e sabedoria, tinham bastante responsabilidade e treinavam duro, Elaine é uma mulher que pratica luta como mulher e não é a única. As aulas de boxe do professor Mario são frequentadas pelo público feminino em sua maioria. Todas mostram que possuem força e garra suficiente para colocarem à prova os seus corpos e mentes. Manjar dos deuses? Nutricionista há 6 anos e pós-graduada em Nutrição Clínica e Nutrição Esportiva, Elaine afirma que o segredo do corpo ideal é a junção clássica de alimentação saudável e exercícios físicos. Os dois devem andar juntos como a espada e o escudo. “A prática do exercício físico aliada a uma alimentação saudável, realizadas sob orientação de profissionais capacitados, são medidas capazes de prevenir doenças, além de aumentar imunidade e melhorar a qualidade de vida do indivíduo”, explica Elaine, acrescentando que, fora a alimentação, a hidratação é um ponto-chave em toda prática de exercícios. Mais do que a parte estética, os exercícios e uma boa alimentação ajudam na saúde mental e aumentam a autoestima, prevenindo doenças e riscos de morte. Elaine deixa um alerta sobre o Cavalo de Tróia das academias: os anabolizantes. Parecem ser um presente dos deuses. Os resultados são vistos rapidamente após o uso, mas, segundo a nutricionista, eles impedem bastante o desempenho físico dos indivíduos nas práticas de atividades físicas, causando irritabilidade e insônia, além de riscos ao próprio corpo. “Causa icterícia, danos ao fígado, retenção líquida, pressão arterial elevada, diminuição dos testículos, calvície, ataques cardíacos, derrames e, nas mulheres, podem causar alterações menstruais, crescimentos de pelos faciais, mudança na voz, entre outros”. Infelizmente ainda são muito procurados em todas as modalidades físicas porque os músculos se tornam mais visíveis e crescem mais rápido. “As pessoas, talvez, arriscam em utilizar porque o dano é lento e sempre acham que só acontecem com os outros”, afirma Elaine.

Amazonas, aquelas que lutam A nutricionista Elaine Pinto quebra todos os estereótipos impostos ao boxe. Praticante do boxe chinês há dois anos, ela mostra que não há limites para as mulheres, vistas como sinônimo de fragilidade por muitos na sociedade. “Faço musculação há 20 anos e, antes de entrar para essa modalidade, achava bem masculino e agressivo, mas, quando comecei a fazer, vi que estava errada”. A nutricionista se interessou por influência de uma paciente e afirma que teve bastantes benefícios em seu dia a dia e no seu corpo. “Pude aprender a me defender sem me machucar, a ter disciplina e energia, a ser rápida nos movimentos”. Ainda há muito preconceito quando as mulheres praticam esse tipo de atividade física. Ela cita que inclusive as pessoas mais

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Ricardo Lemos e Rosimar Lemos, mĂŁe e filho participam de ensaio para Revista Verbo contra o racismo, homofobia, misoginia, gordofobia. Foto: Bruna Santos



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Senhores do tempo O corpo idoso é, frequentemente, encarado como inválido, mas com as histórias que vamos contar nesta reportagem daremos a oportunidade de ver que há muita força de vontade no corpo e na mente dos nossos personagens Por Bruna Santos, Giovanna Trajano e Sarah Rêgo Colaboração Rebeca Larissa Fotos: Bruna Santos

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uito se questiona sobre o que seria o tempo. Um milagre? Uma ilusão? Uma sensação? Ninguém sabe ao certo defini-lo, mas todos o sentem na pele e na alma. É impossível passar ileso a ele, suas consequências são marcantes: aprendizados, alegrias, dores, paixões, enfim, marcas que nenhum procedimento estético é capaz de apagar. Cada um reage a ele de uma forma. Uns se desesperam, outros se sentem agradecidos e há quem só queira que ele passe logo, mas uma coisa é certa, não da para ser indiferente a ele. Nossos personagens encaram o tempo de frente e não se deixam abalar. São pessoas com histórias ricas, fortes, significativas e que toparam dividi-las com a Revista Verbo. Desconstrua qualquer ideia comum sobre idosos e embarque nas histórias dos nossos senhores do tempo. Dona Gracinha: firme e forte Sincera, pontual, ágil e o principal: forte. Essas poucas características poderiam descrever Dona Gracinha, que, aos 80 anos, participa de dois Corais, um grupo de seresta, resolve todas as questões burocráticas de sua residência, dirige pela cidade inteira e se exercita nas horas vagas. A mulher parece que é ligada no 220 V e, segundo ela mesma, sempre foi assim. Quando criança, morava na Zona Rural da cidade de Cambaceira e se acostumou com a rotina intensa de sua família, pois tudo que consumiam eles mesmo produziam, o que permitiu se alimentar de comidas saudáveis, livres de agrotóxicos e conservantes. Ainda quando menina, acordava quatro horas da manhã, plantava feijão e depois seguia 3 km a pé até a escola, voltava e fazia os serviços de casa. Com isso, garante que o trabalho duro mais a alimentação saudável foi o que a fortificou e o que resultou em sua longevidade. De trabalho, Graciete Carolina nunca fugiu. Aos 17 anos, se mudou para Caruaru e trabalhou como costureira, ofício que aprendeu na escola. Após conhecer seu marido, ambos montaram um

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V E R B O R E V I S TA .W O R D P R E S S . C O M fábrica de roupas e aos trinta e poucos anos tomou uma decisão: voltar a estudar. Ela tinha feito apenas até a quarta série e teve o desejo de aprender mais. Mesmo com o próprio negócio, três filhos, casa para cuidar e muitas vezes cansada e com sono, ela fez supletivo, curso de contabilidade, graduação em Serviço Social. O magistério permitiu que ela realizasse um sonho: ensinar. Com quarenta anos, teve sua primeira turma e só parou quando se aposentou aos 65 anos como diretora de uma escola da Zona Rural em Serra Verde, que foi mais ou menos o período em que resolveu tirar sua carteira de motorista. Comprou o seu carro com o próprio dinheiro – mesmo que o marido já tivesse um - pois tinha a necessidade de ser independente. Ao mesmo tempo, dona Gracinha sempre foi engajada em projetos sociais e religiosos. Atualmente viúva e aposentada, sua dedicação a esses projetos só aumentou, pois não suporta estar dentro de casa ociosa. Diz que o momento mais difícil foi quando quebrou a rótula e teve que se submeter a ficar dois meses numa poltrona em repouso. Após o episódio que trouxe muita reflexão a sua vida, ela garante que ficou mais cuidadosa e que passou a dar mais valor a suas atividades, pois sua vida não teria sentido sem boas conversas, festas, aprendizados e música, sendo perceptível em cada palavra proferida que a música é sua verdadeira paixão. Integrante da seresta Camus e dos corais Coração Eucaristo e Madrigal, ela diz com certeza que quem vive sem música é infeliz, pois a música cura qualquer dor e eleva a alma. Sendo assim, faz questão de levá-la até os jovens e de mostrar que essa é uma ótima saída para os problemas que atravessam a vida. No entanto, seu amor não se resumo ao canto. Recentemente, entrou nas aulas de teclado junto com seu neto. Apesar de reclamar da falta de agilidade nos dedos, adorou aprender um novo instrumento, pois o que importa é entrar em contato com novas experiências. Isso fica claro quando ela diz - enquanto mexe no seu iPhone - que fez curso de computação para aprender a utilizar a tecnologia da melhor forma possível. Com um sorriso no rosto, afirma que sempre gostou de socializar. Quando era pequena, caminhava 6 km a pé para o povoado vizinho com o objetivo de frequentar as festas religiosas que lá aconteciam. Gostava de carnaval de rua, São João, inclusive já participou em diversos anos das tradicionais quadrilhas que ocorrem em Caruaru. Em resumo, de casamento a festa da padroeira, dona Graciete está dentro, pois o que importa é participar. Apesar de toda disposição, Gracinha sente dores como qualquer outra pessoa. Ela tem osteoporose, porém faz questão de se exercitar e se locomover mesmo assim, pois crê que ficar em casa sendo sedentária é pior, tendo em vista que para ela a atividade física é melhor do que qualquer analgésico, garantindo até que tem mais energia que suas próprias filhas. Por consequência dessa vivacidade ou por ter trabalhado com jovens há tanto tempo, é o grupo que ela mais se identifica, não se prendendo a socializar apenas com pessoas que estão na sua mesma faixa de idade. Esse espírito jovial é perceptível em cada sorriso espontâneo no meio da narração de suas histórias. Ela deixa claro que não se entrega, não deixa a vida levá-la, Graciete é assim, dona de si e do seu destino.

orgulhe de cada traço que foi marcado no seu corpo com o avanço da idade. Há quem ache que envelhecer é sinônimo de limitação ou incapacidade, mas Maria Aparecida, de 52 anos, mostra todos os dias para si mesma e pra todos ao seu redor que nada disso é verdade. Mãe, secretária, dona de casa, filha e mulher, Maria se divide em todas as funções que empenha no seu dia a dia entre bancos, filas, amores e seu interesse no desconhecido. Ela nos conta como vê a mudança em seu próprio corpo. Numa conversa tão descontraída quanto ela mesma, Maria fala sobre como se sente com as mudanças com o passar dos anos. A segunda mais nova de uma família de oito filhos, Maria é ativa desde a infância, mantendo esse ritmo ao longo de sua vida e mostrando que não tem jeito dela ficar sentada no sofá o dia todo. Interessada em música, dança, culinária, processos estéticos e qualquer coisa que fuja do seu habitual, ela tem uma rotina intensa em que se divide entre o trabalho, cuidar de sua mãe, que mora com ela, e se manter bem consigo mesma. Sempre vaidosa, Maria não abre mão de certos cuidados com a sua aparência. Por volta de três anos atrás ela, recebeu o diagnóstico de câncer de pele e, mesmo com o choque inicial, não conseguiu ficar parada. Hoje, já recuperada, mantém uma rotina de exercícios e raramente para em um lugar com a sua rotina hiperativa. Maria é mãe de uma filha já adulta, namora e tem uma vida mais animada que a de muito jovem por aí. Mesmo com seus problemas de saúde, que são frequentes, ela não suporta ficar parada. Durante a conversa, ela nos contou que diferentemente das amigas da sua idade, ela não consegue ver os dias passando dentro de casa e não abre mão da sua caminhada matinal, nem dos afazeres diários. Com uma animação de colocar muito adolescente para respirar um pouco mais, Maria Aparecida é o retrato da resistência do corpo de uma mulher que não deixa de se importar com os cuidados estéticos, saúde e romance. A idade, em seu caso, foi apenas um contribuinte para que essa energia duplicasse.

Dona Maria: energia em dose múltipla Retratar a passagem dos anos no seu próprio corpo pode ser uma atividade complexa para muita gente, mas também há quem se

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA Seu Antônio: os números se tiram de letra

mão, Luiz Serafim, aprendeu a fazer as chamadas cadeiras populares e ganhava o sustento vendendo as peças. Nesse cenário, a esposa e os filhos do seu irmão foram morar com ele e seu pai. Antônio se viu na necessidade de continuar o legado do irmão e, para ajudar sua cunhada, filhos e seu pai, assumiu a oficina de móveis e ensinou a ocupação aos sobrinhos. “Meu maior sonho era ser professor de matemática”, conta ele. “Eu tinha muita facilidade com números, tirava de letra”. Diz com orgulho que era um bom aluno de Matemática na época de escola, chegando até a dar aulas particulares, porém a família veio em primeiro lugar. Apesar de tudo, ele se manteve firme e acabou por unir sua paixão e seu ofício. A habilidade de fazer cálculos de forma rápida e eficiente se juntou à habilidade, que foi sendo desenvolvida aos poucos, de moldar a madeira. Antônio conta que chegou a fazer miniaturas do que futuramente seriam os móveis. Primeiramente, ele calculava as medidas, fazia os protótipos e, se desse certo, construía o móvel em tamanho real. Assim como as mãos, os pés que hoje fazem caminhadas matinais também deixam marcas de um legado. A trajetória dos pés de Antônio carrega um legado de um caruaruense que, apesar de toda dificuldade, enfrentou e continua enfrentando os problemas e barreiras. As pegadas de Antônio deixam para trás as dores e os sonhos não realizados e se fixam com pés que continuam a dar passos. A cada passo dado, a vitalidade e força ficam marcadas. Hoje, apenas um dos cinco sobrinhos continua exercendo a profissão de marceneiro. A trajetória das mãos e pés de Antônio com toda certeza será passada adiante. O caminho construído com números e madeira ao longo do tempo cresce mais. O número 74? Antônio tira de letra.

Dez, vinte, trinta e sete, centímetros, metros... Matemática e marcenaria andam juntas. A matemática sempre esteve muito presente na vida de Antônio, sendo esta, a maior paixão dele. Falar sobre números é, para ele, um divertimento. E com naturalidade fala acerca do número 74, a sua idade. Antônio Serafim de Souza não é o mesmo Antônio quando tinha 15 anos, idade em que começou a aprender a fazer cadeiras. É certo que o tempo passou e, com ele, muitas mudanças, mas Antônio permanece fazendo o que desde os 15 anos aprendeu a fazer: arte. Com cuidado, ele observa os móveis que recentemente fez para a sobrinha: mesa, cadeira, portas. Examina cada parte, faz ajustes e com muito orgulho mostra o que construiu com as mãos. Mesmo aposentado do ofício da marcenaria, continua fazendo móveis e, para ele, ficar parado não é uma opção. “Eu continuo na ativa, trabalhando, mas sem compromisso”, diz ele. Além de fazer móveis “sem compromisso”, como ele mesmo disse, Serafim todos os dias faz caminhadas, ajuda os sobrinhos na loja de ração para animais e vai à feira aos sábados. As mãos e pés de Antônio permanecem em movimento após muitos momentos de aventuras no passado e continuam, hoje, eternizando o seu legado. As mãos que cortam e lixam a madeira, perfuram, entalham, fixam e reparam carregam o legado familiar. A arte da marcenaria começou a ser exercida primeiramente pelo irmão de Antônio e foi com ele que Antônio teve seu primeiro contato com o ofício. O real sonho de Antônio era ser professor de Matemática, porém, após uma fatalidade, a morte de seu irmão, teve que dar continuidade ao trabalho do irmão. O ir-

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COR PO, A RT E E POL ÍTICA É com o uso do corpo na arte que se discutem importantes aspectos políticos das sociedades contemporâneas Por Adelvando Queiroz, Gabriela Reis, Hanna Aragão, Márcio Correia, Maria Souza Fotos Adelvando Queiroz

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA enna era um garoto que sempre q u i s a t u a r. F o i a partir dos sete anos que seus pais começaram a investir em oficinas e aulas de teatro. Na época, suas referências eram outras. A televisão era muito presente no cotidiano brasileiro e as telenovelas se tornaram sua principal referência. Seu corpo e sua aparência não estavam dentro dos padrões que eram comercializados na TV. “Quando meus familiares vinham falar comigo e diziam ‘Ah! Um dia quero te ver na globo!’, eu respondia: ‘Só se for para fazer papel de índia ou filha de empregada’”. Em 2 0 1 6 , c o m 2 4 a n o s e j á formada em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Renna se reconheceu como mulher travesti e faz dessa questão de gênero, desde então, o foco de um novo posicionamento político de ser no mundo, refletindo em todos os aspectos de sua vida, principalmente em sua arte. “Sair de casa para comprar um pão ou para fazer qualquer coisa, eu sempre tenho que ativar esse posicionamento político de ser reconhecida pelo gênero que eu quero ser reconhecida e minha arte está diretamente relacionada a isso”. Segundo o filósofo francês Michel Foucault, o uso do corpo, enquanto instrumento político, provoca um discurso alternativo e libertador, entrelaçando os limites entre a arte e a vida. Na produção artística, a relação entre o corpo e a arte perpassa pelo fascínio que ele provoca quer como suporte, quer como modelo. O corpo foi (e é) disponibilizado como objeto de contemplação e posse visual.

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Nas pesquisas de Foucault, o corpo aparece como um composto de forças que se encontram em constante combate. Esse corpo não se limita às concepções orgânicas; mas se apresenta como um campo sobre o qual operam diferentes dispositivos, que tem o objetivo de controlar e instituir modos de ser, de viver, produzindo subjetivações. O controle sobre os corpos é visto, ao longo da história da humanidade, a partir de diversas instituições que se esforçam para regulá-los. Igreja, escola, família impõem liberdades e interdições sobre o que pode ser feito com o corpo. No entanto, como bem destaca o pensador francês, “onde há poder, há também resistência”. E, nesse cenário de movimentos que lutam por usos do corpo diferentes dos padrões estabelecidos, destacam-se as maneiras como a arte instaura um uso político dos corpos. O corpo, objeto de dominação e controle, resiste e passa a ser símbolo de denúncias, de lutas, tornando-se um instrumento político. Recusar esse lugar de corpo como objeto para encanarse como sujeito político em todos os lugares é um ato corajoso. Retirar o corpo da esfera concreta da produção e colocá-lo nas ruas é dizer muito claramente que aquele que assim se enuncia não é objeto em nenhuma posição. É dizer também que o corpo com desejo jamais será só objeto. Renna viu no espaço público, na rua, um meio de mostrar sua formação enquanto artista e como questionar esse controle do corpo. A rua tornou-se palco de seus espetáculos e performances. Ela percebeu que o ser político não é apenas ser um eleitor ou ter um cargo político, ou seja, que nossas práticas diárias são

políticas. então, a chave para relacionar a política com a arte, no caso dela, foi buscar uma arte pública. “Eu encontrei na rua, no espaço público, o espaço de político que eu precisava. Quando acontece um espetáculo na rua, ele acontece para todas as pessoas, não tem essa questão de classe, gênero ou raça, porque a rua é onde estão todos. A arte que eu estava fazendo e a arte que eu queria me aprofundar era uma arte pública, de alguma forma democrática”. “Ela tem cara de mulher, ela tem corpo de mulher, ela tem jeito, tem bunda, tem peito e o pau de mulher!”, o trecho da música de Linn da Quebrada é cantada em uma das performances de rua, profundamente empoderada de Renna. Vestindo um shortinho jeans e a uma blusa vermelha de costas nuas, a garota com o seu pandeiro nas mãos chega na tradicional feira de artesanato de Caruaru entoando canções que falam do cotidiano e vivências de uma mulher trans. É nessa hora que corpo, arte e política se unem em um único ato. Renna com o corpo de uma mulher trans rompe fronteiras de gêneros, questiona o corpo feminino e o masculino e desperta reflexões. Outro artista que também usa o corpo como expressão política é Jackson Freire. Com apenas 18 anos, o ator e professor do Teatro Experimental de Arte (TEA) faz algumas apresentações na rua. Para ele, o teatro de rua é democracia, a arte que atravessa qualquer classe social e vai do condomínio até a comunidade. De acordo com Freire, o teatro de rua exige do ator que ele esteja inteiramente integrado com seu personagem, pois vai

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F A C E B O O K . C O M / V E R B O R E V I S TA haver momentos que vão surgir imprevistos que estão fora do controle do ator e o esvaziamento da carga social que os atores levam no corpo é um trabalho de concentração, construção e desconstrução. “A neutralidade e anulação do Eu é fundamental na imersão em uma personagem. A gente só consegue isso com técnicas de alongamento, respiração, concentração, e de autoconhecimento. A finalidade dessas técnicas é justamente trabalhar a negação de toda a acumulação social no pessoal”. Interpretando o personagem Chicó, da obra “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, Jackson põe em prática essas técnicas para a construção do personagem. “Corpo em cena é autoconhecimento. Para viver outras vidas e entrar em outros corpos, a gente tem que conhecer o nosso primeiramente. Quando eu entrei no teatro, não conhecia nada do meu corpo e hoje ainda tenho muito a conhecer. Teatro é um trabalho constante. A gente nunca vai parar. O processo de conhecimento do corpo se dá no momento de fricção, um atrito de você com você mesmo. No teatro, são feitos muitos exercícios que exploram os limites do corpo, sempre mostrando a superação pessoal desses limites. É uma reação em cadeia. Quando ultrapassamos essas barreiras, nos tornamos mais flexíveis e a dinâmica corporal mais fluida”, completa. Com Chicó, Jackson experiencia e leva as pessoas a pensarem sobre o corpo nordestino, o corpo do homem do Nordeste. O corpo é o sujeito e o objeto da arte performática. Essa arte pode perpassar muros e acontecer ao ar livre. Na rua, ela tem a possibilidade de atingir pessoas que não circulam no meio das artes e, assim, se ampliam seus espectros. Devido a relação de corpo, arte e política, o corpo pode ser entendido como suporte de crítica e para questionamento de problemáticas sociais. O corpo é a materialização da cultura, pois é totalmente moldado por signos culturais. O também ator Rosberg Adonai Rodrigues,

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de 23 anos, utiliza seu corpo no teatro como diluição do objeto artístico e consequentemente cultural, empreendendo, em sua arte, experimentações fomentadas por representações do corpo, levantando questionamentos sobre corpo híbrido, produtor de imagens em confluência com suas possibilidades e limitações. “O ator trabalha com sentimentos constantemente. Podemos manipular uma pessoa. Traçamos, decoramos e memorizamos de alguma forma esses sentimentos e essa coreografia de marcações e intenções, movimentações de objetos, para alcançar o público, atingir nossa plateia em um movimento de troca”, revela. Rosberg, desde criança, gostava de arte. Fazer teatro é uma forma de explorar a potencialidade do seu corpo. Ele conta que sua avó era muito religiosa, costumava levá-lo para missa e ele decorava todo o texto do padre. “Decorava texto do padre, das novelas, as danças na televisão. Pegava bonecos, construía cenários e histórias. Sempre fui criativo. Inicialmente, não tinha interesse na oficina de teatro oferecida pelo colégio Machadinho, onde estudava, mas era viciado em videogames e televisão com meus amigos. Teve um dia que o ciber estava fechado e nós fomos ver o que estava acontecendo no colégio. Era uma aula de teatro. Fiz a aula e terminei ficando um ano fazendo. Depois, fui chamado para integrar o TEA. Aceitei e estou até hoje fazendo teatro”. Para Rosberg, a arte contribui para discutir temas sociais importantes relacionados ao corpo. “A opressão obriga, por exemplo, o negro a colocar-se no lugar dele. Então, pensamos em fazer uma peça para desconstruir todas as formas que o negro é colocado na sociedade. Para isso, colocamos o negro como protagonista. É uma inversão de papéis”. Diversos artistas utilizam o corpo em suas obras, seja como referência de denúncia ou de valorização dos corpos. Para os artistas desta reportagem, o corpo se tornou um local de exploração e redescoberta em uma nova e radical linguagem visual que desafia o jeito de compreender o mundo.


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Um corpo no mundo O

Gabriela Reis

primeiro pensamento que vem à mente é: como começar sem que eu espante as pessoas? É. O assunto que vou tratar deixa muita gente desconfortável, mas acho que esse é o meu objetivo. São tantas coisas para falar, tantos desabafos para fazer. Vamos lá. Este corpo que fala agora para vocês, carxs leitores, entre tantas outras funções, já serviu para muita inspiração na bossa nova e samba, para representar o carnaval e a imagem do Brasil no exterior. Acho que muita gente pensou em uma mulata agora, né? Pois é, erraram. Este corpo é um corpo preto. E que delícia reconhecê-lo assim. Hoje, posso reconhecê-lo dessa forma. Não vou dizer que é fácil carregá-lo diariamente pelas ruas, mas é também um deleite. Sabe um corpo que não passa despercebido? Seja por medo, por erotização, por curiosidade, espanto. Os olhares brancos existem. Agora vou falar uma coisa para vocês: têm olhares que são tão cheios de empatia, tão cheios de amor e tão cheios de entendimento que só de lembrar arrepiam. E esse olhar, com toda certeza, são de corpos iguais ao meu. Há uma diferença tamanha do que eu realmente sou e o que as pessoas pensam. Não sou a mulher forte que aguenta qualquer rojão. Não sou a morena que sabe sambar e que provavelmente é boa de cama. Não sou a pessoa que vive se vitimizando com coisas que nem existem de verdade. Eu sou a mulher que carrega um corpo que diariamente sofre violência e pode acreditar é diariamente mesmo. Sou a menina que todo dia tenta aprender mais sobre ela mesma, afinal, foram anos e anos sem enxergá-la. E busco aprender sobre os meus também, aqueles que ainda continuam sem serem vistos, sabe? Sou a que tem que ser forte, porém, muitas vezes, não sou. Sou a mulher que, quando o fardo é pesado, quer apenas deitar e chorar e tudo bem. O processo de embranquecimento que tanto falam já foi vivenciado por este corpo. Inacreditavelmente, já tentei ser branca. Mas, hoje, quando me olho no espelho, não aguento imaginar este lindo corpo negro se esforçando em ser branco. E, para explicar um pouco como foi e é ótimo reconhecê-lo assim, tentarei fazer uma ponte entre o que esse corpo é e os cinco sentidos da percepção humana. Visão: O processo de embranquecimento começa pela visão, ou melhor, pela não visibilidade. Eu não me via nas novelas, nos filmes, nos desenhos, nos meus brinquedos. Eu não me enxergava em nada. Então, o que me restava fazer? Tentar parecer ao máximo com o que eu via. Mas, quando eu encontrei a luz, e essa

luz era negra, alcancei o êxtase. Foi como voltar a enxergar, a me enxergar. E agora não paro de vislumbrar esse corpo. Paladar/Olfato: Quando eu era pequena, eu sentia um gosto demasiado amargo de carregar um corpo negro, ainda que não o reconhecesse assim, e acho que por isso não entendia o motivo de ele ser tão preterido. O gosto ácido, o cheiro azedo me percorria a boca e chegava a corroer o peito. Doía. Doía por não ter a clareza da pele das meninas eleitas as mais bonitas da escola ou por não ter o cabelo como me diziam que era o ideal. Um sabor amargo e um cheiro ocre que também fazia chorar. Esse sabor não era compartilhado. Era um sabor que queimava durante o processo de digestão. A mim, restava passar por ele sozinha e calada. Hoje, os sabores que sinto são tantos. As nuances dos sabores são constantes. Saber quem eu sou facilita muito entender os motivos de novos sabores serem sentidos. Os gostos amargos ainda vêm, mas a degustação é compartilhada com os outros sabores e o processo se torna menos doloroso. Audição: O soar dos tambores que para muitos são barulhos importunos e malignos, para mim é uma ligação monumental com minha ancestralidade. Cada toque da batida no atabaque faz meu corpo gingar e meu coração se sentir conectado. Posso senti-lo dançando no ritmo da batida. Meu corpo se arrepia a cada letra de música que, em iorubá, chama e exalta meus orixás. Tato: Surgiram alguns toques de outras pessoas no meu corpo. Eles me fazem sentir uma mistura de aflição, medo e nojo. Mãos desconhecidas que a todo o momento querem estar no meu corpo e no meu cabelo como se eu fosse um animal dos mais exóticos. Acho que essas pessoas pensam que este corpo é avulso, não tem dono. Mas eu sou moradora e proprietária dele. Apenas a mim ele pertence. Essas mãos que tentam me controlar e me domar chegam sutilmente aconselhando como tratar meu cabelo, ou as paletas de cores que mais “combinam” comigo, tentando sempre arrancar minhas essências. No entanto, quando chego em casa, eu na companhia do meu corpo, o toco e o sinto totalmente solto dessas grades que tentam aprisioná-lo. Quando toco essa pela preta e sinto a maciez que passam pelos meus dedos ou quando estou passando batom e sinto a grossura dos contornos dos meus lábios me sinto tão inteiramente minha. Sou imensamente feliz de amar a cor de minha pele que é uma mistura de café com uns dois pingos de leite e com um brilho que parece que ao acordar tomei um banho de purpurina. Feliz com o tamanho do meu grande sorriso que faz aparecer quase todos os meus dentes. E feliz com cada traço negroide que carrego em meu corpo. Quando reconheci e conheci esse corpo, o amor aconteceu.

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