Revista Verbo - Terceira Edição

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FOTOS: ARNALDO FÉLIX

7. MANIFESTAÇÕES DE

RUA SEGUIREMOS EM MARCHA ATÉ QUE TODAS ESTEJAMOS LIVRES

11.

PERFIS O OLHO DA RUA A partir de três perfis, a gente conta histórias de pessoas que foram colocadas para fora de casa ou que vivem nas ruas FOTOS: BIANCA TORRES

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18.

RUA COMO LUGAR DE SUSTENTO RUA, O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAI HOJE Amontoados em espaços improvisados, muita gente tem nas ruas a única oportunidade de ter o ganha pão

23. CIRCULAÇÃO NAS

RUAS FONFOMMMMMMM!!! BI-BIIIIIIIIIIIII!!! Gritam as buzinas todos os dias nos inúmeros cruzamentos na cidade de Caruaru que, em 20 anos, viu o número de veículos subir 272%, dificultando a circulação de pedestres, ciclistas, automóveis e motociclistas

27.

FESTAS DE RUA DO CÉU AO CHÃO DE TERRA BATIDA Seja para brincar o Carnaval no céu, como era conhecida a festa de Caruaru, ou arrastar os pés na terra batida do São João, a cidade continua atraindo multidões com suas festas de rua

35. RUA DA MÁ-FAMA SILVINO MAIS CEDO, MÁ FAMA MAIS TARDE A famosa Rua da Má Fama de Caruaru é um símbolo de resistência para cidade, mas vem sendo alvo de um termo de ajustamento de conduta o que compromete a frequência do público, o funcionamento dos estabelecimentos e a diversidade cultural do local


FOTOS: VICTÓRIA MÉLO

43. BARES DE RUA

DE BAR EM BAR Um tour pelos bares de rua mais famosos de Caruaru

47. FEIRA DE RUA

A FEIRA DE CARUARU As ruas da cidade se enchem de cores, cheiros, sabores e sons com as feiras de rua

53.

RUAS ONTEM E HOJE RUAS DE CARUARU ONTEM E HOJE Cantadas em canções, transformadas ao longo do tempo, as ruas da cidade nos contam histórias local

61. PRESSA NAS RUAS “O MUNDO É UMA ILUSÃO”

FOTOS: DYEGO MENDES

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EDITORES Breno Melo, Diego Gouveia, Géssica Amorim CAPA Ayrton Hascemberg DIREÇÃO CRIATIVA Daniele Leite, Twany Moura, Wagner Lima, Roseane Cavalcanti FOTOS Bianca Torres, Dyego Mendes, Bárbara Conceição, Lorena Zuzart, Beatriz Lima, Victória Mélo, Victória Pascoal, Dayane Carvalho, Arnaldo Félix, Luiza Moura, Victória Carvalho COLUNISTAS Dayane Carvalho, Larissa Alves, Daniel Nascimento, Gabriel Pedroza, Beatriz Lima, Rauany Natércia, Nilson Júnior EDIÇÃO DE ÁUDIO Thiago Lira, Nilson Júnior, Gabriel Pedroza EDIÇÃO DE VÍDEO Eloisa Avani, Roseane Cavalcanti, Ana Clara Tabaranã, Bianca Torres, Daniele Leite, Pedro Viana REDES SOCIAIS Daniel Nascimento, Nilson Júnior, Daniele Leite BLOG Daniel Nascimento, Victória Carvalho EQUIPES DE REPORTAGEM Dayane Carvalho, Dyego Mendes, Sarah Coutinho Bianca Torres, Gabriel Pedroza, Jeferson Macedo Dayane Carvalho, Milena Morais, Mariana Sales, César Martins Pedro Viana, Heberton Martins, Clara Alves Beatriz Lima, Daniele Leite, Gabriel Pedroza Daniel Nascimento, Eloisa Avani, Victória Carvalho Breno Melo, Rauany Natércia, Vinícius Tavares, Victória Pascoal Ana Clara Tabaranã, Maria Eduarda, Mariana Sales, Thiago Lira, Victória Mélo Amanda Oliveira, Daniele Leite, Dyego Mendes, Heberton Martins, Larissa Alves, Matheus Tavares, Sarah Coutinho

A Revista Verbo é um produto da disciplina Narrativas Midiáticas do curso de Comunicação Social do Núcleo de Design e Comunicação do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco. O professor Diego Gouveia foi o responsável pela disciplina em 2019.1.

EDITORIAL NOTÍCIAS DAS RUAS

O

s desafios da produção de conteúdo infor mativo nos dias de hoje chamam atenção da importância dos profissionais de comunicação estarem nas ruas. É o processo de análise, observação, diálogo que garante aos repórteres boas histórias. A decisão da turma do terceiro período de Comunicação Social do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco não poderia ser mais precisa: ter rua como tema de investigação. Detalhar o que temos nas ruas de Caruaru, de cidades próximas e também, a partir desse olhar no local, pensar o global. Nesta edição, os leitores poderão acompanhar reportagens que falam sobre as ruas como lugar de sustento, pessoas que foram colocadas para fora de casa, festas, feira e bares de rua e, como não poderia ser diferente, trouxemos uma reportagem especial, capa desta edição, sobre a rua da Má Fama, um dos espaços mais conhecidos de Caruaru. A gente espera que cada um possa compreender mais sobre a nossa realidade a partir dos relatos explorados em profundidade pelos estudantes em textos trabalhados na disciplina Narrativas Midiáticas do curso de Comunicação Social. DIEGO GOUVEIA



FOTOS: BÁRBARA CONCEIÇÃO

SEGUIREMOS EM MARCHA ATÉ QUE TODAS SEJAMOS LIVRES POR DAYANE CARVALHO, DYEGO MENDES E SARAH COUTINHO

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C

om a proposta de trazer uma revo lução feminista que procura romper com todo o viés de exploração, desigualdade e falta de respeito contra as mulheres, a Marcha Mundial das Mulheres surgiu em 1995, no Canadá, e ganhou o mundo com o seu lema “Pães e Rosas”. Chegou ao Brasil nos anos 2000 e se fixou em vários estados e cidades do País com o propósito de diminuir as assimetrias e a violência que foram criadas e estruturadas pela sociedade patriarcal. Caruaru é uma das cidades em que a marcha se firmou. Desde 2014, aqui, o projeto é mantido por um grupo de mulheres que discutem as suas pautas e as coloca em movimento. Uma de suas líderes, Ranuzia Netta, que trouxe a marcha para a cidade, é professora e pedagoga. Ela se engajou em movimentos sociais no curso de Pedagogia e se juntou a outras mulheres para formar o grupo caruaruense que, hoje,

toma as ruas da cidade, reivindicando o fim das desigualdades e violência contra as mulheres. Ranuzia entende a rua como um local estratégico, que permite o diálogo entre a sociedade e aqueles que fazem parte do movimento. Acredita, ainda, que é um lugar importante para que mais indivíduos estejam presentes em futuras mobilizações e contribuam, positivamente, para o processo de transformação social que as integrantes da Marcha Mundial das Mulheres buscam. Para Ranuzia Netta, manifestações como o #elenão, em 2018, as Jornadas de Junho, em 2013, e, atualmente, as discussões referentes à Reforma da Previdência e aos cortes de gastos na educação são exemplos de como a rua pode ajudar no engajamento da sociedade nos debates necessários para as mudanças que as mulheres que integram o movimento feminista anseiam.

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VERBO — Qual a importância da rua para a marcha? A rua ainda é um lugar estratégico? RANÚZIA NETTA ­— Eu acho que esta é uma pergunta complexa. A marcha amplia os horizontes de compreensão daquilo que fazemos enquanto sujeito e sujeitas. Sujeitos que constroem caminhos de possibilidade de transformação da sociedade. A rua é um local estratégico porque, quando nós ocupamos as ruas, conseguimos acessar outras pessoas. O processo de transformação da sociedade precisa de grandes mobilizações, precisa de tomada de poder e tomada de narrativas. É justamente nesse ponto que as ruas precisam ser ocupadas com as nossas vozes e com os nossos corpos já que eles fazem parte da construção de uma sociedade antirracista, anticapitalista, antifascista e anti LGBTfóbica. A rua é um espaço para descarregar toda a nossa inquietação interna e política. Quando marchamos, deixamos nossas pegadas. Então, deixar nossas pegadas nas ruas é a realização de uma luta revolucionária. VERBO — Como se faz a mobilização para que as pessoas compareçam às ruas? NETTA — São realizadas reuniões para desenvolver os atos. Nelas, discutimos onde será a concentração, qual será o percurso, a temática, o horário, o encerramento. Para dialogar com os partidos, movimentos sociais, sindicatos e com a juventude, nós panfletamos nas ruas, nas paradas de ônibus, nas escolas. Além disso, também contamos com a ajuda dos sindicatos que mobilizam seus membros. Eles distribuem ofícios em escolas para reforçar a importância da participação

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nos atos. Em relação a isso, nesses últimos meses, o 15 de maio e o 30 de maio (paralisações contra os cortes na educação do governo Bolsonaro) foram muito importantes porque conseguimos estabelecer o diálogo entre diversos setores da sociedade. Nossa ideia é mostrar para as pessoas que aqueles que constroem o ato são os mesmos que participam do processo de mobilização.

FOTO: LORENA ZUZART

VERBO — Como você observa esse movimento da direita, nas ruas, tendo como exemplo, as manifestações do dia 26 de maio, dia de mobilização a favor do governo bolsonarista? NETTA — A democracia permite que a direita e a esquerda vão às ruas. Nossa crítica é direcionada às pautas da direita. No dia 26 de maio, por exemplo, eles levaram pautas como a aprovação da reforma da previdência, o pacote anticrime de Sérgio Moro, o fechamento do Congresso Nacional e o pedido por intervenção militar. Nosso questionamento vai para o impacto que essas medidas possuem, principalmente, à classe trabalhadora. É sobre impossibilitar a aposentadoria ao povo brasileiro, aos trabalhadores informais, ao povo da zona rural. As nossas críticas à direita recaem sobre pautas que estão sendo reivindicadas e representam um grande retrocesso para sociedade.


VERBO — Como você, enquanto representante da Marcha Mundial das Mulheres, observa as manifestações das Jornadas de Junho de 2013 e o Pato da Fiesp, o movimento #elenão e, atualmente, as manifestações contra o corte de gastos na educação?

FOTO: LORENA ZUZART

VERBO — Como você, enquanto representante da Marcha Mundial das Mulheres, observa as manifestações das Jornadas de Junho de 2013 e o Pato da Fiesp, o movimento #elenão e, atualmente, as manifestações contra o corte de gastos na educação? NETTA — O ano de 2013 tem um processo antagônico tanto no contexto político quanto no contexto ideológico. De um lado, a classe média, com discursos de ódio e neoliberal e, do outro, uma esquerda neodesenvolvimentista que lutava por um governo democrático. É necessário que se entendam as características estruturais, políticas e ideológicas que levam a direita e esquerda para as ruas. De fato, a direita foi às ruas com o pato da Fiesp, uma vez que ele representa o império do capital. A direita foi às ruas contra as políticas desenvolvimentistas da esquerda que favoreciam as classes menos abastadas. Eles reivindicavam o estado mínimo. Queremos um estado múltiplo, mais amplo. Ao mesmo tempo, também vejo as jornadas de junho como um ano transformador para a esquerda. Foi necessário reinventar nossas dinâmicas, nosso trabalho de base e nosso diálogo com a população. Falando da ampliação das manifestações, em 2018, nós, mulheres, puxamos o #elenão e entendemos que nossas idas às ruas surtiram efeito na campanha política de Jair Bolsonaro. Isso não significa dizer que durante o governo do PT nós não fomos para as ruas. Fomos várias vezes, fazer as críticas ao governo. As pessoas esquecem. O mesmo acontece com as manifestações dos dias 15 e 30 de maio que tiveram pautas em pró da defesa da educação e da previdência social. Não estamos lutando só por nós, mas pela nação.

NETTA — Acho que organicamente a divisão entre esquerda e direita se estrutura diferentemente. Há divisões. Um centro que tende mais à esquerda e outro, à direita. Assim, como uma ultradireita, uma ultraesquerda. Nós colocamos o Jair Bolsonaro como ultradireita, uma vez que ele possui um plano de governo neoliberal. Quando aceitamos uma política neoliberal, acentuamos o capital e, se propomos um governo anticapitalista, criticamos essas propostas. O governo Lula, por exemplo, assume políticas neoliberais do governo de Fernando Henrique Cardoso para promover uma conciliação de classes. Ele deu oportunidades às pessoas mais ricas e às mais pobres. Foram 30 milhões de indivíduos que saíram da extrema pobreza. Houve muitas fragilidades em seu plano de governo, mas ele fez muito pelo País. Minhas críticas são ao governo ultraliberal do atual presidente Jair Bolsonaro, já que é considerado um perigo às democracias, principalmente quando se trata de vender nossas riquezas e bens preciosos para outros países. É um governo em que o desmonte de políticas e desmonte de direitos andam lado a lado. Todo projeto a favor do povo e contra o sistema capitalista, racista e LGBTfóbico é o projeto que nos identificamos, lutamos. Buscamos por representação.

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PERFIS

O OLHO DA RUA A partir de três perfis, a gente conta histórias de pessoas que foram colocadas para fora de casa ou que vivem nas ruas POR BIANCA TORRES, GABRIEL PEDROZA, JEFERSON MACEDO FOTOS: BIANCA TORRES


“MEUS PAIS ME BATERAM”

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uliana, 15 anos. A idade de de butante, termo que vem do fran cês e significa iniciante, principi ante. Geralmente, essa idade tem importância pelo seu valor simbólico, mas essa época impactou a vida da adolescente de outro modo. No feriado do dia do trabalhador, em maio de 2015, ela foi trancada dentro de um quarto, após a sua irmã contar sobre a sua orientação sexual aos seus pais. De voz baixa, com o tom firme, as mãos cruzadas e os olhos limpos de qualquer lágrima, a história toma caminho: ser lésbica não era uma questão possível dentro da casa em que morava com o seu pai, a sua mãe e a sua irmã. A descoberta não era esperada, Juliana foi expulsa do armário. Após gritos, chutes, murros e ataques com faca, proferidos pelo pai, mãe e irmã, ela foi salva pelo tio, que a abrigou durante alguns dias. Infelizmente, o pesadelo não terminou por aí: a sua irmã a esperou na entrada da escola, ameaçou os tios que lhe abrigaram e forçou Juliana a voltar para casa. Na volta, a cena do quarto se repetiu ainda pior: o pai, a mãe e a irmã chegaram a quebrar um ventilador na cabeça da jovem de apenas 15 anos, além outras diversas agressões. Ao detalhar o momento, Juliana respira fundo. “Foram tantas coisas…”, lembra. Ela já imaginava uma reação negativa, mas não como ocorreu. A relação próxima e apegada que tinha com a mãe, além da que tinha com o pai e a irmã, virou cinzas. “Minha mãe, uma vez, veio cortar o meu cabelo. Eu implorei tanto para ela não fazer aquilo. Acho que foi a coisa mais pesada que ouvi. Ela disse que já que eu era um homem, eu ia ficar igual a um, com o cabelo curto”.

Juliana teve tudo tirado de suas mãos. A mãe tomou o celular, trancou a casa, para que não saísse, tirou a jovem da escola e ainda ameaçou interná-la em Recife. “Minha mãe sempre foi muito preconceituosa e homofóbica”, afirma Juliana. A adolescente transitava apenas pelos cômodos da casa, sempre fugindo dos familiares. Algumas vezes, Juliana foi vista com o rosto machucado e sangrando. Um dia, enquanto estava na varanda de casa, foi vista por uma mulher que passava pela rua e que, assustada, perguntou à jovem o que tinha acontecido. “Meus pais me bateram”, foi a resposta de Juliana, à pergunta. A mulher a confortou e disse que ia buscar ajuda. Hoje, olhando para trás, Juliana diz que aquele momento foi a sua salvação. No entanto, isso não passou pela sua cabeça, antes, pois já havia perdido a esperança. Um carro buzina em frente a sua casa. Era seu tio. A mãe, que havia o reconhecido, ameaçou Juliana com o olhar e fez gestos indicando que ela iria apanhar caso falasse algo. O tio entrou e foi conversar calmamente com a sua mãe, tentando convencê-la do óbvio: o que estava fazendo com sua filha era desumano. Minutos depois, outro carro para na frente da casa. Dessa vez não era outro familiar, era o carro da polícia. Juliana relembra: a mulher que passou tinha chamado a polícia. Primeiro, um policial entrou e se dirigiu até a cozinha, onde a mãe e o tio estavam. Em seguida, uma policial. Juliana, sentada no chão da sala, de cabeça baixa, sentiu quando a mulher parou na sua frente e levantou seu rosto machucado. A policial tentou levantar a jovem, mas o pé machucado, por causa das inúmeras agressões, impossibilitou que isso acontecesse. A policial ficou revoltada ao ver a jovem machucada, fraca fisicamente. Levou a mãe, relutante, para a delegacia. Depois, o pai e a irmã também foram. Ao questionarmos se eles foram presos, Juliana ri e diz que contrataram um advogado e não deu em nada. Após esse evento, Juliana foi morar na casa do tio.

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Abril de 2019: Juliana, 19 anos. “Para entender o amor, faça um trato com a fé”. A música de Castello Branco está tatuada no braço da mulher, que foi forçada, brutalmente, a encarar a rua de um jeito completamente diferente daquele de quando tinha 15 anos. A fé é em Deus, é no universo. Esse universo que, hoje, serve de casa, de acolhimento e de fonte de aprendizado - tudo o que foi privado de Juliana durante a época de tensão na casa dos pais. Hoje, livre, mais sensata e mais forte, respirar fundo e lembrar o passado se tornou um método para não desistir. Se conseguiu passar por tudo, não será diferente lá na frente: a força a guia. As noites de choro e de desespero, hoje, são relembradas com cicatrizes, físicas e mentais, mas impedem Juliana de sentir raiva daquela que a trouxe ao mundo. A força a impede disso. “Se ela precisar de mim, não vou virar as costas.” A rua. O mundo. O universo. Quando juntos, tornam-se fonte de aprendizado para Juliana. A liberdade que a sua família deu, apesar das circunstâncias, tornou a menina de 15 anos, traumatizada e atacada, na mulher de 19, empregada, sorridente, forte e, acima de tudo, guerreira.

“EU SOU MUITO SÓ” Marcone é um jovem de 24 anos, com ensino médio completo e que frequenta o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua de Caruaru, mas conhecido como Centro Pop, desde novembro de 2018. A família o levou às ruas. Com uma infância perturbada, sua vida adulta foi diretamente afetada. Não consegue se manter no emprego, algo o impede. Trilhar um caminho com foco se tornou a sua maior dificuldade. Mesmo jovem, inteligente e com sonhos, vê a influência do seu passado interferindo nos seus planos. Em sua casa, os seus problemas estavam ligados aos seus pais, que se drogavam e, além disso, sua mãe veio à óbito. Marcone precisava da atenção dos seus pais, mas só teve perturbações em sua vida. Nem na escola, ele se livrava de momentos conturbados: sofria bullying. Discussões, falta de emprego, perdas de familiares, a descoberta de que foi adotado, problemas psicológicos. Tudo o motivou a sair de casa. Os seus dois irmãos e as suas duas irmãs, empregados, chegaram a lhe oferecer ajuda, mas não funcionou. Um pouco tímido e com uma voz mais suave, ele relata que já trabalhou em alguns lugares como lanchonete,

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shopping. No entanto, percebe que tem dificuldade em conseguir emprego quando as pessoas sabem do fato de que ele frequenta o Centro Pop. Cabisbaixo, Marcone diz que a falta de informação, o medo e o preconceito impedem que as pessoas que frequentam o Centro consigam emprego. Para ele, quem os chama de vagabundos, não sabe da história de cada um. Ignoram toda a trajetória de suas vidas. Isso faz mal, pois é apenas falta de informação como ele muitas vezes aponta. Marcone diz que se sente muito só por causa de experiências que o traumatizaram. Ele revela, ainda, que o seu sonho é ser advogado ou professor de faculdade. Agora, o seu desejo é conseguir um emprego e levar conhecimento para a sociedade sobre pessoas que vivem na mesma situação em que ele se encontra. Sua intenção é mostrar como o projeto do Centro POP funciona, como oferece apoio às pessoas em situação de rua. Marcone deseja que a população saiba sobre esses programas de assistência. Como ajudam a suprir, em parte, as necessidades mais básicas de quem vive nas ruas de Caruaru. “Ao viver na rua, as pessoas passam a te olhar com outros olhos”, afirma, com uma expressão de desgosto.




“NOS OLHAM COMO SE FÔSSEMOS SERES DE OUTRO PLANETA” José Cícero, 64, é divorciado, pai de duas filhas, natural de Lagoa dos Gatos, Agreste de Pernambuco, e mora nas ruas de Caruaru desde outubro de 2018, quando veio de Cuiabá, capital mato-grossense. Trabalhava na área de logística de uma indústria de pisos e viajava pelas principais capitais do Brasil, sempre frequentando os melhores hotéis. Um dia, em visita aos parentes da cidade natal, durante suas férias de 2016, não se sentiu bem acolhido. Voltou à Cuiabá e lá viu sua vida mudar radicalmente. A empresa em que trabalhava faliu, ele se divorciou e desenvolveu depressão. Nessa época, decidiu voltar a Pernambuco. Dessa vez, para a capital do Agreste, Caruaru. Aqui, as ruas viraram seu lar. Suas filhas, que hoje residem em Luxemburgo, na Europa, não sabem da sua atual situação. A vergonha o impede de entrar em contato com elas. Agora, com seus cabelos brancos e com a barba falha, ele se vira como pode. Passa o dia no órgão de acolhimento a pessoas em situação de rua, o Centro Pop, e procura trabalho para conseguir objetos simples, como sabonete e cigarros. José não bebe e nunca se envolveu com drogas ilícitas, apenas fuma. À noite, ele dorme no Albergue Municipal. Os seus finais de semana são difíceis: o Centro Pop não abre e José tem que passar o dia nas ruas à procura de mantimentos. “Não é fácil”, conta. No dia a dia das ruas, ele se sente agredido. Não fisicamente ou

verbalmente, mas pelo olhar dos outros: “Nos olham como se fossemos seres de outro planeta”, relata. No entanto, quando estava do outro lado da realidade de agora, José encarava os moradores de rua da mesma maneira que as pessoas o veem, hoje. “Se eu pudesse voltar 30 anos, eu saberia como fazer. Faria totalmente diferente”. Foi na rua que José encontrou outra família. Ele não gosta de ver seus amigos bêbados e drogados. Sabe que precisam de ajuda, mas não consegue mudar essa realidade. Apesar disso, não perde a esperança. Tem dois propósitos: o primeiro é conseguir um trabalho até se aposentar, em abril de 2020 e, com a contribuição, conseguir um lugar para morar. O segundo, se mudar para Manaus, onde tem amigos - o contato com eles só não é mantido porque o seu celular foi roubado. Mesmo aparentando sofrimento, José Cícero transmite conhecimento de mundo e confiança: “Cada pessoa carrega uma história de vida diferente”, ele enfatiza. Com isso, passou a valorizar os momentos mais simples vida. A rua é sua casa. A rua ensina. FOTO: BIANCA TORRES

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FOTO: DAYANE CARVALHO

RUAS, O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DAI HOJE

Amontoados em espaços improvisados, muita gente tem nas ruas a única oportunidade de ter o ganha pão POR DAYANE CARVALHO, MILENA MORAIS, MARIANA SALES, CÉSAR MARTINS

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astel, jeans, água, castanha, capas de celular, pamo nha, ovo, artesanato. Esses são alguns exemplos do que é vendido nas ruas de Caruaru em barracas, carros ou até mesmo no chão. Os trabalhadores que não possuem uma renda fixa, utilizam a rua como principal fonte de sustento e, muitas vezes, trabalham na informalidade. São ambulantes, flanelinhas ou trabalhadores autônomos. Eles dividem espaço com lojas de roupas, de calçados, lanchonetes e guardas de trânsito para ganhar a vida. Diante da falta de oportunidade no mercado de trabalho no Brasil, trabalhar nas ruas e calçadas das cidades se tornou uma alternativa para parte da população. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em fevereiro de 2019, aproximadamente 13,1 milhões de pessoas estão desempregadas, no Brasil, e quase cinco milhões desistiram de procurar emprego.

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Embora trabalhar nas ruas seja um reflexo direto da falta de oportunidade no mercado de trabalho, algumas pessoas veem esse local como principal fonte de sua renda e não a trocariam por outra profissão. É o caso da ambulante Célia Renata, 42, que vende lanches na rua 15 de Novembro, centro de Caruaru, há 15 anos. Ela se queixa apenas do calor em determinados dias. A sua maior preocupação está nas mudanças que a Prefeitura de Caruaru está promovendo, para organizar os espaços para os ambulantes. O projeto intitulado como “Comércio na Praça” propõe a realocação desses trabalhadores em três novos espaços: Largo Guararapes, Largo Praça Leocádio Porto e uma Alameda de Alimentação na rua 15 de novembro - este último é rotativo, tem horário para entrada e saída de ambulantes. O comércio nas ruas tem uma particularidade interessante que é o trabalho em família. Júnior Oliveira, 21, e seu pai Gerônimo Oliveira, 45, vendem produtos importados no popular Beco da Mijada, no centro de Caruaru. Trabalham diariamente das 7h às 17h e ganham uma média de 8 a 10 mil reais por mês. Essa renda é composta pelo que é vendido no ponto físico e pelo uso do Instagram, que ajuda na divulgação dos produtos, gerando encomendas e mais vendas. Júnior trabalha com o seu pai há oito meses e ambos possuem o cadastro emitido pela prefeitura, que é obrigatório para todos os vendedores que têm bancos fixos nas ruas. A fiscalização é feita diariamente para estabelecer controle e a ordem dos trabalhadores. De acordo com Karla Vieira, o cadastro é realizado desde 2017 e dispõe de cerca de 800 ambulantes registrados.

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FOTO: VICTÓRIA MÉLO

A rua também é um lugar para tentar uma nova vida. É o caso de Maria do Socorro, 54, que morava no Recife, mas, após a morte de seu filho, veio para Caruaru tentar um recomeço. A barraca de chá, café e bolachas de Maria fica na calçada próxima aos pontos de ônibus na 15 de Novembro. Ela trabalha nesse ramo há dois anos, das 4h30 até às 19h00. São 14 horas e meia no comércio todos os dias.

FOTO: DAYANE CARVALHO


FOTO: DAYANE CARVALHO

FOTO: DAYANE CARVALHO

Além dos produtos vendidos, os serviços também fazem parte do catálogo de vendas das ruas de Caruaru. Erick Lopes, 20, e Adilson Lopes, 34, trabalham como flanelinhas. Aprenderam com o pai, que trabalha no ramo há 15 anos, na rua José Martins. Erick é de Caruaru, trabalha das 7h às 18h e diz que o horário pode ser mais flexível. Costuma ganhar uma quantia de R$ 900 por mês, já que possui uma clientela fixa. Ele fazia um curso para ser bombeiro, mas não terminou. Faltando apenas dois meses para concluir, precisou desistir. Erick é casado, tem três filhos e sustenta a família com o dinheiro que recebe como flanelinha. Ele também presta outros serviços, lavando carros por um valor que varia entre R$ 10 e R$ 20, dependendo “da cara do cliente”, porque, para Erick, a cobrança do serviço depende da aparência, de quanto se imagina que a pessoa poderá pagar. O flanelinha afirma que existe muito preconceito dos guardas de trânsito e outras pessoas e grupos com esse tipo de trabalho por acreditarem que todos flanelinhas são bandidos, mas faz questão de destacar que em tempos de crise econômica as pessoas são obrigadas a procurar trabalhos alternativos.

É na rua, também, onde amizades podem surgir: aconteceu com Erenice Zanara da Silva, 63, e Lineide Rocha, 59. Erenice era de Agrestina e veio morar em Caruaru. Ela atua como comerciante há 10 anos, vendendo castanha de caju, farinha de castanha e panos de prato. Antes de trabalhar com isso, era agricultora. Hoje, é aposentada, mas não quer ficar parada. Lineide, que fica ao seu lado vendendo água e jogos, é de Altinho e trabalha na rua há 12 anos. Ela morou por um tempo em Brasília, onde trabalhava como autônoma, vendendo leite fermentado. Lineide Rocha se mudou para Caruaru por causa do desemprego. As amigas se ajudam no dia a dia com coisas simples em seus trabalhos. Por exemplo, se uma precisa de troco para algum dinheiro, a outra ajuda.

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FOTOS: DAYANE CARVALHO

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COLUNA

A RUA COMO SUSTENTO

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rua é o escritório de tra balho de diversos indiví duos, dentre eles, os ambulantes que ocupam ruas, praças e calçadas de áreas centrais das cidades de médio e grande porte do País. O motor do crescimento da economia informal são as crises econômicas que acabam causando desemprego. Para uma parcela dos trabalhadores informais — os ambulantes —, a rua é a alternativa de sustento por causa da sua baixa qualificação que gera dificuldade na recolocação no mercado formal. Os ambulantes são caracterizados por não terem um lugar fixo para comercialização e suas mercadorias são mais baratas se comparadas às dos camelôs. Isso porque esses têm lugares fixos e pagam tributos para ali se estabelecerem. Do ponto de vista urbanístico, há uma problemáti-

ca, pois, com relação ao planejamento, a ocupação de espaços como as calçadas, por exemplo gera inconveniências. Principalmente por causa da expansão da informalidade, criando a necessidade da elaboração de um espaço para os ambulantes à exemplo de shoppings populares ou — como já existem para camelôs —, os camelódromos. No entanto, como destacado anteriormente, a operação de ambulantes é distinta dos camelôs. É legítima a preocupação com o planejamento urbano das cidades e a interferência desse modo de economia informal nele. Mas não se pode ignorar que o “expurgo” aos empreendedores informais das áreas centrais das cidades, ou até mesmo a criação de áreas especiais para o exercício da atividade informal desses profissionais não faz sentido. O mais prudente é dis-

tribuí-los em áreas movimentadas das cidades, evitando uma criação de espaço específico que não contempla a lógica de funcionamento deles que é “estar onde há demanda” e não o contrário. Além disso, a redistribuição equilibrada evitaria forte concorrência entre eles, algo que uma criação de espaço específico estaria fazendo, visto que esses estariam presentes em um mesmo local de comercialização. POR NILSON JÚNIOR

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FONFOMMMMMMM!!! BI-BIIIIIIIIIIIII!!! Gritam as buzinas todos os dias nos inúmeros cruzamentos na cidade de Caruaru que, em 20 anos, viu o número de veículos subir 272%, dificultando a circulação de pedestres, ciclistas, automóveis e motociclistas POR PEDRO VIANA, HEBERTON MARTINS, CLARA ALVES

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m uma animação de 1950, a Disney já apontava a configura ção de um fenômeno intrigante: a desordenação do trânsito nas cidades. No desenho, o locutor diz: “O homem é comum é uma criatura de hábitos estranhos e peculiares. Tomemos o senhor Walker como exemplo de pessoas decentes. Ele é o típico homem comum, considerado cidadão e de inteligência razoável. É um homem gentil, amável, pontual e honesto. O senhor Walker não machucaria uma mosca, nem uma formiga. Ele acredita em ‘viva e deixe viver’. O senhor Walker tem um automóvel. Ele acredita que é um bom motorista. Mas, quando ele pega no volante, acontece um fenômeno estranho. O senhor Walker se deixa levar pela forte sensação de poder, sua personalidade muda completamente e de repente ele se transforma em um monstro incontrolável, um motorista diabólico”. Aquilo que poderia ser apenas um desenho animado com fábula se tornou nos dias de hoje um retrato bastante preciso do que acontece no dia a dia do trânsito das grandes cidades.

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FOTO: WALT DISNEY STUDIOS

Nos últimos anos, a circulação de automóveis, pedestres, ciclistas e motociclistas mudou radicalmente. A expansão das cidades trouxe também uma profunda alteração no trânsito. Em Caruaru, o taxista José Germano da Silva, 64, trabalha em um ponto de táxi na Rua Tupy, localizada no bairro do Salgado. Germano exerce a profissão há 38 anos e viu a região crescer. Ele alerta que a estrutura atual da cidade já não comporta mais o fluxo de veículos como antigamente: “Vi a cidade crescer e as vias atuais de Caruaru não são compatíveis com o fluxo de veículos que circulam pelo local. O lugar foi estruturado de uma forma que não sabiam que iria crescer tanto. Então, são necessárias algumas modificações como alargar as ruas, mas dependemos do poder público para realizar esse investimento”, conta. A população de Caruaru cresce, gradativamente, a cada ano. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia


e Estatística (IBGE), em 2010, o município tinha 314.912 habitantes. Já em 2018, a população no município era de 356.872 pessoas. Em oito anos, a cidade cresceu 13%. É provável que, daqui a 10 anos, o seu número de habitantes passe dos 409.322 - o que, consequentemente, provoca um aumento de veículos circulando pelas ruas da cidade. De acordo com dados do Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco (Detran), em 1999, Caruaru tinha 44.751 veículos. Em 2009, esse número saltou para 92.375. Já em 2018, ano do último levantamento, a relação de frotas subiu para 166.852. De 1999 até 2018, houve uma variação percentual de mais 272%. O município ganhou mais 122.101 veículos, em quase 20 anos. Quantidade maior do que a população de cidades como Igarassu, São Lourenço da Mata e Santa Cruz do Capibaribe.

FOTO: WALT DISNEY STUDIOS

O aumento do número de automóveis e pedestres tende a provocar, nas ruas, mais congestionamentos. De acordo com a Autarquia Municipal de Defesa Social, Trânsito e Transportes (Destra), atualmente, as ruas mais congestionadas, em Caruaru, são: Rua 15 de novembro, Rua Duque de Caxias e Rua Capitão João velho. O taxista Marcos Albuquerque, 42, relata que, além dos problemas nas principais avenidas de Caruaru, as pessoas não respeitam as sinalizações. “Algumas ruas deixam a desejar porque não deveriam ter carro estacionado, principalmente nos horários de pico. Pessoas que param na contramão, avançam o si-

nal vermelho. Eu quase fui atropelado quando estava atravessando o sinal vermelho”, comenta. O mototaxista Marcos Berto, 42, é presidente do Sindicato do Mototáxi de Caruaru (Sindmoto) e integra o Conselho Municipal de Trânsito e Transporte de Caruaru (Comut). O presidente do Sindmoto não esperava que a cidade crescesse tanto. “Estamos trabalhando para melhorar o trânsito na região. As vias são muito curtas e estreitas, principalmente na Rua 15 de novembro. Em horário de pico, é um caos andar pelo centro”, acrescenta. O arquiteto e urbanista Rodrigo Lucas, 40, ciente do aumento do fluxo de veículos em Caruaru, buscou na bicicleta um meio de transporte alternativo. A ideia de andar de bike surgiu quando Rodrigo fazia parte da Secretaria de Planejamento e Gestão de Caruaru. O arquiteto sentiu que, para estar engajado na infraestrutura da cidade, era necessário se envolver em políticas sociais da região. A partir daí, veio o gosto pela bicicleta. “Quando estive na secretaria, passei a me envolver de outro modo com a cidade. Comecei a pegar ônibus, ir a pé de casa para o trabalho, andar de bicicleta”, conta. A partir daí, ele não parou mais e todas as tardes sai de sua casa, localizada no bairro Luiz Gonzaga, até o seu escritório, no bairro Maurício de Nassau.

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amentos no centro da cidade. “A implantação de ciclovias ou proibição de estacionamentos no centro da cidade e restrição de veículos são medidas a curto prazo. A longo prazo, seria a priorização de transporte coletivo. Também poderia se pensar na implementação da faixa azul que são corredores exclusivos para ônibus. Em Caruaru, já existe uma faixa azul, mas é necessário que ligue a rota do ônibus toda”, avalia. De acordo com engenheiro de tráfego Alexandre Barros, a alternativa para os estacionamentos de veículos seria a construção de edifícios-garagem, já que o poder público não possui dinheiro para grandes investimentos. “Existem lugares no centro da cidade que já não comportam mais estacionamentos. Uma alternativa seria a construção de edifícios-garagem para comportar a demanda de veículos que circulam pelo centro. Não dá para construir viaduto interligando vias a curto prazo. É um investimento alto”, analisa. Alexandre ressalta que, além do uso do ônibus como medida a longo prazo, é necessário que se invista mais em linhas temporais. “O próximo passo seria a integração do sistema temporal, que é quando se espera por mais ou menos uma hora, depois que pega o ônibus, sem pagar nada a mais para pegar outro. A prefeitura cogita construir duas linhas: uma no sentido horário e outra no sentido anti-horário, para o tráfego pela periferia da cidade. Duas linhas que se interligam com outras linhas radiais, que vêm do subúrbio para o centro da cidade”, descreve.

FOTO: WALT DISNEY STUDIOS

Rodrigo Lucas destaca os benefícios de ter a bicicleta como meio de transporte: “São várias vantagens como se livrar de Zona Azul, IPVA. Teve um dia que fui consertar a bicicleta da minha filha e estava com R$ 4 na carteira. Fui sacar o dinheiro no banco para depois pegar a bicicleta. Perguntei a ele quanto custava. Aí ele falou para não se preocupar que daqui a pouco entregava. No final, o custo da manutenção da bicicleta foi apenas R$ 3. Ele trocou o freio, encheu os pneus e ajustou a cela”, ressalta. Para a vendedora Maria José, o aumento da circulação de veículos gerou insegurança para os pedestres que trafegam pelas ruas: “O trânsito ficou mais perigoso para os pedestres também. O povo não respeita a sinalização. Muitos ultrapassam os sinais vermelhos sem se importar com os pedestres. Eu mesma quase fui atropelada várias vezes enquanto andava na rua”, comenta. Para a engenheira de tráfego Maria Victória Nascimento, uma das alternativas para melhorar o trânsito, em Caruaru, seria a priorização de transporte público, além de restrição de veículos e estacion-


41% DOS ACIDENTES, EM CARUARU, FORAM CAUSADOS POR MOTOCICLETAS

FOTO: WALT DISNEY STUDIOS

Alexandre Barros também destaca a importância de se investir em calçadas, para a mobilidade dos pedestres. “As calçadas também fazem parte da mobilidade. É preciso estabelecer um padrão de calçadas que faça parte do projeto de circulação, tanto para o cadeirante, como para pedestres ou motoristas. Se uma rua não tem largura para receber faixa de enrolamento, que seja feita uma calçada. A Rua Duque deveria servir, apenas, para a circulação de pedestres por exemplo”, comenta.

FOTO: WALT DISNEY STUDIOS

Desde a criação da Destra, de 2010 até 2018, o número de acidentes envolvendo motocicletas, em Caruaru, foi de 7.718. De janeiro a abril de 2019, dos 199 acidentes no município, mais de 41% foram causados por motos. Nos primeiros quatro meses de 2019, dos 56 incidentes com vítimas, mais de 39% envolveram as motocicletas. Os locais onde mais ocorrem são: Avenida Agamenon Magalhães, Avenida Portugal, Avenida Adjar da Silva Casé e Avenida São Paulo. De acordo com a engenheira de tráfego Maria Victória Nascimento, os incidentes envolvendo motocicletas ocorrem, principalmente, por causa dos motoristas que não respeitam as leis de trânsito. “A maior causa de acidentes, envolvendo motocicletas, é o fato de condutor não respeitar as leis de trânsito. Infrações como atravessar o sinal vermelho, motociclistas transitarem entre os veículos, sem o cuidado necessário, desrespeitar o limite de velocidade, entre outras infrações estão entre os principais motivos”, afirma. O motorista Denilson da Silva, 31, retornava para casa, pela BR-232, quando uma moto atravessou na frente de sua motocicleta, provocando um grave acidente, que feriu o maxilar de Denilson. Ele relata que não foi a primeira vez que se acidentou de moto e, por isso, vai parar de utilizar o veículo. “Não irei mais andar de moto, é o meu terceiro acidente. Mesmo eu estando certo, algum outro irresponsável pode chegar e causar um acidente comigo”, reclama. Já para o trabalhador Nelson Cunha, 22, não ter seguido as regras básicas de trânsito lhe trouxe consequências. Nelson sofreu um acidente enquanto estava dirigindo sozinho. O jovem relembra o ocorrido e destaca a importância de passar pelo processo da retirada da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), antes de conduzir qualquer veículo: “Hoje não faria o que fiz, não tentaria aprender sozinho, com certeza. A presença de alguém habilitado, experiente, e o auxílio de uma autoescola são essenciais para quem está começando”, reconhece.


DO CÉU AO CHÃO DE TERRA BATIDA Seja para brincar o Carnaval no céu, como era conhecida a festa de Caruaru, ou arrastar os pés na terra batida do São João, a cidade continua atraindo multidões com suas festas de rua


FOTO: BEATRIZ LIMA

POR BEATRIZ LIMA, DANIELE LEITE E GABRIEL PEDROZA

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scolas de samba, serpentinas, más caras, fantasias, banhos nos tanques de água e marchas de carnaval. Se engana, quem acredita que o São João foi sempre a maior festa de Caruaru. Por aqui, muito antes de se dançar coladinho, no ritmo do forró, o carnaval era a principal festa do ano e agitava os foliões de toda a região. Há registros que mostram os festejos carnavalescos desde as primeiras décadas do século 20. A festa tinha início na semana pré-carnavalesca, trazendo os concursos de melhor música, fantasia mais criativa, carros e bicicletas mais enfeitados, e a escolha do Rei Momo e da Rainha do Carnaval. As principais ruas da cidade, como a atual Avenida Rio Branco e a Avenida Major Manoel de Freitas, eram ornamentadas e serviam como ponto central de encontro para foliões de todas as classes sociais. Diversos blocos desfilavam pelos bairros da cidade, cantando e dançando as músicas de frevo, compostas por artistas do Recife ou caruaruenses. Havia as La Ursas, os desfiles dos carros alegóricos, o navio da Coca-Cola, que era uma trio elétrico, e o corso - bloco carnavalesco que circulava pela região, arrastando os foliões para cantar marchinhas, jogar serpentinas e lança-perfumes. Apesar dos costumes conservadores da época, os excessos na folia, durante o carnaval, eram permitidos.

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DO CARNAVAL, SÓ RESTAM AS CINZAS Entre as décadas de 50 e 60, o carnaval de Caruaru começou a dar os primeiros sinais de declínio, gerado por problemas econômicos e pela saída dos foliões para as cidades litorâneas do Nordeste, durante esta época. Em 1963, os principais blocos do município se apresentavam de forma revezada e a semana pré-carnavalesca já não existia. Daí por diante, o carnaval caruaruense foi ficando cada vez menos frequentado. A folia de 1983 foi considerada a mais decaída de todos os tempos de acordo com reportagem do jornal Vanguarda de 20 de fevereiro de 1986). Até 1990, alguns desfiles ainda foram realizados, mas empresários já não queriam investir nestas festas e os gestores públicos, agora, preferiram focar nos festejos juninos.

o seu irmão Brivaldo Lasserre e o seu amigo Deja Vasconcelos, decidiram reviver a tradição do carnaval caruaruense. Inspirados na “Noite Hippie” promovida por Pedrinho Sucata, em 1970, os três amigos tiveram a ideia de trazer de volta à bodega os festejos carnavalescos que acontecia ali. “Carnaval, mesmo, não tinha mais em Caruaru. A gente sentia falta de comemorar essa festa aqui”, afirma Byron. Inicialmente, a participação era apenas de quem costumava frequentar o bar. Hoje, 20 anos depois, a festa já chegou a concentrar mais de 20 mil foliões. Apesar do sucesso, Byron Lasserre não acredita que o carnaval de Caruaru irá voltar a ser como antigamente. “Hoje em dia, não tem mais como ser igual a antes, porque chegando o dia do carnaval ninguém fica em Caruaru, vai todo mundo para as praias”, lamenta.menos frequentado. A folia de 1983 foi considerada a mais decaída de todos os tempos de acordo com reportagem do jornal Vanguarda de 20 de fevereiro de 1986). Até 1990, alguns desfiles ainda foram realizados, mas empresários já não queriam investir nestas festas e os gestores públicos, agora, preferiram focar nos festejos juninos.

BYRON AO LADO DA FOTO DE PEDRO LASSERRE. FOTO: BEATRIZ LIMA

A VOLTA DA FOLIA EM CARUARU A esperança de retorno do carnaval de Caruaru surge em 1999, na bodega da Confraria da Sucata, localizada na rua João Condé. De 1964 a 1998, foi administrada por Pedro Lasserre, popularmente conhecido como Pedrinho da Sucata. Após o seu falecimento, a Confraria da Sucata segue sob a direção de seu filho Byron Lasserre, que, com

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ALÉM DA JOÃO CONDÉ

FOTO: ARNALDO FÉLIX

A semana pré-carnavalesca caruaruense atrai cada vez mais pessoas da cidade e de outras regiões. Pela impossibilidade de manter a festa concentrada em apenas uma rua, as comemorações foram se espalhando pelo centro de Caruaru. Os sete blocos que movimentam as ruas do município buscam fazer uma ligação entre as manifestações culturais típicas do Nordeste e do Brasil: a La Ursa, os caboclos de lança, a orquestra de pífanos, os maracatus e os bois-bumbás estão juntos e dividem espaço com o nacional Rec-Beat, festival de música independente, que vem marcando presença no evento desde 2018, trazendo à festa atrações de vários lugares do país. A volta do carnaval de Caruaru pretende resgatar e preservar as memórias e tradições do passado, que tinham sido abandonadas ao longo dos anos. Aos foliões mais antigos, que comemoraram a festa nos anos 40, só resta a saudade de um tempo bom que não volta mais. Para a nova geração, há a oportunidade de voltar para casa e brincar o carnaval no “céu”, aproveitando todas as sensações e emoções que essa época proporciona.

FOTO: ARNALDO FÉLIX

FOTO: ARNALDO FÉLIX

SÃO JOÃO DE CARUARU Você já imaginou Caruaru sem festa de São João? Na cidade, entre os anos de 1930 e 1960, havia poucos indícios da festa que, hoje, representa uma das maiores tradições do município. Os festejos juninos eram restritos a clubes sociais particulares, que organizavam festas privadas, com comemorações para os dias de São João e São Pedro. Ao contrário disso, em regiões vizinhas, como sítios e fazendas, o São João era celebrado com brincadeiras, manifestações religiosas, culinária típica, fogueira, fogos de artifício, bacamartes e montagem de palhoças.

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DA ROÇA À CIDADE A partir dos anos 70, o São João de Caruaru começou a ser organizado pelas seis irmãs Lira: Adélia, Laurinda, Juraci, Odília, Eulina e Marinete. Relembrando a época em que comemorava as festas juninas nas regiões próximas a Caruaru, Marinete Lira - das seis irmãs, a única viva - conta que buscava trazer, na decoração, o cenário daquela época, utilizando elementos que lembrassem uma fazenda: a capela, a fogueira e as palhas. Ela explicou que era necessário começar a preparar os enfeites dois meses antes de junho, para conseguir fazer tudo a tempo. Com a ajuda das irmãs, de alguns empresários locais e com o apoio da prefeitura, a Rua 3 de Maio se tornou um polo festivo durante o mês de junho. Marinete comenta, com orgulho, que a festa era um grande sucesso e reunia pessoas de todos os cantos do país. Com o passar dos anos, outras ruas da cidade também começaram a organizar suas palhoças, o que trouxe a Caruaru mais visibilidade e mais opções de entretenimento, durante o período junino. FOTO: BEATRIZ LIMA

ALCEU VALENÇA NO PALCO PRINCIPAL DO SÃO JOÃO 2019

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Ao longo de 21 anos, o São João da cidade continuou sendo realizado na Rua 3 de Maio. A festa ainda era pequena, em tamanho, mas feita com muito amor. Tudo era muito íntimo e familiar, até que a prefeitura passou a organizar uma grande festa na principal avenida da cidade. Sem recursos para manter o festejo tradicional, as irmãs Lira decidem não mais organizar a palhoça que acontecia na 3 de Maio. A partir de então, os festejos juninos de Caruaru começaram a tomar a forma que conhecemos hoje. Para os saudosistas, fica o sentimento de perda do que era uma festa tão rica em tradição. Já para outros, há um sentimento de crescimento e expansão da cultura nordestina e caruaruense. Hoje, a festa é conhecida nacionalmente e atrai turistas de todo o Brasil. No palco principal, se apresentam artistas reconhecidos em todo o País e a escolha das atrações não se prende ao forró, ritmo tradicional das festas juninas. O Pátio recebe representantes da música eletrônica, sertaneja e também da swingueira. E se engana quem pensa que o São João de Caruaru se restringe ao Pátio de Eventos Luiz Gonzaga: O Palco Azulão, o Alto do Moura e a Estação Ferroviária estão entre os 24 pontos de celebração espalhados pela cidade. Não são tão conhecidos quanto o polo principal, mas dão à festa a regionalidade e a tradição que esperam os saudosistas. No Polo Azulão, se apresentam artistas de Caruaru e região, representando os mais diversos gêneros musicais. Na Estação e no Alto do Moura, se concentram as apresentações que nos levam para perto daquele São João raiz, como o que ocorria na Rua 3 de Maio, com forró pé de serra, apresentação de quadrilhas e culinária típica.



CRÔNICA

ERA PARA SER AMOR

Q

uanta coisa é possível vi ver em 50 anos? Bruna e Eduardo viveram muitas, mas todas elas parecem pouco para eles. Hoje, por exemplo, comemoram junto à sua família e amigos mais próximos, os 50 anos do dia que se uniram e transformou as suas vidas. O casal viveu todos esses anos com muita intensidade. Qualquer um que olhe para eles pode notar a sintonia que possuem. Há cinco anos, viajaram pela Grécia. A viagem era um sonho de infância de Bruna, mas a realização é de um sonho de ambos já que, há 50 anos, realizar os sonhos dela se tornou o sonho de Eduardo e vice-versa. A viagem começou a ser programada três anos antes de se tornar real, quando descobriram o câncer de Bruna. Eduardo planejou tudo em silêncio, lembrando de todas as vezes que ela o surpreendeu. Ele sempre teve certeza de que ela seria curada. Essa certeza 33

a fortaleceu e, depois do tratamento, eles receberam a notícia de que não havia mais câncer. Choraram e sorriram, juntos, aliviados. Sete anos antes de descobrirem o câncer de Bruna, eles viveram o que, hoje, é uma de suas recordações favoritas. Um momento simples, mas, ao mesmo tempo, intenso – como toda a vida deles: caminhavam, como era de costume fazê-lo todos os dias, quando ouviram um barulho estranho. Olharam para os lados, procurando a origem do barulho, pensando ser um galho quebrado ou algum animal, mas não viram nada de estranho e continuaram a caminhada. Neste dia, fizeram várias paradas antes de voltar para casa. Quando chegaram, Eduardo foi até a geladeira e, passando pela frente de Bruna, eles finalmente descobriram de onde vinha o barulho que ouviram mais cedo. Entre risos que não conseguia controlar, Bruna diz a Eduardo que o seu

short de corrida havia rasgado e faz piada sobre como o seu traseiro havia crescido, desde que se casaram. Bruna ria tanto que demorou para perceber que Eduardo não a acompanhava. Na verdade, ele estava sério e uma lágrima começava a escorrer pelo seu rosto. Ela o olhou nos olhos, extremamente intrigada com a reação do marido, e perguntou o que havia acontecido. Ao ouvir a resposta, teve uma outra crise de riso: “Não temos leite! Paramos na padaria, no mercado, na sorveteria e não compramos leite! Eu passei vergonha em todos esses lugares, com o short descosturado e terei que voltar a pelo menos um deles, porque não compramos leite!”. Eduardo nunca se acostumou com o lindo sorriso de Bruna e sorriu ao observá-la apertando a barriga, que já doía de tanto rir. Bruna sempre sofreu as dores de Eduardo e, em meio ao riso, lágrimas de tristeza es-


correram de seus olhos porque, mesmo que parecesse algo tão bobo, aquilo tinha causado dor ao homem que ela mais amava. Reciprocidade sempre foi a base da união do casal. Eles se olharam e secaram as lágrimas um do outro, com o cuidado que sempre tiveram, e ficaram em silêncio - não um silêncio constrangedor, mas um silêncio gostoso e confortável. Esse silêncio lembrou o primeiro final de semana com o “ninho vazio”, depois que Lucas, terceiro filho de Bruna e Eduardo, foi para faculdade. A casa ficou vazia e, durante a semana, o silêncio o incomodou. Era a primeira vez, desde que se conheceram, há 30 anos, que o silêncio os inquietava. No final de semana, decidiram que isso precisava mudar. Eduardo comprou algumas garrafas de vinho, Bruna pediu pizza, comida chinesa e eles beberam e comeram a noite inteira. Cantaram, dançaram, transaram algumas vezes e, depois de tudo isso, curtiram a presença um do outro. A saída de seu último filho de casa foi muito diferente de quando Ana, a primogênita, ganhou asas. Isso aconteceu cinco anos antes. Ela estava se mudando para fazer mestrado e todos estavam muito felizes. É claro que o dia a dia na casa mudou, mas, nas primeiras semanas, ela telefonava todos os dias para os pais e parecia tão presente quanto antes. As ligações eram uma ótima desculpa para recordar momentos especiais, como a festa sur-

presa que Bruna e Eduardo organizaram para a filha. Era o seu aniversário de 17 anos, idade que os filhos costumam agir de forma rebelde, mas Ana sempre foi muito apegada aos pais e ficou feliz com a surpresa. Os seus amigos mais próximos, seus pais e seus irmãos comendo, rindo e cantando a noite inteira. Ela achou aquilo perfeito, mas Eduardo e Bruna acharam ainda mais incrível. Ana, Lucas e Renan sempre acharam incrível observar a sintonia dos pais. Renan se espelhou no amor deles a vida inteira, sempre quis viver algo parecido. Ele teve seu primeiro namorado aos 13 anos e, mesmo que não tenha durado tanto, sempre diz que valeu por uma vida. Renan sofreu muito com o fim do relacionamento. Foi seu pai quem mais cuidou dele naquele momento. Eduardo lembrava bem do seu primeiro e único término com Bruna, depois de 2 anos de namoro, e ele sabia como o filho estava se sentindo. Eduardo nunca acreditou que a eternidade era uma obrigatoriedade do amor e isso sempre o fez lutar todos os dias para que Bruna escolhesse estar com ele. Antes dos filhos, Bruna e Eduardo passaram juntos oito anos, entre namoro, noivado e casamento. Inicialmente, uma amizade sem segundas intenções, que durou apenas três horas numa cafeteria simples, na esquina da rua em que se conheceram. As três horas mais loucas de suas vidas. Foram 180 minutos em que eles

se perguntaram como poderiam se dar tão bem, sem nunca terem se visto antes. Três horas que marcaram e deram início ao restante de suas vidas - na verdade, dariam início: me esqueci de comentar que nada disso aconteceu. Quer dizer, quase nada. Eduardo e Bruna realmente se conheceram na rua, eles se esbarraram com força e sentiram na mesma hora um arrepio, pareceu cena de filme. Mas o encontro na cafeteria não aconteceu. Eles estavam com pressa demais e nem estavam atrasados para nada. Era apenas o hábito de se sentirem sem tempo. Ao invés de se olharem com carinho, eles ficaram irritados. A roupa de Bruna estava amarrotada e ela sentia que ia parecer desleixada no trabalho e o celular de Eduardo caiu no chão. Ele só conseguia pensar que, se o perdesse, precisaria reestruturar toda a sua vida, que estava naquele pequeno aparelho. E tudo que eles viveriam se desfez rapidamente com a mesma pressa que eles deram as costas um para o outro e partiram, sem ao menos tentar se desculpar pelo trombo. POR BEATRIZ LIMA

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SILVINO MAIS CEDO, MÁ FAMA MAIS TARDE A famosa rua da Má Fama de Caruaru é um símbolo de resistência para cidade, mas vem sendo alvo de um termo de ajustamento de conduta o que compromete a frequência do público, o funcionamento dos estabelecimentos e a diversidade cultural do local FOTOS: VICTÓRIA CARAVALHO E LUIZA MOURA


POR DANIEL NASCIMENTO, ELOISA AVANI E VICTÓRIA CARVALHO

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ultura. Diversidade. Resistência. Representação. A rua Silvino Macedo, conhecida popularmente como “Rua da Má Fama’’, é bastante conhecida especialmente pela quantidade de bares e boates que atraem um público bastante diversificado para o local. Esse polo cultural que a rua se transformou é algo recente. Há pouco mais de dez anos, o local era apenas mais uma rua comum da cidade de Caruaru, com casas residenciais e pouco comércio. No entanto, com o passar do tempo, ela foi sendo tomada por bares e restaurantes, tendo como objetivo principal transformar o lugar em um polo gastronômico. Esse objetivo não foi alcançado e a Má Fama se tornou um polo de entretenimento musical, com boates, pubs e casas de show. Com a visibilidade que a rua ganhou, vieram também os problemas. O índice de violência no local se tornou algo preocupante, com assaltos, tráfico de drogas e até homicídios. Antes de tratar disso, é preciso entender como o espaço passou a ser chamado dessa forma. Há muitas histórias de como a rua Silvino Macedo se tornou a rua da Má Fama. Os populares contam que havia dois bares bastante frequentados na rua, o “Na Feira” e o “Mercearia”. Em um final de semana como outro qualquer, um músico que tocava no bar “Na Feira” sentiu que as pessoas estavam inquietas, pedindo a conta, e que queriam ir para a “Mercearia”, e soltou a frase: “Calma, galera. A gente perde a fama mais tarde’’. E assim, por essa simples frase, a rua ficou conhecida como a rua da Má Fama. Hoje em dia, a rua agrega tribos, diversidade e também é um símbolo de resistência, por ser um lugar de representatividade, como declarou o estudante Eduardo Alencar, 21. “A Má Fama traz muita diversidade. Você encontra homossexual, lésbicas, héteros. Pessoas de diferentes estilos e classes sociais frequentam a rua. E essa pluralidade é respeitada. Em um shopping ou em outro lugar qualquer, não posso andar de mãos dadas com meu parceiro, mas na má fama sim”. A Má Fama também atrai pessoas de outros lugares, como os jovens João Victor, 21, e Pedro Henrique, 22, que são de Brasília e acharam a rua por indicação porque faz parte do passeio turístico pela cidade. “Quando a gente veio para Caruaru, nos falaram de três lugares, mas o mais indicado foi a rua da Má Fama”, diz Pedro. Pergun-

tado sobre a impressão que teve da rua, João Victor considerou positiva. “O lugar é bastante animado. Pesquisei antes sobre a Má Fama e li a notícia que aconteceu um tiroteio na rua, mas essa notícia era antiga. Então, não fiquei com medo vir”, relata. Apesar de frequentadores considerarem a rua uma boa opção para sair, neste ano, a rua da Má Fama foi alvo de um termo de ajustamento de conduta. Com a finalidade de conter a violência e atendendo a denúncias de moradores que se sentem incomodados com os barulhos, o poder público tomou algumas medidas quanto ao horários de funcionamento dos estabelecimentos. A promotora de justiça Gilka Miranda estabeleceu em um documento que os estabelecimentos devem funcionar até 2h nas sextas-feiras, 3h nos sábados e 0h nos demais dias. Além dos horários, outras medidas deveriam ser cumpridas pelos estabelecimentos, como instalação de no mínimo quatro câmeras, bombeiro no local e um alvará de licença ambiental. Por causa das novas medidas, alguns locais preferiram fechar suas portas, como fez a “Encantus’’. Os donos foram obrigados a assinar o termo comprometendo-se a cumprir todas essas medidas, obedecendo um prazo de 30 dias. A finalidade da ação é minimizar a violência e o tráfico de drogas que persistem nesta rua, mas ao entrevistar os donos dos locais, as opiniões divergem no que diz respeito aos horários, policiamento e segurança..

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O dono de um estabelecimento que abriu em fevereiro na rua Má Fama disse que o mais difícil é saber que o local poderia mesmo ser um polo gastronômico e cultural. “Mas a gente se perdeu por conta de meia dúzia que veio para bagunçar e traficar drogas. Acredito que todo esse trabalho do Ministério Público, Polícia, Bombeiro, Vigilância Sanitária, enfim, de cerca de dez órgãos públicos, isso pode mudar. A Rua da Má Fama hoje é a rua mais segura aqui de Caruaru. Praticamente todo final de semana tem fiscalização. É algo de ordem social. A gente também recebeu a informação de que boa parte desse público que faz baderna já começou a migrar para outro local”, afirma. Em contrapartida, em outra entrevista foi relatada uma perspectiva diferente em relação à presença dos órgãos públicos. “Aqui é visto como se fosse uma praga. Como se fosse um submundo, por causa do que já existia. Era uma rua com cabarés bem conhecidos. Quando alguém vem a Caruaru, indicam logo a Má Fama como ponto turísti-

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co, como em São Paulo é a Rua Augusta. Só que o poder público não quer colocar o policiamento adequado. Eles querem que essa rua se torne mais violenta. O policiamento que vem ao local não é com o intuito de fazer segurança, mas sim de assustar as pessoas’’. Ao conversar com alguns moradores, a opinião converge no que diz respeito ao barulho, falta de policiamento, violência e bagunça. “A falta de respeito das pessoas com a gente que mora aqui é visível. Antigamente, tinha coisa boa, hoje não mais. Antiga São Miguel não é Rua da Má Fama. E sobre a polícia, passa por aqui às vezes, mas não fazem nada. Não concordo com esses horários porque prejudica os donos, mas o barulho continua’’, declara um morador que vive na Má Fama há mais de 30 anos. Outra moradora se queixa do barulho, pois tem 89 anos e seu marido tem 100 anos. Moram na rua da Má Fama há mais de 60 anos e disseram que diversas vezes não conseguem dormir. Alguns bares e boates continuam abertos após 3h. “Vivemos um verdadeiro inferno’’, relatou. Por outro lado, ao saber a opinião das pessoas que frequentam esse lugar, existe uma clara evidência de que a Rua da Má Fama é um lugar que resiste. Muitas pessoas se mostram dispostas a continuar frequentando a rua, mesmo com as sanções e com os relatos de desordem. Esse grupo defende que a Má Fama é um local que representa a pluralidade do município. O estudante Gustavo Albuquerque, 21, um frequentador assíduo da rua declara que ela não pode ser esquecida pelo poder público, pelo fato de ser um símbolo cultural de Caruaru. “Quando pensamos em Rua da Má Fama lembramos como lugar de multiplicidade de estilos, das festas e boates. É um ponto turístico da cidade. Então, a Má Fama para Caruaru


é um local que precisa ser preservado. Apesar da história de a rua ser relativamente recente, já tem sua importância histórica. A cidade acaba se movimentando pela rua e isso é essencial para todos”, comenta. A cantora Gabi da Pele Preta, que fez alguns shows na Má Fama no período de maior efervescência do local, falou sobre a relevância da rua para ela e para Caruaru. “A Má Fama, para mim, é um lugar de memórias, é um lugar que conseguiu estabelecer uma relação diferente com a cidade. Uma relação libertária, mesmo para os artistas, para as pessoas que não se enquadram dentro dos padrões de comportamento que são socialmente estabelecidos. Essas pessoas estão completamente distantes desse espectro de violência ou deturpação da moral. A Má Fama é um lugar de pessoas felizes que se respeitam mutuamente e que fazem desse exercício uma arte. É isso que a Má Fama representa e precisa ser resgatado. Nesse sentido, para Caruaru, a Má Fama é um lugar de resistência, e que precisa ser olhado com mais carinho pelas autoridades, para que assim consigamos resgatar esse sentimento inicial. Sendo possível também a convivência tranquila entre os moradores da rua e as pessoas que frequentam. Precisamos extrair o que há de melhor nela. A Rua da Má Fama é símbolo de diversidade, resistência e liberdade de expressão’’, finaliza.

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FOTO: DYEGO MENDES




FOTO: METAL BEER/DIVULGAÇÃO

DE BAR EM BAR Um tour pelos bares de rua mais famosos de Caruaru POR BRENO MELO, RAUANY NATÉRCIA, VINÍCIUS TAVARES E VICTÓRIA PASCOAL

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lguns bares estão endereçados em calçadas e canteiros, outros rompem as fronteiras de se us terrenos e transbordam para as calçadas e ruas das cidades. Cresceram de tal forma que não cabem mais dentro do estabelecimento. São os bares de rua e em Caruaru não faltam opções para este happy hour ao ar livre. O que seria a rua sem os bares? Numa sociedade em que o ritmo da cidade consome as rotinas de todos os cidadãos que procuram um escape, na busca por essa fuga, os bares aparecem como um lugar para se deleitar. O que esperar de uma noite no bar? A procura e a ânsia por sensações extasiantes em cidades que possuem rotina intensa levam as pessoas a procurar tranquilidade, descontração, encontros de reflexão consigo ou talvez socializar com os amigos nos bares de rua. 43


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FOTOS: METAL BEER/DIVULGAÇÃO

Um dos bares mais conhecidos e tradicionais da cidade é o “Bar do Zequinha” localizado aos pés do Morro Bom Jesus. Em 1964, o proprietário José Clementino iniciou com uma mercearia, que se transformou no conhecido bar em meados de 1980. Hoje, 55 anos depois, é um lugar pra conversar com os amigos, tomar uma cervejinha e gastar pouco. Entre a Brahma a R$ 6 e as porções individuais de comida a R$ 1, o bar do Zequinha é feliz na missão de transmitir simplicidade, caminhando ao contrário da “gourmetização” de outros estabelecimentos. O bar pode ser considerado um território “raíz” com sua cerveja barata e contato humano, o suficiente para uma boa experiência em um sábado a tarde. Seu Zequinha, que nasceu em Santa Cruz do Capibaribe, já foi proposto a ser cidadão honorário de Caruaru, mas recusou, por não se sentir confortável com a exposição. Hoje em dia quem assume o negócio é seu filho, Alex, que toca o bar desde 2000, mas o patriarca do empreendimento está sempre presente. O negócio é bastante conhecido pelo bom atendimento, cerveja em conta que está sempre gelada e pelos famosos petiscos que são especialidade do local: os caldinhos, as coxinhas de frango e os nuggets da casa. José Clementino, o Zequinha, explica que a proposta do bar é justamente a conversa olho no olho. O bar não possui atração artística, só um jogo ou outro de futebol na TV a cabo. O que predomina no ambiente é o clima tranquilo. As pessoas que frequentam se sentem em casa, pois existe uma afetividade na relação com os clientes. Aliás, essa relação de proximidade e de amizade com os fregueses é quase uma unanimidade dos bares de rua.

Outro bar de rua que se destaca na cidade é o Metal Beer. Fundado em 2011 pelo casal Thiago e Dominique, eles tinham a proposta de abrir um espaço para livrar uma graninha e cuidarem de Victor, o primeiro filho do casal, nascido em 2007. Tinham a intenção de criar algo mais direcionado para a gastronomia. A ideia inicial era de uma lanchonete, mas, com o grande fluxo de clientes, o ponto precisou ser alocado para um local maior e ganhou esse upgrade para se tornar um bar propriamente dito. O “Metal Beer”, ou simplesmente “Metal” como é chamado pelos seus frequentadores, é um bar voltado para o estilo musical de mesmo nome, inclusive conta com atrações ao vivo e decoração relacionada ao gênero embora seja apreciado por todas as tribos. Thiago sempre teve um grande amor pelo Metal, sendo até vocalista da banda “Black Metal Ímpios”. Decidiu, então, juntar seus amores, cerveja e rock, para o que era um bar “temático” se tornar um dos lugares mais frequentados nas noites de Caruaru. “Hoje o Metal se resume a quem somos (Thiago e Dominique). Nossa identidade está ali. Somos família, somos amigos”, diz Dominique, uma das sócias. O local conta com 16 integrantes ou um “bando de loucos por festa” como brincam os sócios, que não usam farda e se vestem de acordo com seu estilo. A ideia é aproximar clientes e colaboradores em um laço de amizade, pois todos são conhecidos e chamados pelo próprio nome pelos fregueses. Comida boa e bom atendimento, é assim que todos que fazem o Metal querem ser conhecidos.


confraria possuiu a primeira televisão de bar na cidade de Caruaru, mais um atrativo na época. Além de tudo, o local está cada vez mais famoso por um evento em especial: o “Bloco da Sucata”. Ele acontece no carnaval e se torna maior a cada ano, chegando a fechar várias ruas adjacentes, e atrair milhares de foliões. O GALO QUE SE CUIDE...

Não podemos nos esquecer da famosa Confraria da Sucata, que começou no ano de 1950 com uma mercearia e se tornou bar e depois negócio de família. O atual administrador do bar, Byron, herdou o negócio. Seu avô, Pedro Florenço, foi quem deu o pontapé inicial no negócio que desde então só cresce cada dia mais. É tão famoso pela cidade que pode ser considerado um ótimo ponto de referência para quem é de da cidade ou de fora. Extremamente conhecido, não só o bar, mas também o dono. O bar fica localizado na rua João Condé, uma das ruas mais movimentadas de Caruaru e conhecida pela grande aglomeração de lojas de artigos eletrônicos. Lá, é possível encontrar vários pontos de venda e de troca, além de outros bares, prédios empresariais e um banco. O clima na Confraria é de fraternidade entre todos os presentes. A amizade e a espontaneidade entre os fregueses, funcionários e o dono do bar é inegavelmente aparente. Os fregueses frequentes começaram a enxergar a Sucata como uma segunda casa, não como um simples bar pra fugir da realidade, é um lugar aconchegante, reconfortante, um espaço pequeno que força de maneira positiva a interação dos clientes. Um lugar em que o dono, Byron, pode agir com naturalidade e até ressignificar a palavra cliente. De acordo com ele, seus clientes são muito mais colegas que vão ao bar frequentemente. O bar começou simples com apenas dois tipos de cerveja, mas se sobressaiu com as misturas que o avô de Byron, Pedro, preparava com cachaça para seus fregueses. A

Byron Laserre é um dos responsáveis por levantar a folia no carnaval de Caruaru. A primeira edição do bloco foi em 1999 e, de lá pra cá, é a prévia mais famosa da região que a cada ano ganha novos adeptos. Neste ano, em sua vigésima edição, o carnaval da sucata levou mais de 20 mil pessoas até as ruas para brincar e pular carnaval. As festas são tradição na Confraria da Sucata. Na década de 70, Pedro Sucata, o pai de Byron, criou a “Festa Hippie”, inspirado pelos woodstock, famoso festival alternativo da época. Na festa, os “sucateiros”, como eram conhecidos os frequentadores do bar, usavam bermudas ou shorts, porém nos pés, nada. A brincadeira era justamente brincar descalço. A festa hippie deu origem ao bloco, que recebeu cerca de 200 pessoas na sua primeira edição. Quase nada comparado a quase 20 mil foliões reunidos na festa de 2019, uma das maiores da história da Sucata. A cabeça de Byron nunca para de pensar em festa. Há alguns anos ele criou o “Menor São João do Mundo” em referência a festa antônima que acontece na cidade. A festa que pretende ser anual consiste em uma única bandeira, uma mini fogueirinha feita de palito de churrasco e mini canjicas e pamonhas, reforçando o estilo minimalista da festa. 45


Nessa nossa tour de bar em bar, chegamos, então, à famosa feira de Caruaru. “A feira de Caruaru, faz gosto da gente ver, de tudo que há no mundo, nela tem pra vender”, canta Luiz Gonzaga em um dos seus maiores sucessos, composto pelo caruaruense Onildo Almeida. O local oferece uma variedade infinita de produtos para os cidadãos usufruírem. As cores e os cheiros pairam pelo espaço e ocupam os sentidos dos corpos como quem convida gentilmente as visitas a entrarem na feira. Nela, não poderiam faltar os bares. E é assim que chegamos até o bar e restaurante da Tia Guida, um dos mais famosos da cidade. Lá, o tema é a comida genuinamente nordestina e a cerveja gelada. Tem coisa mais genuína do que querer conhecer um lugar, querer conhecer a cultura, e logo se debruçar na gastronomia local? Somos o que comemos e bebemos, e somos um povo forte. Tia Guida já foi tema de diversas reportagens, algumas delas em rede nacional mostrando o que seu prato principal: a buchada. Tem comida que melhor representa o povo nordestino? O nordestino sabe bem como usar cada miúdo do animal, nada se perde. “Aqui se come com cultura e amor”, diz Tia Guida. No local, é possível encontrar um café da manhã reforçado e um almoço regional saborosíssimo. Cuscuz, macaxeira, inhame, grelhados e guisados de todos os tipos deliciam a clientela fiel e os turistas que não deixam de conhecer o local. Tia Guida é a simpatia em pessoa, todos se sentem em casa com aquele carinho maternal que ela tem com todos. Pois é, difícil vai ser escolher um desses locais para curtir um happy hour e comer bem. Que tal ir em todos? Partiu?

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FOTO: BEATRIZ LIMA

FOTO: METAL BEER/DIVULGAÇÃO

FOTO: VICTÓRIA PASCOAL


A FEIRA DE CARUARU DE TUDO QUE HÁ NO MUNDO As ruas da cidade se enchem de cores, cheiros, sabores e sons com as feiras nossas de cada dia POR ANA CLARA TABARANÃ, MARIA EDUARDA, MARIANA SALES, THIAGO LIRA E VICTÓRIA MÉLO FOTOS: VICTÓRIA MÉLO

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nildo Almeida, compositor da música “A Feira de Caruaru”, que se eternizou na voz do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, não brincou quando escreveu que de tudo que há no mundo tem na Feira de Caruaru. A feira é um misto singular de cores, cheiros, sabores e sons, cuja origem se confunde com a da cidade. Recebeu o título de Patrimônio Cultural e Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no dia 6 de dezembro de 2006 e é parte imprescindível da história e crescimento de Caruaru, dispondo de uma riqueza, não apenas comercial, mas também cultural.

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É quase impossível entrar e sair da feira sem encontrar um trio péde-serra, os bonecos de barro característicos e popularizados por Mestre Vitalino e uma inúmera variedade de artesanato feito dos mais diversos materiais: couro, tecido, palha, madeira. Muitas vezes a arte é feita ali, na hora. A Feira de Caruaru é uma das maiores feiras ao ar livre do país e contém uma variedade impressionante de produtos para serem comercializados. Reafirmando as palavras de Onildo Almeida, de tudo que há no mundo, nela tem pra vender. Na feira, encontra-se desde alimentos como frutas, ervas e carnes, até roupas e outras variedades como panelas, ferragens, eletrônicos e importados. Mas o que mais chama atenção são as peças de artesanato, que representam os elementos da cultura da cidade e da região. Pessoas vêm de fora da cidade, do estado e até do País para conhecer a feira e a cultura caruaruense. Dentro dela, existem outras feiras como a Feira do Artesanato, dos Importados, da Sulanca, de Raízes e Ervas Medicinais, de Couro, de Ferragens, de Frutas e Verduras, do Troca, de Flores e Plantas Ornamentais, de Fumo, feira com Artigos de Cama, Mesa e Banho, do Gado, de Confecções Populares, feira do Bolo e a Seção de Goma e Doces. Na feira, poucos são os bancos que aceitam cartão de crédito e o dinheiro raramente é acompanhado de nota fiscal. Na Feira do Artesanato, encontramos Luciano Bezerra, 56, que trabalha há 30 anos na feira vendendo artigos derivados do couro, como calçados, carteiras, cintos, entre outros. Em comparação à feira antiga, Luciano afirma que antes lucrava mais do que hoje, pois atualmente existe muita concorrência, principalmente, por causa dos shoppings, do Alto do Moura e das cidades da região, que também trabalham com artesanato. Apesar disso, Luciano declara que prefere a feira de hoje em dia. Na Feira de Ervas, uma loja chama atenção pelo seu nome “Box Girassol da Viúva de Biu da Raíz”. Maria José, 71, trabalhava com o Biu da Raiz, como era conhecido na feira. Biu da Raiz era advogado e professor, mas não exercia as profissões porque preferia trabalhar com a feira.

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Hoje, Maria José trabalha com a ajuda de seu filho nas folgas dele. Vende ervas, velas e incensos para atrair ou afastar coisas diferentes, além de estátuas de santos e orixás, frutas e raízes, dentre outros artigos. Maria começou a trabalhar aos 20 anos e afirma que exerce o seu trabalho com amor. Severina Bezerra, 50, começou a trabalhar na feira aos 24 anos, aprendendo com a sogra a preparar e vender as ervas e raízes. Trabalha há 27 anos e veio para Caruaru após se casar. Damião Alexandre dos Santos, 43, trabalha há 25 anos na feira vendendo alimentos de segunda a sábado, das 6h30 até 16h. Afirma que na antiga feira conseguia vender mais, no entanto, não tinha o mesmo lucro que consegue hoje por causa da inflação. De acordo com ele, hoje, menos pessoas visitam a feira. Antes não existia mercado na zona rural e a população se deslocava para a feira. Damião, com o seu trabalho na feira, pagou a escola particular do filho, Daniel, que hoje cursa Química na Universidade Federal de Pernambuco. O sentimento que ele tem pela feira é de que ela está acabando. Luiz Severino de Oliveira, é vendedor na feira há mais de 20 anos e herdou o trabalho com a agricultura e a feira por meio da família. De pai para filho, a tradição passou até chegar a ele. Para Oliveira, a feira é uma grande tradição: as pessoas vão aos sábados fazer as compras. Ali, eles compartilham um grande sentimento de amizade. Também conseguiu sustentar a família com três filhos. Tudo graças ao lucro da feira, ele ainda analisa que o Mercado de Farinha perdeu muito depois da reforma, que não tem mais prazo

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para terminar. Luiz afirmou que o mercado de farinha precisa de mais atenção, de uma melhor estrutura e que não pode ser deixado de lado. A feira de rua é o resgate no tempo e na memória dos que viveram o crescimento de Caruaru. Hoje, a feira preserva seu estilo e produtos tradicionais, mas também dá lugar para as novos formatos e produtos como os tecnológicos. Prova disso é a tenda de bonecas de pano, que divide o espaço ao lado com os eletrônicos e acessórios para celulares e tablets. Depois de mais de 60 anos da gravação de A Feira de Caruaru por Luiz Gonzaga, a letra do caruaruense Onildo Almeida se confirma, ela tem de tudo que há no mundo, e sim, dá muito gosto da gente ver

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CRÔNICA

RUAS EM DIAS DE CHUVA

A

cordei com o som da chu va e do despertador. O cli ma me puxando de volta para a cama. Olhei pela janela, para ver como estava lá fora. A água, forte, descendo pelas ruas, permanecia. Me arrumei e saí. Saí de casa com a coragem de cada dia no peito, enfrentei as águas junto ao meu guarda-chuva. O chão molhado, os buracos das ruas formando poças. O tráfego de carros com velocidade diminuída, por causa do congestionamento. As pessoas correndo, tentando se proteger das gotículas de água que caem do céu, com a esperança de chegarem aos seus destinos o mais secas possível. As goteiras, a correria, as poças, o congestionamento, os faróis, os prédios, as senhorinhas, com suas bolsas, andando devagar, com cuidado para não escorregar. Motos, carros, bicicletas, pedestres, vendedores. A cada rua, dezenas de novos rostos, sei lá quantos olhos. Talvez eu lembre de algum, mas é muito pouco provável. Tenho a sensação de já ter vivido isso antes. Estou certa: em outro dia, em outro momento, mas, quase sempre, as mesmas situações. Por causa do congestionamen-

to, meu ônibus atrasou. A ansiedade e a agonia me dominam por um tempo: “preciso ir ao trabalho”, “preciso chegar cedo”, são esses, os meus pensamentos. Às vezes, o ônibus está lotado, às vezes não. Tem horários em que está mais cheio e, em outros, nem tanto. Não tive sorte desta vez. Muitas pessoas encharcadas me rodeiam. Não conheço nenhuma, a não ser o cobrador e o motorista, com quem nunca tive uma conversa real. Creio que as pessoas a minha volta também não. É muito provável que eu pegue o ônibus sempre com as mesmas pessoas, mas minha mente está sempre muito ocupada. Ocupada demais para prestar atenção ou tentar uma conversa. Só sei que todos os que estão aqui possuem os seus destinos e objetivos, mas com certeza prefeririam estar agora na cama ou no sofá, tomando uma bebidinha quente ao som da chuva. A chuva grossa é ótima quando se está em casa. Na rua, na correria, ela se torna incômoda. Um molhador, um monte de poças se formam, água descendo pelas ruas, atrapalhando a passagem. Todos têm sua velocidade diminuída. É necessário mais atenção.

Reclamo agora, mas, de toda forma, amo a chuva. Sou amante do cheiro de terra molhada e do verdinho da vegetação, após um dia cheio dessas gotas milagrosas. Isso é porque sou do interior e, provavelmente, vivenciei tudo isso mais do que essas pessoas que nasceram e vivem sobre o asfalto. É no dia posterior aos dias de chuva forte, em capitais, que vemos os resultados: muitas cidades não foram projetadas para o próprio clima, deveriam ao menos estar preparadas para as chuvas e muitas vezes não estão. A prova disso é tudo o que eu já disse e até mais. Pelo menos por hoje, meu único e maior problema foi pisar em um buraco cheio de água, ao invés de tantas outras possibilidades que teriam consequências desastrosas. Sejamos positivos. Espero que nenhuma árvore tenha caído, nem nenhuma casa. Espero que as ladeiras estejam intactas e que os postes permaneçam os mesmos e de pé. POR RAUANY NATÉRCIA

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CONTO

ENXERGAR É PRECISO

E

u não paro. Todo dia cru zo a Avenida Rio Branco, pego o atalho ao lado da antiga Estudantil e desemboco na Rua Quinze de Novembro. Todo dia, sempre no início da manhã e final da tarde. Durante esse pequeno trajeto eu não penso muito no que está ao meu redor. Apenas vou calculando o tempo que me resta pra fazer o que preciso concluir ou começar. E ah, trabalho distribuindo panfletos, me esqueci de avisar. O pior horário é o meiodia, a hora que sou mais ignorada. Ergo a mão e as pessoas simplesmente passam direto. “Faz parte”, eu penso. Só nesta manhã quatro pessoas já fizeram isso. Um estudante, provavelmente, pois tava com uma mochila nas costas olhando o celular. Uma senhora de uns 50 e poucos anos, muito bem vestida. E um senhor que me olhou no olho e riu. Quando eu penso nessas pessoas, coisas e sentimentos variados me vêm à cabeça, sendo o principal de-

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les a humilhação. Não pelo meu trabalho, de maneira alguma, tenho muito orgulho de ganhar a vida honestamente, mas pela forma como me tratam só por exercer uma tarefa tida como “simples”. Simples na teoria mesmo, porque meu trabalho é árduo. Ser ignorada não é fácil. Era noite de 15 de junho, mais um dia dos finais de semana do São João aqui de Caruaru. Não gosto de festas, meu coração fica mais apertado que a multidão que lota o Pátio do Forró. Minha filha, de 19 anos, no entanto, ama e muito. Ela foi arrumada como sempre, a mais bela das moças. Estudante de História, sempre foi meu orgulho. Ela foi. E nunca mais voltou. Recebi um telefonema às 4h40 da manhã do dia 16. Era do IML. Ela havia sido morta da pior maneira possível: foi estuprada e deixada de lado como um animal. Eu fui rapidamente ao IML, reconheci o corpo e logo em seguida fui a delegacia. Estavam presentes o policial que

registrou o caso e a delegada. Ela não me reconheceu, é óbvio, nem olhou pra mim quando passou na rua. O escroto que matou minha filha foi preso dias depois, pois um jovem testemunhou contra ele. E, por ironia ou não do destino, ambos haviam passado por mim naquele mesmo dia. A lição que eu tiro e que peço pra quem está lendo meu testemunho é: a rua une. Une na dor. Une na necessidade. Une no nojo. Eles me ignoraram por me achar invisível. E viram, da pior maneira, que eu existo. POR GABRIEL PEDROZA


RUAS DE CARUARU ONTEM E HOJE

Cantadas em canções, transformadas ao longo do tempo, as ruas da cidade nos contam histórias POR AMANDA OLIVEIRA, DYEGO MENDES, DANIELE LEITE, HEBERTON MARTINS, LARISSA JULIANA, MATHEUS TAVARES E SARAH COUTINHO

FOTOS HOJE: DYEGO MENDES/FOTOS ONTEM: AUTORIA DESCONHECIDA


RUA DA MATRIZ, PONTO DE ENCONTRO DA CIDADE LUZ A Avenida Rio Branco, conhecida popularmente como Rua da Matriz, é uma das principais ruas de Caruaru. O nome Matriz surgiu no século 19 a partir da construção da Catedral de Nossa Senhora das Dores em agosto de 1848 e ficou conhecida como Igreja da Matriz. A obra é considerada um marco social para Caruaru porque, a partir dela, foram iniciadas as construções de casas daqueles que comercializavam na rua 15 de Novembro, localizada em frente à Rio Branco. De acordo com o arquiteto e urbanista Rodrigo Lucas, a Rua da Matriz ainda guarda, sobretudo na área central da cidade, prédios cuja arquitetura sobrevive ao tempo. “Quase sempre naquela área comercial as fachadas das lojas escondem essa arquitetura”, diz o arquiteto, que prossegue informando que o número dessas residências está cada vez menor. A atual arquitetura da Catedral não se parece em nada com a igreja demolida em 1964. A decisão de demoli-la envolve versões divergentes. O historiador José Urbano afirma que a versão que ele conhece é de que a demolição foi causada devido a uma rachadura em uma das torres, ocasionada por um desnivelamento. No entanto, ainda segundo Urbano, uma reforma resolveria o problema, já que era uma fenda em uma torre que foi construída depois do levantamento da Catedral. Urbano acredita que é provável que a rachadura não tenha sido a real motivação, mas sim a intenção de criar uma nova arquitetura para homenagear a Catedral de Brasília, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer. Também é possível que o propósito fosse homenagear a Catedral de São Sebastião, no Rio de Janeiro. Na época, houve movimentos na cidade contra e a favor da demolição. Porém, o maior posicionamento era contra a demolição da igreja. Diante disso, o então bispo, Dom Augusto de Carvalho, fez uma viagem naquele momento. A Diocese afirma que não tem envolvimento com essa decisão. Uma terceira versão sobre a demolição da Igreja da Matriz é uma história intrigante que corre pelas ruas de Caruaru. Segundo ela, havia ouro no interior das estruturas da igreja. Não há provas desta versão e, caso seja verídica, não se sabe para onde o ouro teria ido. Em 15 de agosto de 1973, a Catedral foi inaugurada com a arquitetura como é conhecida atualmente. 54

VISTA DO PALÁCIO EPISCOPAL E DA CATEDRAL ONTEM

Construído em paralelo à igreja e localizado ao lado dela está o Palácio Episcopal, conhecido como Palácio ou Casa do Bispo. Com um estilo barroco clássico inspirado na arquitetura europeia, foi construído sem o primeiro andar que existe hoje e surgiu em um contexto de uma epidemia de cólera, que matou milhares de pessoas no Nordeste. Nesse contexto, o sacerdote Vigário Freire teve a iniciativa de criar o primeiro sanatório de Caruaru, a partir de doações das pessoas de boa condição financeira da época. Os cuidados médicos


VISTA DO PALÁCIO EPISCOPAL E DA CATEDRAL HOJE

tos rurais e o primeiro andar representa a vontade de Caruaru entrar na belle époque francesa já que, naquele momento, havia a influência dos filhos de coronéis que estudaram medicina na Europa e voltavam para Caruaru. A partir do momento que Caruaru instala a Diocese de Nossa Senhora das Dores, o prefeito e os vereadores realizam um acordo para passar a Prefeitura ao clero para ser a residência do bispo. Além disso, a Casa do Bispo foi o espaço utilizado pelo primeiro ano do curso de Filosofia, nos anos 60. E entre a Igreja da Matriz e a Casa do Bispo havia o Cemitério da Angolinha, local de sepultamento de muitos escravos vitimados de doenças como a cólera.

CATEDRAL ANTES DA DEMOLIÇÃO DE 1964

oferecidos pelo sanatório evitaram que os surtos de cólera crescessem mais. Com o alcance da autonomia política, Caruaru elege seu primeiro prefeito, o major João Salvador dos Santos. Desse modo, o Palácio do Bispo foi utilizado como primeiro prédio da prefeitura. O primeiro andar do Palácio foi construído em 1922, por Henrique Pinto, prefeito da época. Segundo o historiador Urbano, a ideia foi concentrar as secretarias em um único espaço para facilitar a mobilidade urbana. A arquitetura de antes representava para aquele período os aspec-

CATEDRAL COM NOVA ARQUITETURA EM 2019

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O HOJE PARA LEMBRAR O ONTEM No passado, a avenida era o principal ponto de encontro de Caruaru, onde se reuniam artistas e intelectuais que movimentavam os aspectos culturais e sociais da cidade. O cenário da época foi retratado pelo caruaruense Carlos Fernando na canção “Rua da Matriz”, lançada em 2007, musicalizada por Geraldo Azevedo. Em meio à efervescente movimentação, foi fundado em 1922, por Alfredo Ramos e Anselmo Freire, o Cine Theatro Rio Branco, primeiro cinema de Caruaru. Em seguida, o lugar passou a pertencer ao escritor e jornalista João Condé, que reformou o telhado e acrescentou itens de sofisticação, como camarotes de luxo e galerias para músicos. Além disso, José Condé utilizou o cinema em seus romances como cenário para os personagens, na década de 20. O proprietário seguinte, Ismael Amorim, reformou a fachada e reinaugurou o cinema em 1925, com o nome de Cine Theatro Avenida. O lugar era um grande ponto de referência cultural e arquitetônico de Caruaru. Com a modernização e a chegada das fitas cassetes, as casas de espetáculo foram recebendo cada vez menos público e consequentemente acabaram fechando. Nada restou da estrutura grandiosa que se tinha nos cinemas mais famosos, apenas as fotos e as lembranças dos antigos moradores. Inaugurado em 1984, um dos palcos desses encontros era o Café Rio Branco, cujas atividades foram encerradas em 2015, deixando saudades para

os fiéis frequentadores do lugar. Atualmente, uma ótica está localizada no espaço. Próximo a este local, é possível encontrar hoje o Espaço Nelson Barbalho. O espaço, inaugurado em 25 de outubro de 2018, foi criado por lojistas locais em homenagem ao escritor, jornalista, historiador, pesquisador, lexicógrafo e compositor, que nasceu em Caruaru no dia 2 de junho de 1918. Composto pela revitalização da calçada e por uma estátua em tamanho real de Nelson Barbalho, confeccionada pelo artista plástico Caxiado, o local representa o lugar em que Nelson gostava de sentar para encontrar outros artistas e a elite intelectual da cidade. A avenida continua sendo uma das principais artérias da cidade, passando por um processo de modernização ao longo dos anos. O arquiteto Rodrigo Lucas deixa a mensagem que “é inevitável atualizar as construções, mas preservar a história é imprescindível”, lembrando a importância do poder público e da população preservarem a história de Caruaru, incluindo a Rua da Matriz, um dos símbolos da cidade.

AVENIDA RIO BRANCO ONTEM

AVENIDA RIO BRANCO HOJE

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RUA 15 DE NOVEMBRO: DE FAZENDA A CAPITAL Da tradição à modernidade, a antiga rua do comércio é palco de transformações sociais, culturais e econômicas ao longo das décadas

Conhecida popularmente por rua do Comércio, rua da Frente ou Centro, a rua 15 de Novembro pode ser considerada umas das ruas mais significativas para o desenvolvimento de Caruaru. Ela surge como o primeiro ponto de interação social entre os habitantes da Fazenda Cururu que, por sua vez, já era marcada pela religiosidade e pela fé dos moradores em Nossa Senhora da Conceição. Segundo o historiador José Urbano, em 1782, o fundador de Caruaru, José Rodrigues de Jesus constrói a igreja da Nossa Senhora da Conceição em homenagem a sua mãe, Dona Tereza, e a sua irmã mais nova, Maria da Conceição, que eram devotas da santa. Essa igreja é considerada patrimônio histórico mais antigo de Caruaru. A partir disso, é nas margens da igreja, na Fazenda Caruru, que o local ganha mais estrutura e recebe o título de vila. Além da igreja como ponto característico importante para o surgimento da cidade, a feira iniciada pelos moradores locais também impulsionou esse processo de transformação.

É com o aumento dos fluxos comerciais, propiciados pela feira, que tem início a criação da identidade da região. Segundo Urbano, o comércio era formado pelo escambo, ou seja, as mercadorias eram trocadas entre os moradores e os vendedores que vinham do Sertão e do Recife. Os criadores de gado, caixeiros viajantes e compradores de couro foram comerciantes necessários para o fortalecimento desse cenário de modo que eles deram o pontapé para o que conhecemos como a Feira de Caruaru. A feira era realizada nas quarta-feiras e aos sábados. As principais ruas do Centro eram fechadas, como a rua São Sebastião, a própria 15 de novembro e a Avenida Lourival José da Silva. Mas foi em 1992, no governo de João Lyra Neto, que a feira foi transferida para os locais que conhecemos hoje, como por exemplo, a Sulanca que está no Parque 18 de Maio e a feira de gado situada na Avenida Doutor Laranjeira, no Alto do Moura. O ex-prefeito João Lyra foi uma figura de grande relevância para entendermos o processo de urbanização e reconfiguração da rua. Além de retirar a feira do Centro em 1992, ele também contribuiu na arquitetura da praça que, hoje, permeia toda a 15 de novembro. Em 2019, a rua foi revitalizada, mais uma vez, no governo de Raquel Lyra e conta com a ampliação das calçadas e uma maior arborização da avenida. De acordo com a perspectiva do arquiteto Rodrigo Lucas, esse projeto vai trazer maiores benefícios ao bem-estar da população tanto em relação ao trânsito da cidade quanto na criação de uma ciclovia para o lazer do público.

RUA QUINZE DE NOVEMBRO ONTEM

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RUA QUINZE DE NOVEMBRO HOJE

Ainda nesse contexto, o Marco Zero de Caruaru é um ponto de referência da cidade e pode ser utilizado como local de resistência entre as modernizações que ocorreram ao longo das décadas. Diante dessas transformações, de fazenda para vila e de vila para cidade, as antigas construções coloniais da rua 15 foram sendo substituídas por placas e outdoors publicitários que marcam o início da modernização capitalista em um ambiente cada vez mais urbano de Caruaru. Segundo Lucas, algumas dessas arquiteturas encontradas na rua do Comércio, como intitula, são consideradas sobreviventes. Para ele, as poucas estruturas arquitetônicas antigas que restaram nesse processo de modernização podem ser encontrados como uma espécie de resistência em meio a grande variedade de lojas no centro da cidade. E afirma que a arquitetura é sempre um reflexo da cultura de um determinado momento. “Não dá para comparar as casas construídas atualmente com as casas de antigamente”. A Academia de Letras e a parte superior de algumas lojas no Centro são exemplos dessa transformação que não ficou parada com o tempo. Hoje em dia, a 15 de Novembro continua sendo uma das ruas mais movimentadas e representativas para Caruaru. Como foi mostrado ao longo do texto, o crescimento da rua 15 toma forma e estrutura de modo muito acelerado e, com isso, a cidade e o seu desenvolvimento seguem esse ritmo e se transformam constantemente. As ruas se tornam cada vez mais apertadas, o fluxo de pessoas de regiões circunvizinhas aumenta em larga escala. 58

MARCO ZERO ONTEM

MARCO ZERO HOJE


OUTRAS RUAS DE CARUARU A história do nome “Rua Preta” não possui uma versão oficial que explique sua causa. A versão mais conhecida é a de que existiam olarias e carvoarias pela localidade. Elas expeliam cinzas pelas ruas e as casas e o calçamento ficavam cobertos de resíduos de carvão, dando uma coloração preta em toda região próxima. A Rua Preta é formada por um conjunto de ruas localizadas no entorno da praça São Francisco, no bairro que recebe o mesmo nome. Era na Rua Preta onde funcionava a sede do extinto clube de futebol Vera Cruz, o Círculo Operário de Caruaru e o Curtume Irmãos Souza. Hoje, é uma das mais conhecidas ruas da cidade, acumulando histórias e com o comércio em constante expansão.

ESTAÇÃO FERROVIÁRIA ONTEM

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RUA SÃO SEBASTIÃO E RUA JOÃO CONDÉ A história do nome “Rua Preta” não possui umEssas ruas se destacam pelo amplo comércio que é desenvolvido e por possuir importância fundamental para o desenvolvimento de Caruaru. O início dessa história comercial é iniciada quando comerciantes traziam do sertão produtos artesanais rumo a capital, Recife. Como a cidade de Caruaru é um ponto estratégico que conecta duas rodovias federais, muitos desses comerciantes acabaram instalando-se na cidade para vender seus produtos. Então, os vendedores que vinham com suas mercadorias montados em animais de carga, paravam na Rua São Sebastião, local que concentra até hoje acessórios para esses animais. Já a Rua João Condé concentra a venda de eletrônicos no interior do estado, competindo diretamente com a Rua da Concórdia no Recife.

ESTAÇÃO FERROVIÁRIA HOJE

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CRÔNICA

CEMITÉRIO DOS ANGOLANOS

Q

uando a gente lembra qual é a história que es se pedaço de chão carrega, a gente lembra que aqui tinha uma igreja que foi demolida para construir outra. E do lado, há a casa do bispo, onde ele não mora. Talvez ele visite só para aproveitar o São João. Entre a casa de Deus e a casa do bispo tem uma pracinha jeitosa, boa para convidar as Marias e os Josés para a missa que, em tempos festivos, ultrapassa as paredes da igreja, que não tem parede, e os seus arredores viram Igreja também. Entre a casa de Deus e a casa do bispo, abaixo da terra, há a casa dos invisíveis. A gente pisa em cima desse território santo. Que é santo porque o padre, assim, abençoou. E em cima desta terra dançou a debutante, feliz. O moço e a moça trocaram olhares. Nela também rezam as beatas devotas.

E abaixo ninguém. O decoro tinha as flores.

Que o túmulo não foi digno de Pensar, porque lembrar não ter. poderia. Não se lembra quem não se E abaixo dela os esquecidos. conhece. Sem nome. E não se lembra quem é ninSem história. guém. Sem registro. Sem uma lápide. POR LARISSA ALVES Invisíveis. Passamos por cima dos seus corpos. O historiador me falou o pesar que foi perder a antiga arquitetura francesa Belle Époque da Catedral que foi demolida. Só pude pensar que a gente perdeu os índios absorvidos e a arquitetura Belle Époque ignora meus ancestrais colonizados. Mas, menino, ali não tem o que lamentar. O negócio é o progresso. E porque eu não pensaria na minha ancestral que foi trazida de sua terra. Para servir a seu estuprador. Que é meu ancestral também.

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CRÔNICA

MARCAS NAS PAREDES

D

urante toda a minha infâ ncia e adolescência, eu vivi ajudando os meus pais em um pequeno mercado-padaria que tínhamos na zona leste de Caruaru. As coisas nunca foram as mais favoráveis porque sempre escutava da boca do meu pai que “não estamos no tempo das vacas gordas”. Aparentemente, esse tempo nunca chegou para nós e foi piorando gradativamente. Embora eu tenha crescido e me construído dentro daquele estabelecimento, muitos momentos me traumatizaram: as ruas foram cenário da violência que a minha família sofreu. Quando fecho os olhos, ainda consigo escutar um homem dizendo que se achasse dinheiro embaixo do caixa, iria me dar um tiro para eu nunca mais mentir. Me senti muito pequena, naquela situação. Realmente eu era. Assaltos eram frequentes no mercado-padaria. Chutes, gritos, todo mundo no chão, arma apontada na cabeça de todos. Os clientes não aguentaram,

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meu pai não aguentou. A polícia, para chegar ao nosso bairro, demorava cerca de 30 minutos. Um policial aposentado foi contratado para servir de segurança na área. Aconteceu mais um assalto. Dessa vez, muito menor do que todos os outros que já havíamos vivenciado: um adolescente, menor do que eu, puxou uma arma enferrujada e apontou para o meu pai. Quando ele foi embora, ouvimos os tiros. Um, dois, três. Meu pai corria atrás, junto ao policial aposentado. Imaginei a capa deles, saindo pela roupa, como super-heróis. Algumas pessoas que moravam no quarteirão ficaram aterrorizadas. Outras, ficaram maravilhadas com o pequeno show de o “bem contra o mal”. Os tiros marcam a casa de uma senhora simpática e de uma loja de material de construção. Um dia depois, uma grande oração na praça principal, levou várias pessoas do bairro a se juntarem e pedirem a Deus por mais proteção. O pa-

dre falava sobre o quanto nós tínhamos que manter o cuidado e que as preces deveriam ser aumentadas, para que Deus os ouvisse. Mas a única coisa que eu, com 13 anos, perguntei pra minha mãe foi “será que os ladrões vão voltar?” Eles voltaram. As ruas se tornaram o palco principal da violência, que afetou e ainda afeta a memória e o dia a dia das pessoas que compartilham dela. Os comerciantes, entre outros grupos, clamam por segurança e liberdade de poder utilizar a rua sem medo. Ela é o laço que liga a vida pública da privada e constitui a comunidade. POR DAYANE CARVALHO


FOTO: DYEGO MENDES

“O MUNDO É UMA GRANDE ILUSÃO” POR AMANDA OLIVEIRA, DYEGO MENDES, HEBERTON MARTINS, LARISSA ALVES E SARAH COUTINHO

S

ão passos apressados todos os dias. Passos que seguem em direção ao colégio, ao traba lho, ao curso, à faculdade. Não há tempo para observar o que está escrito na placa em frente à Igreja da Conceição, no Marco Zero de Caruaru. Só há tempo para reclamar que a parada de ônibus, na 15 de Novembro, mudou de lugar e ninguém avisou. As pessoas seguem as suas vidas em um ritmo frenético, impulsionado pela ansiedade. Não há tempo, não sobra tempo, precisa-se de tempo. O dia deveria ter mais do que 24 horas. Corre-se de um canto para o outro, enquanto a vida passa. Quase ninguém sabe de quem são os bustos em bronze, ostentados na Avenida Rio Branco. Na verdade, quantos já pararam para observar as ruas de Caruaru com olhos de calmaria? 63


Desconhecidos dentro do mesmo espaço. Olhos nos olhos ou olhos nos aparelhos que estão presentes excessivamente em nossos dias? O toque. O afeto. A fala. Gestos que passam despercebidos, quando o que mais importa é o amanhã. O depois. O agora a ninguém pertence. As pessoas estão preocupadas demais com os afazeres, com a correria, com a demanda de atividades intermináveis e com o descanso inalcançável. Chico Science, em sua música “A Cidade” dizia: “A cidade não para, a cidade só cresce”. E não paramos, não refletimos. Nos momentos de reflexão, estamos inquietos nos perguntando de maneira punitiva: “será que estou perdendo tempo?”. Os carros, as buzinas, a impaciência, o pedestre passa, os sinais abrem. Nada muito íntimo. Nas conversas no ônibus, quantas vezes não fomos surpreendidos pelos mais velhos, querendo puxar uma conversa sobre o tempo, sobre a correria da vida? São nesses momentos que notamos que podemos até estar atentos, buscando nossos objetivos e cumprindo nossas metas, mas estaríamos vivendo ou apenas existindo? A vida é um ponto de partida, mas quem disse que precisamos queimar a largada quase sempre? Os clichês têm sua importância. Enquanto os passos apressados seguem, Max D’há, que trabalha como ilusionista há 40

FOTO: DYEGO MENDES

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FOTO: DYEGO MENDES

anos, observa. Ele parece ter o seu próprio tempo. Desconecta-se do ritmo daqueles que passam por ali. Integrante do movimento Hare Krishna, é visto como um louco, por não acompanhar o frenesi daqueles que sempre parecem estar atrasados para chegar a algum lugar. Max também dá aulas de ilusionismo. O seu trabalho é feito na Avenida Rio Branco há quase cinco anos e sempre tenta conversar com quem passa por ali . São poucos os que param, que realmente querem ouvi-lo. São nesses momentos que o ilusionista acredita que as pessoas estão desperdiçando a forma humana de vida, com a pressa. D’há não se vê como uma figura convencional. Sabe que destoa, é diferente. Mas, ainda assim, as suas abordagens diárias continuam: “você teria um minuto?” “Uma pergunta, por favor?” E as respostas são sempre as mesmas: “Não, estou apressado”, “ Não, tenho um compromisso”. A proposta de Max D’há, para a salvação e ansiedade, é não correr. Para ele, temos um corpo sedento, que busca satisfazer os prazeres da carne constantemente. Certezas e incertezas incessantes criadas pela necessidade de consumo. O capitalismo e seus malefícios, a existência marcada por modelos de vida angustiantes. D’há afirma, com muita certeza: “o corpo é perecível e o mundo é uma ilusão”.



CRÔNICA

PELAS RUAS DO JEANS EU VOU CAMINHAR

S

ão 08h00 da manhã de um domingo de maio. Estou ves tindo um par de chinelos marrom, um short jeans e uma camiseta preta. Cabelo bagunçado e olhos ainda com sono. Começo a caminhar por uma das ruas de paralelepípedos da capital do jeans. O sol já está alto e radiante - como sempre, neste lugar. Os pássaros cantam em cima das árvores e, embora tenha chovido há semanas, o mato, ao redor, ainda está verdinho. Ouço o barulho de máquinas de costura em alguma casa por perto. Mesmo não sendo um dia útil, tem gente que não para por, sequer, um dia da semana. Ando mais um pouco e vejo crianças brincando com bicicletas, na rua, e fazendo um barulho que não chega a incomodar. Dona Maria está na porta de casa, cortando as linhas de algumas peças de jeans, para arrumar os trocados da quinzena. No rádio, ela ouve um “brega rasgado’’, como dizem por aqui. Distante, eu ouço o barulho de um caminhão, grande, se aproximando. Quando consigo ver melhor,percebo que é um caminhão pipa, branco, a serviço de uma lavanderia, indo buscar água para lavar o jeans que move essa cidade. Ele passa por mim e eu sigo em frente. Agora, me deparo com porcos de 66

rua. Já adultos, estão procurando restos de comida em um amontoado de sacolas plásticas, cheias de lixo, jogadas num canteiro perto de um esgoto a céu aberto - aqui, quase não há saneamento básico. Os cavalos também estão ali, por perto, comendo grama. Na cidade, é comum ver esse tipo de animal nas ruas. Chego próximo de uma lavanderia que também não para aos domingos. Ouço um barulho de água escorrendo. É um córrego com uma água azul, Nele, também há dejetos das casas da cidade. A mesma água, suja, corre até o Rio Capibaribe. Viro à esquerda e entro numa rua com casas simples. Quase todas elas sequer têm reboco nas paredes - por aqui, isso é normal. Mais um passo à frente e chego na rodovia. O barulho dos carros e das motos é intenso. Principalmente hoje, que é dia da feira do jeans, um elemento importante para a economia da região, pois é através dele que milhares de pessoas ganham o pão de cada dia. Atravesso o asfalto e chego na rua do jeans. O barulho dos carros, agora, é coadjuvante: o som da “rádio poste”, anunciando propagandas das empresas locais, é o protagonista, junto às vozes dos feirantes. Passo por vários bancos de feira com jeans e outros tipos de confecção. Agora, é difícil transitar. Di-

minuo os passos para não esbarrar em ninguém. Perco de vista, o final da rua. Escuto alguém dizer: “A feira de hoje foi muito boa, graças a Deus! Vou ter dinheiro para pagar as minhas contas e comprar mais tecidos para fabricar roupas. A gente tem que agradecer todos os dias por existir esse lugar para as pessoas trabalharem”. Fico reflexivo e concordo, mentalmente. Eu encontro um amigo que trabalha em um dos bancos. Ele diz que está vendendo bem e, ao mesmo tempo, reclama: diz que o horário da feira de Toritama é quase igual ao da feira de Santa Cruz do Capibaribe. Isso divide os clientes entre as duas cidades. Despeço-me e vou embora. Entro na parte mais elitizada do lugar, um galpão gigante, onde várias lojas vendem roupas mais caras do que as vendidas na feira. Sento em um banco de um dos corredores e penso como tudo isso aqui é mágico: o agreste das toyotas bandeirantes, do forró, do rio Capibaribe e do pôr do sol bonito, também é lugar de gente honesta trabalhar e ganhar o pão de cada dia nas ruas do jeans. POR DANIEL NASCIMENTO




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