Balizasecult

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G o v e r n o d o E s ta d o d o E s p í r i t o S a n t o Governador José Renato Casagrande Vice-Governador Givaldo Vieira da Silva Secretário de Estado da Cultura Maurício José da Silva Subsecretário de Estado da Cultura Joelson Fernandes Gerente de Ação Cultural Christiane Wigneron Gimenes Gerente do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas Nádia Alcure Campos da Costa

Insituto Sincades Presidente Idalberto Luiz Moro Gerente Executivo Dorval Uliana Coordenadora de Programas e Projetos Ivete Paganini Coordenador de Projetos Danilo Pacheco


© Secretaria de Estado da Cultura, 2013 C O O R D E N A Ç Ã O E D I T O R I A L M á r c i a S e l v á t i c e To u r i n h o REVISÃO Vitor Graize EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Luiza Nicodemos C A PA L u i z a N i c o d e m o s IMPRESSÃO E ACABAMENTO Departamento de Impressa Oficial - DIO TIRAGEM 1.000 exemplares Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) (Biblioteca Pública do Espírito Santo) Ficha VITÓRIA 2013


Natasha Siviero

BALIZA D E N AV I O



P a l a v r a d o S e c r e tá r i o

A palavra é a mãe de todas as manifestações do engenho humano. É por meio delas que construímos nossos códigos de entendimento e absorção do mundo. Ainda que possamos nos manifestar por meio da música e das artes visuais, são sempre elas, as palavras, as estruturas constituintes do nosso pensamento. Por isso, nos causa especial satisfação publicar os livros agraciados pelo Edital de Publicação da Secretaria de Estado da Cultura, exercícios 2011 e 2012. As narrativas curtas e longas, as poesias e as crônicas que compõem esses lançamentos são uma mostra do quanto talentosos e profícuos são os escritores que vivem e produzem nos dias de hoje no Espírito Santo. Diversa em estilo e abordagem, visão de mundo e conteúdo. Publicar estes escritores é dar voz a esta multiplicidade de correntes de pensamento, que em um vasto diapasão estético e filosófico nos entretêm e revelam. E nos alimentam razão e sensibilidade. Levar estas obras aos leitores da Região Metropolitana da Grande Vitória e ao interior do Estado é descortinar universos que promovem a elevação do espírito humano por meio da promoção da arte e da cultura. A diversidade destas obras nos colocou frente a um instigante desafio, que foi formatar edições que dialoguem com formas peculiares e conteúdos distintos em cada gênero literário abarcado. Essa heterogeneidade é fruto do trabalho de autores com singularidades que se refletem nestes próprios conteúdos e formas. Isso levou a um atraso no cronograma das publicações. Por isso, o p t a m o s p o r l a n ç a r, d e u m a s ó v e z . O s a g r a c i a d o s d o s a n o s d e 2 0 1 1 e 2 0 1 2 , c u j a s o b r a s c h e g a m a g o r a a o s m ã o s d o l e i t o r. E s t a s m e s m a s obras serão distribuídas em bibliotecas e escolas de todo Espírito Santo. As instituições que receberem estes livros passam a ter em mãos uma potente ferramenta para desenvolver em seus frequentadores e alunos o espírito crítico, a tolerância, a compreensão de


mundo necessária à construção de uma sociedade mais justa e feliz. Este trabalho é realizado em sinergia com as políticas do livro e da leitura do Governo Renato Casagrande, representadas por ações como a Biblioteca Móvel, que leva livros e suporte para promoção de leitura a bairros em situação de risco da Grande Vitória, dentro das a ç õ e s d o E s t a d o P r e s e n t e , e a B i b l i o t e c a Tr a n s c o l , q u e d i s p o n i b i l i z a acervo de 12 mil livros aos usuários do sistema de transporte público, distribuídos em 10 terminais rodoviários. A todos, desejamos uma excelente leitura. E que os horizontes descortinados por estes autores sejam plenos de novas descobertas.

Maurício Silva Secretário de Estado da Cultura


A vov么. Pelas poesias e por aquele livro que tomei emprestado na casa do rio.



Para Miguel



B e r e n i c e

Já aconteceu de começar a ler um livro mais de cinco vezes e nunca conseguir terminá-lo. É que algumas palavras me consomem. Esse do Ubaldo eu comprei em um sebo e nunca pude sequer iniciar a leitura. “Para Berenice, como tudo mais”, a dedicatória, antes que eu chegasse à primeira página. Ele amava a mulher com tudo e eu nunca (?) saberia amar como a Berenice. Um dia brincávamos de jogos de tabuleiro na casa do Marlon, a tarefa era adivinhar o nome de artistas pelas dicas que os outros jogadores davam. A essa altura, eu já sabia que se tratava do escritor, mas minha vez tardava a chegar e continuavam as dicas. “Tem uma filha chamada Berenice”, disse meu amigo. Era filha dele! Tudo se iluminou e eu me senti mais humana. Eu a desejo desde que é apenas uma ideia. Mas se eu dissesse que desejei somente que viesse com saúde, estaria me atribuindo virtudes que não soube ter. Pedi que viesse com saúde, que fosse menina e tivesse os olhos do pai. Sendo atendida em todos os meus desejos, chamei-a Maria. E a amarei como a Berenice.

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A

L u z

Eu disse a ele que podia, não haveria problema. Seguro, dei certeza. Ele concordou – e não era de se esperar o contrário –, mas depois ficou preocupado. Eu ri do desespero ingênuo dele, ora, já havia dado certeza! Que não mais me perturbasse nesse assunto, e passássemos adiante. Mas não passamos. Como poderia eu ter tanta certeza, ele quis saber. E eu fui obrigada a explicar que isso é coisa de mulher. Que o dom da maternidade é anunciado por uma luz, que nos ilumina e nos abraça no momento da concepção, que nos prepara e abençoa. E naquela noite, ora, ora, eu não vi a luz. Uma quinzena depois, só por desencargo, fiz o teste de farmácia: positivo. De sangue: positivo. De sangue por outro método: positivo. Em outro laboratório: é... Os que esperam ainda uma crônica hão de zangar comigo. Perdoe, mas é só um conselho que tenho a dar nessas linhas. Um conselho simples, mas valioso, que se resume a uma máxima: a concepção, minha amiga, pode ocorrer de luz apagada. E que Deus nos abençoe.

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T a p o e r

Disseram que não posso centrar a crônica no meu próprio umbigo, mas hoje decidi não me policiar: confesso que tenho sido egoísta. Falo de um caso que poderá não fazer sentido a mais ninguém, mas conto como se importasse. Espero, pelo menos, que quem tem uma avó possa me entender e sorrir, com compaixão por mim ou por ela. Detesto mesquinharias. Sou tão desatenta a coisa pequena que faz melhor você, meu amigo, desistindo de me mandar um bolo, caso essa possibilidade já tenha passado por sua cabeça. “Natasha não devolve Tupperware”, é o que minha avó está espalhando por aí. Mas se você não tem contato com a sabedoria da velhinha, me encarrego eu mesma de alertá-lo: não devolvo. Primeiro foi um bolo, depois brigadeiros, gentil vovó. Mas tenho cá minha teoria, que antes ela espera pela minha gafe. Não quer me agradar, minha doce vó, quer o gosto de me acordar antes do usual e dizer que tudo desanda em sua cozinha sem os Tupperware (qual é o plural de Tupperware, meu Deus?). Juntei os ditos e os meti dentro da bolsa, já imaginando que minha fama de desleixada se agravaria ainda mais pelo fato de estar devolvendo os potinhos vazios. Minha avó mora ao lado da Casa Útil, pensei. Não seria melhor comprar cinco potes novos por 1,99 a atormentar uma pessoa assim tão desnecessariamente? Concluí que sim, ainda mais sendo eu a pessoa. Nesse momento passou Aline, que tomou uma das vasilhinhas da minha mão, menos interessada na história que contaria e mais no som que tirava do plástico. Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí, levando um violão debaixo

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Ta p o e r

do braço. Em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro. E se houver motivo, é mais um samba que eu faço. Batucamos as duas por todo caminho em direção à segunda aula e quem esbarrou conosco batucou também. Mas, ah!, nosso som era muitíssimo mais bonito, porque eu tenho avó e um Tupperware vazio na bolsa.

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M a n e i r a C h ã

P r á t i c a d e

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F a z e r

D e n t r o

Uma mulher que não faz o serviço de casa serve pela libido. Mas para que serve uma mulher sem libido que não faz o serviço de casa, é o que tenho me perguntado nesse cinco de março. Há muito se passou o cinco de março, mas ela faz como se nem se desse conta porque tem o bloquinho. Esse bloquinho serve um pouco para distrair as pessoas: a moça cuida do bloquinho como um tesouro. Ninguém pode pegar o bloquinho e nele ela escreve tanto, tão compenetrada e com mistério, que as pessoas ficam se perguntando: o que será que tanto a moça escreve no bloquinho? Ao invés de também se perguntarem para que serve moça distraída, sem libido e que não faz o serviço de casa.

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C o n c u r s o

P ú b l i c o

Papai disse que acabara de constatar que estava ficando velho. Isso foi quando, passando os canais da televisão, viu o padre Fábio falar sobre o valor das coisas, o que foi o suficiente para levá-lo a refletir sobre aquilo. Concordei que ouvir o padre na TV era um forte indício do que constatara, mas depois também me senti bem mais velha que meus 22. Meu pai explicou o argumento do padre – que as pessoas podem atribuir diferentes valores às mesmas coisas – usando meus irmãos de exemplo. Lá em casa, o ritual das provas na escola se repetia sempre, só o que mudava era a série. Minha irmã, sempre compenetrada, nunca estava suficientemente preparada para a matemática. Apesar de estudar constantemente, na semana da prova dobrava a atenção às equações. Depois de abrir mão das brincadeiras dos meninos do prédio e dos passeios em família, ela fazia a avaliação e voltava desiludida. Havia ido mal. Reclamava por sucessivos almoços e nós, que já estávamos acostumados, nem fingíamos interesse. Depois lá vinha ela com uma cara lavada e um dez na bolsa, que não era surpresa para ninguém. Já meu irmão nunca se deu com português, até hoje não se dá. Às vezes precisava mesmo de nota ao final do bimestre porque achava as palavras longas e as cortava pela metade. Quando sabia da prova, mamãe o procurava: – Juju, você estudou? Minha mãe cumpria seu papel, mas a verdade é que meu irmão tinha sempre a mesmíssima resposta, acompanhada de um sorriso em linha que cobria meia boca: 16

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C o n c u r s o

P ú b l i c o

– Mãe, a matéria é tão fácil, tão fácil, nem preciso estudar. Já sei tudo porque estudei para a prova passada. Mamãe dizia que tinha medo dessas respostas do meu irmão, mas eu a aconselhava que o deixasse. Afinal, ele já tinha nove anos e sabia de suas responsabilidades. Eu, que já trabalhei com funcionários públicos, nunca imaginei que fosse me prestar a um concurso e nem que fosse incentivar alguém nesse caminho. Mas também não pensei precisar tão cedo do salário pouco de jornalista iniciante. E eis que nos inscrevo e me pego fiscalizando Rafael: – Essa matemática de concurso é tão fácil, mas tão fácil, meu bem, nem dá gosto. Meu irmão hoje está se formando engenheiro e jura que não sente a menor falta do português que deixou para trás. Mas quando me lembro da nota apertada e do sorriso meia linha que ele trazia no rosto, jurando não entender o que acontecia, me pego, feito velha, cobrando Rafael que estude. E tenho saudade da sabedoria que tinha aos dez.

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A m a r e l a s

A casa é grande e nova, e essas paredes amarelas... A cozinha está coberta de liquidificadores e os armários de cristais, e essas paredes amarelas. Tudo é novo, novíssimo, tudo é impecavelmente novo e limpo, meu Deus, como eu tenho saudade da minha casa! Com as coisas e barulhos de casa. Como eu tenho saudade da minha casa de paredes branquinhas e barulho de irmãos. Mas eu quero a casa em que eu não era visita. Que a chegada sem solenidade valia somente um olá cotidiano. Eu quero a casa da minha coberta e da minha varanda, mas aonde quer que eu vá sou visita: na minha casa ou nessa, das paredes amarelas. Eu fui expulsa ou fugitiva? Eu não tenho medo de querer voltar, mas eu quero, profundamente quero ter um canto só meu (dentro dessa casa vazia nada é meu). Dizia que quero profundamente ouvir os barulhos de casa, sentir o cheiro de casa e com a naturalidade que é chegar a um lugar a que se pertence. Mas nada do que eu faça faz com que volte. Casar é sonho e uma tristeza profunda. A culpa de quem abandonou e dor de quem foi abandonado. Não há nada nessa casa que eu conheça, nem eu. Uma mulher casada que é desesperadamente filha e irmã e está profundamente sozinha.

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C a s a m e n t o

Estudar é mais difícil para quem é casado. Aliás, digo que estudar é muito difícil para quem é casado e não tenho afirmado verdades com tanta frequência. É que quando o padre diz que dois se tornam um, ele diz como se soubesse. Tudo o que precisa de um tempinho seu, um lugarzinho seu, um minutinho de silêncio que seja (ah, o silêncio!) é uma guerra que se tem que travar. É que um quarto é pouco, uma televisão é pouco, uma casa é pouco e mesmo duas casas seriam pouco quando de repente se desaprende a ficar sozinho. Não digo por você, mas por mim, e em respeito a quem sabe uso “eu”, mas a verdade é que acredito que fatalmente nenhum de nós sabe. Eu não sei comer sozinha, não sei dormir sozinha, não sei pendurar a roupa sozinha, não sei cozinhar sozinha – neste caso é bem verdade que cozinhar eu não sei de qualquer maneira. Disse que não tenho dito muitas verdades, mas permita-me dizer ainda mais uma. Preciso ficar sozinha para fazer qualquer coisa que não sei. Sei que preciso, mas não tenho conseguido. E cansada de culpá-lo, vou culpar a quem? Pedi que ele saísse pois é barulhento e eu precisava estudar. Mas o frio e essas paredes com que já me acostumei... Ouço barulho de chave e não é ele, o elevador e não é ele, olho da janela e vejo que ainda nem no quarteirão se pode vê-lo. Mais dez minutos e eu também precisarei sair.

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Q u a d r i l h a

O menino pegou a carta, puxou o ar longamente e confirmou: era dela o perfume. O envelope veio todo beijado de batom e cheio de adesivos coloridos. “Felipe te acho muito bonito e gosto de você namoro com o Marcinho por interesse que pena sua mae não deichar você namorar gosto de você, Luiza.” O interesse da Luiza não saiu da minha cabeça. Tinha oito, no máximo. A prima do Felipe, que melhor entende do universo feminino, me explicou que o interesse era o status de comprometida. O que seria de Luiza se aos oito anos não tivesse um namorado? Agora entendo Maria. Pobre Maria. Mandou um scrap no Orkut do meu vizinho de nove anos e eu a xinguei. Desculpe, Maria. Desculpe-me, mãe da Maria, mas eu disse que a senhora não ensinou nada a sua filha. Chamei mesmo sua filha de periguete. Desculpe, Maria. É que ela mandou um recado perguntando para o pequeno se ele a achava gata e pediu sinceridade. Ela é bonita, coitada. Achei que fosse uma questão de autoestima, mas entrei na página dela e vi vários recados de diversos garotos confirmando que ela era muito linda. Concluí que se tratava mesmo de vaidade e galinhagem. Perguntou a todos os garotos entre sete e dez quanto pôde, e tentava fisgar também o pobre coração do meu vizinho, que só queria poder colecionar em paz figurinhas de desenho japonês, tazo de chips e recados de Orkut. Encontrei com ele por acaso no elevador e aproveitei para alertá-lo. “Quem é essa tal Maria, Chico?” – É uma chata da terceira C.

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Q u a d r i l h a

Pobre Maria. A bonita Maria, que nĂŁo tem namorado. Pobre Maria que ĂŠ da sala da Luiza, a menina de cabelo castanho e do Ăłculos grosso; a menina que morre de amor por Felipe, mas namora Marcinho. A Luiza tem namorado, Maria. Corre, Maria.

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I r m ã o

M a i s

V e l h o

Quarenta minutos de trilha para chegar à praia onde o rio Jeribucaçu deságua no mar. Os poucos que encararam a caminhada aquele dia estavam na água: é o surfe que justifica as longas subidas. Para mim, a perspectiva de praia vazia e rio quente pareceram suficientes. Quando chegamos ao rio, meu pai e minha mãe conversavam com dois miúdos locais e riam. Papai me explicou que eles cobravam dois reais para levar os turistas até a Cachoeira da Usina e quis ser engraçadinho: – Presta atenção, filha. Eu vou pagar os dois reais e seguir Romário. Você me segue. Não vale olhar pra ele, senão terá que pagar também. O menino respondeu rápido. Era esperto e baixo. Devia ter uns 10 anos. – Olhe, se eu ia cobrar pra levar menina bonita... – E ainda de zóio azul, completou o outro pequeno, de nome João, sem descuidar os olhos dos peixes que passavam no rio. – Então fica acertado, disse meu pai, sem o menor interesse real de levantar do rio e se aventurar na caminhada. – Fica. Só precisamos decidir quem levará o senhor. Papai propôs uma brincadeira: faria uma pergunta e quem respondesse mais rápido seria o contratado. Foi assim: – Somos oito pessoas e vocês cobram dois reais pra levar cada uma. Se eu fosse pagar pra todo mundo, quanto eu daria a vocês? Ninguém respondeu. Meu pai simplificou: 8x2. Enquanto João respondia números absurdos sem parar, Romário mantinha

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a cabeça submersa, como quem não estava ouvindo. – 8x2. Passou outro pequeno, ainda menor. Com a cueca sobrando por toda a perna: roupa do irmão mais velho. – Se esse aí não sabe nem ler... João continuou a brincar com o menor. Contente e resignado, como costumam ser os irmãos mais novos, com a vida e a roupa herdada. Um peixe grande passou, fazendo os meninos gritarem por Romário, que estava já na outra margem do rio. Sentado, com seu calção novo e justo, não deu ouvidos aos miúdos. Ficou com sua dor, que eles não puderam entender.

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C h á

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L i m ã o

Minha avó diz que dor na gravidez se trata é com chá, mas na dúvida procurei um médico. Tinha na cabeça dois nomes de maternidade que ofereciam plantão, só que a atendente da primeira informou que àquela hora não havia obstetra por ali. Na segunda, me mandaram para o terceiro andar, mas não sem antes alertar que o médico estava no meio de uma cesariana e que duas mulheres já esperavam para serem atendidas. Subi. Uma das mulheres não passava bem e andava amparada por uma enfermeira. A outra era gorda e eu não sei dizer se também estava grávida. Fui esperar no sofá, perto do bebedouro. O corredor era branco e as luzes todas enfileiradas, uma após a outra, uma após a outra. A flor subia pálida no jarro pálido. As caras das mulheres, das enfermeiras, da atendente negra: tudo muito branco e silencioso. Só o que se ouvia era uma mulher gritando ao fundo, espaçadamente e com dor, o que me levou a me perguntar se em cesariana também se grita. Creio que se gastou uma hora. Quando o homem alto – que não sei se marido da mulher que gritava ou se da que esperava amparada na enfermeira – passou para buscar água pela quinta vez, me levantei e fui para casa esquentar água, limão e mel.

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N a v i o

Hoje eu queria escrever bonito e claro como o sol do bebê. É que acordei na hora do sol e, de toda casa, é do quarto do bebê que se vê um pedacinho de mar e se pode sentir o cheiro dele. Também há de ser filho do mar o meu filho. Entre dois prédios encavalados, e entre nuvens, o sol do bebê é redondo e laranja e forte e cheio de esperança. Um sol que vence as nuvens e os prédios, mas que nessa hora ainda é pequeno, e colore tudo, como criança. Os navios, que são grandes, imensos, navegam parados entre os prédios, como se tivessem sido postos ali por uma baliza perita. Cuidar de neném deve ser estacionar navio. Eu disse que não estava preparada para cuidar de um menino – embora fosse menina, eu também diria. Mas um navio imenso está estacionado numa vaga pequena e é uma jangada minúscula que avança e vence o mar. Criar menino é navegar jangada. Agora não se vê mais nada porque o sol já venceu tudo e brilha muito forte na altura dos olhos. Alto, majestoso e soberano: vejo da janela a luz do sol do mundo, mas que não tem a doçura pequena do sol do bebê.

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M e n i n o

– Vai se chamar Berenice – respondi à médica, que girava aquele trem gelado na minha barriga. – Graças a Deus, não vai – disse ela, que não gostou do nome. Meu marido deu um salto da cadeira, com um sorriso de orelha a orelha. Explicaram-me, antes que eu conseguisse entender: – É menino. .... Por mim coloco Benedito, mas o coro da galera “Benedito não, coloca Bento”, e papai sempre categórico: – Bento que bento é o frade. Minha irmã quer Theo, que significa dádiva de Deus. Mas para mim Theo é apelido de Theobaldo e eu quase sempre ignoro as sugestões da minha irmã, que sempre vêm faltando letra. Enzo, que falta o R; Luca, que falta o S; Nando, que falta uma sílaba inteira; Léo, que falta mais do que tem. Não é que eu não goste de nome pequeno, aliás, meu preferido é Brás, que considero muito nobre. Rafael diz que é nome de caminhoneiro, pode ser, mas caminhoneiro nobríssimo. Ele quer Omar. Omar é um homem velho e triste que passou a vida sentindo que faltava alguma coisa, sem perceber que era o S que faltava. E que se existisse, continuaria miserável, o pobre. Só não fico com Brás, e muito a contragosto, porque significa gago. Então, escolhi Samir. 26

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M e n i n o

– Não era menino?, perguntou um amigo, mui ignorante. Depois me disseram que Samir significa companheiro falante. E eu, que imagino meu filho muito articulado, mas não tagarela, fiquei novamente a chamá-lo menino.

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C r ô n i c a

Eu disse a verdade e não foi por virtude: o short me dava poucas opções. Ninguém poderia chegar de um compromisso assim de jeans e tão cheirando a sabonete. Agora não sei por que minto. Eu disse que namorava porque amei de um jeito que deu vontade de contar e porque culpa foi só um atenuante para quando eu me culpar mais tarde. À tarde, tive mesmo a imensa certeza que nascemos para isso e viemos em dupla. E eu encontrei Rafael. Minha mãe anda com olhos vazando sangue de tanto trabalho com os negócios da família, nos quais eu deveria ajudar. Mas não foi culpa por não estar trabalhando o que eu senti, e sim o desejo de que minha mãe deixasse tudo para lá e parasse também naquela tarde. Na terça em que eu só tinha um compromisso no fim da tarde, para o qual eu começava a me atrasar, Rafael continuava a brincar com as minhas costas sem me dar o menor assunto, como se elas – as minhas costas – fossem um ser separado de mim. Finalmente ele disse: aula de crônica?! Pois nunca ouvi dizer que se ensina a escrever crônica e sai você com um texto mais verdadeiro daqui do que da aula. Eu disse que me atrasei porque namorava e o professor me perdoou. Aquela uma hora a mais poderia mudar minha vida, dependendo do caminho que eu tomasse, disse o professor, não sei se imaginando uma discussão – o que na hora me pareceu mais justificável e eu deixei que ele pensasse em uma briga. Mas eu só tinha um caminho: o da Serra para Vitória, que errei mais de uma

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vez porque estava com pressa e era ele quem dirigia. Foi um amor que me pareceu simples pela primeira vez. A meia hora a mais foi só para dizer a Rafael que não se desculpasse: nunca fez nada de errado. Eu disse “não se desculpe”, ao invés de “eu te desculpo”, e aquilo foi muito para mim. Eu gostei de me ouvir falar daquele jeito, mas ele não percebeu. Dizia às minhas costas que namorar é melhor que Rubem Braga. E elas concordavam.

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P o b r e

M e u

P a i

Pobre meu pai, sete olhos vigiando o quintal, quatro bocas mastigando o jantar e o meu coração de vidro se quebrou. O som que corta mais forte no remorso é o som da decepção de um pai que não teve pai. Ah! Como eu jamais teria decepcionado o meu se pudesse. Mas só eu sei o peso que é ser a filha do meio quando se esperava um menino. Só eu sei o que é ser mais amada quando não era esperado. Contra todas as expectativas é de mim que anseia abdicação. Tende piedade, meu Pai, por tudo e por agora. E eu viajei no dia em que ele ouviria a música sozinho. Pobre meu pai. Mas a minha vida inteira espera e não pode mais. A própria palavra espera já esgotou de ser dita. Só que ele, de certo, não gritará sua decepção e eu não sei se pronunciarei ou não minha justificativa. Talvez deva mesmo desculpas.

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S a l

Ainda estou suja de Marcel. Já tomei cinco banhos e ainda estou suja. Essa não é uma sujeira externa que se lava com água de chuveiro. É sujeira que só se lava em água imensa, que só se purifica com o mar. Eu estava tão seca que bebi água do mar. Agora tenho mais sede, mas já não estou seca. Ah! Como é bom não estar seca. Estou inundada e imunda. Estou tão imunda que preciso de mais água do que precisei quando estava seca. É que eu o engoli. Quando vi Marcel eu estava sedenta e o engoli. Mandaram engolir e agora me mandam esperar. Mas se esse sal não sair de mim, logo não resta nada, porque tudo enferruja devagar e constante. Ah!, não me peçam para esperar! Porque ele corre no meu sangue e me corrói. Preciso não ser mais ele! Preciso que ele sue de mim. Logo enferruja tudo, porque sal corrói feito remorso. Eu corro contra o tempo e contra o sal. Eu corro para suar Marcel de mim, é por isso que eu corro tanto! Eu corro de Marcel porque o remorso dói. Mas se eu me livrar dele vou ser de novo seca? Vou ficar de novo com tanta sede a ponto de beber água do mar? Eu suo Marcel nos sovacos e na virilha. Eu suo nos cabelos, e ainda há tanto sal! Eu estou suja e preciso me lavar em água de sal. Como gordura que só se limpa com gordura. Sei que ele precisa me enxugar no final de tudo, beijar meus olhos quando estiverem salgados do remorso que corta. Ele precisa, com a própria boca, sugar de mim o sal dele. O branco e sujo sal dele. E eu devo ir quando ele chamar. Gritar de alívio, dor e remorso. Só assim, quando finalmente eu estiver imunda, só assim eu me purifico.

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C r ô n i c a

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M a g r i n h o s

“Minha filha, você só gosta de menino canalha”, constatou meu pai. “Todo canalha é magro”, completou Nelson Rodrigues. Agora a questão: eu gosto dos magros porque são canalhas, ou dos canalhas porque são magros? Magros pretos, russos, brancos. Magros sim, por que não? Se há nesse mundo coisa mais admirável que perna fina de menino magrinho, só mesmo costas naturalmente desenhadas pelo puro desleixo. Ai! Contra os gordinhos nada, não, nunca. Mas bombados não, veementemente não. Bombados aos bombados! A nós, os homens. Deitada em um colchão de academia, via pelo espelho quatro panturrilhas masculinas (?) (quando chega ao status de panturrilha, meu bem, é caso perdido). Admiravam-se mutuamente e não se poupavam elogios. Meus olhos, no entanto, foram atraídos à recepção: duas canelas magrelas faziam matrícula na esperança burra de tornarem-se panturrilhas. Que pena, que pena. Passou em minha frente um par de cambitos. “Ô, lá em casa!”, pensei. Foram direto para a adutora. – Que pena, que pena!

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A

C a s a

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S i l v a

Os barulhos do relógio são terríveis para o narrador. Todos os outros acham graça, mas quem conta a história tem que ceder a vez sem terminar, conformando-se com a derrota, ou insistir em falar mais alto que o coro dos ouvintes. Até hoje meu irmão rói as unhas quando alguém lhe interrompe o caso alertando que se trata de um conto já contado. Assumo minha parte na culpa: quando era criança sabia ser má. Infelizmente ando desaprendendo, mas na disputa por voz à mesa ainda ponho meu irmão qual criança, como se pudesse marcar a idade numa mão. Se ele tinha cinco, eu contava seis e minha irmã oito, mas é bem provável que a brincadeira date de antes, de tempos imemoráveis. Tudo artimanha do meu pai na disputa pela atenção de mamãe, e que eu também sabia usar para o mesmo fim (graças à grande memória que tenho e à maior impaciência para história mal contada). Desbancava os dois. Meu irmão mais visivelmente, já que minha irmã mais velha nunca queria depor contra sua própria teoria: que a maturidade morava na terceira série (e se mudava com ela sempre ao final do ano). Na casa dos Silva sempre foi assim: quem quiser pode repetir uma história. Três, quatro, cinco vezes. Mas o que se arriscar na arte de contar um caso repetido deve estar preparado para as badaladas do relógio. A mania meu pai trouxe de um tempo em que os relógios marcavam com sons os quartos de hora. Da época em que se ouvia a hora passar. Tam ran dan dan, dan dan dan dan. Taran daram ram ram ram ram se cumpriam diariamente do mesmo jeito.

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S i l v a

Hoje, mesmo com os relógios digitais, os badalos ainda podem ser ouvidos lá em casa, ao meio-dia, quando estão todos à mesa. Até no meio daqueles dias em que nada acontece, só eu e meus irmãos estamos sujeitos ao coro desaprovador da plateia. Meu pai não. Meu pai conta as mesmíssimas histórias e os ouvintes escutam com atenção, impacientes com as pausas para beber um gole de suco. Não é uma questão de respeito, embora possa parecer. É que ele acrescenta fatos, muda os personagens, inventa novas vozes, de maneira que os mesmos acontecimentos são cada vez mais outros e mais interessantes. Outro dia a conversa à mesa era na casa de Rafael. A mãe, a avó, o pai e eu. Falavam sobre Cachoeiro de Itapemirim, da onde vieram. Meu sogro defendia que Cachoeiro é um lugar terrível e todo mundo discordava. A não ser eu, é claro, que não sou besta de tomar partido em casa de sogro. Mas ele, que não gosta de mim, quis meter-me na conversa: – Você conhece Cachoeiro, Natasha? – Só de Rubem Braga. Ele nunca teve a curiosidade de ler um cara que escrevia sobre um lugar onde nada acontece, foi o que me disse, dando fim a conversa. Essa semana, roubaram o relógio da casa dos Braga, alguém contou. Havia um bonito e de parede. Ocorreu-me que se o relógio roubado marca as frações de hora com badaladas nostálgicas, como o da casa de meu pai, foi por causa dele que Rubem Braga aprendeu a contar histórias em Cachoeiro. Foi para não ouvir as badaladas da audiência.

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P r i m e i r o d o

P a l a v r ã o

M e n i n o

A cozinha lá de casa dá para a área dos meninos, que é a quadra de futebol. É um som gostoso de criança correndo que lembra minha casa de criança. Só que lá o barulho dava para os quartos, e mamãe sempre dizia que bom de fazer dormir no domingo é barulho de menino. Os vizinhos discordavam. Eu por minha vez não me incomodo em lavar os pratos em companhia dos pequenos, muito pelo contrário. Eu estava com os pratos e Rafael com as tábuas – porque é de arrumar cozinha o dia seguinte à pizza. Mas não nos importávamos com as tarefas e tudo seguia cooperativo e harmonioso, até que ele: – Estou com pena dos meninos órfãos lá em baixo. “Meninos órfãos” apertou meu coração de um jeito que a minha tristeza pelos meninos foi imediata. Disse simplesmente “Coitados!”, com a mais pura compaixão. – Menino pequeno desse gritando “porra” para o prédio todo ouvir, só pode ser mesmo que não tem mãe nem pai. Ah!, foi um alívio! Os meninos não são órfãos, concluí finalmente. Àquele momento meu coração já era todo pelos meninos e eu achava que “órfãos” era palavra muito mais feia que “porra”. – Por que os meninos não podem gritar porra? – Porque é palavrão. – Ah! Quando o nosso filho falar um palavrão e você vier dizer que ele não pode falar porque é palavrão, eu vou rir junto com ele.

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P r i m e i r o

P a l a v r ã o

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M e n i n o

– E você pretende que eu diga o quê? – Não sei. Por que ele não pode falar? – Porque é palavrão, porra! – Ah tá! – Você quer o quê, Natasha, que eu explique para ele o que é porra? – Olha, o menino topou o pé no chão quando foi chutar a bola e disse porra, sem significar porra nenhuma. Só interjeição de menino que errou a bola. Discutimos por mais alguns pratos. Termino com o meu argumento porque o considerei definitivo, mas ele não. O menino um dia terá um nome, um dia nasce, um dia aprende a falar, um dia entra na escolhinha e um dia, ele também, estará na área dos meninos. O menino um dia fatalmente chutará o chão ao invés da bola, e eu e Rafael teremos um impasse.

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S o g r a

Natasha disse que não vai colocar cortina porque já tem blecaute. Na casa dela não tem uma cortina. Nem na sala, nem no quarto do bebê! Eu, quando casei, era pobre de fazer dó, não tinha um tostão furado, mas no quarto e sala em que eu morava fiz do quarto de empregada um quarto lindo para o neném. Fiz tapete e almofada, enfeitei o bercinho de bordado e de crochê e comprei uma cortina branca de tecido fininho. Esses meninos ganharam tudo, tudo! A casa montada e limpinha, e não são capazes de comprar uma cortina para o quarto do bebê. Olha, pode ter faltado tudo na minha casa. Pode ter faltado do bonito e do conforto, mas ninguém pode dizer que faltou cortina de tecido. Nunca faltou cortina de tecido! E quando tive dinheiro comprei uma persiana.

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M ó v e i s

Não tenho muita paciência para coisa pequena e já disse isso tantas outras vezes que quem leu pode tirar duas conclusões, ambas corretas. Que acho tudo pequeno, que não tenho muita paciência. O problema da impaciência não é ela em si, mas quando é combinada com a mesquinharia, outra coisa para a qual não tenho a menor paciência. Vez ou outra, porém, me pego economizando centavos e sobram os tomates na gaveta. Tomates são mais baratos que o molho pronto, mas quando se tem que cozinhar sem saber, você descobre que molho de tomate serve para fazer macarrão e que macarrão é bom porque é rápido. Assim, o tomate tira toda a beleza do macarrão quando se tem que fazer molho em casa. Laranjas também. É melhor comprar de uma vez o suco, senão sobram as laranjas com os tomates, que até espremer as frutas toma-se água mesmo. É provável que a próxima vez que for ao supermercado compre novamente tomates, laranjas e batatas para a massa de nhoque que suja toda a casa. Mas móveis da Tok&Stok, esses eu só compro montado e ainda mando entregar em casa.

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C a s a

Desde que Miguel chegou e as roupas para passar aumentaram consideravelmente, cogitamos contratar uma empregada. O problema é que como jornalista recém saída da faculdade, gastaria meu salário inteirinho na mordomia. Entre trabalhar para outros e trabalhar na minha casa, ganhava mais ficando em casa e cuidando do meu filho, que ainda mama no peito. A certeza de que este era o caminho durou alguns meses, mas foi Miguel dormir mais de 4 horas por noite e percebi que estava errada. O serviço de casa é ingrato. E sendo a casa a sua própria casa, é um trabalho ingrato que nunca acaba. Como estava decidida a amamentar, pensei em um caminho intermediário: faria uns freelas em casa. Assim, com meu primeiro cliente chegou Ivani. Ivani é uma moça boa, tive muitas indicações. O dia que ela bateu lá em casa foi um dia de muita alegria – havia tempo que não escrevia uma linha. O empresário M. Souza – Natasha, como é que liga essa máquina de lavar? Esses equipamentos modernos… O empresário M. Souza acaba d – Natasha, onde que guarda essas vasilhas? – Nas prateleiras. – Os copos: enxugo ou ponho para escorrer? – Coloca para escorrer. O empresário M. Souza acaba de

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– Eu limpo a varanda ou passo as roupas? O empresário M. Souza acaba de inaugurar – Natasha, não tem produto de limpeza! – Não? Eu fiz compra ontem e poderia jurar que aqui em casa tem dois vidros de álcool. – Álcool tem, mas tá faltando produto de limpeza. Na tentativa de demonstrar menos minha ignorância, joguei verde: – Qual produto de limpeza? – Todos – respondeu, não me dando pista alguma. O empresário M. Souza acaba de inaugurar seu restaurante especializado – Natasha, faço o que para o almoço? – Tem o quê? – Só tem carne moída. – Então faz carne moída! – Mas faço com molho de tomate, refogada, com inhame, com batata.. Procurava as respostas certas entre os vinte tipos de produtos de limpeza e as intermináveis formas de fazer carne moída. – Refogada?! O empresário M. Souza acaba de inaugurar seu restaurante especializado em frutos do mar. – Natasha, só mais uma perguntinha...

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M o n o g r a f i a

Já não é o primeiro que acusa que tenho andado por aí arrastando chinelo e barriga. Dizem que em nada me sacrifico pelo fim do curso, ou pelo bem do curso ou pelo bem do fim curso. Ouço como se fosse rio e acho graça: o curso segue sozinho, penso. Insistem que paro em casa menos que nunca. É verdade, mas há tempos ando desconfiada que as palavras estão mais por aí que pelos livros. Aliás, elas estão todas por aí, que não me sobram meia dúzia para completar o parágrafo. E se digo que não estão pelos livros, é porque ainda nem amanheceu e eu já as procurei em dois, mas elas me faltam o tempo todo, para tudo. Acredita se eu disser que hoje ainda não disse uma palavra? Tirei o dia para estudar, nem terminou de amanhecer, já li dois livros e não disse nada. Na praia, certamente, a gente é farta, o assunto rende e as palavras jorram como areia. Acusem-me todos, mas amanhã, se der sol, não me venha falar em livro.

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R e c e i t a

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M e n i n o

Se me perguntam o que tenho feito, digo que estou preparando menino. Que me desculpem as outras mulheres e me desculpem os que não concordam, ou não desculpem, mas isso é coisa muito grande. Digo que é das maiores, de modo que não só fila de banco, mas tudo que é pequeno (comprar detergente, cozinhar feijão, cortar o cabelo) deve ser poupado às grávidas. Eu não sou daquelas mulheres que vai bater no peito e dizer que trabalhou até a hora do neném, com pé inchado e cabeça nas nuvens. Eu que tenho peito estufado menos de orgulho e mais de sangue e mais de leite. A sala é pequena e as meninas estão gripadas. Não devo ficar perto da gripe por recomendação do médico. E só devo ficar perto de quem realmente gosta de mim, porque pior que gripe é mau-olhado. Mas a verdade é que acredito no santo forte e não acredito que não sei quem viajou para a Itália para comprar móvel é lá notícia que se dê. A verdade é que assessoria de imprensa é fila de banco. É coisa pequena para quem está preparando menino.

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L i n g u í s t i c a

Linguística definitivamente não é para mim, especialmente se faz frio. Me meti a estudar a análise da narrativa: a narrativa como discurso, o discurso como frase, para que enfim caibam métodos. Não consigo concentração porque não me dou com estruturas e há barulho de guitarra pela casa e faz frio. Peço que pare a guitarra, mas ele só abaixa. Leio algo sobre níveis de descrição da frase e ouço a guitarra mais que as palavras. Acho chique quem sabe linguística. Depois que ganhei xícaras tenho tido mais gosto pelo chique. Mas ou eu paro com o estruturalismo ou ele para com a guitarra. Aliás alguma coisa em mim diz que ainda que ele pare com o barulho, eu paro com a linguística, que é algo pretensioso demais para quem só gosta de juntar palavras ou vê-las juntas. Ele foi para a rua e não sei se levou a guitarra. Sei que faz frio e o barulho do filtro me incomoda mais quando a casa é vazia. Paro com o livro porque a casa vazia me incomoda mais e eu prefiro uma narrativa sem estrutura a esses métodos que me enjoam de narrativas, como os médicos, que de tentar entender, perdem o interesse pelo homem.

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I v a n i

Ivani não vem mais. Pediu conta hoje, cabisbaixa, e cabisbaixa saiu. Não deu um mês aqui em casa. Com duas semanas, achou demais. Achei mesmo que ela não estava se acostumando com a liberdade lá de casa. Sem hora para chegar, sem hora para sair, sem dia certo para trocar os lençóis. - Troque quando estiver sujo, Ivani. Como o salário era pouco, não achava direito cobrar qualquer coisa de Ivani. Mas ela não se acostumou à falta de um lugar para guardar as coisas, de uma prateleira para cada coisa e para tudo me perguntava, onde fica, Natasha, cada coisa tem que ter seu lugar. A hora de acordar é a hora do Miguel, a de comer é quando dá fome. Ivani, pode almoçar a qualquer hora, eu aqui vou esperar Rafael. Ivani é uma pessoa boa, de uma bondade triste de mãe. Uma bondade triste de não sei o que mais. Só sei que ela só ri e tem um marido bem mais velho que morava na roça e que ela diz: – Ele é bom para mim, é velho e muito sofrido. Ivani não se acostuma com a liberdade, eu pensei. Mas vem ela um dia de manhã com sua roupa de ir embora do serviço e me mostra a suprema liberdade. A liberdade que só tem quem não tem nada. A liberdade de não querer mais e sair. Sem outro emprego, sem outra fonte de renda, que seja. A gente se vira. A liberdade de quem antes pode escolher as poucas escolhas que tem. Ela escolheu o tempo todo. Eu querendo assinar carteira e ela com um papo de que vocês tem que me testar antes. Ela é que testou e escolheu sair da casa que não

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I v a n i

tem lugar de guardar as coisas. Ontem fiquei com saudade da rotina, desde que casei não tenho uma. Com o neném, tive que instituir uma rotina simples, mas é a minha própria regra e posso quebrá-la a qualquer tempo. Ainda estou me acostumando a isso. Ivani não se acostumou. Ivani, de sempre, tem sua suprema liberdade e foi embora sem se justificar, embora eu não tivesse perguntado. Vou ter que arrumar outra moça que bote um pouquinho mais de sal no feijão. Outra moça menos perguntadeira.

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T r a b a l h o

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As contrações eu ainda não senti, mas é essa água que escorre que dói. Eu ainda precisaria de tempo, incontáveis em meses e semanas, para me preparar para dividir o neném com o mundo. Essa que é a dor de ser mãe. Não são as semanas mais gorda e inchada, são esses minutos que se arrastam – que se arrastem! – os minutos que ainda o neném não tem nome e é só para mim. Os outros se ocupam com roupas, sapatos e toalhas e todos ao redor se preocupam em ficar por perto, pedem licença para sair. Mas saiam, saiam e me deixem sozinha com o bebê. Depois eles quererão ver, pegar, dar banho no meu filho. E eu o quero tanto meu, em mim, quero para mim o meu filho que, meu Deus, é do mundo.

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Á g u a

Todo mundo cansou de aconselhar que fizesse fotos, mas eu disse que era uma questão de honra passar por cima dessas coisas cafonas, com sapatinhos e o nome do neném escrito de batom na barriga. Mas cada vez que desce água eu vejo a barriga murchar e a seguro como se pudesse contê-la (que sou eu) conter-me. As pessoas eufóricas se perguntam e me perguntam como será o neném, será galego? Eu, que nada pergunto, vejo minha barriga descer em água. Somos um: eu, ela e o neném. Ainda não sei me separar deles, mas o líquido amniótico escorre, eu escorro e não há mais tempo. Há um parto a ser feito.

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A primeira vez que me deparei com o que posteriormente passei a chamar de “pressão social das pessoas na rua”, não dei a menor importância. Tinha cinco anos e o cabelo dourado cortado reto com uma franjinha na testa. Era mesmo uma criança linda. Tinha, contudo, o defeito de escolher minha própria roupa e a convicção de que qualquer blusa valia para qualquer short e, sobretudo, que minha sandália rosa de solado de pneu valia para qualquer vestido, o que atormentava a minha mãe. Nesse dia saíamos a um passeio e mamãe conseguiu empurrar-me um vestidinho de vitrine e um sapato preto de boneca com laço, mas não houve jeito de pentear-me o cabelo. Ninguém me convencia com o argumento de que era uma questão de higiene. E era preciso me convencer. – Você não vai andar atrás de mim com esse cabelo cheio de nó, Natasha. – Eu vou ao seu lado – disse, me achando muito esperta. Mamãe não viu graça e eu não me lembro se o passeio saiu com ou sem pente. Lembro que ela me explicou que as pessoas na rua a chamariam de relaxada porque eu estava com o cabelo cheio de nó, o que não me fez o menor sentido, uma vez que o cabelo era meu e eu achava mais vantagem ser relaxada que me pentear. Hoje me sinto mais mãe porque sou capaz de entender a minha quando me vinha com o pente. Quem vem a minha casa conhecer meu filho não passa sem perguntar se ele mama, quando mama, quanto mama, se já mamou, se tenho leite, se consigo ama-

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mentar, se tenho sentido dor, se o meu leite o sustenta, se ele já engordou. Engordou. Peito nunca me faltou e, graças a Deus, tenho leite que o sustenta. Também não sinto dor, obrigado por perguntar, acho mesmo amamentar uma dádiva. A pressão das pessoas pelo leite me incomoda infinitamente. Pela ladainha e porque me causa uma compaixão imensa pelas mães que não conseguem amamentar e além da sua dor precisam aguentar essa cobrança cruel. Penso na minha mãe, quantas vezes andou comigo atrás: short verde, camisa vermelha, sandália rosa de borracha e cabelo cheio de nó.

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Meu marido trabalha no porto, à noite, e convive com gente das mais diversas nacionalidades. Ele chega em casa pontualmente às sete. Assim, logo cedo eu me atualizo dos problemas nos navios e nas mais diversas partes do mundo, usualmente Filipinas, Coréia, Rússia... Esse dia eu dava de mamar ao neném no sofá da sala. Ele sentou ao nosso lado, contou alguns problemas do píer do minério, depois ficou quieto, cabeça baixa. – Que houve, Rafael? – Nada, nada... Estou pensando aqui que não pude fazer nada pelos siameses... – O que aconteceu com eles? – Foram atacados pelos turcos otomanos. – Atacados? – Massacrados. Sem chance de defesa. Coitados! E eu não pude fazer nada. Não sabia de ataque aos siameses. Inclusive puxei na memória algum episódio de rivalidade entre os povos citados, mas não me ocorreu. Parecia uma guerra, um conflito um tanto longínquo: há muito não escuto falar de turcos otomanos. O que quer que tenha acontecido, Rafael certamente não pôde fazer nada. – Pior é que eu tinha exército para isso. Eu podia destruir de uma vez os otomanos e acabar com essa covardia. – Podia? – É. Só que eu tenho esse pacto comercial com a Grécia e a Grécia fez um acordo de paz com eles.

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– E daí? – E daí que se eu ataco, coloco em risco meu pacto comercial. Por que Rafael tinha um pacto comercial com a Grécia, era o que eu me perguntava. – Preciso do cobre. – Rafael, desculpa perguntar, mas do que você está falando? – Civilization. (Para os mais ignorantes, como eu, Civilization é o jogo do famoso (quem?) Sid Meier, cujo lançamento fez meu marido arrumar um cartão internacional e esperar a madrugada para fazer a pré-reserva.) Disseram-me que as mulheres estão fadadas ao futebolzinho de quarta. Isso era antes do Sid. A verdade é que precisamos conviver com computadores, videogames e guitarras. Estou aprendendo. O Civilization, até então, me apresentara inocentes reuniões com Ramsés II e Júlio César. Só que guerra entre turcos otomanos e siameses envolvendo a Grécia e seus cobres já é demais para mim às sete da manhã.

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P i p o c a

Hoje eu fiz uma coisa muito inapropriada para uma mãe: fui à praia. E tão inapropriada e desobediente, levei meu filho comigo. Hoje passamos batidos pelo parquinho e tomamos sol na areia. Coloquei meus pés no mar, estava frio, e abaixei o neném até que ele também encostasse os pezinhos na água fria. Ele precisava de batismo. Chamei Deus. Deus te batize Miguel. Depois fiz outra coisa tão inapropriada! Fui à piscina e nadei sozinha. Idas e voltas na piscina e Miguel no carrinho, ao sol, que não é para os bebês. Meu Deus, hoje eu fui à praia, nadei na piscina e ainda pior o que estava por vir. Escrevi um texto ali mesmo, desses que a gente escreve na cabeça e fala umas palavrinhas para não esquecer e que nunca vai parar no papel. E eu fiquei tão feliz de escrever que achei o texto muito bonito. E ainda comi doce de leite no pão.

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F ú r i a

Hoje eu teria um ataque de ira tão intenso que cortaria o cabelo no banho, o mais curto que pudesse. Ah! Eu jogaria no chão o abajur de canto e talvez batesse a porta até o vizinho acordar. Mas é que às mães só é permitido serenidade. Elas cuidam, não cabe serem cuidadas. Nos resta não ter fraqueza, mas, Meu Deus!, é só o que há em mim.

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C o m p a i x ã o

Disseram-me que estou com semblante pesado: cansaço de mãe. Mas devo dizer que é tristeza. Essa tristeza que toda mãe leva nos olhos. Aprendemos que a dor do outro é a dor de um irmão, mas, para as mães, a dor do outro é a dor de um filho. Me perdoe se eu disser que no coração de mãe cabem todas as dores do mundo.

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M ã e s

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P a r q u i n h o

A greve de ônibus obrigou as mães a descerem. As babás chegariam, mas atrasadas, e se não saem cedo de casa, os garotos quebram tudo. Então foram todos ao parquinho e, quem sabe, mais tarde iriam também à piscina. Os meninos comemoravam a greve, sem saber. Hoje, finalmente, conheci as mães dos amiguinhos de Miguel. Uma, muito simpática, veio vê-lo. Pegou no colo – não me importei – e abraçou-o com um tanto de nostalgia. Depois a nostalgia passou e ela me devolveu o neném. Ele ria para ela, como sempre faz com todo mundo, com a língua de fora e cara de sapeca. _Como ele é simpático! Os meus nunca foram. Agora mesmo aquela menininha sentou para brincar com o Fernando e ele disse: não venha brincar comigo que eu sou chato e enjoado – disse, procurando encontrar a filha, que corria pelo parquinho. Bia, venha ver o neném. Sem conseguir subir o degrau que separa o parquinho, onde ela estava, do calçadão, onde estávamos, a menina fica parada e recusa a ajuda da mãe. – Eles vão ficando independentes, menina, querem fazer tudo sozinhos. Não tenho muita noção de idade de criança. Sei só até os cincos meses, depois é no chute, e muitas vezes erro feio. Diria que a menina tem cerca de três anos. Ela bate na altura do meu joelho. Se você tiver a impressão que ela tem mais ou menos, é provável que esteja certo, eu realmente não tenho muita noção. – Vem colinho mamãe, filha. Você ver neném. Ela não foi. Bom foi saber que as outras mães também têm o defeito de supri-

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P a r q u i n h o

mir as preposições quando tratam com os pequenos. Abaixei para ela ver o neném. Sorriu. – Você também era lindinha minha filha. E gordinha. Ai! – Para mãe – repreendeu a menina. A mãe pediu para pegar de novo o meu filho. Abraçou-o com nostalgia e alívio de quem não vai mais ter filhos. “Dá muito trabalho”. Peguei meu filho de volta, buscando afastar o pensamento de que um dia ele não vai mais querer vir no colo e fui com ele para a sombra, que o sol estava forte. Debaixo da árvore havia outra mãe, no lugar da babá. Essa deve ser professora, porque corrigia uns textos com cara de exercício de colégio. Gritou ao filho: – Joãooo, chega aqui. Vou mandar um papo reto com você. No meu julgamento, João deve ter uns cinco. – Não quero você perto da água, tá ligado? Que lá embaixo eu não te vejo. Se você afoga, morre. Quer dar um rolé de bicicleta não? É melhor que água, na moral. Já vi João outras vezes. Confesso que faço o exercício de tentar imaginar as mães das crianças. Com João, errei feio. Aliás, errei mesmo com quase todas as crianças. Pegamos o carrinho e fomos para casa. No caminho, o trânsito era tão intenso que os carros até pararam na faixa. Uma moto veio pelo “corredor” e quase pegou o carrinho do neném. Xinguei o motoqueiro e a mãe dele e pensei que com a greve, hoje era o dia das mães. Passei na banca, peguei o jornal. Os ônibus estavam voltando, com as babás. E o dia das mães terminava no parquinho.

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F a t h e r

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S o n

Há uma cena em minha cabeça, essa que eu vi hoje. Mas não pretendo contá-la, apenas descrevê-la, que sua beleza é tão explícita! Primeiro confesso que não sou dessas que preferem ler um livro em sua língua original. Não, eu assumo humildemente que leio as traduções e que minha preferência por literatura brasileira é antes a preferência da língua: gosto do português como de nenhuma outra. Digo isso porque há um trecho em inglês na cena que vou contar e que não posso mudar – nem quero sequer traduzi-lo. Passei pelo escritório, meu marido tocava violão para meu filho. Não é que tocasse violão com meu filho por ali, tocava para ele e com amor nos olhos. It’s not time to make a change Just relax, take it easy You’ re still young, that’ s your fault There’ s so much you have to go through Find a girl, settle down If you want you can marry Look at me, I am old But I’ m happy

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S ã o

B r á s

- São Brás!, chamei, como se acode um engasgo. É que ando ocupada, mas os textos insistem em vir – e ficam todos na garganta. Assim, com todos os problemas, destes que parecem urgentes. Hoje enchi a cabeça da minha mãe com eles, mas ela estava com a cabeça em silêncio. Meu avô passou mal, mandou chamar as meninas e separar o terno. Depois melhorou, por Deus, mas ainda fica o silêncio em minha avó. E fica o silêncio em minha mãe e em mim. Um silêncio que ocupa um lugar vazio na minha garganta. São Brás!

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C o n s u m a ç ã o

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C a s a m e n t o

M ar i a

Preciso respeitar a hora da história. Quando ela vem, tem que haver um papel e um instante, pois história quando esfria é pior que sopa, e faz melhor quem espera outra. Eu preciso respeitar a hora, mas a vez dela (quantas vezes!) é a vez do neném. Disseram que um dia, finalmente, eu teria que aprender a ser disciplinada e fazer cada coisa em sua hora. Por enquanto, eu deixo as histórias que passam e espero as que vêm, mais oportunamente, à noite. Pois eis que essa veio, muito inconveniente, no fim da tarde e eu a deixaria passar, mas ela traz em si um desejo de partilha e eu preciso dividi-la com você, como uma descoberta. Ainda não te avisei que esta pode ser uma má história. Aliás, honestamente acredito que esta seja uma boa história mal contada, o que é terrivelmente pior. Alertaram-me certa vez que casamento não se consuma na lua de mel, mas depois. Bem depois. Não disseram, contudo, quando era depois e eu não reconheci o momento. Não o festejei por puríssima ignorância e ele se deu primeiro com indiferença, depois com desprezo e até raiva. Sobretudo raiva, mas foi ignorância. Eu espero que você tenha paciência com uma história fria e que depois, quando chegar o momento, o exato momento, espero que você esteja feliz e sorria. Discretamente, porque esse será o seu momento, mas com carinho. E diga para si: eu sou casada e esse é o meu marido. Eis como acontece:

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C a s a m e n t o

Vocês podem até ser um casal moderno: ele cozinha e você passa. Você jamais limpa os sapatos dele. Ele faz as compras do mês e – quem sabe – organiza as contas da casa. Ele pode ser um marido daqueles. Pode instruir a empregada, pode ele mesmo guardar as roupas. Mas chega o dia (que depois se repete com a mesma beleza), chega o dia em que ele grita: Na-ta-sha, onde está minha carteira? Na-ta-sha, onde está meu chinelo? Na-ta-sha, você viu meus óculos? Na-ta-sha, aonde foi parar minha camisa marrom? Cadê meu cinto? Onde se meteu meu casaco? Quem escondeu a chupeta de Miguel? Onde você colocou meu celular? Não perca esse momento, Maria, pois ele há de chegar. E quando ele chegar, você saberá que é a hora. E você deve sorrir porque seu pai grita à sua mãe mesmo quando ele sabe onde está o controle remoto. E seu sogro grita à sua sogra e seu avô grita à sua avó. E ele, ele é seu marido, Maria. Ele é o seu marido: Ma-ri-a, Ma-ri-a.

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F a c e b o o k

No facebook uma amiga curtiu a foto de alguém que eu não conheço, mas que estava agora com uma touca na cabeça, o marido ao lado e o neném, que acabara de nascer, na tela do meu computador. Que coisa é a internet, onde a notícia se espalha, livre. Mas não foi isso que pensei. A verdade é que me lembrei do meu filho quando nasceu. Tão pequeno e eu disse: – Olha o narizinho dele. O parto não é um momento de ruptura. Não para as mulheres com a bolsa rota. A ruptura se dá na água que se esvai. Entre a bolsa rota e o parto passam-se horas – essas sim, de ruptura. Ver o neném pela primeira vez, ainda na sala do parto, é um alívio e uma alegria sublime. Vamos tirar uma foto é a última coisa que eu pensaria.

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N ã o

E s t a c i o n e :

G a r a g e m

Não estacione: garagem. Este foi o maior contrassenso da humanidade durante boa parte da minha infância. Soava quase como “não coma: comida”. Ora, não era esse o grande objetivo da garagem? Um dia eu chamei a atenção da minha mãe para o aviso estúpido. Explicoume e a garagem se pacificou na minha vida até há pouco. É que meu pai cismou de fechar com vidro a minha varanda. Reclamamos, eu e minha jabuticabeira, com quem divido o espaço. Ela, veementemente, insistindo em conservar as folhas secas caso não a devolvessem o vento que vem do morro. Eu, porém, limitei-me a cobrar explicações de papai. Mostrou-me o barulho insuportável do alarme da garagem. Ainda não havia me atentado, mas quase todas as garagens modernas têm um alarme que toca toda vez que entra ou sai um carro. De novo o mesmo tormento: dessa vez me pareceu quase como um alarme antichama no fogão. Não serviria a garagem para entrar e sair carros?, questionei-me mais uma vez. O problema é que o barulho pode passar uma vida inteira despercebido, mas se você se atenta para ele uma vez, já era. Por isso, caso você comece a se incomodar, caro leitor, devo pedir desculpas e alertá-lo que nada mais funciona dentro da minha casa enquanto o alarme alarma: um carro entra ou sai da garagem.

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b a l i z a

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C o i s a

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P a i

Lá em casa todo mundo é tricolor, feito meu pai. Meu pai e os meus tios, irmãos do meu pai, que meu avô também era. Acho branco, verde e grená combinação das mais bonitas. A primeira vez que usei uma camisa do fluminense, porém, fui eu mesma que coloquei. Eu e Rafael concordamos em não usar roupinha de time no neném. O que seria ótimo, porque além de cafona geraria um impasse, já que Rafael é flamenguista, feito o pai dele. Um dia, no entanto, ele tratou de descumprir nosso acordo. Colocou uma roupa feia do Flamengo no neném e desceu com ele para a praia. Só de molecagem, passei a mão em uma jardineira linda e grená do Fluzão e já ia vestindo o neném. – Não, Natasha. Insisti. “Se você pode, eu posso”. – Não, Natasha – agora veemente. E depois, manso: “tem coisa que é o pai que manda”. E não falamos mais nisso.

b a l i z a

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A

P a r a

L á p i s

M ár c i a

Num livro antigo, havia um marca-páginas com uma dedicatória muito simples que, embora tratasse “a meu querido amigo”, fora toda escrita a lápis, até a exclamação que fechava com um coração dando ponto ao verso. Datava de 2002. Perguntei ao meu marido, por acaso, quem era Márcia. Respondeu que uma antiga namoradinha. Senti inveja de Márcia, como se ela escrevesse agora. Era capaz de escrever a lápis, desmanchar e escrever de novo, um verso tão simples que à caneta ficava bobo. Como se por excesso de zelo desandasse. Escolheu cada preposição e trocou por outra, cada palavra e vírgula onde não havia. O “lhe”, por exemplo, soou tão pouco natural. Fora colocado ali e retirado e por fim colocado novamente. Já escrevi carta de amor, mas há muito não escolho um pronome – não por amor! Há muito não escolho um pronome com insegurança, com mão fria, a lápis.

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M i u d e z a

o u

P e q u e n i c e

Sou uma escritora de miudezas, mas diria melhor – e mais verdadeiro (porque nem sempre o melhor é mais verdadeiro) – se dissesse: sou uma pessoa de miudezas. Miudeza é palavra bonita e neste caso talvez eu devesse falar em pequenice. A dor das coisas pequenas é humildade, mas a dor de coisas pequenas é soberba. Hoje, confesso, sinto-me humilhada por miudeza, o que quer dizer, lamento, soberba. A humilhação é uma espécie de soberba? Só sente-se humilhado quem se atribui uma importância qualquer. Mas eu não afirmaria isso. Não hoje. Hoje não diria nem que sou uma escritora de miudezas, briguei com as palavras. Bufei, Miguel riu, franzindo o nariz na testa e mostrando o dente e meio. Miguel chora quando está com sono ou quando acaba a polenta.

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M o r r e r

c o m

S o l

Outro dia experimentei um êxtase pós-cansaço. Minhas pernas não me respondiam. Houve um pouco de medo. Depois o corpo inteiro relaxou os músculos, nada parecia responder. Eu tinha consciência da minha falta de controle. Nada dependia mais de mim e já não havia medo ou cansaço. Isso era amor. Finalmente entreguei o corpo e foi um êxtase. Uma sensação de morte. Morrer é bom, não precisa tanto medo. Não falo de quando se luta em desespero para ficar, com a gana que se tem quando é jovem. Há pouco eu vivi isso, quando se foi um amigo, querendo ficar. Quando morre um jovem são muitas mortes e uma tragédia sem consolo. Mas a morte, quando é chamada e vem, depois do cansaço, é bonito ir. Primeiro as pernas, os braços e depois entregar o corpo. Se entregar em paz e dormir. Hoje com sol e tanta vida, é um bonito dia para morrer. Para se entregar, depois da luta, como quem finalmente venceu. A vida.

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O

D e g r a u

A c i m a

Se o silêncio é um degrau mais alto, acho que atingi finalmente a serenidade: há muito não escrevo. Em mim não parece serenidade porque tenho ainda muitas dúvidas. Acho que o que perdi foi a capacidade de admirar o mundo, que sentimento não me falta! Há em mim a maior alegria do mundo e também um tantinho de tristeza. E uma contradição: os homens têm me espantado tanto e nada mais me espanta.

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B o r b o l e t a

n o

M e i o - F i o

Era uma borboleta num meio-fio. Não voava, mas batia as asas apesar de mim. A dor era dor física, nunca escrevi sobre ela. Também nunca havia sentido uma dor feito aquela, uma dor de limite. Se disser que a sensação era de morte é por falta de jeito de explicar. A verdade é que não era, mas eu não queria usar a palavra transcendência (é que sou contra a banalização das palavras). Era uma sensação de auge, quando não há mais como subir. A dor era pior antes de atingir o auge. Agora, no limite, eu entrava em um estado em suspenso. Nesse estágio nada me ocorreu. Foi uma espécie de esclarecimento vazio, como é todo esclarecimento. Nenhum pensamento, e sentimento era só a dor (em suspenso) e a borboleta no meio-fio. Só depois tive medo. Quando o remédio fez efeito senti fome e medo. O médico disse que podia ser grave e, fosse o que ele esperava, operávamos dali a pouco. Então já não era a borboleta no meio-fio. A dor se sobrepõe ao medo. A dor encoraja? Sem dor somos covardes. Falava do medo. O medo é que sabia que não podia encarar Deus. Preciso ainda alfabetizar três crianças. Quem sentiu a sensação de dever cumprido senão professora de menino? Só quem ensina a ler. O fato é que o episódio aconteceu há algumas semanas. Hoje fui ao médico checar e tudo está ok. Nunca mais senti dor, mas não alfabetizei ninguém.

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O

C a s a l

Não há o que escrever. O que eu vi é a própria crônica, e poesia. A mulher, que acordara mais cedo, observa o homem ainda em sono. Diante da cena, desiste do dia, deita no peito dele e dorme. Eram um casal. (A rua, o papelão e as pessoas que passavam não eram nada.)

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F r a c a s s o

Esses são os dias em que vive em mim o fracasso. Disseram (dois pontos) – Natasha, isso não combina com você. Pois tenho me dado razoavelmente com ele, obrigada. Dizem por aí que fracassar nunca. Mas eu, sinceramente, vejo nele qualquer coisa de singelo. E muito de dignidade. Isso. O fracasso é muito digno. Se bem que há duas espécies de fracasso. O fracasso da fadiga e o fracasso da preguiça. Os dois são igualmente fracassados e igualmente dignos. Pode ser que haja ainda uma terceira espécie: a incompetência. Pois, olha, incompetente está dado que sou. Também não fica por menos a fadiga e a preguiça. Veja que, acrescido a isso, ando também um pouco triste.

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V e r t i g e m

Ei, você, quem quer que você seja. Você: aquele que não tem rosto, mas só braço, só braço. Preciso te dizer aquilo que não digo a ninguém, isso que sinto hoje com a ajuda pouca do vinho barato, mas que vai embora amanhã com o sol. É um desespero! Um desespero que não posso te contar – nem a você. Um desespero que talvez soe loucura, mas não é. É que parece que só eu sinto e que você sabe que é assim que sinto, mas tem medo de ouvir. Preciso de mais um pouco de vinho e talvez um pouco mais que braço. Preciso talvez de um braço e um ombro, ou um outro braço e um outro ombro e um ouvido. O que eu preciso é de um ouvido que não tenha medo. É que tem essa janela e essa vertigem que não é o medo, mas o medo do desejo – da queda. Você sabe que não fui eu que disse isso, mas sou eu que te digo. E você não quer ouvir.

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E u

P a i

Ser pai é bom demais. Digo isso porque sou, tenho esse privilégio. É que Rafael é tão pai, tão pai, que às vezes ele é mãe para eu ser pai um pouquinho. Como é bom... Ficar mais no sol, mesmo sem filtro, deixar Miguel puxar o cabelo da coleguinha, colocar a mão suja na boca (nem vi), passar a hora do almoço, comer um biscoito a mais, cair na piscina, não tomar o remédio que o neném já sarou e rir até soluçar. Ufa! Quem disse que ser pai não cansa? Cansa, ora. Hoje fui pai, estou cansada e renovada: não disse nem um não. Ai! Ser pai é tão bom que toda mãe devia ser um pouquinho.

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K á t i a

Há mais de um ano casamos, colocamos telefone em casa e até hoje ligam muito procurando Kátia. Não sou amiga de Kátia, propriamente, – nunca a vi – mas tenho por ela certa admiração. É uma pessoa muito caridosa e tem fé, sobretudo nos homens. Creches, igrejas, hospitais e instituições de todos os tipos ligam, quase sempre de manhã cedo. Confesso que às vezes me irrito porque me acordam e porque, ao contrário de Kátia, nunca fui capaz de ajudar ninguém. – Estamos mandando aquele missionário aí na sua casa para recolher sua contribuição mensal, ok? Kátia é muito rica, milionária. Senão paupérrima e doa até o que não tem. O que não entendo é porque ela trocou o telefone e não avisou aos seus ajudados. Kátia perdeu a fé? Cansou-se dos homens e desligou o telefone. Ela teve uma desilusão tão grande e forte que não quis saber de nada. Kátia viajou em missão humanitária para a Índia, casou-se com um alemão, foi para um mosteiro, gastou seu dinheiro no jogo. – Tem certeza que você não sabe de Kátia, não tem algum vizinho que saiba? – Não sei, infelizmente. Mas olha, se você encontrá-la, diga que mandei um abraço.

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T o m a r

A r

Em todo lugar há conselhos sobre casamento, quase todos bem intencionados, que a gente vai discordando a cada dia de casado. Hoje quero não seguir o “ninguém vá dormir sem pedir ou sem dar seu perdão”. Tenho visto que algumas coisas só se pode perdoar depois do sono e que mais vale não dizer, que a palavra dita não volta. Adoto com certo sucesso a estratégia do outro quarto. Hoje, por exemplo, estou no outro quarto: menor e mais frio e com vento acolhedor. É verdade que ligo e desligo o computador, mexo em coisas velhas, choro e escrevo algumas linhas. Bato muito o pé. É verdade que custo a dormir, mas durmo. De dia é a vez dos outros problemas. Factuais. De dia a noite não existe.

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D e s s a s

P e q u e n a s

Outra dor nessas dores pequenas é que elas não são dignas de um abraço. E porque carregava uma dessas nos ombros, fui dirigir. No sinal, um mendigo fez gesto de fome e eu, que não levava carteira – nem de habilitação – abri a janela apenas para dizer que não tinha uma moeda. Ele percebeu que eu chorava. Desses choros abafados quase sem lágrimas e com muito apelo. Porque chorava, me fez um elogio. Disse dos meus olhos e outras coisas que o ocorreram na hora. O mendigo do sinal viu a minha dor, se compadeceu de mim e falou como se me desse um abraço.

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T e n h o

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R o ç a

Música caipira me trava a garganta: tenho saudade da roça. Não sei do cheiro ou do humor do mato. Lugar de violeiro é na beira do rio, concordo. Nunca morei na roça, sequer tenho uma lembrança para contar, só a saudade que sinto no estômago e nos braços, acima do cotovelo – aquela vontade de se apertar para dentro. Tenho me confundido muito, mas sei sentir. De modo que não sei se é lembrança do sangue ou da alma, mas o que sinto só é saudade. Tenho saudade da roça.

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O

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C a s a m e n t e i r o

Antônio e Maria não se dão desde que os conheço. Sabendo onde está Antônio, sabe-se com precisão onde não está Maria. Nunca os vi conversar: apenas trocam informações de iminente necessidade. Nesses casos, ambos visivelmente contrariados, tratam-se com tom cortês e cumprem à risca um rápido protocolo. Chamam-se de senhor e senhora e desejam-se os cumprimentos: bom dia, boa tarde, boa noite, com licença. Não sei dizer há quantos anos eles estão de mal. Pode ser coisa acontecida desses tempos para cá, pode ser coisa antiga, que eles já se conhecem há muitos anos, só de casados contam quarenta. Dizem que a verdade é que esses dois nunca se deram. O que sei é que não dividem o mesmo ambiente e muito raro conversam (a não ser, como falei, as coisas muito indispensáveis). Nesse dia, porém, eis que os vi debatendo. Veja que não disse conversando, mas debatendo, coisa mais elevada. Em pauta, um assunto superior, que era nada menos do que de Abraão que falavam. Dona Maria narrava um acontecimento bíblico para uma audiência modesta, a título de recordação. Antônio mal estava por perto, às vezes ouvia trechos da conversa e não se incluía. Tudo, assim, conforme o esperado. Até que seu Antônio entrou na conversa em que Maria participava. Pior, seu Antônio discordou de dona Maria. Aliás, pior ainda, dona Maria não cedeu ao argumento de Antônio e tratou de discordar do marido. Os outros ouvintes, assustados, se abstiveram todos. A discussão se tornou um debate dos mais entusiasmados, com

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O

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C a s a m e n t e i r o

formalidades de título, é verdade, mas sem os ensaiados protocolos. Foi difícil chegar à conversa. Até então, desatenta, eu, que não participava diretamente da audiência, sabia meramente que se tratava de Abraão. Puxei da memória antigos conhecimentos da catequese. Estariam discutindo sobre a aliança de Deus? Falavam do sacrifício? Sobre a escrava que Abraão tomou por esposa com consentimento de Sara? Falariam da circuncisão? Me juntei, como quem não quer nada, e a discussão era mais ou menos essa: de uma lado Maria “foi o burro”. D’outro, Antônio “não tem burro”. Pediram-me para opinar: – O que discutem? – perguntei. – Abraão foi chamado a sacrificar seu filho Issac – relatou-me Antônio. – Certo. – Ao subir o morro, quem levou a lenha? – Oi?! – Foi o burro! – disse dona Maria. – Pois nessa história não tem burro – disse seu Antônio. E o burro fez o que o padre não fez; fez o que nem o tempo foi capaz de fazer. Só o burrinho lenheiro, existindo ou não existindo, os uniu finalmente em matrimônio, feito marido e mulher.

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V e g e t a r i a n a

Sou vegetariana, exceto porque como carne. No mais, acho muito desagradável esse costume de encarar a morte na hora do almoço. Hoje Rafael chegou cedo com dois peixes “quase vivos”, recém tirados d’água e eu não gostei de ouvir que Miguel, achando muito curioso, colocou a mão nos cadáveres. Na casa da mamãe, quando Nalvinha serve à mesa um frango inteiro, pergunto se devo chamar o padre para encomendar o corpo. Aí ela ri um riso solto como o dela, como se eu brincasse.

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I r m ã o

Ei, você, que um dia não soube de nada e eu, que sabia tudo e que era tão forte, vi sua fraqueza, sua dorzinha tão pequena, e não pude me conter. Tão pequenininha sua dorzinha que ninguém mais soube – só você –, ninguém soube que eu te humilhava. Ei, você, que um dia foi criança, que um dia foi menino e tão frágil foi que eu te defendi sem nem perguntar se você estava certo. Ei, você, que um dia me amou apesar de mim e me amou com tudo o que foi capaz até mesmo achou bonito eu saber, assim de tanto te conhecer, a sua pequenice. E me perdoou da minha maldade e, humilhado, me perdoou tão sucessivas vezes da minha maldade e do meu – tão grande – amor. Ei, você, me perdoa. Você, que agora crescido, que sabe de tudo e é tão forte, não me venha de novo me querer vingança. Não me venha na minha dorzinha tão pequena me fazer chorar sem consolo, sem nem poder pedir consolo, tão pequena é minha dorzinha. Ei, você, se não pode me perdoar, tenha ao menos o amor que te tive. Sim, me faça vingança, é o justo. Me faça ofensa, é o justo. Me faça maldade, é o justo. Me tenha amor, é o justo. O amor todo que eu te tive.

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S D S

Acho que meu coração tem mania de saudade. Não é a primeira vez que esse colega me manda um e-mail: Natasha, faça isso assim, assim, Sds, Fulano. Ah!, amigo, não fale em saudades! Suspiro a minha saudade e a saudade dele. Paro e não decodifico saudações nunca. Já disse que meu coração tem mania de saudades? Não que eu tenha saudade propriamente do Fulano, que é meu colega de trabalho, com o qual estive ontem, hoje, anteontem. Mas tenho saudade, propriamente saudade. Esta semana, particularmente, meu coração está cheio.

P.S.: E por falar em e-mail, acho uma descortesia essa moda de Att. Caro colega, tenha-me a cortesia de uma palavra inteira.

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H a b i t e

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M i m

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A m o r

Se não escrevo, não é o tempo que me falta, mas o amor, que me comovia às coisas pequenas. E mesmo o amor às grandes causas não tem habitado em mim. A discussão sobre quem é Deus tem sido infrutífera. Ó, Deus, habite em mim o amor.

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P r e c e

Deus, desculpe um burro. Um burro soberbo que não aprendeu a lição e, que não a tendo aprendido, preferiu sua honra à retidão. Deus, perdoe um burro desonrado que só sabe escrever e, quando não escreve direito, nada sabe. Perdoe um burro que não sabe nem que é burro e, não sabendo que é burro, levanta a voz. Por isso estou aqui: desonrada, mas não humilhada. Meu Deus, me perdoe por ter errado sabendo do erro. Me perdoe por não ter compaixão do outro nem de minha ignorância, na minha não retidão. Meu Deus, só você pode perdoar um burro que mentiu para não ser humilhado, que humilhou para não ser humilhado, que zombou dos seus para não ser humilhado, que cometeu um terrível pecado.

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O r g u l h o

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M ã e

Miguel saiu ao pai. Tem sobretudo os olhos e o jeito manso de Rafael. As mães do parquinho, sempre previsíveis, dizem que trabalhei de bandida. – Que injustiça, não? A gente que carrega... Se é injustiça é das boas, das melhores, que orgulho de mãe é ter filho com os olhos do pai. – Mas tem meu nariz, eu digo. E é verdade.

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