Auto da Compadecida | Redesign

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AUTO DA COMPADECIDA



Ariano Suassuna

AUTO DA COMPADECIDA

34ª Edição / 14ª Impressão

Rio de Janeiro - 2004


Copyright © de Ariano Suassuna Direitos de publicação em língua portuguesa, para o Brasil, reservados à AGIR EDITORA LTDA. Coordenação editorial: Natércia Ferreira Capa: Natércia Ferreira Revisão: José Tedin Gerência de PCP: Luciene Baptista Produção Gráfica: Natércia Ferreira Assistente de Produção: Natércia Ferreira

CIP-Brasil Catalagação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S933a

Suassuna, Ariano, 1927-2014 Auto da compadecida / Ariano Suassuna; capa, Natércia Ferreira - 34ª ed. - Rio de Janeiro: Agir, 2004. 208p. : 19cm. ISBN 85-220-0265-7 1. Teatro brasileiro. I. Título. II Série.

02-0323

Agir Editora LTDA. Rua Nova Jerusalém, 345 - Bonsucesso CEP 21.042-235 - Rio de Janeiro -RJ Tel.: (21) 3882-8200 / Fax (21) 3882-8212/3882-8313 www.agireditora.com.br

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A Hermilo Borba Filho, José Laurênio de Melo, Gastão de Holanda, Aloísio Magalhães, Orlando da Costa Ferreira e Faminio Bollini Cerri, com toda a minha amizade. A.S.



Prefácio

O grande acontecimento do Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Fundação Brasileira de Teatro, foi a representação pelo Teatro Adolescente do Recife, sob a direção de Clênio Wanderlei, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Se a interpretação era boa, considerado aquilo que se pode exigir de um grupo amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto, até certo ponto inexperientes, o que, por outro lado, tinha a vantagem de dar ao espetáculo um tom de simplicidade, de despojamento, de espontaneidade, que correspondia ao espírito da peça e se enquadrava, no estilo de apresentação que mais lhe convinha, a verdade é que foi o texto em si o causador do entusiasmo despertado. Suassuna diz que sua obra se baseia nos romances e histórias populares do Nordeste, os

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quais, devemos confessar, desconhecemos totalmente. Por nosso lado, encontramos em “A Compadecida” um parentesco com gêneros mais antigos, de outras épocas e regiões que, todavia, devem ter sido de algum modo a origem remota daqueles que a inspiraram. Enquadramo-la, inicialnente, na tradição das peças da AltaIdade Média, geralmente designadas como Milagres de Nossa Senhora (do séc. XIV ), em que, numa história mais ou menos - e às vezes muito profana, o herói em dificuldades apela para Nossa Senhora que comparece e o salva tanto no plano espiritual como temporal. Quanto à forma e ao tratamento, nossa tendência é para aproximar a obra dos autos de Gil e do teatro espanhol do séc. XVII. Também lhe encontramos algo em comum com a commedia dell’arte, tanto no desenvolvimento da ação como na concepção das personagens, particularmente na figura de João Grilo, que lembra muito as características do “arlequim”, embora seja um tipo autenticamente brasileiro e não copiado da tradição ita liana, mesmo porque é figura lendária da

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literatura popular nordestina, tanto que é herói de dois romances intitulados As Proezas de João Grilo. Desta vez, porém, a aproximação de um textobrasileiro com formas e até temas dos grandes gêneros da história do teatro não é apontada como defeito, pois não houve cópia, imitação servil ou mera transposição, mas autêntica recriação em termos brasileiros, tanto pela ambientação como pela estruturação, sendo uma obra inédita em suas características, nova e, portanto, absolutamente original. O seu encanto está nesse ar de ingenuidade que a caracteriza, na singeleza dos recursos empregados, ‘no primarismo doargumento, tudo a nosso ver perfeitamente dentro do espírito popular em que a obra se inspira e que quer manter. A linguagem desabrida não deve chocar ninguém. É a das personagens e do ambiente retratados. Em Gil Vicente encontramos coisas muito piores. Com expressões por vezes rudes e outras pitorescas, o autor conseguiu um diálogo

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eminentemente teatral, vivo e saboroso, colorido e descritivo, popular sem ser vulgar e paradoxalmente literário, nada tendo de precioso ou alentejouloso. E essa pseudogrosseria e o jeito direto de indicar situações ou comenta-las não lhe tiram o sentido cristão que lhe encontramos. É preciso não esquecer que se quis evocar umarepresentação de circo, uma farsa muito marcada, portanto, em que a caricatura tinha de ser forte. Quanto à maneira como são apresentados o bispo e o padre, além do que ficou dito acima, forçoso é reconhecer não ser absurdo admitir a existência de maus sacerdotes. O próprio autor, ao agradecer as manifestações que lhe foram feitas no fim da última representação de sua peça, no Teatro Dulcina, reafirmou o sentido católico da mesma, lembrando, a propósito de sua personagem, o famoso bispo Cauchon, que se fez instrumento da política dos ingleses, queimando na fogueira sua compatriota Joana d’Arc, do que resultou venerar a igreja uma santa por ela própria martirizada. E foi, até falando dessa figura, se não nos enganamos, que Georges Bernanos disse que a Igreja eram os seus santos e não os seus padres...

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Além do mais, no julgamento — verdadeira chave para a compreensão do sentido da peça — Nossa Senhora explica que a visão que dessas figuras nos é dada é a da língua do mundo, portanto piorada, do mesmo modo que pela acusação do diabo. E um ponto importante, nesse particular, é o fato de ao lado dos dois maus padres, ser colocado um bom, o frade, secretário do bispo, cujo processo de santificação se anuncia. A apresentação da figura de modo um tanto caricatural não nos deve fazer incidir em equívoco. O tom é o da peça e — note-se — dele são excluídos o Cristo e Nossa Senhora. No mais, o frade sugere, um pouco à maneira como Roberto Rosseilini concebeu São Francisco e seus companheiros no famoso filme Francisco, Arauto de Deus, a pureza angelical, a santidade, o desligamento das coisas do mundo, do modo como é indicado no v. 8 do cap. 18 do Evangelho segundo São Mateus: tornar-se igual às crianças para poder entrar no reino do céu. O sentido moralizante, moralizantes do pon-

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to de vista cristão, da obra, está, aliás, presente tanto na linha geral, como em inúmeros de seus pormenores, que não seria possível evocar aqui. É lógico, porém, que não contém profundas discussões teológicas, nem faz propriamente apologética, o que seria absurdo, O seu apostolado é feito através da sugestão de um espírito cristão, de uma visão cristã da vida, apresentada com a simplicidade do espírito popular, da fé simples, sem complicações, do povo, quase sempre a mais autêntica. Não queremos silenciar sobre uma fala que tem sido muito discutida. Quando João Grilo se espanta ao ver o Cristo negro, este responde que veio assim para mostrar que para ele tanto faz ser branco como preto, uma vez que não é “americano para ter preconceito de cor”. Ora, em primeiro lugar, durante a guerra houve bases americanas no Nordeste, cujo ambiente e mentalidade a peça evoca. Possivelmente seus ocupantes, com a inabilidade característica que manifestam no trato com outros povos, deram abundantes provas desse seu lamentável

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sentimento. Portanto, a repulsa pode ali ser suficientemente forte, para que o autor se sentisse levado a trazê-la para sua peça. Em segundo lugar, esse preconceito realmente revolto, como um dos sentimentos mais anticristãos que possam existir; a sua presença — com a sabida intensidade — num povo que é oupelo menos pretende ser um paladino da liberdade e da democracia é algo que clama ao céus. Noutro trecho da cena do julgamento, quando João Grilo procura recorrer a mais uma esperteza, para livrar-se da acusação do diabo, Cristo o adverte: “Deixe de chicana, João.Você pensa que isto aqui é o Palácio da Justiça?”.Tanto pois dessa réplica, como da referente ao preconceito de cor — das três vezes em que vimos a peça no Dulcina — o povo prorrompia em aplausos. Era a emoção irresistível de sentir o Cristo do seu lado, pois a Justiça, infelizmente como é praticada, sufocada por formalismos e complicações que possibilitam a deturpação de seus verdadeiros objetivos, é antes uma ameaça que uma garantia aos olhos do povo.

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Acusa ainda o Cristo o diabo de ser “meio espírita” e conseqüentemente de ter a “mania de ser mágico”. Esses e outros trechos do Cristo e de Nossa Senhora dão uma concepção da religião como algo simples, agradável, doce e não como uma coisa formal, solene, difícil e mesmo penosa.Essa intimidade com Deus, e a idéia da simplicidade nas relações dele com os homens, essa compreensão da vida e fé na misericórdia, nos parecem aspectos primordiais no sentido religioso da obra, sobre o qual muito haveria que dizer, não nos tivéssemos já alongado demais. Por isso, limitemo-nos a lembrar a compreensão das faltas humanas, atribuída a Nossa Senhora, que, como mulher, simples e do povo, as explica e pede para elas a compaixão divina. Mesmo para aqueles que“praticaram atos vergonhosos”, pois “é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem”. “A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas”. Levados pelo medo, “os homens terminam por fazer o que não presta, quase sem querer”. E como o diabo — por nunca ter sido homem — não entende o que é o medo, as personagens explicam que é o medo da fome,

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do sofrimento, da morte e da solidão. Por medo desta o padeiro tudo perdoava à mulher. Essa solidão que o próprio Cristo viveu em Getsêmani e a sensações de abandono que sentiu na Cruz. De tudo o que ficou dito, o leitor concluirá que é um programa da humanidade, com suas misérias, suas fraquezas, mas também suas razões de consolo e esperança, que “A Compadecida” evoca. É esse, justamente, o grande mérito do autor e a evidência da qualidade de sua obra: ter conseguido, a partir de uma situação local, regional, típica mesmo, compor um quadro de significação universalmente válida. Henrique Oscar

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Epígrafes

O Diabo Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete! Maria Meu filho perdoe esta alma, Tenha dela compaixão Não se perdoando esta alma, Faz-se é dar mais gosto ao cão: Por isto absolva ela, Lançai a vossa bênção. Jesus Pois minha mãe leve a alma, Leve em sua proteção,

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Diga às outras que recebam, Façam com ela união. Fica feito o seu pedido, Dou a ela a salvação. O Castigo da Soberba, auto popular, anônimo, do romanceiro nordestino. y Mandou chamar o vigário: Pronto! - o vigário chegou. — Às ordens, Sua Excelência! O Bispo lhe perguntou: Então, que cachorro foi que o reverendo enterrou? — Foi um cachorro importante, Animal de inteligência: Ele, antes de morrer,

Deixou a Vossa Excelência Dois contos de réis em ouro. Se eu errei, tenha paciência. — Não errou não, meu vigário,Você é um

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bom pastor. Desculpe eu incomodá-lo, A culpa é do portador! Um cachorro como esse, Se vê que é merecedor! O Enterro do Cachorro, romance popular anônimo do Nordeste. y Foi na venda e de lá trouxe Três moedas de cruzado Sem dizer nada a ninguém Para não ser censurado: No fiofó do cavalo Fez o dinheiro guardado. Só tem o osso e o couro, Porém, tratando-se dele, Meu cavalo é um tesouro. Basta dizer que defeca Níquel, prata, cobre e ouro.

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HistĂłria do Cavalo que Defecava Dinheiro, romance popular anĂ´nimo do Nordeste.

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Apresentação

O Auto da Compadecida foi encenado pela primeira vez a 11de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo Teatro Adolescente do Recife, sob direção de Clênio Wanderley, sendo os papéis criados pelos seguintes atores: Palhaço — José Pinheiro

João Grilo — Ricardo Gomes Chicó — Clênio Wanderley

Padre João — Sandoval Cavalcânti

Antônio Morais — José de Sonsa Pimentel Sacristão — Alberique Farias Padeiro — Luís Mendonça

Mulher do Padeiro — Nina Elva Bispo — Eutrópio Gonçalves Frade — Mário Boavista

Severino do Aracaju — Otávio Catanho Cangaceiro — Artur Rodrigues

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Demônio — Mário Boavista

O Encourado (O Diabo) — José de Sousa Pimentel Manuel (Nosso Senhor Jesus Cristo) — José Gonçalves A Compadecida (Nossa Senhora) — Maria do Socorro Raposo Meira. y A 11 de março de 1967, a peça foi encenada em São Paulo pelo “Studio Teatral”, sob direção de Hermilo Filho, no Teatro Natal, sendo os papéis representados pelos seguintes atores: Palhaço — José Pinheiro

João Grilo — Armando Bogus Chicó — Nélson Duarte

Padre João — Felipe Carone

Antônio Morais — Teotônio Pereira Sacristão — Samuel dos Santos Padeiro — Taran Dach

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Mulher do Padeiro — Cici Pinheiro Bispo — Thales Maia

Frade — Ângelo Diaz

Severino do Aracaju — Renato Master Cangaceiro — Jorge Nader

Demônio — Mílton Gonçalves

O Encourado (O Diabo) — Dalmo Ferreira Manuel (Nosso Senhor Jesus Cristo) — Mílton Ribeiro A Compadecida (Nossa Senhora) — Córdula Reis.

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Prólogo

O Auto da Compadecida foi escrito com Nordeste. Sua encenação deve, portanto, seguir a maior linha de simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido e realizado. O cenário (usado na encenação como um picadeiro de circo, numa idéia excelente de Clênio Wanderley, que a peça sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja à direita, com uma pequena balaustrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios comuns nas igrejas das vilas do interior. A saída para a cidade é à esquerda e pode ser feita através de um arco. Nesse caso, seria conveniente que a igreja, na cena do julgamento, passasse a ser entrada do céu e do purgatório. O trono de Manuel, ou seja, Nosso Senhor, Jesus Cristo, poderia ser colocado na balaustrada, erguida sobre um praticável servido por escadarias. Mas tudo isso fica a critério do ensaiador e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenários, sendo um para o começo e outro para a

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cena do julgamento, ou somente com cortinas,caso em que se imaginará a igreja fora do palco, à direita, e a saída para a cidade à esquerda, organizando-se a cena para o julgamento através de simples cadeiras de espaldar alto, com saída para o inferno à esquerda e saída para o purgatório e para o céu à direita. Em todo caso, o autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno. Agradece ainda o autor a seus amigos Jean Louis Marfaing, José Paulo Moreira da Fonseca e Henrique Oscar as críticas que fizeram ao quadro final da peça e que resultaram em sua modificação para a forma em que vai finalmente escrita aqui. Ao abrir o pano, entram todos os atores, com exceção do que vai representar Manuel, como se tratasse de uma tropa de saltimbancos, correndo, com gestos largos, exibindo-se ao público. Se houver algum ator que saiba caminhar sobre as mãos, deverá entrar assim. Outro trará uma corneta, na qual dará um alegre toque, anunciando a entrada do grupo. Há de ser uma entrada festiva, na qual

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as mulheres dão grandes voltas e os atores agradecerão os aplausos, erguendo os braços, como no circo. A atriz que for desempenhar o papel de NossaSenhora deve vir sem caracterização, para deixar bem claro que, no momento, é somente atriz. Imediatamente após o toque de clarim, o Palhaço anuncia o espetáculo.

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y Palhaço: (Grande voz) Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristwão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade. Toque de clarim. Palhaço: A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida! Toque de clarim. A Compadecida: A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora, declara-se indigna de tão alto mister. Toque de clarim. Palhaço: Ao escrever esta peça, onde combate o

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mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades. Toque de clarim. Palhaço: Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo, declara-se também indigno de tão alto papel, mas não vem agora, porque sua aparição constituirá um grande efeito teatral e o público seria privadodesse elemento de surpresa. Toque de clarim. Palhaço: Auto da Compadecida! Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia. João Grilo: Ele diz “à misericórdia”, porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação

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seria condenada. Palhaço: Auto da Compadecida! (Cantando) Tombei, tombei, mandei tombar! Atores: (Respondendo ao canto) Perna fina no meio do mar. Palhaço: Oi, eu vou ali e volto já. Atores: (Saindo) O Encourado (O Diabo) — Dalmo Ferreira Oi, cabeça de bode não tem que chupar. Palhaço: O distinto público imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para a rua é à sua esquerda. (Essa fala dará idéia da cena, se adotar uma encenação mais simplificada e pode ser conservada mesmo que se monte um cenário mais rico.) O resto é com os atores. Aqui pode -se tocar uma música alegre e o Palhaço sai dançando. Uma pequena pausa e entram Chicó e João Grilo.

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João Grilo: E ele vem mesmo? Estou desconfiado, Chicó. Você é tão sem confiança! Chicó: Eu, sem confiança? Que é isso, João, está me desconhecendo? Juro como ele vem. Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho não morre. A dificuldade não é ele vir, é o padre benzer. O bispo está aí e tenho certeza de que o Padre João não vai querer benzer o cachorro. João Grilo: Não vai benzer? Por quê? Que é que um cachorro tem de mais? Chicó: Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento. João Grilo: (Passa o dedo na garganta.) Já estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre uma coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não sei, só sei que foi assim”. Chicó: Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer? Vou mentir, dizer

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que não tive? João Grilo: Você vem com uma história dessas e depois se queixa porque o povo diz que você é sem confiança. Chicó: Eu, sem confiança? Antônio Martinho está para dar as provas do que eu digo. João Grilo: Antônio Martinho? Faz três anos que ele morreu. Chicó: Mas era vivo quando eu tive o bicho. João Grilo: Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o cavalo, Chicó? Chicó: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de nada. No mês passado uma mulher teve um, na serra do Araripe, para os lados do Ceará. João Grilo: Isso é coisa de seca. Acaba nisso, essa fome: ninguém pode ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais barata e é coisa

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que se pode vender. Mas seu cavalo, como foi? Chicó: Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo cuidado, porque o cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem um momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço e enchocalhei ares, olhei ao redor, e não conhecia o lugar onde estávamos. Tomei uma vereda que havia assim e aí tangendo o boi... João Grilo: O boi? Não era uma garrota? Chicó: Uma garrota e um boi. João Grilo: E você corria atrás do dois de uma vez? Chicó: (Irritado) Corria, é proibido? João Grilo: Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos, sem me apertarem.

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Como foi isso? Chicó: Não sei, só sei que foi assim. Saí tangendo os bois e de repente avistei uma cidade. É uma história que eu não goste nem de contar. João Grilo: Conte, conte sempre, você está em casa. Chicó: Você sabe que eu comecei a correr da ribeira do Taperoá, na Paraíba. Pois bem, na entrada da rua perguntei a um homem onde estava e ele me disse que era Própria, de Sergipe. João Grilo: Sergipe, Chicó? Chicó: Sergipe, João. Eu tinha corrido até lá no meu cavalo. Só sendo bento mesmo. João Grilo: Mas Chicó, e o rio São Francisco? Chicó: Lá vem você com sua mania de pergunta, João. João Grilo: Claro, tenho que saber. Como foi

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que você passou? Chicó: Não sei, só sei que foi assim. Só podia estar seco nesse tempo, porque não me lembro quando passei...E nesse tempo todo o cavalo ali comigo, sem reclamar nada! João Grilo: Eu me admirava era se ele reclamasse. Chicó: É por causa dessas e de outras que eu não me admiro mais de nada, João. Cachorro bento, cavalo bento, tudo isso eu já vi. João Grilo: Quer dizer que você acha que o homem vem? Chicó: Só pode vir. É o único jeito que ele tem a dar. A mulher disse que o larga se o cachorro morrer. O doutor diz que não sabe o que é que o bicho tem, o jeito agora é apelar para o padre. Hora de se chamar padre é a hora da morte, de modo que ele tem de vir. Padre João! Padre João! João Grilo: (Ajoelhando-se, em tom lamentoso.)

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Lembra-te de Nosso Senhor Jesus Cristo, Chicó. Chicó, Jesusvai contigo e tu vais com Jesus. Lembra-te de Nosso Senhor Jesus Cristo, Chicó. Chicó: Que latomia é essa para o meu lado? Você quer me agourar? João Grilo: (Erguendo-se.) Ah, e você está vivo? Chicó: Estou, que é que você está pensando? Não é besta não? João Grilo: Você disse que hora de chamar padre era a hora da morte, começou a gritar por Padre João, eu só podia pensar que estava lhe dando a agonia. Chicó: (Depois de estender-lhe o punho fechado.)

Padre João!

João Grilo: Padre João! Padre João! Padre: (Aparecendo na igreja.) Que há? Que gritaria é essa? Fala afetadamente com aquela pro-

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núncia e aquele estilo que Leon Bloy chamava “sacerdotais”. Chicó: Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer. Padre: Para eu benzer? Chicó: Sim. Padre: (Com desprezo.) Um cachorro? Chicó: Sim. Padre: Que maluquice! Que besteira! João Grilo: Cansei de dizer a ele que o senhor benzia. Benze porque benze, vim com ele. Padre: Não benzo de jeito nenhum. Chicó: Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho.

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João Grilo: No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor não o benzeu? Padre: Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar. Chicó: Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor. Padre: É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro? João Grilo: É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é o motor do major Antônio Morais e outra benzer o cachorro do major Antônio Morais. Padre: (Em concha no ouvido.) Como? João Grilo: Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio Morais. Padre: E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais?

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João Grilo: É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar. Padre: (Desfazendo-se em sorrisos.) Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro! João Grilo: (Cortante.) Quer dizer que benze, não é? Padre: (A Chicó.) Você o que é que acha? Chicó: Eu não acho nada de mais. Padre: Nem eu. Não vejo mal nenhum em abençoar as criaturas de Deus. João Grilo: Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo satisfeito. Padre: Digam ao major que venha. Eu estou esperando.

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Entra na igreja. Chicó: Que invenção foi essa de dizer que o cachorro era do major Antônio Morais? João Grilo: Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era “Que maluquice, que besteira!”, agora “Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!”. Chicó: Isso não vai dar certo. Você já começa com suas coisas, João. E havia necessidade de inventar que era empregado de Antônio Morais? João Grilo: Meu filho, empregado do major e empregado de um amigo do major é quase a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que é amigo do homem, de modo que a diferença é muito pouca. Além disso, eu podia perfeitamente ter sido mandado pelo major, porque o filho dele está doente e pode até precisar do padre.

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“O Auto da Compadecida foi uma das coisas mais deliciosas que tenho lido em vida minha, desde que sei ler.” Rachel de Queiroz “Lendo ou ouvindo a peça de Ariano Suassuna, o encantamento é o mesmo.” Eneida “Com Ariano Suassuna começa a surgir um “teatro do Nordeste”, assim como se constitui e persiste um inconfundível... Nunca um teatro de motivo brasileiro encontrou com tanta nitidez os seus legítimos recurso expressivos quanto em o Auto da Compadecida.” Eduardo Portella “O tipo de João grilo, ‘amarelo’ nordestino, cujas proezas são cantadas em abc, dentro da peça de Ariano Suassuna simboliza e representa muito bem o engenho popular da nossa raça, gente intuitiva e telúrica, imaginosa e sofrida.” Paulo Dantas

ISBN 85-220-0265-7

9 788522 002658


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