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Os sujeitos da pesquisa
from Deficiência intelectual e terminalidade específica: novas possibilidades de inclusão ou exclusão
Em cada categoria, foram elaboradas questões que continham informações, expectativas e problemas a serem investigados relacionados ao tema central da pesquisa e com os pressupostos teóricos que a embasam. Não se pretende, com isso, esgotar as diferentes abordagens que emergem de uma discussão dessa natureza, mas contribuir para a indicação de elementos que promovam uma reflexão mais crítica e subsidiada a respeito da possibilidade, ou não, de obtenção de terminalidade acadêmica por alunos com deficiência intelectual que estudam em escolas regulares, egressos de escola especial ou de Classe Especial. As entrevistas foram realizadas pessoalmente pela pesquisadora nos meses de agosto e setembro de 2003. Após a apresentação dos sujeitos da pesquisa, ainda neste capítulo, será relatada a análise das entrevistadas estruturadas. A pesquisa desenvolvida com os cinco sujeitos consistiu na análise da documentação escolar de cada um, desde a sua entrada na escola e por todo seu percurso escolar até o momento da entrevista. A pesquisa consistiu, ainda, na realização de avaliações pedagógicas realizadas com cada sujeito por meio de testes pedagógicos elaborados tanto pela Secretaria de Educação do Estado – Departamento de Educação Especial – como pelo CRAPE, ou pela pesquisadora. Neste último caso, os testes consistiam em produções de textos, ditados de palavras, resolução de situaçõesproblemas e de operações matemáticas, elaborados e propostos aos alunos no momento da avaliação, para sua complementação.
Os sujeitos da pesquisa
A escolha dos sujeitos da pesquisa partiu de uma análise de casos de alunos matriculados em escolas da rede pública de ensino, com base nos seguintes critérios: serem jovens e adultos com muitos anos de escolaridade; egressos de Escola Especial (APAE) e Classe Especial, portanto, com histórico de deficiência intelectual, e que apresentavam dificuldades acentuadas de aprendizagem, que restringiam as expectativas em relação a sua terminalidade acadêmica e a encaminhamentos posteriores à escola, quer para a continuidade de sua escolaridade, quer para inserção no mercado de trabalho. No início da pesquisa, não havia clareza se a terminalidade específica deveria ser efetivada para alunos já alfabetizados, mas que apresentavam dificuldades acentuadas para prosseguirem em seu processo de escolarização, ou seja, para chegar às últimas séries do Ensino Fundamental (7ª e 8ª séries)27 . Dessa forma, estar alfabetizado, mas apresentar dificuldades acentuadas para aprender, foi o critério determinante para a seleção de três dos cinco sujeitos da pesquisa – aqueles que hoje estão na 6ª série28 do ensino fundamental – pois partiu-se da hipótese de que a certificação desse nível de ensino, via terminalidade específica, poderia ser concedida a estes alunos porque eles, apesar de alfabetizados, apresentavam muitas dificuldades para continuar aprendendo os conteúdos mais complexos da escola. Então, a
27 7ª e 8ª séries correspondem, atualmente ao 8º e 9º anos. Considere-se essa correspondência para as demais menções no texto. 28 A 6ª série corresponde, atualmente, ao 7º ano. Considere-se essa correspondência para as demais menções no texto.
terminalidade específica seria uma forma legal e necessária, que surgiu na legislação brasileira (LDB nº 9394/89, Art. 59, II) para dar conta de casos como esses. Quanto aos outros dois sujeitos da pesquisa, por ainda não estarem alfabetizados no momento da realização da pesquisa, a hipótese era de que a terminalidade específica lhes seria importante, porque constituía-se numa inovação capaz de levá-los à conquista da “cidadania”, na medida em que poderiam continuar seu processo de escolarização na Educação de Jovens e Adultos e/ou na Educação Profissional e teriam mais facilidade para adentrar o mercado de trabalho, pois, de posse desse certificado, poderiam ter acesso inclusive a concursos públicos pela lei de reserva de vagas. Com relação aos concursos públicos para pessoas com deficiência intelectual, acontece que, mais uma vez, elas ficam em desvantagem em relação às outras pessoas com deficiência, pois, para essas, bastam adaptações nas provas dos concursos para que as realizem com êxito, se estiverem preparadas. Mas, para as pessoas com deficiência intelectual, na maioria das vezes, falta-lhes certificação de conclusão de escolaridade, já que a maior parte das que um dia teve acesso à escola, após ficar por longos anos matriculada em escolas especiais ou em classes especiais, saiu dessas escolas sem nenhum comprovante de conclusão de curso com respaldo legal. Nesse sentido, a terminalidade específica poderia constituir-se como uma facilidade no acesso ao mercado de trabalho. Isso aconteceria se o conhecimento não fosse, na complexa sociedade capitalista, de grande importância para a conquista de um emprego. Mas, como o aluno com deficiência intelectual candidato à terminalidade específica não tem os mesmos conhecimentos que os demais alunos – nem mesmo seriam alfabetizados –, suas possibilidades são restritas, quase inexistentes. Com relação a essa questão, cita-se a Lei nº 3728/03, do município de Cascavel-PR, aprovada em 07 de novembro de 2003, e que “Dispõe sobre os cargos e empregos públicos reservados às pessoas portadoras de deficiência, define critérios para a sua admissão, e dá outras providências”. No Art. 6º, a lei prescreve:
Os editais de concursos públicos deverão conter [...] VI – no ato da inscrição o candidato com deficiência deve requerer condições diferenciadas e/ou a dilatação de horário para participação das provas. Parágrafo único: No caso da pessoa com deficiência mental, o laudo médico com o devido CID a que se refere o inciso anterior, poderá ser substituído por uma avaliação psicopedagógica efetuada por psicólogos e pedagogos especializados na área da deficiência mental, vinculados a programa ou instituição especializada devidamente credenciada pelo sistema de ensino (CASCAVEL, 2003, s.p.).
E, no Art. 9º:
Para atender as diferentes necessidades das pessoas com deficiência podem ser providenciados os seguintes recursos [...] IV - Para o candidato com deficiência mental: a) Para os cargos que exijam apenas alfabetização, sem a necessidade de comprovação escolar, os conteúdos da prova também serão aplicados adotando-se métodos de avaliação
prática/concreta, atribuindo-se maior peso aos resultados obtidos nas provas práticas (CASCAVEL, 2003, s.p.).
Conquanto essa lei seja recente e fruto de muita discussão com o Fórum Municipal em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de Cascavel, ela ainda restringe enormemente o acesso de pessoas com deficiências intelectuais mais graves aos concursos públicos, quando coloca a alfabetização como pré-requisito, embora prescinda da comprovação da certificação. Nesse caso, as pessoas que tivessem recebido terminalidade específica sem saber ler, escrever e calcular não poderiam prestar o concurso público para a Prefeitura Municipal de Cascavel, que talvez seja uma das poucas do Brasil que contam com provas diferenciadas e preveem que equipes da área psicoeducacional podem substituir o médico na avaliação do candidato. Antes de iniciar a apresentação dos sujeitos da pesquisa, faz-se necessário explicitar o conceito de deficiência intelectual, no tocante aos aspectos históricos de sua construção, como ele é definido hoje e a questão da classificação das pessoas com deficiência intelectual. A expressão feeble mindedness é usada para indicar funcionamento intelectual abaixo da média, significando debilidade mental. Foi depois substituída por mental deficiency ou deficiência mental e, mais tarde, por mental retardation. Mazzotta (1997) afirma que alguns autores diferenciam as expressões “deficiência mental”29 e “retardo mental” e que a tendência é considerar a deficiência intelectual como irreversível, com causas orgânicas e o retardo mental decorrente de fatores socioculturais, caracterizando alterações no potencial intelectual do sujeito. Conceituar deficiência intelectual e definir quem a possui tem sido tarefa extremamente complexa no atual momento histórico, em que o direito de ser diferente tem sido visto também como um direito humano, mas que, pela lógica de homogeneidade e pelas normas de produtividade e rentabilidade que permeiam a sociedade, a tendência é realmente marginalizar e segregar quem não acompanha as exigências e os ritmos cada vez mais acelerados da vida moderna. O reflexo da complexidade para a definição da deficiência intelectual está presente nas concepções e nos tipos de atendimento que essas pessoas recebem no decorrer da história. Enquanto a história das pessoas com deficiência demonstra que seu atendimento educacional acontece de diferentes maneiras, conforme os diferentes tipos de deficiência, ou seja, enquanto para surdos, cegos e pessoas com deficiência física foram criadas escolas, para as pessoas com deficiência intelectual, os atendimentos tiveram caráter assistencialista e de treinamento, num enfoque educativo assistencial e equivocado, que pressupunha que o treino de habilidades era o máximo que se poderia desenvolver com essas pessoas. A deficiência intelectual, dentre as áreas de deficiência, tem sido historicamente fruto de preconceitos e formas de exclusão acirrados. Miranda (2001, p. 183) afirma que “os portadores das outras deficiências não foram alvos de tantos preconceitos, pois com
29 Atualmente, Deficiência Intelectual. Considere-se essa correspondência para as demais menções no texto.
esses, pouco a pouco, houve a preocupação com a educação e a preparação para o trabalho”. Em 1932, o Ministério da Educação e Saúde Pública elaborou relatório para prestar contas do Instituto Benjamin Constant, da área visual, e do Instituto Nacional de SurdosMudos, da área auditiva. No relatório do Instituto Nacional de Surdos-Mudos, o ministro não só prestou contas do aspecto financeiro, como também do aspecto educacional e de saúde dos alunos surdos internos, afirmando que aqueles matriculados no último ano foram devidamente fichados no serviço médico e que,
[...] para avaliação do quociente mental o Professor Saul Carneiro, incumbido desse exame, guiou-se pelas indicações do Professor Pintner, obtendo resultados que, embora não possam ser considerados definitivos, serviriam para o reconhecimento dos débeis mentais, o que facilitou a organização das classes mais homogêneas. Os alunos que demonstraram grande déficit mental foram excluídos do Instituto, de acordo com o regulamento, sendo, entretanto, aproveitados, no ensino profissional, os de inteligência apenas retardada (PIRES, 1934, p. 37, grifos nossos).
Do caráter assistencialista originado no início da era cristã e que ainda hoje teima em impregnar muitos trabalhos pedagógicos na área da deficiência intelectual, passou-se ao caráter médico-terapêutico. O médico otorrinolaringologista Jean Marc Itard foi o precursor do trabalho médico com características pedagógicas na educação30 de pessoas com deficiência intelectual e desenvolveu um magnífico trabalho com um garoto selvagem encontrado nas florestas de Aveyron, no sul da França, por volta de 1.800 – e que foi chamado posteriormente de Victor. Pessotti (1984, p. 66), ao abordar a história de Itard e Victor de Aveyron, denomina-a “epopéia pedagógica”, partindo dos conceitos da tábula rasa (Locke), da estátua (Condillac) e do bom selvagem (Rousseau), como a filosofia de base para a elaboração de uma autêntica didática da deficiência intelectual. Para melhor ilustrar esse trabalho pedagógico de Itard, reproduz-se – a partir da obra A educação de um selvagem: as experiências pedagógicas – uma pequena parte de um dos relatórios que elaborou para o Ministro do Interior da França sobre o desenvolvimento da linguagem de Victor, intitulado “Da educação de um homem selvagem ou dos primeiros desenvolvimentos físicos e morais do jovem selvagem do Aveyron”. Itard afirma – na parte do relatório que denominou “Quarta Meta: levá-lo ao uso da fala, determinando o exercício da imitação pela lei imperiosa da necessidade” – que obteve pouco sucesso neste trabalho de ensinar Victor a falar.
30 Outros médicos que também atuaram como educadores: Edward Seguin (1.812-1.880), Johann J. Guggenbüll (1.8161.863), Maria Montessori (1.870-1.956).
Com relação às questões: “O Selvagem fala? Se não é surdo, por que não fala?”, Itard apresenta várias referências a situações que comprovam a capacidade de audição de Victor, embora este não fale. Diz:
[...] imagina-se por que o ouvido, muito apto para perceber certos ruídos, mesmo os mais leves, deve sê-lo muito pouco para apreciar a articulação dos sons. Aliás, não basta, para falar, perceber o som da voz; cumpre ainda apreciar a articulação desse som; duas operações bem distintas e que exigem da parte do órgão, condições diferentes. Basta para a primeira, certo grau de suscetibilidade. Logo, pode-se, com ouvidos bem organizados e bem vivos, não apreender a articulação das palavras. Encontramos entre os cretinos muitos mudos e que, entretanto, não são surdos.
Com tantos médicos envolvidos no trabalho com pessoas com deficiência, a conotação médico-terapêutica impregna as concepções de pessoa com deficiência intelectual, no sentido de que a causa da deficiência é resultado de uma doença. Essa concepção organicista tem permeado a história dessas pessoas e dificultado vê-las sob um prisma mais científico, menos estigmatizante, em que seria mais adequado conceber a deficiência intelectual como “condição”, cuja principal característica é o déficit intelectual, acompanhado de atraso em uma ou mais áreas das habilidades de adaptação exigidas pela sociedade.
A terminologia mais antiga desse grupo tem origem nos critérios clínicos, usados inicialmente na prática psiquiátrica, tendo como determinantes os fatores hereditários ou adquiridos por perturbações ou doenças pré, peri ou pós natais. As pessoas portadoras dessa deficiência eram identificadas com o termo oligofrênico e os rótulos qualitativos débil, imbecil, cretino e idiota indicavam os subgrupos de acordo com o nível de desenvolvimento alcançado. Até por volta de 1837, as pessoas tidas como anormais, isto é, que fugiam à norma da sociedade vigente, eram segregadas do convívio familiar e internadas em instituições que não diferenciavam o atendimento entre os mentalmente retardados e os mentalmente doentes. Com o avanço dos estudos e pesquisas nas diversas áreas da ciência e da educação, e com suas conseqüentes contribuições para o desenvolvimento da área da educação especial, muitos critérios que formavam o conceito retardo mental foram se transformando, principalmente os que o concebiam como decorrente de etiologia fundamentalmente orgânica (fatores genéticos ou perinatais) (PARANÁ, 1994, p. 54, grifos no original).
Para melhor compreender o que significa a deficiência intelectual, destaca-se a afirmação de Fonseca (1992):
[...] desde Esquirol, Ireland, Pinel e outros, até Zazzo, Inhelder, Luria, Zigler, Doll e tantos outros, que os termos descritivos da DM procuraram compreender a natureza do problema. É interessante notar que os
termos e as classificações iniciais encerravam certos estigmas e certos critérios sociais que encontramos em designações como “idiota”, “imbecil”, “cretino”, “anormal”. Mais tarde, superaram-se as estigmatizações e as descrições subjacentes a critérios de superioridade e entrou-se numa nova dimensão, começando por aceitar o problema, tentando explicá-lo o mais objetivamente possível. Chegou-se à conclusão que a DM apresenta um ritmo e uma atipicidade de desenvolvimento e de maturação, que se verificam evoluções conceituais malcontroladas, além de problemas de atenção seletiva e de autoregulação de condutas, em que o meio joga um papel fundamental, aceitando ou rejeitando comportamentos adaptativos, que são ou não “normalizados” ou “padronizados” (FONSECA, 1992, p. 44, grifos do autor).
Também Vigotski (1997) afirma:
[…] en la actualidad también los mejores científicos burgueses reconocen que hablar sobre el niño “retrasado mental” es lo mismo que hablar sobre una persona que está enferma, pero no dicen en este caso qué enfermedad padece. Se puede contatar el hecho del retraso, pero es difícil, determinar la esencia, el origen y el destino del desarrollo de este niño. En relación con esto la tarea principal que tienen ante sí los investigadores del retraso mental es la aspiración por ayudar a esudiar el desarrollo del niño retrasado mental y las leyes que dirigen este desarrollo31 (VIGOTSKI, 1997, p. 102).
Nessa tentativa de compreender a deficiência intelectual, constata-se que foi na virada do século XIX para o XX que ocorreu a expansão de atributos comportamentais relacionados à “inteligência subnormal” e que, de forma predominante, foram descritos de maneira negativa, definindo capacidades ausentes, deficitárias, ou a presença de comportamentos aberrantes ou antissociais, que reforçavam o “caráter de estranheza” historicamente conferido à deficiência intelectual como categoria genérica, que não diferenciava os graus leves dos severos, mas constituía-se como um construto monolítico (MENDES, 1996). Importa observar que, como de certa forma houve essa indiferenciação nos graus, no sentido de que, uma vez atribuído ao aluno o rótulo de deficiência intelectual, era muito difícil retirá-lo – pois, no imaginário social, inclusive da comunidade escolar, as condições de desvio social e intelectual eram o que persistia –, o grande desafio foi explicar teórica e comprovadamente os casos de deficiência intelectual leve, para os quais não havia necessariamente uma causa orgânica determinada.
31 “[...] na atualidade também os melhores cientistas burgueses reconhecem que falar sobre a criança “retardada mental” é o mesmo que falar sobre uma pessoa que está enferma, porém não dizem, neste caso, de que enfermidade padece. Pode-se constatar o fato do retardo, porém, é difícil determinar a essência, a origem e o destino do desenvolvimento desta criança. Em relação a isso, a tarefa principal que têm diante de si os investigadores do retardo mental é a aspiração de ajudar a estudar o desenvolvimento da criança retardada mental e as leis que dirigem este desenvolvimento” (VIGOTSKI, 1997, p. 102, tradução nossa).
Binet, um jovem francês formado em Direito, mas que desde cedo se interessou pela Psicologia e foi considerado o iniciador da psicometria, publicou, em 1903, o Estudo Experimental da Inteligência, com base na observação de suas filhas e, em 1894, assumiu a direção do Laboratório de Psicologia da Sorbonne. Como, em 1904, o Ministério da Instrução Pública da França havia criado em Paris uma comissão para estudar o problema das crianças que não conseguiam acompanhar seus pares no tocante à escolaridade, Binet propôs métodos pedagógicos especiais para elas. Seu principal colaborador foi o Dr. Thomás Simon, que trabalhava num asilo para crianças retardadas. Juntamente com Simon, Binet construiu uma escala para medir uma grande variedade de funções mentais que julgava importantes para definir a inteligência e estabelecer também o conceito de idade mental com base em tarefas que as crianças francesas de determinada faixa etária deveriam ser capazes de realizar. Por exemplo: aos três anos de idade, as crianças deveriam ser capazes de apontar o nariz, a boca e os olhos, repetir dois algarismos, enumerar os objetos reproduzidos num quadro, dizer seu sobrenome e repetir uma frase de seis sílabas. Segundo Tredgold (1937) e Doll (1941) (apud MENDES, 1996), nas definições científicas de deficiência intelectual que aparecem, em meados do século XX, como as mais utilizadas na literatura da área, são reafirmados os critérios de organicidade que Binet tentara abolir, o déficit intelectual passível de comprovação e a natureza irreversível da condição. Então, a antiga categoria genérica de idiotia é agora denominada como “retardo ou deficiência mental”, e, a partir do final dos anos 1950, por certo descontentamento crescente em relação ao critério psicométrico único, utilizado para embasar as decisões educacionais na área mental32, esta passa a ser dominada, por definições socioeducacionais publicadas nos manuais da Associação Americana de Retardo Mental. A partir dos anos 1960, surgem seis destes manuais, introduzindo modificações teóricas na definição científica e/ou no sistema de diagnóstico e classificação da deficiência intelectual como condição, que perde então a referência à etiologia e incurabilidade e passa a subcategorias de deficiência intelectual limítrofe, leve, moderada, severa e profunda (MENDES, 1996). Jiménez (1997) afirma que, para definir a deficiência intelectual, devem-se considerar três correntes. A primeira é a Corrente Psicológica ou Psicométrica, cujos representantes, Binet e Simon, definem deficiência intelectual como a diminuição da capacidade intelectual do indivíduo, cuja mensuração se faz por testes padronizados para medir o QI – Quociente de Inteligência. A segunda é a Corrente Social ou Sociológica, representada por Doll, Kanner e Tredgold, que definem a pessoa com deficiência intelectual como aquela que possui dificuldade de adaptação ao meio social, o que se constitui em obstáculo para uma vida mais autônoma. A terceira é a Corrente Médica ou Biológica, que defende que a deficiência intelectual é de origem biológica; que ela se manifesta durante o desenvolvimento infantil ou, pelo menos, até os dezoito anos. O autor afirma, ainda, que as três correntes foram agrupadas numa só definição, que é a aceita pela AAMR.
32 Leia-se Intelectual.
Mendes (1996) afirma, ainda, que foi Heber (1959; 1961)
[...] o primeiro a incluir uma definição sócio-educacional e classificação comportamental, além das tradicionais classificações etiológicas. Ele manteve o critério psicométrico (estabelecendo um QI de aproximadamente 84 ou equivalente a um desvio padrão da média), associado ao déficit no comportamento adaptativo e estabeleceu ainda que o aparecimento do problema devia se evidenciar no período de desenvolvimento, estipulado do nascimento até os 16 anos de idade (MENDES, 1996, p. 124).
Segundo a Associação Americana de Retardo Mental (AAMR) – uma organização composta de profissionais de várias áreas da ciência, entre elas medicina, direito e educação –, “o retardo mental é definido como sendo o funcionamento intelectual significativamente abaixo da média, observado durante o período de desenvolvimento integral do organismo e que leva a deficiências no comportamento adaptativo” (PARANÁ, 1994, p. 54). Em 1992, é publicado o manual elaborado por Luckason e outros, tentando introduzir mudanças com o objetivo de caracterizar a importância do ambiente no “funcionamento presente” da pessoa com deficiência intelectual e prescrever-lhe os tipos de apoio de que necessita (MENDES, 1996). Na verdade, as principais mudanças que se verificam com esta nova conceituação de Deficiência Mental é que agora ela passa a ser concebida como sinônimo de funcionamento presente e não mais como um estado permanente, pois há a esperança de que, se o sujeito for bem trabalhado no tocante às condutas/comportamentos adaptativos, sua condição de funcionamento intelectual mudará. Tais condutas adaptativas – comunicação, cuidados pessoais, vida no lar, habilidades sociais, desempenho na comunidade, independência na locomoção, saúde e segurança, habilidades acadêmicas funcionais, lazer e trabalho – ocorrem “dentro do contexto de ambientes comunitários típicos da idade dos pares do indivíduo e estão indexadas às necessidades de ajuda individual da pessoa” (PARANÁ, 1994, p. 58). Segundo Ferreira (1995), há dificuldades para avaliar o comportamento adaptativo, já que o déficit nesta área “supõe a definição de que o diagnóstico de deficiência mental apenas se aplica quando se constatarem o funcionamento intelectual submédio e problemas de adaptação. A segunda medida serviria para contrabalançar a inadequação do QI como critério exclusivo” (FERREIRA, 1995, p. 47). Nessa abordagem, as ajudas ou apoios referidos são imprescindíveis para uma concepção menos rotuladora e positivista da deficiência intelectual. Sua necessidade, intensidade e frequência deverão ser definidas pela equipe multiprofissional que avalia o aluno, juntamente com a escola e a família e que, ao avaliá-lo, deve vê-lo não mais pelo aspecto de suas deficiências ou limitações e sim sob o aspecto de suas potencialidades, daquilo que ele poderá realizar se tiver as ajudas/apoios necessários. Esse enfoque é denominado “social” em contraposição ao enfoque “psicoeducacional”. Essa é a abordagem multidimensional que fundamenta a definição de retardo mental de 1992, da AAMR, permitindo uma descrição mais detalhada das mudanças que
ocorrem com o passar do tempo: mudanças ambientais, atividades educacionais e intervenção terapêutica, quando necessário. Segundo documento do MEC que oferece subsídios para organizar serviços educacionais para alunos com deficiência intelectual, o enfoque multidimensional considera “o déficit intelectual indispensável, mas não suficiente, nem exclusivo para identificação de uma pessoa como portadora de deficiência mental” (BRASIL, 1995, p. 20). A abordagem multidimensional visa ampliar a conceituação de retardo mental, evitar a confiança em QI para determinar o nível de deficiência e relacionar as necessidades do indivíduo com os níveis apropriados de apoio. Quanto aos níveis de intensidade requeridos, os apoios caracterizam-se em:
Apoio Intermitente – o apoio é oferecido conforme as necessidades do indivíduo. É caracterizado como de natureza episódica, pois geralmente se faz necessário por períodos curtos durante transições ao longo da vida, como por exemplo, perda do emprego ou uma crise médica aguda. Apoio intermitente pode ser de alta ou baixa intensidade. Apoio Limitado – a intensidade de apoio é caracterizada por consistência ao longo do tempo. O tempo é limitado, mas não de natureza intermitente, podendo exigir poucos membros do staff e de custo menor comparado com outros níveis de apoio mais intensivos. Como exemplos poder-se-ia citar: a) treinamento realizado pela escola para o emprego no mercado competitivo; b) treinamento em habilidades de vida diária, como ensinar a escovar os dentes; c) treinamento de habilidades esportivas, como ensinar a nadar. Apoio Amplo - caracterizado pelo envolvimento diário e tempo ilimitado, em pelo menos alguns ambientes (ex: no lar e na escola, ou no trabalho e no lar). Um exemplo desse tipo de apoio é a ajuda regular e diária que se dá em AVDs, tanto em casa quanto na escola. Apoio Permanente - caracterizado pela sua constância e alta intensidade. É oferecido nos ambientes onde a pessoa vive. É de natureza vital para a sustentação da vida do indivíduo. O apoio permanente tipicamente envolve mais membros do staff e é mais intensivo que o apoio por tempo ilimitado ou apoio amplo em ambientes específicos (PARANÁ, 1994, p. 62).
Ainda de acordo com o documento, “o conceito de apoio necessário reflete uma perspectiva contemporânea de acordo com o grau de expectativa de crescimento e do potencial da pessoa. Enfoca escolha, oportunidade e autonomia pessoal [...]” (PARANÁ, 1994, p. 62). O quadro a seguir mostra as formas de classificação que historicamente foram utilizadas para caracterizar sujeitos com déficits cognitivos e os prognósticos para o seu desenvolvimento. Nos aspectos relacionados à educação, essas classificações constituem a definição psicoeducacional de deficiência intelectual.
Quadro 2 – Parâmetros usualmente considerados para nível de retardamento
Nível de retardamento Característica de desenvolvimento Característica educacional Adequação social
Retardados mentais leves educáveis QI – 55/60 – 70/75 Atraso leve no desenvolvimento para andar e cuidar de si; geralmente não se diferenciam da média das crianças até a idade escolar;
Retardados mentais moderados treináveis QI – 35/40 – 55/60 Atraso notável na aprendizagem de habilidades básicas, mas aprendem a falar, andar, alimentar-se e cuidar de sua toalete.
Retardados mentais severos treináveis e custodiais QI – 20/25 – 35/40
Retardados mentais profundos custodiais QI abaixo de 20/25 Grande atraso no desenvolvimento de aprendizagem de habilidades básicas. Estas só são conseguidas por volta dos 6 (seis) anos de idade cronológica. Geralmente apresentam capacidade mínima de aprendizagem, raramente se alimentam, falam ou cuidam de si. Muitos ficam permanentemente na cama.
Fonte: Amiralian (1986, p. 18) Capazes de aprendizagem acadêmica até mais ou menos a 3ª ou 4ª série do primeiro grau, em ensino especializado de escola comum. Capacidade de aprendizagem escolar a nível de pré-escola; rudimentos de aprendizagem acadêmica; reconhecimento de número e palavras. Capazes somente de aprendizagens rudimentares e não em áreas acadêmicas, apenas em áreas de cuidados pessoais.
Alguns são capazes de aprender a andar e se alimentam; não aprendem linguagem nem fala [sic]. Quando adultos são capazes de independência social e econômica, casam-se e muito freqüentemente perdem a identificação de deficientes mentais.
Quando adultos são capazes de realizar trabalho supervisionado, freqüentemente em oficinas abrigadas; raramente casam ou conseguem independência. Somente capazes de realização de tarefas simples, seja em casa ou ambiente protegido; necessitam freqüentemente de cuidados permanentes. São incapazes de se manter por si; necessitam permanentemente de cuidados de enfermaria.
Historicamente, a população de pessoas com deficiência intelectual leve foi enviada para classes especiais nas escolas regulares, onde permanecia por anos a fio, sem concluir seus estudos e a cada ano tendo reforçado o rótulo que um dia recebeu para legitimar sua dificuldade/incapacidade de aprender o que a escola lhe ensinava. Essa legitimação é explicada por Mendes (1996, p. 121), ao afirmar que “Binet (1908) irá atribuir um déficit intelectual de grau leve a esta incapacidade escolar, denominando-a como ‘debilidade mental’, e possibilitará associar tal condição à idiotia e à imbecilidade, que já eram consideradas como graus de desvio intelectual”. Nos estudos referentes à deficiência intelectual, faz-se necessário refletir sobre a pertinência ou não de continuar classificando essas pessoas em leves, moderadas, severas e profundas, especialmente num momento em que o maior contingente, antes
identificado como pessoas com deficiência intelectual “leve” (85%), não é mais considerado. Em havendo 85%33 de pessoas, consideradas com deficiência intelectual “leve”, saído das estatísticas oficiais, onde estaria hoje essa população? Até o ano 2000, no Brasil, utilizava-se o referencial da OMS para quantificar as pessoas com deficiência que, nos países em desenvolvimento, estimava-se em 10% da população. A partir do Censo 2000 do IBGE, esse número saltou para 14,5% (cerca de 24,5 milhões), havendo também uma mudança nos percentuais das diferentes áreas de deficiência. No caso da deficiência intelectual, o jornal Folha de São Paulo, de 21 de agosto de 2002 apresenta num infográfico intitulado “Casos de deficiência no país”, um percentual de apenas 8,3% para a deficiência intelectual, do número total de pessoas com deficiência, hoje estimado em 24,5 milhões. Dessa forma, a deficiência intelectual, que já foi considerada (até o ano 2000) como a área da deficiência com a maior incidência, passa agora para o penúltimo lugar, com o número de 2.848.684 pessoas (ou 8,3% da população total de pessoas com deficiência). Pelas estimativas anteriores ao ano 2000 – da OMS –, a metade do contingente de pessoas com deficiência (50%) que existia era de pessoas com deficiência intelectual. Se a população brasileira hoje é de cerca de 177 milhões de habitantes, haveria 17 milhões de pessoas com deficiência e, desse total, a metade (quase nove milhões) seria de pessoas com deficiência intelectual. Como se explica essa drástica redução? Teriam as pessoas, antes identificadas com deficiência intelectual, deixado de sê-lo? Como há um asterisco na palavra “mental”34 do infográfico e que remete a uma nota de rodapé explicativa, em que aparece a palavra “permanente”, a conclusão a que se pode chegar é que a deficiência intelectual considerada pelo IBGE atualmente é apenas a de níveis mais comprometidos – aquelas pessoas que eram classificadas com deficiências intelectuais severas e profundas, ou seja, as que têm déficits intelectuais reais; mesmo aquelas com déficits moderados poderiam não estar incluídas nesse percentual, dada a drástica redução. Essa é uma questão preocupante, pois o fato de 85% da população antes considerada com deficiência intelectual, deixar repentinamente de sê-lo, poderia ser muito positivo, considerando que deixaria de ser rotulada, estigmatizada. No entanto, o fato de serem desconsideradas essas pessoas nas estatísticas oficiais faz com que sejam desconsideradas também como objeto de uma atenção escolar diferenciada (leia-se especializada), com relação à educação. Provavelmente, isso não fará com que deixem de necessitar dessa atenção especial, ou tenham diminuídas suas dificuldades; pelo contrário, poderão tê-las agravadas na medida em que estarão numa escola homogeneizadora e que não sabe e nem tem as condições materiais para proporcionarlhes uma educação que atenda as suas necessidades educacionais especiais. Na sequência, define-se a caracterização do grupo de alunos egressos da APAE e/ou Classe Especial e que fazem parte do universo dos participantes desta pesquisa.
33 Segundo o documento Fundamentos Teórico-Metodológicos para a Educação Especial (1994, p. 56), a incidência da deficiência intelectual, quanto aos diferentes graus da referida deficiência, corresponde a: 85% para o grau leve, 10% para o grau moderado, 3 a 4% para o grau severo e 1 a 2% para o grau profundo. 34 Referindo-se a Intelectual.