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X UNIVERSIDADE BRASILEIRA E FUNDOS PATRIMONIAIS (ENDOWMENTS FUNDS): NOVOS TRAÇOS DO “COLONIALISMO EDUCACIONAL” E “PRIVATISMO EXALTADO” Viviane Queiroz
from Capitalismo dependente, racismo estrutural e educação brasileira: diálogos com Florestan Fernandes
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UNIVERSIDADE BRASILEIRA E FUNDOS PATRIMONIAIS (ENDOWMENTS FUNDS): NOVOS TRAÇOS DO “COLONIALISMO EDUCACIONAL” E “PRIVATISMO EXALTADO”*
Viviane Queiroz
INTRODUÇÃO
Este capítulo tem como objetivo analisar a agenda do capital para a criação dos fundos patrimoniais no Brasil como um novo processo de transplantação de modelos internacionais, especialmente dos Estados Unidos (EUA), para a educação superior brasileira. Busca entender as estratégias dos aparelhos privados de hegemonia (APHs)1 de difundir e implementar o conceito de endowment2 e como esse mecanismo constitui a base da nova face privatizante das universidades públicas no Brasil.
O diálogo com a obra de Florestan Fernandes é essencial para compreendermos a dinâmica das lutas de classes no Brasil e a disputa entre projetos antagônicos de educação e de universidade. Um intelectual orgânico dos oprimidos, com atuação política em defesa da educação pública e que enfrentava os desafios educacionais do seu tempo em meio a dura repressão sobre as universidades públicas brasileiras. Consideramos, portanto, que os clássicos nos impulsionam a tarefa de enfrentar os novos desafios, articulando a teoria às formas de resistências as contradições do capitalismo contemporâneo, particularmente, as contradições do capitalismo dependente.
Para compreendermos os atuais dilemas do capitalismo e da educação superior brasileira é necessário, portanto, retomarmos os eixos centrais do pensamento sociológico e educacional de Florestan Fernandes, apreendendo as
*DOI – 10.29388/978-65-86678-36-9-0-f.187-208
1 Aparelho privado de hegemonia é uma categoria gramsciana. Fontes (2010, p. 282) destaca que os APHs “[...] não se definem, em Gramsci, unicamente pela vontade de transformação (ou con servação), mas pelos laços orgânicos que os ligam às classes sociais fundamentais”. 2 Segundo Fabiani (2012) endowment é o termo original em inglês no que se convencionou a definir, no Brasil, como fundo patrimonial ou fundo filantrópico.
particularidades da universidade no capitalismo dependente e recuperando as análises do saudoso intelectual militante sobre o colonialismo educacional e o privatismo exaltado como elementos estruturantes do padrão dependente de educação superior no Brasil, para, a partir desta fundamentação teórica, examinarmos suas novas configurações. Estas são as tarefas que nos propomos realizar no presente capítulo.
A UNIVERSIDADE NO CAPITALISMO DEPENDENTE
A análise sobre a natureza da burguesia brasileira e o pacto de dominação que conduz associada ao imperialismo constitui-se uma tarefa crucial para os estudos e pesquisas acerca dos dilemas e desafios que atravessam a educação superior no Brasil, especificamente, a pauta dos fundos patrimoniais. No diálogo com Florestan Fernandes é essencial percebermos a dinâmica da luta de classes no Brasil e o papel da burguesia brasileira. Para o autor, a condição colonial permanente é, assim, redefinida no curso da história, a começar da ruptura com antigo sistema colonial associada a preservação das funções extra capitalistas, conforme analisado nos capítulos anteriores. A burguesia brasileira se organiza enquanto classe de forma tosca, violenta e ultraconservadora, demandando uma modernização conservadora na condução da transplantação de modelos internacionais de sociabilidade, que se dá a partir da disputa entre as frações da burguesia sem atingir, entretanto, o pacto de dominação estabelecido (FERNANDES, 2005).
Em um país de capitalismo dependente, cuja formação social é caracterizada pela aliança da burguesia local com o imperialismo, fica evidente o caráter autocrático do Estado. O Estado, enquanto um instrumento da burguesia se reorganiza baseado na militarização do poder, respondendo a crise política e econômica interna e externa por meio da reorganização do padrão de dominação externa, como uma nova forma de submissão ao imperialismo (FERNANDES, 1975).
A burguesia brasileira demonstra, assim, um perfil profundamente conservador, marcado pela exploração violenta do trabalho e pelo acirramento das desigualdades econômicas e sociais, configurando um padrão burguês de hegemonia relacionado ao projeto burguês de educação. Segundo Lima (2007), o imperialismo e o capitalismo dependente são as bases de fundamentação do padrão dependente de educação superior, ou seja, da heteronomia cultural e do “colonialismo educacional” vigente historicamente no Brasil.
Florestan Fernandes (1979) destaca que o processo histórico da educação superior no Brasil é configurado pelos modelos de universidades europeias e estadunidenses, pela transplantação e absorção de valores produzidos pelos países hegemônicos, sendo identificados como um processo de “modernização conservadora”. O autor destaca que a educação para o/a trabalhador/a precisa ser transformadora, como exercício de prepará-los para combater sua condição de classe, adquirindo uma consciência crítica, “[...] e que essa consciência crítica pode passar por um tipo de educação que não seja conformista, mas sim ativista e militante” (FERNANDES, 1991, p. 41) contra a ordem vigente.
Florestan Fernandes, socialista convicto, considerava que as pesquisas nas universidades públicas precisam ser peças de combate e criticava os paladinos da neutralidade científica defendida pela ditadura empresarial-militar. Havia uma pressão não só de fora das universidades, mas também de dentro, onde professores catedráticos faziam a defesa da neutralidade científica existente pela dita tensão intelectual e moral da autocracia burguesa.
Segundo Florestan Fernandes (1995), a resistência e o compromisso crítico dos intelectuais têm um papel importante para a transformação dessa realidade, na contribuição para a revolução contra ordem burguesa. Ao repudiar a neutralidade científica e defender a responsabilidade política e de participação militante, evidencia “[...] que os critérios de verdade da ciência valem tanto para a explicação da realidade quanto para sua alteração” (FERNANDES, 1995, p. 161). O autor destaca a importância do movimento socialista nos trabalhos intelectuais, integrado à transformação do real e ao processo de investigação a partir do pensamento crítico.
Para o autor, os conservadores defendiam mudanças organizacionais para acelerar a expansão do capital, mantendo o padrão dependente de educação superior nos marcos da “modernização conservadora”. Em oposição, o movimento da classe trabalhadora (o movimento estudantil, dos professores, entre outros) se colocava como defensor de uma universidade totalmente nova, ou seja, a defesa de uma educação classista, crítica, criativa e emancipadora.
Essa reconfiguração da universidade deveria ocorrer, segundo os movimentos sociais, sindical e estudantil contra hegemônicos, com base no incentivo à criação intelectual e a pesquisa crítica e, assim, combater o padrão dependente de educação superior associado ao padrão dependente de desenvolvimento, conduzido pelo binômio imperialismo-capitalismo dependente. Diante das pressões dos movimentos estudantil e docente para a reforma universitária, o governo burguês-militar organizou uma ação conservadora, preservando os in-
teresses da burguesia brasileira e internacional, duas faces do projeto burguês de dominação. Por esse ângulo, “[...] criaram-se inúmeros mecanismos para neutralizar os setores críticos e que podiam ter alguma autonomia frente ao imperialismo. A repressão sistemática ao pensamento crítico e mais avançado em todas as áreas foi uma das estratégias mais acionadas” (SILVA; MINTO; LIMA, 2019, p. 89).
Florestan Fernandes (1979) destaca a reforma universitária brasileira, na realidade uma antirreforma, como examinado em capítulos anteriores, como um movimento histórico-social que se deu de forma tardia no Brasil. Tratava-se de uma disputa entre projetos antagônicos de universidade: de um lado, a burguesia demandando a adequação da universidade à expansão do capitalismo e, por outro, a passagem da era da escola superior para a era da universidade no Brasil, reivindicada pelos movimentos sociais, particularmente, o movimento estudantil. Para o autor (1979), era impossível “mudar a universidade” sem “transformar a sociedade”.
Nos anos de 1960, o colonialismo educacional, conduzido pela burguesia brasileira associada com a burguesia estadunidense, contou com a cooperação científica no Brasil. O regime empresarial-militar enviou docentes brasileiros aos EUA para atividades de capacitação e pesquisas com financiamento de fundações estrangeiras, como Fundação Rockefeller, Fundação W.K. Kellogg e Fundação Ford (LEHER, 2018).
Segundo Leher e Silva (2014), essas entidades empresariais, em parceria com o Estado brasileiro, por meio dos chamados acordos MEC-USAID3, constituíram as bases da estruturação da educação superior que temos nos dias atuais. Nessa sequência, ocorreu uma transplantação dos valores e do modelo de ensino superior estadunidense, bem como, a indução de recursos públicos aos programas e intelectuais que estivessem atrelados ao processo de “modernização conservadora” em curso no regime burguês-militar.
O projeto de universidade em questão estava atrelado aos interesses conservadores do pacto de poder no Brasil, que se contrapunham a uma universidade crítica, autônoma, integrada, multifuncional, reivindicada pelos movimentos sociais, pela “reforma de base” ou “reforma de estrutura” (FERNANDES, 1979). Esse processo contou com a assessoria da USAID, e o apoio de setores militares, empresários e acadêmicos, submetendo a universidade a um
3 Pactos entre o Ministério da Educação (MEC) e a Agência dos Estados Unidos pelo Desenvolvimento Internacional (USAID, em inglês), acordos internacionais que direcionaram a organização da universidade, pesquisa e da pós-graduação.
conjunto de medidas das frações burguesas dominantes atreladas ao regime e ao projeto de educação superior direcionado pelos EUA.
Segundo Florestan Fernandes (1979), a crise da universidade brasileira, como resultado das disputas entre projetos antagônicos de educação e de sociabilidade, conforme examinado no capítulo cinco, resulta de um conjunto de ameaças que pairam sobre ela e sobre a natureza de sua contribuição educacional. Essas ameaças estão relacionadas à posição que o Brasil ocupa na economia mundial e na divisão internacional do trabalho e que fundamentam o padrão dependente de educação superior vigente em nosso país.
O projeto de universidade materializado pela “reforma universitária consentida” estava integrado às bases do projeto de sociedade burguesa. Segundo Leher (2018), a “reforma” tinha como um dos objetivos combater a influência marxista na universidade e, assim, reconfigurar o campo das ciências sociais desde outras referências: o funcionalismo e o (neo)positivismo. Esse processo contou com colaboração de fundações estrangeiras, entre elas, a Fundação Ford nas Ciências Sociais e assumiu novos traços no atual processo de desmonte das universidades públicas brasileiras.
Para Fernandes (1979), o elemento central da “reforma universitária consentida” foi instaurar um novo privatismo associado a uma nova face do colonialismo educacional. A filosofia privatista, nascida da dominação patrimonialista e do poder dos interesses particularistas das grandes famílias, que constituía a escola superior tradicional, entrou em crise. Mas esse privatismo apenas muda de forma, sendo este, um elemento estruturante da educação superior brasileira.
O privatismo típico de países de capitalismo dependente é caracterizado como “[...] um ‘privatismo exaltado’ (ou exasperado), que não pode ser contido e policiado pela ordem social estabelecida, porque é ele que a configura e a determina (e não o contrário)” (FERNANDES, 1979, p. 230, grifos do autor). Nesse sentido, consideramos importante analisar em que medida os fundos patrimoniais constituem a nova face do colonialismo educacional e do privatismo exaltado, eixos estruturantes da educação brasileira. Essa é a tarefa que realizaremos a seguir.
OS FUNDOS PATRIMONIAIS (ENDOWMENTS): A REFERÊNCIA DAS MENTES COLONIZADAS
Os endowment são conjuntos de ativos de natureza privada, conhecidos no Brasil como fundos patrimoniais ou fundos filantrópicos. Esse tipo de fun-
do compõe estruturas financeiras criadas por instituições de diversas naturezas que se constituem por uma soma de recursos provenientes de “doações”, heranças, onde o valor principal (valor do patrimônio) é aplicado no mercado financeiro por meio dos fundos de investimento que gera rendimentos e são direcionados para inciativas definidas pelo “doador” em longo prazo.
Para os intelectuais orgânicos do capital4, os fundos patrimoniais incidem no agrupamento de um patrimônio que serve de fonte de recursos privados para uma determinada causa. Existem diversas formas de captação e de fontes de recursos por meio de “doações”: pessoa física; empresas ou fundações empresariais; fundações internacionais; governo; gerando seu próprio recurso (venda de serviço). Fabiani e Wolffenbüttel (2019, p. 7), defensoras da agenda do fundo patrimonial no Brasil e dirigentes do Instituto para o Desenvolvimento de Investimento Social (IDIS)5, destacam duas diferenças entre os Fundos Patrimoniais Filantrópicos e uma doação convencional.
As diferenças básicas são duas. Em primeiro lugar, no caso dos Fundos Patrimoniais, o doador está autorizando o gasto apenas dos rendimentos dos recursos doados, garantindo assim que a organização ou a causa conte com apoio financeiro perene. Em segundo lugar, Fundos Patrimoniais Filantrópicos são instrumentos concebidos com regras expressas de governança e funcionamento, assegurando ao doador que os valores nele depositados serão gastos tão somente nas finalidades pré-definidas.
Esse conceito já existe há bastante tempo, mas não se sabe exatamente a origem dos endowments. O que se tem de relato histórico é que um dos primeiros fundos dessa natureza foi estabelecido na antiga Grécia por Platão, que deixou uma fazenda para Speusipo, seu sobrinho. Segundo o testamento, os rendimentos seriam destinados a manter o funcionamento da Academia de Atenas: “[...] uma das primeiras instituições de educação superior do mundo ocidental, criada pelo filósofo. Na Idade Média, senhores feudais fizeram algo semelhante ao doarem terras para grupos religiosos usarem o seu arrendamento no apoio financeiro de suas ações” (CAPITAL ABERTO, 2018)6 . Posteriormente, esse conceito foi difundido por dois norte-americanos, John D. Rockefeller e An-
4 Principalmente, os que estão vinculados ao Instituto para o Desenvolvimento de Investimento Social (IDIS), Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entre outros. 5 O principal APH empresarial condutor da agenda dos fundos patrimoniais no Brasil 6 Matéria de Genésio Carvalho do Jornal Capital Aberto do dia 12 de setembro de 2018. Disponível em: <https://capitalaberto.com.br/secoes/explicando/endowments-no-brasil/ >Acesso em 06 de nov. 2019.
drew Carnegie, que criaram fundações e fundos patrimoniais nos EUA – Carnegie Foudation (1910) e a Rockefeller Foundation (1913). A matéria da Mais Retorno7 destaca que
Nos séculos seguintes, o conceito se espalhou pela Europa, permitindo a criação de vários endowments, principalmente no Reino Unido. Com a colonização dos Estados Unidos, as leis e tradições inglesas foram implementadas no território norte-americano, fazendo com que eles se tornassem comuns ali também (MAIS RETORNO, 2019).
Os endowments passaram de doações de terras para estruturas financeiras complexas e iniciaram os títulos financeiros com rendimentos de juros no início do século XX. As instituições de ensino, principalmente, as de ensino superior norte-americanas, europeias e algumas orientais, assim como, entidades mercantil-filantrópicas8, constituem os principais fundos patrimoniais que movimentam o mercado financeiro no mundo.
Importante analisar como estas ações chegam aos países capitalistas dependentes. Para garantir o padrão compósito de hegemonia inerente aos países capitalistas dependentes, os organismos internacionais do capital têm um papel fundamental atendendo os interesses da burguesia brasileira e internacional, apresentando novas estratégias de dominação e exploração capitalista e, ainda, garantindo a segurança e legitimidade da ordem vigente (LIMA, 2007).
O Banco Mundial, em diversos documentos da década de 1990 e nos anos 2000, apontam eixos estruturantes do processo de contrarreforma do Estado e da educação superior nos países latino-americanos: a descentralização dos gastos públicos; o fortalecimento das diversas modalidades de parcerias público-privadas; a cobrança de mensalidades nas universidades públicas; a diversificação dos cursos e das fontes de financiamento e a criação de fundos patrimoniais. No documento do BM intitulado “Do Confronto à Colaboração - Relações entre a Sociedade Civil, o Governo e o Banco Mundial no Brasil” (2000) está implícita a disputa do fundo público, buscando difundir a criação dos fundos patrimoniais (endowments funds) para assegurar o crescimento do patrimônio
7 Matéria de agosto de 2019 do Glossário de Finanças e Investimento - Mais Retorno. Disponível em: <https://maisretorno.com/blog/termos/e/endowment >Acesso em 06 de nov. 2019. 8 Fontes (2010) designa a conversão mercantil-filantrópica como um processo contemporâneo peculiar. Entidades ditas sem fins lucrativos financiadas por empresas, que entram nos terrenos da luta de classes e, buscam converter, alterar a direção dessa luta. A grande burguesia está diretamente ligada aos APH’s empresariais no Brasil que receberem isenções e imunidades fiscais. Atuam corporativa e politicamente, participando intimamente do Estado, mas apresentam-se no sentido liberal, contrapondo-se ao Estado.
dos APHs empresarial da burguesia local e internacional, bem como, ocupar e disputar os terrenos das lutas populares visando a consenso e garantir a lucratividade do capital rentista.
Nessa perspectiva, o discurso do BM fortalece as entidades mercantilfilantrópicas e as diversas modalidades de parcerias público-privadas. Enquanto os intelectuais orgânicos, disseminadores da agenda do fundo patrimonial no Brasil, apresentam o conceito de endowments como um fundo filantrópico, o próprio BM (2000) reconhece os endowments como fundos de investimentos. Esse mecanismo do capitalismo contemporâneo define os doadores como investidores/acionistas, as doações/investimentos adotam uma nova tendência filantrópica mercantilizada, difundida pela grande burguesia local como fundo patrimonial filantrópico – denominado nesse estudo, como fundo filantropo-mercantil. Um tipo de fundo privado, que reivindica a doação como investimento em longo prazo, converte as políticas sociais em mercadorias comercializadas, ou seja, como ativos financeiros, configurando um novo padrão de acumulação capitalista. Segundo Fabiani e Cruz (2017, p. 191, grifos dos autores),
Os retornos dos endowments ao redor do mundo impressionam, devido à sua gestão profissional e seus resultados. Conforme relatório publicado pelo banco de investimentos Morgan Stanley em 2008 (Portfolio Strategy: The “Endowment Model”), muitos dos grandes endowments americanos adotaram uma alocação de ativos diversificada com menor concentração em títulos do governo ou ações de grandes empresas, o que resultou em retornos elevados e chamou a atenção de investidores ao redor do mundo para este modelo de gestão de recursos.
O objetivo desse modelo de gestão de recursos é estimular o processo de lucratividade com a movimentação do capital financeiro, aumentar as “doações” para garantir o crescimento dos fundos patrimoniais e disputar o fundo público. O maior fundo patrimonial do mundo é da Fundação Bill & Melinda Gates, criado em 2000 pelo fundador da Microsoft Bill Gates e Melinda Gates.
Da mesma maneira, John Rockefeller, Henry Ford, entre outros, destinaram parte de suas fortunas para a perpetuidade de fundações que atuam até hoje para manter suas vantagens por meio de um “altruísmo” fiscal, inserindo o projeto burguês de sociabilidade nas ações de apassivamento das arenas de lutas de classes, garantindo as diversas formas de lucratividade e o consenso com a implementação de políticas sociais com gerenciamento privado.
As experiências dos EUA são as referências nas análises dos intelectuais orgânicos do capital que difundem a agenda dos fundos patrimoniais no
Brasil. Nas universidades estadunidenses as “doações” são arrecadadas entre os empresários, alunos, ex-alunos, docentes, pais – uma pauta histórica das orientações do BM de diversificação das fontes de financiamento para a educação superior na América Latina. O recurso arrecadado é, então, gerido por administradores que o aplicam no mercado financeiro, em renda fixa, renda variável e outros ativos.
Nos EUA, os incentivos fiscais para pessoa física e jurídica sobre o imposto de renda, o imposto sobre herança e o imposto sobre doação são as referências de fundo patrimonial. A legislação nesse país permite a dedução de doações feitas a charities entities (organizações beneficentes) por pessoas físicas abatendo 50% do imposto de renda. Para pessoas jurídicas, o limite é de até 10% do imposto de renda a pagar.
Há diferentes fontes de recursos destinados aos fundos patrimoniais, Levisky (2016) apresenta alguns exemplos das referidas formas de captação de recursos, tais como: a) privatização de empresas públicas; b) edificações de ativos públicos; c) fluxo de renda controlada pelo governo (loteria, etc.); d) recursos de multas; e) recursos apreendidos (produto de crimes); f) perdão de dívida externa; g) venda de instituições filantrópicas.
No caso brasileiro, seguindo o modelo estadunidense, a demanda maior das entidades mercantil-filantrópicas é pela operacionalização das isenções fiscais. Fabiani e Wolffenbüttel (2019) afirmam que os pioneiros dos fundos patrimoniais no Brasil nasceram vinculados a organizações religiosas que recebiam doações em ativos imobiliários ou heranças de seguidores das entidades, com exceção do fundo patrimonial da Fundação Bradesco. Os Fundos Patrimoniais começaram a ganhar mais força no Brasil, com a criação de fundos que foram acumulados por meio de ações empresariais.
No início dos anos 2000, o setor bancário através das ações mercantilfilantrópicas de seus APHs empresariais criou os fundos patrimoniais, Fundação Bradesco, Fundação Banco do Brasil, Fundação Itaú Social, Instituto Unibanco, estão consolidando esse modelo de investimento. Assim como, as instituições culturais, educacionais e as entidades ditas sem fins lucrativos, como: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Fundação Sticket, Instituto Alana, Instituto Ayrton Senna, Fundação Romi, Fundação Abrinq, Fundo Elas, Fundo Baobá, Fundo Zona Leste Sustentável, Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Os defensores da agenda dos fundos patrimoniais no Brasil apresentam a experiência de endowments estadunidense como o modelo a ser seguido, principalmente, do sistema de educação superior dos EUA. O fundo patrimonial da
Universidade de Harvard tem se constituído como a principal referência dos estudos e análises dos intelectuais orgânicos do capital no Brasil. Esse é o novo traço do “colonialismo educacional” e do “privatismo exaltado”, eixos estruturantes do padrão de educação superior no Brasil. A burguesia brasileira opera, assim, a transplantação das políticas estadunidenses, garantindo a lucratividade do capital e a reprodução da concepção de educação como serviço. Um processo de transplantação que norteia o colonialismo educacional e o privatismo e que não é novidade na educação brasileira. O predomínio do modelo estadunidense na educação superior brasileira, para Florestan Fernandes (1979), combinada a influência francesa, prevaleceu, especialmente, a partir da “reforma universitária consentida” conduzida pela ditadura empresarial-militar através das seguintes ações: a coexistência de universidades e escolas isoladas, a departamentalização, a supressão da cátedra e a adoção do sistema de créditos, entre outras.
Segundo Moraes (2015), todo o ensino superior nos EUA é pago, incluindo os cursos das IES públicas e, o endividamento das famílias naquele país é altíssimo. Não há um sistema público e gratuito, como no Brasil. Apenas um terço do orçamento das escolas é composto pelas taxas e anuidades cobradas dos estudantes, o recurso é basicamente público. As escolas privadas, como as renomadas Harvard University e Massachusetts Institute of Technology (MIT), recebem grande quantidade de verba pública. A receita derivada das aplicações dos patrimônios privados das universidades e as doações feitas por grandes milionários (ex-alunos) cobrem uma pequena parte dos orçamentos.
Os recursos dos endowment, se não fosse doado pela grande burguesia a esse tipo de fundos, seria pago como imposto, ou seja, indiretamente quem financia os endowments na educação superior dos EUA é o Estado, que cria arcabouço jurídico de isenção de impostos que incide no gasto público. Há incentivos fiscais para pessoas físicas e jurídicas. Suas contribuições e doações de propriedade às instituições sem fins lucrativos, especialmente, as instituições de educação superior e de pesquisa, em sua grande maioria criadas pela grande burguesia, podem ser deduzidas da renda tributável. Esse benefício é mais sedutor aos doadores em épocas de alta taxa de impostos.
A Universidade de Harvard é uma instituição de educação superior privada com aproximadamente 6.700 alunos da graduação e 13.400 da pós-graduação. A Universidade inclui a Harvard Management Company (HMC)9 – a Companhia de Gerenciamento de Harvard – o endowment que gerencia as posses de in-
9 Entidade sem fins lucrativos fundada em 1974.
vestimento da universidade. Segundo os dados disponibilizados pela instituição10, o endowment de Harvard é composto por mais de 13.000 fundos individuais investidos como uma única entidade que é supervisionada pela HMC 11, um dos maiores fundos patrimoniais do mundo que movimenta o mercado financeiro.
O relatório fiscal da HMC (2019) destaca que, até 30 de junho de 2018, o endowment da Universidade de Harvard arrecadou 39,2 bilhões de dólares em “doações” para o seu patrimônio, porém apenas 5% dos rendimentos do fundo patrimonial foram gastos na instituição, ou seja, U$ 1,9 bilhões, referente a 35% das despesas operantes da universidade do mesmo ano fiscal que totalizaram U$5,2 bilhões em 2019. Os outros 95% dos recursos são para garantir a movimentação do capital portador de juros e expandir a lucratividade dos fundos de investimento no mercado de capitais.
Os intelectuais orgânicos do capital por meio dos APHs empresarial, sobretudo o BM e o IDIS, buscam justificar a criação de fundos patrimoniais para as universidades brasileiras, alegando que a experiência internacional comprova que os endowments representam fonte importante de receita para instituições públicas, destacando, como referência, a Universidade de Harvard. No entanto, além de ser uma instituição privada, os recursos públicos (diretos e indiretos) representam a maior parte do seu orçamento, como analisamos anteriormente.
Neste contexto de avanço da mercantilização da educação superior, precisamos examinar como os fundos patrimoniais chegam ao Brasil, quais os interesses que movimentam e como se constituem como a face atual do privatismo que atravessa e constitui a educação em um país capitalista dependente.
OS FUNDOS PATRIMONIAIS NO BRASIL: A NOVA FACE PRIVATIZANTE DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS
No país de capitalismo dependente, a defesa dos fundos patrimoniais no Brasil está fundamentada em uma concepção de financiamento privado como alternativa aos bloqueios e cortes do orçamento público. O sistema de educação superior dos EUA é apresentado pelos APHs como um exemplo a
10 Disponível em: < https://www.harvard.edu/schools >. Acesso em: 19 fev. 2019. 11 Disponível em: < https://www.hmc.harvard.edu/ >. Acesso em: 01 fev. 2020.
ser seguido nas universidades brasileiras, sendo mais uma forma subalternizada de transplantação dos modelos internacionais de universidade.
Os ataques à educação superior pública estão relacionados a uma das principais ações contrarrevolucionárias, ganhando materialidade no tributo colonial da dívida pública e na sistemática diminuição na alocação das verbas públicas para financiamento das universidades públicas. Lima (2017) ao analisar as ações dirigidas pelo governo de coalizão de classes (2003/2016) do Partido dos Trabalhadores demonstrou que o projeto em curso, naquele período, “[...] não indicava qualquer ruptura com a histórica inserção capitalista dependente do Brasil na economia mundial e com a heteronomia cultural a ele associada” (LIMA, 2017, p. 101). Afirma ainda que o padrão compósito de hegemonia burguesa e o padrão dual de expropriação do excedente econômico, historicamente vigente no Brasil, se intensificam nos dias atuais, seguindo a mesma lógica de priorizar o pagamento dos juros e as amortizações da dívida pública, bem como os cortes dos recursos públicos para as políticas sociais, especialmente, a educação.
Os governos de coalizão de classes seguiram a perspectiva da contrarreforma do Estado de Fernando Henrique Cardoso. A relação de parcerias entre Estado e Organizações da Sociedade Civil se intensificou nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, em particular, no período da criação do novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), quando o mecanismo de Fundo Patrimonial aparece pela primeira vez na legislação brasileira. O governo Dilma Rousseff (2011/2016) pavimentou o caminho para a implementação e fortalecimento desse tipo de fundo no Brasil, com a promulgação da Lei nº 13.019/2014.
O IDIS assumiu no início da segunda década do século XXI o tema como prioritário em sua agenda e criou uma rede de apoio para a promulgação de uma lei nacional de Fundos Patrimoniais. Nesse momento, formou-se uma articulação de vários sujeitos políticos coletivos do capital que iniciaram o processo de organização do movimento para desenvolver esse tema no país. Esses APHs elaboram documentos estratégicos na difusão em defesa do tema, utilizadas pela Coalizão dos Fundos Filantrópicos, entre estas, a carta que foi apresentada à Secretaria Geral da Presidência.
Em setembro de 2018 esses sujeitos políticos coletivos publicaram uma Nota Pública12 de apoio à edição da Medida Provisória (MP) de regulamentação
12 Nota pública de apoio à regulamentação dos fundos patrimoniais filantrópicos lançada no dia 05 de setembro de 2018. Disponível em: < https://www.idis.org.br/coalizao-lanca-nota-publicade-apoio-a-regulamentacao-dos-fundos-patrimoniais-filantropicos/ >. Acesso em: 31 jan. 2020.
dos Fundos Patrimoniais Filantrópicos no Brasil, recomendando ao governo federal a não restrição de organização que pode ser titular de Fundos Filantrópicos, nem a causa à qual eles se destinam. Sugerem também, que a MP
seja clara, objetiva e que contemple unicamente o tema dos Fundos Patrimoniais Filantrópicos.
Logo em seguida, no dia 10 de setembro de 2018, o incêndio que destruiu mais de 90% dos arquivos do Museu Nacional foi um acelerador para a ação do governo. O presidente Michel Temer assinou a Medida Provisória 851/2018 que dispõe da criação de Fundos Patrimoniais, convertida na Lei 13.800/19, conhecida como Lei dos Fundos Patrimoniais, promulgada por Jair Bolsonaro no dia 04 de janeiro de 2019.
No Brasil já existem experiências do fundo patrimonial por meio de instituições públicas e privadas de educação superior. O fundo do XI de Agosto do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), e a Associação Fundo Patrimonial Amigos da Poli da Escola Politécnica da USP, são os pioneiros dessas ações.
Historicamente, os governos brasileiros criam e fortalecem as iniciativas privadas por meio das diversas modalidades de parcerias público-privadas. O financiamento privado tem sido apresentado como “alternativa” para as universidades públicas (federais e estaduais) no Brasil há muitos anos. Esse discurso tem se intensificado após a aprovação da EC 95/2016 que limita por vinte anos os gastos públicos e, a nova regulamentação dos Fundos Patrimoniais no país.
Segundo Paula Fabiani (2019), intelectual orgânica que defende os fundos patrimoniais no Brasil, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo13, um dos aspectos positivos dessa legislação é o benefício para o mercado de capitais. “São pessoas que podem investir em papéis com longo prazo, para startups, infraestrutura, projetos que requerem capitais pacientes”, disse a presidente do IDIS ao jornal.
Encontramos, até o ano de 2019, dezessete experiências de fundos patrimoniais (endowments funds) na educação superior brasileira, por meio de Associações e Fundações ligadas as universidades. Essas entidades destinam recursos privados através de uma pequena parte dos rendimentos de seus fundos patrimoniais aos projetos de pesquisa sobre o tema em diversas IES públicas.
13 Matéria do dia 07 de jan. 2019. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2019/01/fundos-patrimoniais-serao-bons-para-mercado-de-capitais-diz-especialista.shtml >. Acesso em: 5 fev. 2019.
Os fundos patrimoniais vinculados as IES no Brasil existentes antes da criação do marco legal que regulamenta esse tipo de fundos no país são: Fundo de Investimento XI de Agosto do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP; Endowment Direito GV da Associação Endowment Direito GV, vinculado a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV); Fundo Patrimonial Amigos da Poli da Associação Fundo Patrimonial Amigos da Poli, vinculada a Escola Politécnica da USP; Fundação Fundo Patrimonial Endowment do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA); Fundo Endowment do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA); Fundo Patrimonial da Fundação Fundo Patrimonial, vinculado a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEAUSP) da USP; Fundo da Alumni UnB da Associação dos Ex-Alunos da Universidade de Brasília (UnB); Fundo Areguá da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP); Fundo Medicina USP – Endowment da Associação Fundo de Apoio a Faculdade de Medicina da USP; Fundo Patrimonial do Instituto Serrapilheira; Fundo Patrimonial Amigos do Hospital do Fundão da Associação, vinculada ao Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Após a promulgação da Lei nº 13.800/2019, no governo Jair Bolsonaro, foram criados cinco fundos patrimoniais atrelados às universidades brasileiras em 2019. Entre esses estão: Fundo Patrimonial da Fiocruz e do Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) vinculado a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar); Fundo Patrimonial Centenário da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Endowment da PUC-Rio da Associação dos Antigos Alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Fundo Patrimonial da Universidade Estadual Paulista (UNESP); Fundo Patrimonial da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Fundo Patrimonial COPPETEC da Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos, instituição de direito privado vinculada à UFRJ e Instituto Alberto Luiz Coimbra de PósGraduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE).
Esses fundos foram estabelecidos nas referidas IES públicas de forma gradual. A UNESP e a UNICAMP foram as primeiras universidades pú-
blicas a criar um fundo patrimonial. Nas experiências anteriores os fun-
dos estavam ligados a cursos específicos e Hospital Universitário. Esse arcabouço jurídico proposto para a criação do fundo patrimonial nas universidades públicas reforça a desoneração do Estado na manutenção do ensino, pes-
quisa e extensão da universidade brasileira; compromete a autonomia e ataca o caráter público da educação superior por meio de mais uma modalidade de parceria público-privada, que tem como princípio intermediar a prestação de serviços entre o mercado e as instituições de ensino públicas; sendo mais uma estratégia lucrativa dos rentistas à valorização do capital.
A agenda dos fundos patrimoniais para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) está presente no projeto de lei do Future-se14 apresentado pelo governo Bolsonaro como um novo modelo de gestão e uma nova forma de diversificação das fontes de financiamento que incentiva as universidades e institutos federais a captarem recursos privados. Ou seja, o programa expressa novos traços da privatização do público, na esfera do controle de pessoal e da pesquisa científica ou tecnológica, e mercantilização da educação superior brasileira. Além disso, apresenta novas formas de aprofundar a gestão privada das instituições públicas, garantindo a movimentação do capital financeiro (nacional e internacional) e, o assalto ao fundo público. O Future-se busca, portanto, atender os interesses do capital fundamentado na agenda dos APHs empresarial de fortalecimento da Lei dos Fundos Patrimoniais, sendo a proposta do Programa Future-se uma reprodução da Lei nº 13.800/2019.
O Future-se é mais uma face da transplantação do modelo estadunidense de educação superior, reunindo um conjunto de medidas que tem como objetivo mercantilizar e privatizar a educação pública, transformando eixos históricos que sustentam o caráter público das IFES que os movimentos sociais, estudantil e sindical conseguiram barrar ao longo da história de luta em defesa da educação pública no Brasil. Estamos, portanto, diante de uma nova fase de intensa reconfiguração da universidade pública.
14 No dia 17 de julho de 2019, o Ministério da Educação lançou oficialmente em Brasília, o Pro grama Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (FUTURE-SE) que prevê a possibilidade das universidades e institutos federais fazerem parcerias público-privadas, ceder prédios, criar fundos de patrimoniais, ou seja, condicionar o orçamento das universidades ao investimento privado, depender e transformar as IFES em uma mercadoria negociável. O projeto foi criado de forma autoritária, e apresentado à sociedade brasileira sem conhecimento anterior da comunidade acadêmica e nenhum debate com as entidades representativas das universidades e institutos federais. Incialmente foi apresentado como um programa para dar mais liberdade para as universidades e institutos federais, sob o discurso de proporcionar maior autonomia financeira indefinida por meio de captação de recursos junto ao setor privado. Abraham Weintraub (exministro da Educação) e Arnaldo Lima (ex-secretário de educação superior) defendiam que o programa é uma “ponte para o futuro” – o caminho ao futuro que altera os eixos históricos que sustentam o caráter público das IFES. Após a consulta pública, a versão final do texto começou a tramitar como PL nº 3076/2020 na Câmara dos Deputados a partir de junho desse ano.
No dia 09 de setembro de 2019, matéria do jornal Valor Econômico15 destaca que o MEC para captar financiamento privado para pesquisa, desenvolvimento e inovação nas universidades federais, busca trazer para o Brasil os investimentos de fundos patrimoniais dos EUA. O objetivo é que os gestores estadunidenses não só apliquem, como façam parte do conselho de administração do fundo patrimonial do MEC. Nesse sentido, esse fundo estará articulado aos agentes dos endowments das universidades estadunidenses e apresentará as propostas de projetos que atendam aos interesses desses investidores internacionais.
Em meio à pandemia da Covid-19, com interrupção das aulas presenciais devido ao isolamento social no Brasil, o governo federal encaminhou à Câmara dos Deputados o projeto de lei que institui o Future-se. O texto começou a tramitar como PL nº 3076/2020, no dia 02 junho de 2020. Após este período, o MEC realizou alterações de pontos polêmicos e combatidos pela comunidade acadêmica, os movimentos sociais, sindical e estudantil que apresentarem críticas a esse projeto de educação do capital. Entretanto, o cerne principal das fontes privadas de financiamento, como a criação de fundo patrimonial, foi mantido como uma alternativa de captação de recursos privados à crise da universidade pública aprofundada com a EC 95/2016. Esse tipo de fundo é inserido na dinâmica da bolsa de valores, garantindo incentivos fiscais para as empresas e, atacando, consequentemente, a autonomia universitária.
Assim que o programa Future-se foi lançado, Paula Fabiani (diretorapresidente do IDIS) e Priscila Pasqualin, (sócia do PLKC Advogados e conselheira do IDIS) afirmaram que o “Future-se poderia ser mais simples e eficiente”16 se o MEC considerasse a oportunidade criada pela Lei nº 13.800, a ‘Lei dos Fundos Patrimoniais’ para transformar a universidade pública em ativo financeiro. Essa legislação foi inserida na versão final do texto, esse mecanismo de captar capital privado está previsto no PL 3076/2020, sendo o eixo central da proposta do Future-se a criação de nova fonte de financiamento por meio dos fundos patrimoniais, seguindo as recomendações do BM e dos APHs empresariais no Brasil.
15 Matéria de Edna Simão “MEC que implantar no país modelo de fundo patrimonial comum nos EUA”. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/09/10/mec-querimplantar-no-pais-modelo-de-fundo-patrimonial-comum-nos-eua.ghtml >. Acesso em: 04 out. 2019. 16Matéria do IDIS do dia 28 de agosto de 2019. Disponível em: <https://www.idis.org.br/ofuture-se-pode-ser-mais-simples-e-eficiente/>. Acesso em: 01 ago. 2020.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As características da burguesia brasileira como uma burguesia forte para consolidar e preservar o projeto hegemônico e, simultaneamente, submissa ao capital internacional, aprofundam cada vez mais a dependência do Brasil em relação aos países hegemônicos do capitalismo para fortalecer o pacto de dominação burguesa, inerente ao capitalismo dependente.
Há tempos as IFES se deparam com grandes bloqueios e cortes orçamentários que atingem diretamente as condições para a continuidade do desenvolvimento das suas atividades político-pedagógicas. Esse quadro de redução de recursos públicos se intensifica desde a EC nª 95/2016 com o congelamento dos gastos sociais, e se aprofundam no governo Jair Bolsonaro que estabelece como alternativa os fundos patrimoniais, evidenciando uma nova face do desmonte das universidades públicas brasileiras.
Nessa lógica, esse mecanismo de criação do fundo filantropo-mercantil para a educação pública tem como objetivo transformar as IES públicas em unidades empresariais, uma nova face do privatismo exaltado e do colonialismo educacional, como analisados pela obra florestaniana, identificando a universidade pública como uma oportunidade de negócio da burguesia apoiada nos seguintes eixos: a) converter as universidades públicas em mercadorias comercializadas, ou seja, como ativos financeiros configurados no novo padrão de acumulação capitalista; b) transformar as ações filantrópico-caritativas de entidade sem fins lucrativos na defesa da “filantropia de investimento” que garanta os interesses privados de lucratividade da grande burguesia; c) redefinir o modo de operar as políticas educacionais por meio da terceirização da gestão do serviço público; d) lançar um novo traço de privatização indireta das IES; e) disputar o fundo público através da diversificação das fontes de financiamento e incentivos fiscais aos doadores/investidores f) fortalecer a pedagogia do capital na busca por silenciamento das lutas populares com a ofensiva fundamentalista da guerra ideocultural em curso na política educacional e de repressão do pensa mento crítico.
As ações ultrarreacionárias conduzidas pela burguesia brasileira na atualidade, com elementos restaurados de sua natureza violenta, antissocial e antidemocrática, demonstram que está em curso uma nova fase da histórica dualidade educacional e da mercantilização da educação superior (LIMA, 2019). A criação do fundo patrimonial prevista no projeto de lei do Future-se e apresentada como uma alternativa de captação de recursos privados para a universidade pú-
blica evidencia essa nova fase, caracterizando um processo de intensificação da heteronomia educacional e colocando novos desafios políticos nas lutas por um novo projeto de sociabilidade e de educação fundamentado em uma perspectiva emancipadora, ponto de pauta central nas análises e nas ações políticas do saudoso professor Florestan Fernandes.
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