A Calma e sua gentil superioridade - Excertos do pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira

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A CALMA E SUA GENTIL SUPERIORIDADE

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A CALMA E SUA GENTIL SUPERIORIDADE Só o lago tranquilo reflete as estrelas Excertos do pensamento de

Plinio Corrêa de Oliveira Recolhidos por Leo Daniele

São Paulo, 2013 – 1a edição

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Seleção, apresentação e notas: Leo Daniele Revisão: Francisco Leoncio Cerqueira Diagramação: Luis Guillermo Arroyave

Impressão: Artpress Indústria Gráfica e Editora

© 2013 – Todos os direitos desta edição reservados. Artpress Indústria Gráfica e Editora Ltda. Rua Visconde de Taunay, 364 – Bom Retiro 01132-000 – São Paulo – SP Fone: (011) 3331-4522 / Fax: (011) 3331-5631 www.livrariapetrus.com.br petrus@livrariapetrus.com.br ISBN 978-85-7206-225-1

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Coleção “Canticum Novum” Excertos do pensamentos de Plinio Corrêa de Oliveira Recedant vetera, nova sint omnia* Já publicados: O Universo é uma Catedral Uma visão maravilhosa, nobre e catolicíssima da ordem do Universo À procura de Almas com Alma A cristianíssima virtude da admiração – A música das almas A Cavalaria não Morre Numa época de anti-heróis, a beleza, a nobreza, a urgência do heroísmo O idealismo, nobreza de alma que a todos convém Desinteresse, a marca d’água do idealismo

* “Retroceda o velho ranço. Que todas as coisas sejam novas!” (Cântico litúrgico “Sacrum Solemnis”)

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Índice 7

AO LEITOR

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O que é a calma

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Pequena história da calma

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A tranquilidade e a proeza

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No Quartel General do Marechal Foch

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A paz é a tranquilidade da ordem

59

A “distância psíquica”

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Como se perde a tranquilidade

79

A calma, o nervosismo e o entretenimento

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As desigualdades e a calma

95

A calma e a dor

101

Prestar atenção é elemento da ação e da calma

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Calma diante de nossas faltas

117

Confiança, palavra que nos acalma

127

Saber esperar, na calma

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AO LEITOR

S

er calmo ainda é uma qualidade? Dir-se-ia que, para muitas pessoas, não o é mais. Elas julgam que a calma difunde um odor de monotonia onde se instala, e para fugir da sonolência é preciso fugir da calma. E assim a agitação, a confusão e mesmo o nervosismo são vistos como algo que deve ser procurado, ou pelo menos tolerado neste ocaso da civilização cristã. O curioso em muitos dos que assim pensam, é que frequentemente criticam a falta de calma... nos outros. Enquanto isso, os consultórios médicos e hospitais se enchem de pacientes queixando-se de nervosismo e enfermidades conexas. Mas a verdadeira calma não é monotonia. Muito pelo contrário, como diz Dr. Plinio Corrêa de Oliveira: Essa calma que estou descrevendo é cheia de frescor e de mobilidade, com disposição para aceitar a variedade das coisas e não ficar atarraxado viciosamente num determinado objeto, com exclusão de outros. É uma espécie de flexibilidade de toda a alma, própria das articulações e da vivacidade de um organismo vivo. Diante de tudo o que vai acontecendo, ela vai aceitando, modelando, recusando, na alegria e no bem-estar da vida.1 A problemática vem de longe. Nascido em 1908, Dr. Plinio descreve seu tempo de menino com tintas expressivas: 1. 25-9-83.

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Eu me sentia enormemente vivaz. Sentia que não havia em mim a vitalidade dos agitados, mas a vitalidade de jorro forte dos calmos. Eu não era um menino de estar sempre pulando, era muito calmo. Nossa Senhora me conservou assim ao longo da vida inteira. Dentro dessa calma eu sentia um jorro vital, uma possibilidade e uma vontade de viver, uma vontade de fazer, uma vontade de ser.2 *

*

*

Calma não é monotonia. Pelo contrário, é movimentação acertada. A tal ponto que, no presente livro, é analisado artigo do General Weygand, que comparava o Quartel General do Marechal Foch – generalíssimo das forças aliadas, na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – com nada menos que a calma de uma abadia beneditina. A calma em plena guerra! Calma é força, e quem não tem calma não tem verdadeira força. Mas voltemos ao menino Plinio e às suas lembranças de quando percebeu o início da problemática calma versus nervosismo: Meus 15 anos… Um homem com 74 anos 3 parecia estabelecido, definido, com todos os problemas solucionados. Sentado num rochedo, não tem mais sustos nem surpresas, e toca a vida tranquila para frente. Está tudo

2. 3-4-83. 3. Dr. Plinio tinha 74 anos quando fez a presente conferência.

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resolvido. Naquela época de tranquilidade, era tudo tão estável e tão seguro, que se tinha a impressão de que um velho estabelecido na vida era mais firme que um arranha-céu desses de inúmeros andares. Eu os comparava com a vitalidade que havia em mim. Sentia-me enormemente vivaz, porém sem nenhuma agitação.4 *

*

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Qual o sentido mais profundo da palavra calma? É mais fácil definir o que ela não é: nervosismo, agitação, ruído, movimentação. Mas qual seu sentido positivo? Dr. Plinio afirma: Calma é o estado temperamental inerente à inocência. A calma produz a inocência, e a inocência produz a calma”.5 Este livro se insere em um fluxo de interesse pela inocência. Mas quem é inocente? É ainda Dr. Plinio que o define: É o homem de todas as idades, que adere àquele espírito primevo de equilíbrio e de temperança com que o homem foi criado, e por isso conserva-se aberto a todas as formas de retidão, de maravilhoso. Inocente é quem não pecou contra aquele espírito primevo de equilíbrio e de harmonia, e por isso conserva-se aberto a todas as formas de maravilhoso, é apetente delas.6 Este é o autêntico homem calmo. É nessa de4. 3-4-83. 5. 12-12-83. 6. A inocência primeva e a contemplação sacral do universo, Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, São Paulo, 2008, pp. 35-36.

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manda de inocência e de maravilhoso que a calma se insere no presente trabalho. *

*

*

Como nos outros livros desta coleção, os pensamentos de Dr. Plinio foram recolhidos de inúmeras conferências pronunciadas ao longo de muitos anos. Assim, como sempre acontece em casos semelhantes, a linguagem tipicamente oral teve de ser ligeiramente adaptada para ser publicada. Os textos que transcrevemos não foram revistos pelo autor.

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Capítulo 1

O que é a calma Só o lago tranquilo reflete as estrelas (Provérbio chinês)

Neste capítulo Calma não é distensão ou relaxamento, mas um estado de alma no qual se reage de modo inteiramente proporcionado ao que se tem diante de si. A verdadeira e legítima fruição da vida começa no momento em que se ensinou à pessoa o deleite da calma. Quando ela compreende que a calma é o maior prazer da vida, compreendeu o que é a vida, e que a vida é uma partida que vale a pena jogar. Existe também uma falsa calma, uma atitude passiva ou ausente, carente de reações enérgicas. Mas a verdadeira calma nada tem de pasmaceira, e é bem outra coisa.

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O que é a calma Qual é a verdadeira calma? Qual a calma verdadeiramente católica? No que ela consiste? Vou tratar da calma boa, para poder fazer a comparação com a calma ruim. Creio que não se pode fazer bem a descrição da calma ruim sem ter passado pela boa. Hoje quase ninguém sabe o que é a calma boa. Há inúmeras deformações do sentido da palavra. Muitos perderam a noção da verdadeira calma. A noção corrente parece-me que se identifica com a de distensão. Quando o indivíduo está distendido, está calmo. A contrario sensu, quando ele está tenso, não está calmo. Esta noção é verdadeira? Não me parece. Acho que é falsa, porque insuficiente e incompleta. Segundo esta noção, a pessoa não estaria calma quando no auge de sua vitalidade, e eu contesto isto. Parece-me que o indivíduo pode estar perfeitamente calmo, e de uma verdadeira calma, quando em plena vitalidade. Imaginemos, por exemplo, que um de nós fosse convidado a fazer um passeio no rio Loire, no Reno ou em Veneza. Não de lancha, mas de barco. Não sei por que o passeio no Reno me parece particularmente atraente, neste momento. A pessoa estaria subindo o Reno até suas origens, querendo entrar no território suíço e avançar Suíça adentro, pelo rio, até o ponto onde ele nasce. O Reno é um rio assombroso, correndo entre aquelas encostas de montanhas verdejantes, com uvas plantadas em quantidade. De vez em quando uma aldeia bonitinha, de vez em quando um caste-

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linho, às vezes um castelão, de vez em quando uma cidade, e a paisagem vai passando lentamente. Durante todo o tempo a pessoa vê coisas que podem despertar muito sua vitalidade. Pode ficar alegre, pode ficar satisfeito, pode dar risada, pode estar contente, pode tirar fotos, pode fazer qualquer coisa. Com isso ele perde a calma? Pode ser que alguém a perca, mas passar por todas essas impressões não é perder a calma. A calma, portanto, não é distensão nem relaxamento. É um estado de alma pelo qual o temperamento, os instintos, a sensibilidade reagem de modo inteiramente proporcionado àquilo que a pessoa tem diante de si. Esse é o sentido de calma.7

Dois níveis de calma A palavra calma tem dois sentidos. No primeiro não se é colocado diante de um objeto que provoca ira nem cause pavor, medo, apreensão. Noutro sentido isso acontece, e trata-se de um modo de ter ira, medo ou apreensão, porém sem perder em nada o governo de si. Isto também pode chamar-se calma, mas em outro sentido da palavra. Como a calma é o inteiro governo de si, podese denominar calma a conservação do autodomínio em uma situação própria a perder esse governo de si, e que o está pondo em choque, em tensão. Já não é a calma no sentido pleno da palavra, mas a conservação da tranquilidade dentro da alma. Consiste 7. 25-9-86.

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mesmo naquilo que a calma tem de mais nobre, mas não é propriamente a calma, sendo denominada assim apenas por uma acomodação de linguagem, por uma adequação. A pessoa é posta numa situação capaz de provocar a efervescência da sensibilidade, no entanto, pelo império da vontade esta é reduzida estritamente a seus primeiros borbulhares. Além disso a vontade não permite que passe. Por exemplo, no Estado Maior do Marechal Foch,8 na Primeira Guerra Mundial, havia a calma por excelência, mas não era calma no sentido pleno da palavra. Era calma no que ela tem de mais nobre, que é a conservação de todo o equilíbrio e toda objetividade em situação adversa. Mas não era calma no sentido de ausência de tenMarechal Foch são, susto, cólera. Há alguma coisa que, conforme as circunstâncias, o indivíduo não consegue vencer, porque não é natural que vença. Sem embargo disso, ele se conserva vitorioso sobre aquilo em todo limite do que é humano. Um exemplo comum, muito ilustrativo: um mártir entra na arena e vê o leão que vai devorá-lo. Salvo 8. Ver mais adiante A calma durante a guerra.

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por uma ação superior da graça, o instinto de conservação se apresenta imediatamente e produz certo efeito, que o indivíduo pode nobremente impedir que o domine. Mas é inevitável que ele sinta um primeiro trauma de perturbação. O que consegue é manter aquele princípio de perturbação nos limites necessários. Ele tem a calma por excelência, que é a de manter-se tranquilo até diante de um leão. Mas já não é a calma em todo o seu desenvolvimento.

A felicidade e a calma A verdadeira e legítima fruição da vida começa quando o indivíduo entendeu o deleite da calma. Compreendendo que a calma é o maior prazer da vida, ele compreendeu o que é a vida, e que a vida é uma partida que vale a pena jogar. Se não entendeu isso, não compreendeu nada. Não sabe viver. Perdeu o maior deleite da vida. Imagino, por exemplo, um doge de Veneza embarcando festejadíssimo no Bucentauro,9 para as núpcias de Veneza com o mar. Se não teve calma no fruir aquilo, de fato não fruiu, porque a fruição vem acompanhada de ansiedade, e a ansiedade traz consigo um elemento de dor. Onde há um elemento de dor, a alegria não é tão perfeita como onde a dor não está presente. Desde muito cedo, discerni em mim o gosto da calma. Creio que era uma graça. Fruí a calma intensamente. 9. Bucentauro: galera oficial do doge de Veneza, que nela embarcava na festa da Ascensão para celebrar o matrimônio de Veneza com o mar. Foi mandado destruir por Napoleão.

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Lembro-me de que em nossa casa havia um jardim, e uma área desocupada muito grande em volta. Muito bem cuidado o jardim, havia muitos tico-ticos e outros passarinhos. Eles chegavam até o largo parapeito do terraço onde eu estava, saltitavam em cima, e eu naturalmente os via bem. Vendo-os, tive a minha atenção muito atraída para a saltitância alegre e feliz deles, para os pulinhos que davam. Depois comecei a prestar atenção nas penas do tico-tico, e achei muito bonitinho o jogo de cores das penas. Notei que os movimentos dele são também graciosos, e que ele é todo muito proporcionadinho, uma verdadeira joia. Eu ouvia falar dos tico-ticos como passarinhos muito comuns, que não valem nada, e aqui começava a cogitação de como estavam errados os que o julgavam tão banal. Não tinham tido independência nem critério para perceber como ele é interessante e bonitinho.

Um animal que é exemplo de calma Vou dar um exemplo que sei não ser muito simpático a muitos, mas é a mais adequada imagem da calma que eu conheça na natureza. É um misto de vigilância e argúcia, de um lado, e de calma do outro: a onça e sua miniatura, o gato. Sei que muita gente tem raiva de gato. Por mim, vejo que é um animal antipático, mas gosto dele porque tem vários lados interessantes. Mesmo qualquer gato ordinário de goteira tem um certo prestígio, e este é um aspecto que me agrada muito. Por assim

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dizer, é um bicho que sabe se respeitar a si próprio, sempre limpo, com a cabeça sempre em pose. Não se vê gato com cara relaxada. Preocupado sim, mas calmo. Nunca se vê gato nervoso. O que mais me atrai no gato é esse misto de vigilância e calma. Qualquer gato está pronto para qualquer pulo, a qualquer hora. Mas nervoso, nunca!10 Pode estar o gato na situação mais difícil, mas ele tem o domínio perfeito da flexibilidade dos seus músculos. Antes de dar um salto, ele mede bem o lance. Se alguém o persegue, dá um pulo enorme. E a primeira coisa que faz, quando se sente fora do perigo, é restabelecer a calma. Outra coisa simpática é que o gato é “sabido”. Até o rabo dele é um radar, uma antena. O que não é nem um pouco simpático no gato é a falsidade. Jeito felino, amável, mas de repente solta 10 . 22-6-74.

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uma unhada. Depois encolhe as unhas e volta àquela patinha redondinha. O gato é um bibelô vivo criado por Deus. Todos os animais são bibelôs criados por Deus, para distraírem o homem. Deus faz bibelôs muito mais bonitos que os de porcelana, embora os de porcelana sejam muito bonitos quando de boa qualidade.

Sublime exemplo de calma

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Não sei a que ápice chegaria o gênero humano se tantas capacidades de tantas pessoas não se perdessem com a falta de calma, em “torcidas”11 inúteis. Se os recursos das pessoas fossem todos aproveitados dentro da calma, seria uma coisa fantástica. O respeito é, dentro da calma, a constatação de um valor maior, pois traz consigo a homenagem.12 Toda solenidade implica em calma. Esta é, aliás, uma das muitas razões pelas quais a Revolução se revoltou contra as solenidades. Figura comunicativa da calma, por excelência, é Nosso Senhor Jesus Cristo. Pode-se dizer que Ele é a calma por excelência, em todos os sentidos e gradações possíveis da palavra. O tempo inteiro Ele teve calma e não deixou de demonstrar calma. A figura d’Ele, sobretudo no Sudário de Turim, comunica calma. A oração Anima Christi, sanctifica me, inspira uma tranquilidade inefável.

A falsa calma A calma que estou descrevendo é cheia de frescor e mobilidade, com disposição para aceitar a variedade das coisas e não ficar atarraxado viciosamente em determinado objeto, com exclusão de outros. É uma certa flexibilidade da alma, própria das articulações e da vitalidade de um organismo vivo. Diante de tudo 11. A palavra torcida pode significar grupo de torcedores numa partida esportiva, mas tem também o sentido irônico, como neste trabalho, significando a atitude excitada de uma pessoa intemperante. 12. 25-9-86.

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o que acontece, vai-se aceitando, recusando, modelando, na alegria e no bem-estar da vida. Todas as calmas ruins conduzem a pessoa a um tipo boudeur,13 melancólico, fechado, desconfiado, com uma atitude perante a vida como quem diz: “Vida, tu és tal que, em relação a ti, eu só tenho uma posição, que é a defesa e fechar as janelas. Fecho-as, e não quero que entres na minha impassibilidade, porque me fazes sofrer. Só por esta forma eu consigo viver. Não sinto nada, não sofro nada, não me alegro com nada, para viver na minha atonia olímpica e não entrar no jogo malfazejo da existência, desprezando os outros homens que se deixam levar pelo vai-vem da vida”. No fundo dessa falsa calma há uma recusa de si mesmo, da vida e de Deus, como quem dissesse: Recuso tudo! Isto é errado. O normal é que, se acontece uma coisa boa, se aceita; se vem uma coisa ruim, ficase desagradado; se não vem nada, não se fica boudeur. É preciso ser flexível a todo esse vai-vem.

Falsa calma que resulta de uma heresia Posso expor em poucas palavras a ligação desta concepção fria diante da vida com a heresia da gnose.14 Ela equivale à ideia gnóstica de que a Criação foi um mal, e o homem não deveria ter sido criado. Os gnósticos não aceitam a ideia da Criação, julgam que 13. Boudeur: aquele que manifesta frequentemente seu mau humor. 14. Gnose: Sistema de filosofia religiosa, cujos adeptos pretendem ter a ciência completa da natureza e dos atributos de Deus e da natureza. Os gnósticos existiram na Antiguidade, e se distribuem por cerca de setenta seitas.

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o homem é uma partícula que se desprendeu de Deus, resultante de um desastre que houve em Deus. E concluem que, “uma vez que nasci de um erro de Deus, devo querer manter-me numa espécie de nirvana15 ou de nada, até o momento feliz em que possa me reincorporar em Deus. O resto desse tempo eu fico boudeur. Reincorporar-se em Deus quer dizer deixar de existir, e aí está inteira a perversidade da gnose.16 Se imaginarmos um despojamento gradual de tudo aquilo em que as pessoas puseram o prazer de sua vida, teríamos algo como o que há na Rússia contemporânea,17 onde existe a impossibilidade completa de reagir. Resignam-se com a inutilidade de fazer outra coisa e ficam gemendo estupidamente. Não têm mais nada que dê alegria, a alegria desapareceu. Ao longo do caminhar da vida, essas pessoas ficam completamente surradas e perdem a reatividade. Como vão ser os filhos delas? E os netos? Que resulta disso na mentalidade coletiva dos homens? É uma espécie de ponto vazio, ponto morto, em que uma sensação interna pseudo-prazenteira ainda é um raio de luz que penetra.

A perda e a reconquista da calma Pode a calma conservar-se diante de algo altamente apetecível?

15 . Nirvana: contemplação budista, com a extinção da individualidade e sua absorção no supremo espírito do universo. 16 . 25-9-86. 17. Esta conferência foi pronunciada em 1986.

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No limite, pode; mas é preciso notar que as coisas muito apetecíveis levam o homem depois a não querer as coisas menos apetecíveis. É preciso, portanto, ter certo cuidado. O altamente apetecível cansa quando dura um tanto. Mesmo sentindo nele uma atração maior do que nas outras coisas, dá vontade de voltar ao normal. Em geral, a perda da calma se dá a partir da ideia de que forçando a fruição, exagerando-a até o paroxismo, a pessoa gozaria mais intensamente. Esse é o erro. Tínhamos esta calma, e teríamos tudo se não forçássemos nada. Forçando, nós nos arrebentamos. A calma pode ser recuperada? A resposta é simples: com a oração, sim; sem ela, não. Mas a calma deve ser profundamente desejada, deve ser considerada uma meta da vida.

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Capítulo 2

Pequena história da calma O sol chega à Terra sem pressa, sem fadiga, sem “torcida” (Plinio Corrêa de Oliveira) 18

Neste capítulo Em matéria de calma, foi a humanidade sempre deficiente como é hoje? A gradual perda da calma como fenômeno moderno foi um processo que se iniciou antes da Primeira Guerra Mundial, intensificou-se muito com a influência de Hollywood nos anos 20 e desfechou no correcorre da segunda metade do século XX e do começo do novo milênio. Temos hoje a idolatria da pressa, triste característica de nossos dias. Em sentido contrário, Dr. Plinio faz interessantes considerações sobre a calma e a reflexão. O pensamento bem apanhado e não livresco, que se pode apreciar sobretudo em momentos de calma, é o suco da vida, e não algo fora dela.

18. Conferência em 30-1-81.

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A seriedade e a calma Tudo é sério. Devemos compreender que cada ação nossa, por pequena que seja, acarreta consequências enormes na ordem verdadeira e profunda das coisas. Ou seja, na presença de Deus. Dizendo-se presença de Deus, está tudo dito, pois tudo que fazemos se faz na presença de Deus e tem relação com Deus. Portanto, toma uma gravidade e uma importância sem fim. A visão beatífica19 nos ajuda a ter esse pensamento. Devemos ter bem em mente que nosso fim, nossa única e verdadeira razão de ser, é contemplar Deus face a face por toda a eternidade. Em aulas de catecismo, para tornar acessível o conceito de eternidade, costuma-se usar esta imagem: Se alguém toma um pedaço de granito e passa o dedo sobre ele, uma partícula pode desprender-se, por pequena que ela seja, e o mais provável mesmo é que se desprenda. Outra imagem seria a de uma andorinha que passasse pelo Pão de Açúcar de mil em mil anos, e roçasse nele apenas a ponta do bico. Quanto tempo levaria a pessoa que tem o granito, ou a andorinha que sobrevoa o Pão de Acúcar, para concluir sua obra? Em relação à eternidade, seria como se a obra estivesse no seu começo. As duas singelas imagens nos fazem sentir melhor o conceito de eternidade, e o que significa ver Deus face a face por toda a eternidade. Compreende-se assim quanto é sério aquilo que pode nos aproximar 19. Visão beatífica: visão de Deus no paraíso celeste.

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A influência hollywoodiana

da visão beatífica, e quanto é sério e grave aquilo que dela pode nos afastar. Ora, de modo geral, qualquer coisa pode nos afastar como também nos aproximar da visão beatífica. Não quer dizer que não haja ações moralmente neutras, porque as há, mas são ações que, conforme a ordenação com que o homem as pratica, podem aproximar ou distanciar de Deus.20

Os “anos loucos” (1920-1930) Há uma reflexão colateral que entra a propósito dessas considerações. Durante os chamados anos 20,21 produziu-se no Brasil um choque de influências, sendo uma parte favorável à permanência das tradições e 20. 30-1-81. 21. Essa década é conhecida em francês como les années folles, em inglês como the roaring twenties.

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dos contatos com a Europa, e a outra pela entrada da influência hollywoodiana.22 Se imaginarmos um rio pequeno no qual desembocam dois rios maiores, podemos ter nesse caos geográfico uma imagem do caos cultural que isso criaria. O Brasil pequeno daquele tempo recebia simultaneamente as grandes águas da tradição européia e a catarata da corrente hollywoodiana.23 É fácil imaginar o encontro e o desencontro de influências que isso produzia. Uma das notas que diferenciavam a influência hollywoodiana da européia era que a Europa tinha seu passado calcado numa cultura de quase dois milênios. Em algum sentido, mais até do que isso, se remontarmos aos romanos e gregos, que de um modo ou outro receberam a influência da Igreja Católica e acabaram gerando a Idade Média. Foram séculos de estudo e de reflexão, e as pessoas tomaram o hábito de ler, pensar, estudar, nos ritmos de vida de antigamente. Era uma vida calma, sem os atuais instrumentos de ação rápidos e avassaladores de hoje. A vida humana corria muito devagar, tranquila, cheia de interstícios. Meu bisavô, sendo deputado no Parlamento do Império, levava um mês para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, a fim de assumir sua cadeira no Parlamento. Talvez ele fosse fazendo alguma propaganda eleitoral pelo caminho, mas hoje nem se consegue

22. 30-1-81. 23. Referente a Hollywood, capital do cinema nos Estados Unidos.

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imaginar como pode um deputado sair de São Paulo no dia primeiro de janeiro para chegar à corte do Império, no Rio, no dia primeiro de fevereiro. Às vezes partiam de São Paulo para o Rio famílias inteiras, em verdadeiras caravanas. O grupo parava, quando chegava perto do Rio. Então as senhoras se arranjavam, ajeitavam-se as liteiras, os homens se compunham para entrar na corte, como se chamava antigamente a capital do Império. Havia portanto um interstício enorme, em que ele não recebia notícias e quase não tinha como mandá-las. As coisas em que ele pensava durante a viagem, queira-se ou não, resultavam numa vida refletida. Se eram boas ou não as reflexões, é outra questão, mas o certo é que ele refletia.24

No tempo de Talleyrand Li num livro sobre Talleyrand25 o seguinte episódio. Quando ele foi ao Congresso de Viena,26 tinha uma sobrinha que morava na embaixada francesa em Viena. Ele ia executar durante o Congresso uma jogada extremamente importante, que interessava também a essa sobrinha. Combinou então com ela o seguinte: quando você ouvir o ruído de minha carruagem, chegue à janela ou à porta e observe se estou com o lenço na mão. Se estiver, quer dizer que tudo deu certo; mas 24. 30-1-81. 25. Charles-Maurice Talleyrand-Périgord (1754-1838), diplomata, homem de ação durante a Revolução Francesa e a Restauração, bispo de Autun. 26. Congresso de Viena: teve como finalidade redesenhar o mapa político do Velho Continente, após a derrota de Napoleão (1814-1815).

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se não aparecer o lenço, quer dizer que não deu em nada. Note-se inicialmente como a rua tinha de ser tranquila, para ela poder discernir o ruído da carruagem de Talleyrand. E uma simples informação, que hoje se transmitiria com um telefonema, só seria recebida após todo o tempo necessário para concluir a sessão, ele se despedir de todos, descer a escada ajudado por alguém − pois ele era manco − e entrar na carruagem. O lacaio tinha de abrir a porta e baixar uma escada na qual ele subia. Ele se sentava, sentava-se o secretário e o lacaio fechava a porta. Ele ainda tirava o bicórneo para cumprimentar algumas pessoas. O cocheiro subia na boléia, que era na frente, e os outros lacaios de libré iam atrás. Os cavalos começavam a Charles-Maurice puxar o carro pelo calçamenTalleyrand-Périgord to de Viena, e Talleyrand lá ia chacoalhando até a embaixada. Muito antes de tudo isso ter-se realizado, por um telefonema do secretário para a sobrinha ela teria recebido a informação. Esse era o tempo que levava uma notícia para chegar dentro da própria cidade. É fácil imaginar a ansiedade da sobrinha. Ela queria saber tão depressa o resultado, que recorreram a um lenço na mão para encurtar o tempo da espera! Ela tinha que esperar, mas enquanto

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esperava ia pensando em outra coisa, porque a ansiedade sozinha é cansativa. Havia assim tempo para aprofundar os assuntos, refletir a respeito das questões. Esse é um processo natural, e gera um teor de vida do qual hoje não se tem mais ideia. Por quê? Porque a pressa hollywoodiana tomou conta da vida e lhe conferiu outros ritmos, em que a reflexão não entra. Se Talleyrand estivesse nos dias de hoje, teria combinado com a sobrinha: Meu secretário lhe transmite a informação logo que a sessão esteja encerrada; você telefona daí para as nossas embaixadas, para o ministro do exterior em Paris e para nossas embaixadas em Roma, Berlim, Londres, Madri, Lisboa e Washington, contando o que houve! Quando eu chegar em casa, já quero ter as reações de todos esses ministérios. Isso hoje seria o normal. Ela era uma mulher inteligentíssima, e daria conta do recado. Ele já chegaria arfando, e indagaria o que disse o ministério do exterior, como foi recebido o que conseguira, qual foi a repercussão em Washington. Na calma da vida de antigamente, enquanto se movimentava a carruagem entrava a reflexão. O resultado é que nos quadros representando aquelas pessoas, todas têm fisionomia de quem está refletindo. Havia tempo para isso.27 Há certos tipos de espíritos que têm não só o hábito da reflexão, têm também sede de fazê-la. A Idade Média foi a era da reflexão, a época mais profundamente meditativa que houve na História. É

27. 30-1-81.

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preciso ter não só a sede da reflexão, mas uma profunda compenetração de seu primado.28

A calma e o seu oposto no século XX Nas fotografias de pessoas a partir da Primeira Guerra Mundial, as fisionomias são cada vez mais irrefletidas. A foto é um instantâneo, porque o indivíduo não sabe mais fazer pose. Para se fazer pose, é preciso refletir um pouco, e nem se sabe mais refletir um pouco. A pessoa está sempre correndo, na disparada. O instantâneo é a lembrança que deixa atrás de si o homem do corre-corre. Sem me perder em pormenores, para mim a vida que se levava antigamente começou a acabar nos anos 30. Quando digo antigamente, quero referir-me a antes dos anos 20, e cada vez menos durante os anos 20. Nas casas de uma burguesia média – e às vezes menos que isso, portanto, a fortiori nas classes mais altas – os quartos de dormir eram espaçosos. Sobretudo os quartos de homens, tinham em geral um mobiliário sumário – um sofá e algumas cadeiras, por exemplo, além do necessário para dormir. Conversas muito reservadas se faziam no quarto de dormir. Ia-se para o mais interno da casa, e ali se conversava. Durante o dia, às vezes a pessoa se recolhia ao quarto de dormir, para pensar bem. Não se deitava na cama, o que só fazia quando doente, ou então para dormir à noite. Instalava-se no sofá e ficava pensando, meio recostado, mas isolado de todos.

28. 2-12-69.

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Um famoso quadro representa madame Récamier,29 que era pessoa de grande autoridade social na França do Diretório e da Restauração. Ela era visitada, por exemplo, por homens como Chateaubriand e o Duque de Montmorency, ministro de Estado. Era na prosa que eles se distraíam. No quadro famoso, ela está como que meditando, pensando. Entretanto, era uma mulher de vida social intensa. Se hoje uma senhora tem vida social, é tal a movimentação que quase nem há tempo para baixar as pálpebras! O corre-corre invadiu tudo.30

Sob a ditadura do corre-corre Atualmente a ação não tem o fundo de contemplação que deveria ter. O corre-corre é muito nocivo, porque tira o hábito de pensar. Ele traz a convicção muito nociva de que o homem deve fazer tanto quanto possa e pensar pouco. Por conexão, também a senhora, o moço ou a moça, e isso necessariamente se transmite à criança. Predomina a concepção de que pensar é perda de tempo, numa vida que não é digna de chamar-se vida. É preciso fazer, fazer, fazer. Quanto mais se fizer, melhor. O resto é perda de tempo. Nessa espécie de embriaguez de fazer, fazer, fazer, o indivíduo julga que perde tempo pensando. Para certa mentalidade executiva, quem vive para

29. Jeanne-Françoise-Julie-Adelaide (1777-1849). O quadro é do pintor David. 30. 30-1-81.

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doutrina e princípios vive no sonho. Deve-se viver para o ganho, para o dinheiro, e o que não for isso não é verdadeiramente viver. Daí o desagrado, o desprezo, ou pelo menos o menosprezo da reflexão, imposto pela pressa e pelo gosto do indivíduo. O executivo que tem a mentalidade inerente à sua própria atividade pode ser visto como um símbolo da não reflexão. Executivo é o que executa, mas executar é fazer o que outro pensou ou simplesmente mandou. Velocidade, velocidade, velocidade – isso vicia no agir, da mesma forma que alguém pode viciar-se em drogas.31

O homem-máquina Sabemos que alguns dos grandes filósofos da Grécia antiga eram escravos. Mas se eram também filósofos, é porque tinham tempo para filosofar. Qual o patrão de hoje − já não digo o operário − que tem tempo para filosofar? Fala-se muito em dignidade humana, mas a pergunta que se impõe é esta: Qual dos dois é mais escravo? Quanto ao homem-máquina, pode-se perfeitamente afirmar que é um escravo. O Sol não se atrasa nem se adianta – ele faz a hora! Quando chega à terra, é sem pressa, sem fadiga, sem “torcida”.32 Sem preguiça, mas também sem corre-corre. Ele transpôs não sei que distâncias para chegar ali, onde pousa e brilha, executando plenamente sua função. Assim deve ser o homem calmo. 31. 30-1-81. 32. Ver nota 11.

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Direito humano, da forma como é concebido e manipulado atualmente, é uma arma psicológica instrumentalizada contra toda forma de autoridade – o patrão, o pai, o Estado. Em matéria de direitos humanos, há um assunto do qual não se fala nem um pouco: Quantas pessoas a idolatria da pressa já matou?

As cogitações possíveis apenas na calma Tomar um assunto doutrinário e examiná-lo com interesse, deve transformar-se para nós numa segunda natureza. Mais do que com interesse, com paixão, pois a teoria verdadeira, bem apanhada e não apenas livresca, é o suco da vida, não algo fossilizado e fora dela. É só por esse meio que se atinge uma vivência dupla: Primeiro, a de que nada é mais real do que a teoria; segundo, a de que nada é mais prático do que ela. A posição errada, diferente desta, consiste em julgar que para conhecer a realidade o homem precisa deixar a solidão, abandonar o livro e começar a tratar com inúmeras outras pessoas. Afirma-se que a prática é feita de experiência, a experiência é feita de fazer, portanto a reflexão não adianta para a experiência, o que adianta é fazer. Para esses, a reflexão é até o contrário da experiência, é o não fazer. Entra pelos olhos que a experiência se obtém com o fazer. Mas não há experiência verdadeira sem que, além do fazer, haja uma reflexão. A experiência não é só fazer, é também uma reflexão sobre aquilo que se fez. Para quem não quer proceder como um animal, isto ainda é mais evidente.

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Pode-se entender isso imaginando um laboratório onde trabalham um cientista e um servente. O chão do laboratório vai-se sujando à medida que o cientista trabalha nas suas pesquisas, e o servente é encarregado de limpá-lo. Para ser bom servente, ele deve fazer reflexões sobre seu minúsculo métier. Deve procurar o melhor modo de pegar a vassoura, deve cogitar por onde é melhor começar a limpeza da sala, deve indagar qual detergente é melhor para tirar tal mancha, etc. Enfim, se for um bom servente, terá mil pequenas reflexões que podem tornar a limpeza dele uma limpeza ideal. O cientista que está fazendo a pesquisa também experimenta. Mas o mais importante no trabalho dele é a reflexão sobre a experiência, muito mais do que a pura experiência.

Inteligência e reflexão O importante para um homem não é ser muito inteligente, e sim que ele ame refletir. O homem que ama a reflexão, feita à luz do sobrenatural, ama o que a Teologia define como oração: A oração é a elevação da mente a Deus. Muitas vezes a reflexão dos menos inteligentes é mais abençoada e traz mais luzes que a dos mais inteligentes. Santo Tomás de Aquino, para elaborar a Suma Teológica, fez muito mais sendo santo do que sendo inteligente. Um quadro de Velásquez mostra o Marquês de Espinola recebendo a rendição de Breda. Gosto de pensar no modo como ele recebe o burguês e como os dois se cumprimentam. Rejeito a ideia de que os

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Quadro de Velásquez mostra o Marquês de Espinola recebendo a rendição de Breda

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pequenos deleites devem ser rejeitados, e a cena com esse pequeno episódio me oferece um pequeno deleite agradável, de muita categoria. Não se deve viver à procura exclusivamente dos auges de deleites, porque isso escapa à ordem natural. Deus criou uma gama enorme de coisas deleitáveis, e quer que nossa alma esteja aberta para todas elas. Portanto, deleitemo-nos também com as pequenas impressões agradáveis, miúdas. Enquanto estou aqui trabalhando, posso levantar-me, abrir a porta e debruçar-me um pouco no balcão do terraço. Se ficar apreciando uma criança que está brincando com uma bola ali fora, alguém poderia lançar-me uma advertência: Isso é uma insignificância, procure uma grande sensação. Sem a menor relutância, eu colocaria as coisas nos devidos termos: Agindo assim eu sou feliz, porque nas horas adequadas encontro em coisas pequenas o deleite adequado.33

33. 2-12-69.

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Capítulo 3

A tranquilidade e a proeza É nos grandes perigos que se vê uma grande coragem (provérbio francês)

Neste capítulo Se proeza é uma ação de valor ou uma façanha, a verdadeira calma não é o contrário, como pode parecer, mas uma condição dela. A autêntica proeza deve ser inteiramente racional, e a racionalidade supõe a calma. O simples risco de vida não caracteriza a proeza. Na verdadeira proeza há valentia e uma espécie de euforia, que não é vaidade nem orgulho. O espírito de proeza é uma das mais altas posições da alma humana, e não se alcança apenas por meio da calma, mas lhe é correlata. Monumento a Dom Pelayo, herói da Reconquista espanhola contra os muçulmanos

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Exemplos de proeza Proeza é uma ação insigne para um fim proporcionado, comportando esforço insigne e por vezes um grande risco. Pode absorver ou ameaçar a existência, pois põe em risco a vida da pessoa, que pode morrer de repente, ou então levar até a vida inteira realizando determinada obra. A proeza consiste em correr um risco que está nos confins da temeridade, quando a pessoa arrisca tudo com meios apenas suficientes. Ao dar tudo, de tal maneira desdobra sua personalidade, que fica como que imersa na atmosfera do ideal pelo qual está se entregando. É uma das mais altas posições da alma humana. Na força do termo, viver é ser um homem de proeza. Nesta vida, ou se vai atrás de um ideal que justifique a proeza, ou não se viveu. Sendo isto verdade, o mais alto bem-estar na Terra está na proeza. Daí o dito dos paraquedistas franceses: Mais vale a pena ser águia um minuto do que sapo a vida inteira. Se um deles se joga com paraquedas num salto de sublime coragem, para realizar uma ação decisiva, pode chegar ao chão e se estatelar, mas terá feito sua proeza. A vida dele estará realizada, ainda que fique o resto da existência paralítico numa cama.34 Um estudioso pode passar trinta anos da vida fazendo um estudo qualquer, para chegar à comprovação de um princípio científico novo que ninguém achava admissível, e cuja realidade ele acaba provan34. 2-10-72.

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do. É uma proeza, pois descobriu com esforço algo que todo mundo negava. Percebeu que era assim, e dedicou a isso um esforço insigne. Conseguida a prova, com isso alterou e aprimorou completamente o conhecimento humano em determinado sentido. Ele justificou sua vida. Na verdadeira proeza há uma espécie de euforia, que não é vaidade nem orgulho. A proeza de um bandido não tem beleza, a não ser por uma vaga e espúria analogia, e não conduz à felicidade.

Proezas de caráter religioso Falei até aqui propositalmente em termos leigos, inteiramente leigos, mas vou agora aplicar o mesmo conceito para aspectos religiosos. Imaginemos um sacerdote novo, que recebe a confissão de um criminoso e fica atado ao sigilo sacramental. Depois de algum tempo, ele mesmo é acusado desse crime, do qual poderia se defender revelando o segredo da confissão. Recusa-se a revelá-lo, e como consequência passa o resto da vida cumprindo pena numa prisão. Enquanto isso, o criminoso permanece livre. Suportar isso é uma verdadeira proeza. Num certo momento morre o criminoso, mas antes de morrer encarrega outro confessor de contar que foi ele o autor do crime, do qual dá todas as provas. Quando vão tirar o padre da cadeia, ele já é um velho, cuja vida sacerdotal foi toda estragada. Mas ele terá respeitado o sigilo sacramental. Quem ousaria negar que essa vida foi uma proeza? Uma santa proeza como essa foi a do Padre Da-

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mião, que decidiu fazer apostolado com os leprosos na ilha de Molocai (Havaí)35 e tornou-se leproso. Realizou também uma proeza Santa Mônica, que levou muitos anos rezando confiantemente para a conversão de seu filho Santo Agostinho. Ela ficou célebre por essa proeza. Assim, há mil formas de proeza na vida.36

A proeza de nossa vida Toda vida deve ter uma proeza, e eu devo procurar viver para a minha proeza. Qual é a proeza de minha vida? Ela terá seu sentido na hora em que eu encontrar a proeza que a deve marcar. A proeza de Nosso Senhor Jesus Cristo foi a Cruz. Quando lhe apresentaram a Cruz, Ele a osculou com muito afeto, tomou-a sobre os ombros com ânimo e a levou ao alto do Calvário. Não como uma coisa detestável e inevitável. É assim que devemos encontrar e realizar a proeza de nossa vida. Quem não vive para gozar a vida, mas para fazer algo que lhe exige abnegação, tem grande tranquilidade quando o consegue, na medida de felicidade possível na Terra. Ele tem a consciência de que procurou fazer o que devia, e o fez com toda força.37

35. O Padre Damião de Veuster (1840-1889) foi beatificado em 1995. 36. 2-10-72. 37. 2-10-72.

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Capítulo 4

No Quartel General do Marechal Foch “A quietude, a paz serena reinam nessa mansão [o QG]. Paz de uma abadia beneditina, onde cada qual trabalha com fervor, na irradiação do chefe” (Gustave Babin)

Neste capítulo O Gen. Weygand descreve, e Dr. Plinio comenta, como era o Quartel General do Marechal Foch, de onde partiu a condução vitoriosa da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Esse Quartel General é belo exemplo de uma grande verdade: heroísmo e calma são termos correlatos. O QG do generalíssimo era o foco da guerra, e ao mesmo tempo um modelo de calma.

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A inigualável eficácia da calma Nosso Estado Maior procurava a calma das pequenas localidades ou dos castelos isolados.38 Um Estado Maior que procura a calma, durante a guerra. Muitos podem estranhar isso: Como!? Não se tem de estar no meio do fogo? Não, não! Quem vai fazer um trabalho de comando, e agir intensamente, deve afundar na calma, ficar fora das estradas, perto de uma estradinha que comunique facilmente com as tropas, mas sem barulheira. Esse homem, Foch, mudou várias vezes de lugar durante a guerra, porque as operações militares o exigiam. Ele procurava o lugar para instalar o Estado Maior dele, mas dir-se-ia que procurava um lugar para fazer um retiro. Havia continuidade nisso, e ele venceu assim uma das maiores guerras da História. O artigo continua: Se um acontecimento novo reclama uma decisão a tomar, ou uma instrução a dar, a questão é regulamentada imediatamente; e pode requerer apenas um momento, como também exigir várias horas de trabalho. Ou seja, tudo é imprevisto e variável dentro dessa vida, mas não há nenhum apego desordenado à rotina. É frequente também que eu seja colhido por essa frase [do marechal]: eis a ideia que eu tive, enquanto fazia a barba. 38. Todos os textos em itálico, neste tópico, foram extraídos de artigo do General Weygand, No Estado-Maior do Marechal Foch, publicado na revista “Historia”, nº 218, de janeiro de 1965. Trata-se do Estado-Maior do marechal francês Ferdinand Foch (1851-1929), comandante em chefe das forças aliadas e um dos vencedores da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

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Esse homem queria uma vida sossegada para poder pensar, até mesmo enquanto fazia a barba. Isso é muito diferente do “macaco elétrico”, e acho que jamais será suficiente ressaltar essa diferença.

Calma e serenidade, condições para um trabalho sério Essa regularidade, junto à calma imperturbável do nosso chefe, cria uma atmosfera benfazeja, de confiança e serenidade, e chama a atenção dos oficiais que nesses

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períodos movimentados comparecem ao nosso Estado Maior. Eis aí como eram as coisas. Tudo cria um clima de calma e serenidade, que é apresentado como condição essencial para se fazer um trabalho sério. Ou, muito mais que um trabalho sério, uma guerra séria. Lutar é muito mais que trabalhar. Mais do que lutar, só pensar. E mais do que pensar, só rezar. O Marechal Foch goza de um excelente apetite, e veda os assuntos de serviço durante a refeição. O serviço de que se trata é a guerra, o mundo está explodindo, a França está rachando, mas na hora da refeição não se fala disso. As alusões clássicas sobre a detestável qualidade da sua cozinha e a falta de imaginação de suas combinações culinárias evitam silêncios por demais pesados. O excelente tenente Boutal, que acumula suas funções com as de oficial de ordenança, sabe que valor dar a essas censuras, e as aceita de boa mente. Depois do almoço o marechal sobe um instante a seu quarto, e por volta de uma e meia está de volta ao Estado Maior. Se alguma visita ao front não está prevista, essa é a hora do passeio a pé. Almoço calmo e bem comido, pequeno repouso. Depois, o que vai fazer esse homem? Um passeiozinho a pé. Julgo isso admirável. Note-se que o seu estilo deu certo. Se ele tivesse perdido a guerra, vários diriam: Bem, foi vencido por causa disso. É exatamente o contrário, pois ele ganhou a guerra.

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Capítulo 5

A paz é a tranquilidade da ordem A ordem é um dos elementos do Belo conjugado com a Grandeza (Aristóteles)

Neste capítulo Santo Agostinho deu a definição definitiva de paz: “É a tranquilidade da ordem”. E ordem é a disposição dos seres segundo sua natureza e seu fim. O mundo moderno caiu na desordem. Um dos aspectos da desordem de nossos dias é a inexistência de verdadeira paz – há um lamaçal de paz-guerra, guerra-paz. A felicidade e infelicidade do mundo em que vivemos se mede pela intensidade de sua tranquilidade ou intranquilidade. O que se estabeleceu hoje em dia é a intranquilidade, que aponta para as atrações e falácias da droga. Infelizmente, não é apenas isso.

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A tranquilidade da ordem Depois que Santo Agostinho definiu a paz como a tranquilidade da ordem, a noção de paz ficou em paz, e não se discutiu mais. Onde há ordem, há tranquilidade. Essa tranquilidade se chama paz. Não é paz, portanto, qualquer tranquilidade. A paz não é tranquilidade indiferente à ordem ou à desordem. Quando as coisas estão em paz, sente-se a ordem. Convém analisar em primeiro lugar a noção de ordem. O que significa ordem? É a disposição dos seres segundo sua natureza, em seguida de acordo com seu fim, e depois de acordo com a liberdade e os meios para se moverem rumo a seu fim. Um microfone como o que tenho diante de mim está em ordem quando todos os seus elementos estão compostos e dispostos de acordo com sua natureza e finalidade. A finalidade dele é captar o som, as palavras da conferência, e difundi-las pelo salão de maneira que todos possam ouvi-las. Se eu introduzisse na estrutura dele uma corda de harpa, por exemplo, ele São Domingos meditando

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não funcionaria, pois não estaria ordenado de acordo com sua finalidade. Além disso, é preciso que todos esses elementos estejam voltados, coordenados, imbricados entre si de maneira a realizarem a finalidade do microfone. Finalmente, é necessária a liberdade de movimentos para que um objeto realize o seu fim. No caso do microfone, isto inclui certa elasticidade para ele poder vibrar com o som. Precisa ter as reatividades e as flexibilidades que o façam captar o som. Precisa, portanto, de certa liberdade de movimento ordenada, pela qual realiza o seu fim. Esta é a ordem verdadeira. Algo que falta, no mundo contemporâneo, é a ordem. Quanto mais a procuramos, mais ela nos foge entre os dedos. E quanto mais vão se transformando em garras esses dedos, para conseguirem reter a ordem, tanto mais ela se vai desfazendo.

Uma vassoura velha e um chapéu ridículo Podemos imaginar que no começo desta reunião houvesse aqui nesses degraus uma vassoura velha, quebrada, e junto dela um chapéu velho, ridículo. Enquanto alguém não pegasse esses objetos e os retirasse, haveria um mal estar geral na sala. Feito isso, todos quereriam saber quem os deixou aí, e por que o fez, pois não se compreende que tenham ficado nesse lugar objetos assim. Só depois se pediria ao orador que começasse a conferência. Aquela desordem produzia intranquilidade, e o restabelecimento da ordem devolveu a tranquilidade. Essa tranquilidade se chama paz.

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A visão de Deus no Paraíso nos mostrará a suma causa, o sumo bem, e nossa vontade repousará em paz n’Ele, na tranquilidade da ordem. No Céu está tudo na sua ordem, porque tudo está em nexo com Ele.39

Tranquilidade e movimento Há certas formas de imobilidade que nem merecem o nome de tranquilidade, pois não são paz certas formas de atonia, certas formas de inação. O braço poderoso de um carregador que transporta um volume grande, ou o de um atleta que levanta um peso notável, está realmente em paz, ainda que se note na disposição de seus músculos que ele está fazendo um esforço enorme. Pelo contrário, o braço inerte de um paralítico não está em ordem. Não está fazendo esforço, mas aquela tranquilidade da inércia e da paralisia não é verdadeira paz, pois não nasce da ordem. Assim, os conceitos de ordem e de paz se entrosam muito exatamente.

A paz do sepulcro No sepulcro pode-se escrever R.I.P. (requiescat in pace – descanse em paz). Essa paz se refere eventualmente à alma, mas não ao corpo, porque aquela desagregação decorrente da inércia e da putrefação não é a paz. Como a verdadeira paz decorre da ordem, onde há putrefação ou desagregação não há verdadeira ordem – há o contrário, pois a putrefação significa desordem. 39. 18-2-81.

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No que diz respeito ao ser vivo, ordem, paz e tranquilidade são conceitos eminentemente conectados com o dom da vida que Deus dá. Aquilo que favorece o dom da vida, que o estimula, que o ordena, está de acordo com a paz. O restante, não.

A desordem Compreendido o significado que enunciamos quando falamos de ordem, podemos compreender melhor agora o que é a desordem. Há duas formas de desordem: a contra-ordem e o caos. A primeira forma se verifica quando se toma algo e se desfaz a ordem em que estava, mas em seguida coloca-se aquele mesmo material numa ordem errada, numa contra-ordem. Alguém poderia tomar este microfone, por exemplo, e esvaziá-lo. Depois tomaria todas as peças internas e as recolocaria dentro, de tal maneira que tudo estivesse colocado ao contrário. Teríamos assim uma contra-ordem, o contrário de uma ordem. Essa situação contrária a uma ordem ainda teria certa característica em comum com a ordem, pois seria uma ordem ao contrário. A intenção era deformar, mas estava presente uma intenção. Outra forma de desordem é o caos. Já não se trata de contra-ordem, mas de algo como uma explosão. Por exemplo, se faço explodir uma bomba na base de um edifício, voam pelos ares partes dele. Uma força destrutiva invade tudo, joga as partes umas contra as outras, ao sabor do acaso, e faz com que nem sequer haja uma contra-ordem. Forma-se portanto o caos.

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A desordem do mundo moderno Com essas noções, podemos entender que o mundo contemporâneo está numa profunda desordem. Esta desordem é uma contra-ordem ou um caos? Quando ela tiver chegado a seu termo, o que resultaria daí? Seguiria o plano de uma contra-ordem ou o de uma explosão? Que espécie de desordem teríamos? A resposta que devemos dar é que se caminha para a contra-ordem. O exemplo característico de contra-ordem é o comunismo. O regime com características comunistas é um contra-regime, porque é planejado (há portanto uma intenção) para inverter a ordem natural das coisas. A ordem sócio-econômica de regimes assim é uma contra-ordem, porque põe todas as coisas como não devem estar. A cultura é uma contra-cultura, a civilização é uma contra-civilização, embora por vezes dentro de Estados estáveis. Policialescamente estáveis, pois é por força da polícia que eles se mantêm, mas não se pode negar que tenham certa estabilidade.40

A paz é impossível com os adversários da ordem Desde Adão e Eva até o fim do mundo haverá Cains e haverá Abéis. E os Cains vão perseguir e matar os Abéis. Isto é indiscutível, e a prova mais provada que se tem é a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Maior santidade, maior virtude, melhor doutrina, 40. 21-6-84.

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maiores milagres, maiores dons de atração e de enlevo pessoal, nunca ninguém possuiu nem sequer pôde imaginar como eram as características que adornavam a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. No entanto, o que fizeram com Ele? Crucificaram-no. A bondade dos bons não desarma a maldade dos maus. Os maus lutam para acabar com os bons, e lutam até o fim, porque os odeiam. Portanto, a ideia de paz entre os bons e os maus é completamente errada. A paz não é uma tranquilidade qualquer. Se na definição de Santo Agostinho a paz é a tranquilidade da ordem, podemos concluir que nos lugares onde há ordem, dela decorre tranquilidade, e ali há paz. Sendo assim, para se conseguir a paz, o certo não é entrar em concórdia com os adversários da ordem ou com os propagadores da desordem, mas consiste em promover a ordem. Promova-se a ordem, e a paz nascerá naturalmente. Não defenda a ordem, permita que ela seja calcada aos pés, e nascerá a desordem.

Tranquilidade da ordem na harmonia musical Uma imagem da tranquilidade da ordem é uma bela música sacra executada no órgão ou cantada. Ou mesmo uma música não sacra, mas bonita e harmoniosa. Aquilo é tranquilidade da ordem. Nessa música, a tranquilidade viva da ordem chama-se harmonia.41 Bem ao contrário de barulhos e dissonâncias musicais modernos. 41. 16-1-81.

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Os ouvidos e as mentes estão deformados pelo espírito moderno. A tal ponto que, quando se fala de tranquilidade, tem-se a impressão de um repouso que não comporta nenhum movimento, nenhum som, reduzindo a tranquilidade a uma situação toda feita de inação, e quase de vácuo.

A guerra e a paz Antigamente havia um limite claro entre a paz e a guerra. Esta era declarada oficialmente, e só depois começavam as operações militares. Os conceitos de guerra e de paz se poluíram, mesclaram e borraram, de tal modo que a paz inteira não existe mais, tornou-se um aspecto velado da guerra. Hoje há um misto de paz-guerra, guerra-paz – uma espécie de pântano ou charco lamacento, onde

Ferido durante o atentado terrorista, na cidade de Boston, Estados Unidos

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todos brigam continuamente com todos, todos sorriem continuamente para todos, mas não há mais tranquilidade, não há mais ordem, não há mais guerra formal. É uma espécie de poluição da paz pela guerra e da guerra pela paz. Quando há um misto de paz e de guerra, não existe paz, existe guerra. Mas trata-se de guerra sem a dignidade da guerra, porque é o embate do truque, da falácia, do roubo das mentes. É a guerra da imundície, e é dentro dela que estamos.42 O conceito pacifista de paz é a confusão e a desordem. Não é verdadeira paz, mas seu contrário. Por isso se aplicam a Nosso Senhor essas palavras do Antigo Testamento: “Eis na paz a minha amargura muito amarga”.43 No auge da amargura, numa amargura amaríssima, havia a paz. Seria um exagero dizer que não se devem apreciar as épocas de tranquilidade, e que elas não devam ser pedidas a Nosso Senhor. Em certos momentos Ele permite que não tenhamos sofrimentos e não tenhamos luta. Podemos e devemos apreciar que a misericórdia divina nos consiga e nos conceda tais épocas na vida, mas não devemos fazer dessa perspectiva o ideal da paz. São momentos de consolação e de distensão, como o próprio Nosso Senhor tinha em casa de Lázaro, Maria e Marta, mas a verdadeira paz está na tranquilidade da ordem. É com essa perspectiva em mente que devemos rezar a Nossa Senhora da Paz.

42. Sem data. 43. Is. 38, 17.

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Felicidade e infelicidade no grau de tranquilidade ou intranquilidade É evidente que o grau de felicidade ou infelicidade se mede pela intensidade da tranquilidade ou da intranquilidade. Quem tem tudo de que necessita está tranquilo, e se não está tranquilo é porque algo lhe falta. Os que encontram supremo prazer no apego a si mesmos são sempre os mais intranquilos, logo são os mais infelizes. Concede-se que eles gozam mais, mas a necessidade ilimitada e insaciável de gozar é fonte de suprema infelicidade. Quem é insaciável tem que arranjar um jeito de controlar-se, ou então está perdido. O desejo insaciável de beber água, por exemplo, é característico de um doente. Quando ele bebe água, sente mais bem-estar do que uma pessoa de saúde normal. Isso é certo, mas no fundo ele é infeliz, pois as apetências insaciáveis de gozo são fontes de infelicidade. Nosso gozo no Céu será insaciável? Não, pois se trata de um gozo sem fim, mas também saciado. Se fosse insaciável, no Céu se seria infeliz.44

“Otium cum dignitate” É uma espécie de bem-aventurança na Terra ter tranquilidade com elevação. Os romanos definiam essa situação de modo muito interessante: otium cum

44. 22-1-66.

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dignitate.45 A fórmula é muito feliz. O sentido da palavra ócio, para os romanos, era diverso do que tem na língua portuguesa, que é intrinsecamente culposo: era um lazer com dignidade. Seria para eles o zênite da alma humana nesta vida. Para nós, a palavra dignidade é muito mais expressiva do que para eles, pois pode ter relação com o sobrenatural. A imagem mais bela disso, para mim, é Deus passeando com Adão no Paraíso.46 Para mim, é a mais bela das imagens.47

A droga e as doenças nervosas Acabei percebendo que há uma série de prazeres tranquilos na vida, e também uma série de prazeres intranquilos. Os prazeres intranquilos são muito mais saborosos, e contêm todas as atrações e as falácias da droga. O indivíduo que os deseja torna-se culposamente nervoso, e tende a caminhar no final para o uso das drogas. Eles se apresentam como algo muito mais saboroso, muito mais delicioso do que o prazer tranquilo, que parece enfadonho para quem se habitua aos prazeres da “torcida”. Sendo inebriantes os momentos da “torcida”, todo o resto do tempo fica sem graça. Para quem se entrega a eles, a vida tem ilhotas paradisíacas, e o resto são mares sujos e desagradáveis de atravessar.

45. Expressão de Cícero, significando ócio com dignidade. 46. “... o Senhor Deus, que passeava pelo paraíso, à hora da brisa, depois do meio-dia...” (Gn, 3, 8). 47. 6-1-74.

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Podemos então perguntar o que proporciona melhor felicidade para o homem, nesta Terra: os prazeres tranquilos ou os intranquilos? O prazer tranquilo, despreocupado, o da consciência em paz, tem deleites que não trazem consigo nenhuma forma de sofrimento. Resulta do esforço, mas não acarreta nenhuma dor, apesar de não conter algo muito mais agradável que o prazer intranquilo. São duas escolas de felicidade, duas escolas de prazer, duas escolas de Revolução e Contra-Revolução. Portanto, dois sistemas de educar. É preciso não fazer da vida um campo de batalha em que se evita a cruz ou a batalha. Pelo contrário, é necessário enfrentá-la de cheio, buscando essa tranquilidade dentro da cruz e dentro da batalha. Chegando até o fundo do mar, se for preciso, mas com esse deleite, essa tranquilidade, e nada de “torcida”. É muito melhor do que uma vida habitual de “torcida”, que deixa a pessoa em pandarecos e nunca lhe dá uma felicidade real. Trata-se de duas escolas e dois sistemas. É preciso escolher uma ou a outra, não há alternativa.48

Nossa Senhora da Paz Nossa Senhora da Paz é Nossa Senhora da Ordem, é Nossa Senhora enquanto promovendo e favorecendo que as coisas estejam em ordem. Sendo a paz fundamentalmente a tranquilidade da ordem, isto significa em última análise estar de acordo com 48. 17-3-95.

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Nossa Senhora da Paz

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a vontade de Deus, com a Lei de Deus, realizar os planos de Deus.49 O que devemos pedir a Nossa Senhora da Paz, quando estamos diante de uma imagem dessa invocação? Devemos pedir que Ela nos infunda bem vivo na alma o conceito de paz, o amor da paz verdadeira, que é simplesmente a tranquilidade da ordem, e não a ausência da dor e da luta. Como complemento, podemos pedir a Nossa Senhora que nos dê alguma tranquilidade e alguma distensão decorrentes de circunstâncias propícias a essa ordem, as quais nos permitam respirar um pouco.

49. 10-7-65.

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Capítulo 6

A “distância psíquica” Animam suam in manibus suis semper tenens, placide obdormivit in Domino Conservando sempre sua alma entre suas mãos, adormeceu placidamente no Senhor (lápide do túmulo de São Frei Galvão)

Neste capítulo É preciso termos distância em relação às coisas. Não ir correndo atrás delas, nem gostar que elas venham correndo atrás de nós. Pensar antes de agir, numa atmosfera calma, recolhida e tranquila. É o que se pode chamar de distância psíquica – grau de distanciamento emocional mantido em relação a uma pessoa, um bem ou grupo de pessoas. É uma distância interior, análoga mas diversa da distância física. Pode-se estar junto de um objeto, mas conservar a distância psíquica em relação a ele.50 É necessário pensar de modo prático e concreto, para que aquilo que se faz seja bem feito. Mas, ao mesmo tempo, isso deve ser acompanhado de um pensamento elevado, pois toda coisa prática, vista no fundo, se relaciona com problemas gerais de ordem universal, que têm uma beleza própria incomparável.

50. Do inglês psychic distance.

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O remanso51 É preciso aproximar-se das coisas que compõem a vida quotidiana, mas com a majestade com que um grande couraçado atraca num cais, não como qualquer lanchinha. O grande couraçado faz um movimento lento e digno ao se aproximar do porto, e assim devemos nos acercar da realidade. Nada de corre-corre nem de frenesi.52 A sabedoria prescreve que se faça sem excitação o que for necessário; com distância psíquica,53 isto é, numa atmosfera calma, recolhida e tranquila, na qual seja possível pensar antes de agir. Na visão católica, sempre que se aprofunda alguma matéria, não se encontra um precipício, mas o Céu. No fundo de cada perspectiva está uma estrela, não um abismo, uma cobra ou um dragão. É questão de saber aprofundar bem.54 Há ocasiões em que toda a sensação de perigo se afasta, o homem se distende inteiro, e nessa distensão as coisas retornam à sua verdadeira hierarquia. É propriamente o que chamo de remanso. Na atividade febricitante, pelo contrário, isso não acontece. Um comerciante pode passar o dia inteiro trabalhando no seu comércio. Quando as atividades comerciais estão encerradas, ele chega à noite em casa e 51. Remanso é uma espécie de enseada que o rio faz. Suas águas continuam a correr, mas ali andam mais devagar. 52. 19-11-71. 53. Ver definição na introdução a este capítulo. 54. 3-11-68.

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entra num ambiente tão diferente da sua casa comercial, que fica como que forçado a não pensar mais nos negócios. A agitação comercial cai, a hierarquia de valores se restabelece, e então ele é capaz de distância psíquica. Não tem distância psíquica quem não tem recolhimento, quem não tem remansos.55

Clemenceau e a distância psíquica na vitória No fim da Primeira Guerra Mundial, quando chegou a Paris a notícia de que o armistício com os alemães tinha sido assinado, e que portanto a França, a Inglaterra e os Estados Unidos estavam vitoriosos sobre os impérios centrais, um graduado militar francês foi dar a notícia a Clemenceau, presidente do Conselho de Ministros e considerado um dos principais artífices da vitória. Clemenceau residia numa casa cercada por um jardinzinho. Por volta das cinco horas, o oficial entrou em seu quarto e lhe comunicou a vitória. Ele comentou o acontecimento, e estava muito satisfeito. Em seguida se vestiu, e pouco tempo depois estava fazendo o que fazia todos os dias de manhã: arranjar as flores de seu jardinzinho. Só depois disso ele foi para o Ministério. A notável distância psíquica desse homem indica enorme domínio de si. Ele sabia que o dia seria para ele uma jornada de glória, e de fato foi aplaudido pelas multidões. Era o grande dia da vida dele, mas como a cidade ainda dormia, e não havia manifestação nenhuma, foi calmamente tratar do jardinzinho. 55. 29-4-67.

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Acho este um exemplo de distância psíquica simplesmente notável, muito diferente do que se poderia imaginar de outro grande homem qualquer quando recebesse a grande notícia de sua vida. Para um católico, seria aquele o modo ideal de agir em semelhantes circunstâncias? Não, o modo ideal é levantar-se, dar graças a Nossa Senhora, ficar bastante tempo em oração, em seguida ir comungar. Seria esta a posição religiosa correta, evidentemente. Mas o que eu quero mostrar aqui é a distância psíquica de que esse revolucionário deu prova. Como tal, é interessante.56

No Santo Sepulcro, São João dá precedência a São Pedro “E chegou primeiro ao sepulcro. Inclinando-se, viu os lençóis postos no chão, mas não entrou”.57 Note-se que o amor levou São João a ir depressa, e o mesmo amor levou-o a dar precedência àquele a quem Nosso Senhor tinha concedido a precedência. Não entrou, esperou que São Pedro entrasse primeiro. Bem no seu início, está aqui o espírito hierárquico da Igreja. São João havia corrido para chegar ao sepulcro, mas não era um correr sem distância psíquica. Era um correr cheio de ordem, uma pressa cheia de falta de pressa. Ele era tão equilibrado, tão santo, que parou na hora de chegar, segurando a própria alma nas mãos – animam suam in manibus suis semper te-

56. 9-1-69. 57. Jo. 20, 5.

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nebat.58 Parou e esperou São Pedro chegar. Quanto respeito, quanta reverência!59

São Pio V e a batalha de Lepanto60 São Pio V estava no Vaticano, a grande distância dos inimigos e dos acontecimentos, numa situação que as gerações mais novas facilmente reputariam aflitiva. Para essas novas gerações, um Papa envolvido numa batalha, que está transcorrendo longe, deve ficar excitado. Se não ficar, é porque é meio apalermado e não compreendeu a situação. Deveria estar arrancando os cabelos, excitando-se pelos corredores do Vaticano e mandando vários emissários atrás das notícias, protestando porque estas não chegavam. São Pio V estava sumamente empenhado em que a batalha fosse gaA visão de nha, mas mantinha-se sereno. O que São Pio V sobre o triunfo fazia ele na hora em que deveria se em Lepanto dar a batalha? Examinando a prestação de contas do Vaticano. Enquanto a luta se travava, ele via com atenção as contas, porque era matéria de pecado mortal se não o fizesse. Se alguém roubasse algo da Igreja devido a alguma falta 58. Frase tumular de Santo Antonio de Sant’Ana Galvão, no Convento da Luz (São Paulo). 59. 5-4-69. 60. A batalha naval de Lepanto, entre católicos e muçulmanos, deu-se em 7 de outubro de 1571.

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de atenção, ele seria conivente com o ladrão, mas um santo nunca brinca com matéria de pecado mortal. O Papa portanto àquele assunto todo o interesse necessário, mas de repente, como que tocado por um anjo, tem noção de que Nossa Senhora lhe quer dizer algo. Vai para diante de uma janela e tem um êxtase. Depois volta com a mesma simplicidade e dá a notícia: “Dom João61 venceu em Lepanto”.62

Reunião do conselho da Ordem de Malta Nesta gravura, pode-se observar a calma do Grão Mestre, sua distância psíquica e seu olhar meio oblíquo. Não está olhando para ninguém, mas tem a difusa desconfiança de quem examina esse grupo que está 61. Dom João d’Áustria era o condestável das forças cristãs, e foi o vencedor da batalha de Lepanto, com a qual entrou em declínio o poder maometano. 62. 24-5-71.

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aí. Desconfiança difusa, pois trata-se da desconfiança do chefe preocupado com a possibilidade de que em algum lugar da muralha surja de repente um adversário. A fisionomia dele está dizendo: Tu quoque? 63 O domínio que ele exerce sobre todos é feito dessa distância psíquica. O Grão Mestre é um tipo esplêndido. Há nesse velho uma magnífica teoria do mando, e do mando numa ordem militar e sacral. Ele é inteiramente um militar, não há dúvida, pode-se imaginá-lo combatendo a qualquer hora. O corpo dele é de militar, a fisionomia é de um general, mas o olhar é de um homem de pensamento, de ação, de um diplomata. Nada descreve melhor um Grão Mestre da Ordem de Malta do que este quadro.64

O leão como símbolo da serenidade Não consegui encontrar uma definição da palavra serenidade que me agradasse inteiramente, por isso não vou dar uma definição, mas fazer uma descrição. Uma imagem inteiramente adequada dessa qualidade é o leão. Quando ele ruge, até as águias e as formigas fogem, as cobras se encolhem e ele domina a natureza. Mas depois que rugiu o necessário, ele se deita, cruza as patas e fica olhando. É muito interessante que ele repousa com as patas cruzadas uma sobre a outra. Nas fotografias de leão repou-

63. Tu quoque, Brute, fili mi? (Tu também, Brutus, meu filho?) Frase atribuída a Júlio César, no momento de ser assassinado por Marcus Junius Brutus. 64. 27-9-67.

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sando, pode-se notar que ele se entretém e se distrai agradavelmente. O curioso é que, sendo o leão um bicho, não tem pensamento, mas o jeito dele quando repousa é como se estivesse pensando, ao modo do homem quando repousa. No que pensa o homem quando repousa? Não pensa nas coisas fatigantes. Aspectos vários da vida passam diante dele, ele olha e reflete um pouco. No leão em repouso, a “memória” de tudo o que ficou para trás desapareceu. A única coisa que fica é certo instinto adequado para reagir quando houver algo esquisito. Se isso ocorre, o olhar dele torna-se atento. E se na mata em torno algo se move de modo suspeito, sua atitude é de vigilância, mas passa da inércia para a vigilância com naturalidade. Ele inteiro estava inerte, mas se algo de esquisito ou de apetitoso se move no meio do mato, ele olha para aquilo, e em certo momento se mobiliza todo, mas ainda não se move. Num terceiro momento, pula sobre a presa. Não se atrasa, nem tem preguiça de fazer isso. Não tinha per-

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dido a distância psíquica no repouso, como se dissesse eu agora não vou me levantar, vou deixar passar aquela coisa apetitosa. Não! É apetitoso, e para isso ele é leão. Salta, depois acaba de triturar um gato-do-mato qualquer que ele caçou, e volta para o repouso. É uma imagem da serenidade pensativa, cogitativa, sem cansaço.65

Nossa Senhora na Anunciação Diz o texto do Evangelho: “Entrando o Anjo onde ela estava”.66 A frase dá a impressão de que era um lugar recolhido, isolado; a ação de entrar indica muito a ideia de recolhimento, de clausura, de algo que não se viola. Nossa Senhora estava sozinha, e isso é o cúmulo do que o mundo detesta: a pessoa sozinha, isolada, desconhecida; considerada decadente, o que é pior ainda; e rezando no seu isolamento. É para essa pessoa que vem a mensagem. Pode-se pensar no anjo que paira nos mais altos páramos celestes, que recebe uma enorme missão, e que vai para onde menos se poderia imaginar: um lugarejo, um casalzinho, uma mulher que está trancada no seu quarto; e para ali ele leva a mais importante mensagem da História. Tudo isso fica indicado na linguagem do Evangelho, e é muito bonito ver como o texto sugere essas informações. Imagina-se que o anjo desce inteiramente tranquilizador, inteiramente afável, pacífico, mas não foi 65. 5-7-86. 66. Lc. I, 28.

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assim. Em todas as visões de Nossa Senhora que tenho lido, repete-se isso: há algo de terrível no aparecimento da visão, que incute medo. A ideia da afabilidade e bondade vem, mas a que fica é a de medo. Os meninos de Fátima sentiram medo, as crianças de La Salette também. O mesmo se deu com Santa Bernardette Soubirous. A desproporção de duas naturezas diferentes é tão fabulosamente majestosa, que produz medo. Depois da saudação do anjo, a reação. Qualquer outra pessoa poderia pensar: “Agora compreendem o valor que tenho, e afinal me fazem justiça”. O Evangelho diz que Nossa Senhora, “tendo ouvido essas palavras, turbou-se, e discorria pensativa sobre que saudação seria essa”.67 É uma manifestação de distância psíquica maravilhosa. Turbou-se com essas palavras, ou seja, conservou atenção suficiente para entender o conteúdo do que era dito, e isto a perturbou. “E discorria pensativa” – Eis uma bonita expressão para indicar a análise ponto por ponto. Ela analisou pensativa a mensagem, perguntando a si mesma que saudação seria essa, o que significava aquilo. O espírito de Nossa Senhora é que algo tão elevado, e com todas as características de vir de Deus, exige uma análise racional, palavra por palavra, do conteúdo daquilo que lhe era dito. Devemos ser assim também. Não perder a cabeça, mesmo diante da coisa mais pasmosa, mais inesperada, mais maravilhosa: discorrer pensativo sobre aquilo.68 67. Lc 1, 29. 68. 25-3-65.

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Capítulo 7

Como se perde a tranquilidade O prazer devora quem a ele se entrega, desde que fora da medida razoável (Plinio Corrêa de Oliveira)69

Neste capítulo Como se perde a calma? Entre as causas mais frequentes estão a pretensão e a intemperança.70 Que é propriamente a pretensão? A palavra vem do verbo pretender. É pretender ter tal qualidade ou desejar parecer ter tal qualidade, sem possuí-la. Uma má vontade para com os outros; tristeza pelo bem que lhes sucede; alegria pelo mal que lhes acontece; e uma indiferença completa pelos que estão fora do circuito da pretensão, ou seja, fora de seu próprio teatrinho.71 A intemperança é a falta de moderação na busca do prazer. São formas de intemperança a sexualidade e a futrica (a “politicagem” permanente com seus próximos), entre outras.

69. 28-3-72. 70. Intemperança: falta de temperança (vide nota 72). 71. 12-3-69.

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O significado de pretensão O que é propriamente a pretensão? A palavra vem do verbo pretender. Alguém pode achar ou pretender que tem tal qualidade. Acha, presume, imagina, entende, afirma perante si, para consigo mesmo, e quer que os outros também considerem que possui tal qualidade. Há duas espécies de pretensões: a fundada e a infundada. Um indivíduo pode pretender, por exemplo, que é um grande pintor. Se ele o é de fato, diz-se que a pretensão dele é justificada, ou seja, razoável. Pode pretender um cargo para o qual tem capacidade, e se diz que a sua pretensão de ocupar tal cargo é justificada, razoável. A palavra pretensão, considerada em si mesma, pode ter um sentido legítimo, até elogioso, mas habitualmente tomou significado pejorativo. Não designa um estado de espírito em sua faceta mais legítima, mas em seu mau aspecto. E então se diz que um indivíduo é pretensioso quando, do fato de pretender algo, mesmo legitimamente, põe nisso apego, arrogância, petulância, tendência a exagerar o valor daquilo que tem. Embora tenha o que alega ter, ele exorbita o valor disso a seus olhos ou diante dos outros. Entra, portanto, certa desordem dentro da pretensão.

Características da despretensão Uma característica da despretensão é a estabilidade. Quem é despretensioso é estável, não se agita,

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Quem é despretensioso é estável, não se agita, tem serenidade. A serenidade não é simplesmente a calma, é o oposto da inquietação.

tem serenidade. A serenidade não é simplesmente a calma, é o oposto da inquietação. Nos imponderáveis da língua portuguesa, serenidade é mais do que calma. É uma forma de calma requintada, prolongada e com bem-estar. A despretensão propicia isto. O indivíduo não pretende ser mais do que é. Sabe também que não é menos, e se apresenta tal como é. A despretensão leva à afabilidade. O despretensioso é afável, normalmente acolhedor. Quando procurado, tende a atender bem, e quando se lhe pede alguma coisa, é propenso a dar. É propenso a concordar, a combinar com os outros, sem ser um cretino ou um “Sr. Ligação” idiota. Não é um bobo, mas no que é razoável concordar, é propenso a fazê-lo.

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Por oposição à desconfiança, o despretensioso é perspicaz sem sobressaltos. Qual a diferença entre ser desconfiado e ser perspicaz? O desconfiado é agitado. Já o perspicaz é calmo, tranquilo, analisa as coisas com frieza. Tem uma forma de lucidez sem sobressaltos, sem sustos. Vai vendo com calma, com normalidade. Além disso ele é propenso à confiança na Providência, que é o contrário da “torcida”. Ele pensa: Deus me dará, e o que for das vias de Nossa Senhora eu receberei. Não há razão para torcer.

O disfarçado e o ridículo A desordem da pretensão pode ser dupla: ou o indivíduo exagera o valor do que tem ou se apega a um valor que não tem. Esta última seria a pretensão pior. Uma vez que é agradável imaginar que tem, mente para si mesmo ou para os outros, toma atitudes, ares, modos de quem teria aquilo, para incutir no espírito dos outros uma superioridade inexistente. Neste caso, é a desordem levada ao auge. Não é apenas um exagero, mas a desordem transformada em mentira. Por esse mundo afora, havia um rapaz do interior, de uma cidade aonde iam poucas pessoas da capital. Contava que era filho de um fazendeiro, cuja fazenda era muito grande. Gabava-se, enquanto dizia: “Tenho pena de meu pai, com aquele fazendão enorme para carregar. É duro ser dono de uma fazendona dessas, é muita responsabilidade. Nas férias eu o ajudo. Estou preocupado, porque não sei o que será de nós, quando herdarmos uma fazenda tão grande. Ainda somos tão moços...”. Ele disfarçava a

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própria gabolice, atribuindo ao pai a qualidade que desejava que os outros vissem nele. Quando se tirou a limpo as coisas, o pai dele tinha uma modesta e pequena farmácia no local, e nem tinha fazenda. A fazenda talvez existisse na imaginação dele. Blefes assim uma pessoa pode fazer, mas a maioria não vai tão longe, por falta de coragem para aventuras dessa natureza.

O calmo repouso da temperança72 Analisando mais a fundo, verificamos que as coisas capazes de nos pôr em desordem, por causa do pecado original, são desejadas de um modo desregrado e mais intenso do que a razão mandaria desejar. Circunstâncias da história de cada um, do ambiente em que vive, por vezes fazem com que esse apetite desregrado se acentue ainda mais. Então vêm a ebulição, as agitações, os medos, as dúvidas, a timidez, as ousadias, as investidas diretas. Vem tudo aquilo que é o tumultuar de uma paixão dentro do homem. São os pontos doloridos. Uma pessoa exprimiu isso de modo muito engraçado: “Certa gente tem uma espécie de calo na cabeça, um ponto dolorido. Se uma ideia passa e raspa naquele calo, ela estremece”. Ao lado disso, em outros pontos cada pessoa é muito equilibrada. Isto varia dentro de cada um de 72. A temperança é uma das quatro virtudes cardeais. É “uma virtude moral sobrenatural que modera a atração para o prazer sensível, sobretudo para os prazeres do gosto e do tato, e o contém nos limites da honestidade” (Ad. Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1961, nº 1099).

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nós. Portanto, a natureza de cada um de nós tem muitos apetites errados, mas ao mesmo tempo desejos equilibrados e corretos. Em alguns desses pontos somos temperantes, gostamos da coisa na medida em que é correto, podendo deixá-la na medida em que não o é, e não temos a ela nenhum apego extraordinário, nenhum apego irregular. Pode mesmo ser um apego grande, mas não irregular, não há vibração doentia. De outro lado existe a intemperança, que é o gosto destemperado, agitado, vivo, febril. Daí tiramos uma filosofia do prazer. Existem na vida dois modos de ter prazer: um procede das coisas de que se gosta temperantemente; outro, das coisas que nos agradam intemperantemente. Existem, por exemplo, tipos extraordinariamente gananciosos, cujo maior prazer na vida é ter dinheiro. Falam em cinco telefones ao mesmo tempo, mergulham em toda essa agitação econômica moderna. Mas pode ser que tenham ao mesmo tempo certos prazeres temperantes: gosto de um bom jardim, agrado em passear, etc. Poderíamos estabelecer algumas categorias de homens quanto à temperança: Em primeiro lugar, os que dominaram a intemperança, não consentem em nenhum prazer intemperante, e por isso são capazes de encontrar prazer nas coisas temperantes que a vida nos oferece. Por exemplo, um homem que era dominado pelo desejo do dinheiro controlou esse desejo e o tem moderadamente, divertindo-se com coisas que não lhe dão aquela agitação e falta de fôlego. Outra categoria de homens tem prazeres intemperantes, mas ainda conserva certo gosto das coisas temperantes. Há um estadista que suponho estar

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dentro desta linha [não mencionou o nome]. Tenho a impressão de que, além de algumas pavorosas intemperanças, como ele tem uma natureza muito rica, ainda gosta prodigiosamente de coisas temperantes. Tem toda espécie de prazeres e tem horas horrorosas, mas depois pinta a sala e vai ver uma conchinha do mar. Tudo aquilo para ele é um prazer para sua natureza rica, excepcionalmente bem dotada. Outro tipo mais fraco tem mentalidade mais pobre, personalidade mais débil. Cede ao prazer intemperante, e o que não for esse tipo de prazer não tem graça, só gosta do prazer intemperante. Vamos dizer que este prazer intemperante seja o dinheiro. Ele acaba sendo desses avarentos horrorosos, cujas histórias lemos ou vimos em pinturas: Casa cheia de teias de aranha, ratos correndo, pendurada na janela uma cortina corroída e rasgada. Ele já não cuida de si, tem as unhas aduncas, cabelos compridos e ar delirante, olhando para os baús cheios de ouro. O que essas histórias e desenhos querem exprimir? O fracasso de um homem, cuja natureza não é suficientemente rica para ele gostar de entesourar dinheiro e ao mesmo tempo apreciar outras coisas. Para ele a vida é só a dinheirama. Ele é sujo, está cheio de pulgas e de vermes, a casa dele está um horror, mas nem repara naquilo, pois tem dinheiro.

A “futrica” e a sexualidade Há pessoas para as quais o prazer do sexo é o único que interessa. No fundo, só as diverte aquilo que é sexo ou pequena politicagem. A “futrica” − no esporte,

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na política, em qualquer outro tema − é a única coisa para elas além do sexo. Essas pessoas não encontram graça em mais nada. Panoramas, gosto da vida, nada lhes interessa. Nas horas vagas, passam como toxicômanos a digerir o efeito de seus tóxicos, até o momento em que, tomados por uma agitação de macaco, se metem numa dança de carnaval. Há também o homem dado a ficar longamente pensando em coisas vácuas, inconsistentes e imaginativas. É propenso aos sonhos de olhos abertos a respeito daquilo de que mais gosta: divagações, langores, longos silêncios, e depois o palavreado desordenado. Inclina-se a fazer daquela exacerbação, daquele nervosismo, daquela procura, o centro afetivo de sua existência. Geralmente a saúde das pessoas assim decai rapidamente, perdem o equilíbrio psíquico e facilmente se tornam apáticas. Pessoas assim são intemperantes, com todas as exaltações, todas as irregularidades, todas as fraquezas que a intemperança traz consigo. É próprio ao intemperante achar tedioso o que não esteja na linha da sua intemperança. É tedioso tudo que não seja vibrátil de acordo com a vibração dele, ou que seja equilibrado, calmo. Os livros se tornam tediosos, mesmo sendo muito interessantes, pois a cobra que ele tem dentro de si o leva para o outro lado. A conversa mais agradável pode ser muito interessante enquanto não desperta dentro dele a mosca azul73 e não o pica com seu veneno. Tudo que está fora da 73. Mosca azul: referência a uma antiga lenda. Diz-se que a picada da mosca azul inocula nas pessoas doses concentradas de ambição e vaidade.

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linha de sua intemperança é tédio. Considera tédio a posição de calma e tranquilidade, em que se goza sadiamente das coisas, se fazem coisas sérias, com luta, sofrimento e oração. Essa intemperança é susceptível de crescer com o homem. Quem era intemperante aos dez anos vai sê-lo ainda mais aos quinze, mais aos vinte, e aos cinquenta estará no máximo da intemperança. Aos sessenta já vai ser velho, pois o intemperante envelhece depressa. Dir-se-ia que aos sessenta já acabou a intemperança. Não acabou, foi ele que acabou. É como o câncer ou a lepra, quando tomam conta do corpo inteiro e a pessoa morre. Acabou a lepra? Não, acabou o homem, pois a lepra venceu. Qual é o cúmulo da intemperança? Basta imaginar um velho com bochechas chupadas, olhar bambo, pernas bambas, um resto de lubricidade para as meninas de quinze anos que passam. Já não entende o jornal que lê, nem percebe mais a letra que tem diante dos olhos, mas lhe resta ainda um pouco de vida para ligar um rádio entre duas sonecas, ouvir uma canção de carnaval e pensar: Aquele povo do Rio ainda sabe gozar a vida.

A intemperança de um povo O fenômeno de crescimento da intemperança dá-se também no povo. Assim como a intemperança pode ir tomando conta de um homem e acabar por consumi-lo, tudo isso que dissemos da psicologia de um homem pode dizer-se da psicologia de um povo. Mas se a decadência do homem se passa ao longo dos

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anos ou décadas de sua vida, a decadência psicológica e moral de um povo se faz ao longo de séculos. O povo tem seu ponto principal de intemperança, que vai crescendo nele ao longo das gerações. Cada geração vai sendo mais intemperante que a anterior, e o povo acaba sendo destruído pela intemperança na sua velhice. O homem fica velho quando tem muitos anos, mas o povo só envelhece pela intemperança. Para um povo, tornar-se intemperante é envelhecer. Quando um povo fica velho, pode-se dizer que está no auge de sua intemperança. Não há outra forma de velhice para os povos, a não ser a intemperança. De excitação em excitação, é possível guiar as intemperanças de um povo, como quem guia um burro faminto mostrando-lhe o capim, mas avançando adiante dele com o capim na mão. O burro vai atrás do capim, e assim se traça o itinerário dele.74

74. Conferência sem data, feita em 1954.

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Capítulo 8

A calma, o nervosismo e o entretenimento O melhor serviço que os nervos podem nos prestar é não deixar que tenhamos ideia de que eles existem (Plinio Corrêa de Oliveira)75

Neste capítulo A placidez supõe um mínimo de entretenimento. A única coisa verdadeiramente entretida na vida é tomar contato com um valor superior, o que dá uma impressão ao mesmo tempo empolgante, atraente e difícil de exprimir. Dir-se-ia que um copista medieval exercia uma ocupação monótona e apagada. Mas numa ilustração da época se nota que aos poucos, por esse trabalho tão despretensioso, na pena do mestre vão aparecendo os valores superiores que dão à vida seu verdadeiro entretenimento. Em comparação com a santa e entretida placidez medieval, o mundo de hoje é um “nervosário”, ou seja, um celeiro de nervosos. Pôr-se a vibrar, a ouvir o som dos seus próprios nervos, é um instrumento de diversão cheio de masoquismo. É o contrário do copista, que tem a delícia de viver com os nervos em estado tal, que nem percebe que eles existem. E o melhor serviço que os nervos podem prestar, é de não termos ideia de que eles existem. Saber remeter a um valor superior as menores coisas da existência, eis a fórmula para escapar do “nervosário” de nossos dias.

75. 23-12-74.

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Por trás do verdadeiro entretenimento, um valor absoluto Queira-se ou não, o homem é um animal racional. Por mais que se deseje degradá-lo até a animalidade, por mais animalidade que ele admita, é um animal racional. De maneira que há sempre meios de estimular nele o que é racional e contrariar tendências exclusivamente temperamentais. O divertimento só é adequado à proporção humana, só é verdadeiro entretenimento quando possibilita certo contato com um valor superior, que lhe dá uma impressão ao mesmo tempo empolgante, atraente e difícil de exprimir. Quando alguém entra em contato com coisas superiores, olha, fixa a atenção e se sente atraído, de algum modo é tomado por aquela realidade superior. Sem perceber, no fundo se reporta a Deus e encontra nisto uma forma de atração, de atenção, de agrado, que constitui o verdadeiro entretenimento da vida.

Um copista As iluminuras medievais oferecem um aprendizado sem fim, constituem habitualmente um modelo de entretenimento. Nelas se vê todo um mundo entretido dentro da inocência. Por exemplo, numa bela iluminura representando um homem copiando um livro.

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Havia na época muitos calígrafos profissionais, dos quais alguns eram verdadeiros artistas. O iluminista na gravura está sentado numa mesa junto a uma janela, vestido com uma roupa entre marrom e preto, ampla, na qual podia se mover completamente à vontade, e que o agasalhava bem. Ele está sentado com o rosto plácido, copiando algo com uma grande pena de pato. A mesa de trabalho ficava numa espécie de saliência, dando para a rua – ou para o jardim, não se sabe bem − que tornava o quartinho autônomo. À sua direita uma janela com vidros de fundo de garrafa, de cor verde claro, cuja luz penetrava da direita para a esquerda, portanto iluminando o trabalho corretamente. O chão desse quartinho era um estrado de madeira, um pouco acima do nível do chão, formando portanto uma espécie de península à margem da vida da casa. Aquela luz verde também não era a do resto da sala, mas projetava o copista numa fantasia e no irreal. Junto à janela um parapeito, com um pequeno vaso e uma florzinha olhando para ele. Florzinha delicada, miúda, mimosa, de cor viva, atraente, aliciante, parecendo quase um passarinho cantando para distraí-lo. No centro do desenho está esse homem fazendo tranquilamente seu trabalho. Um trabalho bonito, vê-se que tinha jeito para ele. Sem pressa, fome, angústia ou cansaço, ele estava sumamente entretido. Ganhando a vida e entretido. Mas entretido com o quê? Não era só com a letra bonita que fazia, mas também com aquele ambiente que exprimia determinados valores morais. Esses valores morais podem

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ser concebidos como valores absolutos, sem uma identificação necessária com aquilo que os rodeia. O conjunto do quadro pode ser resumido, de acordo com esse valor moral, como placidez operosa.

A placidez operosa A placidez é em si mesma um valor moral. Quando mantida no modo de operar, reúne duas perfeições contrárias e harmônicas, com uma nota de equilíbrio muito bonita unindo a placidez e a operosidade. Todo o ambiente do copista é impregnado de placidez operosa, da qual Deus é o modelo supremo e incriado, o motor imóvel. Ao mesmo tempo que desce do mais alto dos céus, o bem estar desse homem nasce do mais profundo da sua personalidade. Ele não está se divertindo, está trabalhando, mas não trabalha como a aeromoça de certos anúncios, não é aquela alegria artificial. Na sua naturalidade, fluindo como um rio, ele se empenha numa ação para a qual todo ele está feito. Sente dentro de si mil aspirações de seu temperamento, que se encontram com valores morais, e tudo isso o eleva até Deus. Ele se sente bem, fazendo o que faz. Não tem a noção de que passou um dia extraordinariamente bom, mas considera-o um dia normal. Essa normalidade que não foi deliciosa, mas apenas deleitável, é o verdadeiro entretenimento.

O entretenimento da normalidade A diversão e o prazer são exceção na vida. O normal é encontrar alguma deleitabilidade em cada

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ação diária. Quantos e quantos, terminado o período de trabalho, ficam lado a lado uns com os outros, conversando ou zombando um pouco, mas no bom sentido da palavra. Desse entretimento pode sair o homem combativo, dinâmico, verdadeiramente ativo. É desse modo que me entretenho. Distraio-me contemplando um abatjour aceso, lendo um livro de História. Estou lendo atualmente a vida de uma czarina contada pela filha. Isso me entretém placidamente, tranquilamente, é muito distensivo. Esse entretenimento plácido, tranquilo, constitui o gosto da vida. Dele saio com forças para lutar. Se não tivesse esse tipo de entretenimento, porém tivesse repouso ao modo moderno, eu estaria neurótico. Numa vida assim, pega-se um bom livro e se vai transcendendo o estado de analfabetismo secundário, que é o do homem que não tem o hábito de ler. Para este analfabeto secundário, pegar um livro é um sacrifício, uma evasão dolorosa da realidade.

Diversão e masoquismo A pintura do copista plácido tem um fundo não explícito, mas que fica insinuado. Mostra que a pessoa não se entretém estimulando os próprios nervos, mas deixando-os ficar em paz. Esse é o ponto que choca mais o conceito moderno de entretenimento, que consiste em gozar mais seu estado temperamental do que a própria coisa deleitável. Situação muito comum, neste caso, é a do sujeito que faz uma viagem, mas se delicia menos com o que vê do que com as emoções que fabricou em si enquanto viajava.

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Pôr-se a vibrar e a ouvir o som dos seus próprios nervos é um instrumento masoquístico de diversão. É o contrário do copista, que tem a delícia de viver com os nervos em estado tal, que nem percebe que eles existem. O melhor serviço que os nervos prestam, é quando não temos ideia de que eles existem. A pessoa sem problemas nervosos é a que não sabe o que são problemas nervosos. Esta é a situação perfeita, e nisso as iluminuras medievais são exímias, pois não está presente nenhum nervosismo. Ninguém pode escapar à escolha: usufruir uma viagem é não pensar em si nem pensar nos nervos, mas pensar no que se está vendo. Se vou para a catedral de Barcelona rezar diante do Santo Cristo que esteve em Lepanto na proa da nau capitânia de Dom João d’Áustria, posso fabricar meu nervosismo pela torcida; por exemplo, imaginar-me lutando em Lepanto. E quando der conta de mim, já estarei substituindo Dom João d’Austria... Este não viu o crucifixo, viu a si mesmo e sentiu seus nervos. Correto é o contrário: olhar aquilo de tal maneira que nem nos lembramos de que temos nervos. Para este efeito, os nervos devem ser inexistentes, como fios de eletricidade, encanamentos e coisas assim. Prestam-nos serviços, mas nós nem nos lembramos de que existem. Ficam embutidos, a gente acende ou apaga, abre a torneira ou fecha. Existem para servir, e o serviço que prestam é não dar notícia de si. O problema começa quando a gente percebe que eles existem, quando estão funcionando mal. Assim devem ser os nervos. E quem age diferente disso renuncia ao verdadeiro entretenimento.

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Santo Cristo que esteve em Lepanto

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Entre o mundo dos nervos e o mundo da santa e entretida placidez medieval há a mesma incompatibilidade que há entre o mundo da desordem e o da santa tranquilidade. A sociedade humana de hoje, baseada no temperamento e não nas ideias, sob certo ponto de vista é uma espécie de grande nervosário que vibra em comum.76

76. 23-12-74.

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Capítulo 9

As desigualdades e a calma Se o sol não existisse, seria noite apesar da presença das outras estrelas (Heráclito de Éfeso)

Neste capítulo Alguém pode pensar: Fulano tem mais do que eu, isto me tira a calma. Entretanto, em se tratando de desigualdades proporcionadas e que têm razão de ser, elas devem ser motivo de satisfação para o não invejoso. Para o invejoso, a desigualdade é causa de nervosismo. Deus quis fazer o gênero humano desigual, e contra isso se insurgem os igualitários. Eles são sempre inconformados, ácidos e revoltados. As almas alegres e boas, pelo contrário, procuram estar de acordo com os superiores desígnios de Deus na Criação. Estão sempre satisfeitas, porque prontas para admirar. Elas conhecem o deleite e o dever da admiração. Estátua de Carlos Magno, em Paris, com Roland e Olivier a seu lado

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Desigualdades, uma satisfação para o homem Ver que alguém é superior a si próprio, que alguém merece sua admiração, não deve ser um tormento, mas uma alegria. Todas as desigualdades proporcionadas, e que têm razão de ser, constituem uma satisfação para o homem. Mais ainda do que isso, dão glória a Deus Nosso Senhor, que está no mais alto dos Céus, e é assim o sumo da desigualdade em relação a todos que criou. Como podemos explicar e justificar esta tese?

Paraninfo num colégio de cegos Muitos anos atrás, fui a um estabelecimento de ensino onde me convidaram para ser paraninfo. Terminado meu discurso, percebi que uns rapazinhos sentados na primeira fila – nos quais eu não tinha prestado muita atenção – levantaram-se, segurando-se todos uns aos outros pela mão. Aí percebi que eram cegos, conduzidos por um que via normalmente. Eles iam tomar juntos o ônibus e voltar a um instituto de cegos. Pensei depois nesses rapazinhos que agora voltavam para o instituto de cegos. Tinham tido um dia monótono, e o dia seguinte, um domingo, não podia também deixar de ser monótono para eles. Não tinham perdido também a audição, e naturalmente deviam fazer um pouquinho de música, o que não podia encher o dia deles. Mas o que logo saltou à minha mente é que, se todos eram iguais do ponto de vista da falta de visão,

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para eles aquela igualdade era uma fonte de tristeza, ao passo que a desigualdade seria uma fonte de alegria. Para eles, ouvir o discurso de quem era superior a eles, pelo menos do ponto de vista de ter visão normal, era uma distração, uma satisfação. Além disso, eles se sentiam naturalmente promovidos, porque rapazes de visão normal ali presentes condescendiam em conversar com eles, sendo que o habitual é muitos evitarem a conversa de um pobre cego, que não pode contar grande coisa. O contato do menor com o maior, quando é bem travado, dá a ambos uma alegria especial. O menor (o cego, neste caso) tem uma alegria evidente, pois tem o que admirar. Não vê, mas percebe como seriam as coisas se pudesse ver. Além disso, contam-lhe coisas que ele não sabe, e assim o mundo que ele não vê, mas pode compreender pela inteligência, fica mais belo do que ele supunha. Os olhos do que vê são a riqueza do que não vê.

A inveja num leprosário Essa problemática pode se repetir para toda forma de desgraça. Quando eu estava nos últimos anos da Faculdade de Direito, resolvi visitar com amigos um leprosário nos arredores de São Paulo. Umas freiras que tratavam dos leprosos – jovens ainda, e de saúde normal – nos receberam com muito sorriso, muita amabilidade, e uma delas nos perguntou: — Os senhores querem realmente visitar um estabelecimento de leprosos?

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Respondemos que sim, e ela disse: — Está bem, a superiora mandou-me servir de guia para os senhores, e vou mostrar tudo. Os senhores vão ver a tristeza da situação de um leproso. Começamos a visita. Era um leprosário muito limpo, tudo muito bem arranjado. As freiras ainda eram do bom tempo em que cumpriam modelarmente seu dever. A guia nos disse: — Vamos começar por mostrar-lhes um quarto com o leproso dentro, e os senhores vão ver como é a manhã de um leproso. Entramos e vimos um homem sentado junto a uma mesa onde estava aberto um livro. Tinha a pele toda alterada, uma coisa horrível. Percebia-se que ele enxergava com alguma dificuldade, mas ainda conseguia ler. Ficara leproso não havia muito tempo. Não achava graça nenhuma em ler, mas estava com aquele livro diante de si porque não tinha o que fazer. Quando entramos, ele percebeu que eram jovens visitantes. Ele olhou assim de esguelha e entendeu que estava sendo mostrado como um exemplar de leproso para jovens saudáveis. Diante da nossa jovialidade, nossa boa disposição, ele não teve alegria, mas uma golfada de inveja. O normal seria ele pensar o seguinte: “Esses rapazes tiveram interesse em ver como somos; têm certa compaixão, querem compreender como é nossa situação, nosso modo de vida. Tiveram pena de nós, olham-nos em nossa desventura, e querem nos ajudar”. Pelo contrário, o pensamento dele foi nesta linha: “Estão com nojo de mim. Eu me revolto, porque não

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admito que alguém tenha nojo de mim”. Nem sequer voltou os olhos para nos olhar. Normalmente nós faríamos um cumprimento e perguntaríamos como ia passando, como se chamava, há quanto tempo estava lá, como estava se sentindo. Não havíamos levado um presentinho, porque éramos estudantes muito curtos de dinheiro, mas ao menos conversaríamos com ele, teríamos um pouco de pena. Recebendo-nos dessa maneira, ele tornava impossível a conversa, porque evidentemente lhe reconhecíamos ao menos o direito de não receber quem não quisesse. Esse homem tinha fechado a porta da desigualdade. Nós éramos a superioridade, éramos estudantes, daí a pouco seríamos homens formados, ocuparíamos na vida uma situação que ele, mais ou menos da categoria de um trabalhador manual, nunca tinha ocupado. Éramos saudáveis, e ele um pobre doente da mais triste das doenças, curtindo ali sua infelicidade. Na consideração dessa desigualdade, ele poderia ficar contente ao receber a esmola de um interesse, de uma estima, de uma amizade, e poderia ter isso como um bálsamo por vários dias. Por não querer receber a desigualdade, por não querer alegrar-se com quem tinha o que ele não tinha, fechou para si a porta da consolação e se encerrou em seu próprio vinagre. Veio-me ao espírito esta reflexão: O homem que não aceita a desigualdade é um homem errado, que não compreende a realidade das situações.

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A inveja e a realidade de uma jovem leprosa Mais adiante passamos por um grupo grande de leprosos, que iam entrar numa capela para rezar. Uma moça bem nova, loura, de rosto cheio, provavelmente de ascendência italiana, andava com os leprosos mas parecia saudável, sem nenhuma aparência de leprosa. A freira sussurrou: — Esta entrou há poucos dias aqui, viera visitar uma parente leprosa, mas não sabia que ela mesma fosse leprosa. Uma freira olhou-a atentamente, reconheceu nela uma leprosa e pensou: “Esta é leprosa e não sabe. Ela tem um modo de arrastar o pé que é característico do leproso”. Quem lida continuamente com os leprosos facilmente percebe essas coisas. Aproximou-se da jovem loura, pegou-a por detrás e disse: — Minha filha, eu queria dizer a você uma coisa: Você pensa que vai sair, mas vai ficar aqui conosco. Você é das nossas. A menina não entendeu logo, ou não quis entender, e a freira continuou: — Venha aqui para o quarto, que vou lhe mostrar uma coisa. Já no quarto, mandou-a tirar o sapato e a meia, e mostrou: — Você tem uma mancha aqui. Isto significa que você é leprosa, minha filha, e você vai ficar aqui. Ela ainda estava animada, não tinha caído inteiramente em si quanto à sua desventura. Quando viu andando por lá nosso grupo de rapazes bem dispostos – pensando em tudo, menos em namorar, ainda

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mais com uma pobre doente como aquela – ela se deixou ficar para trás, começou a dar olhares e sinais de que queria começar um namoro. Mais uma vez, uma inconformidade com a desigualdade da sua situação e um desejo de se impor. As pessoas e as coisas que são melhores, mais belas, mais nobres, mais elevadas do que nós, são feitas para nos elevar à ideia de como é Deus, portanto devemos ter alegria de admirá-las. Vendo aquele que é mais do que nós, temos certa ideia de como é Deus. Ainda que alguém seja menos do que nós, sob algum ponto de vista é mais do que nós, e devemos saber admirá-lo. Suponhamos que alguém seja de uma família menos ilustre que a nossa: menos rico, menos elegante, menos cultivado, com maneiras menos boas, mas que Deus lhe deu, por exemplo, uma voz magnífica. Devemos saber admirar essa pessoa e ficar alegres em ouvir sua voz.

O dever de enaltecer quem merece Quem é superior tem o direito a que se reconheça publicamente sua superioridade. As almas boas estão sempre satisfeitas e alegres, porque conhecem o deleite e o dever da admiração e estão prontas para admirar. Já os igualitários são sempre ácidos e revoltados. Quando alguém tem uma qualidade, e por inveja nos calamos a respeito dela, isso gera em nós uma tristeza que nos torna a vida amarga. A doutrina católica contém sobre isso algo muito relevante. Além de ensinar que não se tem o direito de caluniar os outros, tira daí uma consequência inte-

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ressante: Da mesma forma que não se pode atribuir a outrem um ato mau que não fez, também peca quem conhece uma boa qualidade alheia, e por inveja se cala. Se alguém tem uma qualidade maior, por dever de justiça temos que comentar isso com terceiros. O homem superior tem o direito ao reconhecimento da sua superioridade. A justiça mandava amarrar no pelourinho as pessoas que praticaram ações vergonhosas. Em sentido contrário, devem-se elogiar as pessoas dignas de admiração ou que praticam algum ato digno de admiração. É a justiça, é a hierarquia, é a desigualdade.

Nossa Senhora e a desigualdade Nossa Senhora é cantada por Dante como filha do próprio Filho e Mãe daquele que A criou. De maneira que Ela é realmente a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo; mas Ele, enquanto Deus, é quem A tinha criado. Ele é o criador d’Ela, infinitamente superior a Ela, mas por outro lado queria praticar a virtude da humildade. Quando menino, chorava quando sentia frio, pedia água quando tinha sede e rogava a Nossa Senhora que lhe ensinasse a fazer as coisas. Ensinar ao próprio Deus, de quem lhe viera todo o conhecimento que Ela tinha. É a última palavra no amor à hierarquia.77

77. 27-1-90.

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Capítulo 10

A calma e a dor A grandeza de Nossa Senhora não está tanto na enormidade das dores que sofreu, mas em que Ela quis sofrer tudo quanto sofreu (Plinio Corrêa de Oliveira)78

Neste capítulo É preciso ter a coragem de penetrar no mar das dores e suportá-las. Quando se faz isso por amor de Deus, uma doçura única entra em nós, deposita-se em nossa alma e nos habita. Nossa Senhora foi durante a vida inteira uma grande sofredora, mas teve alegrias como nunca pessoa alguma teve. Essas dores e alegrias se entrelaçaram continuamente, e Ela vivia suportando o fardo das mais tremendas dores, mas ao mesmo tempo era aliviada pelas mais admiráveis alegrias. Ela nos ensinou a ter calma na dor, mas é necessário ter calma também nas alegrias. A alegria sem calma vem acompanhada de ansiedade, que é um elemento de dor. Só com a calma pode-se ter o verdadeiro bem-estar na vida.

78. 17-3-67.

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A felicidade que vem do sofrimento Todos têm horror ao sofrimento, e fogem dele. Mas, por mais que se sofra, se lute, se enfrentem coisas difíceis, vale a pena viver, ainda que seja apenas para levar uma vida digna de ser vivida, tanto quanto possível nesse vale de lágrimas. Assim o homem tem a parcela de felicidade − mas que parcela de ouro! − que a vida de fato pode dar! Comecei a compreender que a influência da Igreja sobre as almas só durava na medida em que elas sabiam sofrer. E que o sofrimento é para a alma mais ou menos o que é o fogo para um líquido que deve ser purificado. Por exemplo, para o metal que deve ser separado da ganga. A alma sofrendo com resignação, com dignidade, isso lhe dá uma tranquilidade, uma harmonia, uma força que não há prazer que pague. Esse é o bem-estar da dor cristã. Muitas vezes eu me punha diante de crucifixos ou imagens do Senhor Bom Jesus, olhava e pensava: Ele está coberto de dores, mas percebo n’Ele uma força, uma coerência, uma resignação, e diante d’Ele sou levado a concluir que nunca homem algum foi tão invejável como o Homem-Deus no auge de sua tristeza. É preciso, portanto, ter a coragem de penetrar no mar das dores e suportá-las. Quando se faz isso por amor de Deus, há uma certa doçura que é única. Ela entra em nós, se deposita em nós e nos habita. Muitas vezes é a felicidade da dor, e devemos desejar que Nossa Senhora dê essa felicidade para todos nós: Per

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crucem ad lucem – pela cruz se vai à luz. Tenhamos coragem, e lá chegaremos!79

Nossa Senhora das Dores Enganam-se os que pensam que Nossa Senhora teve na sua vida apenas um momento de dor, que foi a dor suprema do Calvário, a maior que jamais se tenha sentido no universo, abaixo da dor insondável de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua humanidade santíssima. Foi uma dor tão grande, que resumia todas as dores do universo. Tudo quanto os homens sofreram desde a queda de Adão, e sofrerão até o último momento em que haja homens vivos na Terra, é incomparavelmente menor que as dores de Nossa Senhora no Calvário. Segundo a opinião de alguns, Ela teria sofrido essas dores só durante a Paixão, e fora desse momento não as sofreu. Teria tido uma vida alegre e calma, satisfeita, inundada pelo contentamento e pela alegria de ser Mãe do Salvador. Houve aquela dor lancinante, mas sua duração teria sido apenas até a Ressurreição de Nosso Senhor. Passado aquele sofrimento, Ela teria retomado uma vida gaudiosa.

As dores de Nossa Senhora refletem as de Jesus Este é um modo completamente errado de considerar as dores de Maria Santíssima. Nosso Senhor Jesus Cristo foi chamado Varão das dores 80 por um dos 79. 12-5-84. 80. Is. 53.

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profetas. Era próprio d’Ele sofrer as dores que trazia na sua alma santíssima durante toda a sua existência. A Paixão não foi um fato isolado na vida de Nosso Senhor, e sim o ápice de uma sequência enorme de dores, que começaram desde o primeiro instante de seu Ser e continuaram até o momento em que exalou o terrível “Consumatum est”.81 Durante todo este tempo Ele continuamente sofreu. Ora, como Nossa Senhora é um espelho de Sabedoria e de Justiça, e reflete em si tudo quanto é de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve-se dizer d’Ela que foi a Mulier dolorum, a Dama das dores. Ela teve sua vida inteira invadida pela dor. É certo que essa dor teve proporção com as forças incalculáveis que a graça lhe dava. É certo também que foi uma dor imposta pela Providência, e que portanto, por mais lancinante que tenha sido, não era dessas dores que põem tudo em turbulência, em provação, e que devastam uma alma. Eram dores imensas, mas muito arquitetônicas, muito sábias, recebidas com serenidade de alma admirável. De tal modo que, assim como Isaías atribuiu a Nosso Senhor as palavras Eis que está na paz a minha amargura muito amarga, assim também se pode dizer de Nossa Senhora: “Eis que está na paz a minha amargura muito amarga”.82 Naquele oceano de dores, tudo era equilibrado, raciocinado, refletido, suportado com amor e com um equilíbrio de alma incomparável, sem super-emo-

81. Jo. 19, 30. 82. Is. 38, 17.

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Nossa Senhora da Piedade

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ções, embora com uma quase infinitude de sentimento. Sem torcidas, sem pânicos, embora com muito medo, com muita angústia e, nos momentos devidos, com um peso que chegava quase a estraçalhar. Durante sua vida inteira Nossa Senhora foi uma grande sofredora. Mas teve alegrias como nunca pessoa alguma teve. E todas as alegrias do mundo, desde o primeiro instante em que o homem surgiu no paraíso até o último momento em que haja homens sobre a Terra, todas elas somadas não chegam a ser como as grandes alegrias de Nossa Senhora. Essas dores e alegrias se entrelaçaram continuamente, e Nossa Senhora vivia suportando o fardo das mais tremendas dores, mas ao mesmo tempo aliviada pelas mais admiráveis alegrias. Assim se deve ver sua fisionomia moral, insondavelmente santa especialmente em suas dores.83

83. 17-3-67.

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Capítulo 11

Prestar atenção é elemento da ação e da calma Recolhimento é recolher, e recolher é juntar coisas, reconduzindo-as para o lugar de onde não deveriam ter saído. (Plinio Corrêa de Oliveira)84

Neste capítulo

Da esq. à dir. Bismarck, Adenauer e Churchill

Certa espiritualidade deturpada tornou o recolhimento uma pseudo-virtude desprezível. Para muitos que têm essa espiritualidade, o homem recolhido é o que está sorrindo com uma expressão beata, junto a uma imagem piedosa. Mas para Dr. Plinio, o recolhimento é a qualidade de alma pela qual a atenção do homem é universal, no conjunto das coisas que ele analisa e se fixa nelas na devida proporção, segundo mereçam. Para sugerir uma imagem verdadeira, ele não recua diante da perspectiva de buscar aspectos meramente humanos dessa qualidade em personalidades não tipicamente religiosas, como Bismarck, Adenauer e Churchill. Para ele, recolhimento vem de recolher, e recolher é juntar coisas que estão esparsas. 84. 29-4-67.

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Que é o recolhimento? O recolhimento é a qualidade da alma pela qual a atenção do homem, no conjunto das coisas que ele analisa, se volta e se fixa na devida proporção, segundo elas mereçam. É próprio do recolhimento perfeito, por exemplo, fazer com que o indivíduo preste mais atenção nas coisas sublimes do que nas banais; mais atenção na sua tarefa do que na dos outros; mais atenção no grave do que no agradável. Dar mais atenção a uma coisa do que a outra é um seletivo da atenção, é uma excelência da alma pela qual se é capaz de dar valor às coisas de acordo com sua ordem hierárquica e arquitetônica. O recolhimento é um elemento da seriedade, não é coisa distinta dela. É um seletivo da atenção e do esforço da inteligência, portanto um elemento integrante da seriedade. Outro aspecto do recolhimento consiste em, ao tratar das coisas inferiores, procurar relacioná-las com as superiores e ver as superiores nas inferiores.

Dissipação, vício oposto ao recolhimento Recolher é juntar coisas que estão esparsas. Mais ainda, reconduzi-las para o lugar de onde não deveriam ter saído. Isto é propriamente recolher. Acontece que, por defeito da mente humana, um espírito não educado, não formado nessa virtude, tem o vício da dissipação, que é o oposto do recolhimento. Que é dissipação? Dissipar consiste em as coisas se espraiarem para fora do lugar que lhes é pró-

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prio. Dissipar o patrimônio, por exemplo, quer dizer que se joga o patrimônio pessoal para quem não é seu dono, colocando-o em mãos indevidas e perdendo-o para si mesmo. Poder-se-ia dizer de uma família que ela se dissipou ao longo dos séculos, ou seja, se desfez e perdeu o nexo com sua unidade primeira. Posso dizer que minha atenção é dissipada quando, por um mero jogo de curiosidade, ela não segue a linha do recolhimento e eu divago entre uma coisa e outra sem um propósito determinado. Um exemplo de raciocínio dissipado: Eu vejo este candelabro de prata, e meu pensamento salta para prata; a prata me lembra as minas de Potosi; as minas de Potosi me lembram um sujeito que eu conheci, e que morava nessas minas; esse sujeito gostava de gravata azul. E assim, em poucos instantes, eu teria passado a pensar em gravata azul. É o tipo de pensamento dissipado, sem nenhum rumo, que perambula estupidamente de coisa em coisa. Recolher é tomar a coisa que se dissipou e prendê-la. Neste caso, exercer sobre nossa atenção naturalmente dissipada uma função de controle e recolhimento. A ideia que está no fundo é que, em virtude do pecado original, a mente humana é naturalmente dissipada. A virtude do recolhimento a recolhe e ordena no rumo que deve tomar.

O espírito recolhido hierarquiza sua atenção A pessoa de espírito recolhido não é quem só presta atenção numa coisa. Ela presta atenção em todas, mas coloca-as na devida hierarquia. Vê tudo e nota tudo,

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mas conferindo a cada coisa seu grau de importância. É uma qualidade varonil e altamente simpática. À força de recolhimento, superam-se certos conhecimentos, pois já sabemos deles o que é suficiente e podemos concentrar nossa atenção em outros. Acaba sendo que, a partir de certa idade, o homem já dá por visto tudo o que é secundário e fixa sua atenção quase que exclusivamente em algumas pistas principais. O resto ele vê, mas como se não visse. Andando pela rua, dificilmente prestarei atenção numa formiga, por exemplo, pois sobre formiga eu já sei o que me compete saber. Ela já está vista e analisada, e para mim está superada, mas houve tempo em que prestei atenção nela e nas mil coisas que cito em Ambientes, Costumes, Civilizações.85 Se sou capaz de citar, é porque prestei atenção nelas. Tenho horror a um tipo de homens que são mutiladores da realidade, da mesma forma que os pulmões têm horror ao ar confinado. Nossa cabeça foi feita para o grande ar da realidade total, com todos os seus sopros.

O recolhimento em pessoas com vocações especiais Alguns santos tiveram a vocação especial de meditar exclusivamente sobre as coisas do Céu. Há um santo que entrou no fundo de um poço para passar a vida inteira rezando lá. É uma vocação especial, 85. “Ambientes, Costumes, Civilizações”: célebre seção publicada por Dr. Plinio no mensário “Catolicismo”.

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não é a vocação comum de todos os homens. O que caracteriza as vocações muito especiais é que elas são sublimes nos casos individuais, mas conduziriam à insânia se fossem tendências coletivas. Se a Igreja fosse promover uma civilização em que todos os homens entrassem em poços para meditar, isso causaria horror. Causaria horror também se todos tivessem a comunidade de bens própria às Ordens Religiosas. Por quê? Porque são exemplos excepcionais, e a transformação da mais sublime das exceções em algo de comum resulta no monstruoso.

Exemplos de recolhimento: Bismarck,86 Adenauer,87 Churchill88 Certa espiritualidade deturpada tornou o recolhimento uma pseudo-virtude abjeta, a tal ponto que, para procurarmos a imagem verdadeira, temos que buscá-la em fisionomias de personagens não religiosos. Bismarck, um revolucionário horroroso, era altamente recolhido. Adenauer era recolhido, realizou sua perfeição à força de recolhimento. Seu olhão, de tipo mongolóide, arredondou-se de tanto ele ser recolhido. Churchill, para mim, é a obra prima do recolhimento laico, um espírito muito mais universal do que Bismarck e Adenauer. Era homem que, passando por 86. Príncipe Otto von Bismarck, homem de Estado prussiano (1815-1898). 87. Konrad Adenauer, chanceler da Alemanha Ocidental (1876-1967). 88. Sir Winston Churchill, homem de estado inglês, um dos organizadores da vitória sobre Hitler na Segunda Guerra Mundial (1874-1965).

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uma rua, poderia se divertir com o salto do sapato de uma velha, depois entreter-se com um gato, depois achar interessante tal pormenor de um carregador das docas. A vida inteira ia passando pela cabeça de Churchill enquanto ele meditava. Isso para mim é o nec plus ultra do recolhimento. Espírito arquitetônico89 em alto grau.

O paradigma medieval Nunca houve tanta atividade, tanta luta, tanta aventura como quando houve os calmos remansos90 da Idade Média. Nas cidades, as ruas eram repletas, borbulhando de atividade. Os andares térreos das casas tinham comércios e seus anúncios. Gente gritando para vender mercadorias, falando alto, discutindo. Ruas movimentadíssimas, mas nas casas de um lado e de outro, logo na primeira sala se estava psicologicamente a mil léguas da rua. Não era como a casa de hoje, com um janelão que dá para fora, e no quarto de dormir a pessoa se sente na rua. As casas eram de paredes grossas − o que exerce um efeito psicológico tremendo − com janelas de peitoril larguíssimo, tendo banquinho de um lado e de outro. Creio que era feito para se colocar almofadas e ficarem sentados, de modo a aproveitar a luz que entra para ler um livrão. Ainda no peitoril da janela, um jarrozinho de flor, umas tulipas. E a rua, a léguas... Os vidros eram aqueles fundos de garrafa, de ma89. Arquitetônico: formando um sentido superior, uma como que arquitetura. 90. A respeito do conceito de “remanso”, vide capítulo 6, “A distância psíquica”.

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neira tal que o ambiente da casa já ressumava intimidade a poucos centímetros da rua, onde estava havendo toda aquela barulheira. Depois, noites calmas e muito recolhidas. Os bandidos prestavam um serviço: todos tinham medo de sair, por falta de iluminação e por causa deles. Fora rugia o perigo, mas dentro as casas tinham portas com trancas aferrolhadas. A pessoa ouve lá fora o correr dos bandidos, e a guarda que

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vai correndo atrás. Mas dentro sente-se aconchegado, com uma carapuça e bebendo um chá de losna. As pantufas ficam junto à lareira, que está acesa e as aquece. Um lê a história dos antepassados, o que era comum mesmo nas famílias plebeias. Outro lê o Evangelho e a vida dos Santos. Aquela sensação de tranquilidade, o silêncio da noite e o guarda que canta canções religiosas para avisar a todos que está perto. Quando era criança, aprendi uma cantiga alemã assim: “Ouvi, senhor, e permiti que vos cante. Nosso relógio deu doze horas. Meia noite. Doze apóstolos no mundo. Ó homem, quanta vigilância isto representa para teu coração”. Até dez minutos depois, ouvem-se os últimos ecos da canção. Tudo isto, no isolamento da casa onde mora muita gente, todos intimamente imbricados pela solidariedade familiar. Uma atmosfera de aconchego, calor, placidez, que é propriamente o “remanso” dentro da vida familiar. Mas um “remanso” que é de vida, não de morte.

O “remanso” das cidades e castelos medievais O aconchego da cidade é outro fator de “remanso”. Era cercada de muros, com grandes portas que se trancavam. Havia sentinelas, e o inimigo ficava do lado de fora. Num grande campo, o castelo também tinha o seu “remanso”. Junto a ele, como filhas medrosas em torno da mãe, as cabanas dos agricultores que duran-

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te o dia trabalham. Além do trabalho havia a guerra, tão frequente na Idade Média, e se havia ataque eles iam correndo para dentro do castelo. Nesse conjunto, o “remanso” fica delicioso, uma coisa cheia de calor humano e de aconchego. Não é feito para a vida inteira, mas é uma alternativa à luta, ao trabalho e à aventura. O contraste é que eles empreendiam também viagens enormes, cruzadas e aventuras de toda ordem.

Ação, recolhimento e distância psíquica Nas ocasiões de remanso a sensação de perigo se afasta, o homem se distende inteiro, e nessa distensão as coisas retomam sua verdadeira hierarquia. Por exemplo, um comerciante passou o dia inteiro no seu comércio. À noite as atividades comerciais estão encerradas, e em casa ele penetra num ambiente tão diferente de sua casa comercial, que fica como que forçado a não pensar mais em negócios. O comércio cai, a hierarquia de valores se restabelece e ele é capaz

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de manter sua distância psíquica. Não tem distância psíquica quem não tem recolhimento, quem não tem “remanso”. Tudo isto é muito bonito e atraente, mostrando um equilíbrio, uma ordem, uma afinidade com a natureza humana. O recolhimento não é o contrário da ação, mas sua fonte. As grandes ações do homem se resolvem no recolhimento. Por outro lado, não é um convite à preguiça, mas restaura as forças para continuar a ação. A galinha é um símbolo de falso recolhimento. Quando se abre a porta do galinheiro e se entra, a galinha sai correndo estupidamente, na primeira direção que está diante do bico dela, e se esconde num lugar que não esconde nada. É a imagem mais frisante da falta idiota de recolhimento.91

91. 29-4-67.

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Capítulo 12

Calma diante de nossas faltas “Tudo é insignificante, comparado

com o momento em que virmos Nosso Senhor pessoalmente e Ele nos olhar (Plinio Corrêa de Oliveira)92

Neste capítulo Examinar a própria consciência é ato sério e muitas vezes cheio de decepções, mas não exclui uma grande calma. A consequência da grande misericórdia de Deus, face ao pecado, é que nossas faltas podem ser desmedidas, mas a misericórdia de Deus é infinita. O Abbé Saint Laurent afirma no seu “Livro da Confiança” que Nosso Senhor receia acima de tudo que tenhamos medo d’Ele: “Vossas imperfeições, vossas faltas, mesmo graves, vossas reincidências tão frequentes, nada O desanimará, contanto que desejeis sinceramente converter-vos. Quanto mais miseráveis sois, mais Ele tem compaixão de vossa miséria, mais deseja cumprir, junto a vós, sua missão de Salvador”.93

92. Sem data. 93. Cap. 1.

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Exame de consciência sacral e calmo É uma graça de Deus a intenção de examinar a consciência. Ela permanece durante o exame e vai iluminando a pessoa, para que conheça as acusações que a própria consciência lhe faz. Assim, vai tendo forças para responder às perguntas da consciência. Com a atenção voltada para si mesmo durante o exame de consciência, a pessoa deve participar de uma espécie de diálogo com Deus. É o próprio Deus que, através de meu espírito, pede que eu me examine, é o próprio Deus que me dá luz para eu me conhecer como de fato sou, é o próprio Deus que me sugere o horror ao pecado que cometi. Durante todo o exame de consciência, devo ter a atenção posta nos bons movimentos da minha alma sugeridos por Deus. É como se o próprio Deus estivesse falando por mim, de maneira que meu exame de consciência deve ser sacral, calmo, sereno, respeitoso, objetivo. Devo tratar-me com inteira honestidade, mas com respeito. Diz a Escritura que Deus dispõe com grande respeito de tudo que se relaciona com a criatura humana, e é com esse mesmo respeito que me devo tratar durante o exame de consciência. O exame de consciência não se faz como quem vai entrar na presença de um delegado de polícia, que já está empunhando o açoite, mas diante de um pai; um pai celeste, que vai ajudar minha alma a se examinar a si própria, numa atmosfera sobrenatural e sacral. Estes são os pressupostos para que o exame de

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consciência não seja horripilante, não seja exagerado, não passe por deformações que tornariam toda a nossa vida espiritual desacertada, errada.94

Como Nossa Senhora nos vê Se quero que Nossa Senhora continue a me amar como se eu fosse bom, devo amar os outros como se fossem bons. De maneira que, olhando para a minha alma que Ela conhece até o fundo, veja que realmente tenho afeto, quero bem aos outros e não tenho ressentimentos. A Escritura diz que o justo peca sete vezes por dia. Assim são as imperfeições do homem. Quando Santa Teresa de Jesus morreu, uma mística viu a alma dela desprender-se, descer até o Purgatório e fazer uma genuflexão em meio às chamas. Depois ela se levantou e subiu. Portanto a grande Santa Teresa teve que fazer uma genuflexão no meio das chamas. Devemos mergulhar como escafandros no nosso subconsciente, à procura dos nossos pecados, e medilos ponto por ponto: Tive tal pecado, com tal agravante, esse agravante ainda foi acrescido por tal outro, depois por mais outro, e chegou a tal ponto. Entretanto, ó Senhor, ó minha Mãe, vos peço que tenhais pena de mim, porque a vossa misericórdia é maior do que todos os pecados e agravantes que encontrei em mim. É preciso que eu encontre esses agravantes para me humilhar, mas após minha humilhação faço um ato de confiança na misericórdia divina. 94. 5-1-74.

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O perdão divino é muito maior que a imensidade dos meus crimes, por isso volto-me para Maria Santíssima e peço: Minha Mãe, tende piedade de mim! Uma invocação muito bonita é Nossa Senhora da Consolação, também chamada Nossa Senhora do Divino Amor. É preciso pedir a Nossa Senhora que nos dê esse divino amor, e faça com que sejamos exímios nesse amor.95 David não tinha Nossa Senhora, nem sequer Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele conhecia a existência de Deus, sabia que o mundo caíra em pecado, mas sabia também que este só seria perdoado após a vinda de Cristo. Nós temos Nossa Senhora, temos Nosso Senhor Jesus Cristo, além de uma infinidade de recursos de misericórdia da Nova Lei. Mas também o pecado se tornou mais grave, porque abusamos de uma graça maior. É evidente que, sendo maior a misericórdia, há mais gravidade no pecado, porque se abusa dessa misericórdia. O superavit da misericórdia é sempre enorme, mas também por isso devemos nos humilhar mais. Principalmente devemos nos voltar para Nossa Senhora, com toda a confiança.96 Nossa atitude deve ser de espera confiante, insistente e contrita. É preciso bater no peito e reconhecer, mas é necessário compreender que a misericórdia d’Ela é maior do que todas as nossas faltas, e que algo Ela fará. Devemos resistir assim, confiantes nessa luz

95. 30-11-88. 96. 18-10-68.

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Fra Angélico assim representa o Paraíso Celeste

da esperança que as trevas não conseguem circundar.97

O compêndio do Paraíso No centro de todas as belezas, de todas as coisas, existe a face adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo. 97. 20-10-74.

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A Sagrada Face de Nosso Senhor espelhava, em termos inteligíveis para o homem, a própria santidade de Deus. Como a face é o símbolo perfeito da alma, a criatura perfeita que é Jesus Cristo teria de ter necessariamente a forma perfeita da beleza, de toda beleza da matéria. Representaria assim algo de inefável. No centro da face adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo há o olhar, que é como o compêndio de toda a face. Era uma grande esmola, uma grande misericórdia receber um olhar d’Ele. Depois de ver uma vez aqueles olhos, não se precisaria de mais nada. Podemos imaginar o que será para nós, quando chegarmos no Céu, receber o primeiro olhar d’Ele. Fala-se muito de toda a magnificência do paraíso celeste e de tudo que ali se vai ver. Mas ver Nosso Senhor Jesus Cristo será algo perto do qual o paraíso celeste, embora necessário, torna-se completamente secundário. Tudo é insignificante perto da presença de Nosso Senhor e do seu olhar. O olhar de Nosso Senhor no Céu conterá o comentário de toda nossa vida, o perdão de todas nossas faltas e a alegria por todos os nossos atos bons, por todas as nossas virtudes. E será também um olhar que se fixa para todo o sempre, nunca mais deixará de nos olhar. Tudo isso é inexprimível, a linguagem humana é incapaz de descrever completamente.98

98. 7-5-66.

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Capítulo 13

Confiança, palavra que nos acalma O nervosismo é, no fundo, uma forma de masoquismo psicológico (Plinio Corrêa de Oliveira)99

Neste capítulo Dr. Plinio analisa a confiança como sendo uma voz de Deus que se faz ouvir dentro de nós. É uma palavra de certeza e de verdade, que nos tranquiliza. A voz da confiança não mente nunca. Seu contrário é a desconfiança, formada por rios de águas corrosivas e efervescentes. Quando a Providência quer algo, Ela o realiza, mesmo que seja contra todas as esperanças e contra todas as aparências.

99. 13-9-74.

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A confiança e a tranquilidade Não gostamos de confusão, por isso a confusão nos causa perplexidade, nos atormenta, nos angustia. Queremos uma certeza, um rumo, um desfecho, e a confusão cria condições onde certezas, rumo e desfecho não aparecem, daí nossa perplexidade e angústia. Quando se apresenta a confusão, chega a hora não mais de uma luz, mas de uma palavra interior. Essa palavra, que é o contrário da confusão e da angústia, em nosso drama diz apenas o seguinte: Confiança! Confiança! Trata-se de uma voz interior que muitas vezes nos terá cicatrizado as feridas. É como se uma palavra interna nos dissesse: “Confiança, os ventos e o mar obedecem a Ele”.100 E assim se aplacam logo em nossa alma várias angústias e perplexidades. Tem-se a impressão de estar acordando de um pesadelo, e percebe-se que o vulto das coisas, bem como o estrangulamento de que éramos vítimas, não era tão negro quanto tínhamos imaginado. Compreende-se então que Alguém, que nunca mente, nos prometeu dentro da alma, de uma maneira que nenhum ouvido ouve, que levará a cabo alguma coisa tranquilizante. Essa promessa traz um absoluto de verdade, que nada romperá. Quando o estrangulamento voltar, e a confusão se manifestar novamente, ao ouvirmos interiormente confiança, saberemos que a promessa renascerá em nossas almas. Compreendemos assim que houve uma palavra da 100. Lc., 8, 25.

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Mãe de Deus, dizendo algo dentro de nossas almas. Ela realiza o que diz, promete confiança e dá confiança. Essa confiança não tem seu fundamento nas coisas externas, mas tem o timbre da verdade: Neste palavra eu acreditei, porque Ela é a Mãe de Deus. Vou para a frente sem discutir, confio.

No silêncio dos corações O livro do Abbé Saint Laurent101 tem estas palavras iniciais: “Voz de Cristo, voz misteriosa da Graça que ressoais no silêncio dos corações, vós murmurais no fundo de nossas consciências palavras de doçura e de paz”. Às vezes elas não dizem nada, mas outras vezes fornecem a impressão seguinte: Bem, tudo é incongruente, mas está sendo dita ao meu espírito uma palavra, e essa palavra tem uma plenitude de certeza e de verdade que tranquiliza minha alma, fazendoa compreender que devo ir para a frente, e que de algum modo se resolverá o problema. Furam-se as paredes, varam-se as lajes, transpõem-se os espaços enquanto eu caminho de encontro ao estapafúrdio e ao absurdo, mas alguma coisa se resolve. Essa palavra interior não é uma luz, nem algo que nos aparece brilhante e luminoso. Não resulta de algo que vimos fora de nós, mas nos está sendo dita dentro da alma, gratuitamente. É uma confiança que entra e opera em nós o ato de confiar, ela diz e faz nossa confiança. E confiantes vamos para a frente,

101. Padre Thomas de Saint Laurent, O Livro da Confiança. Boa Imprensa, Campos, 1960, p. 9.

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convictos de que é algo racional. É a coisa mais racional que há, pois damos ouvidos à voz de Deus que se faz ouvir dentro de nós. Somos os bem-aventurados, aos quais Deus não fala apenas pelo ouvido exterior, mas também internamente, dentro da alma. Essa palavra nós seguimos, com essa palavra nós continuamos. Essa é a confiança dentro da confusão.

A angústia, o nervosismo e a confiança Psicologicamente falando, dá-se uma coisa incrível nas tentações comuns de angústia, nascidas da confusão infernal dos nossos dias: a pessoa muitas vezes não quer deixar a angústia, prefere ficar dentro dela. Quando se começa a provar-lhe que não deve angustiar-se, começa a lutar como uma criança de quem se quer tirar o bombom, faz tudo para defender sua angústia. O homem assaltado de nervosismo pode não querer que se lhe tire a angústia. Quer continuar dentro dela. O fato é que ele está tentado por uma espécie de masoquismo, com o qual se dilacera interiormente de mil modos. Esse estado não corresponde à mentalidade de um indivíduo preso em uma cadeia, e que quer por todos os modos libertar-se. Ao contrário, quer estar dentro da cadeia e prefere agredir quem quiser tirá-lo de lá. Até se impacienta e ruge quando se quer libertá-lo. Está de costas para a confiança, voltado para o desespero, e pode estar com apetência de desespero. Portanto, a palavra que ele é levado a engendrar não é a palavra confiança, mas desconfiança. Ele a

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engendra torrencialmente, são rios de desconfianças que convergem para águas corrosivas e efervescentes. Podemos imaginar assim um rio de ácido sulfúrico no qual a pessoa se joga inteira, num festival de autodemolição e sem nada com delícias.

O nervosismo, geralmente uma perversão Em todos os tempos houve pessoas com o defeito do nervosismo, mas eram exceção dentro da história dos defeitos morais, porque os homens não se tinham deteriorado de maneira a desejarem habitualmente coisa tão absurda. Com a decadência da humanidade – que é muito mais a violação do 1º Mandamento do que a violação dos outros – apareceram perversões como essa, que se tornou regra geral. O nervosismo, no fundo, é uma forma de masoquismo psicológico. Imaginemos uma pessoa com a tendência de quebrar os próprios dedos, e que precisasse engessá-los para não serem quebrados. Que juízo poderíamos fazer dela?102 Quando a confiança assume as rédeas do comportamento, esse nervosismo desaparece. A pessoa se acalma, todos os seus lados lúcidos tomam a parte superior de sua alma, os lados doentios são relegados para baixo, o que equivale a dizer que a lucidez venceu.

A confiança tem as características das operações do Espírito Santo Tudo o que diz respeito às operações do Espírito Santo na alma caracteriza-se por três elementos: 102. 13-9-74.

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ação súbita – portanto, inopinada – eficaz e de frutos bons. Em geral, essa palavra interior de confiança vem quando menos se o espera. Às vezes é apenas uma oração, e a pessoa sai tranquilizada. É inopinada, não produzida por nada que existe dentro de nós, pois nunca conseguiremos fabricar em nós uma palavra assim. De repente ela vem, é uma palavra súbita. Ela nos diz confie, e nós confiamos realmente. É uma palavra eficaz, que produz os frutos do Espírito Santo. A pessoa fica com a alma disposta para todos os atos de virtude, para toda forma de correspondência à graça. Torna-se articulada, flexível, alegre para com o bem. Dir-se-ia que ela foi curada. Mais ainda, ela foi desinfestada, entram os Anjos nela e a tornam diferente. É uma palavra que torna realidade seu significado. Nosso Senhor disse: Pelos seus frutos vós os conhecereis.103 A confiança opera em nós todos os frutos característicos da ação do Espírito Santo: propensão para a fé, piedade, abnegação, renúncia, heroísmo, ordem. Conaturalidade para com tudo que é da Igreja, fácil renúncia às coisas que não o são. A desconfiança opera precisamente o contrário, ponto por ponto. Houve um grande santo no deserto, que foi muito tentado contra a pureza. Lutou o quanto pôde. Quando afinal penetrou uma claridade na gruta, o demônio saiu e ele sentiu-se inundado de luz. Perguntou então a Deus:

103. Mt. 7, 16-20.

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— Onde estáveis, Senhor, enquanto vosso servo lutava? Deus respondeu-lhe: — Estava no fundo de tua alma, resistindo.

Seja realista, exija o impossível Nos dias da agitação da Sorbonne (1968), os estudantes – com seu talento francês, mesmo ao defender a pior das causas – afixaram este lema na universidade: Seja realista, exija o impossível. Diante desse lema, como diante de muitas produções do espírito francês, duas famílias de almas se colocam: O espírito geométrico é contra uma afirmação assim, pois exigir o impossível é utópico, logo o lema contém um absurdo. Mas as pessoas dotadas de espírito fino compreendem que propositalmente ele contém uma espécie de contradição berrante. Impossível é uma palavra que está aí psicologicamente entre aspas. Em outros termos, há mil coisas que os indivíduos medíocres consideram impossíveis, e que o são realmente para os medíocres. Mas não são impossíveis para quem tem uma noção inteira da realidade. Estes compreendem que os horizontes do medíocre são limitados e circunscritos, e quão facilmente a maior parte dos homens desanima diante de coisas que qualifica de impossíveis, mas que de fato não o são. Quem vai a Barcelona pode visitar reproduções das três naus de Cristóvão Colombo. São umas cascasde-noz com as quais, exagerando um pouco, ter-se-ia medo de atravessar o pequeno lago de uma represa.

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No entanto elas vieram até a América, e exatamente no momento em que se planejava uma revolta a bordo – com pretexto de que, afinal de contas, nunca se chegava a lugar nenhum − alguém gritou: Terra! Estava-se precisamente no momento em que o impossível – entre aspas, para os medíocres – tinha se tornado possível. Mas este é um fato natural. Do lado sobrenatural isto é muito mais bonito e tem muito mais riqueza. A riqueza está no seguinte: Sabemos que quando a Providência quer algo, Ela o realiza contra todas as esperanças e contra todas as aparências. O que é impossível até mesmo aos grandes homens, a Nossa Senhora é possível, porque a oração d’Ela é onipotente diante de Deus, de Quem obtém absolutamente tudo o que possa estar nos planos de Deus.

A voz da confiança não mente nunca Quando alguém é levado a pensar que a voz da confiança lhe mentiu, não deve acreditar, pois a voz da confiança não mente nunca, e acaba realizando aquilo que promete. Algumas vezes também estamos cheios de areia da aridez, do isolamento, da incompreensão, do tédio, da impressão de estar diante de algo que não é caminho. Então é o caso de dizer: gaude et lætare! 104 – alegra-te! Alegremo-nos de fato, porque o melhor caminho parece ser realmente o beco fechado e sem saída. Aí está, no campo espiritual, uma explicação para essa parte 104. Alegrai-vos e exultai: do hino Regina Cœli.

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do lema exija o impossível. Ele virá a nós, desde que estejamos com os olhos postos em Nossa Senhora.105 Alguém poderá indagar: Como posso saber se essa voz interior da alma não é uma ilusão? Como posso discernir esse movimento de uma imaginação, de uma impressão colocada no espírito? São coisas impalpáveis, mas tudo que é espiritual joga com fatores impalpáveis. Temos que conferir com os caminhos da graça em nós. Se o movimento interior ruma na direção da graça, podemos confiar nele. E assim, por uma espécie de jogo de impalpáveis, podemos ter certeza plena do caminho que devemos seguir.106 Quando temos um movimento interior, e percebemos que se ele for atendido nos levará à virtude, devemos julgar Nossa Senhora da Confiança muito provável, ou até certo, que esse movimento interior corresponde a algo da graça. Se, pelo contrário, leva a nos distanciar da virtude, devemos ter como certo que nos afasta dos caminhos de Deus. Portanto, que ele é falso e nele não podemos confiar. 105. 3-8-68. 106. 7-8-71.

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Capítulo 14

Saber esperar, na calma Vou devagar porque tenho pressa (dito brasileiro) Esperemos um pouco para terminar antes (provérbio inglês)

Neste capítulo A espera na calma é muitas vezes uma preparação. Ela nos força a ter diante dos olhos longamente o objeto de nossos anseios, e com isso nos prepara para quando se realizarem. Ela é também uma maturação. Essa maturação faz-se muitas vezes pelo desejar. Desejar longamente algo torna-nos dignos de possuí-lo. Por isso, na Sagrada Escritura o profeta Daniel figura como desideriorum vir – homem de desejos. Erra quem espera com impaciência ou agitação! Saber esperar com calma é uma manifestação de bomsenso e de sabedoria. O Profeta Daniel na cova com os leões

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Como encarar a espera O mundo de hoje é muito habituado a apressar todas as coisas e suprimir as esperas. Até certo ponto se compreende isso, porque a espera parece engasgar o curso natural das coisas. Embora esse combate à espera tenha algo de natural, tem também algo de excessivo, e se perde o efeito que a espera exerce na maturação e na formação do homem. Por exemplo, hoje o indivíduo toma um avião, e em poucas horas estará na Europa, depois de sobrevoar o enorme oceano Atlântico. De um salto, passase a outro mundo, outra civilização, outra vida. Antigamente tomava-se um navio, e só depois de l5 dias se acabava de deixar para trás o País de origem. Durante esse tempo a pessoa preparava o espírito para entrar no outro país. Levava guias e livros, e ficava lendo sobre o país de destino, preparando o espírito e se esquecendo um pouco dos hábitos do país de origem. Essa demora operava uma maturação. Hoje o passageiro entra num tubo, e poucas horas depois o tubo o ejeta em outro lugar, sem uma salutar transição.

Benefícios da espera Muitas vezes a espera é uma preparação, uma maturação, que se faz frequentemente através do desejar, pois quando a pessoa deseja longamente algo, vai se tornando digna desse algo. Por exemplo, São Joaquim e Sant’Ana, os pais de Nossa Senhora, eram muito velhos. Estavam além da idade em que habitualmente um casal tem filhos, mas foi nessa situação que miraculosamente nasceu

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Nossa Senhora com seus pais São Joaquim e Santa Ana

Nossa Senhora. Eles tinham a revelação de que iriam gerar a mãe do Messias, e passaram anos e anos esperando. Assim se prepararam longamente para receber Nossa Senhora. Teriam se preparado muito menos, se a mãe do Messias nascesse logo que se casaram. A Escritura nos fala ainda de outras longas esperas, que muitas vezes são esperas contra o impossível. No Antigo e Novo Testamentos há manifestações de espera assombrosas. Espera-se contra toda esperança, e afinal de contas tudo dá certo depois da espera.

O drama de Nosso Senhor com os apóstolos Pouco se reflete sobre a história dos apóstolos. Nosso Senhor os preparou para ser o que foram, mas numerosas vicissitudes intervieram na execução do plano divino. Basta ver que dos doze apóstolos um trai e se afasta; no Horto das Oliveiras Ele fica sozinho; um o

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renega, e é exatamente o que escolhera para cabeça da sua Igreja. São João, que ouvira na Santa Ceia a pulsação do Coração de Jesus, foi agarrado pela túnica, e para fugir desvencilhou-se dela e saiu correndo despido.107 Ou seja, aparentemente tudo dá errado, numa espera cheia de decepções, cheia de fatos desencontrados. Nosso Senhor ressuscita e convoca os Apóstolos, eles se reconvertem, tudo está promissor. Começa o apostolado pelo mundo, que inicialmente dá bom resultado. Convertem-se algumas cidades, e na Terra Santa algumas famílias. Depois, de cá e de lá, apenas algumas pessoas, tornando lento o resultado. Mas pouco depois converte-se São Paulo, que fora fariseu e perseguidor dos cristãos, e praticamente sozinho converteu quase toda a bacia do Mediterrâneo. Este foi o resultado da missão e trabalho dos Apóstolos. Quanta decepção, quanta demora. Mas na ponta de tanta decepção, suportada com desejo e com esperança, a certeza de que a Igreja se ergueria, como acabou se erguendo. É preciso reconhecer a beleza disso, pois ela fala por si mesma, é uma verdadeira maravilha. Daqueles que desejam alguma coisa de Jesus, muitas vezes Ele quer que esperem longamente.

107. Mc. XIV-52.

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São Paulo


Modernidade sem maturação Esperar pacientemente não está de acordo com os hábitos modernos. Toda forma de espera é vista hoje em dia com maus olhos. Toda forma de maturidade, reflexão, meditação está definhando, e uma das causas dessa lacuna pode ser a falta de espera. Os países onde mais se corre e menos se espera são os mesmos onde menos se pensa. Por isso mesmo não se encontram hoje grandes sábios como os de outrora – Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Tomás. O benefício da espera é a vantagem da maturação. Qual a beleza própria da espera? O que acontece com uma alma humana, quando aguarda uma coisa boa? Metaforicamente, pode-se dizer que a pessoa “gera” aquilo que espera. Quando quer muito uma coisa, o homem planeja o modo de consegui-la. De tanto planejar, acaba tomando o aspecto daquilo que planejou. No final das contas, pode obter o que deseja.

O exemplo de Colombo A espera torna bonita a navegação. Podemos ver isso na história do descobrimento da América. Colombo tomou em Barcelona aqueles três naviozinhos, pensando que estava indo para a Índia ou a China. Não imaginava encontrar pelo meio esse fecundíssimo trambolho, que é a América. Imaginemos que a história fosse diferente, como algo assim: Colombo foi muito favorecido, porque nesse ano, por tais e tais razões que depois os cientis-

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tas descobriram, só teve de navegar 12 dias de Barcelona até uma ilha do Caribe, onde aportou. A viagem foi fácil, simples e rápida. Chegaram, descobriram a América e tomaram posse. Tem isso algum aspecto épico e heróico? Pelo contrário, aquela navegação que não acaba mais, os marujos que se revoltam contra ele. Pairava mesmo a dúvida de que talvez nunca chegariam a nada. Nesse caso estariam perdidos, chegaria um momento em que nem haveria mais água para beber, e neste caso o que os esperava era a morte. Afinal aparecem boiando pelo mar pedaços de vegetação, sinal de que a terra está próxima. Todos então se reconciliam, ficam amigos e se voltam encantados para a terra. É um acontecimento muito mais bonito, porque eles esperaram. Não só esperaram, mas o fizeram contra toda esperança. Batalharam para conseguir, sofreram, correram risco.

A promessa e a espera Mais bonita ainda é a espera quando se precisa de um milagre. Por quê? Porque no milagre se vê a mão de Deus, a mão de Nossa Senhora. Por assim dizer, a mão de Deus vara as nuvens e dá aquilo que o homem deseja. Promete e depois cumpre, mas às vezes depois de toda espécie de dificuldades. O episódio de Abraão com Isaac é lindíssimo. Deus prometera um filho a Abraão. Ele esperou muito tempo, e afinal lhe veio o filho quando já era velho. O menino Isaac foi o cumprimento da promessa de Deus para ele. Mas algum tempo depois Deus lhe

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pede que sacrifique o filho em sua honra. Abraão poderia argumentar: — Senhor, como fica a vossa promessa? Vós me tirareis o filho que me destes para ser antepassado do Messias, mas ele morrerá sem ter tido geração. Não estareis burlando da esperança que fizestes nascer em meu débil coração de homem? Mas ele não hesita nem argumenta, leva o menino até o alto do monte, disposto a sacrificá-lo. Sendo uma ordem de Deus, não era homicídio, pois Deus dispõe dos homens. Com a ajuda do próprio filho, constrói o altar onde ele seria morto. O menino pergunta: — Meu pai, aqui está o altar, mas onde está a vítima? Ele manda que o filho se deite sobre o altar, indicando-lhe que ele próprio era a vítima. Dócil como o pai, o menino se deita. Abraão toma a faca e vai brandir um golpe para matar o menino, mas no ultimo momento aparece um anjo e interrompe o seu ato: — Não! Pare! Deus estava te provando, queria ver até onde iria tua obediência. Em atenção à tua obediência, à tua esperança, à tua disciplina, os teus filhos serão mais numerosos que a areia do mar e as estrelas do céu!108 A questão ainda se requinta. Da descendência de Abraão nasceria o Messias, mas o patriarca não tinha ideia de que seria a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que ia encarnar. O que de fato aconteceu

108. Cf. Gn, 22, 17.

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foi infinitamente maior do que ele esperava: o próprio Verbo de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, se fez carne e habitou entre nós. Deus encarnou na raça judaica, dando portanto a Abraão, que era o depositário da promessa para o povo judaico, uma plenitude de recompensa incomparável. É verdade que a descendência dele seria mais numerosa que as areias do mar e as estrelas do céu, mas sobretudo qualitativamente seria maior, porque incluiria o Filho de Deus. No momento em que nasce o Messias, o povo está de tal maneira podre, que o recusa e o mata. Mas vejam a esperança: Deus prometeu seu amor ao povo de Israel, e no fim dos tempos esse povo vai se converter. O mundo não acabará sem que o povo de Israel se converta. A promessa acabará se realizando. A história das relações de Deus com o povo judaico se abre por uma prova tremenda e termina com uma reconciliação dulcíssima. Esperar, esperar, esperar... Acaba dando certo. Bem-aventurados os que esperaram. Deles foi a promessa, deles é a vitória!109

109. Todo o conteúdo deste capítulo foi extraído de conferência proferida em 3-7-88, salvo indicação em contrário.

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