Cristandade conceito pco 001

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Nesta Ediçao

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Revolução e Contra-Revolução

Escrevem os leitores

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Artes e Ambientes no processo revolucionário

Vidas de Santos São Francisco de Borja : nobre e Superior Geral da Companhia de Jesus

4 A palavra do Diretor

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s

Santos e festas do mês

Cultura

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Cochim e a colonização portuguesa na Ásia

TFPs en1 ação Ili Congresso de Correspondentesesclarecedores

7 A realidade concisamente O escorpião, o sapo eo MST

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a

Atnbientes, Costumes. Civilizações

A palavra do sacerdote

O milagroso quadro de Nossa Senhora de Genazzano

Esplendor do Vaticano e revolta de Lutero

10 Internacional Ao invés de unificação, "liqüidificação européia"

13 Capa Cristandade: características predominantes

1° de outubro: festa litúrgica de Santa

Teresinha, canonizada em 17-5· 1925, na Basílica de São Pedro, em Roma. À direita, pintura de Soeur Marie du Saint Esprit, carmelita de Lisieux, repres entando a cerimônica. As relíquias da Santa estão percorrendo as paróquias do País durante o ano de 1998.

C AT O L IC ISMO

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Ao Leitor ESTA EDlÇÃO em que se comemora o terceiro aniversário do passamento do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, publicamos um estudo por ele redigido no início da década de 50. É uma pequena homenagem ao insigne inspirador e sustentáculo de Catolicismo. Suas múltiplas e intensas atividades impediram-no de conc luir este estudo, o qual permaneceu arquivado até seu falecimento. Devido a essa circunstância, o texto original que hoje trazemos a lume apresenta um caráter de esboço em muitas de suas passagens. Entretanto, é ele de um grande valor intelectual e moral e certamente será de enorme utilidade para nossos leitores. *

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*

O poder infinito de Deus criou todos os seres desiguais, cada um refletindo, a seu título e de modo único e inconfundível, perfeições divinas. Esta regra se espelha com grande brilho no fundador da TFP. Qual era esse modo de ser, único e inconfundível, de Plinio Corrêa de Oliveira? Quando se tenta descobri-lo, ficase embaraçado, tal a riqueza de personalidade e de valores morais e intelectuais que ele manifesta. O presente ensaio, contudo, nos revela importantes elementos desse modo tão peculiar e tão elevado de ser. Esse algo, o próprio Doutor Plinio o sintetizava como sendo uma visão harmônica, arquitetônica, hierárquica e mornárquico-aristocrática* da Criação, ressaltados os pontos que a Revolução mais procura combater. Desde muito jovem voltou-se e le para a admiração entusiasmada das ruínas da Cristandade. A partir delas, subia para a consideração de grandes verdades metafísicas e depois até as realidades sobrenaturais, a Nossa Senhora, ao Sagrado Coração de Jesus e aos esplendores do Padre Eterno. Contemplava as realidades naturais com olhar calmo, inocente e hierarquizante. Depois as descrevia com linguagem nobre, rica, mas precisa, clara e límpida.

Essas considerações transmitidas por ele, como que evocavam Adão no Paraíso, contemplando tudo o que Criador ali pusera, compreendendo a fundo a razão de ser de cada coisa, dandolhe um nome, para depois, ao entardecer, entreter-se com Deus que vinha visitá-lo. Essa mesma contemplação levava Doutor Plínio a enfrentar os erros gerados pela Revolução, que ele tanto combateu. De um lado, o materialismo: quer na sua versão socialo-comunista, segundo a qual o universo material e social só existe para satisfação das necessidades básicas do corpo do homem-massa; quer o materialismo pragmático, que visa exclusivamente satisfazer os caprichos arbitrários e sensuais do homemhedonista. De outro lado, no extremo oposto, - que foi igualmente objeto de sua análise crítica - a falsa piedade que confina a religiosidade aos templos e sacristias, apresentando-a como uma experiência subjetiva, emotiva ou sensitiva. Segundo tal concepção da piedade, excetuados escassos eleitos favorecidos por fenômenos místicos extraordinários, a esmagadora maioria dos fiéis deve vegetar mediocremente, na cinzenta banalidade da existência quotidiana. Ambos ex tre mos convergem num ponto: a atividade social e terrena do homem comum deve restringir-se a urna vida sem horizontes nem transcendência metafísica ou sobrenatural. Plínio Corrêa de Oliveira indicou e realçou o ponto de equilíbrio, que con-

* Por "111011árquico-aristocrático" o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira não se referia principalmente aqui a um tipo de regime político; sua concepção era incomparave lmente mai s ampla e abarcaliva. Era toda a ordem do Uni verso que ele via desigual e hierárquica nos seus elementos constitutivos e obediente ao princípio de unidade em sua organização.

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Contraste arquitetônico chocante na Viena atual: a revolucionária Torre Danúbio - emissora de TV e restaurante - aparece atrás do belo edifício neogótico, quartel general de polícia da cidade

testa e elide ambos exageros. Ele atraiu a atenção de seus contemporâneos e dos que os sucederem para a reta contempl ação da ordem temporal, a qual fo i instituíd a pe lo Criador prec ipu amente para que os homens, medi ante ela, conhecessem, amasse m e servissem a Deus. Em Doutor Plínio sobressai uma de li cada e arguta sensibilidade que traz ao espírito as palavras de Santa Teres inh a: "[Deus] pôs diante dos meus olhos o livro da natureza". E além da natureza, eram obj eto co nstante de sua contempl ação enlevada as obras que fruti ficara m da c ivilização cri stã. Senti a-se também ne le a fo rça de pensamento ha urid a e m S a nto To m ás d e Aquin o, ao explicitar suas percepções e intelecções , erigindo como que uma catedral de doutrin as que se lançava aos céus, num élan de entusias mo amoroso. Integrava igualmente sua 1ica personalidade uma nota inconfundível de lógica in ac iana, que punha os frutos de tal contemplação e amor em ordem de batalha contra a Revolução gnóstica e igualitária. Merece ser ressaltado aqu i que Santo In ácio de Loyola, fundador da Co mpanhi a de Jesus e colun a da Contra- Reforma, fo i o autor dos célebres "Exercícios Espirituais ", nos qu ais ocupa saliente papel precisamente a conte mpl ação de cenas da vida terrena de nosso Rede ntor. Cabe ainda faze r um a menção ao caráter "ministerial " da ordem te mporal e m re lação ao plano espiritual, que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira ressalta no fi m do mencionado ensaio, referindo-se à "noçâo da Sociedade temporal ministra da Igreja". O qu e abre perspecti vas para a comp reensão da "Sociedade temporal sacra/". Tese esta ve ntil ada por Santo Tomás ao afirmar: "Os

poderes seculares, quando aplicam penas para coibir o pecado, nesta tarefa são ministros de Deus: segundo o que se afirma na Epístola aos Romanos, 13,4: [O Poder Público] , mini stro de 14

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Deus, vingador para castigo daquele que pra tica o mal" . (II Ilae, q. 19, a 3, ad 2) . O ensaio que ora vem a lume constitui uma fund a me ntação da cé lebre seção qu e D o uto r Plínio manteve du ra nte muitos anos em "Catolicismo", intitul ada "Ambientes, Costumes, Civilizações", a mais prec iosa e orig in al e m toda a hi stóri a de nossa revista. A época em que o fundador da TFP redigiu o presente trabalho co inc idiu com a publi cação das prime iras seções de

"A mbientes, Costumes, Civilizações". Nas idéias esboçadas neste ensaio encontrase a medul a do verdadeiro co nce ito de Cri standade e a mais profund a razão da luta que a TFP e mpree nde e m defesa da c ivili zação cri stã. Tais idé ias constituem igualmente este ios da mag na obra de Doutor Plíni o, Revolução e Contra-Re volução , escrita poucos anos depois. E m Cristandade d es po nta a in da a futur a ex plicitação , empreendida pe lo Autor, da necessidade e da beleza das desigualdades soc iais harmônicas e proporcionadas, contidas e m seu último livro: Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XI/ ao Patriciado e à No-

breza Romana. Por fim , o leitor também e nco ntra rá neste estupendo ensaio a explicação mais profunda da luta empreendida pelo Prof. Plíni o Corrêa de Oli ve ira, e com ele pela TFP, tanto contra as re formas de estrutura soc iali stas e confi scató ri as, qu anto cont ra os fato res de conupção moral co ntem po _ ra neos , tais como o aborto, o "casamento" homossexual, a imoralidade d a TV etc . A

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M a les esses que a Revolução igualitária vem desencadea ndo sobre O mundo pai·a . . , te n tai_ ext1 ng u1r o s ves tíg io s de c iv ili z·1ç ão c1·'s t. ' , 1 a, e s pec ia. lm ente nes te c o nvul s io nado e c ao' t·1co ·r·1111 d e m1 1e n1 0 . A

,

A Direção de Catolicismo


eATOLIeISMO

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"A ordem temporal é uma criatura de Deus, devendo dar mais glória ao Criador do que a lua e as estrelas. Por certo, perten cem à Igreja os meios próprios para promover a salvação das almas, mas a sociedade e o Estado possuem meios instrumentais para alcançar o mesmo fim". ULGAMOS útil anali sar alguns aspectos de uma das teses fundamentais da doutrina católica quanto ao problema das relações entre [a ordem] espiritual e a temporal, que é a "ministerialidade" * desta última em relação àquela. Parece-nos que o ambiente de nossos dias, de tal maneira inculca um a

As linhas do Shopping-center da capital de Porto Rico, San Juan, refletem o espírito materialista e frio da arquitetura moderna

* Notada Redação: Minister, e m latim, signifi ca servo, servidor; mini steri alidade signifi ca pois, aquele qu e serve; ou seja, a ordem temporal deve servir a des ígni os de De us e da verdadeira Igreja, a Igreja Católi ca, Apostóli ca, Romana, pois, esses des ígnios são mai s altos do que a orde m te mporal , que já se in sere m na ordem so brenatura l. Em out ros termos, a sociedade e o Estado de ve m se r, a se u modo , in s trum e ntos de santifi cação das pessoas, ajudando-as a atingir seu fim último que é alcançar o Cé u.



concepção materialista e puramente econômica da vida temporal, que exerce uma influência sensível no feitio de espírito, nos hábitos mentai s e nas tendências ideológicas de pessoas que, em tese pelo menos, se presumem fiéi s às grandes linhas do pensamento católico e até tomista. Tais pessoas teriam menos dificuldade em aceitar a posição da Igreja sobre a ministerialidade do temporal se se lembrassem bem exatamente de todo o conteúdo humano [ou seja, material e espiritual] da esfera temporal. Para que esse conteúdo não apareça tão claramente a todos os olhos, têm concorrido - involu ntariamente é claro, e por motivos explicáveis - excelentes escritores.

exista] uma sociedade com todas as suas características essenc iais. Estabelecida nesta base [ada observação da vida quotidian a], a demon stração, além de irrepreensível , é altamente didática, pois versa sobre fatos claros, simples, palpáveis que se si tuam no âmbito da observação direta e pessoal de qualquer leitor. [Há, porém, outros argumentos a considerar].

con sequencia importa nte. Grande número de estudi osos se habitua a ver na soc iedade humana algo que ex iste única, ou pelo menos principalmente, para atender as necessidades físicas do homem. Não que esta convicção decorra de uma afi rm ação ex pressa deste ou daquele tratadista; mas ela se forma no subconsciente à maneira de impressão geral que, se não é lógica, é pelo menos

men te esse fe nômeno. Vivemos em um ambiente saturado de materiali smo, em que a todos momentos ouv imos op ini ões que só seriam verdadeira s ... , presenc ia mos ações que só seri am legítimas ... , somos postos em presença de instituições e costumes que só seriam razoáveis ... se a alma humana não ex isti sse. O ma ter ia li smo está imanente e subentendido em quase tudo quanto se passa em torno de nós. Não é, po is, de espant<u· que, tantas e tantas vezes, se veja este ou aquele católico - que estudou honestamente as linhas gerais da filo sofia moral e que leu em Santo Tomás ( De Regimine Principum, Cap. l) que a soc iedade temporal tem por fim remediar a insuficiência não só física mas inte lectual do homem de viver só _ tomar di ante dos problemas po líticos, socia is e eco nô mi cos com que se de fronta , um a atitude prática que pouco di fere da pos ição do materi ali sta ou agnóstico.

Quando se esquece da predominância da alma sobre O corpo 0 homem se embrutece e as sociedades se degradam

Conseqüências trágicas do esquecimento da supremacia da alma sobre o corpo

Verdade omitida: a sociedade humana deve satisfazer não só as necessidades do corpo mas também as da alma

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UTROS autores suste ntam a doutrin a de que a sociedade humana não ex iste em conseqüência de um pacto arbitrário estabelecido por certo número de homen s em eras que se perdem na noite dos tempos, mas é uma conseqüência espontânea, legítima e inelutável da própria ordem natural. [Eles] expõem detidamente, e com todo o esmero, os argumentos proporcionados à sua tese pela observação da vida quotidiana: necessidade da especiali zação e da colaboração para assegurar a subsistência material e o progresso; necessidade de uma autoridade para di rigir essa colaboração etc. É, pois, necessidade natural [e não apenas contratual, que 18

CATOLICISMO

Compreende-se que um autor, premido pela obsessão de resumir, que o correcorre hodierno impõe, passe por alto sobre outros argumentos, ou si lenci e mesmo sobre eles. É o que acontece não raras vezes com o argumento baseado no fato de que o homem é social pela natureza de sua própri a a lma, ab stração feita de qu a lquer nec e ss id ade do corpo. Em não poucos livros de toda espéc ie, feitio e tamanho, que põem ao alcance do público as linhas mestras do Direito Natural, esse argumento não é explorado em toda a sua riqueza. Decorre daí, na formação da mentalidade do leitor, uma Outubro de 199B

ex plicável. Pois se os argumentos mais insistentemente mencion ados, mai s largamente desenvolvidos, são os que se fundam nas necessidades materiai s, econômicas práticas, não é de surpreen~ der que se forme a noção de que a sociedade ex iste sobretudo para atender a tai s necessidades, e que aos poucos ~s fins da sociedade relativos a alma human a, passem do segundo plano para um olvido completo. Como dissemos, a atmosfera co nte mpor ânea é de molde a favorece r pode1osa.

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ENDO o homem consti~u_ído ~OI-· do is princ1p1os di stmtos, corpo e alm a, é claro que em tudo qu anto lhe di z respeito, será muito mais importante o que concerne à alm a do que ao co_rpo; pois o que é espiri tual e imperecível, vale mais do que O que é material e mortal. Toda a sociologia que procede dessa verdade deve dar 0 melhor de sua solicitude e atenção ao que di z respeito à alma humana, seu equilíbrio, seu bem-estar, seu desenvolvimento. Por mais interessan-


tese respeitáveis que sejam os problemas materiais, por maior que seja o talento, a diligênc ia, o vigor que se devam empregar em os resolver, cumpre nunca esquecer tal verdade fundamental. Evidentemente, não se trata de consagrar à vida material menos do que ela merece, pois o homem é homem e não um puro espírito angéli co. Mas, ainda quando se dê largamente à matéria o que se lhe deve, é preciso não romper a hi erarquia dos valores . [Não se pode] conceber os problemas materiais dissociando-os da realidade humana plena e total , isto é, de que temos também uma alma , e que e la va le mais , incomparavelmente mais que nosso corpo. O mundo moderno desconheceu esses princípios, elevou o corpo à altura de um ídolo, e negou a primazia da alma, quando não a própria existência desta . Tudo ele organizou como se o homem tivesse apenas corpo. O resultado está diante de nós: as neuroses, as psicoses , as perversões sexuais monstruosas, o existenciali smo, a

cacofonia da grande confusão de nossos dias. O livro deAlexis Can-el ["L'homme, cet inconnu. ", O homem, esse desco nhecido] - ao qual haveria ali ás restrições a fazer - já se vai tornando velho, mas pode ser relido com vantagem pelos que desejam informar-se sobre o que está custando ao homem essa subestimação ou negação da alma, no progresso técnicomaterial de nosso século. Trata-se pois - e muitos o reconhecem - de restabelecer o primado do espiritual. Mas para que tal intento não fique apenas no mundo das afinnações sonoras, e se transforme em uma ação palpável , de fins definidos, cumpre investigar no que consiste, bem exatamente, o papel do espiritual na vida que o homem leva em sociedade.

A sociedade dos homens deve espelhar~se na sociedade angélica

e

ONSIDERADA a alma humana em sua natureza, suas potênc ias, sua atividade, em que sentido pode ela ter uma vida social? Um campo da vida socia l, compreendendo relações puramente espirituais de homem a homem, pode parecer situar-se em altura tão etérea, que nada de definido e de útil se possa dizer dele. Essa impre ssão dissipar-se-á caso recorramos ao que a Igreja nos ensina sobre os Anjos . O Anjo é um ser puramente espiritual, criado para conhecer, amar, louvar e servir a Deus. Sendo esta a sua única razão de ser, é para tal Painel da Anunciação (detalhe) - Fra Angélico (séc. XV), Museu do Prado, Madri

fim que se ordenam todas as suas potências, todas as suas inclinações natu rais. E é para esse fim que o ilumina e o s ublima a graça, quando o e leva à ordem sobrenatural , dando-lhe a visão beatífica e o amor sobrenatural. O Anjo tem, pois , necessidade de uma sociedade: a de Deus. E não poderia viver na ignorância do Criador. Mas esta sociedade lhe basta por dois motivos . Primeiramente, porque Deus é a própria pe1feição, e quem O possui não tem necessidade de mais nada . Em segundo lugar, porque a nat ure za do Anjo se ordena para Deus e só para Ele. Em rigor, é tal a natureza de um puro espírito, que Deus poderia ter criado só a ele, ou ter disposto que ele não conhecesse outro ser, senão o próprio Deus. O Criador constituiu entretanto de outro modo a criação angélica. Quis Ele que os Anjos se co nhecessem uns aos outros, estabe lecendo, pois, entre si, uma vida social que, evidentemente, é toda espiritual.

Os Anjos enriquecem seu conhecimento de Deus ao contemplar o Universo criado

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STA vida social, e ntretanto, tem Deus por objeto último . Pois nos conhecimen tos que os Anjos comunicam un s aos o utro s, tra nsmitem o que cada qual pode anunciar de Deus. De tal sorte que cada Anjo tem todas as operações de suas potências apl icadas em Deus de dois modos: um direto, na medida em que tem comércio imediato com Ele; e outro mediato [ou indireto], e nqu anto se comunica

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com Ele por meio de outros Anjos. Assim eram as coisas antes da criação de no sso universo [material]. Quando este foi criado, seu conhecimento foi patenteado aos Anjos. E como nosso universo à sua maneira também anuncia as grandezas de Deus, os Anjos adquiriram, em cada ser material criado, objetos de conhecimento que os conduzem, por suas vias próprias, a Deus, objeto único , constante, de todas as operações angélicas.

São Francisco de Assis contemplando um beija-flor, que cântico de agradecimento e louvor a Deus entoaria o Poverello?

Por onde a consideração do sol, do chu visco ou do trovão elevava a Deus o Salmista ... , ou por onde uma flor ou um pássaro elevava a Deus um São Francisco de Assis ... , ou ainda por onde as maravilhas do átomo podem elevar a Deus o homem moderno .. . o Anjo as conhece e as utiliza corno vias para Deus. Quem poderá jamais nesta vida terrena - senão a Santíssima Virgem - retraçar o que é a meditação e o amor de um Anjo, que conhece todo o nosso Universo, até o menor de seus segredos? Num só olhar [o Anjo] vê a pulsação simultânea da v ida

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em todos os seres; e [também] o movimento incessante e misterioso da matéria nos espaços incalculavelmente grandes em que se movem os astros [ou] nos espaços incalculavelmente pequenos em que giram os universos e as constelações dos átomos. Em tudo [o Anjo] discerne a Sabedoria Eterna, o Poder absoluto e inabalável, a perfeição do Amor "que move o sol e as outras estrelas".

O Anjo não é apenas contemplativo , mas, a seu modo, tem natureza ativa. Ele é um guerreiro de Deus

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ALAMOS mais detidamente do conhecimento e do amor. Uma palavra sobre o louvor e o serviço de Deus. Feito .para louvar, o ser angélico é de uma natureza por assim dizer exclamativa. O conhecimento e o amor não se perdem sem ressonância nas augustas profundidades de seu próprio ser. Ele transmite, comunica, expri-

me o que lhe vai no íntimo, por um dever de justiça e de amor para com Deu s, sem dúvida, mas também por um impulso de sua própria natureza. Daí o louvor angélico incessante, cuja magnificência a Escritura nos manifesta tantas vezes, com termos e símbolos tão diversos. Feito para servir, o Anjo não é apenas contemplativo, mas more suo [a seu modo] tem natureza ativa. Ele comunica aos outros o que conhece de Deus - é um serviço docente. Ele é o agente da vontade de Deus na direção do Universo, pois é por meio dos Anjos que Deus governa a criação visível. E esta ftmção executiva comporta um aspecto militante, pois ele é o guerreiro de Deus, que antes dos séculos abateu Satanás e os exércitos rebeldes, e hoje combate o inferno, protege os fiéis e a Igreja na luta contra o poder das trevas. Eis , pois, o que o Anjo faz por sua própria natureza; o que ele faz como membro da sociedade angélica; e o que a sociedade angélica faz

em seu conjunto, e nquanto sociedade, segundo o impulso e o desígnio de Deus.

"A alma humana é tão sociável que realizará seu destino eterno numa vida social que terá objeto puramente espiritual"

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SSAS noções relativas à soc ia bilid ade e à vida social dos Anjos são aplicáveis à alma humana, enquanto esta também é, em si mesma, inteiramente

espiritual. Porém , in correríamos em grave erro se, fazendo a transposição dessas noções do reino angélico para a sociedade terrena, não tomássemos em consideração que a alma human a foi criada para viver ligada a um corpo materia l, destinado a fazer com e la uma só pessoa; e que, pois, toda a natureza espiritual da a lma humana se ordena a tal consórcio com a matéria, e só neste consórcio encontra se u modo de ser e de agir inteiramente normal. Tão íntimo é tal consór-

A~ima: Coroação da Virgem no

Ceu -:- Fra Angélico (séc. XV), ~alerta dos Ofícios, Florença. A esqu_erda: Juízo Final (detalhe: os eleitos) - Fra Angélico (séc. XV), Museu de São Marcos Florença (/tá/ia). Mesmo no C~u os b'!m-aventurados viverão em sociedade

cio que, no período e m que [depoi s da morte do homem] a _alma viver [no Céu] dissociada do corpo, à espera da ressurreição, encontrar-se-á nu~ estado de anomalia, por assim dizer de violência certam~nte indolor porqu~ gozara da felicidade celeste,

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Admirando um desfile militar, como o que se vê à direita, em Londres, o observador como que assimila em sua alma o que nele há de belo

mas, em todo o caso, de violência autêntica que só aressurre ição fará cessar. Qu ando nossa a lm a reassumir o pró prio co rpo , não o fará co mo quem vo lta a um cárce re , m as co mo qu e m re adquire jubilosamente a pl enitude de si mesma. Para considerarmos a parte do espírito e da matéria nas operações es pec ificam e nte espirituais do homem, e pois na soc iabilidade e na vida social de sua alma, lembremos antes d e tudo qu e " 11 011 habemus hic civitatem " [nossa morada não é nesta Terra] . Fomos criados para o mesmo fim que o dos Anjos, como eles fornos e levados à ordem sobrenatural. E naq uela eternidade diante da qual a vida terrena é um mero instante, deveremos partic ipar da soc iedade espiritu al dos Anjos , contemplando, amando, louva ndo e servindo a Deus. Tal é a afinidade entre a natureza e as operações de nossa alma e as dos espíritos angélicos. Nosso corpo participará, é certo, dessas operações mas no estado de corpo glorioso, isto é, de tal maneira embebido, por ass im di zer, da espiritu alidade de nossa alma, e da graça de Deu s, que seu própri o modo de ser e de operar será como que sublimado para além do nível próprio à mera natureza humana e fi xado na imortalidade. Feitas es t as rese rv as [qu an to ao papel do corpo], vemos que a alm a humana é tão soc iável que reali zará seu destino eterno numa vida social que terá obj eto puramente espiritual.

Na Terra e no Céu o homem tem essencialmente a mesma finalidade: conhecer, amar, louvar e servir a Deus

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STO nos pode ajudar talvez a co mpree nder melh o r como se rea li za a vida, e mais espec ialmente a v ida soc ial da s almas , na ex istê nci a te rrena. E como esta vid a soc ial autênti ca te m por obj e to va lo res inte irame nte espirituai s. Se o nosso fim própri o é conhecer, amar, lou va r e servir a Deus, nossa natureza, máx ime enquanto e levada à ordem so bre na tural , deve te nder inteiramente para tal fim . Ou sej a, todas as nossas ati vidades mentais e físicas devem dirigir-se para o conhec imento da verdade e a prática do bem . Isto é real quanto à nossa natureza no Céu, mas também

na vida teITena, pois a natureza humana já é o que deve ser eternamente, e, poi s. suas te ndênc ias fundamentais já são o que eternamente serão. E como a vida terrena não pode ser co ntrária à nossa natureza, e la j á é, de algum modo, em sua substância, no que e la tem de mais intern o, esse ncial e íntim o - no pl ano nat ural co mo no pl a no so bre na tural - a mes m a vid a de co ntempl ação , amor, louvo r e serviço de Deus que tere mos no Céu.

O homem prepara~se para o Céu contemplando os reflexos de Deus nas coisas criadas ...

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E É NISTO que cons iste o esse nc ia l de nossa v ida te rre na, c umpre le mb ra r e ntretanto que o modo pe lo qual rea lizamos aqui ta is o perações diverge profundam e nte cio

CATO LIC IS MO

modo pelo qual as reali zaremos no Céu. Teremos na eternidade a v isão bea tífi ca, se m vé us nem obstáculos. Nosso amor terá atingido uma de finitiva pl e nitud e. Nosso lou vo r e nosso serviço serão sem j aça ne m desfalecimento. Na v icia te rre na, pe lo co ntrári o, estam os e m co ndi ção de prova . Temos dons naturai s e so bre naturai s a preserva r e a dese nvo lve r. Nossas ações - ainda as melhores - e, poi s, também nosso louvo r e nosso serviço, estão e ivados de imperfeições. Nosso modo normal de ser nos sujeita muito mai s à matéria , d o qu e quando nossos corpos ti ve re m sido trans fi g urado s pela g ló ri a. Tudo isto não obstante, é bem verdade que o home m , mes mo o mai s di ss ipado , contempla ativamente. Para nos darmos conta di sto, bastará qu e esclareçamos o que é concretamente, na v id a terre na e no plano natura l, uma contemplação. O qu e faz um ho me m qu and o se deté m no ca mi nh o para ve r passar um desfil e militar ou uma procissão re li g iosa, pa ra considerar um edifíc io o u um panorama, para observar uma ce na parti c ularm e nt e grave o u pito resca da v ici a quotidiana para ass istir uma peça ele teatro ? Co nte mpla , isto é , fi xa a ate nção so bre dete rmin ado obj e to , toma conhec im e nto ci o qu e ne le há ele ve rdade iro ou de falso. el e bom ou el e ma u: ace ita, co nsente , co mo qu e assimila e m s ua próp ri a a lm a a ve rdad e e o bem: ex pe ri me nta uma di sso nânci a, rej e ita , o pe ra co mo que um a purgação e m s i mes mo , do que a co is a lh e possa te r co munic ado ele mau.

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Te ndo di ante dos o lh os seres relati vos e contingentes, que têm em si o refl exo do Ser absoluto, o ho mem, pe los can a is dos se ntidos, considera nos seres contingentes algo que ex iste absolutamente em De us; como que se apropri a desse bem, no própri o ato em que o cons idera ; co nfi g ura- se a este bem. Em sum a, faz um ato caracteri sticamente co ntemplativo, embora marcado pelas co ndi ções in se paráve is des ta vida te rrena. Muitos ho me ns, infe li z m e nt e , ao reali zar tais atos de conte mplação , não se e levam de nenhum modo até Deus, e se detêm na frui ção ego ística e c ircun scrita ao ser re lati vo qu e têm diante de si. M uitas vezes, seu conhec ime nto é vic ioso, e dá acolhid a ao erro e não à ve rdade; a contempl ação os leva a ass imil ar o ma l e não o bem . É que , ev idente me nte , ass im como há co nte mpl ações boas, há també m co nte mpl ações más. São os triun fos cio mundo , ela ca rn e e do de môni o. Tudo isto não obsta nte , a ação qu e rea liza m é esse nc ialmente conte mpl ativ a, e mb o ra possa ser merame nte natural, e é um a afi rm ação el e qu e há no homem uma in sopitável ve ia de co nte mpl ação. Essa co ntempl ação traz necessari amente como conseqü ênc ia o louvo r, o u sua antítese que é a bl as fê mi a, po is na Terra· co mo no Céu, como no in fe rno, o homem é, como di ssemos, excl amati vo, isto é pro penso a co muni car o que lhe va i na a lm a. E leva ao serviço, po is o hom e m na tu ra lm e nt e se r ve aquil o a qu e ama, a C idade ele Deus ou a C idade cio Demôni o, a verdade o u o erro , o bem o u o mal. 22

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É por esta fo rm a qu e a alma hum ana rea li za desde j á, nesta Terra, para a sua salvação ou para a sua condenação, as grandes operações que é levada a rea li zar por toda a eternidade. Cl aro está que es ta co nte mpl ação, na medida e m que é fe ita à lu z ela Fé, é uma operação animada pela graça.

... recebendo o impulso para conhecer, admirar e se relacionar com outros homens

D

O QUE fi co u dito , resulta a evidente necess idade que tem a alm a hum ana de ent ra r em contato com objetos ex ternos sobre os qu ais possa exercer sua ati vidade. A carênc ia hi potética ele tai s obj etos de ixari a na atrofi a suas potências, e redu ziria sua vicia ao simples fa to ele ex istir. Ass im como o corpo huma no se pode a lime ntar a pão e ág ua, mas adoecerá se passa r longo tempo só co m es tes alimentos, ass im també m a alm a humana não se pode a limentar na mera consideração de um obj eto, o u ele um número muito pequeno ele obj etos. Su as o perações e m ta l caso ultrapassa ri am, é c laro, as fronte iras cio simpl es ex istir, mas levari am a alma a um operar tão de fe ituoso que da í se lhe seguiri a um desequilíbrio. É o caso ele certos operári os, fo rçados por sua profi ssão a pe rm anecer horas inte iras com a atenção voltada sobre um mesmo fa to simpl es, pobre, quase asfi xiante: um sin a l lumin oso , po r exe mpl o, c uj o ace nd e r o u apaga r mais ou menos irreg ul ar se trata ele registra r ele minuto em minuto sobre uma fo lh a de pape l, du ra nte IOou

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12 horas ele trabalho quotidi ano. Certas constitui ções me nt a is excepc io na lm e nte bem dotadas poderi am, qui çá, refazer-se deste trabalho por um a di spersão da atenção em horas de laze r. Ou tra s, po ré m , s uc umbiriam por uma como que ane mi a. Nossa alm a fo i fe ita para a consideração do Universo, de todo o conjunto ele seres sobre os qu ais nossos sentidos te nde m no rm a lm e nte a se aplic ar. Destes seres, o qu e oc upa o lugar centra l na ce na, o que do mina os outros , o que de certo modo os co mpendia a todos e m si. é o pró pri o home m. A alm a humana. naturalmente criada para considerar o Universo, é por isto mesmo propensa com a maior vee m ê nc ia, pe lo impul so mais profundo e mais obstinado de todo o seu ser, à contempl ação do que o Uni ve rso te m de mai s essencial: os out ros homens. Todo o Paraíso, com suas delíc ias. era in adequ ado ao ho me m antes da cri ação da mulher: " não era bom'· que ne le o home m ficas se só. Nes ta prope nsão essencial do ho mem para reali za r na Terra o que fará 11 0


Céu, está incluída a necess idade de co nhecer e to mar contato com outros homens. E ni sto está, do ponto de vista da alm a - isto é do mais importante dos pontos de vista atinentes ao homem - a ve rd adeira necess idade da vida soc ial. As funções de conhecer, amar, louvar e servir a Deus no espelh o da cri ação eleve m natu ra lmente ter nas co ndi ções da vid a terrena, co mo obj eto mais constante, mais ri co, mais vivo, mais direto, aq ue les cuj as alm as são a própri a im agem e semelh ança de Deus.

Contemplando, por exemplo, um belo cristal, pode~se compreen~ der as excelências de Deus

e

OMO se reali zam essas operações? Co nh ece ndo me lh or o próx im o, que é a semelh ança de Deus, conhece mo- nos me lhor a nós mes mos e ao própri o Deus. Ass imil ando em nós as virtudes do próx imo, e nriqu ece mos nossa

alma com algo que lhe é de todo em todo conatu ral, e que co m alto teo r de rea lidade reflete a Deus. Assi m, é certo que podemos ter alguma idéia do amor, considerando a proteção que a galinha dá a seus pintainhos, e com isto podemos crescer em virtude. Mas muito mais [perfe ita] será nossa idéia, muito mais dec isivo normalmente o estímul o, [se] co nsiderarmos uma mãe protegendo seu filho. Isto, quer para fo rmarmos uma idéia do amor hu mano, quer principalmente do amor divino. A co nte mpl ação não é apenas conh ec iment o, mas amor. Urn a el as afirma ções mais quentes e mais irres istíveis de nossa soc iabilidade es tá nes ta necess idade de amar e de ser amacio, que é in se paráve l el a natureza el e cada homem. Nosso amor se volta para as co isas do reino mineral. do reino vegetal, do reino animal com alguma adequação. Podemos amar um belo cristal que encontramos à flo r ela terra du rante um passeio; mais adequadamente amamos uma planta, uma rosa por exemplo; a palavra amor se torna rica de um sentido maior quando ela tem por obj eto um animal, por exemplo o cão, companh e iro fi el nos bons e nos maus di as. Mas ele só é propriamente amor quando tem por objeto um ser de nossa espéc ie. Este último amor, incomparave lmente maior do que os outros que acabamos de enumerar, nos dá uma idéia do amor que devemos Àquele que é o Ser absoluto, o Ser por excelência, o Ser que contém em Si substancialmente todas as perfe ições. A co nte mpl ação não é mero conhecimento, nem mero amor: ela é também ass ie

A TOLIC ISMO

mil ação. Pois o própri o do amor é produzir a assimilação entre dois seres. Por isto, notase no homem, como um dos traços mais essenciais de sua natureza, um a pro fund a iníluenciabilidade por outros homens, mas espec ialmente por aqueles a quem admi ra. Imitar é uma tendência própri a a todos e está longe de ser, em si mesma, coisa degradante ou ridícula. Pode have r imit ações que têm por obj eto pessoas indi gnas . Pode haver imitações qu e têm por objeto pessoas di gnas [mas] cuj as propri edades alg uém proc ure Amor materno, reflexo criado do amor divino

ass imil ar ele modo excess ivamente exato, e, pois, naquilo que é inconfundível em uma pessoa e intransponíve l para outra. São os erros que ex istem na operação ele imitar, co rno em qualquer outra operação hum ana. Mas , em si mes mo, imitar, ass imil ar, é urn a fun ção legítim a, constante da me nte hum ana, é uma sati sfação às ex igências mais pro fundas de nosso ser. Outubro d e 19 9 8

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Se assimilamos o que devemos, se imitamos a quem devemos, aperfe içoamo-nos e aumentamos nossa semelh ança com Deus, refletido no espelho de suas criaturas. Imitar, servir de exemplo, são obri gações de cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento da alma, inerentes profundamente à vida social das almas. São maneiras dispostas pela própria Providência, e dotadas por Ela de eficácia relevante , para o exercício das potências da alm a, desenvolvimento do espírito, e conquista daquela perfeição que é a veste nupcial com a qual nos habilitamos para o perfeito festim da alma, que é a perpétua contemplação de Deus.

No desenho acima, o filho pequeno já imita a profissão do pai: fotógrafo. Na foto abaixo, o traje e seus ornatos acentuam a expressão corporal do Imperador austríaco Francisco José

"Realizar dentro do mero campo natural uma como que transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma "

e

OMO se dá este comércio entre as almas? Em outros termos, como vivem elas sua vida social? Quando duas pessoas estão em contato entre si, por mais qu e sejam desiguais em inteligê nc ia, instrução ou força de persuasão, estão

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e ATo LIe Is Mo

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em condições de exercerem recíproca influência uma sobre a outra. O corpo humano é um instrumento maravilho so para a ex pressão da alm a. Todas as nossas idéias, mesmo as mai s abstratas, todas as nossas emoções, mesmo as mai s suti s, são susceptíveis de uma expressão adequada pel a ação primordi al da palavra em si me s ma , comp le tada e e nriqu ecida pel a inflexão da voz, pela exp ressão do o lh ar, pelos gestos, pela atitude do corpo, pelo porte e até pelo modo de andar. Virgílio nos diz que pelo simples modo de andar, Dido se mostrava uma Deusa: "et incessu patuit Dea ..." O poder ele expressão ele seu corpo, o homem o acentua pelo traj e e pelo ornato. Este poder chega a ser tão grande, que passa às vezes e, a li ás, erroneamente, por irresistíve l. Qu ando esta tran sparência da alma em todo o modo ele agir e ele ser cio corpo se torna nítid a, e sob ret ud o quando tal trans parência reve la uma alma firme , clara, lógica, recon hece-se estar em presença cio que se chama uma personalidade. Ter personalidade, ser uma personalidade, é ter uma alma bastante desenvolvida para diri gi r, influenciar, brilhar em todo o corpo material. É reali zar dentro cio mero campo natural uma como que transfiguração ela matéria pel a ilumin ação inte rior da alma, que é uma prefigura meramente natural , mas esplêndida em si mesma, da transfiguração sobrenatural , incomparavelmente mai s radiosa e mai s nobre, que os corpos gloriosos terão no

Céu , e de que Nosso Senhor no Tabor, e também algu ns Santos, nos têm dado uma visão ensível nesta Terra de ex ílio.

As disposições da alma não só se irradiam ao corpo, mas se comunicam aos objetos sobre os quais o homem exerce sua influência

A

ALMA não se exprime só através cio corpo. As formas, as cores, os so ns, os odores, os sabores tê m um a a nalogia que não é meramente co nvencional com as di sposições ela alma humana. E por isto as palavras que servem para designar estados da alma humana são correntemente empregadas para designar, por a nalogia, propriedades de seres animais, vegetais ou minerai s. Pode- se fa lar do cântico alegre de um pássaro, do aspecto risonho de um bouquet ele flore s, ou sim plesmente de um panoram a; e isto do mesmo modo por


que se fal a do ri so alegre de uma jovem ou de uma criança. Pode-se fal ar da majestade de um Rei, como da ág ui a ou do trovão. Os exemplos disto poderi am ser multiplicados quase ao infinito. Dado este fato, pode o homem aplicar sua ação sobre os seres inferiores, comunicando-lhes uma certa expressão. Assim, é certo que as espécies animais domesticadas pelo homem recebem dele como que certa amenidade de comportamento, certa compostu ra, que os di stingue dos congêneres selvagens por diferen ças muito semelhantes àquelas que distinguem o homem civilizado do bárbaro. Ce rtos a nim ais, gatos angorás ou lulu s da Pomerânia por exempl o, tomam uma como que di stinção evidentemente afim com os ambientes humanos e m que vivem. Um a ação do mesmo gênero pode também ser desenvolvida pelos homens sobre certas plantas , nas qu ais se di stin g ue m as espéci es selvage ns e as c ulti vadas , antes diríamos as cultu radas. Certa expressão de alma, o homem pode até comunicála a seres perfeitamente inanim ados: qu a nd o faz, por exemplo, um qu adro que terá um a expressão qu e de nenhum modo preex istiu na tela, no pincel ou nas tintas . E tal é a alm a humana, que o próprio do homem é comunicar uma tal ou qu al expressão a todos os obj etos de que se cerca. Porque somos feitos de alma e corpo, queremos que os objetos que nos servem ao corpo falem tam bém à alma. Um móvel cômodo é o que serve só ao corpo : um móvel elegante é o que serve também à alma. Um tecido resistente, agradável ao tato, adequado ao cli-

Na página anterior: A águia externa analogicamente no mundo animal, a virtude da majestade, enquanto certos gatos domesticados assumem uma distinção afim com os ambientes em que vivem. Abaixo: o feio, o agressivo, o revolucionário refletem-se em todos os elementos - móveis, lustres, paredes, etc. - de um apartamento em estilo moderno

ma, sati sfaz ao corpo. Mas a alma te m ex igências próprias e pede que ele sej a belo.

Ambiente: quando entramos numa sala, parece sentir-se a personalidade de quem a decorou

A

S OBSE RVAÇÕES

ac im a nos condu zem a uma noção essencial , que é a de ambi ente. Qu ando às vezes entramos numa sa la, parece- nos se ntir a pe rso na lid ade de que m a deco rou. Di ze mos qu e te m a mbi e nte. O qu e quer di zer aí ambi ente? É a expressão de alma que, pelo jogo das fo rmas e das cores, uma pessoa conseguiu comunicar a obj etos materiais. Nisto, como e m tudo, o homem imi ta Deus. Q uando

Beleza, suavidade e tonus aristocrático no interior da resldlncla do Prof. Pllnio Corrêa de Oliveira


Objetos como a cômoda francesa do século XVIII, ornada de laca japonesa (à esquerda), o elegante sapato inglês da mesma época (acima), a manta italiana confeccionada em fins do século passado (ao alto da página) e os copos de cristal (direita) favorecem o progresso espiritual do homem

conte mpl amos ce rtos panora mas m arítimos, qu a ndo à no ite o lh a mos p ara o céu, sentimos um a ex pressão de a lm a qu e se despre nde desse mundo : é o a mbi e nte c ri ad o po r De us, e pe lo qu a l E le se exprime a nossos sentidos. Muito m a is fác il a inda nos seri a exemplifi car com os sons, os pe rfumes, os sabo res . S ão Pa ul o escreveu qu e o vinh o, be bid o c om moderação, a leg ra o coração do justo. A Igrej a se serve da mú s ica para fo rm a r nossa pi edade. O aroma auste ro do in censo lhe parece adequ ado a ser respirado por nós na oração. Pe lo contrári o, os seus mora li stas sempre nos pre muniram contra os pe rfumes voluptuosos e capazes de exc itar a mo leza e a lu xúri a. Co n s id e re m os agora o a mbi e nte e m re lação ao fim essenc ia l d a co nte mpl ação, que é condu zir-nos a De us . Se os estados de a lma são s usceptíve is de se ex primir

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e AToLIeIs Mo

ass im , está implíc ito que as virtudes e os víci os també m . Eles se ma nifestam com freqüê nc ia na face huma na, na inflexão da voz, no gesto, no andar. Eles são susceptíveis de marcar com sua no ta própri a tud o qu a nto o ho me m faz o u produ z.

Um ambiente não pode ser moralmente indiferente. Ou será bom, e favorecerá as almas, ou será mau, e agirá em sentido oposto

A

INT E MPER A N ÇA o u a te mpe ranç a de um autor não se nota só no fa to de ex pl o ra r [ou não] o nudi smo . O ritmo de uma música pode, e m si mesmo, ser lasc ivo; como a combin ação de certos perfumes, o u a co mplic ação de certos sabo res . A fa lta ele s iso não se ex prime só pe lo sentido elas pa lavras, mas pe lo desa-

Outubro de t 998

linhado do gesto, pe la extravagâ nc ia das linh as o u das co res d e um traj e, de um móve l, ele um edifíc io. N es te po nto, co mo e m o utros, o ho me m é suj e ito a e rro e pode tach ar de vo luptuosas o u desatin adas co isas que só lhe parecem ta is porque não está habituado a e las; n ão o b s ta nt e, um a ce rt a volúpi a o u ex travagâ nc ia pode estar realmente na coisa produzida ou fabricada por um ho me m vo luptu oso o u ex tra vaga nte. Se mpre que esta mos em presença de um "ambiente", prec isa me nte po rque e le exprime um estad o de a lma , [deve mos te r e m co nta que e le ] não pode ser mo ralmente indi fe re nte: o u será bo m , e favorecerá as alm as na cons ide ração e assimil ação de Deus; o u será m au e agirá e m se ntido o posto. Isto é o que se pode rá dizer da ho nestidade o u desonestidade natural dos ambien-

tes . Se rá líc ito caminhar mai s um pas o, e fa lar e m ambie ntes espec ifi cam e nte c ri stãos? Parece -nos que s im . A a lma hum ana, tocada pe la graça, adquire uma perfe ição sobre na tural que po r vezes se espe lha na face . A hag iografi a pulul a de testemunhos di sto . A Transfi o uº ração, o que foi senão isto? Ora, a pintura e a escultura pode m exprimir a lgo di sto . E certos e difíc ios, e m qu e estas esc ulturas e v itra is se e ncontra m , tê m co m estes uma tal harmo ni a, que parecem à sua ma ne ira ex primir a m esma irradi ação ela a lma humana mi sticame nte incorporada ª Nosso Se nho r Jesus C ri s-


to. O heroísmo dos cruzados fo i tipi ca me nte c ri s tão e, po is, di ve rso do hero ísmo meramente natural de um legionário romano. É possível considerar o ambiente fo1m ado numa paisagem por um possante caste lo medi eva l, sem ter a impressão de que algo de tipicamente cri stão nos toca a alm a?

O ambiente exprime o estado de espírito dominante

O

UANDO a vida social das almas é regul ar e intensa num determin ado grupo humano - uma fa mília di gamos, ou uma soc iedade - , co nstitui se nele uma como que alma coletiva, ou sej a, um conjunto de co nvicções , alg umas das qu ais prezadas como parti c ularm e nte importantes. C o nse qü e nte me nte, um a mentalidade coletiva, um estado de espírito comum exercendo um a influê ncia especialmente fo rte sobre todos os membros. [Nesse grupo] o vocabul ário se defin e pe lo uso mais insistente de certas palavras ou expressões que tomam por vezes até, dentro do grupo, uma tonalidade específic a. Não raras vezes, aparecem até neolog ismos. De o uu·o lado, o modo de traj ar, de fa lar, de comportar-se, todas as preferências pessoai s tendem a receber a marca dos princípios comume nte ace itos , e especi almente dos que são do minantes. Por fim , o ambi ente materi al se satura desta influê ncia e aos poucos o quadro físico - casa de famíli a, sede soc ial etc. - vai sendo transfo rmado de maneira a exprimir e le pró pri o o es píri to domin ante. Vári as soc iedades menores, form ando entre si como eATo

L I

eIsMO

que uma sociedade de soc iedad es - um conjunto de fa míli as num a cidade, di gamos - , podem manter um como que comércio espiritual comum, que form a o ambi ente mais genérico, poré m não me no s afirm ati vo , el a vida da cidade. O flo resc ime nto de um conjunto de vocábul os, de traj es, de hábitos loca is, a produção de obras de artesanato marcadas pelo es tado de espírito local e até de influências artísticas nitidamente locais, tudo isto é o resultante de uma soc iedade espiritu al harmô nica, definid a e ati va . Ev ide ntemente, poderíamos subir assim da cidade à reg ião, desta ao país, e deste por sua vez às grandes zonas de cul tura e de ci vil ização. Sem enu·ar no debate inesgotável sobre o sentido de civili zação, de cultura, de estilo artístico, chamemos aqui cultura social o estado de espírito coletivo, a alma coleti va, pe lo menos enqu anto fecundado e ordenado pelo trabalho intelectual e enqu anto ex istente como nota característica que marca também o u·abalho intelectu al. Chamemos c ivili zação o conjunto das in stituições, le is, costumes, enfi m todo o modo de ser coletivo, enquanto marcado pe la cultu ra. E lchamemos] estilo às manifestações da arte, enq uanto marcadas pela cultura, e, pois, necessari amente afin s com a civili zação. Chamemos ambiente social à impressão de conjunto exercida sobre o observador pela ação harmônica da civili zação, da cultura e do estilo, a transparênc ia defin ida, fo rte, inequívoca do estado de alma e dos princípi os doutrinários que são o que aquela soc iedade de almas tem de mais intrín seco . Outubro d e 199B

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A função contemplativa do homem nesta Terra normalmente se exerce apoiada no ambiente, na cultura , no estilo e na civilização gerados pelo interrelacionamento espiritual das almas na ordem temporal

N

ESTE sentido, podemos e devemos dizer que o ambiente, a cultura, o estilo, a civilização, isto é, os bens intrinsecamente mais altos da sociedade humana , são o produto da vida social enquanto sociedade de almas. Estes bens são indispensáveis ao modo de ser habitual das almas, e justificam por si mesmos, independente de outros argumentos - todos legítimos aliás - a existência da sociedade. Pois ninguém pode conceber um convívio humano que não tenda, por seu dinamismo próprio, a produzir estes bens . Nem [pode conceber] condições normais de vida para a alma fora de tudo quanto se possa chamar ambiente, cultura, estilo e civilização. No mesmo sentido, devemos ainda dizer que a função contemplativa do homem nesta Terra - aprendizado, prova e prenúncio de sua função eterna no Céu - normalmente se exerce com apoio no ambiente, na cultura, no estilo e na civilização. Poi s é com o auxílio de tudo isto que o homem melhor e mai s adequadamente ass imila ou rejeita os diversos aspectos do meio que o cerca. Ainda ne sta ordem de idéias, devemos acrescentar que a formação do ambiente, da cultura, do estilo, da

civili zação, consti tuem , embora produtos tipicam ente espirituais, objetos próprios da soc iedade tempora l. Pois é esta ultima noção que nos permitirá prosseguir em nossas re fl exões, chegando a uma perspectiva muito ampla, das relações entre a Igreja e a soc iedade civil.

As características da mentalidade humana se entranham harmoniosamente no ambiente, como a alma no corpo

M

AS ANTES de chegar a este ponto, co ns ideremos em suas mútuas relações os as-


pectos espirituais e materiai s da vida temporal. De que maneira se relacionam as ativ idades atinentes à fo rmação do ambiente, da cultura, do estilo, da civili zação com as demais atividades cuj a contextura fo rma a vida quotidiana dos homens e das soc iedades? Consideremos o ass unto na esfe ra limitada d e uma família. Por mais am bi e nte que e la te nh a, por ma is que sua vi da soc ia l-esp iritu al seja inte nsa, haveria um erro e m im ag in ar que cada um a das s uas at iv id ades é d iri g id a pela preocupação inte iramente consc ie nte , defi nida, intenciona l de form ar um estado de esp írito e de o defí-

nir. M uito di sto é fe ito com a naturalidade e a despreocupação com que o corpo respira ou o sangue c ircul a nas ve ias. No construir um móvel, faze r uma cortina ou escolher um quadro, as preocupações conscientes de ordem a b so lutam e nte práti ca, de caráter inteiramente ci rcun sta nc ia l, pod e m a té ter um pape l prepo nderante. Tudo isto não obstante, as fo rças mai s profund as d a alma cooperarão também, e deixarão sua marca no ato , sem que, muitas vezes, a própri a pessoa que faz o móvel, que esco lhe a cortin a ou o quad ro, o perceba. [S ão] afinidades naturais vigorosas e entretanto tão di scretas, entre as várias coisas adquirid as sucessivamente pelas diversas gerações de uma família. E que coexistem numa mesma casa, cujas carac terísti cas, e ntretanto reais e palpitantes da atmosfera doméstica, por vezes só as pessoas estranhas ao lar são capazes de notar. É o que explica a formação dos estilos. Nenhum deles é uma produção de gabinete, mas é obra de uma sociedade inteira. Os artistas não são propriamente os criadores do estilo em uso em urna sociedade, mas seus intérpretes, seus propulsores na linha em que se vai desenvo lvendo a própria mentalidade social. E é o que explica também que nos estilos verdadeiramente produ zidos por uma sociedade, o prático e o belo, os e lementos de utilidade física e as características de ex pressão mental se fundam tão harmoni camente. A v id a propri a mente mental se entre laça tão intimamente, se embebe tão profundamente , se entran ha tão indissociavelmente na vida material , co mo a alm a no

corpo. E é nesta interpenetração que está a garanti a da sanidade e da autenticidade de uma e de outra.

A sociedade temporal deve criar condições para o progresso tanto espiritual quanto material UAL destas atividades [a utilitária ou a mental] é a mais importante na vi da tem poral? Concretamente, isto equivaleria a perguntar, quando numa farnfLia se adquire um objeto - um armário, digamos - , o que é mais importante: que sirva para guardar roupas, ou que por seu aspecto acentue o poder de expressão do an1biente material do lar. Ou , em um país, ao fazer um Palácio da Justiça, o que mai s importa, é sua utilidade prática para o funcionamento dos órgãos da judicatura, ou a majestade e gravidade com que deve penet:rar o ambiente judiciário e exprimir a natureza mais íntima da função de julgar. Quando um objeto deve ter, por sua natureza, dois at:ributos, ambos essenciais, se um lhe falta, não vale nada. Em

O

e AT o LIe Is Mo

À esquerda: pitoresca casa camponesa da vila de Berchtesgaden (Baviera), Alemanha. Acima: no leque produzido artesan~lmente, o belo e o prático con1ugam-se harmonicamente

vez de escolher entre O armário materialmente útil e O "espiritualmente" útil ; ou em vez de escolher entre o Palácio só materi almente adequado e 0 Palácio só es piritualme nte adequado, seria O caso de começar por rejeitar um e outro. O homem tem o direito e o dever de ser sufic ientemente ex igente, para não se conte ntar com um o bj e to qu e preste maus serviços à s ua alma ou ao seu corpo. N ão queremos, po ré m , fu gir à questão que há pouco havíamos fo rmul ado . O fim imedi ato, próprio , natural de um armário não consiste em ser como que uma condensação de doutrina ou de mentalidade. Neste sentido, mais lhe importa guardar conveni e nte me nte roupas. Mas, como o serv iço prestado à alma vale mais do que o que se presta ao corpo, em certo sentido é mais importante a função educativa de um mobiliário do que seu as pecto prático. Outubro de t 998

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O Presidente-mártir do Equador, Gabriel Garcia Moreno, católico fervoroso, durante seu governo, exerceu em seu cargo uma função ministerial a serviço da Santa Igreja

O mesmo se deve di zer da sociedade te mporal , considerada como um todo. Sua situ ação não pode ser tid a por no rma l, senão quando fornece condi ções de ex istê nc ia e d e pro gresso sa ti sfa tórias tanto para a alm a quanto para o corpo. A rec íproc a influência e ntre as du as esferas leva rá mes mo os prog ressos obtidos e m cada urna a repercutir favo ravelmente no dinami smo pró pri o à o utra . Qualitativa me nte, e ntreta nto, é be m verdade que os benefíc ios d o esp írito impo rta m mais que os da matéri a. E por isto, e m qu e pese a cert a m e nta lid ade m ode rn a, importa mai s a um país ter um a

c ultura própria , um est il o pró pri o, costumes , instituiçõe , le is e m co nso nâ nc ia com o ambie nte nacio nal, do que uma perfeita canali zação de águas e esgotos. A A te nas do te mpo de Péricles brilhará para sempre no firm ame nto da Hjstóri a. A Atenas de hoj e, inco mparave lm e nte s upe ri or à o utra co mo comodidade m ateria l de vida, que le mbrança deixar á de si no futuro ?

A sociedade temporal exerce função ministerial a serviço da ordem sobrenatural, constituindo tal função instrumento útil e poderoso para a salvação das almas

T

RATA-SE, agora, de definir as re lações e ntre as fun ções da sociedade temporal , que acabamos de desc rever, e a Re lig ião . A Ig reja e nsi na qu e a vida terrena deve ser co mparada a um nov ic iado. O no viço deve adquirir os conh ec ime ntos e as virtudes qu e o to rn e m a pto para a v id a re l igiosa . O h o m e m deve adquirir na vida te rre na

os conhecim e ntos e as virtudes que o to rne m ap to para o Céu . Por virtude se e ntende o hábito de operar segundo a reta razão . O que supõe um conhecime nto dos ditames da reta razão. As operações a que se referem estes ditam es não são ape nas as exteri ores, mas as inte ri o res. Qualqu e r a to mera me nte inte ri or do home m, desde que tenha o consentimento da vo ntade, é susceptíve l de ser virtu oso o u não, conforme esteja em acor-

do, ou e m desacordo, com a reta ra zão. A soc iedade te mporal-espiritua l é dotada de uma ação poderosa sobre o home m para o levar a pôr a tos interio res o u exteri ores confo rmes à razão. E la pode, pois, ser me io útil para salvar ou para perder. As m a is a ltas m a nifesta ções da vida te mpora l se inserem , por sua própria na tureza, no â m ago do problema da salvação e a e le não pode m ficar de ne nhum mod o a lhe ias. Não é só pe lo co n-


curso das leis com que favo rece a Igrej a verdadeira e reprime o erro, que a sociedade te mporal pode servir à salvação . É pelas mil ati vidades espiritua is que constituem o que ela te m de melhor, isto é, o fa to de ser uma soc iedade de almas, sem o que ne m sequer ela seri a soc iedade. Dá-se pois com a soc iedade te mp ora l - mutat is mutandis - o m esm o que co m a fa míli a , soc ied ad e também e la natural, te mporal, mas destin ada pelo que ela te m de m ais v iscera l, a a tiv ida des qu e co in c id e m com as da Igrej a. Dada esta inte rpe ne tração profu nda de campos , desej ad a p e la Pr ov id ê n c ia , seria absurdo supor que De us não qui sesse urn a cooperação entre a soc iedade te mporal e a Igrej a . E, m ais, que nessa cooperação e ntre du as soc iedades intrinseca me nte desiguai s, o te mpo ral , na tura l, pe recível não esti ves se e m pos ição mini ste ri a l e m

relação ao espiritu al, sobrenatural , ete rno ; o fim próx imo e m relação ao fim último. Há nestas considerações base suficiente para se ir mais lo nge, sustentando que a soc iedade te mporal, m áx ime enquanto soc iedade de almas, não alcança a sua perfeição senão medi ante o Magistério e a graça de que a Igreja é depositári a. Mas isto nos levari a longe do nosso te ma.

A Igreja alcança grandes frutos em sua atuação quando instituições, leis, estilos etc. constituem um

ambiente católico

A

SO C IE DA D E te mpora l te m, pois, tanto qu anto a fa míli a, e mbora a se u m o d o pró pri o, um a fun ção de aposto lado a exe rce r na pró pri a esfera te mpora l, sob a in spiração e o mag isté ri o da Ig reja. Qual a importância real de sua contribuição, na obra da

salvação? Trata-se, é claro, de urn a contribui ção de caráter merame nte natu ral, pois só a Igreja é urna sociedade sobrenatural. Isto posto, pode-se e ntre ta nto suste ntar que tal importância é imensa. A Providência qui s que o ambiente de uma famíli a, de uma sociedade cultural , profi ss io nal, recreati va ou qualque r outra, o ambie nte de urna cidade, de urna prov ínc ia, de um pa ís exercessem sobre o ho me m uma influê nc ia natural profund a, da qual, é certo, e le pode libertar-se com o auxilio da graça, caso tal influência sej a má, mas que e m todo o caso atua e m seu íntimo poderosa me nte . A prova di sto está na ev idência dos fa tos . Onde as leis, as in stituições, os costumes, a cultu ra, o estilo, a c ivili zação constitue m um ambie nte profundamente católi co, a ação específica da Hierarqui a Eclesiás tica logra habitualmente g randes frut os, e a ação dos Sacrame ntos, da pregação, a irradi ação da san-

tidade dos M ini stros de Deus move as multidões. Onde pelo contrário tudo se lhe o põe, as d ifi c uldades para a ação da Hi erarqui a se to rnam imensas. São ve nc íveis, é certo, pois para De us nada é impossível. Mas atuam em s i mesm as de modo desfavorável. É o que expli ca que países inte iros te nham caído repe ntin a m e n te n a h e res ia, como a Ing late rra, o u as nações esca ndin avas: tod o o a mbie nte tinha uma nota apenas a pa re nte de cato lic idade . O que era ve rd ade ira me nte dominante, era a indife re nça, a tibi eza. Em sentido contrário, pode r-se-i a a rg ume ntar co m a ex pa nsão d a Ig rej a sob as persegui ções e seu afro uxam e nto de po is ele Co ns ta ntino . O argume nto é intrin secam e nte tão fr aco . que faz sorrir. Qu e m pode admitir que a Es posa M ística de C risto só sej a fec un da qu a ndo tratada a c hi batadas ..., qu e seus ve rdade iros be nfe ito res sej a m os Neros, e os Di ocl ec ia nos, e seus ve rd adeiros pe rseguido res S ão Luí s, S ão Fernando, ou Santo He nrique?


Coroa do Imperador Rodolfo li; desde 1804 Coroa Imperial da Áustria

Noção de sociedade temporal sacral

A

SOCIEDADE temporal, querida por Deus, ordenada por Ele, reali zando em si mesma uma obra que é de santifi cação, é uma soc ied ade santa , qu e te m um a fun ção sagrad a. [El a permanece] soci edade inteiramente natural como a fa míli a, mas como ela [é] traba lhad a a fund o pel a vid a sobre na tu ra l que borbulh a em seus me mbros . Sociedade santa e sagrada como o é a fa míli a cri stã, à qual convém tão bem a des ignação de santa, que até o seu víncul o constitutivo é um Sacramento instituído pelo própri o Jesus Cristo . Santo Império, Santa Rússia, Santa França eram antigamente designações correntes e perfeitamente legítimas . E ninguém estranhava que o óleo sagrado servisse como um Sacramental para ungir os

Insígnias imperiais do Sacro Império Romano Alemão, séc. XIV

Reis, que a sua investidu ra no poder temporal supremo se desse durante a Mi ssa, numa função essencialmente reli giosa, com a participação do Clero ; que a Cruz de Cri sto brilhasse no alto do símbo lo do poder temporal , que era a coroa; ou que o título mai s honroso do detentor supremo do poder temporal fosse um títul o reli gioso : Sacra Majestas, Rex Apostolicus, Rex Christianissimus, Rex Catholicus, Rex Fidelissimus,

CATOLICI S MO

Chegamos ass im à noção da soci edade temporal mini stra da Igrej a, que abre ampl as perspectivas para a noção d a sociedade temporal sacra!. Parece-nos que - se to dos os qu e se inte ressa m pe lo problema das re lações entre a soc iedade temporal e a Ig rej a ti vesse m be m cl aro no espírito que a palavra te mporal inclui a títul o capital imensos val ores espiritu ais, e qu ais sej am e les _ mais fác il lhes seri a compre ender a mini steri alidade do te mpo ral.

+

* Not a da

Reda ção: Esses títul os tão s ign ifica ti vos co rrespondi a m ao s pri ncipais mo narcas da Euro P_ª de então: Majestade Sagrada, titul o qu e correspon di a ao imperador do Sacro Imp éri o Ro ma noAlemão; Rei Apost6lico, ao Rei da Hun gri a; Rei Cristianíssimo ao Rei da França; Rei Católico, a; Rei da _Espanh a; Rei Fidelíss im o, ao Rei de Portu gal; Def ensor da Fé Rei da In glaterra . ' Obs: O título, subtítul o e intertítul os do prese nte ensaio são da redação. Igualmente são da redação os pequenos esc larec imentos colocados entre co lchetes [... ] para mais fác il intelecção do tex to.

Pintura do Rei Francês Luiz XIV a cavalo, o Rex Christianissimus (Rei Cristianíssimo)

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Defensor Fidei *. [E ninguém estranhava também] que os duques da Lorena - que se presumian1 reis de Jerusalém -cingissem uma coroa cujo diadema era feito de espinhos, ou que o Rei da Lombardi a tivesse em sua Coroa de Ferro um Cravo da Pa ixão de Cri s to. To do s es tes fato s atestava m a sacralid ade da sociedade te mporal e portanto do poder temporal , embora este fosse di stinto da Hi erarqui a Eclesiástica.

Outubro de 1998


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