Minha Vida Pública, Plinio Corrêa de Oliveira

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Minha Vida Pública Compilação de Relatos Autobiográficos de

Plinio Corrêa de Oliveira


2 [CONTRA-CAPA]

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA não nos deixou uma autobiografia. Entretanto, os traços fundamentais de sua admirável vida e obra podem ser delineados no imenso acervo de documentos que os compiladores destes relatos autobiográficos tiveram à sua disposição. Alguns desses documentos revelam aspectos inéditos e às vezes surpreendentes do prélio travado por ele, tanto no âmbito da Igreja quanto da sociedade temporal. A linguagem coloquial torna a obra de atraente leitura, pois o leitor é convidado a considerar os fatos segundo o olhar de Plinio Corrêa de Oliveira. Este livro nem de longe pretende esgotar os quase noventa anos de vida e setenta anos de militância católica desse grande batalhador. Com um senso da realidade que excluía qualquer ilusão, a sua atuação deve ser vista por dois prismas diferentes. O primeiro, a denúncia profética por ele feita da imensa conjuração progressista no interior da Igreja, que hoje atinge patamares insuspeitados. O segundo, o combate acérrimo e eficaz, sempre nas vias da legalidade, ao processo revolucionário que, dos séculos XIV e XV a nossos dias, visa à completa laicização e consequente descristianização da sociedade temporal. Sua vida foi inteiramente conforme aos princípios por ele fixados em seu livro Revolução e Contra-Revolução. A luz que emana dessa obra nos ilumina constantemente ao longo desta compilação.


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Responsabilidade editorial: Associação Instituto Plinio Corrêa de Oliveira Rua Maranhão, 341 Bairro Higienópolis São Paulo-SP CEP 01240-001 http://www.ipco.org.br Editora Artpress — Indústria Gráfica e Editora Ltda. Rua Visconde de Taunay, 364 — Bom Retiro 01132-000 – São Paulo – SP Fone: (011) 3331-4522 / Fax: (011) 3331-5631 www.livrariapetrus.com.br petrus@livrariapetrus.com.br Pesquisa, compilação e adaptação Enrique Loaiza Abel de Oliveira Campos Revisão Antonio Augusto Borelli Machado Gregorio Vivanco Lopes Projeto gráfico e arte final Luis Guillermo Arroyave

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Sumário SUMÁRIO............................................................................................................................... 5 ADVERTÊNCIA ...................................................................................................................... 11 SIGNIFICADO DAS SIGLAS DAS FONTES BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 15 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15 COMO FORMEI A MINHA MENTALIDADE............................................................................. 15 A) TEMPERAMENTO E FORMAÇÃO DAS IDEIAS: O AMBIENTE FAMILIAR .................................................. 15 B) NO COLÉGIO SÃO LUÍS ........................................................................................................... 23 C) INICIANDO A VIDA PÚBLICA ...................................................................................................... 24 PARTE I ................................................................................................................................ 28 DA PLACIDEZ DA INFÂNCIA AOS EMBATES NO COLÉGIO E NA FACULDADE ......................... 28 CAPÍTULO I ............................................................................................................................... 28 INGRESSO NO COLÉGIO SÃO LUÍS .................................................................................................. 28 CAPÍTULO II .............................................................................................................................. 32 ENTRADA NO MOVIMENTO CATÓLICO ........................................................................................... 32 CAPÍTULO III ............................................................................................................................. 38 NA LIDERANÇA DO MOVIMENTO MARIANO...................................................................................... 38 CAPÍTULO IV ............................................................................................................................. 41 FACULDADE DE DIREITO: DANIEL NA COVA DOS LEÕES....................................................................... 41 CAPÍTULO V .............................................................................................................................. 49 AÇÃO UNIVERSITÁRIA CATÓLICA DENTRO DAS ARCADAS .................................................................... 49 PARTE II ............................................................................................................................... 58 A LIGA ELEITORAL CATÓLICA E A CONSTITUINTE DE 1933/34 .............................................. 58 CAPÍTULO I ............................................................................................................................... 58 MUDANÇA DO QUADRO POLÍTICO E RELIGIOSO A PARTIR DE 1930 ....................................................... 58 CAPÍTULO II .............................................................................................................................. 60 COMO NASCEU A IDEIA DA LIGA ELEITORAL CATÓLICA (LEC) .............................................................. 60 CAPÍTULO III ............................................................................................................................. 65 FUNDAÇÃO E ATIVIDADES DA LEC ................................................................................................. 65 CAPÍTULO IV ............................................................................................................................. 71 INDICAÇÃO PARA CANDIDATO A DEPUTADO ..................................................................................... 71 CAPÍTULO V .............................................................................................................................. 79 PRIMEIRAS ENCRENCAS ............................................................................................................... 79 CAPÍTULO VI ............................................................................................................................. 88 A CAMPANHA ELEITORAL ............................................................................................................. 88 CAPÍTULO VII ............................................................................................................................ 91 DURANTE AS ELEIÇÕES ................................................................................................................ 91 CAPÍTULO VIII ........................................................................................................................... 97 PREPARATIVOS PARA A CONSTITUINTE ........................................................................................... 97 CAPÍTULO IX ........................................................................................................................... 101 INAUGURAÇÃO DA CONSTITUINTE ............................................................................................... 101 CAPÍTULO X ............................................................................................................................ 105 CONSTITUINTE: APERTA-SE O CERCO ............................................................................................ 105 CAPÍTULO XI ........................................................................................................................... 123 NO PÓS-CONSTITUINTE, CONVITES PARA CARREIRA POLÍTICA ............................................................ 123 PARTE III ............................................................................................................................ 134 PROFESSOR UNIVERSITÁRIO E ADVOGADO — PAPEL DO “LEGIONÁRIO” .......................... 134


6 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 134 AS TRÊS CÁTEDRAS................................................................................................................... 134 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 151 NO ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA ................................................................................................... 151 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 162 “O LEGIONÁRIO” (1935-1947) ................................................................................................ 162 PARTE IV ............................................................................................................................ 171 COMO FOI DESVIADO O MOVIMENTO CATÓLICO .............................................................. 171 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 171 OS INIMIGOS DA IGREJA COLOCAM A MÁSCARA DO SORRISO ............................................................. 171 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 172 NO TERRENO POLÍTICO: PRESTIGIA-SE O INTEGRALISMO E DESPRESTIGIA-SE AS CONGREGAÇÕES MARIANAS ............................................................................................................................................................. 172 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 177 NOS AMBIENTES CATÓLICOS, A INFILTRAÇÃO DO COMUNISMO E DA MENTALIDADE MODERNISTA ............. 177 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 197 DOUTRINA DO MOVIMENTO LITÚRGICO E DA AÇÃO CATÓLICA.......................................................... 197 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 206 MÉTODOS DE DIFUSÃO DESSA DOUTRINA E A EXPANSÃO DO MOVIMENTO: CARÁTER CONSPIRATÓRIO ....... 206 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 210 FAZ-SE O VAZIO EM TORNO DE DR. PLINIO E DO “LEGIONÁRIO” ........................................................ 210 CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 220 PAPEL DE DOM JOSÉ GASPAR DE AFFONSECA E SILVA NA ARTICULAÇÃO.............................................. 220 PARTE V ............................................................................................................................. 230 DOM JOSÉ GASPAR E DOM CARLOS CARMELO, SUCESSIVAMENTE ARCEBISPOS DE SÃO PAULO ............................................................................................................................................... 230 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 230 DOM JOSÉ GASPAR, NOVO ARCEBISPO DE SÃO PAULO .................................................................... 230 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 241 ESCÂNDALO PROGRESSISTA EM TAUBATÉ: PRIMEIRO GOLPE NO LITURGICISMO ..................................... 241 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 247 DEPOSIÇÃO DAS “CONSTRUTIVAS” .............................................................................................. 247 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 249 PADRE CÉSAR DAINESE: RELATÓRIO PARA O NÚNCIO ...................................................................... 249 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 256 O IV CONGRESSO EUCARÍSTICO NACIONAL EM SÃO PAULO ............................................................. 256 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 261 “EM DEFESA DA AÇÃO CATÓLICA”: LIVRO KAMIKAZE ...................................................................... 261 CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 276 O EPISÓDIO SVEND KOK ............................................................................................................ 276 CAPÍTULO VIII ......................................................................................................................... 281 COMEÇAM AS REPRESÁLIAS ........................................................................................................ 281 CAPÍTULO IX ........................................................................................................................... 285 MORTE TRÁGICA DE DOM JOSÉ GASPAR....................................................................................... 285 CAPÍTULO X ............................................................................................................................ 290 VACÂNCIA DA SEDE ARQUIEPISCOPAL: PERÍODO DE TRÉGUA ............................................................. 290 CAPÍTULO XI ........................................................................................................................... 292 DOM MOTTA ARCEBISPO DE SÃO PAULO: OPOSIÇÃO PERTINAZ AO “LEGIONÁRIO” ............................... 292 CAPÍTULO XII .......................................................................................................................... 318 IMERGINDO DENTRO DA CATACUMBA .......................................................................................... 318 CAPÍTULO XIII ......................................................................................................................... 321 ESTRUTURAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO PEQUENO GRUPO .................................................................. 321 CAPÍTULO XIV......................................................................................................................... 328 REABILITAÇÃO, REVIRAVOLTA E CONTRA-OFENSIVA ......................................................................... 328


7 CAPÍTULO XV.......................................................................................................................... 354 SANTA SÉ ELOGIA O “EM DEFESA” .............................................................................................. 354 PARTE VI ............................................................................................................................ 366 DA CATACUMBA AO JORNAL “CATOLICISMO” ................................................................... 366 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 366 A FASE DE EXPANSÃO ................................................................................................................ 366 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 368 O GRUPO DA MARTIM .............................................................................................................. 368 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 374 FASE DE GRANDE EXPANSÃO DE NOSSO APOSTOLADO ...................................................................... 374 PARTE VII ........................................................................................................................... 375 VIAGENS DE 1950 E 1952 À EUROPA .................................................................................. 375 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 375 PLANOS E INTENÇÕES ............................................................................................................... 375 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 378 ESPANHA ............................................................................................................................... 378 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 390 PORTUGAL ............................................................................................................................. 390 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 391 FRANÇA ................................................................................................................................. 391 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 406 ALEMANHA: O PRÍNCIPE ALBERTO DA BAVIERA .............................................................................. 406 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 407 ROMA ................................................................................................................................... 407 CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 422 PROVEITO DAS VIAGENS À EUROPA.............................................................................................. 422 PARTE VIII .......................................................................................................................... 425 O GRUPO DE “CATOLICISMO” E SUAS LUTAS NA DÉCADA DE 1950 .................................... 425 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 425 A “NATIMORTA” ..................................................................................................................... 425 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 426 PASTORAL DE DOM MAYER: A RETOMADA.................................................................................... 426 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 430 CONGRESSO EUCARÍSTICO DO RIO EM 1955 ................................................................................. 430 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 432 FORMAÇÃO DOS PRIMEIROS GRUPOS ........................................................................................... 432 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 438 “REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO” (R-CR) — 1959 ................................................................ 438 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 439 INESPERADA VIAGEM À EUROPA.................................................................................................. 439 CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 444 DIFICULDADES INICIAIS E, POR FIM, ÊXITO DA R-CR ........................................................................ 444 PARTE IX ............................................................................................................................ 446 FUNDAÇÃO DA TFP — LIVROS, ATIVIDADES E CAMPANHAS DE GRANDE REPERCUSSÃO NA DÉCADA DE 1960 ............................................................................................................................... 446 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 446 “TRADIÇÃO, FAMÍLIA, PROPRIEDADE” ......................................................................................... 446 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 449 EXPANSÃO DOS IDEAIS DA TFP NA AMÉRICA ESPANHOLA ................................................................. 449 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 452 O ENORME PAPEL DO LIVRO “REFORMA AGRÁRIA—QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA”................................. 452


8 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 462 PATENTEIA-SE A DIVISÃO NO EPISCOPADO E NO LAICATO ................................................................. 462 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 470 REFLEXOS POLÍTICOS DE UMA CAMPANHA IDEOLÓGICA .................................................................... 470 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 475 “JANGUISMO SEM JANGO” NO PÓS-64. A REFORMA AGRÁRIA NO ESTATUTO DA TERRA ....................... 475 CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 479 MORTE DE PIO XII E ELEIÇÃO DE JOÃO XXIII: A PERSPECTIVA DO CONCÍLIO ......................................... 479 CAPÍTULO VIII ......................................................................................................................... 481 NOSSO SECRETARIADO EM ROMA ............................................................................................... 481 CAPÍTULO IX ........................................................................................................................... 486 DUAS HISTÓRICAS PETIÇÕES NÃO ATENDIDAS: CONSAGRAÇÃO DA RÚSSIA E CONDENAÇÃO DO COMUNISMO ............................................................................................................................................................. 486 CAPÍTULO X ............................................................................................................................ 497 A LIBERDADE DA IGREJA NO ESTADO COMUNISTA (1963): ALGUMAS OBSERVAÇÕES PRÉVIAS ................. 497 CAPÍTULO XI ........................................................................................................................... 503 A LIBERDADE DA IGREJA NO ESTADO COMUNISTA (1963): OS SOVIÉTICOS NECESSITAVAM DA COEXISTÊNCIA PACÍFICA ................................................................................................................................................. 503 CAPÍTULO XII .......................................................................................................................... 507 A LIBERDADE DA IGREJA NO ESTADO COMUNISTA (1963): TESES, DIFUSÃO E POLÊMICAS ....................... 507 CAPÍTULO XIII ......................................................................................................................... 512 “BALDEAÇÃO IDEOLÓGICA INADVERTIDA E DIÁLOGO” (1965): CONTEÚDO E REPERCUSSÕES .................. 512 CAPÍTULO XIV......................................................................................................................... 516 A BATALHA CONTRA O DIVÓRCIO E A DERROCADA DA FAMÍLIA ........................................................... 516 CAPÍTULO XV.......................................................................................................................... 528 “FREI, O KERENSKY CHILENO” (1967) ......................................................................................... 528 CAPÍTULO XVI......................................................................................................................... 535 OS ARTIGOS PARA A “FOLHA DE S. PAULO” (1968-1990) .............................................................. 535 CAPÍTULO XVII........................................................................................................................ 539 INFILTRAÇÃO COMUNISTA NA IGREJA: 2.025.201 ASSINATURAS A PAULO VI (1968) ........................... 539 CAPÍTULO XVIII....................................................................................................................... 549 O ARCEBISPO VERMELHO ABRE AS PORTAS DA AMÉRICA E DO MUNDO PARA O COMUNISMO ................. 549 CAPÍTULO XIX ......................................................................................................................... 552 IDO-C E “GRUPOS PROFÉTICOS”: TRAMA SECRETA PARA REVOLUCIONAR A IGREJA (1969) .................... 552 CAPÍTULO XX .......................................................................................................................... 558 O TUMOR DO ENVOLVIMENTO DE CLÉRIGOS COM O TERRORISMO (1969) ........................................... 558 PARTE X ............................................................................................................................. 564 LIVROS E CAMPANHAS DE GRANDE REPERCUSSÃO NA DÉCADA DE 1970 .......................... 564 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 564 ASCENSÃO DE ALLENDE: CONFIRMA-SE O LIVRO “PROFÉTICO” .......................................................... 564 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 569 ATUAÇÃO DAS TFPS DURANTE O GOVERNO ALLENDE — ATITUDES INESPERADAS DE DOIS PRELADOS ....... 569 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 573 TFP ANDINA ANTE O APOIO DE PAULO VI E DO EPISCOPADO A ALLENDE (1973) .................................. 573 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 585 DENÚNCIA DE INFILTRAÇÃO NOS CURSILHOS DE CRISTANDADE (1972-1973) ..................................... 585 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 597 FACE À OSTPOLITIK VATICANA: OMITIR-SE OU RESISTIR? (1974) ....................................................... 597 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 610 PASTORAL DE DOM MAYER CONTRA O DIVÓRCIO, SEGUIDA DE ESTRONDO PUBLICITÁRIO SEM PRECEDENTES (1975)................................................................................................................................................... 610 CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 613 “NÃO SE ILUDA, EMINÊNCIA”: MENSAGEM AO CARDEAL ARNS (1975) .............................................. 613 CAPÍTULO VIII ......................................................................................................................... 619 A IGREJA DO SILÊNCIO NO CHILE: A TFP ANDINA PROCLAMA A VERDADE INTEIRA (1976) ...................... 619


9 CAPÍTULO IX ........................................................................................................................... 625 O ANTICOMUNISMO-SURPRESA DE ALTOS PRELADOS (1976) ........................................................... 625 CAPÍTULO X ............................................................................................................................ 629 “A IGREJA ANTE A ESCALADA DA AMEAÇA COMUNISTA — APELO AOS BISPOS SILENCIOSOS” (1976) ....... 629 CAPÍTULO XI ........................................................................................................................... 636 DOM SIGAUD E DOM JOSÉ PEDRO COSTA ACUSAM DOM PEDRO CASALDÁLIGA E DOM TOMÁS BALDUINO: A REAÇÃO DA CNBB .................................................................................................................................... 636 CAPÍTULO XII .......................................................................................................................... 639 EM 1977, ATUAÇÃO FRACA DA CNBB E VITÓRIA DO DIVÓRCIO......................................................... 639 CAPÍTULO XIII ......................................................................................................................... 643 “TRIBALISMO INDÍGENA, IDEAL COMUNO-MISSIONÁRIO PARA O BRASIL NO SÉCULO XXI” (1977)............ 643 CAPÍTULO XIV......................................................................................................................... 647 FACE À POLÍTICA DE “DIREITOS HUMANOS” DE CARTER E PAULO VI (1977-1978) ............................... 647 CAPÍTULO XV.......................................................................................................................... 657 BRASIL NO CLIMA DE ABERTURA (1979) ....................................................................................... 657 CAPÍTULO XVI......................................................................................................................... 659 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: ANÁLISE DO DOCUMENTO DE PUEBLA EM ARTIGOS DA “FOLHA” (1979) ....... 659 PARTE XI ............................................................................................................................ 662 LIVROS E CAMPANHAS DE GRANDE REPERCUSSÃO NA DÉCADA DE 1980 .......................... 662 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 662 NOITE SANDINISTA, UM EVENTO DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO (1980) ............................................. 662 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 666 “SOU CATÓLICO: POSSO SER CONTRA A REFORMA AGRÁRIA?” (1981)............................................... 666 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 671 DENÚNCIA MUNDIAL DO SOCIALISMO AUTOGESTIONÁRIO FRANCÊS MUDA A HISTÓRIA DO OCIDENTE (1981) ............................................................................................................................................................. 671 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 684 “AS CEBS ... DAS QUAIS MUITO SE FALA, POUCO SE CONHECE — A TFP AS DESCREVE COMO SÃO” (1982) ............................................................................................................................................................. 684 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 692 GUERRA DAS MALVINAS (1982) ................................................................................................ 692 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 701 NOVA REPÚBLICA: LUTA CONTRA O TUFÃO AGRO-REFORMISTA (1985) .............................................. 701 CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 712 PROJETO DE CONSTITUIÇÃO ANGUSTIA O PAÍS (1987) .................................................................... 712 CAPÍTULO VIII ......................................................................................................................... 717 DISPUTA COLLOR X LULA: TFP TOMA POSIÇÃO (1989) ................................................................... 717 PARTE XII ........................................................................................................................... 722 LIVROS E CAMPANHAS DE GRANDE REPERCUSSÃO NA DÉCADA DE 1990 .......................... 722 CAPÍTULO I ............................................................................................................................. 722 COMUNISMO E ANTICOMUNISMO NA ORLA DO TERCEIRO MILÊNIO: POR QUE 70 ANOS PARA SE RECONHECER O FRACASSO? (1990) .................................................................................................................................. 722 CAPÍTULO II ............................................................................................................................ 725 CAMPANHA PELA LIBERTAÇÃO DA LITUÂNIA:O COLAPSO DO IMPÉRIO COMUNISTA NO LESTE EUROPEU (1990/1991) ......................................................................................................................................... 725 CAPÍTULO III ........................................................................................................................... 734 NO V CENTENÁRIO DOS DESCOBRIMENTOS, UMA OPÇÃO CRUCIAL: CRISTANDADE AUTÊNTICA OU REVOLUÇÃO COMUNO-TRIBALISTA (1992) ..................................................................................................................... 734 CAPÍTULO IV ........................................................................................................................... 741 CONTRA O TRATADO DE MAASTRICHT: EUROPA CRISTÃ OU EUROPA LAICA E REVOLUCIONÁRIA? (1992) .. 741 CAPÍTULO V ............................................................................................................................ 748 CAMPANHA CONTRA A REFORMA AGRÁRIA E A REFORMA URBANA NO GOVERNO COLLOR (1992).......... 748 CAPÍTULO VI ........................................................................................................................... 753 NOBREZA E ELITES TRADICIONAIS ANÁLOGAS NAS ALOCUÇÕES DE PIO XII AO PATRICIADO E À NOBREZA


10 ROMANA (1993)...................................................................................................................................... 753

CAPÍTULO VII .......................................................................................................................... 767 CÚPULA DAS AMÉRICAS: NOSSA POSIÇÃO EM FACE DA ESQUERDIZAÇÃO DO CONTINENTE (1994) ............ 767

EPÍLOGO ............................................................................................................................ 772 ÍNDICE ONOMÁSTICO ............................................................................................................... 777


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Advertência PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA (1908-1995) não escreveu uma autobiografia. Entretanto, os traços fundamentais de sua admirável vida e sua fecunda obra podem ser delineados a partir do imenso acervo de documentos que os compiladores destes Relatos autobiográficos tiveram à sua disposição, fruto em grande parte de gravações colhidas em diversas ocasiões e posteriormente transcritas em forma digital. Exposições orais feitas por ele a pedido de seus discípulos e seguidores, trechos de conversas, palestras, conferências, livros que narram sua epopeia, artigos, manifestos, entrevistas e declarações à imprensa, cartas etc. Não pretenderam eles esgotar os múltiplos aspectos que caracterizam o bom combate que Plinio Corrêa de Oliveira travou ao longo de seus quase noventa anos de vida e setenta de lutas pela causa da Igreja e da civilização cristã. Tal não seria viável, quer pela extensão da matéria, quer pela riqueza de conteúdo e de aspectos da mesma. Foram destacados apenas os elementos que permitem ao leitor formar uma ideia, a um tempo fiel, substancial e clara, de sua marcante atuação no cenário brasileiro. Não só. Sua influência projetou-se para muito além de nossas fronteiras. Ela atingiu os cinco continentes em momentos que foram decisivos na história do século XX, a ponto de se estender post mortem, século XXI adentro, indicando um luminoso caminho a trilhar dentro da crise contemporânea. O leitor não imbuído de preconceitos ideológicos anticristãos, facilmente discernirá o espírito entranhadamente católico com que Plinio Corrêa de Oliveira se empenhou nos embates em prol dos fundamentos de uma ordem autenticamente cristã. Embates que travou com galhardia sem igual e inegável acerto, com vistas a uma futura restauração da civilização católica, tantas vezes anunciada por vozes autorizadas de santos e profetas e pela própria Mãe de Deus, em Fátima. Daí o epitáfio inscrito, segundo seu manifesto desejo, em sua lápide funerária: “Vir catholicus, totus apostolicus, plene romanus” (Varão católico, todo apostólico, plenamente romano). * Com um senso da realidade que excluía toda e qualquer ilusão, Plinio Corrêa de Oliveira tinha sempre presente que sua atuação se desenvolvia num mundo que se afastou de Deus, e que nessa nefasta rota se mantém, aprofundando-se cada vez mais na desordem e no caos — ao mesmo tempo que luzes de uma autêntica conversão vão se acendendo, cá e lá no horizonte plúmbeo, como estrelas da manhã a indicar um novo dia


12 prestes a raiar. Por isso, escreveu ele: “Para além da tristeza e das punições supremamente prováveis, para as quais caminhamos, temos diante de nós os clarões sacrais da aurora do Reino de Maria” (Revista Catolicismo n° 197, maio de 1967). Esquematizando, numa matéria entretanto pouco afeita a esquemas, mas tendo em vista simplificar o panorama para o leitor, poderíamos dizer que a atuação de Plinio Corrêa de Oliveira se exerceu em dois campos distintos, porém imbricados um no outro. Primeiro, uma denúncia profética da imensa conjuração progressista no interior da Igreja, que hoje vai atingindo patamares insuspeitados; e, segundo, o combate acérrimo e eficaz, sempre nas vias da legalidade, ao processo revolucionário que, dos séculos XIV e XV a nossos dias, visa à completa laicização e consequente descristianização da sociedade temporal. Mesmo neste segundo campo de atuação, Plinio Corrêa de Oliveira apontou reiteradamente a influência deletéria exercida pelo esquerdismo católico sobre a sociedade civil. * Na primeira metade do século XX, no Ocidente, era ainda possível observar no convívio humano uma considerável impregnação do espírito do Evangelho, bem como a influência não pequena dos princípios da Lei natural. A atuação do esquerdismo católico, a um tempo caudatário e propulsor das formas mais avançadas de socialismo, consistiu precisamente em substituir esse espírito e esses princípios, de forma mais sutil ou menos, conforme as situações e ocasiões, por concepções deles discrepantes e não raro opostas. Contra tal desiderato revolucionário Plinio Corrêa de Oliveira levantou destemidamente o estandarte da Contra-Revolução. Em torno dele se agruparam, ao longo das décadas, um sem-número de aderentes, especialmente jovens, cansados das utopias revolucionárias, como também da mediocridade e dos prazeres fátuos, e desejosos de servir a um ideal superior, que realmente valesse a pena servir. O cerne da doutrina e da ação revolucionárias, bem como o modo eficaz de a elas se opor está descrito em seu magistral ensaio Revolução e Contra-Revolução. A luz que emana dessa obra nos iluminará constantemente ao longo da presente exposição. Foi, pois, com o objetivo de defender a Igreja e a civilização cristã, que Plinio Corrêa de Oliveira estendeu o âmbito de sua atuação pelos cinco continentes, favorecendo a fundação de associações autônomas, inspiradas em idênticos objetivos e irmanadas no mesmo ideal. Ao mesmo tempo, incentivava ele e apoiava organizações com metas similares, existentes em outras nações, tendendo a formar uma frente


13 ampla de combate à Revolução. Tal frente aglutinaria todos aqueles que se opõem à derrubada de alguma parcela, por pequena que seja, do edifício sagrado da Igreja ou dos pilares, também sagrados, da civilização cristã. * Sendo de natureza muito variada o material utilizado neste trabalho, tornou-se necessário adaptar — já o dissemos — a linguagem falada à linguagem escrita, como também unificar os diversos textos de modo a oferecer ao leitor uma unidade de estilo, apresentando-os, na medida do possível, como se fossem frases pronunciadas ou escritas em primeira pessoa pelo biografado, ressaltando assim o caráter autobiográfico do conjunto. Essa licença editorial em nada diminui ou prejudica a fidelidade aos originais que serviram de base a esta compilação, pelo contrário, é total o compromisso com a reprodução autêntica do sentido da narração feita por Plinio Corrêa de Oliveira. Daí também o caráter o quanto possível coloquial da exposição, que não visa ser literária, mas sim tornar-se facilmente assimilável pelo leitor. Permitimo-nos também, em raras ocasiões, introduzir frases curtas que servissem de transição harmônica entre um assunto e outro, para efeito de facilidade de leitura. Da Parte X em diante, como os fatos são mais próximos dos dias presentes, e de alguma forma se tornaram menos frequentes as narrações autobiográficas feitas por Plinio Corrêa de Oliveira em suas palestras, algo do tom autobiográfico que permeia estas páginas dá lugar a narrativas e comentários, sempre feitos por ele, de acontecimentos da atualidade. Toda a vastíssima e valiosíssima documentação utilizada é meticulosamente indicada em notas que poderão ser encontradas ao pé de cada página. Convém ter presente o significado de algumas siglas que se repetem nessas indicações. Para tal, ver o quadro Significado das siglas das fontes bibliográficas, logo adiante. Também ao pé da página virão as notas de esclarecimento de responsabilidade dos compiladores. Inserções complementares desses mesmos compiladores virão indicadas por um asterisco, e serão colocadas em tipo de corpo menor, logo em seguida ao parágrafo a que se referem. Quanto aos documentos públicos e outros textos de Plinio Corrêa de Oliveira, citados ao longo do trabalho, podem ser consultados com toda a facilidade no imenso acervo do site www.pliniocorreadeoliveira.info. * A presente narrativa em forma autobiográfica permitirá ao leitor, assim o esperamos, apreciar a grandeza desse ilustre brasileiro, que tanto honrou a nossa pátria, cujo nome e cuja obra porém são frequentemente


14 objeto de uma conspiração do silêncio dentro de nossas fronteiras, contrastando com a nomeada de que goza em nações cultas do hemisfério norte, enquanto intelectual, enquanto católico e homem de ação. E constitui, por essa forma, uma homenagem de justiça que os diretores e colaboradores do INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, como continuadores entusiastas de sua obra, lhe fazem por ocasião do vigésimo aniversário do seu falecimento. São Paulo, 8 de setembro de 2015 Festa da Natividade de Nossa Senhora INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA


15

Significado das siglas das fontes bibliográficas Almoço ou Jantar (conversas gravadas durante a refeição) CA (Comissão Americana: reunião com amigos da TFP americana, que vinham a São Paulo em intercâmbio) CCEE (palestra para Correspondentes e Esclarecedores da TFP) Chá (conversas com discípulos, enquanto tomava o chá da tarde) CM (Comissão Médica, reunião com médicos da TFP e agregados) CSN (Conversa de Sábado à Noite, conversa informal com discípulos na casa de Dr. Plinio aos sábados à noite) Despachinho (despachos com seu secretário sobre assuntos diversos) EANS (reuniões numa sede campestre no município de Amparo-SP, chamada Êremo do Amparo de Nossa Senhora) ENSDP (reuniões numa sede da rua Atibaia, no bairro das Perdizes, chamada Êremo de Nossa Senhora da Divina Providência) EPS (Êremo Praesto Sum: reuniões feitas numa sede da TFP no bairro de Santana) ESB (Êremo de São Bento: reuniões feitas numa sede da TFP que pertencera aos beneditinos, na rua Dom Domingos de Silos, em São Paulo) ESM (Êremo de São Miguel: reuniões feitas para componentes de uma sede campestre da TFP na cidade de Belo Horizonte) Gravação (palavras ditadas por Dr. Plinio no gravador para serem enviadas a algum grupo ou destinatário) MNF (conversas dirigidas com um grupo de pessoas, sobre temas sócio-filosóficos) Palavrinhas (conversas rápidas, de 10 a 15 minutos, com grupos diversos) Palestra (quando não há especificação sobre o tipo de palestra, refere-se a palestras habituais para sócios e cooperadores) Percurso (despachos gravados durante o percurso de automóvel) Relatos (breves relatórios feitos por pessoas que estiveram com Dr. Plinio por algum tempo) RR (Reunião de Recortes: reunião com discípulos, comentando recortes de jornais e revistas) SD (Santo do Dia: reunião com jovens, comentando o Santo do Dia) SEFAC (Semana Especializada de Formação Anticomunista: conferência geralmente de encerramento de semanas de estudos para neocooperadores) SRM (reuniões na Sede do Reino de Maria, nome que tomou a principal sede do movimento, a partir da década de 1960)

Introdução Como formei a minha mentalidade A) Temperamento e formação das ideias: o ambiente familiar 1. Aos vinte anos, mentalidade ultramontana inteiramente formada Quando entrei para a Congregação Mariana de Santa Cecília e comecei a participar do movimento católico, posso dizer que já era


16 inteiramente um ultramontano1, e quase todas as ideias que tenho hoje, na sua raiz eu já as tinha 2. Aos 20 anos, quanto ao mundo contemporâneo, eu já havia tudo visto, contado, medido e pesado. De lá para cá houve torrentes de explicitações, em vista dos fatos que se sucediam, porém não mais do que explicitações 3. Quais eram essas minhas ideias? − Eu era partidário convicto de uma catolicidade radical, e convicto de que um catolicismo de meias-tintas não resolveria absolutamente nada. − Convicto também de que só se é católico, sendo absolutamente fiel ao Papado, e é nessa fidelidade absoluta ao papado que está a substância do catolicismo. − Profundamente convicto igualmente de que a Igreja é propriamente a coluna do mundo, da ordem temporal, da ordem civil e da ordem moral. E que, portanto, só da Igreja e da doutrina da Igreja, dos Mandamentos e dos ensinamentos dela poderia decorrer alguma solução efetiva para a crise mundial. − Convicto ainda de que toda a organização político-social decorrente do protestantismo, e de tudo que se lhe seguiu, até o comunismo, representava a destruição da civilização. − Convicto também de que nos encontrávamos muito adiantados nesse fenômeno de decomposição, e de que deveria explodir uma grande crise que determinaria o fim da civilização moderna. − Por cima de tudo, estava convicto da importância da devoção a Nossa Senhora, embora não conhecesse ainda o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort, o qual me forneceu a expressão definitiva do assunto devoção a Nossa Senhora. Mas compreendia bem que a devoção a Nossa Senhora constituía o lado saliente da doutrina católica em matéria de piedade e de minha vida espiritual. − Por fim — e aqui está propriamente o traço característico da mentalidade que graças a Deus eu já adquirira nesse tempo — tinha uma noção muito viva da diferença entre o bem e o mal, 1 — Ultramontano era a designação dada no século XIX à corrente de católicos franceses defensores do Primado Pontifício e militantemente contrários aos católicos liberais. Como Roma estava além dos Alpes, dizia-se então que eram ultra (além) montanos (dos montes). O termo depois se estendeu a outras nações, sempre para designar os católicos antiliberais. 2 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 3 RR 14/4/74.


17 da luta do bem contra o mal dentro da História, embora a influência das forças organizadas do mal nesse combate eu conhecesse muito deficientemente naquela época; tinha apenas uma certa noção intuitiva do papel delas dentro dessa luta. Como essas ideias surgiram em minha cabeça? Como explicar que um brasileiro, nascido no ano de 1908, numa cidade como São Paulo, vivendo inteiramente dentro do ambiente brasileiro, aos 20 anos já as tivesse adquirido? Para um não-brasileiro, especialmente o europeu, creio que estas questões podem apresentar um lado interessante, para ajudá-los a compreender o modo peculiar de como se formam as ideias na cabeça de um brasileiro. Isto ajudará também a compreender o que se pode esperar de um país como o Brasil, enquanto potencialidade ultramontana.

2. Minhas ideias nasceram, não dos livros, mas da observação da realidade Todas essas ideias se formaram dentro de minha cabeça, não propriamente lendo a doutrina em um livro e aplicando-a aos fatos, mas tomando uma atitude instintiva em face dos fatos e como que adivinhando a doutrina contida nesses fatos. Por conseguinte, esse conhecimento não se deu por meio de dedução, mas de uma primeira intuição que já continha em si tudo o que eu iria explicitar depois. Não se tratava, portanto, de um processo dedutivo, mas de um processo intuitivo em que, num primeiro olhar, se via tudo, e depois crescia como uma árvore de dentro da semente. Mas no primeiro olhar já estava tudo contido. É assim que funciona uma cabeça brasileira4. Bem entendido, isto não significava de minha parte um desprezo pelo livro. Mas eu julgava um erro palmar considerar a cultura como mera resultante da quantidade de livros que se leu. A leitura é proveitosa, não tanto em função da quantidade, mas da qualidade dos livros lidos, e principalmente em função da qualidade de quem lê, e do modo pelo qual lê. Sustento que uma pessoa muito lida, muito instruída — ou seja, informada de muitos fatos ou noções de interesse científico, histórico ou artístico — pode ser bem menos culta do que outra de cabedal informativo menor. É que a instrução só aprimora adequadamente o espírito quando 4 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54.


18 seguida de uma assimilação profunda, resultante de acurada reflexão. E por isto quem leu pouco, mas assimilou muito, é mais culto do que quem leu muito e assimilou pouco. A reflexão é o primeiro dos meios desta ação positiva. Mais do que um repositório vivo de fatos e datas, nomes e textos, o homem de cultura deve ser um pensador. E para o pensador, o livro principal é a realidade que ele tem diante dos olhos, o autor mais consultado é ele próprio, e os demais autores e livros são elementos preciosos mas nitidamente subsidiários. Contudo a mera reflexão não basta. O homem não é puro espírito. Por uma afinidade que não é apenas convencional, existe um nexo entre as realidades superiores que ele considera com a inteligência, e as cores, os sons, as formas, os perfumes que atinge pelos sentidos. O esforço cultural só é completo quando o homem embebe todo o seu ser dos valores que sua inteligência considerou 5.

3. Meu temperamento nativo, calmo e afetivo Eu nasci, por disposição natural, muito afetivo, muito propenso a gostar das pessoas 6. Na minha candura infantil, imaginava que todo mundo era muito bom 7. Em pouco tempo percebi que isso era uma ilusão 8. Não pretendo aqui fazer minhas confissões, muito menos a minha apologia. Mas talvez faça uma indiscrição. Por tudo o que ficou dito aqui, o fundo de quadro da narrativa deverá começar pela descrição de meu temperamento. Notem bem: começo por falar, não de ideias, mas de temperamento, o que já é uma característica bem brasileira. O meu temperamento eu o classificaria nativamente como muito calmo, calmo quase até à indolência; muito equilibrado, equilibrado até o incrível e o inconcebível; mas ao mesmo tempo muito rijo em uma coisa: naquilo que me convém, deito todo o meu peso. Por outro lado, é um temperamento muito tendente à moleza, detestando a luta, detestando brigas, detestando qualquer coisa assim. Mas também um temperamento que, para um homem concebido no pecado original, e portanto com todas as reservas que isto comporta, era fundamentalmente temperante. Por fim, desde pequeno, com um feitio de espírito muito voltado para a lógica, gostando muito da lógica. 5 Conferência no Seminário dos jesuítas de São Leopoldo-RS, 13/11/54 (v. Catolicismo n° 51, março de 1955). 6 SD 12/5/84. 7 MNF 17/11/94. 8 SD 12/5/84.


19

4. Ambiente familiar cerimonioso, harmônico; papel de Dª Lucilia

calmo,

equilibrado,

Esse temperamento, esse feitio de espírito, foi muito bem servido pelas condições de minha educação. Quando comecei a dar acordo de mim, os primeiros contatos temperamentais e emotivos que tive foram com a minha família materna. A minha família paterna era de Pernambuco e eu quase não a conhecia9. Nasci da conjunção de duas famílias trazendo, tanto da parte de meu pai como de minha mãe, uma herança católica um tanto mais fervorosa e mais séria do que a comum, junto com uma herança monárquico-liberal — mas liberal mesmo! — sem nada de ultramontano*. * Dava-se nessas duas famílias a confluência de duas aristocracias que marcaram a fundo a história do Brasil: a dos senhores de engenho do Estado de Pernambuco, representada pelo pai de Dr. Plinio, o advogado João Paulo Corrêa de Oliveira, e a aristocracia dos "barões do café" do Estado de São Paulo, da qual fazia parte sua mãe, a tradicional dama paulista Lucilia Ribeiro dos Santos. Os Corrêa de Oliveira descendiam dos primeiros colonizadores do Brasil, "os bem-nascidos, os nobres do seu tempo", segundo expressão do conhecido sociólogo Fernando de Azevedo (cfr. "Obras Completas", 2a. ed., vol. XI, Edições Melhoramentos, São Paulo, p. 107). Dentre seus membros ilustres destacou-se o Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, deputado em várias legislaturas durante o Império, ministro e conselheiro de Estado, senador vitalício e finalmente presidente do Conselho de Ministros, sob cuja vigência foi assinada pela Princesa Isabel a Lei Áurea, libertando os escravos. Já os Ribeiro dos Santos pertenciam ao grupo tradicional dos "paulistas de quatrocentos anos", fundadores da cidade de São Paulo e descendentes dos famosos bandeirantes, os indômitos desbravadores do Brasil. Entre os antepassados ilustres destacava-se o avô de Dª Lucilia, Gabriel José Rodrigues dos Santos, deputado que se afirmou no Parlamento imperial como brilhante orador e refinado homem de salão. Sua filha, Dª Gabriela Ribeiro dos Santos, mãe de Dª Lucilia, com sua forte personalidade e com seu grande estilo, dava brilho à vida de salão do palacete de Dª Veridiana Prado, uma das senhoras mais influentes da sociedade paulista, bem como do palacete do Conde Antonio Alvares Penteado, ambos centros da vida social e intelectual de São Paulo de então. Dª Gabriela nasceu no dia 18 de dezembro de 1852, e faleceu no dia 5 de janeiro de 1934 com 81 anos. Era casada com seu primo, o Dr. Antonio Ribeiro dos Santos, um dos melhores advogados de seu tempo. Como é natural, essa ilustre ascendência teve ponderável influência na formação da personalidade e no modo de ser do então jovem Plinio.

9 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54.


20 Eu formei meu espírito nesse ambiente10. Eu vivia numa casa muito ampla pertencente à minha avó, Dª Gabriela Ribeiro dos Santos. Ela era viúva e nessa casa moravam dois casais: meus pais com dois filhos(Rosenda, conhecida familiarmente como Rosée, e eu); e uma tia minha com o marido dela e uma filha (Nestor Barbosa Ferraz e Brasilina Ilka Ribeiro Barbosa Ferraz, conhecida como Zili, respectivamente cunhado e irmã de Dª Lucilia; e a filha Ilka). Ocupavam apartamentos inteiramente diferentes num casarão enorme. A casa era frequentada por muitos parentes de fora. E essa primeira quadra de minha vida foi caracterizada pela harmonia em todos os terrenos. Em primeiro lugar, harmonia do ponto de vista financeiro. Não era gente riquíssima, porque nunca foi, mas rica. Tinha essa forma de conforto, essa grande largueza que chegava quase até ao desperdício. E uma distinção que chegava quase ao luxo. Não era propriamente luxo, nem era propriamente desperdício. Sem que nenhuma despesa fosse irracional — todas as despesas eram racionais — gastava-se sem se perceber que existia o dinheiro. Não existiam questões financeiras. Era tudo muito harmonioso, muito lógico, muito igual. Todas as pessoas da família de mamãe tinham tendência para o formalismo. De maneira que eram muito corteses umas com as outras, e com uma intimidade cerimoniosa, o que exatamente tornava a intimidade agradável. Eu nunca assisti, no meu tempo de pequeno, briga em casa — mas absolutamente nunca! Nunca briga nem discussão. Por outro lado, todos eram muito alegres. Não no sentido de que se dessem risadas a todo o momento, o que não é a verdadeira alegria. Às vezes se dava risada, mas também, especialmente nas refeições, se tratavam assuntos sérios ou até assuntos tristes. Tudo isso comunicava um tom de calma, gravidade, serenidade, bem-estar. E eu, na minha casa, tinha a impressão do homem que repousa propriamente no ambiente feito para ele, ou, se preferirem, da tartaruga dentro de sua casca e na sua lagoa. Havia também na minha família muita facilidade nas relações sociais, estas muito numerosas, mas sem se entrar na intimidade de ninguém. O círculo doméstico era muito diferenciado do círculo público. * Minha avó era uma grande dame até o último ponto. As tardes dela 10 Simpósio com argentinos 12/10/65.


21 podiam ser postas em música. Ela ficava sentada em uma poltrona, balançando-se, e com uma pessoa cortejando-a; vinha um chazinho, ela se servia... Durante 40 anos, ela viveu nessa espécie de redoma. Ela era amiga da Princesa Isabel e com ela se correspondia 11. Quanto à minha mãe, Lucilia Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira, ela tinha um modo de ser afrancesado, junto a uma afetividade brasileira colocada em termos afrancesados. O afeto dela era delicadíssimo, educadíssimo, nobre e de salão, até na maior intimidade. Eu me sentia envolto por aquele afeto e sentia a conaturalidade desse afeto com o ambiente criado pela Madame de GrandAir*. * Uma das personagem das histórias em quadrinhos da série Bécassine, desenhadas pelo cartunista Joseph Pinchon e publicadas então pela revista infantil francesa La Semaine de Suzette. Constituíam essas histórias verdadeiras aulas de sociologia, e retratavam a doce e harmônica mescla, altamente catolicizada, dos ambientes aristocrático e popular da França da Belle Époque (1871-1914).

Ela era para mim, repito, uma versão ao vivo do mundo da Madame de Grand-Air, como, aliás, era também a seu modo minha avó12. Devido ao aspecto adamado e distinto de Dª Lucilia, durante muito tempo chamei-a de Marquesinha. Era a sua elevação de alma que dava a clave de tudo o que ela fazia na sua intimidade. E essa elevação de alma era imponderável. Em uma alma sem elevação, tudo isto seria banalidade 13. Eu a venerei e amei em todo o limite do que me era possível. E, depois de sua morte, não houve dia em que não a recordasse com saudades indizíveis 14. Encantava-me nela — dentro dessa clave de elevação de alma — um misto de mansidão generosa levada até o inacreditável, ao lado de uma firmeza inquebrantável quando se tratava de princípios. Quer dizer, a justaposição desses dois contrastes harmônicos realmente me atraía no mais alto grau 15. Tudo isto formava em casa uma espécie de mundo afrancesado, misturado com a influência portuguesa pelo lado de meu pai, João Paulo Corrêa de Oliveira. Ele era pernambucano da cidade de Goiana, que fica hoje a pouco 11 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 12 ESB 15/5/80. 13 CSN 24/5/80. 14 Testamento espiritual 10/1/78, Catolicismo n° 550, outubro de 1996. 15 CSN 24/5/80.


22 mais de uma hora de Recife. Ele estudou na Faculdade de Direito do Recife e as ligações de Pernambuco com Portugal eram muito mais frequentes e intensas do que aqui no Sul. E o polo de Recife não era Paris, mas Lisboa. Sabia canções e poesias portuguesas, era muito lido em autores portugueses, e a sua formação jurídica tinha uma nota portuguesa muito forte. Não era um grande advogado, mas era um muito bom advogado. E ele representava a nota brasileira e portuguesa, que se juntava sem conflito à nota francesa dos Ribeiro dos Santos, formava um todo só. Ele tinha uma voz forte e de timbre agradável. Quando ria, o seu riso cobria a casa e era pessoa muito saudável. Quando tratava com minha mãe e com vovó, era muito respeitoso. Foi este, enfim, o ambiente dentro do qual eu me formei16. * A esse quadro assim, eu me aferrei em pequeno instintivamente, com todas as forças, porque ele correspondia a todas as minhas qualidades e a todos os meus defeitos. Todas as qualidades, as que estão vendo: a temperança, a lógica, o equilíbrio etc. Todos os meus defeitos, porque eu era tendente à moleza.

5. As primeiras noções da existência do mal Nesta "história do Chapeuzinho Vermelho", não havia entrado ainda o lobo. E a história do lobo podemos defini-la assim: Eu tinha dois tios — um tio por afinidade e uma tia — de famílias de fazendeiros. Os filhos, na época das férias, eram levados para a fazenda. Na fazenda eles montavam a cavalo, faziam grandes raids, entravam no mato, se sujavam na terra, gostavam de jogar pedras uns nos outros. Eu me lembro de minha estranheza. Por um lado, eu tinha implicância com essa maneira de ser, mas por outros aspectos eu tinha loucura pela companhia deles. Eu sentia uma desordem robusta ali dentro. Eu representava uma ordem verdadeira, mas meio fraca. Eu me sentia menos robusto, menos forte do que eles, eu não tinha aquela seiva. E isso me deixava pouco seguro de mim. Formou-se então em mim uma primeira ideia de que essas influências representavam o mal e que a oposição a isso representava o

16 ESB 15/5/80.


23 bem17.

B) No Colégio São Luís 1. No choque com o ambiente, a ideia da necessidade da luta Minha meta inicial era manter com os outros uma vida cordial. Em casa, com os meus primos, com meus parentes, eu me dava perfeitamente bem. Mas entrando para o Colégio São Luís 18 em 1919, aos 10 anos de idade, observando o comportamento dos outros meninos, eu reformulei essa minha meta. Fazendo elucubrações ainda infantis, meio subconscientes, meio conscientes, dizia de mim para comigo: — Meus colegas se dão cômoda e agradavelmente uns com os outros. Por temperamento não sou briguento, sou cordato. E gosto da vida cômoda, da vida agradável; gosto de levar as coisas por bem e de resolvêlas de maneira conciliatória. Mas vejo também que, pelo caminho conciliatório, faça eu a gentileza que quiser, tome eu a atitude cordial que entender, em relação a eles eu levo a pior, isto porque sou casto, porque sou católico, porque sou monarquista. Como não quero deixar de ser católico, não quero deixar de ser casto, não quero deixar de ser monarquista, o caminho que se abre diante de mim é o da luta. Vou aprender a lutar, e se só posso viver lutando, viverei lutando. Mas hei de me impor, descobrindo o lado fraco deles. Vamos para a frente!

2. Como nasceu em mim a ideia da estratégia contrarevolucionária Mas, como lutar? Alguns princípios de luta eu os deduzi ao observar o modo pelo qual as crianças de espírito revolucionário sufocavam no colégio qualquer tentativa de um colega se mostrar um pouco casto, um pouco católico, um pouco monarquista. Por pouco que esse colega se manifestasse nesse sentido, isto determinava uma pressão e uma caçoada de todo mundo contra ele. 17 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 18 — O Colégio São Luís foi fundado pelos padres jesuítas em 1867 na cidade de Itu-SP. Logo após a revogação da expulsão da Companhia de Jesus, que havia sido decretada pelo Marquês de Pombal, foi transferido, em 1917, para a cidade de São Paulo. Em seus bancos sentaram-se os filhos das melhores famílias da aristocracia e da plutocracia paulistas.


24 Então fiz o seguinte cálculo: “O verdadeiro não é dizer que sou um pouco católico, um pouco casto, um pouco monarquista, porque cai o mundo em cima de mim. Vou fazer o contrário: vou dizer que sou muito católico, muito casto, muito monarquista”. Com isto chegamos — meus colegas e eu — a um regime de paz armada, em que eles não me atacavam, mas faziam gelo em torno de mim. Era um regime de paz armada que conduzi depois para um regime de paz cortês de parte a parte, mas de garra de fora. Naquelas circunstâncias, eu não poderia querer coisa diversa. Tudo isto levava a modelar em mim um espírito de luta contrarevolucionária, e bem cedo percebi que a diplomacia fazia parte dessa luta19. Percebi também que os alunos mais revolucionários procuravam impor-se com extremos de habilidade e de força, mas viam-se ao mesmo tempo obrigados a esgueirar-se para conseguir dominar a situação. E pensava: “Eu poderei mudar essa situação”. Era uma consideração calma, sem apegos, sem torcidas, feita com sagacidade, mas também com resolução. E, pela ajuda de Nossa Senhora, foi assim que consegui construir um conjunto enorme de observações, de análises e de conclusões — tudo muito lógico, muito honesto e muito sério20.

C) Iniciando a vida pública 1. Na Universidade, batalha contra o laicismo; boletim “O A.U.C.” Comecei minha atuação pública quando estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O ambiente que ali encontrei era de tal maneira laico que parecia não haver, no meio estudantil de São Paulo, qualquer possibilidade de apostolado. Inscrevi-me aos 20 anos no movimento mariano, que então começava sua grande expansão. E iniciei uma luta dentro da própria Faculdade de Direito em favor do apostolado católico. Fundamos na ocasião um movimento chamado Ação Universitária Católica21, primeiro movimento universitário católico constituído naquela 19 SD 2/12/94. 20 Chá 24/3/95. 21 — A Ação Universitária Católica foi fundada no ano de 1930 e tinha como órgão O A.U.C. O primeiro


25 época em São Paulo 22. Fui depois eleito deputado pela Liga Eleitoral Católica, na Assembleia Constituinte de 1934 — candidatei-me a deputado só para assegurar a vitória das reivindicações católicas 23.

2. Mudança de tônica: a batalha contra o progressismo e a esquerda católica Entretanto, no começo dos anos 40, a nota dominante de minha atuação se alterou. Em vez de voltar-se exclusivamente para os que não são católicos, fui posto diante da realidade da penetração do progressismo e do esquerdismo nos meios católicos. Dei-me conta imediatamente de que a salvaguarda do futuro do Brasil estava nas mãos dos que lutassem para que os meios católicos não se deixassem envolver por essas duas más tendências. Foi então que, escrevendo o livro Em Defesa da Ação Católica, abri fogo dentro do Movimento Católico contra o esquerdismo filosóficoteológico, bem como contra o esquerdismo socioeconômico. Minha luta, de lá para cá, tem sido uma defesa da opinião católica contra a investida — ora aberta, ora velada — dessas correntes de opinião. Assim, defender a civilização cristã e o Brasil contra esse perigo passou a ser o sentido dominante de minha atuação 24. Todas as pessoas, instituições e doutrinas que amei durante minha vida, e que atualmente amo, só as amei ou amo porque eram ou são segundo a Santa Igreja, e na medida em que eram ou são segundo a Santa Igreja. Igualmente, jamais combati instituições, pessoas ou doutrinas senão porque — e na medida em que — eram opostas à Santa Igreja Católica25. E Nossa Senhora tem sido pródiga comigo. Numerosos católicos têm-me dado a sua confiança26. Nossa Senhora foi sempre a Luz de minha vida, e de sua clemência espero que seja Ela minha Luz e meu Auxílio até

número desse boletim saiu a público em 1° de outubro de 1930, e nele foi publicado o Manifesto Aucista Em defesa dos mais altos interesses da Igreja, da civilização e da Pátria, o que representava um "insulto" ao espírito laicista e ateu que dominava o ambiente da Universidade na época (v. http://www.pliniocorreadeoliveira.info). 22 Entrevista ao jornal Edição Mineira (gravação), Belo Horizonte, 16/11/83. 23 Entrevista à Folha de S. Paulo (gravação), 8/2/93. 24 Entrevista ao jornal Edição Mineira (gravação), Belo Horizonte, 16/11/83. 25 Testamento espiritual 10/1/78, Catolicismo n° 550, outubro de 1996. 26 Entrevista ao jornal Edição Mineira (gravação), Belo Horizonte, 16/11/83.


26 o último instante da existência27.

3. Crise na Igreja, o grande sofrimento de minha vida O grande sofrimento de minha vida foi a crise da Igreja. Ver essa crise trouxe-me um sofrimento sem nome. Assim, numa carta que escrevi ao Cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta28 — em que eu pedia a ele para ser julgado por causa do livro Em Defesa da Ação Católica, e da qual tratarei adiante — eu historiava minha vida e dizia a ele que29 vivíamos em uma época de geral conturbação, e que fatos acontecidos naqueles dias (referia-me à apostasia do Bispo de Maura) mostravam que as próprias estrelas podiam cair do Céu, pois a alma nacional havia estremecido ao fragor de uma coluna da Igreja que se partira30. As minhas maiores aflições foram causadas por essa crise progressista na Igreja, pelo processo de autodemolição a que ela era submetida, cada vez mais acentuado, e pela abominável e pestilencial fumaça de Satanás que nela se difundia31. Ver a Igreja traída foi meu calvário durante toda a vida32. * Segundo o conceito comum, vida feliz é a de um homem que consegue determinada coisa que lhe satisfaz todas as apetências. E encontra nisso a sensação da estabilidade daquilo que conquistou. Mas há outra concepção de felicidade que inclui a luta e o holocausto como elementos de felicidade, por exemplo nas minhas lutas estudantis e universitárias e, depois, quando fui professor de Universidade. Eu sabia que afirmar-me ufanamente católico apostólico romano 27 Testamento espiritual 10/1/78, Catolicismo n° 550, outubro de 1996. 28 — O Cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta (1890-1982) foi Bispo Auxiliar de Diamantina (1932-1935), Arcebispo de São Luís do Maranhão (1935-1944), Arcebispo de São Paulo (1944-1964) e por fim Arcebispo de Aparecida até sua morte (1964-1982). Elevado ao cardinalato em 1946, sua trajetória foi marcada por forte tendência esquerdista, tendo ele favorecido amplamente o progressismo dito católico. Assumindo o governo da Arquidiocese paulopolitana, tomou posição de franca hostilidade contra Dr. Plinio e o chamado grupo do Legionário, sumariamente afastados das funções que exerciam na Arquidiocese. Por fim, tirou-lhes o próprio Legionário. Essa hostilidade não cessou nem mesmo quando Roma elogiou o livro Em Defesa da Ação Católica. 29 Chá 19/6/95. 30 Carta de Dr. Plinio a D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, 22/9/45 — Esta referência à coluna que se partira diz respeito à apostasia de Dom Carlos Duarte Costa (1888-1961), ex-Bispo titular de Maura e ex-Bispo de Botucatu, o qual, após ser excomungado pela Santa Sé através de Ofício da Nunciatura datado de 2/7/45, fundou a chamada Igreja Católica Apostólica Brasileira (cfr. revista Ave Maria, São Paulo, 21/7/45). 31 Notas biográficas ditadas em 1972. 32 Chá 26/1/93.


27 certamente me traria antipatias, porque as pessoas não gostavam disso. Mas eu me afirmava tal. Uma pessoa que tenha lutado assim a vida inteira, na hora de morrer poderia parafrasear São Paulo e dizer: “Bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi. In reliquo reposita est mihi corona justitiae, quam reddet mihi Dominus in illa die justus judex” — “Combati o bom combate, corri a corrida inteira, conservei a fé. De resto, está-me reservada a coroa da justiça que me dará naquele dia o Senhor, justo Juiz” (2 Tim 4,7). Quem puder dizer a Deus, na hora de morrer: “Dai-me, Senhor, justo Juiz, a coroa da justiça que Vós me reservastes”, esse foi feliz 33.

33 MNF 24/5/95.


28

Parte I Da placidez da infância aos embates no Colégio e na Faculdade Capítulo I Ingresso no Colégio São Luís 1. Meu primeiro choque com a Revolução igualitária Explico melhor como nasceu em mim a ideia de luta. Muito menino ainda, com 10 anos de idade, justamente na minha entrada para o Colégio São Luís, tive um choque enorme no contato com o mundo moderno, porque percebi a diferença que havia entre o espírito de minha família e o espírito que dominava os meus colegas de colégio, em geral de famílias mais avançadas no processo revolucionário 34. Eu era um menino magro, muito alvo, muito cordato nas maneiras, muito gentil, de boa disposição para com todo o mundo, muito cordial, disposto a tratar todos muito bem, amável e muito cerimonioso, o que eu continuei a ser até hoje, pois só gosto do trato cerimonioso. Ainda quando o trato tenha de ser íntimo, eu só gosto dele quando conserva um tônus cerimonioso35. Educado numa atmosfera de extremo afeto, de extrema proteção, de extremo carinho; afeto e carinho esses levados a um grau de delicadeza, de dedicação, de envolvimento, por assim dizer, aveludado de sentimentos a todo momento; habituado, portanto, a que me quisessem bem, e muito voltado, eu também, a querer bem aos outros; eu me encontrei de repente, no Colégio São Luís, com o animalis homo do século XX 36. Lembro-me do meu atordoamento! Foi o meu primeiro contato com o igualitarismo37. Iniciava-se assim a grande luta da minha vida 38.

2. Formam-se minhas primeiras ideias de Revolução e Contra34 Simpósio com argentinos 12/10/65. 35 Jantar EANS 21/11/90. 36 SD 5/4/86. 37 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 38 Palestra para Neocooperadores 15/2/94.


29

Revolução As aulas do Colégio São Luís em geral terminavam às 16:30 horas. Os alunos saíam, só permanecíamos aqueles cujas famílias pagavam um suplemento ao Colégio para fazerem ginástica. Toda a cidade ainda estava cheia de luz, e o pátio do recreio, cercado por bambuzais enormes, ficava muito interessante. Olhando para aquele bambuzal, olhando para aquela luz esplêndida que descia, olhando para o Colégio onde havia pouca gente, viam-se os padres de batina, com aquele barrete em cima da cabeça, andando pelo recreio e rezando o breviário. Era um ambiente muito recolhido e muito direito. Eu pensava: “Como é bonito o que Deus fez na ordem da natureza e na ordem da Igreja Católica. Mas ninguém aqui aprecia isto. Entre os alunos, ninguém ou quase ninguém. Ninguém tem amor à Igreja, ninguém tem amor a Deus enquanto autor da natureza” 39. Enquanto ia fazendo aquele exercício de respiração, aquela ginástica toda, punha-me a pensar no estado em que se encontrava o mundo: quantos pecados, quanto horror! E nascia em mim uma certa noção de que esta situação não vinha apenas de um mundo de pecados isolados, à maneira de um quinquilhão de gotas d’água, mas constituía um rio. Havia um todo nisso, que era como que um pecado imenso, que só mais tarde eu vim a chamar de pecado de Revolução. E se fixou em meu espírito a ideia de que deveria haver uma Contra-Revolução para vencer esse pecado40. Em todas essas reflexões havia sementes de seriedade: era uma oposição a esse estado de coisas, e foi por onde eu me curei da moleza41. Eu tinha então 11-12 anos. Mas foram as primeiras letras de um livro chamado Revolução e Contra-Revolução que eu começava a compor, ao mesmo tempo em que me preparava para a grande luta do futuro, que era a da Contra-Revolução42. * Entre os jovens do Colégio São Luís comecei a procurar alguém que tivesse um pouquinho pelo menos de semelhança de ideias comigo. Procurei, procurei a mais não poder de procurar. Durante esse

39 SD 12/5/90. 40 SD 25/11/89. 41 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 42 Palestra para Neocooperadores 15/2/94.


30 tempo de procura, não encontrei um sequer 43. O que de imediato encontrei no meu caminho foi o desdém, o afastamento, a humilhação, o fracasso. O fracasso, porque tentei em várias direções, mas não consegui nada e não encontrei ninguém 44. Foi um dos períodos mais terríveis de minha vida. Eu tinha que resistir à tentação de achar que nunca encontraria ninguém que pensasse como eu, e que eu estava correndo atrás de uma meta absurda. De outro lado, alguma coisa me dizia no fundo da alma: “Não desista! Faça, porque aparece; faça, que você encontra” 45.

3. O problema da pureza Intercorreu ainda outro problema. Na França, no meu tempo, segundo ouvi dizer, o problema da pureza se punha para os meninos aos 15 ou 16 anos. Aqui no Brasil aos 7-8 anos esse problema já nascia. E eu conheço caso de precocidade ainda maior. Resultado, certo dia um de meus primos me chama de lado e diz: — Você sabe como nascem as crianças? — A cegonha traz, não é? — Está vendo que você é um bobo! Aí ele me deu a explicação completa. Eu não quis aceitar. Percebi — para falar a linguagem crua — que entravam aí em cena coisas muito pouco asseadas fisicamente... E depois pensei: assim são eles; é a tal coisa que está por detrás deles! E eu quis surrá-lo, dizendo que ele estava caluniando os maiores de minha família. Eu conto o fato em sua infantilidade, para verem como de uma infantilidade absoluta, e até ridícula, pode ter germinado alguma coisa boa. Percebi então que muitos de meus companheiros nessa idade já estavam podres de corrupção moral. Mas, podres! Imediatamente verifiquei a solidariedade existente entre essas realidades todas que eu via neles e a impureza. E compreendi também que, do outro lado, estava a Religião. E compreendi ainda o seguinte: ou aceito de ser como eles e me entrego inteiramente, ou a vida toda eu vou ser um pária, um homem 43 Palestra para Neocooperadores 26/2/95. 44 Chá 7/3/95. 45 Palestra para Neocooperadores 26/2/95.


31 diferente dos outros, completamente perseguido.

4. A grande resolução tomada aos pés de Nossa Senhora Nossa Senhora ajudou-me muito nessa dificuldade. Devido a um certo conjunto de circunstâncias sobre as quais não vale a pena entrar, e por uma graça muito especial de Nossa Senhora, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, que se encontra no altar lateral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo, e também diante da imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho, que estava na capela do Colégio São Luís, eu consegui, aos 12 anos, a graça de entrar para a Congregação Mariana de meninos do Colégio São Luís. E fiz o seguinte propósito: — Aconteça comigo o que acontecer, eu serei contra esse mundo. Esse mundo e eu somos irreconciliavelmente inimigos. Eu serei a favor da pureza, a favor da Igreja e a favor da monarquia. Serei a favor da hierarquia, serei a favor da compostura, ainda que eu tenha que ser o último dos homens, pisado, esmagado, triturado. Esses valores confundemse comigo, confundem-se com minha vida. Aconteça o que acontecer com os outros, isso vai ser a minha vida, isso eu vou seguir. Aos 12 anos, portanto, essa fixação estava inteiramente formada na minha cabeça46. * A minha mocidade passou-se na tristeza, na indignação, na resolução de lutar, e na alegria — notem bem isto — da esperança de meu futuro. Refugiava-me no futuro, na convicção de que a Revolução um dia iria cair 47. E fui conduzindo um estilo de vida em que eu aparecia muito na vida de sociedade, mas ao mesmo tempo mantinha-me muito retraído 48. E assim eu caminhava para a situação francamente penosa e “vergonhosa” de um moço sem amigos, o que na São Paulinho 49 daquele tempo não se tolerava. Essa era uma espécie de fatalidade para a qual eu

46 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 47 Palestra para Neocooperadores 15/2/94. 48 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 49 — São Paulinho: modo familiar de referir-se à cidade de São Paulo, com a população que tinha naquele tempo. Levantamentos da época mostram São Paulo com 579.033 habitantes em 1920, e 887.810 em 1930 (cfr. Simone Luciana Cordeiro, artigo Moradia Popular na Cidade de São Paulo, publicado em 1º/4/2005, em Histórica, revista online do Arquivo Público do Estado de São Paulo).


32 rumava50. No meio em que eu vivia não havia moços autenticamente católicos. Todo moço, quando chegava à adolescência, parava de frequentar os sacramentos, por causa dos maus costumes 51. Como na minha camada social os moços estavam quase todos completamente desviados, eu era levado a pensar que nas outras classes sociais era a mesma coisa. E que as pessoas eram igualmente sem fé e de má conduta52.

Capítulo II Entrada no Movimento Católico 1. O Congresso da Mocidade Católica Levei uma vida assim até que, numa certa noite do ano de 1928, entrando de bonde na Praça do Patriarca, olho maquinalmente para a igreja de Santo Antônio. E vejo uma faixa de pano, enorme, tomando a igreja de uma ponta a outra, que dizia: “Congresso da Mocidade Católica - De 9 a 16 de setembro”53. Eu fiquei tão espantado ao ver uma faixa falando em Congresso de Mocidade Católica, me abriu um horizonte tão enorme, era uma coisa tão colossal que se abria diante de mim, que meu primeiro movimento foi o de descer do bonde e ir me inscrever no Congresso 54. Mas já era tarde da noite, o secretariado estava fechado e eu deixei para o dia seguinte. No dia seguinte fui efetivamente me inscrever. Atendeu-me um homem pobre, modesto, direito, muito reto e de muito caráter. Ele recebeu-me com enorme simpatia. depois.

O Congresso da Mocidade Católica iria começar dois ou três dias

Este senhor deu-me um distintivo que deveria ser portado por todos durante o Congresso. Era uma fitinha cor azul celeste, da qual pendia uma medalha muito bem cunhada de Nossa Senhora. Não me lembro de que 50 Chá 10/2/95. 51 Palavrinha 7/5/92. 52 Chá 10/2/95. 53 Jantar EANS 22/11/90. 54 Palestra para Neocooperadores 15/2/94.


33 invocação da Vigem era. Eu fiquei numa alegria imensa e guardei aquilo. * Na noite da abertura 55, mandei servir o jantar mais cedo, jantei sozinho e me meti num bonde para ir à igreja de São Bento, onde se realizaria o evento56. Mas eu estava numa tal excitação, que já no bonde tirei a medalha e a pus no peito. Pressas da juventude... nada.

Cheguei lá. Era de se esperar que houvesse gente do lado de fora: Pensei: “Será outro desaponto?”

Abro a porta e se evola de dentro um cântico de talvez umas quinhentas vozes de jovens. A igreja de São Bento estava repleta de rapazes, ocupando as três naves! E em cima, uma galeria de cada lado, também cheia de jovens que não couberam embaixo. No fundo, um cenário que eu nunca tinha visto e que me pareceu realmente muito bonito: um pano grande cobrindo o altar, como símbolo de que o caráter sagrado da igreja estava velado de momento e os leigos podiam falar ali. E vi sentados, com as costas voltadas para esse pano, todos os Bispos do Estado de São Paulo, vestidos como os prelados daquele tempo usavam: batinas entre roxo e lilás, correntes de ouro, cruz peitoral com pedras preciosas, em geral ametista, na qual estava incrustado um fragmento mínimo da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eram aproximadamente em número de dez. Presidindo a solenidade, estava a figura hierática de Dom Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo de São Paulo. * Dom Duarte era um homem reto, magro, teso 57, esguio, com uma cabeça pequena, rosto pequeno, olhar fulminante e dominador, maneiras muito discretas58, com um ar de merecida superioridade, mas de uma superioridade que não se fundava na inteligência (que ele a tinha bem boa), nem nos dotes oratórios (que ele os tinha notáveis), mas no fato de que ele era revestido de uma autoridade sagrada que lhe dava a responsabilidade, o

55 Chá 10/2/95. 56 Palestra para Neocooperadores 26/2/95. 57 Chá 10/2/95. 58 Chá 19/9/94.


34 direito e o dever de mandar59. Espalhavam contra ele que era muito autoritário, impopular, orgulhoso, um homem que não compreendia a bondade pastoral. Tanto mais que ele tinha adotado para si, em seu brasão de armas, uma expressão latina que dizia: Ipsis autoritas et firmitas mea (O próprio Cristo é a minha autoridade e a minha firmeza). E ele tinha conseguido, durante sua vida, dar manifestações de autoridade e de respeito extraordinários 60. Tinha o cabelo todo branco, mas abundante e muito bem alinhado. Parecia uma estátua vestida de Bispo e não propriamente um ser vivo, porque tinha uma cor granítica e quase não se movia, acompanhando tudo com os olhos. Possuía uma superioridade enorme 61. Tinha uma presença majestosa. O Tristão de Athayde comentou-me que quando Dom Duarte entrava em algum ambiente, ainda que fosse um lugar muito modesto, ele tinha a impressão que toda a sala se enchia de damascos. E era a impressão que eu tinha também. Ele causava essa impressão 62. * Eu chegara um pouco atrasado, os discursos já correndo, mas peguei quase todo o programa, o qual me pareceu eximiamente planejado. Eu tive um susto 63 ao descobrir que em um setor de São Paulo, que não era o meu, havia um enorme movimento de moços castos, direitos, católicos apostólicos romanos verdadeiros, e verdadeiros devotos de Nossa Senhora! Eu tinha esperado por anos, sem encontrar nada. E numa volta de esquina, de repente, encontro centenas!64 Eu caía das nuvens 65. * Creio que o primeiro a falar foi o professor Alcebíades Delamare Nogueira da Gama66, professor universitário do Rio de Janeiro e de muito boa família. Trazia uma comenda da Santa Sé no peito. 59 Chá 10/2/95. 60 Chá 19/9/94. 61 Chá 10/2/95. 62 SD 17/9/88. 63 Chá 10/2/95. 64 Palestra para Neocooperadores 15/2/94. 65 Palestra para Neocooperadores 26/2/95. 66 — Alcebíades Delamare Nogueira da Gama (1888-1951) foi advogado, jornalista, político, ensaísta, conferencista, biógrafo, crítico, economista, professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil (RJ). Secretário do Governo Epitácio Pessoa, era monarquista e foi um dos líderes do Centro Dom Vital, encabeçado por Jackson de Figueiredo.


35 Falava sem microfone e sua voz enchia o ambiente. Era fogosíssimo, mas não de um fogo vazio: era o fogo de um homem inteligente, que sabia o que dizia e sabia como dizer, de maneira a inflamar o entusiasmo, o que é propriamente uma definição da eloquência. Falou muito bem e foi muito aplaudido. * O segundo orador da noite foi um personagem que mais tarde seria professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco: professor Alexandre Correia. Era um homem da região de Ribeirão Preto, de face avermelhada, magro sem ser magérrimo, olhos azuis pequeninos, mas cintilando de vivacidade e de inteligência. A família o havia mandado estudar filosofia em uma das universidades católicas de maior fama do mundo, a Universidade de Louvain, na Bélgica. Era um homem de uma lógica férrea, mas de um humor agressivo. Quando começou a falar, cativou as pessoas. * Quando terminou o evento, os Bispos se levantaram e saíram em fila hierárquica, os mais novos primeiro, até fechar com Dom Duarte, que era o Arcebispo. O coro e o público cantavam a todos os pulmões o hino do Congresso da Mocidade Católica 67. Eu achei aquilo muito bonito, fiquei entusiasmado68. Depois foi anunciado que na manhã seguinte haveria Missa celebrada por Dom Duarte no pátio interno da Igreja do Coração de Jesus. Eu fui à Missa. O pátio estava cheio, um interesse enorme e verdadeiro entusiasmo 69. Sendo que, para as mentalidades hollywoodianas e igualitárias, o número tinha um peso fundamental: o que muitos fazem ninguém ousa negar70. Eu saí resolvido a me inscrever na Congregação Mariana da igreja Santa Cecília, porque aqueles rapazes todos pertenciam a Congregações Marianas. Nisto, um rapaz que também saía do Congresso, veio me procurar e 67 Chá 10/2/95. 68 Jantar EANS 22/11/90. 69 Chá 10/2/95. 70 Jantar EANS 22/11/90.


36 disse: — Estamos esperando você para entrar em nosso automóvel (um automóvel para rapazes, então chamado baratinha). Deixamos você em sua casa. Eu disse: “Está muito bem, então vamos. Onde está o automóvel?” Eu simulei que nos conhecíamos, para facilitar as relações. E o automóvel foi direto — eram uns cinco ou seis quarteirões — para a minha casa. Notei que eles me conheciam de vista dos lugares da sociedade onde frequentávamos, e que eram do mesmo meio social que eu. Ora, a descoberta das Congregações Marianas abria a possibilidade de movimentar toda aquela onda de gente das outras camadas da sociedade, e ainda lançar uma ponte de conquista sobre o meio em que eu me movia. Eu pisava nas nuvens, alegre como não imaginam! Os rapazes da baratinha eram da Congregação Mariana e, portanto, seriam muito naturais amigos para toda espécie de relacionamento. O importante era não quererem (e nenhum deles quis; eram muito sensatos neste ponto) bancar os senhorezinhos, embora se visse que eles sabiam bem quem eles eram71.

2. Papel propulsor das Congregações Marianas As Congregações Marianas eram associações fundadas há séculos pela Companhia de Jesus na Europa. Elas se trasladaram para todos os lugares onde havia jesuítas e, portanto, também para o Brasil. Havia em São Paulo, inicialmente, apenas duas Congregações Marianas: a da igreja de São Gonçalo, na Praça João Mendes, e a de Santa Ifigênia, que era naquele tempo catedral provisória de São Paulo, enquanto se construía a catedral muito maior que se encontra hoje na Praça da Sé. Essas duas Congregações Marianas há muito tempo existiam, mas estavam coarctadas e empurradas de lado na vida de São Paulo, exatamente pelo respeito humano e pela agressão que lhes faziam, de fora para dentro, todos aqueles que, segundo a opinião geral, consideravam que um jovem não devia ser católico ou pelo menos ocultar a prática de sua fé. Foram heróis, portanto, esses congregados marianos da primeira hora, pois durante muito tempo só eles praticavam a religião denodadamente, numa São Paulo positivista. Com o êxito extraordinário do Congresso da Mocidade Católica, muitos jovens católicos verificaram que eram numerosos — coisa de que não tinham noção anteriormente, por se sentirem isolados, não se 71 Chá 10/2/95.


37 conhecerem, por estarem esparsos e emudecidos pela pressão do ambiente. Então tomaram alento. E, ao som do hino do Congresso da Mocidade Católica, resolveram unir-se e entrar em massa para as Congregações Marianas, constituindo um pujante movimento de jovens católicos, que ostentavam o distintivo de congregado mariano e compareciam em quantidade às missas dominicais. Ali, em fileiras ordenadas, recebiam a Comunhão e davam o exemplo da profissão oficial — eu diria quase escandalosa — da Fé Católica Apostólica Romana. A sede de fé que animava a juventude era tal que, como um rastilho de pólvora, em pouco tempo as congregações se multiplicaram por todo o Estado de São Paulo e depois por todo o Brasil. Constituíram em nosso País uma verdadeira potência. O Hino da Mocidade Católica continha palavras muito expressivas nesse sentido: Mocidade vibrante e sadia, Deixa a inércia em que estás, Renuncia à inação criminosa, De pé, de pé! Deu a voz de comando Pio XI, Carrilhonam os sinos de bronze, Descem do alto seus brados de fé. Percebe-se aí qual era a mentalidade e o ardor com que o hino da Mocidade Católica ia acompanhando o voo do espírito e do entusiasmo mariano por todo o território brasileiro 72. * Os Bispos não só davam apoio às Congregações Marianas, mas as empurravam para a frente. E ficou uma espécie de vergonha para um vigário não ter Congregação Mariana na sua paróquia. Mais ainda, o bom tom de todo líder mariano era de ser muito exigente, selecionar os bons, expulsar os maus. O bom tom era ser de um catolicismo radical. Uma frase característica era: “A Congregação Mariana tem portas estreitas para entrar e portas largas para sair”. O assunto da castidade era tratado com franqueza, com coragem: combatiam-se os bailes, combatiam-se todas as diversões mundanas. Promoviam-se retiros enormes durante o carnaval. O que podia haver de 72 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90.


38 bom estava lá 73. Todos os congregados marianos assistiam em comum à Missa aos domingos, em bancos reservados na igreja e portando uma grande fita azul, cantando em latim os Salmos de Maria, alternados com o coro. O que determinava uma diferenciação e uma quebra violenta do respeito humano. O bom congregado mariano comungava todas as semanas, mas o congregado de elite comungava todos os dias 74. E assim era frequentíssimo o número de congregados de comunhão diária e oração também diária do terço. Muitos faziam meditação, leitura espiritual. Os elementos de elite dessas Congregações Marianas se conheciam e faziam uma só roda, em São Paulo e fora de São Paulo. O que criava, dentro do movimento mariano, uma corrente de pensamento religioso cheia de pujança75. E, de ardor em ardor, o movimento mariano foi crescendo no Brasil, não só em quantidade, mas em qualidade76. E isso “quebrou o queixo” da impiedade em São Paulo de um modo inimaginável, mas também, dentro de pouco tempo, no Brasil inteiro 77.

Capítulo III Na liderança do movimento mariano 1. A Congregação Mariana da igreja de Santa Cecília Eu não sei bem quantos membros chegou a ter a Congregação Mariana de Santa Cecília, na qual eu entrara. Creio que no seu apogeu alcançou 120 ou 130 membros. Infelizmente, havia muitos que entravam e muitos que saíam. A Congregação mantinha um núcleo fixo de cerca de 70 pessoas, não mais do que isso, e o resto era gente em rotação. A média das idades variava entre 16 e 26 anos, portanto pessoas na 73 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 74 — Isto era facilitado pelo fato de que, antes do Concílio Vaticano II, era corrente a distribuição da Comunhão fora da Missa, na parte da manhã. 75 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 76 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 77 SD 18/6/88.


39 força da mocidade. Havia umas dez pessoas mais velhas, de trinta para quarenta anos. Eu me situava na média-média: entrei para a Congregação Mariana com 20 anos.

2. As reuniões da rua Imaculada Conceição: germina a R-CR Com aqueles que eu julgava suscetíveis de ter um espírito católico mais aberto para os grandes problemas contemporâneos, eu procurava conversar, e formávamos então uma rodinha. Essa rodinha começou a reunir-se na sala da biblioteca da Congregação de Santa Cecília, situada no prédio da rua Imaculada Conceição n° 59. Era uma sala muito bem escolhida para isso. Em primeiro lugar, por ser a única que possuía uma mobília verdadeiramente cômoda, na qual as pessoas podiam passar duas horas sentadas. Ademais, era um lugar isolado, no terceiro pavimento 78. Ali formamos um grupinho que se reunia toda a noite durante uns dois ou três anos 79, e todas as noites nós nos encontrávamos nessa sala para conversar 80. As conversas duravam duas horas, duas horas e meia, em geral versando sobre temas dos quais nasceria de futuro o livro Revolução e Contra-Revolução81. Entravam também em pauta assuntos de piedade, leitura espiritual, religião, comunismo, aristocracia, Revolução Francesa e outros mais 82.

3. Reuniões todas as noites. Gesta-se a TFP Os anos 1928, 29, 30 foram portanto um dos mais belos períodos de nossa vida. Lembravam um pouquinho as tardes de Adão no Paraíso, quando Deus descia e conversava com ele (Gen. 3,8) 83. Como éramos poucos, eu insistia em que deveríamos fazer estudos afins, para podermos exercer uma ação intelectual comum. O que havia de extraordinário é que era palpável nessas conversas uma alegria, um bem-estar de alma, um voo de intuição. De tal maneira isto era assim, que como já disse, tomamos o hábito de ir todas as noites à sede da Congregação Mariana para conversar. O papel da graça nessas

78 SD 18/8/73. 79 Palestra para Neocooperadores 26/2/95. 80 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 81 Jantar EANS 10/4/87. 82 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 83 Despacho com os franceses 25/7/94.


40 conversas era brilhantíssimo!84 A Contra-Revolução, que havia nascido no meu espírito como um propósito a realizar, ali já estava viva e começava a andar85. Ali formou-se a semente de nosso Grupo 86. Em outros termos, dentro do movimento das Congregações Marianas, os mais duros, os mais rijos, os mais enérgicos, os que tinham ideias mais contra-revolucionárias, formamos um núcleo interno. Esse núcleo interno tornou-se a parte motriz desse movimento magnífico. Esse núcleo veio, mais tarde, a constituir-se na Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição Família e Propriedade (TFP)87. Alguns dos que pertenciam àquele primeiro grupo da Congregação de Santa Cecília, com o tempo se afastaram 88.

4. Componentes do grupo inicial Esse grupo inicial, composto por Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra, Dr. Fernando Furquim de Almeida, Dr. José de Azeredo Santos, Dr. José Fernando de Camargo, Dr. José Carlos Castilho de Andrade, Dr. Adolpho Lindenberg, Dr. José Benedito Pacheco Sales tomou um prestígio maior quando fui mais tarde eleito deputado 89. Dada a minha facilidade de falar, de exprimir-me em público, fazer discursos, eu era muito convidado para pronunciar conferências 90. Comecei a fazer discursos91 sobre temas polêmicos 92, nas mais variadas paróquias de São Paulo, nas do interior de São Paulo, e nas de várias partes do Brasil. Estava continuamente em viagem falando para esses, aqueles e aqueles outros, mantendo as melhores relações com Arcebispos, Bispos e padres.93 Tudo isso contribuiu para colocar-me mais ou menos em evidência dentro do movimento mariano daquele tempo 94. É preciso esclarecer que, entrando para esse movimento, naturalmente aconteceu o que se dá com todos os outros movimentos: os 84 Jantar EANS 10/4/87. 85 Palestra para Neocooperadores 26/2/95. 86 SD 7/7/73. 87 Palestra para Neocooperadores 15/2/94. 88 Jantar EANS 10/4/87. 89 SD 25/8/73. 90 Almoço EANS 23/11/90. 91 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 92 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 93 Palestra para Neocooperadores 26/2/95. 94 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54.


41 mais ardorosos tomaram o realce e a dianteira. Como entrei para ele com todo o ardor de minha alma, aconteceu que a generosidade dos que comigo lutavam empurrou-me para lugares de realce, que não disputei nem procurei 95.

5. Espírito aguerrido e apoio aos “cristeros” O que fez esse Grupo entre 1928 e 1931?96 No México, a perseguição religiosa lavrava. O heroico movimento dos cristeros levantara-se contra a ditadura mais ou menos comunista de Calles e Obregón. Os cristeros fizeram uma revolta católica, que se transformou depois numa revolução e numa guerra civil. Morreram inúmeros mártires, um dos quais o jesuíta Padre Pró [Miguel Agustin Pró], beatificado há pouco tempo. Lembro-me de que movemos um protesto contra o governo ateu do México, que foi levado ao Consulado daquele país em São Paulo. Protesto tão caloroso e polêmico, que esse Consulado, ele também animado pelo espírito polêmico do tempo, recusou-se a receber, dizendo que não podia encaminhá-lo a seu país, de tal maneira era injurioso. O que, de nossa parte, determinou também outros revides 97. Foi também nessa época que fundamos a Ação Universitária Católica. Pelo ano de 1931, nosso grupo estava na direção do movimento mariano. E o movimento mariano era o mais pujante dos movimentos católicos de todo o Brasil 98.

Capítulo IV Faculdade de Direito: Daniel na cova dos leões 1. Durante a Revolução de 1924 Dois anos antes de eu entrar na Faculdade de Direito, houve um 95 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 96 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 97 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 98 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54.


42 grande abalo em São Paulo com a revolução do General Isidoro Dias Lopes99. Foi bombardeado o Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo estadual, obrigando o então Presidente de Estado, Carlos de Campos, a fugir para o interior. Como era o mês de férias, eu estava em Santos (local pelo qual eu tinha verdadeira loucura), hospedado na casa de meu tio Nestor. Eu vinha da praia — naquele tempo as praias ainda não se haviam transformado em lugares de nudismo ou seminudismo como ficaram depois —, quando observei uma pessoa que, do alto da casa, dizia para as pessoas em baixo: “Arrebentou uma revolução em São Paulo”. Eu me detive e perguntei: — Mas como? Arrebentou uma revolução em São Paulo? — Arrebentou, sim. Você não sabia? — Não100. Fui fazer a toilette e, quando desci, encontrei o ambiente completamente diferente, e os boatos a chegar dentro de casa: todos os membros do Governo estavam cercados no Palácio Campos Elíseos; o General Isidoro Lopes tinha efetivamente se revoltado, e de fora de São Paulo, não sei de que arredor, dava canhonaços sobre a cidade; uma bala já havia atingido o Palácio dos Campos Elíseos, embora felizmente ela não tivesse deflagrado; e notícias horríficas de bombas que atingiram isso, aquilo e aquilo outro. Dentre esses boatos, um especialmente remexeu com Dª Lucilia, e também a mim: uma bomba teria derrubado a torre da igreja do Sagrado Coração de Jesus (na São Paulinho de outrora, era um dos mais altos edifícios). E a imagem dourada do Sagrado Coração de Jesus tinha caído por terra e se partido. Logo em seguida, outro boato: o povo havia invadido o palácio, sequestrado o Presidente, e os quatro Secretários de Estado haviam sido degolados. As cabeças deles estavam nas pontas de lanças, na entrada do portão.

99 — Isidoro Dias Lopes (1865-1949) foi um militar gaúcho que já havia participado do movimento pela derrubada da Monarquia, e também da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul. Ele foi o comandante da chamada Revolução de 1924, iniciada a 5 de julho, e ocupou durante 23 dias a cidade de São Paulo. O exército legalista (leal ao presidente Artur Bernardes) fez a contra-ofensiva, canhoneando São Paulo, que também foi bombardeada por aviões do governo federal. 100 SD 23/8/80.


43 Ora, um desses Secretários era meu tio 101. Então, naturalmente, terror. Não se podia telefonar para São Paulo, porque as ligações estavam cortadas. E os boatos ferviam. Afinal, já tarde da noite ouço bater na porta de meu quarto: “Plinio, acorda! acorda!” Saí do meu profundo sono da adolescência e disse: “O que há?” — Os Secretários de Estado não morreram, conseguiram fugir, e o governo também fugiu para Guaraúna. * Logo depois da revolução, o presidente do Estado, Carlos de Campos, voltou para São Paulo. Já o General Isidoro fugiu em várias composições ferroviárias da companhia inglesa São Paulo Railway (naquele tempo havia poucas estradas de rodagem). E embarcou com muita tropa em trens que ele requisitou pelo interior do Brasil*. * Os rebeldes retiraram-se para Bauru, de onde Isidoro Dias Lopes seguiu para Três Lagoas, no atual Mato Grosso do Sul, entrando em confronto com as tropas federais ali sediadas e foi derrotado. Marcharam então rumo a Foz do Iguaçu, no Paraná, onde se uniram ao chefe comunista Luís Carlos Prestes.

Como estava velho, Isidoro fugiu para a Argentina e deixou Luís Carlos Prestes como comandante dessas tropas. Luís Carlos Prestes, a partir daí, formou uma coluna de exército em trem que percorreu o Brasil inteiro disseminando a revolução. Começava dessa maneira a Coluna Prestes, que foi o primeiro e arcaico sintoma da revolução comunista no Brasil.

2. Em 1930, ainda o perfume da era São Pio X O golpe de 1924 culminou com outra revolução, a de 1930. Aí a República aristocrática foi jogada ao chão e subiu Getúlio Vargas 102, que 101 — Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos (3/8/1873-18/4/1938), irmão de Dª Lucilia, primogênito da família. Ele foi Secretário da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo entre 1924 e 1927. 102 — Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), político brasileiro responsável pela Revolução de 1930 que derrubou a ordem aristocrática da chamada República Velha. Impôs ao Brasil uma série de medidas populistas, de sabor socialista, que modificaram profundamente a fisionomia do País. Em célebre discurso, Dom Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo de São Paulo, afirmava que "a erva daninha do comunismo a trouxe para São Paulo a mochila de certos próceres de 1930" (v. O Século, 11/9/32). Getúlio governou o Brasil durante 15 anos ininterruptos, primeiramente como chefe do "Governo Provisório"(1930-1934); depois como Presidente da República escolhido em eleição indireta pela Assembleia Constituinte (1934-1937); e por fim ditador do Brasil pelo golpe que criou o Estado Novo (1937-1945). Deposto em 29 de outubro de 1945, novamente se elegeu Presidente da República no pleito de 1950. Governou de 31 de janeiro de 1951 até 24 de agosto de 1954, quando se suicidou. Dele, Dr. Plinio traçou inexorável perfil, comparando-o a Napoleão Bonaparte, em artigo no Legionário


44 governou longamente o Brasil por quinze anos 103. Quando estourou a Revolução de 1930, as condições religiosas no Brasil eram profundamente diferentes das de hoje. Já na época de meu ingresso nas Congregações Marianas, encontrei o Brasil ainda dentro da atmosfera do pontificado de São Pio X e sob a ação benfazeja deste104. Era uma atmosfera religiosa extremamente conservadora, no melhor sentido da palavra, com muita piedade e pureza de costumes, dentro de um meio católico praticante105. São Pio X tivera que lutar, durante o seu pontificado, contra uma heresia que nascera sob o nome de modernismo. Esta heresia tinha como intenção infiltrar-se na Igreja de modo clandestino, fazer com que seus adeptos ganhassem postos na Hierarquia e, afinal, modificá-la no sentido herético, não de fora para dentro como fez Lutero, mas de dentro d’Ela mesma, usando o nome da Igreja e ocupando postos na sua direção, para transformá-la num sentido heretizante. Essa heresia não era apenas teológica (relativizava todo o Magistério da Igreja, dando um sentido falso, e no fundo gnóstico, à religião católica), mas tinha repercussões no terreno social. Se São Pio X não houvesse reagido, as ideias dos adeptos da heresia modernista teriam levado a Igreja, no campo social, a uma posição francamente socialista, com tendência comunista. Todos esses males foram vistos pelo Santo Pontífice com um olhar angelicamente límpido, o que o levou a fulminar contra essa heresia modernista vários documentos, dos quais o mais famoso foi a encíclica

de 30/10/38, portanto em pleno Estado Novo da era Vargas: "Veio-nos tudo isto à mente a propósito do Sr. Getúlio Vargas, ao qual nem os melhores amigos podem atribuir as qualidades militares de Napoleão, mas ao qual, em compensação, nem os mais empedernidos inimigos podem negar uma estratégia tão invencível quanto a do Corso, quando o combate é não de campo raso entre exércitos aguerridos e garbosos, mas de duelo pertinaz e subtil, no terreno traiçoeiro da politicagem, escorregadio para todos os pés, exceto para o passo de fada do Presidente da República. "Incontestavelmente, na luta livre e romana, dentro da liça elástica e cheia de alçapões que é a política brasileira, ninguém tivemos ainda que possuísse a napoleonicidade política do Sr. Getúlio Vargas. Para ele não tem havido Waterloos. Ulm, Yena, Marengo são para ele historietas insignificantes. "Napoleão derrotava seus adversários fazendo-os recuar diante de seu exército agressor. Getúlio Vargas é mais completo, mais sublime, mais absolutamente total na arte de destruição. Ele não faz recuar ninguém. Como um mágico, abraça... e elimina. Ora, positivamente eliminar é muito mais do que fazer recuar. Quem recua, vive. Quem é eliminado desaparece". 103 SD 19/10/83. 104 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana (gravação) 21/6/90. 105 Palavrinha canadenses 17/8/93.


45 Pascendi Dominici Gregis. Nesta, o problema modernista era exposto e levado ao conhecimento de todos os fiéis. Denunciada essa conspiração, os elementos vivos e sadios da Igreja puderam iniciar uma ação antimodernista a fundo, que deixou inerte por muitos anos (na América do Sul por muitas décadas) o adversário falacioso que procurara infiltrar-se na Igreja. Em consequência, estabeleceu-se na Igreja uma grande paz interna. Reinava n’Ela a paz de Cristo. A paz de Cristo, sim, no Reino de Cristo. Todos estavam reunidos em torno do mesmo Pastor Supremo, dos respectivos Episcopados nacionais, do mesmo Direito Canônico, da normalidade eclesiástica. E a união entre o Clero e os fiéis era completa, assim como a dos clérigos entre si. Eu portanto alcancei a Igreja apresentando esse aspecto edificante. E, como filho de uma senhora eminentemente católica, cuja influência em minha formação religiosa foi das mais profundas, desde muito cedo comecei a amar a Igreja com transportes de entusiasmo em minha alma. A Igreja Católica Apostólica Romana era, sem dúvida, uma das grandes forças do Brasil, cujo papel jamais será suficientemente encarecido pelos historiadores brasileiros.

3. Reticências à prática religiosa para os homens Quanto ao mundo de fora da Igreja, verifiquei que estava dividido em dois. Havia uma parte da opinião pública (e uma parte bem considerável nas camadas altas da sociedade) que era nitidamente reticente em relação à Igreja. Para ela, só ao sexo feminino ficava bem praticar a fé. Para o homem, a opinião pública exigia, contraditoriamente, que não deveria ter fé, deveria não ser católico. A profissão oficial da fé pelo homem qualificava-o entre os maricas, carolas, de capacidade intelectual e humana subsuficientes; enfim, entre os idiotas. Atemorizados por esse julgamento geral, os homens frequentemente não tinham a coragem de manifestar a sua fé. E um católico jovem que a quisesse professar ficaria extraordinariamente isolado no seu meio. A quase totalidade dos moços de minha geração, no ambiente social em que eu vivia, eram por causa disso propensos a deixar a fé.


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4. Na Faculdade de Direito e a cova dos leões Foi nesta situação que, no início de 1926, inscrevi-me como aluno da histórica Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, foco famoso de laicismo e de positivismo jurídico, oposto à doutrina católica106. Ser estudante de Direito nessa Faculdade era mais ou menos sinônimo de ateu e frequentador de casas de perdição 107. Haviam me avisado que, se o aluno se dissesse contrário à Revolução Francesa, podia ser perseguido. E se se afirmasse monarquista era tido, então, como um animal antediluviano. Ora, eu era tudo isso ao mesmo tempo. E carregava sobre mim o fardo daquilo que os outros odiavam e que eu mais amava 108. De maneira que, no meu ingresso na Faculdade de Direito, tive a impressão de ser um Daniel entrando na cova dos leões 109. Renovei o propósito de manter-me puro e católico militante até o fim do curso. E, aparecendo a oportunidade, virar essa situação de pernas para o ar dentro da Faculdade110. Eu me lembro que quando fui me matricular, tive tal medo da luta que, na fila para apresentar o requerimento, sentia o meu coração bater na garganta, pelo receio de que essa luta pudesse não ser bem sucedida111. Minha família teve sempre professores ali, e tinha muitas afinidades com o espírito da Faculdade de Direito. Além do mais, eu tinha primos estudando também ali. Desse ponto de vista, ela não me trouxe nada de novo. Detestei-a e estimei-a desde o primeiro momento em que nela ingressei 112. Eu tinha então 17 anos 113. Ali fiz todo o meu curso de Direito, formando-me em 1930114. Quando terminei o meu curso, estava com 22 anos 115.

106 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana (gravação) 21/6/90. 107 Palavrinha 27/9/92. 108 CCEE 30/5/91. 109 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 110 Palavrinha 24/2/86. 111 Encerramento Congresso Neocooperadores 24/7/94. 112 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 113 SD 4/8/73. 114 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 115 Palestra para Neocooperadores 26/2/95.


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5. Fase inicial: ação individual e de resistência (1926-1928) Nos primeiros anos de Faculdade, minha atuação não foi marcada por manifestações ostensivas de fé. Mas, sempre que atacavam a doutrina católica em minha presença, eu intervinha e dizia que não estava de acordo por tais e tais razões. E depois acrescentava: “Isto porque a doutrina católica impede, proíbe, condena”. Os colegas perguntavam: — Mas então você é católico assim? — Sim, senhor, sou exatamente assim, católico. Naquele tempo eu já era muito encorpado. Engordei ainda mais depois. E, para a minha geração, era também uma pessoa alta, com um timbre de voz seguro que produzia força de impacto. O resultado foi que já não me procuravam para conversar. Se eu chegasse em uma roda, ninguém fugia; se eu não chegasse, ninguém me chamava. Quando eu me aproximava, recebiam-me com um olhar neutro, nem de desdém nem de atração. Depois mudou 116.

6. Minhas discussões com o Paxá Havia na Faculdade um estudante de Direito, de boa família, que se chamava Antonio Mendes de Almeida. Era comunista e tinha, não sei por quê, o apelido de Paxá. Eu mantinha grandes discussões anticomunistas com o Paxá. O Paxá falava contra a Religião Católica, eu falava a favor. Íamos para um café em frente à Faculdade, e em torno de nós se formava uma roda enorme117. A discussão atraía o público e eu tinha oportunidade de fazer apostolado católico junto aos estudantes. Muitos colegas já iam ao café para ver a discussão do católico com o comunista. Era uma novidade118.

7. Outros congregados na Faculdade: a contraofensiva (19281930) No meu quarto ano de Faculdade (1929), começaram a entrar, como calouros, muitos estudantes congregados marianos 119. Eu não os conhecia, eram de outras congregações espalhadas por 116 Relato Almoço EANS 14/6/82. 117 SD 4/8/73. 118 Reunião Normal 3/10/69. 119 Almoço EANS 14/6/82; SD 13/8/88.


48 São Paulo, mas apareciam lá com o distintivo de congregado na lapela 120. Pensei: “Chegou a hora da política!” Comecei a procurá-los, coordená-los, e formamos um grupo121 de quatro rapazes, se não me engano. Comigo fazíamos cinco* 122. * Na verdade era um total de nove, contando com Dr. Plinio.

O desconcerto dos revolucionários vendo que eu tinha seguidores foi uma coisa sem nome! Aí começou a contraofensiva. Criei o hábito de me encontrar com os congregados durante os intervalos e conversar com eles. Então, presença volumosa e voz ainda mais volumosa do que a presença. Na laica Faculdade de Direito, um colega passar pelo claustro e ouvir a pergunta: “Mas então, a novena lá em sua igreja, quando é?”, era uma bomba! Os adversários cometeram o erro de se aproximarem da nossa roda e fazer cara de riso. Quando começavam a fazer cara de riso, eu aumentava o tom da voz e conduzia a conversa para o terreno da doutrina. Diziam: “Diga lá, Plinio, você acha então que tal coisa é assim?” Eu: “É claro que é, pois imagine!”, e com a voz alta. A discussão atraía público, fazia roda; e na roda ficava implantado o estandarte de Nossa Senhora, isto em plena Faculdade de Direito 123. Isso produziu uma mudança no ambiente. Explico. Quando entrei para a Faculdade, pude observar que três veios de alunos ali se destacavam e gozavam de prestígio: os intalactas (expressão depreciativa para indicar os intelectuais de espírito cartesiano), que eram os primeiros da turma e conversavam entre si com ar de superioridade; os grãfinos, que se isolavam num círculo fechado; e os pândegos, que contavam piadas e coisas pornográficas. Propositalmente eu me punha fora do circuito desses admirados, e me colocava na linha dos alunos comuns, com um pouco de acesso junto aos intalactas, um pouco de acesso junto aos grã-finos e nenhum acesso junto aos debochados (eu não os procurava e eles não me procuravam). Quando viram a minha contraofensiva, o que fizeram os intalactas, os grã-finos e os pândegos? 120 SD 13/8/88. 121 Relato 14/6/82. 122 SD 13/8/88. 123 Relato 14/6/82.


49 Coisa curiosa, os grã-finos se tornaram um tanto menos gélidos. Quanto ao mais, fingiam não perceber o que estava se passando. Os intalactas se viram obrigados a tratar das matérias religiosas. E assim entrava o tema proibido, o tema religioso. Os pândegos, o que fizeram? Eles, que antigamente faziam do centro do claustro o seu teatro de operação, passaram a escolher os cantos, e o público deles diminuiu, porque ficava debochado demais, diante de nós, imergir naquela pândega124.

Capítulo V Ação Universitária Católica dentro das Arcadas 1. Constituição da “A.U.C.” Depois de formarmos esse pequeno grupo de amigos, propus a eles que lançássemos um jornal chamado O A.U.C., Ação Universitária Católica125. Seria uma publicação de luta a favor da Religião Católica dentro da Faculdade. Meus amigos ficaram desde logo muito entusiasmados com a ideia. Tive então uma alegria e satisfação enormes com isto. Com a aprovação do diretor da minha Congregação Mariana, Monsenhor Paulo Pedrosa126, formamos uma organização com o mesmo nome, chamada Ação Universitária Católica, a A.U.C.127. Logo que fundada (junho de 1930), a Ação Universitária Católica tomou o mesmo colorido intransigente das Congregações Marianas 128. Não se tratava ainda da Ação Católica, mas de um movimento, de uma liga de congregados marianos universitários que faziam a propaganda católica dentro da Faculdade de Direito e, como veremos, de outras

124 Almoço EANS 14/6/82. 125 Palavrinha 27/9/92. 126 — Paulo Marcondes Pedrosa (1881-1962), ordenado sacerdote em 1904, foi coadjutor e depois pároco, até 1932, da igreja de Santa Cecília, em São Paulo. Monsenhor e Camareiro secreto em 21 de abril de 1920. Em 27 de abril de 1932 entrou para a Ordem Beneditina no mosteiro de São Bento, do qual foi Prior, passando a ser conhecido como D. Pedrosa. 127 SD 13/8/88. 128 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54.


50 Faculdades129.

2. Jornal “O A.U.C.” nas Arcadas Resolvemos distribuir O A.U.C. na Faculdade130. Era um jornalzinho sustentando ideias católicas desde a primeira letra até a última131. Como a Faculdade de Direito era um antro de ateísmo, os meus companheiros ficaram inicialmente com receio de distribuir o jornal. Então eu combinei com eles: 132 — Vamos fazer o seguinte: a Faculdade tem várias portas. Vocês ficam em tal, tal e tal porta (eram portas secundárias), e eu fico na porta principal. Pela porta principal passavam os filhos da alta burguesia esquerdista, quase todos meus conhecidos, alguns meus parentes, e outros mais ou menos amigos. Peguei um maço do jornal, pus em baixo do braço e coloquei-me nessa porta. Começaram então a chegar os automóveis trazendo alunos, a maior parte em automóveis ricos. Quando o colega descia do automovel, eu me apresentava e dizia: “Olha aqui, um jornal da organização dos jovens católicos da Faculdade”133. Eu falava isto com cara séria, mas de modo amável, sem provocação134. Confesso que eu sentia o coração bater dentro da garganta. Porque o 129 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 130 SD 13/8/88. 131 Palestra para neocooperadores 18/11/90 — O primeiro número saiu em 1° de outubro de 1930, e trazia o Manifesto Aucista, que proclamava, alto e bom som, “a convicção inelutável de que já não é mais possível vivermos no regime de separação entre a consciência religiosa e a consciência cívica”; que “a mocidade católica universitária abraça, na sua plenitude, os dogmas da Santa Igreja”; que “ou somos integralmente católicos ou somos traços de união entre o catolicismo e o bolchevismo”; e que “o Estado agnóstico tem sido um laboratório de perniciosas hipocrisias político-religiosas”. E conclamava os “universitários católicos que ainda não se resolveram a agir, para que se definam de vez, e dos que já estão prontos para a luta, para que deem a sua adesão inadiável à A.U.C.” (cfr. http:www.pliniocorreadeoliveira.info). Este manifesto foi lançado simultaneamente na Faculdade de Direito, na Faculdade de Medicina e na Politécnica, e trazia uma nominata de 27 estudantes católicos, sendo nove da Faculdade de Direito, dez da Politécnica e oito da Faculdade de Medicina. 132 SD 13/8/88 — V. também em: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/AUC_01_N%C2%BA_01_1930_Manifesto.htm. 133 Palavrinha 27/9/92. 134 CCEE 30/5/91.


51 perigo era que eles fizessem debique, me arrancassem os jornais da mão, queimassem ali mesmo e aprontassem uma palhaçada. A qualquer momento podia sair isso. E não adiantava eu reagir fisicamente, porque era um contra quinhentos. Nossa Senhora protegeu-me e não houve nenhum que dissesse qualquer palavra desagradável, não houve nenhum que jogasse o jornal no chão. Nada! Todos o receberam cortesmente, alguns agradeciam e levavam o jornal para dentro 135. Durante a aula, todo mundo leu o jornal. Terminada esta, bateu o sino, todas as portas das salas de aulas se abriram, os alunos se encontraram no pátio. Circulei pelo meio para ver se alguém dizia qualquer coisa. Não! Normais, sem encrenca nenhuma. Eu caí das nuvens! E pensei: “Sim, senhor. Eles já perceberam que tem um movimento mariano pujante aí fora e que não podem mais abordar as coisas como abordavam antigamente”. Os meus mais jovens companheiros de ação, vendo que eu fazia a distribuição do jornal e não acontecia nada, tomaram-se de coragem e começaram a distribuir também. E o jornal católico foi espalhado por toda a Faculdade. Estava dado o passo para a frente 136. Estava fundada a Ação Universitária Católica 137. E a famosa Faculdade de Direito, bastião do ateísmo, recuava138. O jornal passou a ser, se não me engano, mensal 139.

3. A primeira punhalada pelas costas Aproximaram-se depois mais alguns, e eu me sentindo nas nuvens de satisfação. Foi quando tomei a primeira punhalada pelas costas da minha vida. Dois dos que tinham entrado na A.U.C. começaram a fazer propostas e sugestões meio derrotistas, sugerindo pôr alguma coisa de socialista no jornal e outras matérias do gênero. Eu espumei: — Socialista?! Onde é que vocês estão com a cabeça? Um católico não pode ser socialista, menos ainda comunista etc. etc. etc. 135 Palavrinha 27/9/92. 136 SD 13/8/88. 137 Palavrinha 27/9/92. 138 CCEE 30/5/91. 139 Palestra para neocooperadores 18/11/90.


52 — É, você é muito intransigente. Olha como você está querendo impor a sua opinião! Nós não pensamos como você. — Não, não se trata disso, vejam os documentos dos Papas. — Você está vendo? Você fica indignado com isso. Seja amável, admita que eu esteja errado e dê um lugar para o meu erro. — Como dar lugar ao erro? Afinal, acabei percebendo que eles não estavam sendo sinceros. Confesso que tive um abatimento dos maiores da minha vida. E pensei o seguinte: “Lutar contra inimigos, vá lá. Mas lutar contra amigos, enquanto se tem inimigos pela frente; sentir o arranhão do punhal da traição na nuca, isto é uma vida que não faz vida, é uma coisa horrorosa”. Nossa Senhora me ajudou e me veio a ideia de que Ela mandaria outros, de que essa situação teria remédio, de que afinal eu já havia vencido outros obstáculos. E me reanimei.

4. Nossa influência nas eleições do Centro Acadêmico mais.

O fato é que esse grupo de congregados foi crescendo cada vez Qual foi a repercussão de nossa atuação na Faculdade? 140

No período de meu quarto ou quinto ano de Faculdade, houve eleições para o Centro Acadêmico 141. Eram eleições importantes, porque ser presidente do Centro Acadêmico era um modo de se lançar na carreira de deputado, promotor público e outras 142. Havia dois candidatos. E eu me dava bem com ambos. Certo dia, saindo da Faculdade, um deles veio em minha direção. E saudou-me com uma amabilidade maior que a costumeira: “Ilustre amigo, como vai?” “Ilustre amigo?” era uma coisa que não se dizia entre moços. Eu respondi: — Ah! bem, e você como vai?

140 SD 13/8/88. 141 — O Centro Acadêmico XI de Agosto era o órgão representativo dos estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Seu nome vem da data em que se promulgou a lei autorizando a formação das duas primeiras Faculdades de Direito do Brasil, uma em São Paulo e outra em Olinda: 11 de agosto de 1903. 142 Relato 14/6/82.


53 — Ah! Venha cá. Quero falar com você uma coisa. Ele me puxou para dentro de uma loja e disse: — Estou concorrendo ao cargo de presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto e quero que você me garanta a votação dos marianos. Você garante? De um só relance percebi que, entre os alunos não congregados, os congregados tinham muito prestígio. E que, se adotássemos um certo candidato, muitos votariam conosco. Eu imediatamente respondi: — Olha, Fulano, você sabe que eu sou seu amigo. E por amizade eu mandaria votar em você. Mas a questão não é tão simples: não posso dispor dos votos deles dando como argumento que você é meu amigo. Para levá-los a votar em você, tenho que provar a eles que a sua candidatura seria vantajosa para a causa católica. Aí eles podem se mover. Mas, assim, só porque você é meu amigo, não se moverão.

Se você tomar posição a favor dos seguintes pontos, eu indico você: 1°) no caso de uma campanha a favor do divórcio, você toma uma atitude contra, como presidente do Centro Acadêmico; 2°) se houver um trabalho a favor do ensino religioso nas escolas, você toma atitude a favor; 3°) e também tomará posição a favor da capelania nas Forças Armadas e nas prisões do Estado. Ele disse: — Você faça a carta que eu assino. Eu: — Olhe, a coisa não é tão simples, porque tenho que consultar o outro candidato. Porque se ele der mais do que você, terei que mandar votar nele. Ele sorriu, como sorriem os políticos, e me disse: — Bem, você fale com o outro, é um direito seu. Procurei o outro. — Venha cá, Fulano. — O que você quer? — Olha, Sicrano acaba de me oferecer isso assim e eu acabo de responder a ele tal coisa. Se você me der mais tal ponto, eu dou preferência a você, porque neste ponto ele não cede. Você topa a parada? Na hora ele disse: assino.

— Pois não. Não tem dúvida nenhuma. Você faça a carta que eu


54 Procurei o primeiro e disse: — Olhe, Fulano ganhou. Em tal ponto que você não cede, ele cede, e é um ponto conveniente à Igreja. Eu lamento que você não ceda. O outro não quis ceder. Despedimo-nos amigos. Aliás, ficamos amigos até o fim da vida. Consequência: venceu o candidato apoiado por nós. E para a São Paulinho daquele tempo, ficou constando que os dois candidatos lançaram chapas católicas, quando até então era uma vergonha ser católico. Ademais, o programa mais marcadamente católico venceu 143. Foi um escândalo, pois de um presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto se esperava que fosse divorcista, socialista. Não! Pelo contrario, ele se pronunciava contra o divórcio. Era do outro mundo 144. Quer dizer, aquilo foi um triunfo de primeira ordem para a Religião católica!

5. Formatura: Missa no pátio da Faculdade Nisto terminou o meu curso. E chegou a hora da formatura. No dia da formatura (11 de Dezembro de 1930), no pátio interno da Faculdade de Direito aconteceu uma coisa que nunca se tinha visto em cento e tantos anos de vida da Faculdade. Até então, a Missa de formatura era realizada na igreja de São Francisco, ao lado da Faculdade de Direito. Eu pensei: “Vou reivindicar que se faça a Missa dentro da Faculdade de Direito. E convidarei o Arcebispo (Dom Duarte) para celebrar a Missa. Mas primeiro convido Dom Duarte, e depois digo na Faculdade que Dom Duarte está disposto a ir celebrar a Missa lá dentro”. Fui com uma comissão visitar Dom Duarte e perguntei se estaria disposto a celebrar dentro da Faculdade. Ele ficou muito contente, mas hesitou um pouco, permanecendo na dúvida de aceitar ou não. Por fim disse: — Eu lamento, mas não posso ir, por causa de anteriores atritos meus com a Faculdade. Mas dou autorização para que a Missa seja rezada lá dentro. Eu mantinha correspondência e relações pessoais com um famoso pregador jesuíta daquele tempo, o Padre Leonel Franca 145. Era uma 143 SD 13/8/88. 144 Relato 14/6/82. 145 SD 13/8/88 — Leonel Edgard da Silveira Franca (1893-1948): Entrou para a Companhia de Jesus em


55 sumidade, tinha fama no Brasil inteiro 146. Escrevi-lhe uma carta dizendo: “Padre Franca, o Sr. está sendo convidado, por meu intermédio, pelos alunos da Faculdade de Direito que colam grau este ano, para vir fazer um sermão aqui. O Sr. vem?” Ele mandou-me uma resposta muito amável, aceitando o convite. Em seguida procurei a direção da Faculdade e disse: — Aceitou de vir falar na Faculdade o célebre Padre Leonel Franca. Dom Duarte concedeu licença para que a Missa fosse rezada dentro da Faculdade pelo Vigário Geral de São Paulo, Monsenhor Gastão Liberal Pinto147. A turma de formandos está de acordo e eu quero saber se os senhores dão licença. — Bom, pode ser. E realizou-se a Missa. Quando, no dia da Missa, cheguei na Faculdade de manhã, de fraque e cartola como mandava o cerimonial, eu esperava encontrar os alunos, o Padre e mais ninguém. Qual não foi a minha surpresa quando me deparei com um estrado em forma de “U”, armado no pátio em torno do altar. Em cima, em poltronas grandes, solenes, de veludo vermelho (porque vermelho era a cor dos advogados), todos os professores da Faculdade de Direito, de beca e alguns de rosário na mão. Ao ver aquilo, caí das nuvens. Mas fingi achar que era a coisa mais natural do mundo. Não manifestei surpresa e entrei em companhia do Padre Leonel Franca. Quando chegou o Monsenhor Gastão Liberal Pinto, paramentou-se e começou a Missa. Na hora da comunhão, um grande número de rapazes que iam se formar aproximaram-se para comungar. Também nunca imaginei isto. Quer dizer, enquanto o Movimento Católico crescia no Brasil

1908, ordenando-se sacerdote em 1923. Em Roma, doutorou-se em teologia e filosofia pela Universidade Gregoriana. De volta ao Brasil, foi professor do Colégio Santo Inácio (Rio de Janeiro). Lecionou história da filosofia, psicologia experimental e química no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo. Em 1931 tornouse membro do Conselho Nacional de Educação e assumiu a vice-reitoria do Colégio Santo Inácio (Rio de Janeiro). Teve papel destacado na fundação da Pontifícia Universidade Católica do Rio, tornando-se seu primeiro reitor. 146 Palestra para neocooperadores 18/11/90. 147 — Monsenhor Gastão Liberal Pinto (1884-1945) foi vigário geral da Arquidiocese de São Paulo, e posteriormente Bispo de São Carlos, entre 1937-1945.


56 inteiro, o ateísmo fugia. Quando terminou a Missa, o Padre Leonel Franca saiu imediatamente. Em seguida procurou-me o Secretário da Faculdade de Direito, aliás muito estimado na Faculdade, chamado Júlio Maia, o qual me disse: — O café está preparado em cima. — Que café? — Sim! O Monsenhor celebrou Missa, a Faculdade oferece a ele um lanche lá em cima. Eu disse ao Monsenhor: — Monsenhor, há um lanche em cima, para o senhor. Subimos, e o Secretário sentou-se diante de nós. Voltando-se para mim, disse: — Então Plinio! É a primeira vez que vejo você chegar antes da hora na Faculdade de Direito. — Mas Dr. Júlio, como é isso? — Nas aulas, ou você chegava à última hora, ou entrava atrasado, driblando o bedel, e eu bem sabia disso e deixava passar. Adiantado você nunca chegou. Ele tinha razão, nunca, nunca. — Agora, hoje, na hora de comungar, mudou tudo. E o primeiro a se levantar para ir comungar foi você. — Dr. Júlio, é isso mesmo. Ele resmungou mais um pouco148. Mas no mau-humor dele havia qualquer coisa de amistoso, e era dito para me colocar bem no conceito do sacerdote, para que Monsenhor soubesse que, quando se tratava de coisas relativas à religião, eu não relaxava149.

6. “A.U.C.” depois que saí da Faculdade E assim terminou a vida acadêmica. Era costume, naquele tempo, o aluno não voltar mais à Faculdade após a formatura. E era considerado de mau tom voltar para conversar com os colegas na Faculdade.

148 SD 13/8/88. 149 Palestra para neocooperadores 18/11/90.


57 O que aconteceria com a A.U.C.?150 Eu não podia continuar a presidir a organização. Então pedi demissão 151. Infelizmente a entidade decaiu. Não houve continuação da luta. Cerca de sete meses depois, tive que ir à Faculdade para carimbar um diploma, uma coisa assim. Quando entrei, muitos dos estudantes que me conheciam começaram a gritar “Pliniooooo, Pliniooooo”, por brincadeira cordial. E um deles gritou bem alto: 152 — Pessoal, cuidado! O Plinio voltou! O Plinio voltou! Mas ele dizia isso com a intenção de me agradar. E depois acrescentou: mais!

— E agora a A.U.C. vai voltar a ser uma potência, que já não é

153

Infelizmente a A.U.C. foi virando cor de fumaça e desapareceu*154. * Ela foi absorvida em 1938, por decisão da autoridade eclesiástica, pelo setor

correspondente da Ação Católica, isto é, a Juventude Universitária Católica (JUC). Esta tomou itinerário ideológico próprio, e veio a se tornar mais tarde tristemente célebre na história do catolicismo brasileiro como propulsionadora do esquerdismo católico o mais radical (cfr. Um homem, uma obra, uma gesta — Homenagem

das TFPs a Plinio Corrêa da Oliveira, Edições Brasil de Amanhã, Artpress, 1988).

150 Relato 14/6/82. 151 Jantar EANS 23/11/90. 152 Relato 14/6/82. 153 Jantar EANS 23/11/90. 154 Relato 14/6/82.


58

Parte II A Liga Eleitoral Católica e a Constituinte de 1933/34 Capítulo I Mudança do quadro político e religioso a partir de 1930 1. Laicismo anterior a 1930 Concluído o meu curso universitário, continuei a me dedicar ao Movimento Católico. Eu sentia que alguma coisa deveria ser feita contra o laicismo que dominava toda a legislação e toda a vida oficial do Estado, o qual abstraía olimpicamente do fato básico que era a esmagadora predominância católica da população. Mais de 90% dos brasileiros pertenciam então à Igreja155. No tempo do Império, a Igreja era reconhecida pelo Estado como a única religião verdadeira. Proclamada a República, afirmou-se oficialmente no Brasil o espírito da Revolução Francesa. E, com o espírito da Revolução Francesa, o laicismo de Estado inerente a essa mesma Revolução. A separação da Igreja e do Estado trouxe para a Igreja enormes e ponderáveis desvantagens, e também grandes e ponderáveis vantagens. A Igreja ficou mais livre das ingerências do Estado. Mas, de outro lado, uma onda de laicismo — de ateísmo, no fundo, porque o laicismo não é senão uma formulação um pouco mais atenuada do ateísmo — varreu todo o Brasil. E assim permaneceu de 1889 até 1930.

2. Circunstâncias propícias para uma reviravolta Veio a Revolução getulista de 1930. E dois fatos marcaram uma mudança nessa ordem de coisas, para os quais nem todo mundo teve os olhos abertos na época. O primeiro fato, que datava de três ou quatro anos antes, era a 155 Um homem, uma obra, uma gesta, Edições Brasil de Amanhã, Artpress, São Paulo, 1988.


59 enorme expansão do Movimento Católico no Brasil e, sobretudo, das Congregações Marianas. Essa expansão começou a tornar habitual um homem frequentar os sacramentos, sendo que antigamente apenas as mulheres o faziam. Em segundo lugar, Getúlio Vargas baixou um decreto estendendo o voto às mulheres e instituindo assim o voto feminino (decreto n° 21076, de 24/2/32). Até 1930, as mulheres não votavam porque se considerava que a função política era privativa dos homens. E a quase totalidade dos homens daquela época não frequentava os sacramentos e tinha uma mentalidade laica. E a quase totalidade das mulheres, que eram fervorosamente católicas, não votava. Isso garantia a manutenção do laicismo no corpo eleitoral e em todos os graus da hierarquia política, eleita pelos homens. Ruminando essas coisas, eu me perguntei se não seria possível tirar proveito disso para alterar a atmosfera de laicismo no Brasil. Mas não sabia como fazer, porque as autoridades eclesiásticas tinham um verdadeiro horror à ideia de formação de um partido católico 156. A Hierarquia eclesiástica agia naquele tempo com muito cuidado, com muito esmero na definição e na divulgação da doutrina católica, sobretudo no que diz respeito às verdades concernentes à moral e à vida eterna. Ela fazia a difusão dessa doutrina sobretudo por meio da pregação explícita feita do alto dos púlpitos e da ação pessoal desenvolvida nos confessionários. E também por meio dos estabelecimentos católicos: colégios e outras entidades atuando sobre a massa dos fiéis. Esta ação era uma ação certamente indispensável, legítima portanto. Mas ela deixava de lado um mundo de outros campos de ação utilizados pela Revolução. Não preciso dar como exemplo senão uma coisa, para se ter a ideia do descompasso que se estabelecia assim: a Revolução Industrial. Tudo o que a Revolução Industrial trouxe para tornar pelo menos incomodíssima a prática dos Mandamentos e a profissão da fé no mundo novo que se criava, foi uma coisa de um vulto enorme. Nada disso foi suspeitado pela Hierarquia e ela continuou na velha rotina . 157

Daí o grande receio dos Bispos. Eles diziam que um partido 156 SD 22/6/73. 157 CSN 1/5/93.


60 católico criaria uma série de problemas, sendo o primeiro deles o fato de padres quererem se candidatar. E depois, o aparecimento de uma porção de hipócritas, os quais haveriam de se declarar católicos apenas para fazer carreira. E isto encheria de oportunistas as fileiras das associações religiosas158.

Capítulo II Como nasceu a ideia da Liga Eleitoral Católica (LEC) 1. A «Fédération National Catholique» do general Castelneau Lendo uma revista francesa chamada La documentation catholique159, eu vi referências um general francês, Visconde de Castelneau 160, que se distinguira muito durante a I Guerra Mundial e que fora um dos grandes generais da resistência francesa nessa guerra 161. Eu pensei: “Castelnau tem jeito de ser um homem duro, um Visconde dos antigos tempos: deve ser um firme contra-revolucionário. Vejamos o que ele diz.” Mais tarde vim a saber que o Visconde de Castelnau era liberal. Mas a Providência às vezes faz coisas com as quais não contamos 162. Ainda em La documentation catholique encontrei a notícia de uma Fédération Nationale Catholique, fundada pelo mesmo general de Castelnau163.

158 SD 22/6/73. 159 SD 8/7/83. 160 SD 27/8/88 — Noël Marie Joseph Édouard, Visconde de Curières de Castelnau (1851-1944), nascido de uma família da antiga Nobreza francesa, foi comandante do II Exército francês e chefe do Estado Maior do general Joffre na I Guerra Mundial. Considerado por alguns um católico radical, recebeu o cognome de “capuchinho de botas”. Tendo comandado batalhas vitoriosas em Sedan, Soissons e Chaumont, foi chamado por Joffre ao Estado Maior, notabilizando-se pela defesa de Nancy e pela ofensiva da Champagne em 1915, o que lhe valeu a Grande Cruz da Legião de Honra. Foi ele também quem organizou a defesa de Verdun. Suas ideias em matéria de religião e política, apesar de liberais, atraíram a hostilidade de numerosos políticos da laica e ateia IIIª República francesa, e por isso jamais lhe concederam o bastão de marechal. Fez oposição a Pétain no governo de Vichy, e foi presidente da Féderation National Catholique até sua morte. 161 SD 22/6/73. 162 SD 27/8/88. 163 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54.


61 Então resolvi escrever para essa Fédération Nationale Catholique, pedindo os estatutos deles. E eles me mandaram os estatutos 164. Li os estatutos e percebi que Castelnau elaborara um jogo político muito interessante. Ele tinha influência sobre um certo setor católico. E, para atuar favoravelmente sobre o eleitorado católico, ele dirigia aos candidatos um pequeno interrogatório: — “Qual o seu pensamento a respeito de tal ponto, de tal ponto, de tal outro ponto? Se o seu pensamento nesses pontos estiver de acordo com a doutrina católica, eu o recomendarei aos meus eleitores. Se não estiver, direi que o senhor se manifestou contra. Se não me responder, direi no meu boletim que o senhor não me respondeu. O senhor perde votos se não me responder; e ganha votos se me responder favoravelmente”165. Com isto ele conseguia fazer entrar um bom número de católicos nas Câmaras, no Senado, nas prefeituras, e aumentava uma certa influência da Igreja no jogo político, sem que a Igreja se transformasse propriamente num partido político. Achei a ideia muito interessante 166 e guardei-a na memória.

2. Getúlio convoca eleições: oportunidade única para os católicos Nisto eclode em São Paulo a Revolução Constitucionalista de 1932 . 167

Derrubando o Governo Washington Luís, Getúlio Vargas tornara-se o senhor do Poder. Em vez de proceder de imediato à democratização política — que era a finalidade declarada da revolução por ele chefiada — tentou ir se perpetuando na Presidência da República. Sua atuação à testa do Governo foi sentida pelos elementos representativos de São Paulo como fundamentalmente anti-paulista. Era de ampla liberalidade para com outras unidades da Federação, ao passo que se revelava muito restritivo para com São Paulo. E isto até de modo afrontoso. Por exemplo, soou como depreciativa em São Paulo a nomeação de 164 SD 22/6/73. 165 SD 27/8/88. 166 SD 22/6/73. 167 — Esta Revolução Constitucionalista, também conhecida como Revolução de 1932, foi o movimento armado ocorrido no Estado de São Paulo, entre os meses de julho e outubro de 1932, que tinha por objetivo a derrubada do Governo Provisório de Getúlio Vargas e a promulgação de uma nova Constituição para o Brasil. Foi uma resposta paulista à Revolução populista de Getúlio Vargas de 1930, a qual acabou com a autonomia de que gozavam os Estados durante a vigência da Constituição de 1891.


62 um ex-líder tenentista do exército revolucionário, João Alberto Lins de Barros 168, para as altas funções de interventor federal. Tanto mais quanto ele se pôs desde logo a tratar com displicência os principais chefes dos dois partidos políticos, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Democrático (PD). Além da liderança que exerciam sobre a vida pública do grande Estado brasileiro, é de notar que esses próceres políticos possuíam considerável prestígio individual, quer na vida intelectual, quer na vida social ou econômica de São Paulo. A maneira desenvolta e até arrogante do jovem interventor não poderia deixar de chocá-los, produzindo neles a impressão de que João Alberto Lins de Barros não agiria dessa maneira se não contasse com o apoio do Presidente da República. Aos olhos dos chefes políticos, da imprensa e das principais figuras do Estado, foi tomando corpo a convicção de que o Presidente Getúlio Vargas desejava eternizar-se no poder, enquanto ditador. E que, para chegar a esse resultado, queria quebrar antes de tudo o poder político e econômico de São Paulo, estado líder do ponto de vista produtivo. Numerosos episódios da atuação do interventor João Alberto Lins de Barros, como do próprio Governo federal, foram dando ensejo a que essa opinião se consolidasse. E o mal-estar profundo daí originado na população paulista teve consequências gravíssimas169. Assim foi que eclodiu em São Paulo a Revolução Constitucionalista de 1932. Mesmo derrotada, criou ela em todo o País um ambiente que tornava impossível ao Governo Federal não efetuar, por fim, a eleição de uma Constituinte 170.

168 — João Alberto Lins de Barros (1897-1955) foi um militar e político brasileiro tenentista, e interventor federal em São Paulo de 26 de novembro de 1930 a 25 de julho de 1931. Sua gestão à frente do governo paulista foi marcada por medidas despóticas e revolucionárias, colocando-o em confronto direto com as agremiações políticas tradicionais do Estado. O tenentismo, de que ele era um dos líderes, foi um movimento que, reunindo oficiais de baixa e média patente do Exército, promoveu a partir de 1922 uma série de rebeliões e tentativas de revoluções, entre elas a Revolução de 1924, da qual nasceria a Coluna Prestes, de que João Alberto fez parte. O tenentismo tornou-se uma das bases de sustentação da Revolução getulista de 1930 e, após a vitória desta, quase todos os governos dos Estados brasileiros foram entregues a expoentes do tenentismo. 169 — O insuspeito João Cabanas, líder revolucionário de 1924 e 1930, também ele tenentista, assim comenta, em seu livro Fariseus da Revolução (1932), a gestão de seu ex-companheiro João Alberto: "Se, como militar, merece respeito, como homem público não faz juz ao menor elogio. Colocado, por inexplicáveis manobras e por circunstâncias ainda não esclarecidas, na chefia do mais importante Estado do Brasil, revelou-se de uma extraordinária, de uma admirável incompetência, criando, em um só ano de governo, um dos mais trágicos confusionismos de que há memória na vida política do Brasil, dando também origem a um grave impasse econômico (déficit de 100.000 contos), e a mais profunda impopularidade contra a 'Revolução de Outubro'" . 170 Entrevista publicada em Um homem, uma obra, uma gesta, cit.


63 Foi então que Getúlio convocou as eleições para o ano de 1933171. Neste contexto, Getúlio promulgou — além da lei do voto feminino — uma lei eleitoral pela qual, para escolher deputados em São Paulo, o eleitor poderia compor uma chapa com os deputados que quisesse, dos vários partidos que houvesse. Cada eleitor compunha a sua chapa à vontade. Assim sendo, se nós aplicássemos o sistema inventado pelo general de Castelnau, os católicos poderiam expurgar os não católicos. E poderiam colocar um grande número de católicos dentro da Constituinte, montando uma chapa composta só de católicos dos diversos partidos 172.

3. Conversas com Heitor da Silva Costa e com Tristão de Athayde Nessa ocasião eu estava no Rio de Janeiro e era íntimo amigo do engenheiro Heitor da Silva Costa173. Era ele filho de um Conselheiro do Imperador Dom Pedro II, José da Silva Costa174, casado com uma senhora de muito boa família do Rio de Janeiro, Dª Elisa Guimarães da Silva Costa. Tinha um cunhado deputado, homem com quem eu me dava muito bem, o Professor Leitão da Cunha175. Era fino, inteligente, de trato agradável176 e trinta a quarenta anos mais velho do que eu, mas condescendia em conversar comigo. Logo que eu chegava ao Rio, eu o avisava: “Dr. Heitor, estou no Rio de Janeiro”. E ele vinha logo conversar. Vinha também a São Paulo me visitar. Tínhamos muito boa amizade. Era um homem muito focalizado naquele tempo, por ter sido o arquiteto, incumbido pelo Cardeal Dom Sebastião Leme de construir a imagem do Cristo Redentor, uma obra de engenharia muito ousada. Conversando com o Silva Costa, eu disse: — Getúlio propôs uma eleição da Constituinte. Sugiro tal e tal coisa que li na revista La documentation catholique do general de Castelnau. plano.

Silva Costa tinha ouvido falar do Castelnau e gostou muito do

171 SD 27/8/88. 172 SD 22/6/73. 173 — Heitor da Silva Costa (1873-1947) foi o engenheiro brasileiro responsável pelo projeto de construção do Cristo Redentor, inaugurado em 1931. 174 SD 27/8/88. 175 SD 11/10/80. 176 SD 22/6/73.


64 Disse-me que tinha pensado em coisa semelhante e propôs falarmos com o Tristão de Athayde 177 e recomendarmos a ele levar o assunto a Dom Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro 178.

4. Dom Leme recomenda ao Episcopado a fundação da LEC Tristão tinha uma entrada muito grande junto ao Cardeal 179. Falou com ele e o Cardeal também gostou do plano 180. Saiu daí uma correspondência entre o Tristão e o Silva Costa de um lado, e eu de outro lado. Fiz umas duas ou três viagens ao Rio, nos entendemos a respeito dos estatutos 181. Pediram-me então que eu redigisse os estatutos. Inspirei-me evidentemente no texto do general Castelnau, devidamente adaptados à lei e às circunstâncias brasileiras. Tristão e Silva Costa fizeram algumas emendas e mandaram a Dom Leme. Dom Leme, que era um homem decidido, transformou o texto numa circular para todos os Arcebispos e Bispos do Brasil, recomendando a fundação desse organismo, para o qual eu propus o nome de Liga Eleitoral Católica 182. Isso formaria, naturalmente, uma organização colossal. E como toda organização grande, deveria ter uma certa representação: o presidente devia ser um homem de relevo, de alguma importância, que tivesse ar de ser alguém. Quanto ao secretário geral, entendia-se que deveria ser um

177 — Alceu Amoroso Lima (1893-1983), cujo cognome literário era Tristão de Athayde, foi crítico literário, professor, pensador, escritor e líder católico brasileiro. Bacharelando-se em 1913 no Rio, viajou para a Europa, onde cursou a Sorbonne e o Collège de France. Agnóstico e liberal na juventude, foi convertido ao catolicismo por Jackson de Figueiredo, e após a morte deste (1928), sucedeu-lhe na direção do Centro Dom Vital e da revista A Ordem. Estreito colaborador do Cardeal Dom Sebastião Leme, foi escolhido por este secretário-geral da Liga Eleitoral Católica (1932), e posteriormente primeiro presidente da Ação Católica Brasileira (1935-1945). Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1935. Amigo de Plinio Corrêa de Oliveira até o momento em que, nos inícios da década de 1940, sob a influência do filósofo francês Jacques Maritain, voltou às suas antigas posições liberais, passando a sustentar as teses da corrente progressista, tanto no campo litúrgico como no político-social. Foi também um dos promotores do Partido Democrata Cristão (PDC), tendo participado em 1949 do assim chamado Movimento de Montevidéu. Foi escolhido em 1967 por Paulo VI para membro da Pontifícia Comissão Justiça e Paz (cfr. Roberto De Mattei, O Cruzado do século XX — Plinio Corrêa de Oliveira, Livraria Civilização Editora, Porto, 1997; e Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil — CPDOC (http://www.fgv.br/cpdoc, verbete Alceu Amoroso Lima). 178 SD 27/8/88 — Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942) foi o segundo Cardeal brasileiro. Arcebispo de Olinda e Recife entre 1916 e 1921, nomeado em 1921 Arcebispo Coadjutor do Rio de Janeiro e, por fim, Arcebispo da mesma cidade em 1930, sucedendo ao Cardeal Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, sendo no mesmo ano elevado ao Cardinalato. 179 SD 8/7/83. 180 SD 27/8/88. 181 SD 22/6/73. 182 SD 27/8/88.


65 homem de ação 183.

5. Vaivéns do projeto Após isto, as coisas ficaram andando nos bastidores da Igreja. E eu não tive mais informações do que havia sido feito do nosso projeto 184. Entrementes, eu ia vendo a tirania do Getúlio a todo momento desmantelar aquela São Paulo que eu amava — tradicional, rural, agrícola, estratificada, bem paulista — para fazer a São Paulo cosmopolita, ambígua, indefinida, desmedida, sem fisionomia caracterizada e super-industrializada que nasceu do bafejo dele. Eu sempre julguei que metrópoles industrializadas eram o sorvedouro da civilização e, portanto, não queria que no Brasil tivéssemos essas grandes metrópoles industrializadas. Minha ideia era a de uma América do Sul produzindo víveres e produtos agrícolas às toneladas. A Europa e Estados Unidos que fabriquem, nós pagamos os seus produtos. Fiquem eles com as suas fábricas. Nós ficamos com a agricultura, ficamos com a fartura, ficamos com o bemestar, ficamos com o equilíbrio, ficamos com as condições propícias ao florescimento de uma Cristandade. Ao mesmo tempo eu percebia as manifestações de desagrado em São Paulo contra o Getúlio. E pensava: — Onde foi parar a LEC? Ela está no fundo da minha gaveta, no fundo da gaveta do Tristão e do Silva Costa. São Paulo vai água abaixo. Aquela esperança está jogada no chão. Bem, o que eu posso fazer é estudar, estudar, estudar e esperar que Nossa Senhora intervenha no caso185.

Capítulo III Fundação e atividades da LEC 1. Dr. Plinio é escolhido secretário geral da LEC em São Paulo Mas por fim as coisas deslancharam. Dom Duarte fundou a Liga Eleitoral Católica em São Paulo e todos 183 SD 7/1/89. 184 SD 27/8/88. 185 SD 8/7/83.


66 os outros Bispos fundaram Ligas Eleitorais Católicas em suas dioceses 186. A Liga Eleitoral Católica não era propriamente um partido político 187. Era um organismo de grande representação existente em cada uma das dioceses do interior de São Paulo. Havia uma LEC local, em cada paróquia, ligada à respectiva diocese. Depois, as LECs das dioceses todas do interior do Estado de São Paulo eram ligadas à LEC da cidade de São Paulo. No Brasil inteiro, em cada Estado, havia um organismo igual 188. * Um dia, Monsenhor Gastão Liberal Pinto, Vigário Geral de Dom Duarte, me chama e diz: — Olha aqui, nos papéis que nos chegaram sobre a questão da LEC está constando que você foi, com o Silva Costa, o autor do documento que lhe deu origem. — É verdade. — Está bom. Dom Duarte quer saber se você aceita ser o secretário geral da Liga Eleitoral Católica para o Estado de São Paulo, em vista das próximas eleições para a Constituinte. — Posso ser, perfeitamente. — Bom, mas veja a responsabilidade que você toma. Porque vai haver uma diretoria e o Arcebispo quer pôr homens de bom nome, de boas famílias; quer pôr também alguns líderes católicos, todos já de cinquenta anos para cima. Mas quem vai ter que escorar o trabalho é você. Você escora? — Desde que ele pague as despesas. Porque boa vontade eu tenho, dinheiro eu não tenho. Ele deu risada e disse: — Não, não! A Cúria paga as despesas e você fica sendo o pé de boi que arca com a carga do trabalho. — Pois não, então vamos fazer189. Dom Gastão Liberal Pinto me expôs então o seguinte: — Dom Duarte espera então de você, com as relações que você tem no meio mariano e no meio católico em geral, que seja realmente um 186 Palestra para Neocooperadores 26/2/95 — A LEC paulista foi instalada em reunião realizada na Cúria de São Paulo no dia 13 de novembro de 1932 (cfr. Legionário, n° 108, 20 de novembro de 1932, p. 1). 187 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 188 SD 7/1/89. 189 SD 27/8/88.


67 elemento propulsor dessa campanha e organize a inscrição eleitoral dos católicos. A LEC abrirá um escritório para facilitar essa inscrição. E nós todos, do Clero, vamos trabalhar para que o maior número possível de católicos, e sobretudo de católicas, se inscrevam como eleitores. Esse serviço vai ser feito, através da LEC, sob sua responsabilidade190.

2. Escolha do presidente da LEC: Estêvão de Souza Rezende Aí ele me perguntou quem eu propunha para compor a diretoria da Liga Eleitoral Católica, e me disse:191 — Precisamos de um homem representativo, que tenha um grande nome, para ser presidente192. Lembro-me de ter proposto dois homens de família tradicional de São Paulo, e dois líderes católicos de famílias mais novas, mais modestas, mas católicos praticantes e verdadeiramente beneméritos do Movimento Católico 193. E sugeri como presidente um senhor cujo nome ele agarrou de imediato, e do qual eu me recordo com saudades: Estêvão Emmerich de Souza Rezende 194, um velho gentil-homem dos antigos tempos 195, neto do Marquês de Valença, e ele mesmo um marquês perfeito 196. Era um homem de muita projeção em São Paulo 197. Dom Gastão: — O Estêvão Rezende está excelente!198. Estêvão Emmerich de Souza Rezende era da Ordem Terceira do Carmo e reconhecido por todos como pessoa muito direita. Não era especialmente rico, mas tinha o suficiente para viver com decência, com dignidade. Levei muito tempo para entender o que queria dizer Emmerich. Pensei que fosse algum antepassado alemão ou húngaro. Não era. Emmerich era o nome do filho de Santo Estêvão, Rei da Hungria. Emmerich em alemão é Américo em português 199. 190 SD 22/6/73. 191 SD 27/8/88. 192 SD 22/6/73. 193 SD 27/8/88. 194 SD 8/7/83. 195 SD 23/8/80. 196 SD 8/7/83. 197 SD 27/8/88. 198 SD 22/6/73. 199 SD 7/1/89.


68 A respeito dele, lembro-me ainda hoje do seguinte: eu comungava todos os dias às 10 horas, na igreja de Santa Cecília. E via sempre comungar também neste horário um senhor de meia altura, com um bigode de estilo português, algo alourado, olhos claros, muito bem penteado, muito limpo, muito bem arranjado e com ares afidalgados. Eu não o conhecia pessoalmente, mas observava-o e pensava: “Que homem simpático, que homem composto, que homem fino, distinto, tranquilo e plácido! Como deve ser fácil tratar com esse homem!”200 Agradava-me ver a ausência de respeito humano com que ele comungava, num tempo em que nenhum homem de representação o fazia201. Não posso me esquecer de um fato 202. Comungava também, à mesma hora, uma mulher já de idade, mulata, que tinha uma perna inchada ou algum outro problema assim, coitada! E na igreja de Santa Cecília, a capela do Santíssimo Sacramento ficava dois ou três degraus acima do nível do chão. Ela então tinha que subir, comungar, e depois descer e sair. Subir, ela subia: agarrava-se à grade da capela, que permanecia aberta. Mas, descer era muito difícil para ela. Nessa hora, Dr. Estêvão Rezende, com muita bondade, com muita distinção, dava-lhe a mão 203, como se fosse ajudar uma marquesa. Ela se apoiava nele e descia204, meio gemendo, meio sorridente diante da atitude em relação a ela daquele fidalgo. Ela agradecia. E ele voltava para as orações dele205. Era bonito ver a caridade cristã com que ele fazia isso todos os dias 206. Não houve gentilezas que eu não fizesse para esse homem amabilíssimo. Não houve gentilezas que ele não me retribuísse. As nossas relações eram relações de conto de fadas. Ele acabou ficando muito meu amigo207.

3. Demais diretores da LEC Dom Gastão: — Quem mais você sugeriria? 200 SD 22/6/73. 201 SD 7/1/89. 202 SD 23/8/80. 203 SD 7/1/89. 204 SD 23/8/80. 205 SD 27/8/88. 206 SD 7/1/89. 207 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54.


69 Eu tinha conhecido também, nas cerimônias da Ordem Terceira do Carmo da Ladeira, onde eu comparecia para as novenas, o Prior, que era também um homem de boa família de São Paulo, chamado Mário Egídio de Souza Aranha. Eu disse: — Mário Egídio de Souza Aranha. — Está bem: Mário Egídio de Souza Aranha208. Propus para vice-presidente um professor universitário, economista muito entendido na sua matéria, muito católico, chefe de família, muito direito, homem muito circunspecto. Era uma das inteligências do Movimento Católico de São Paulo. O nome dele talvez cause um pouco de estranheza: José Papaterra Limongi 209. Por fim, indiquei o Dr. Vicente Melillo, advogado, católico muito fervoroso, bom orador 210. Dom Gastão disse: — Vou indicar dois. — Pois não. — Dr. Adolfo Greff Borba e Dr. Esdras Pacheco Ferreira. Eu disse: — Perfeitamente 211. Esses todos constituíram a direção da Liga Eleitoral Católica212.

4. A LEC em plena atividade Com a colaboração de vários congregados marianos que passaram a trabalhar comigo na Secretaria Geral, constituiu-se uma rede enorme de núcleos da Liga Eleitoral Católica nas várias dioceses da Província Eclesiástica de São Paulo. Estava a LEC bem organizada e estruturada213. E eu percebia que ela tinha diante de si um futuro imenso. E que, se o Episcopado soubesse aproveitar a força da Liga, poderia instaurar no Brasil uma sociedade verdadeiramente católica 214. 208 SD 22/6/73 — Mário Egídio de Souza Aranha (1891-1977), neto da Viscondessa de Campinas, médico, professor da USP e prior da Ordem Terceira do Carmo da Ladeira. 209 SD 7/1/89. 210 SD 27/8/88. 211 SD 22/6/73. 212 SD 27/8/88. 213 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 214 SD 8/7/83.


70 Brás.

Tomamos três salões em um prédio da Cúria 215, na rua Venceslau

Havia a minha sala e, num canto dela, Dom Duarte mandou colocar uma boa mobília, com escrivaninha, tinteiro e demais apetrechos, para as reuniões da diretoria. Havia também outra sala grande, destinada propriamente para o movimento eleitoral. No fundo, um salão de fotografias, onde se tirava fotografias para os títulos eleitorais. Facilitava muito ao eleitor já ter o fotógrafo ali. Nós encaminhávamos depois os títulos para o Tribunal Eleitoral, e acompanhávamos o processo. Se alguma coisa encrencasse, mandávamos avisar216. Convidei Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra para dirigir esse serviço de recrutamento eleitoral 217. Ele trabalhou muito nessa ocasião, trabalhou como um mouro, verdadeiramente. Ele ainda era, nesse tempo, estudante de Direito. Eu já havia me formado 218. O datilógrafo era um estudante católico da Faculdade de Direito, que depois ficou deputado pelo Estado de Goiás: Benedito Vaz219. Começamos a propaganda no meio católico, anunciando a todos os católicos que quisessem se inscrever como eleitores, que nós providenciaríamos os trâmites do título eleitoral deles. E eles ficariam comprometidos a votar em quem a Liga Eleitoral Católica indicasse. Foi uma movimentação enorme, o elevador não parava. Entrava gente, saía gente, e o movimento encheu e floresceu 220. Nós chegávamos de manhã e saíamos só à noite 221. Em pouco tempo a Liga formou um movimento colossal! Em grande parte, isto se deveu ao apoio do Clero. Mas em alguma medida, também, à popularidade de que eu gozava junto aos católicos militantes, e que era uma popularidade enorme 222.

5. Chapa Única por São Paulo Unido A propaganda eleitoral ia assim mar alto, quando um dia me chama 215 SD 22/6/73. 216 SD 7/1/89. 217 SD 22/6/73. 218 SD 7/1/89. 219 SD 22/6/73. 220 SD 27/8/88. 221 SD 22/6/73. 222 Almoço EANS 23/11/90.


71 Dom Gastão: “Eu quero contar a você uma novidade estritamente confidencial”. Ele tinha uns olhos de verruma, cravados em mim. E ele completou: “A LEC não vai concorrer às eleições”. Nós estávamos com um eleitorado enorme! Dominei o meu movimento de decepção e ele disse: — O Arcebispo foi procurado por políticos de São Paulo que resolveram fazer uma chapa única de todas as correntes paulistas. Vão entrar quatro candidatos pelo Partido Republicano Paulista, quatro pelo Partido Democrático, quatro pela Associação Comercial, representando as classes conservadoras, e quatro pela LEC representando a Igreja”. E também dois ou três designados por outras entidades. E completou: — Agora você vai ter que trabalhar para os candidatos que forem designados para essa chapa. — Pois não! Está muito bem. Se vão entrar quatro representantes da Igreja, está esplêndido. Eu não tenho outra coisa para desejar. — Então guarde isto por enquanto para você. No momento oportuno vai ser dito a você quais são os candidatos da LEC 223.

Capítulo IV Indicação para candidato a deputado 1. Dom Gastão comunica a lista dos candidatos Algum tempo depois, veio um novo chamado de Dom Gastão: “O Senhor Arcebispo constituiu a lista dos quatro candidatos católicos”. Ele era meio sério, meio brincalhão. Acho que ele tinha querido, na primeira conversa, pôr-me à prova e saber se eu estava torcendo para ser candidato ou não. E me disse: “Os quatro candidatos são: Plinio Corrêa de Oliveira, José de Alcântara Machado, Rafael de Abreu Sampaio Vidal e Manuel Hipólito do Rego”224.

223 SD 27/8/88. 224 SD 22/6/73.


72 Na qualidade de Vigário Geral de São Paulo, Dom Gastão era o primeiro homem abaixo de Dom Duarte. Tinha uma grande influência. E concorreu muito para que Dom Duarte me indicasse como candidato a deputado. Também trabalhou muito para eu ser eleito. E mais ou menos até a sua morte, conservei muito boas relações com ele 225. Bem, Plinio Corrêa de Oliveira eu conhecia... 226 E era visível que, no ato de generosidade e confiança com o qual o Arcebispo deliberava pôr aquela responsabilidade sobre os meus ombros, entrava a ideia de que a minha presença na Chapa acarretaria um grande entusiasmo em todas as Congregações Marianas. E que estas levariam atrás de si o laicato católico inteiro. Portanto, o peso eleitoral da Liga Eleitoral Católica se afirmaria muito com a minha presença entre os candidatos227. Outro candidato era José de Alcântara Machado 228. Homem de muita fama na São Paulo daquele tempo, bem rico, fazendeiro no interior 229, tinha sido meu professor na Faculdade de Direito 230. Ele dava aulas muito interessantes numa matéria que eu julgava desinteressante, Medicina Legal 231. Era um homem com um bom dote literário, e que acabara de ser eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Filho do Barão Brasílio Machado, nomeado barão pelo Papa São Pio X, fora um católico de grande expressão e era um político, creio eu, de importância média no antigo PRP (Partido Republicano Paulista). A projeção do pai enquanto expoente católico, a rigor podia ser interpretada como refletida também no filho. Era um homem de vontade muito forte, com olhos entre cinzento e verde-claro. Ligeiramente alourado. Quando se tornava hostil, tinha qualquer coisa de fera; quando estava em seu estado comum, era de um trato agradável. O terceiro candidato, Rafael Sampaio Vidal232, era um antigo 225 SD 6/8/88. 226 SD 22/6/73. 227 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 228 — José de Alcântara Machado de Oliveira (1875-1941), jurista, escritor, professor e político brasileiro, foi o líder da bancada paulista na Assembleia Nacional Constituinte de 1933/34. 229 SD 3/9/88. 230 SD 22/6/73. 231 SD 23/8/80. 232 — Rafael de Abreu Sampaio Vidal (1870-1941), advogado, político, fazendeiro e grande defensor da cultura do café como base da economia nacional.


73 Ministro da Fazenda do governo Artur Bernardes, este antecessor de Washington Luís na Presidência da República. Eu o conhecera razoavelmente em casa de um tio meu, de quem Rafael Sampaio Vidal era amigo. Ele ia aos domingos conversar com meu tio e eu fazia parte da algazarra dos filhos e dos sobrinhos. Nessas ocasiões, apenas passávamos pelos mais velhos, os cumprimentávamos e trocávamos com eles duas palavras. A esse título muitas vezes eu estivera com Rafael Sampaio Vidal. Sua nomeação me espantou, porque nunca percebi nele qualquer nota de catolicidade. Por fim, o quarto candidato, Manuel Hipólito do Rego, advogado de destaque no Fórum de Santos e muito amigo do Bispo local 233. Líder católico santista, um bom homem. Fiquei amigo dele até o fim da vida234. Tinha sido indicado pelo Bispo de Santos. Mais tarde vim a saber que tinha haveres lá pelo lado do município de São Sebastião. Estes eram os deputados indicados pela LEC. * Eu disse a Dom Gastão: — Fico muito agradecido ao senhor, ao Senhor Arcebispo, é uma grande honra a confiança que depositam em mim. — Não, não está tudo resolvido. Agora é preciso que você convoque uma reunião da Junta Arquidiocesana da LEC, e que eles aprovem esses nomes. — Mas, Monsenhor Gastão, eu não posso estar presente na reunião, porque vai coibir a eles. — Então esteja ausente. Telefono, convoco a reunião, e digo: — Estou incumbido, pela autoridade eclesiástica, de comunicar aos senhores esta lista de deputados, mas como sou candidato, não quero assistir aos debates, para dar liberdade aos senhores de inclusive vetarem meu nome. Eu me retiro. Eles disseram: “Pois não, pode se retirar, que vamos deliberar” 235. Retirei-me. E eles ficaram deliberando ali durante algum tempo. Eu fiquei andando pelo corredor, inteiramente vazio a essa hora, rezando as 233 SD 22/6/73. 234 SD 27/8/88. 235 SD 22/6/73.


74 minhas orações do dia e pedindo ao mesmo tempo a Nossa Senhora que dispusesse o que quisesse a meu respeito 236. Ao cabo de uma hora de discussão, na qual eu não sei o que se passou, eles mandaram me chamar. Entrei e eles disseram que eu podia comunicar ao Sr. Arcebispo que a lista estava aprovada por unanimidade 237. Era uma oportunidade ótima para batalhar pela Igreja 238.

2. Católico-monarquista em chapa republicana: dificuldades Procurei depois Dom Duarte, agradeci muito a gentileza, mas expus a ele uma dificuldade: — Dom Duarte, eu sou monarquista. E não posso admitir sem mais que o meu nome seja posto dentro de uma chapa republicana. — Oh! Vossemecê é monarquista? — Sou. — Bobagem de menino! Deixa disso. — Não, Dom Duarte. Isto é uma coisa muito séria: eu sou monarquista e aliás não compreendo como não se possa ser monarquista. E só estou disposto a aceitar a inscrição do meu nome nessa chapa se o presidente da Liga me escrever uma carta em que fica atestado que foi a pedido da Igreja, para fazer bem à causa católica, que eu ponho entre parêntesis, no momento, as minhas ideias monárquicas e entro para o jogo político. Do contrário, não aceito. — Bom. Pode escrever a carta, não tem nada, está bom. Fui então me entender com Dr. Estêvão de Souza Rezende: não encontrei a menor dificuldade. Dias depois, acordo de manhã, toco a campainha para a criada me trazer o jornal. E ela me diz: — Dr. Plinio, recebi de madrugada um telefonema da casa do Dr. Estêvão de Souza Rezende (vejam até onde pode ser levada a amabilidade da gente de estirpe antiga) avisando para não acordar o senhor antes da sua hora de costume, mas quando o senhor acordasse, avisar que o Dr. Estêvão Rezende morreu”. — Mas morreu o Dr. Estêvão Rezende? Bem, houve o enterro, fiz todas as cortesias cabíveis e possíveis 239. 236 SD 7/1/89. 237 SD 22/6/73. 238 SD 27/8/88.


75 Novo presidente da Liga, quem? Vicente Melillo 240. Vou, exponho a mesma coisa ao Dr. Vicente Melillo, que me diz: — Todo esse problema é muito complicado, eu não entendo bem. Mas faça você a carta e me dê para assinar que eu assino. Ponha todo o seu caso de consciência ali, que eu resolvo como você quiser. Eu fiz a carta, e ele me devolveu passada à mão com uma linda caligrafia vicentina e rigorosamente assinada241.

3. Um escrúpulo de consciência Na mesma ocasião em que fui visitar Dom Duarte para agradecer a indicação, ele, paternalmente, mas muito distante, me disse: — Vossemecê foi indicado porque Monsenhor Gastão Liberal Pinto disse que Vossemecê arca com qualquer responsabilidade. — Senhor Arcebispo, o que eu puder fazer, não tem dúvida nenhuma, eu faço. — Bom, agora a questão é: Vossemecê mobilizará todos os congregados marianos nessa eleição? — Mobilizo. Não tenha dúvida nenhuma que eu mobilizo. — Porque a propaganda deve ser feita pelos “maríanos”. Ele tinha a pronúncia um pouco peculiar. Ele não dizia marianos, mas “maríanos” [acento tônico no i], não sei por quê. — Os “maríanos” é que devem fazer isto. E é preciso que Vossemecê ponha esses milhares de “maríanos” todos lutando pelo mesmo ponto. — Senhor Arcebispo, nesse ponto eu garanto. * Quando cheguei à rua, veio-me um escrúpulo à consciência. Eu pensei: "Dom Duarte está me pondo como candidato só para movimentar os marianos242. Se me nomeia só por causa de meu prestígio, é porque ele gostaria de nomear um outro. Não serei eu obrigado em

239 — Dr. Estêvão Rezende morreu no dia 14 de julho de 1933. Dr. Plinio fez o seu elogio fúnebre em artigo para o Legionário n° 24, de 16/7/33. 240 — Vicente Melillo (1883-1969), imigrante italiano, tornou-se advogado, escritor, comendador, vicentino, casado e pai de onze filhos e, depois de viúvo, fez-se ordenar padre aos 80 anos. 241 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 242 SD 27/8/88.


76 consciência a procurar por ele e dizer o seguinte: ‘V. Excia. nomeie um outro que eu trabalharei por esse outro como trabalharia por mim, porque assim se faz a vontade do meu Arcebispo’?" 243. Passei assim uns dois ou três dias na indecisão. E resolvi consultar o Padre José Danti, jesuíta do Colégio São Luís. Eu me lembro de entrar no quarto do Padre Danti, ele sentado diante da escrivaninha, de perfil, olhando para a frente, e eu numa cadeira. Parecia uma figura de moeda. — Então, Dr. Plinio, o que há? — Padre Danti, tem isto assim, assim. Não seria mais perfeito eu procurar Dom Duarte, e dizer assim, assim? Ele não estará iludido a meu respeito, pensando que se ele não me der esse cargo, eu não movimento os congregados marianos? E, portanto, não estarei praticamente comprando esse cargo, quando na realidade ele tem o direito de dispor dele como Arcebispo? Não é uma espécie de roubo meu aceitar esse cargo, quando não é preciso? Lembro-me até hoje da atitude do Padre Danti, olhando para o horizonte. Quando acabei de falar, ele não teve a menor reação. Parou um pouquinho e depois disse, inclinando um pouco a cabeça: — O senhor pediu o cargo? — Não. — O senhor fez alguma pressão para ser nomeado? — Nenhuma. Para mim isso caiu de surpresa. — Pode ser que o Arcebispo tenha feito esse cálculo. Mas não foi o senhor que sugeriu o cálculo a ele. Isso é da cabeça dele e quem é responsável perante Deus pelos atos dele é ele, e não o senhor. O senhor não tem que se meter na cabeça dele para pensar o que ele pensou, para daí ver se nasce um dever para o senhor. Depois acrescentou: — Pode ser que ele lhe tenha dado esse cargo para o senhor levar os votos de todos os marianos 244. Mas o senhor deve apresentar-se, o senhor mesmo, como candidato. Porque, se eu vejo que o senhor tem tanta vontade de obedecer ao Arcebispo e é tão fiel à Igreja Católica, a Igreja não pode ter melhor representante. E se o senhor deixar vago o lugar, de repente vem um que não tem a mesma fidelidade. Então, é melhor o senhor

243 SD 23/6/73. 244 SD 27/8/88.


77 mesmo ficar 245. Eu achei que estava muito bem pensado. Agradeci, desci e fui tratar de minha candidatura 246.

4. Comunicação da candidatura à família: surpresa e insegurança Em casa eu não disse uma palavra. Pensei com meus botões: “Eu só direi alguma coisa em casa ou na Congregação Mariana, ou em qualquer outro lugar, se sair pelos jornais. Porque acho uma coisa extraordinária, eu, com 23 anos, ser indicado a deputado federal, e isso pode fracassar. Então vou ficar quieto”. Dias depois, os jornais todos 247 davam com manchetes: “Designados os candidatos etc. etc.”, e apresentavam a lista da Chapa Única por São Paulo Unido. Era a chapa antigetulista. E entre os nomes, em ordem alfabética, Plinio Corrêa de Oliveira. Eu li os jornais e fui calmamente de bonde para jantar248. Quando cheguei em casa, eu disse: “Sabem que foi constituída a Chapa Única por São Paulo Unido?” Todos perguntaram com curiosidade: “Quem são os candidatos?” Mas ninguém ali supunha que eu fizesse parte da lista. Nem mesmo Mamãe. Eu era dos mais moços e ficava, portanto, no fim da mesa. Mamãe, que era das mais velhas, ficava próxima à cabeceira ocupada por minha avó, que jantava prestando muita atenção, mas sem voltar a cabeça para ver o que eu dizia. Era nela um modo de ouvir e de se concentrar mais. Eu disse: “Os candidatos são tais”. E nomeei os políticos indicados pelos outros partidos. E depois completei: “E eu também.” — Ah! mas você é candidato? — Eu sou candidato. Eu notei uma espécie de perplexidade na mesa inteira 249, uma espécie de surpresa meio satisfeita e meio desolada. Eles não tinham ideia da força do movimento da LEC. 245 SD 23/6/73. 246 SD 27/8/88. 247 — Ver jornais de São Paulo do dia 25 de abril de 1933, v.g. a Folha da Manhã, O Estado de S. Paulo etc. 248 SD 22/6/73. 249 SD 23/8/80.


78 Notei também a insegurança de Mamãe, como quem diz: “Como foi que ele pulou dentro disso assim e aceitou essa candidatura?” 250. Eu soube que depois correu o zum-zum entre os familiares de que era uma temeridade eu me apresentar como deputado: um rapaz com 24 anos, que conhecia pouca gente, de uma família que não era de políticos, há muito tempo não tinha mais fazenda no interior, não tinha base eleitoral nenhuma. Como é que eu ia me eleger? Portanto, na avaliação deles, a minha candidatura era muito honrosa, mas caminhava para um fracasso, e eles se perguntavam se não teria sido um erro. Essa opinião era acompanhada por Mamãe com muita incerteza, porque ela não tinha nenhuma segurança sobre a vida política 251. Mas, apesar disso, naquela hora procuraram me estimular: hein?

— Oh! Muito bem, veja só. Agora trate de conseguir os eleitores, — Vamos ver. Eu não perco nada por correr o risco da eleição.

No jantar, durante a sobremesa, minha avó mandou servir uma champanhe em honra do futuro deputado. Mas eu vi que havia uma espécie de pena diante do meu próximo e irrefragável fracasso 252. Terminado o jantar, vi minha mãe combinando com uma tia, irmã dela, algumas providências para arranjar votos para mim. Iam telefonar para Santos, para o Hotel Parque Balneário, onde a minha família ia passar os meses de inverno, e pedir a um diretor, senhor Fracarolli, para que os copeiros votassem em mim. Elas calculavam que isso alcançaria uns quinze votos. Depois, confabulavam elas, havia as antigas criadas de casa, que estavam empregadas noutros lugares: mandariam avisar para votar em mim, e também falar com as amigas delas. E ficaram combinando umas coisas assim, que no conjunto não dariam cem nomes. Mas era com lista feita, telefones, para começar uma propaganda. A meta delas era a de que eu não tivesse uma votação vergonhosa253. Eu estava achando graça no negócio e pensei: “É melhor que elas peçam do que não peçam. De repente, entram 5 ou 10 votos por aí que podem ser decisivos”.

250 SD 22/6/73. 251 SD 23/8/80. 252 SD 22/6/73. 253 SD 7/1/89.


79 À noite, quando fui me despedir de mamãe 254, notei-a muito reservada. Então perguntei a ela: — Meu bem, o que a senhora achou dessa candidatura? — Meu filho, eu não entendo de eleições. Mas o que os seus tios me dizem é que você não é conhecido de ninguém, só é conhecido em algumas sacristias. É verdade que você tem um nome tradicional, mas é tradicional em Pernambuco. Aqui em São Paulo ninguém conhece os Corrêa de Oliveira, não te adianta nada. E seus tios acham que você não tem condições de ser eleito. Você terá dado um passo bem judicioso? — Meu bem, olhe: é melhor eu ser um candidato derrotado do que nunca ser candidato. Porque ao menos eu varei esta situação, e já é qualquer coisa. Então vamos para a frente! — Está bem, e que Deus te ajude. — A senhora reze também para as coisas correrem bem, eu acho que poderei prestar muito bons serviços à Igreja. E continuei a trabalhar. Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra continuou a trabalhar junto comigo. Fizemos viagens e tomamos várias providências255.

Capítulo V Primeiras encrencas 1. Alcântara Machado convoca o “benjamim” Dias depois, à tarde, estava eu no meu escritório 256, numa roda de membros do pré-grupo do Legionário proseando (era para o que servia o meu escritório: prosear e fazer apostolado), quando toca o telefone257. Atendi. Era tão curto de dinheiro que não tinha office boy, atendia eu mesmo os telefonemas 258. — Pronto. — De onde fala? 254 Almoço EANS 23/11/90. 255 SD 22/6/73. 256 SD 7/1/89. 257 SD 3/9/88. 258 SD 7/1/89.


80 — Do escritório do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Do outro lado respondem: “Aqui fala Alcântara Machado”. bem?

— Ah! Dr. Alcântara Machado, como vai o senhor? Está passando

259

— Eu queria avisar ao senhor que vai haver uma reunião na rua São Bento, número 19, num prédio da Ordem dos Advogados, às tantas horas, do dia tanto, para discutirmos os programas da Chapa Única. O senhor, como nosso mais jovem colega, está convidado. Ele nem perguntou se eu podia. Era a hora marcada para o “benjamim”, para o pirralho. — Pois não. O senhor esteja certo que eu estarei lá.

2. Separação Igreja-Estado, ponto não aceitável Chegada a hora, compareci ao prédio da Ordem dos Advogados, no qual nunca tinha entrado na minha vida. Era um prédio antigo em que havia morado outrora o Conselheiro Antonio Prado*. * Nessa época, o prédio tomara o nome de Casarão Elias Pacheco Chaves. A localização atualmente corresponde aos números 189, 195 e 197 da rua São Bento, no Centro Velho de São Paulo (cfr. http://www.oabsp.org.br/portaldamemoria/destaque/primeira-sede-da-oabfica-na-sao-bento/).

A reunião realizou-se na antiga sala de jantar dele. O papel de parede era bonito, mas os móveis todos muito feios. Uma mesa enorme e um marcante ambiente de politicagem antes de começar a reunião, todos falando. Entrei e veio logo ao meu encontro o Professor José Joaquim Cardoso de Melo Neto 260, grande amigo do Alcântara Machado e que fora meu professor de Economia Política. Acontece que a família do Cardoso de Melo se dava muito com a minha família, de maneira que ele veio falar comigo assim como quem fala com um sobrinho. — Oh! como vai você, Plinio? Vem cá, eu quero te apresentar para este, para aquele, para aquele outro.

259 SD 3/9/88. 260 — José Joaquim Cardoso de Melo Neto (1883-1965), advogado, professor e político. Catedrático de Economia Política na Faculdade de Direito de São Paulo e diretor da mesma Faculdade entre 1941 e 1942; prefeito interino do município de São Paulo entre 24 de outubro e 5 de dezembro de 1930; foi também governador do Estado de São Paulo de 5 de janeiro a 10 de novembro de 1937; e interventor federal no mesmo Estado, de 11 de novembro de 1937 a 25 de abril de 1938.


81 E entre esses outros, eu conheci José Carlos de Macedo Soares 261, o qual, pelas razões que explicarei, estava indignado, furioso com a minha candidatura. Começa a reunião, o Alcântara Machado toma a presidência. Sentei-me na última cadeira, porque era de longe o mais moço, mas bem em frente ao presidente, vis-à-vis do líder. — Bem, vai ser feita a leitura do programa dos candidatos à Chapa Única por São Paulo Unido. Primeiro ponto: separação da Igreja e do Estado. Segundo ponto: isto, aquilo, aquilo outro. E enumerou outras coisas de política que não vêm ao caso. As reivindicações da LEC estavam contempladas: quebra do laicismo no Brasil; proibição do divórcio; ensino religioso nas escolas; capelanias nos hospitais, nas prisões do Estado e nas Forças Armadas. Terminada a leitura, diz o Alcântara Machado: — Os senhores querem fazer alguma objeção? — Eu quero, Dr. Alcântara Machado. Todas as cabeças se voltaram para mim262: como é que o pintainho de 24 anos se mete agora a discutir com o chefe?263 — Eu tenho um desacordo quanto ao primeiro ponto: separação da Igreja e do Estado. Eu sei que não é desejo do Episcopado restaurar a união da Igreja com o Estado. Mas nós não podemos afirmar que seja um regime bom. É um mal menor. Como está aqui, fica parecendo um regime 261 — José Carlos de Macedo Soares (1883-1968) foi um jurista, historiador e político brasileiro. Ocupou a Presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto em 1905 e participou do comitê organizador da Semana de Arte Moderna de 1922. Na condição de presidente da Associação Comercial de São Paulo, foi acusado de cooperar com a Revolução de 1924. Indiciado, ficou preso por dois meses, exilando-se depois em Paris durante três anos. Em 1930, deu apoio à candidatura Vargas. Secretário de Justiça após o golpe que derrubou o presidente Washington Luís, foi mantido por Vargas nesse posto. Durante o ano de 1932 desempenhou missões diplomáticas na Europa. Ao retornar ao Brasil, elegeu-se deputado federal constituinte na Chapa Única por São Paulo Unido. Nomeado por Vargas para o Ministério das Relações Exteriores em 1934, permaneu no cargo até janeiro de 1937, quando assumiu a pasta da Justiça. Um dos seus primeiros atos foi decretar a libertação de 308 presos políticos acusados de envolvimento com a Intentona Comunista de 1935 (cfr. artigo 308, Legionário nº 249, 20 de junho de 1937), episódio que ficou conhecido como a "macedada". Em 1937, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras e foi seu presidente entre 1942 e 1944. Interventor federal no Estado de São Paulo de 7 de novembro de 1945 a 14 de março de 1947, foi depois ministro da Justiça e de Negócios Interiores de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (interino), e ministro das Relações Exteriores de Nereu Ramos. (Fontes: CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e outras). 262 SD 22/6/73. 263 SD 3/9/88.


82 ideal. Um dos candidatos a deputado, o Dr. João Sampaio − naquele tempo ainda mocetão, de barba grisalha −, quando eu falei isto, nem se voltou para olhar o que eu dizia: fechou a carranca264, empurrou a cadeira dele para trás, como quem se retira daquele circuito indignado e como que dizendo: “Está vendo? Admitiram esse carola aqui dentro e já vai criar complicação!” Eu continuei 265: — Não que eu pretenda que a Chapa Única por São Paulo Unido deva restaurar a Idade Média... Isto já era uma hipótese de eles caírem de costas... — .. mas declarar que a separação da Igreja e do Estado é um bem, isso eu não declaro. É mais fácil eu desistir de ser candidato, sair da Chapa Única, do que o meu nome figurar nesse programa 266. Eu devo dizer com toda a clareza que, se for aprovado isso, eu terei de consultar a Liga Eleitoral Católica, porque não fomos sondados antes sobre essa proposta. Estou, portanto, em desacordo, e peço que o senhor registre esse desacordo. A lealdade da articulação entre as correntes componentes da Chapa Única exigiria que fôssemos consultados antes. Vários fizeram cara de tempestade267. Houve um suspense, pois estava para estalar a Chapa Única. E eles precisavam do eleitorado católico, que já sabiam colossal. Enquanto eu falava, Alcântara Machado (eu me lembro dele com um lápis e um papel na mão) me olhava pensativo.

3. Componenda e distensão Quando terminei, ele disse: — Bom, vamos dar um jeito nisso. Vamos pôr assim: “Uma vez separada a Igreja do Estado, concórdia entre os dois poderes civil e eclesiástico”. É condicional, porque tanto pode dizer que deve ser separada a Igreja do Estado, quanto pode ser entendida noutro sentido. Caso seja separada, nem o senhor se compromete, nem nós 268. Eu percebi a sagacidade dele e achei que estava muito bem jogado. 264 SD 22/6/73. 265 SD 3/9/88. 266 SD 22/6/73. 267 SD 23/8/80. 268 SD 22/6/73.


83 Então logo eu disse269: — Aí está bem, eu concordo. Pode ser. — Ahhh! Distensão. Daí a pouco estava terminada a reunião, abraços etc. etc. 270. O João Sampaio se desmobilizou todo271. E a LEC tinha ganho esse primeiro tento. Pela mão do caçula, tinha dado uma freada no trem, e o trem tinha parado. Quer dizer, ficou entendido perfeitamente que, quando fizessem a política deles, eu não criaria dificuldades. Mas quando se tratasse de um interesse católico, a coisa ia até qualquer consequência.

4. O susto de Dom Duarte Dias depois estive com Dom Duarte e contei a ele a reunião 272. Ele tinha uma dignidade episcopal extraordinária. Eu ia contando e ele ouvindo com um ar marmóreo (aquela estátua que há em frente à igreja Santa Cecília não dá nem de longe ideia do que ele foi). Ele era muito magro e cruzava uma perna sobre a outra de tal maneira que a perna que cruzava ainda batia no chão também. Ele fechava a cara, mas não controlava o pé. E pela batida do pé eu percebia se ele estava gostando ou não. De maneira que eu, discretamente, tomava o pé como sismógrafo quando ele cruzava as pernas. Eu narrei tudo desde o início da reunião: quem falou isso, quem falou aquilo, quem disse que conhecia minha família. Ele ouvindo tudo, achando normal, batendo o pé. Quando chegou no tal assunto e eu disse: “O Alcântara Machado propôs assim”, ele aproximou as mãos do coração como quem pega a cruz (ele estava velho e morreria pouco tempo depois de doença cardíaca). Eu disse que não aceitei o ponto da separação da Igreja do Estado. Ele disse: — Vossemecê disse isso? — Disse. E o Alcântara Machado propôs isso assim e eu aceitei. Ele deu um suspiro de alívio. Quer dizer, era para a Religião uma vitória brilhante273. 269 Almoço EANS 23/11/90. 270 SD 22/6/73. 271 Almoço EANS 23/11/90. 272 SD 22/6/73. 273 SD 23/8/80.


84 Como era a primeira vez que eu agia em nome da Cúria, como candidato, gostei que ele visse que eu dava prova de firmeza, mas não de uma firmeza estúpida. E que eu sabia ladear também as coisas. E já que o jeitoso Alcântara Machado tinha encontrado essa solução, eu tinha sabido ver que a solução era boa e tinha aceito a coisa274.

5. Nova dificuldade: caso Macedo Soares Nesse período tinha havido uma coisa verdadeiramente complicada. Eu estava fazendo a minha propaganda eleitoral, ainda antes da morte do Dr. Estêvão Rezende, quando apareceu a querela do José Carlos de Macedo Soares contra a minha pessoa. José Carlos de Macedo Soares era íntimo e fraternal amigo de Dom Duarte, desses de entrar na casa de Dom Duarte quando quisesse. De outro lado, ele era muito ligado ao Getúlio e levava a fama de católico praticante275. Até tinha o Santíssimo Sacramento na casa dele. Ele estava na Europa quando foi formada a Chapa Única276. Voltando, encontrou-me candidato a deputado indicado pela Igreja . E ele achou um desaforo o fato de ele, um “grande católico”, não ter sido indicado como candidato pela Igreja, mas pela Associação Comercial278. 277

Foi procurar Dom Duarte e disse que ele fazia questão fechada de ficar presidente da Liga Eleitoral Católica, e a Liga Eleitoral Católica passar a ser dirigida por ele. Dom Duarte reuniu a direção da Liga e disse: “Bem, os senhores resolvam”. Nós nos reunimos e eu comuniquei a Dom Duarte que a Liga tinha resolvido que, se ele, Dom Duarte, quisesse, nós obedeceríamos e deixaríamos os cargos de direção da Liga. Eu mesmo iria trabalhar até como datilógrafo da Liga, para auxiliar o serviço. Mas ter participação na diretoria com um homem como o José Carlos de Macedo Soares, não. 274 SD 22/6/73. 275 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54 — Apesar de seu renome de católico, José Carlos de Macedo Soares tomou atitudes francamente reprováveis que o Legionário viria posteriormente a deplorar, como a já referida soltura, quando Ministro da Justiça de Vargas, de 308 prisioneiros comunistas detidos no Rio por participação na Intentona Comunista de 1935. Durante essa Intentona, entre outros atos brutais de violência, foram assassinados na calada da noite oficiais e soldados das Forças Armadas por elementos comunistas infiltrados em quartéis de Natal, Recife e Rio. Ao serem libertados no Rio, alguns desses prisioneiros prorromperam em vivas a Luís Carlos Prestes e entoaram o hino da III Internacional Comunista (cfr. Legionário de 13, 20 e 27/6/37). 276 SD 22/6/73. 277 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 278 SD 22/6/73.


85 Dom Duarte comunicou isto ao Macedo Soares. E o Macedo Soares pulou, injuriou Dom Duarte, disse as piores coisas, brigou e cortou relações. Isto ocasionou até uma vinda do Tristão de Athayde do Rio de Janeiro para tentar consertar as relações de Dom Duarte com o Macedo Soares. Não adiantou nada. De outro lado, tendo Dom Duarte ido a Itaipava passar alguns dias com Dom Leme, Macedo Soares ameaçou escrever um artigo contra Dom Duarte. Eu então telegrafei para Dom Duarte avisando-o da ameaça. Dom Duarte veio para São Paulo. Foi uma estralada medonha entre os dois279. Mas a minha candidatura estava lançada. Não era mais retroagível 280.

6. Tentativa de impugnação da candidatura Apareceu outra dificuldade. Eu estava vendo que havia quem trabalhasse para criar dificuldades 281. Era o resultado do papel de espadachim que eu tinha feito na primeira reunião da Chapa Única, em que fui obrigado em consciência a tomar aquela atitude. O fato é que, certo dia, apareceu no alto dos jornais diários: “Impugnada a candidatura do Senhor Plinio Corrêa de Oliveira”. Subtítulo: “Não tem idade suficiente para ser deputado.” Pela lei eleitoral, era preciso ter 24 anos completos. E eu tinha ainda 23, quando fui indicado como candidato. O problema era: um homem que tem 23 anos quando se registra como candidato a deputado, mas que terá 24 quando a eleição se realizar282, pode ou não ser deputado?283 Como se deve interpretar a lei?284 Eu estranhei, indignei-me muito, mas o que fazer? Eu vi que precisava de um arrazoado, de um parecer jurídico a

279 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 280 SD 22/6/73. 281 Almoço EANS 23/11/90. 282 — Dr. Plinio foi indicado pela Chapa Única por São Paulo Unido com 23 anos de idade. Completou 24 anos em 13 de dezembro de 1932. A eleição realizou-se em 3 de maio de 1933, e a Constituinte foi instalada em novembro do mesmo ano. Os trabalhos se estenderam até 16 de julho de 1934, quando a nova Constituição foi promulgada. 283 SD 23/8/80. 284 SD 22/6/73.


86 respeito de como interpretar a lei eleitoral, mas feito por um jurista de grande fama, de grande nomeada, para encostar o Tribunal Eleitoral na parede, e por esta forma obrigar o Tribunal a declarar que o meu direito era indiscutível 285. Estava neste impasse, quando recebo um telefonema em minha casa: era de um dos candidatos a deputado, que me mandava dizer que, se eu quisesse, arranjava-me o parecer de um grande jurisconsulto a favor do meu ponto de vista. Eu disse: “Sim, claro, de bom grado”. Ele: “Passe pela minha casa às tantas horas que eu trato da questão com você”. Eu passei pela casa dele, conversamos um tanto e perguntei: — Bem, mas quem é o jurisconsulto? — É o Professor Sampaio Dória, da Faculdade de Direito (tinha sido meu professor de Direito Constitucional): você quer o parecer dele? — Quero! Ele foi ao telefone e combinou com o Sampaio Dória286 um encontro no dia seguinte, que era feriado, num café da rua XV de Novembro, quase em frente à Secretaria da Educação, perto do Pátio do Colégio. O café se chamava, se não me engano, Café Guarany. Ele falaria lá comigo, explicando-me o caso. Fui para o Café Guarany na hora certa. Cumprimentamo-nos, sentamo-nos. Sampaio Dória parece que se lembrava de mim. E entramos no assunto. Disse ele: — Eu acho que você tem toda a razão. Eu vou fazer um parecer para você. E depois acrescentou: — Eu sou contrário à participação da Igreja na política. Mas, no caso concreto, como está o Brasil, eu sou favorável. E por isso eu me ofereço para dar um parecer a seu favor. Amanhã, passe a tal hora assim, 285 SD 3/9/88. 286 — Antonio Sampaio Dória (1883-1964) foi um político, jurista e educador brasileiro. Diretor-geral da Instrução Pública (1920-1924), coordenou várias reformas de ensino. Foi professor de Direito Público Constitucional e de Direito Internacional Privado na Faculdade de Direito de São Paulo. Foi nomeado ministro da Justiça pelo Presidente da República interino José Linhares em 1945.


87 e pegue o parecer. Mandei pegar o parecer, que estava excelente, completamente a meu favor. Tratava-se agora de mandar o parecer para o Tribunal Eleitoral no Rio de Janeiro. O Rio era a capital federal naquele tempo. Foi para lá o Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra, que era um ano e meio mais moço do que eu, mas muito hábil. * Certa noite eu estava em casa jantando com um amigo, presidente da Congregação de Santa Cecília, de uma família dinamarquesa rica aqui de São Paulo. Ele se chamava Svend Kok. Estavam presentes também outras pessoas. De repente, vem um telefonema do Rio: — ‘Seu’ Paulo quer falar com o Dr. Plinio. Disse eu: “É o assunto do Tribunal Eleitoral. Vamos lá ”. Não me lembro quem era no Rio de Janeiro que estava levantando oposição à minha candidatura. Eu esbravejei no telefone, dizendo que se devia responder de tal e tal jeito. O Paulo ia-me dando os argumentos levantados por aquela pessoa. Quem ouvisse a conversa, vendo a minha réplica, compreenderia quais eram os argumentos do meu adversário no Rio. Minha mãe, perto do telefone, ia ouvindo com toda a atenção. O Svend Kok também. E aqui aconteceu uma coisa curiosa em relação ao Svend Kok. Quando na conversa telefônica transpareciam aquelas coisas contra mim, o Svend esfregava as mãos. Como eu estava atento àquele assunto todo, que era muito importante, nem prestei atenção ao que o Svend estava fazendo. Mas notei que minha mãe lhe tinha dito alguma coisa. Notei também que ele respondeu amavelmente. No fim da noite, disse-me minha mãe: — Você percebeu o que se deu com o Svend, enquanto você falava ao telefone? — Não, não notei bem. — Quando vinha a notícia do argumento que lhe prejudicava, ele esfregava as mãos como quem torcia contra você. Eu então eu lhe disse: "Svend, eu pensei que você fosse amigo do Plinio. Será que eu estava enganada e que devo reformar o meu juízo"? Ele então respondeu: "Não,


88 Dª Lucilia, eu faço assim antegozando a resposta que Plinio vai dar". Essa atitude dele já era prenunciativa da atitude triste que mais tarde ele iria ter, por ocasião do meu embate com os erros da Ação Católica. Dias depois, notícia nos jornais: “Tribunal Eleitoral do Rio de Janeiro deu ganho de causa ao Senhor Plinio Corrêa de Oliveira”287.

Capítulo VI A campanha eleitoral 1. Primeira experiência eleitoral Preparam-se as eleições e eu não tinha a menor ideia da votação que eu teria. Eu percebia que o movimento católico era grande. Mas eu não sabia se aqueles eleitores, na hora de votar, seguiriam ou não a orientação da Liga Eleitoral Católica 288. Além disso, não tinha nenhuma ideia de qual era o eleitorado real da Liga Eleitoral Católica289. Não tinha também a menor ideia da votação que conseguiria290 e não sabia que parte do eleitorado levavam consigo os outros três candidatos indicados pela LEC 291. Era certo que eu nunca havia feito a política dos homens. Mas já há tempos havia me adestrado no bom combate das lutas de Deus, fazendo parte das Congregações Marianas, fundando a Ação Universitária Católica e escrevendo há um bom tempo na imprensa católica. Sobretudo eu tinha a convicção de que minha candidatura não era a candidatura de Plinio Corrêa de Oliveira, mas sim a de todo o laicato católico, que "non aestimator meriti, sed veniae"292, eu representava no momento293. 287 SD 7/1/89. 288 SD 23/8/80. 289 SD 3/9/88. 290 SD 23/8/80. 291 SD 22/6/73. 292 — Em tradução livre, "não por causa de nossos méritos, mas por condescendência". A frase latina é do Cânon Romano antigo, e se traduz habitualmente por "não conforme nossos méritos, mas segundo a vossa misericórdia". 293 Carta aos Secretários das LECs do Estado de São Paulo, de 29/4/33.


89 A única jogada política que eu fiz foi passar uma circular explicando para as nossas diretorias do interior que a Liga Eleitoral Católica tinha entrado na Chapa Única e dando os motivos. Tudo isso deve estar nos arquivos da Liga Eleitoral Católica, na Cúria Metropolitana, pois quando a Liga fechou eu entreguei os documentos da LEC para a Cúria294. * Nenhum dos candidatos indicados pela LEC para a Chapa Única havia me procurado para pedir apoio. E eu, que estava fazendo minha primeira experiência eleitoral, me julgava um candidato fraquíssimo, de 23 anos, não tendo quase tempo de fazer relações fora do meio católico. Então pensei: Vou fazer a minha propaganda, e eles fazem a deles . 295

Eu já manifestava nessa época dotes de orador, pois tinha começado a falar por toda a parte há dois anos 296. E fazia discursos mostrando que se deveria seguir a orientação da Liga Eleitoral Católica, mostrando que vantagens havia naquelas reivindicações para os católicos. E concluía dizendo que os católicos deveriam votar nos candidatos que a Liga indicasse297.

2. Bispos apoiam Os Bispos, com medo de sofrerem uma derrocada, encamparam a tal ponto a minha candidatura, que a reunião da Liga Eleitoral Católica era feita dentro das igrejas. Por respeito, corriam um pano para separar o Santíssimo Sacramento do povo, e a igreja ficava transformada num salão, onde então podiam falar os leigos. E eu, muitas vezes falava do próprio púlpito; ou então da mesa colocada na capela-mor. Não compareciam padres, para marcar a não-intervenção do Clero, mas a propaganda se fazia dentro da igreja. Mais uma vez, bonomia brasileira. E enchia de gente. Eu fiz campanha em vários bairros de São Paulo, igualmente em igrejas. Mas fiz campanha notadamente no interior, e a zona onde tomei mais contatos foi aquela zona em volta de Aparecida, então pertencente à Diocese de Taubaté.

294 SD 23/8/80 — Este ofício é de 29 de abril de 1933. 295 SD 22/6/73. 296 SD 23/8/80. 297 SD 10/9/88.


90 O Bispo, Dom Epaminondas Nunes de Ávila e Silva298, homem com fama de santidade, muito sagaz no bom sentido da palavra, era verdadeiramente muito meu amigo. Eu esperava de Dom Epaminondas um efetivo e dedicado apoio. Por causa disso, especializei minha campanha naquela zona. Depois, Aparecida naquele tempo se irradiava muito mais. Era a capital daquela zona, porque as comunicações com São Paulo eram muito difíceis 299. * Eu detestava viajar − até hoje não gosto − e ainda mais viajar de trem. O que eu viajei nesse tempo de propaganda da LEC foi uma enormidade, em todas as direções. Algumas viagens Dr. Paulo Barros fez comigo 300. Eu me hospedava na casa paroquial, fazia discursos, seguia viagem, mas era sempre discursos em igrejas. Discurso em praça pública não fiz. Mas era absolutamente como se fosse discurso em praça pública, com tropos de oratória como se gostava naquele tempo. Muito menos conversado do que hoje, muito menos causerie do que hoje e muito mais discurso, porque naquele tempo se gostava desse gênero. Terminado o ato, o povo batia palmas como para todo discurso 301. Como eram meus discursos? Eu chegava e falava. Eu nunca fui de preparar muito as coisas. O que na hora me parecia cabível, mais adequado de dizer, eu ia falando 302.

298 — Dom Epaminondas Nunes de Ávila e Silva (1869-1935) era natural da cidade do Serro (MG). Ordenado a 17 de julho de 1892, foi o primeiro Bispo de Taubaté, tendo sua sagração episcopal se dado a 8 de setembro de 1909, portanto em pleno pontificado de São Pio X. 299 SD 23/8/80. 300 SD 22/6/73. 301 SD 23/8/80. 302 SD 10/9/88.


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Capítulo VII Durante as eleições 1. Dia tranquilo No dia da eleição, votei cedo. Era muito fácil votar, porque sendo candidato, tinha o direito de chegar na cabine eleitoral e furar qualquer fila. Depois fui com o meu staff para o escritório, para estar à disposição do que desse e viesse. E passei o dia lá, até acabarem as votações. Era feriado e um dia relativamente tranquilo na Liga. Apenas, a um certo momento, o telefone chama e eu ouço uma voz cava que me diz: — Quem fala? Pensei de mim para comigo: conheço essa voz, mas não estou reconhecendo... Respondi: — É da Liga Eleitoral Católica. — O Dr. Plínio está? — É ele quem está falando. — É o Arcebispo que fala. Eu pensei que fosse brincadeira de algum rapaz das congregações Marianas e disse: — Deixe de brincadeira e diga logo o que é que você quer. Ele disse: — É o Arcebispo! Aí, pelo tom de voz, reconheci que era ele. Eu disse: — Ah, Sr. Arcebispo, me desculpe. Ele passou por cima do equívoco e disse: — Acabo de receber a notícia de que estão faltando cédulas em Campinas” (era intriga de alguém) e que eleitores que estão procurando cédulas para votar não encontram. Estou aflitíssimo por causa disso. — Não, Sr. Arcebispo, a remessa para Campinas foi feita


92 normalmente, como para todas as sedes de Dioceses do interior. Essas sedes de Dioceses distribuem para as outras cidades. E isto foi feito. — Pois me dizem de fonte muito segura303 que Vossemecê descuidou completamente do setor de Campinas, e que o setor de Campinas está sem cédulas, e que a LEC em Campinas fracassou. O que é que há de real? — Sr. Arcebispo, um instantinho eu já vou lhe dar a informação. Fiz uma ligação para Campinas e veio a notícia de que estava tudo normal. Era uma intrigra304. Telefonei ao Sr. Arcebispo e disse: — Sr. Arcebispo, acabo de receber telefonema de Campinas, de Fulano de tal etc. (era pessoa que ele conhecia, e pessoa de toda confiança) informando-me que tudo corre normalmente. Ele me disse: — Ah bom, então está bem etc. Foi o único incidente do dia. Terminaram as eleições, terminou a votação com muita calma, e eu fui assistir o mês de Maria. Ainda deu tempo. Depois fui para a sede da Congregação, e por fim para casa. Foi portanto um dia comum305.

2. Primeiros sinais dos resultados Dias depois eu encontrei com um candidato, Azevedo Marques306, antes de começar a apuração. Ele era um senhor idoso. Veio ao meu encontro: — Oh! aqui está o mais votado de nós, o candidato já eleito. — Oh! Dr. Azevedo Marques, eleito é o senhor, um homem já conhecido, ilustre e não um novato como eu. — Não, eu tenho informações. Todas as Filhas de Maria do interior do Estado votaram em você307. Bem, aparece em casa um primo que tinha sido mesário. Todas as seções eleitorais eram marcadas por uma letra do alfabeto: letra N é em tal 303 SD 3/9/88. 304 SD 22/6/73. 305 SD 3/9/88. 306 — José Manuel de Azevedo Marques (1865-1943) era advogado, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, deputado federal e Ministro das Relações Exteriores no governo Epitácio Pessoa. Foi também o primeiro presidente eleito da OAB de São Paulo. 307 SD 22/6/73.


93 prédio, letra tal em tal outro prédio etc. E ele era da letra M. Ele entrou em casa e disse: — Eu fui mesário, e tudo quanto é Maria votava lá 308. Maria de Lourdes, Maria Aparecida, Maria Salete, todas votavam lá. E elas só queriam votar no Plinio! E quando acabavam os votos do Plinio, elas não votavam em outro: ficavam paradas dentro da cabina, até que eu mandasse vir mais cédulas do Plinio, do depósito em cima (vejam onde é que ele guardava isso). Aí recomeçava a votação. De maneira que, pela minha cabine, o Plinio está estrondosamente eleito309.

3. Apuração das urnas e queixas dos outros candidatos da LEC Começam a abrir as urnas, e foi aquela história: Plinio Corrêa de Oliveira, Plinio Corrêa de Oliveira. Todas as urnas Plinio Corrêa de Oliveira, de cá, de lá 310. E de todos os lados do Estado, foguete: “Plinio Corrêa na ponta”311. E a votação foi crescendo. Os três outros candidatos foram à Cúria interpor uma queixa: “A LEC não trabalhou por nós”. Monsenhor Gastão Liberal Pinto me chamou e disse: — Olhe, Rafael Sampaio Vidal vai ser derrotado. O Alcântara Machado está tendo a metade dos seus votos. Um homem ilustre, o Hipólito do Rego, está mal conseguindo a eleição por Santos. Como é que você fez essa distribuição dos votos? — Monsenhor Gastão, vou ser inteiramente franco. Usei o seguinte critério: ninguém me procurou, ninguém me pediu um voto, nem o senhor pediu para trabalhar por ninguém. Eu julguei que os outros estavam muito seguros de sua votação. Seguro não estava eu, um candidato novo. Se o trabalho deu resultado, estou aqui para servi-lo. — Está bem, está bom. E o Rafael Sampaio Vidal? — Ele não se moveu! Quem não se move... Há um ditado romano: “Tarde venientibus ossa” — “Para quem chega atrasado, os ossos”312. * Uma coisa eu não disse para Monsenhor Gastão, mas era a pura realidade. Dos quatro candidatos, o único católico militante era eu. Os

308 SD 3/9/88. 309 Almoço EANS 23/11/90. 310 SD 22/6/73. 311 SD 23/8/80. 312 SD 22/6/73.


94 outros três eram políticos que, no seu foro privado, seriam ou não católicos. Os outros eu não conhecia, a não ser um deles, que eu via frequentar a casa de um parente e que era dos tais católicos no mundo da lua. Quando se tratou de pleitear os interesses da Igreja em face do Estado, o único que estava disposto a lutar pela causa católica até o sangue era eu. O resultado é que toda a votação dos católicos se concentrou em minha pessoa. Se levei toda a votação católica era porque eu era católico e representante da Liga Eleitoral Católica. E o que se podia esperar de mim na minha idade, eu fiz. E assim fiquei na frente.

4. Primeira comunicação da vitória A primeira notícia do reconhecimento oficial que tive de minha eleição não foi dado por minha mãe. Minha mãe acompanhou tudo muito serena, muito comprazida, manifestamente alegre, mas muito discreta, e muito desapegada, sobretudo. E eu percebia que ela queria me ensinar que não nos devemos apegar a cargos, a coisas dessas; que acima de tudo está a consciência e o serviço de Deus. Ela recebia bem a notícia, mas comedidamente. Eu sempre muito plácido, muito sereno, nunca me levantei mais cedo para pegar os jornais e ver qual era a minha votação. Eu dormia até passar a vontade de dormir, daí me levantava, me preparava para ir comungar (naquele tempo a comunhão era só de manhã e eu era obrigado a ficar em jejum desde a meia-noite); ia comungar e voltava para tomar café. Antes de ir comungar, quando havia tempo (porque a partir de dez horas não se comungava mais), eu dava uma vista d’olhos nos jornais; se não, eu dava essa vista d’olhos quando voltava da comunhão. Eu estava saindo para ir comungar, e minha irmã, que se encontrava na sala onde se expunham os jornais, deu um sorriso, simulou uma espécie de reverência e disse: “Senhor Deputado, meus parabéns”. Eu não entendi a brincadeira e perguntei: “Como assim?” Ela, muito viva, um espírito muito mais ágil do que o meu, disse: — Você não viu? Você já passou o número de votos necessário para ser deputado. Você já é deputado. Eu disse: “Eu não quero é perder a comunhão, está na hora”, e fui correndo comungar. Foi assim que eu soube que tinha sido eleito deputado313. 313 SD 23/8/80.


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5. Candidato mais novo e o mais votado Eu já estava com a eleição garantida, mas ainda iam aparecendo todos os dias votos, votos e mais votos das várias cabines eleitorais, até chegar ao total, exorbitante para a época, de 24 mil votos para mim314. Isso representava, para a população de São Paulo daquele tempo, um resultado enorme 315. Era o dobro do segundo deputado mais votado. Portanto, era prova do prestígio de nossa corrente, uma coisa fantástica. Uma Liga Eleitoral Católica organizada há dois anos alcançava um resultado sem precedentes 316. Eu era o candidato mais moço do Brasil, e, ao mesmo tempo, o candidato mais votado. Os jornais noticiaram esse resultado sem elogios, apenas constataram o fato. Mas o fato era sumamente prestigioso para as forças católicas. De maneira que comentassem ou não os jornais, dava na mesma. * Eu saía à rua e encontrava candidatos da Chapa Única, mas que não foram indicados pela LEC, que me diziam: “Oh! Plinio, como vai? Meus parabéns. Que vitória brilhante! Nunca ninguém pensou que você tivesse essa votação. Você sabe? Fulano, Beltrano e Mengano, que foram derrotados, estão até sentidos com você. Porque você devia ter repartido com eles os votos da Liga Eleitoral Católica. Aí teriam entrado também. Eles não entraram porque você tomou toda a votação da Liga”317. José Carlos de Macedo Soares não tinha sido eleito. Era da Chapa Única, candidato pela Associação Comercial, mas não conseguiu a vitória por causa do sistema eleitoral, que não admitia que o voto de legenda favorecesse outros deputados 318. Nisto houve o caso de umas urnas anuladas, que levaram à convocação de uma eleição suplementar. E o Jose Carlos de Macedo Soares tempesteando: — Os católicos elegem esse meninote, esse franguinho... E eu, um homem célebre, fui derrotado. Eu faço questão que nessas eleições suplementares a LEC trabalhe por mim. Dom Duarte chamou-me: — Olhe, o senhor deve estar muito queixoso com o Soares, ele anda 314 SD 7/1/89. 315 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 316 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 317 SD 7/1/89. 318 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54.


96 falando muito mal do senhor, mas eu queria pedir-lhe que o senhor trabalhasse a favor dele. — Senhor Arcebispo, com todo o empenho. Vou me pôr na votação pelo José Carlos a fundo. Trabalhei, e graças a Deus eu pude dar essa prova de disciplina: o José Carlos entrou para deputado, o que o distendeu um pouco em relação a mim319.

6. Convite para ser diretor do “Legionário” O Legionário foi fundado em 1927, bem antes de eu ser diretor dele , mas eu já era, há anos, desde 1929, seu colaborador321. Era no seu início um mensário paroquial, e nascera em um período ainda combativo, em que os inimigos da Igreja eram declaradamente inimigos, e os católicos eram declaradamente católicos, e as relações entre estes e aqueles eram polêmicas 322. 320

Tornando-me deputado, convidaram-me para ser diretor323. Convite compreensível, uma vez que o Legionário era um órgão de congregados marianos, e eu era um dos líderes mais conhecidos das Congregações Marianas324. Eu aceitei e disse: “Podem pôr o meu nome desde já. Mas só exercerei a direção quando acabar meu mandato de deputado, não é possível fazer tudo junto. Mas, quando deixar de ser deputado, exercerei o cargo”325.

319 SD 22/6/73. 320 SD 18/3/89. 321 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 322 — O primeiro número do Legionário veio a público no dia 29 de maio de 1927. Seu diretor era Monsenhor Paulo Marcondes Pedrosa, seu redator-chefe Paulo Sawaya e seu redator-secretário Ruy Calazans. Era uma publicação mensal de quatro páginas, simples órgão paroquial da Congregação Mariana da Legião de São Pedro (da Paróquia de Santa Cecília). Sua sede funcionava no prédio n° 59 da Rua Imaculada Conceição, que futuramente seria também a sede do grupo do Legionário. 323 SD 18/2/89. 324 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 325 SD 18/2/89.


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Capítulo VIII Preparativos para a Constituinte 1. Papel providencial do livro de Dom Chautard Passaram-se alguns meses antes de reunir-se a Constituinte, porque naquele tempo as coisas se faziam devagar326. Confesso que o livro chave para mim, nesse período, não foi só o de São Luís Maria Grignion de Montfort (sobre a sagrada escravidão a Nossa Senhora), foi também o de Dom Chautard, A alma de todo apostolado. Porque Dom Chautard serviu de muralha contra a grande, a tremenda tentação a que eu poderia estar exposto nesse tempo, que era a tentação do amor próprio 327. Qualquer um coloque-se na minha situação: 24 anos, o deputado mais moço e o mais votado do Brasil, com toda a publicidade colocada em cima de mim como uma espécie de celebridade. E com uma possibilidade de carreira indefinida à minha frente. De outro lado, sentindo em torno de mim o coro da bajulação que surgia, com fama de muito bom orador, isto, aquilo, aquilo outro 328. O instinto humano leva o indivíduo a ficar vaidoso: “Que colosso eu sou! Como eu, moço, já consegui tantos milhares de eleitores!” 329 E viria logo depois o demônio com um oferecimento: 330 — Quem sabe você dar um jeito e se pendurar na política? Veja a vantagem de ser deputado: honras oficiais por toda a parte331. Não estou pedindo que você faça nenhuma ação má... Não, eu só lhe peço, para lhe dar isto, que você deixe o meio mariano no qual vive, e passe a viver nesse meio. Mas, claro! conservando seu vocabulário limpo, conservando seus 326— A eleição para a escolha dos deputados constituintes foi a 3 de maio de 1933. E a Assembleia Nacional Constituinte instalou-se em 15 de novembro desse mesmo ano. Portanto, mais de seis meses depois. Após mais oito meses de discussões, no dia 16 de julho de 1934 ela promulgou a nova Constituição. Teve ainda uma última sessão no dia 17, na qual elegeu Getúlio Vargas Presidente da República, por votação indireta dos parlamentares. 327 — Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-1935), sacerdote e religioso na Abadia de Aiguebelle, da Ordem de Cister, e mais tarde Abade da Trapa de Sept-Fons (França). Sua obra A alma de todo apostolado tem como pressuposto que a ação apostólica nasce do transbordamento de uma intensa vida interior, sem a qual qualquer obra de apostolado é estéril e até contraproducente. 328 SD 22/6/73. 329 SD 15/4/89. 330 Chá 19/9/94. 331 SD 28/1/89.


98 costumes sem mancha, conservando o que você quiser, mas venha viver no meio deles, no meio deles, no meio deles! 332 Nas ocasiões em que aquele aroma de importância me poderia subir ao espírito, eu me lembrava de Dom Chautard. Era o meu anjo da guarda que me fazia lembrar dele. E eu dizia: “Não, eu tenho que fazer o contrário. E se tiver que sacrificar a minha vida, a minha carreira política, eu a sacrifico a qualquer hora, para viver exclusivamente para a Igreja Católica!”333. Se eu não agisse assim, o resultado seria um embriagamento de mim para comigo mesmo. E na hora em que me fosse posta a alternativa: apostatar ou renunciar a ser reeleito, teria optado pela apostasia. Foi o livro de Dom Chautard que me auxiliou334. Dom Chautard punha os pingos nos "is": ou o apóstolo é completamente desapegado, não ambicionando carreira e visando exclusivamente o serviço da Igreja, ou a pessoa enterra a causa que ela quer servir. Eu via bem que vitória da Igreja na Constituinte poderia encerrar a atmosfera de laicismo que tomava conta do Brasil, e poderia afirmar de um modo esplêndido a força da Igreja, quarenta anos depois de separada do Estado. Mas essa vitória, no que tocava a mim, consistia em que eu não consentisse em nenhum movimento de vaidade, por menor que fosse. E em estar pronto a entregar meu cargo a qualquer momento, a renunciar a minha carreira, a voltar a ser zero, desde que a causa católica o exigisse. Eu via, portanto, pela frente, um enorme apostolado a fazer. Mas sabendo que essa missão trazia consigo, em germe, uma bênção e uma maldição. Uma bênção se eu fosse inteiramente desapegado, uma maldição se eu fosse apegado. E começou então a luta contra o amor próprio. Todo mundo concebido no pecado original tem impulsos de amor próprio. Era bem evidente que eu os tinha também335.

2. Do ponto de vista polêmico: leituras A capital do país era o Rio de Janeiro e a Constituinte se reuniria lá. Eu estava certo de que, chegando ao Rio, eu deveria estar preparado 332 Chá 19/9/94. 333 SD 3/9/88. 334 SD 15/4/89. 335 SD 22/6/73.


99 para discussões, polêmicas a respeito dos pontos levantados pela Liga Eleitoral Católica. E li então, nos meses que decorreram da eleição até a minha posse, muitos livros católicos a respeito do divórcio e outros temas, para ir com uma argumentação cerrada. A eficácia do mandato que me era confiado pedia isto. Não podia imaginar que justamente nesse terreno eu iria ser cerceado e impedido de me manifestar, como direi adiante336.

3. Apoio a Armando Sales por orientação de Dom Duarte Mas aqui em São Paulo a política não parava. Havia um governador militar não-paulista, o já referido João Alberto Lins de Barros, e era preciso substituí-lo por um governador civil, nomeado pelo Getúlio. Começou a partir daí uma série de problemas a respeito da designação do governo de Estado. O Getúlio queria a indicação de um paulista assinada por todos os deputados de São Paulo, para ter garantia de que esse governador representasse São Paulo. Mas o documento deveria ser ultra confidencial, porque São Paulo oficialmente ainda estava rompido com Getúlio, e o primeiro passo da aproximação era o Getúlio nomear um governador civil paulista. Então os políticos paulistas designaram Armando Sales de Oliveira 337, que depois foi candidato à Presidência da República e posteriormente foi expulso pelo Getúlio. Como Dom Duarte queria o Armando Sales, eu assinei a lista também. * Pouco depois de nomeado, o Armando Sales deu um banquete aos deputados paulistas em um grande clube de São Paulo. 336 SD 3/9/88. 337 — Armando Sales de Oliveira (1887-1945) foi um engenheiro e político brasileiro, interventor federal em São Paulo entre 21 de agosto de 1933 a 11 de abril de 1935 e governador (eleito pela Assembleia Constituinte) de 11 de abril de 1935 a 29 de dezembro de 1936. A seu tempo apoiou a Revolução de 1930, juntamente com o jornal O Estado de S. Paulo, do qual era sócio. Sob seu governo foi criada a Universidade de São Paulo (em 1934). Em 1937, deixou o cargo de governador para se candidar a Presidente da República nas eleições marcadas para janeiro de 1938, eleições estas que não ocorreram devido ao golpe de Estado dado por Getúlio, o qual implantou o Estado Novo em 10 de novembro de 1937. Passou cerca de um ano em prisão domiciliar, exilando-se em 1938 na França, depois nos Estados Unidos e por fim na Argentina. Só voltou ao Brasil em 1945, falecendo pouco depois.


100 Eram restos da República aristocrática. Ele, aliás, era um homem de muita linha. Os deputados deviam comparecer de smoking. Havia razões para eu ir, mas havia razões para eu não ir. Então mandei um telegrama agradecendo com urbanidade o convite, dizendo que me solidarizava com a atitude de simpatia de meus ilustres colegas em relação a ele. Eu soube depois que, como ato inicial do banquete, um orador levantou-se e disse: “O deputado Plinio Corrêa de Oliveira, que não pôde comparecer por motivo de saúde, manda ao senhor Interventor Federal o seguinte telegrama ...” E o telegrama foi lido e depois reproduzido por vários jornais 338.

4. A partida para o Rio: numeroso público na Estação Nas vésperas da abertura da Constituinte, anunciaram que todos os deputados eleitos por São Paulo iriam juntos para o Rio de Janeiro, em um trem de luxo que fazia o trajeto São Paulo-Rio e se chamava Cruzeiro do Sul339. Acontece que nesse dia eu não poderia ir, pois um grupo de congregados marianos mais proeminentes me havia oferecido um jantar340 marcado para dois ou três dias depois 341. Era um jantar só de congregados marianos, que se realizou numa das melhores confeitarias de São Paulo. O dono era um velho senhor italiano, que a cedeu de muito bom grado. Foi um jantar que encheu a confeitaria 342. Saiu notícia com fotografia dos oradores e pormenores. E nessa notícia se dizia que eu iria partir para o Rio da Estação do Norte dia tal, às tantas horas. No dia aprazado (dia 13/11/33), fui para a Estação do Norte e, quando cheguei lá, a Estação estava cheia de gente. Na plataforma, vivas, palmas. Embarcamos no trem minha mãe, meu pai, minha irmã e eu. Os

338 SD 23/8/80. 339 SD 3/9/88. 340 SD 23/8/80. 341 SD 3/9/88. 342 — Este jantar, realizado no Restaurante Elite no dia 10 de novembro de 1933, foi promovido pelos congregados marianos universitários da A.U.C. (cfr. Legionário n° 132, 12/11/33, p. 3). Também a Cúria Metropolitana organizou no dia 12 uma homenagem a Dr. Plinio, na véspera de sua partida para o Rio de Janeiro, com a honrosa presença do Arcebispo Metropolitano, Dom Duarte Leopoldo e Silva, tendo discursado o Padre Cursino de Moura, diretor da Federação das Congregações Marianas (Idem, p. 4).


101 membros de minha família se acomodaram na cabine, mas eu permaneci naquela entradinha do vagão, agradecendo com o chapéu às pessoas ali presentes, enquanto o trem se afastava. E logo depois fui dormir também343.

Capítulo IX Inauguração da Constituinte 1. Minha chegada ao Rio Cheguei de manhã ao Rio de Janeiro, o Tristão de Athayde esperando-nos, muito amável, muito gentil. Ele era muito cavalheiro. Descemos, ele logo apresentou-se, ofereceu o braço a minha mãe e saiu com ela como se estivesse numa sala de baile. Eu olhava em volta para ver se aquela cena causava estranheza, porque em São Paulo causaria. No Rio de Janeiro não causou nenhuma. Mas ele fazia aquilo com muita elegância. Para manter a representação, fui com Mamãe, Papai e Rosée (minha irmã) para o Hotel Glória, de grande luxo naquele tempo 344. Para dar a minha mãe uma satisfação completa, arranjei para ela um quarto magnífico, dando de frente para a Praia do Flamengo. Naquele tempo, a água do mar chegava quase até o paredão do hotel. Eram noites muito bonitas, e ela tinha um gosto enorme por panoramas. Jantava conosco embaixo e depois subia e permanecia no quarto vendo a lua prateada bater na praia, observando as palmeiras. Ela se enlevava muito com coisas desse gênero345. E eu queria proporcionar a ela a estadia a mais confortável possível, tanto mais que seria curta, porque a mãe dela (Dª Gabriela) estava muito mal de saúde. Morreu pouco depois. E ela era uma filha extremosíssima346. Meus pais e minha irmã permaneceram dois ou três dias comigo no Rio, e depois voltaram. E eu fiquei para trabalhar na Constituinte347.

343 SD 23/8/80. 344 SD 22/6/73. 345 SD 3/9/88. 346 Chá 12/11/92. 347 SD 14/1/89.


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2. Episódio com Heitor da Silva Costa Lembro-me de meu encontro com Heitor da Silva Costa logo depois de chegar ao Rio. Telefonei a ele dizendo que já estava no Rio e convidei-o a passar pelo Hotel Glória para nos vermos. Era uma noite de calor medonho e ele propôs que fôssemos conversar nos bancos que havia numa espécie de jardinzinho, entre o Hotel Glória e o mar. Eu me lembro do jeito dele se sentar e me dizer: — Então, Plinio! Que criatura privilegiada é o Alceu! E como eu quisera ser o Alceu! Eu, para ser amável, disse: — Mas, Dr. Silva Costa, o senhor tem tanta coisa para se alegrar de ser o senhor mesmo! Ele disse: — Tanta não tenho. O Alceu e eu temos um jovem amigo Plinio, e o Alceu é de tal maneira uma criatura de eleição, que o jovem Plinio telefona ao Alceu avisando que ia chegar ao Rio e não telefona para mim. Aí me lembrei que tinha me esquecido de avisar o Silva Costa: “Meu Deus! Como vou me sair dessa?” Fiquei muito incomodado. E saí-me com aquelas desculpas que a gente diz numa emergência assim e que não querem dizer nada. Eu vi que ele me olhou com afeto, teve pena do incômodo em que eu estava, e me disse: — Não falemos mais nisso, vamos mudar de assunto, e tocou a conversa para outro lado 348.

3. Ambiente da sessão de abertura No dia da inauguração da Constituinte, fomos todos para lá349. Chegando ao Palácio Tiradentes (prédio da atual Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), havia duas entradas diferentes, uma para os deputados e outra para as famílias dos deputados, as quais tinham lugar em tribunas de honra, junto com o corpo diplomático e outras personalidades de relevo, na parte mais alta, em uma espécie de camarote. Entrei e me apresentei ao presidente da Constituinte, Antonio 348 SD 11/10/80. 349 — A sessão de abertura deu-se no dia 15 de novembro de 1933.


103 Carlos Ribeiro de Andrada350. Dirigi-me para a bancada paulista e ali pude formar uma ideia da situação que, sob alguns aspectos, me esperava lá351. O paulista era naquele tempo (hoje já não é mais) muito cerimonioso, gostando do protocolo, da educação, da grande linha. E como era o Estado mais rico do Brasil, naturalmente todos se vestiam melhor, tinham os mais bonitos automóveis, hospedavam-se nos grandes hotéis, levavam uma grande vida. E eu tinha recebido recado da liderança, ou seja, de Alcântara Machado, que eu deveria apresentar-me de fraque e cartola 352. E me encontrei em dificuldade. Eu nunca fizera questão de me vestir bem. Sempre fui desatento e não tinha a menor ideia sobre que modas, que roupas eu usava. Por exemplo, eu não tinha noção se uma roupa caía bem em mim ou não. Então minha irmã se incumbiu de escolher as roupas, as qualidades de camisas e outros apetrechos. E, pelos comentários que ouvi, desempenhou-se eximiamente da tarefa, porque ela era ultra entendida nesse gênero de coisas, que são o domínio próprio das senhoras 353. * Naquela inauguração, todos os deputados paulistas estavam de fraque preto engomado, abotoaduras de ouro, gravatas prateadas como se usava naquele tempo, calças de casimira inglesa listradas de cinza e preto. Já os deputados dos outros Estados vestiam roupas mais comuns, de

350 — Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946) era bisneto de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, neto do Conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada e sobrinho de José Bonifácio, o Moço. Pertencia à terceira geração dos Andradas e era o quarto político deste nome. Seu pai, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, deputado geral e senador estadual por Minas Gerais, havia se mudado de São Paulo para a cidade de Barbacena (MG) na segunda metade do século XIX, constituindo assim o ramo mineiro dos Andradas. Formado pela Faculdade de Direito de São Paulo (1891), prefeito de Belo Horizonte em 1905, secretário de Estado de Finanças em Minas Gerais no governo Francisco Sales (1902-1906), presidente da Câmara dos Deputados nos anos 1917 e 1918 no governo Venceslau Brás, senador da República em 1925, ele chegou a ser o presidente do Estado de Minas Gerais, entre 1926-1930. Pesa negativamente em sua brilhante carreira política o fato de ter contribuído de modo decisivo para a derrubada da ordem ainda aristocrática da I República brasileira, da qual era um ilustre representante. Ao se aliar com Getúlio, ele abriu caminho para o ambiente de populismo vulgar da era Vargas, que tanto mal fez ao Brasil. Nesse triste papel, ele carrega perante Deus e a História a responsabilidade de ter sido o principal articulador e organizador da Aliança Liberal e um dos líderes da Revolução de 30. Presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934, e depois presidente da Câmara dos Deputados até 1937, abandonou a política com o golpe do Estado Novo dado por Getúlio. 351 SD 3/9/88. 352 SD 14/1/89. 353 SD 23/8/80.


104 passeio 354 e usavam chapéu de feltro (naquele tempo, todo mundo usava chapéu). Os paulistas eram os únicos que tinham ido de cartola 355. Aquele grupo paulista, todo alinhado, teso, de cartola, era o símbolo da antiga ordem de coisas. A bancada era constituída quase exclusivamente por membros da São Paulo antiga e pelo menos oficialmente antigetulista. Antigetulista até o fundo da alma era eu, em todo caso. E mais ou menos todo o resto da Constituinte era getulista356. Para completar, deram as duas primeiras fileiras aos deputados paulistas. Era, portanto, a posição de máxima visibilidade, à direita do presidente da Constituinte 357. Do outro lado, as outras bancadas. E na extrema direita, a bancada do Rio de Janeiro, com alguns homens célebres, muito educados, finos: Fernando Magalhães, Leitão da Cunha e outros, mas também de roupa comum. A bancada paulista se cercava de certa importância, mas não comunicava simpatia. Sabemos o que é um aparecer de fraque e outros de paletó e roupa comum: o de fraque impõe-se mais, mas na hora da simpatia, é discutível... 358 Eu compreendi tudo quanto isso poderia trazer consigo: prestígio, naturalmente. Mas uma certa ponta de ressentimento. No entanto, seguindo a orientação do líder da bancada, eu coloquei fraque e cartola. Por cima do fraque costumava-se pôr condecorações. Eu não as tinha, era novinho em folha. Nenhum governo havia me condecorado... Não tive dúvida: peguei o distintivo de congregado mariano e pus ali! * Eu trazia o meu diploma de deputado, dado pelo Tribunal Eleitoral de São Paulo. Tudo naquele tempo era mais bonito. Esse diploma era feito de um pergaminho lindo, escrito com caracteres bonitos, em fórmula solene, com selo de lacre. Hoje seria um papelucho com um carimbo qualquer359.

354 SD 3/9/88. 355 SD 14/1/89. 356 SD 23/6/73. 357 SD 14/1/89. 358 SD 3/9/88. 359 SD 14/1/89.


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4. Holofotes, fotografias, aparece o Getúlio A sala de sessões estava toda bem ornamentada, muito bem arranjada, florida. De repente as luzes se apagam, começam a colocar holofotes de cinema, a fotografar a sessão, com o Antonio Carlos presidindo. Afinal aparece o Getúlio. Todos tivemos que nos levantar. Era o Chefe de Estado que chegava, e era natural que eu também me levantasse. Ele fez um discursinho qualquer, em que nem prestei atenção, com uma mãozinha colocada no colete (era o sistema dele), numa voz incolor e olhando para tudo como quem não dava importância nenhuma ao que estava sendo feito. Em seguida retirou-se. Aí as luzes foram acesas, o presidente da Assembleia, Antonio Carlos, disse ainda algumas palavras antes de encerrar a sessão 360.

Capítulo X Constituinte: aperta-se o cerco 1. As esperanças de luta com que fui para a Constituinte Já nos primeiros dias, verifiquei que havia deputados eleitos pela LEC mais ou menos de todo o Brasil. E que numa Assembleia Constituinte de 200 ou 300 parlamentares, seria possível formar uma bancada entre 30 e 50 deputados católicos 361. Também me parecia que a minha eleição — numa idade tão precoce — representava evidentemente um caminho da Providência. E se a Providência quis essa eleição, eu haveria de me sair bem naquilo que Ela queria de mim. Eu estava realmente decidido a meter o peito, ainda que ficasse sujeito a passar quartos de hora amargos. Seriam amargos na superfície, porque no fundo meu coração confiava362. Essa esperança da beleza da luta se desdobrava diante de mim magnificamente. 360 SD 3/9/88. 361 SD 22/6/73. 362 SD 14/9/91.


106 Por isso é que, como já disse, no intervalo entre minha eleição e minha posse, preparei-me e afiei-me, se não calculo mal, durante uns seis meses. E fui para a liça esperando encontrar batalha em campo raso, liso e aberto. Afinal, as esperanças se realizavam!

2. Ducha de água fria: proibido falar em plenário sobre as reivindicações católicas Para minha decepção, cedo compreendi que a batalha começava a se engajar em condições com as quais eu absolutamente não contava 363. O Alceu de Amoroso Lima, que usava o pseudônimo de Tristão de Athayde, era o homem de confiança do Cardeal Leme. Por outro lado, tinha muitas relações comigo. Mas muitas. Eu já tinha estado mais de uma vez em casa dele, e ele na minha. Dávamo-nos muito bem. Ele era o líder católico máximo do Brasil. Por sua vez, Dom Leme tinha uma espécie de liderança sobre todo o Episcopado Nacional, porque era naquele tempo o único Cardeal brasileiro. Ele punha e dispunha como bem entendia. Quando eu chego ao Rio 364, sou convocado pelo Tristão de Athayde para uma reunião dos deputados católicos na sede do Centro Dom Vital, na qual funcionava a LEC do Rio, e que ficava perto da Câmara dos Deputados 365, num prédio pertencente à Cúria 366. Apareço lá, vejo muitos deputados que eu nem conhecia. Cumprimentos, apresentações etc. e por fim sentamo-nos todos. Diz o Alceu: − O Sr. Cardeal Leme resolveu que, primeiro, não vai haver uma bancada de deputados católicos. Os srs. devem estar dispersos nas bancadas dos respectivos Estados. Por causa disso, não vai haver líder católico. O líder católico dos deputados vou ser eu, do lado de fora da Câmara. Os srs. venham aqui receber as diretrizes do Cardeal Leme, por meu intermédio 367.

363 SD 11/6/83. 364 SD 14/1/89. 365 SD 22/6/73. 366 SD 14/1/89 — Esse prédio situava-se na Praça 15 de Novembro, próximo ao cais do porto. Era um velho casarão do tempo do Império, que abrigava em seu segundo andar, em várias salas ligadas pelo longo e amplo corredor de que se servia Dom Pedro para ir ao Paço, as diversas associações que compunham a Coligação Católica Brasileira. Uma dessas salas era destinada à LEC (v. Legionário n° 124, 16/7/33, coluna Notas de um repórter no Rio). 367 SD 22/6/73.


107 E nos comunicou a seguinte palavra de ordem do Cardeal: 368

− Nenhum deputado católico deverá fazer discurso a respeito das

reivindicações católicas 369. O Cardeal Leme faz questão que vocês não façam nenhum discurso nessa linha, porque, por detrás dos bastidores, já está tudo combinado com o presidente da República (Getúlio Vargas), que tem de seu lado a maioria dos votos. Este assegura que, se não houver debates, na hora da votação manda todos os deputados dele votarem em todos os pontos que a Liga Eleitoral Católica quisesse. Portanto, os deputados católicos que queiram falar, falem sobre outras coisas que nada tenham a ver com as reivindicações católicas. Sobre estas não devem dizer uma palavra. Isto Dom Leme espera da dedicação de vocês 370. Por fim, ele acrescentou:

− Ah! outra proibição: os senhores estão proibidos de contar que

estão proibidos de falar371.

Eu senti nisso um baque medonho. Pois esta proibição criava para mim uma dificuldade insolúvel, porque o eleitorado que tinha votado em mim, tinha-o feito por causa da razão religiosa. E eu não podia contar em público que eu estava proibido de falar por Dom Leme. Assim, ficava impossibilitado de justificar esta coisa incompreensível: um deputado que tinha sido eleito para fazer passar as emendas católicas, e que não fazia nenhum discurso a respeito 372. Eu me senti posto em uma situação semelhante à de um guerreiro que entra no campo de batalha, puxa a espada à espera do adversário, e recebe de um estafeta do primeiro ministro a seguinte ordem: “Ponha a espada na bainha e fique aí em pé, de couraça e tudo, tomando sol no campo de batalha, até vir um recado em sentido contrário. Por enquanto não se mova”373. * Minha atuação ficou assim limitada a lutar nos bastidores para a bancada apoiar unanimemente as emendas católicas 374. De manhã, participava da reunião dos deputados por São Paulo,

368 SD 11/6/83. 369 SD 22/6/73. 370 SD 14/1/89. 371 SD 22/6/73. 372 SD 14/1/89. 373 SD 11/6/73. 374 SD 22/6/73.


108 para discutir os assuntos que seriam tratados à tarde na Câmara 375. À tarde, ia para a reunião plenária da Câmara dos Deputados. À tardinha, reunião dos deputados católicos na LEC do Rio, no prédio da Coligação Católica 376. Nessas reuniões, tínhamos que nos entender com o Tristão de Athayde e receber as diretrizes que vinham de Dom Leme. No dia seguinte, era apenas executar aquilo. Não se podia nem sequer ter contato com Dom Leme, porque estava dado a entender que não fôssemos amolá-lo, uma vez que ele tinha um representante ali 377. Percebi então, desde logo, que no Rio de Janeiro as coisas não iriam correr como em São Paulo se esperava, porque eu não tinha nenhuma possibilidade de falar378. Eu tinha a impressão de estar murado vivo 379, eu me sentia atarrachado380.

3. Zum-zum desleal: gago, com medo da tribuna e com falta de coragem Pouco tempo depois, percebo dentro do movimento católico um zum-zum de que eu não falava na Constituinte porque não tinha coragem, porque era muito moço e ficava intimidado. Chegaram a dizer que eu era gago 381. Mais ainda: que eu não ia quase à tribuna porque tinha medo de falar de público: eu era muito tímido! Ora, contra mim pode se fazer muitas acusações. A de que eu sou tímido, não! Meu natural é ser muito desembaraçado, muito falante. Talvez meu sangue nordestino ajude nisto. Eu digo o que eu tenho que dizer, e logo 382. Além do mais, dos muitos defeitos que se possam atribuir a mim, o de ser gago, positivamente não possuo 383. Aí medi em toda a sua extensão a má fé de quem espalhava isto, porque eu tinha falado em público em quase todas as grandes igrejas de São Paulo durante o período eleitoral. E falava abundantemente, torrencialmente. 375 SD 11/10/80. 376 SD 22/6/73. 377 SD 10/9/88. 378 SD 22/6/73. 379 SD 11/10/80. 380 SD 22/6/73. 381 Almoço 8/5/87. 382 SD 10/9/88. 383 Almoço 8/5/87.


109 Eu havia também falado em várias outras cidades do interior e era muito conhecido como orador. Como então espalhar uma coisa dessas?! Mas eu não tinha saída. Não podia dizer de público que Dom Leme proibira os deputados católicos de falarem. Sairiam por cima de Dom Leme e isto me queimaria junto a ele. E eu não podia me queimar com Dom Leme 384. Dom Leme tomaria isto, aliás a justo título, como uma traição, porque ele tinha pedido confidência. Portanto, eu não podia dizer nada385. Assim, não pude absolutamente sair desse cerco. Era um cerco fechado. A única coisa que eu poderia fazer era tomar uma atitude de quem não percebia. Não dizer nada e aguentar firme a história Foi a primeira vez que eu percebi um trabalho à maneira de boato organizado contra mim. E os que espalhavam esses boatos eram em geral pessoas com simpatias pelo nazismo e pelo fascismo, e que tinham entre si uma ligação política. Como eu colaborava no Legionário, que era contra o fascismo e o nazismo, percebi que era uma vindita386.

4. O cerne do problema: embate interno entre espírito de luta e espírito de acomodação Nos meios católicos eu não encontrava hostilidade, mas comecei a notar, nos seus mais altos escalões, um vazio esquisito que ia se fazendo em torno de mim. Percebi desde logo que me isolavam, por eles quererem o contrário do que eu desejava. Eu queria lutar e dedicar-me a eles, mas esperava em contrapartida que eles também entrassem na luta comigo. No fundo, eles não queriam a luta. Pelo contrário, queriam permanecer inseridos dentro de uma época histórica como aquela, que não convidava ao excepcional. O desejo deles era manter-se numa vida comum, na vidinha de todos os dias, e não entrar nas batalhas, na cruzada e na luta heroica que eu desejava empreender — luta com aventuras, por certo, mas que era propriamente vida!387 À vista dessa situação que se delineou em torno de mim no Rio, eu me dei conta de que havia um estado de espírito e um conjunto de circunstâncias radicalmente opostos a irradiar aquilo que poderíamos 384 SD 10/9/88. 385 SD 14/1/89. 386 SD 10/9/88. 387 SD 13/5/89.


110 chamar o espírito da Congregação de Santa Cecília, ou o espírito do Legionário. Ficou claro para mim que, ainda que eu começasse a frequentar assiduamente alguma Congregação Mariana no Rio, dificilmente poderia se formar ali um grupo combativo afim com o que havia em São Paulo. Esse grupo não teria nenhuma possibilidade de expansão, nenhuma possibilidade de irradiação, porque o curso das coisas no Rio rumava num sentido oposto ao de São Paulo. Daí o esforço que eu fazia de não deixar de vir a São Paulo, porque, se deixasse de vir, isto representaria a imolação do que em São Paulo estava estruturado. Se eu ficasse no Rio de Janeiro alguns fins de semanas consecutivos, eu perderia o fio da meada em São Paulo. Como eu poderia sacrificar uma coisa promissora, que estava em franco desenvolvimento, por uma coisa que não era promissora e não tinha nem sequer um começo de desenvolvimento? Assim, fui obrigado a renunciar naquele momento à possibilidade de expansão de um grupo no Rio, eu que tanto queria ter um grupo ali 388. Desta forma, como no sábado não havia sessão da Câmara, eu embarcava às sextas-feiras à noite para São Paulo*. * Na época, o trajeto Rio-São Paulo era feito normalmente de trem. A aviação estava ainda pouco desenvolvida e viajar de avião era raro e caro.

Chegava sábado cedo, passava o sábado e o domingo, e às vezes a segunda-feira em São Paulo, partindo de volta para o Rio de Janeiro no trem noturno. E, uma vez em São Paulo, absolutamente todas as noites eu frequentava a sede da Congregação Mariana de Santa Cecília389.

5. Novos sintomas de que o cerco apertava: comentários sem seriedade Outro episódio mostra bem esse ambiente de surda hostilidade que ia se criando em torno de mim. Certo dia, ao entrar na Constituinte, vários deputados vieram correndo falar comigo: “Você viu a reportagem do Ary Pavão?” Eu perguntei: “Quem é Ary Pavão?” — É um jornalista que costuma escrever sobre a Constituinte no diário tal, e que deu uma reportagem caçoando de você de todos os modos. 388 SD 11/10/80. 389 SD 25/8/73.


111 Você não viu, não?390 Era um jornal do José Eduardo de Macedo Soares, deputado também, mas pelo Estado do Rio de Janeiro, e irmão de José Carlos de Macedo Soares, este, como sabemos, deputado por São Paulo 391. Respondi: “Não, não vi”. Ali perto estava o tal repórter, que logo me mostraram: “Ary Pavão é aquele”, como quem diz: “Se você quiser falar com Ary Pavão, vá”. Eu pensei: “Não vou dar a menor importância a ele. Ele não tem nada de grave a dizer de mim, e se forem meras brincadeiras ou tontices, eu passo por cima como se ele não existisse. Não vou dar a ele a menor satisfação”. E deixei para ler em casa o diário em questão: era de alto a baixo uma brincadeirada a meu respeito. * Quais eram as acusações, os temas da brincadeira? Havia um hábito dos deputados abreviarem os seus nomes. Chamando-me Plinio Corrêa de Oliveira, eu deveria adotar um nome parlamentar: Plinio de Oliveira, ou Plinio Corrêa, ou Corrêa de Oliveira. Mas eu nunca dei o meu nome parlamentar. Esse Ary Pavão então caçoava que só dois deputados mantinham o nome inteiro: eu e um indivíduo que ele dizia que era catraieiro no Estado do Rio de Janeiro (catraieiro era um homem que puxa barco; devia ser um deputado trabalhista). E que isto era muito ridículo. Um comentário desses era uma banalidade, uma tontice a que não se dá a menor importância. Outra coisa era caçoar porque eu era muito gordo. Eu cheguei a pesar cento e vinte quilos. Tinha realmente um apetite valentíssimo, que não perdi. Outra crítica ainda era de que eu estava perdendo o cabelo prematuramente. E ia dizendo coisas assim que não tinham qualquer significado sério. Eu absolutamente não me importei com ele. Outra caçoada: certa noite eu estava indo para o Rio de trem, ou vindo de lá, e bati com toda a força com o dorso da mão numa trave. Na 390 SD 28/1/89. 391 SD 6/8/88 — Tratava-se do Diário Carioca, fundado no Rio de Janeiro em 17 de julho de 1928. Ary Pavão escrevia na coluna Panorama desse jornal.


112 hora nem liguei, mas dias depois formou-se uma saliência feia e desagradável. Ary Pavão então caçoou dizendo que eu era o único deputado que tinha uma pinta na mão 392. Depois, notícias dessas: “Chegou mais uma vez atrasado à Constituinte o deputado Plinio Corrêa de Oliveira. Dava todos os sinais de sentir muito calor, e enxugava a sua fronte esfregando o lenço e indo açodadamente para o seu lugar. Teria ele esperança de que não percebessem que estava entrando a sua volumosa pessoa?” Era verão no Rio, e isso era uma coisa que todo o mundo fazia, era até banal. Mas eu sentia nesses comentários todos mais um sintoma de que o cerco ia se apertando em torno de mim.

6. Bagatelas difamatórias Outro fato na mesma linha. Um deputado paulista que tinha relações muito cordiais comigo e que morava no mesmo hotel telefonou-me pedindo licença de ir até o meu quarto para falar comigo. Eu morava na parte dos fundos do Hotel. Eu disse: “Pois não, venha, eu recebo”. Logo ele chegou, eu ofereci uma cadeira e ele tratou de qualquer coisinha que precisava mesmo tratar. Mas notei que ele prestava muita atenção em todo o quarto. Depois ele comentou: “Que esplêndido quarto esse em que você mora! É muito melhor e mais barato do que o meu”. disse:

Eu achei que era dessas banalidades naturais em uma conversa e — Realmente, aqui é mais sossegado, tem mais vantagens.

— É, da próxima vez que vier aqui, vou me hospedar com minha senhora nesta parte. E depois completou: — Você não imagina o que é que eu ouvi falar: que você morava num verdadeiro antro, num quarto sujíssimo, completamente sem categoria, mal arranjado, com cama revolta. Ora, quem tinha feito circular isso? Era a mesma história: não tendo o que falar contra mim, 392 SD 28/1/89.


113 procuravam caluniar-me; não tendo o que caluniar, diziam bagatelas difamatórias dessas. Quem tinha interesse em estar criando essas histórias de que eu sou gago, que moro num quarto sujo, que tenho ferida na mão, e outras bobagens dessa natureza, e a maior parte delas mentirosas?

7. Uma sondagem esquisita Este cerco se definiu ainda mais quando, num domingo à tarde, a portaria do hotel me telefona avisando que o senhor “W” queria falar comigo. Quem era esse senhor “W”? 393 Era um homem de seus trinta e tantos ou quarenta anos 394, que Tristão tinha encontrado em estado de mendicância na porta de uma igreja, e o tinha levado diretamente para ser seu secretário, sem que o conhecesse antes. Nos arredores do Tristão eu tinha ouvido dizer que ele havia logo de início depositado tal confiança nesse homem que o colocava a par dos assuntos mais reservados395. Este senhor se dizia católico, e eu não tinha razões especiais para duvidar disso 396. Quando ele apareceu, eu pensei que se tratava de algum recado do Tristão. Desci, recebi-o em uma das salas do hotel 397. — Oh, “W”, como vai você? — Bem, e você como está? E começamos a conversar a respeito de bagatelas. O tempo corria e não saía nada de sério. Eu pensei com os meus botões: “Este homem veio aqui com a incumbência de alguém para me sondar. E não está tendo coragem de fazer essa sondagem.” Era um dia de calor no Rio, desses de verão, uma coisa medonha! Depois de falarmos muito, ele disse: — Bem, Plinio, afinal chegou a hora de eu falar o que eu tenho que lhe dizer.

393 SD 10/9/88. 394 Jantar EANS 23/11/90. 395 SD 10/9/88. 396 SD 23/6/73. 397 SD 10/9/88.


114 — Pois não, “W”. — O que você pretende fazer de sua vida no futuro? Quais são seus planos? Você quer ser deputado ou não? Você, se não for deputado, que cargo você pretende em São Paulo? Seus planos de carreira quais são? O que você pretende fazer de sua vida? Você quer me contar? 398 Ora, estas eram perguntas que se fazem entre amigos. Mas entre pessoas que se conhecem por alto, era uma pergunta muito esquisita 399. Ninguém pergunta isso a um outro. Eu disse: — “W”, entram tantas incógnitas nesse assunto, que eu também não sei. Eu pergunto: você tem um conselho para me dar?! — Absolutamente nenhum. — Então, desassistido assim de quem me aconselhe, eu também não tenho o que responder. — Bom, então, Plinio, me desculpe ter tomado tanto o seu tempo! — Não, absolutamente! Eu o acompanhei até meio caminho, despedi-me e nunca mais nos vimos. Anos depois ele morreu. Mas isto me reforçou a ideia de que zumbia alguma coisa em torno de mim 400.

8. Abafamento de alma com o progressismo que desponta Concomitantemente a esse cerco, comecei também a perceber o progressismo que estava entrando. Portanto, uma ofensiva terrível que era o contrário do que eu queria, mas exatamente o contrário. E dei-me conta de que uma corrente inimiga maquinava toda espécie de calúnias, intrigas e combates contra minha pessoa, justamente porque eu não queria saber de modernização da Igreja, modernização esta que eu via como um vagalhão que ia destruir tudo quanto eu tinha esperado. Porque eu só concebia a Igreja como Nosso Senhor Jesus Cristo fundou-a, e como Ela será até o momento em que a Igreja militante deixará de ser militante, uma vez que Nosso Senhor baixará à terra, acompanhado de uma legião de anjos e de justos, para declarar o fim da História do mundo e começar o julgamento final. Até lá a Igreja será a mesma.

398 Jantar EANS 23/11/90. 399 SD 10/9/88. 400 Jantar EANS 23/11/90.


115 E eu tinha a resolução de combater todas essas modificações que A desfiguravam de um modo inominável. Era o quadro de um cerco completo e de uma coisa que se pode chamar uma tragédia, isto aos 24-25 anos de idade401. Não se pode calcular o abafamento de alma, o desnorteamento que essa situação me trouxe402.

9. Alguns discursos fora dos temas proibidos Em algumas ocasiões eu falei na Assembleia, mas sempre fora dos assuntos proibidos pelo Cardeal Leme. Nas comemorações do IV Centenário de José de Anchieta, fui designado como orador oficial na Constituinte403. Fiz um discurso e a mídia de São Paulo publicou com bom destaque. Fiz outros três ou quatro discursos do gênero. Mas esses discursos eram em número insuficiente para convencer as pessoas que esperavam uma atuação parlamentar brilhante de minha parte 404.

10. Interpelação veemente ao Zoroastro de Gouveia Outras intervenções minhas se davam durante os debates. Havia alguns deputados comunistas na Assembleia 405. Um desses deputados comunistas havia sido eleito pelo Partido Socialista, em oposição à Chapa Única por São Paulo Unido. Seu nome era Zoroastro de Gouveia 406. Era um homem de tez morena, mas ao mesmo tempo muito sanguíneo, e com cabelos já brancos e cortados à escovinha407.

401 SD 25/4/92. 402 SD 13/5/89. 403 — Esse discurso, muito aplaudido, foi feito em nome da bancada paulista no dia 17 de março de 1934. 404 SD 10/9/88. 405 SD 14/1/89. 406 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 407 Palestra para Neocooperadores 28/2/95 — Dr. Plinio assim completava o perfil desse parlamentar: “S. Ex.a parece absolutamente resolvido a constituir eleitorado em São Paulo e procura, para isto, servir aos seus amigos e eleitores alguns quitutes parlamentares ao sabor de 1789 ou 1918. “Provoca então, intencionalmente, os grandes incidentes parlamentares, atirando aos seus adversários insultos grosseiros, dominando com sua voz possante e desalinhada os próprios tímpanos com que a Presidência da Constituinte procura manter a ordem. “Não há, para S. Ex.a, troca de apartes que não sirva de pretexto para tais ‘touradas’, em que procura ferir grosseiramente, ora através do Sr. Cardoso de Mello, ora através do Sr. Morais de Andrade, os deputados da Chapa Única” (As emendas católicas, Legionário n° 135, 24/12/33).


116 Certo dia ele subiu à tribuna numa atmosfera de tédio geral. Todos já tinham falado, estávamos fazendo os últimos discursos daquele dia 408. De repente, ele fez um ataque à honra dos deputados católicos, dizendo que nós éramos homens que não tínhamos ideal de pátria, que éramos exclusivamente vendidos para o Vaticano 409; e que, portanto, o Brasil não podia contar com o verdadeiro patriotismo dos católicos. Só deles, comunistas, podia. Quando eu vi o homem sair-se com isto410, pulei como um jaguar em cima dele411. Eu me levantei, e da primeira fileira que ficava a dois passos da tribuna, bradei com uma voz verdadeiramente tonitruante: 412 − Senhor deputado, eu protesto! Protesto com toda a minha indignação! Em meu nome estão protestando contra V. Excelência 95% da população brasileira, que V. Excelência está insultando do modo mais vil etc.! Foi um tal estouro, foi uma tal história, que o Zoroastro ficou pálido, me olhou assim como quem diz: "Dessa como é que eu escapo?!" E levei algum tempo descompondo a ele413. Os deputados que cochilavam, quando saiu aquele barulho todo, levantaram os ouvidos: “O que é isso aí?!” 414 Ele quis interromper-me, mas a minha voz cobria a dele completamente. Ele percebeu que não tinha o que dizer, parou de falar e eu acabei de dizer o que queria. No fim, ele escapou. E deixei o episódio morrer415. Depois disso, nunca mais se ouviu dizer que eu era gago. Essa forma de maledicência acabou. Se eu não tivesse feito essa intervenção, iam me difamar: “Quando Zoroastro falou a respeito dessas coisas contra a Religião, o Plinio estava lá e não disse uma palavra. Ele não está defendendo a Religião”416. *

408 SD 5/8/94. 409 SD 22/6/73. 410 Jantar EANS 23/11/90. 411 SD 5/8/94. 412 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 413 Jantar EANS 23/11/90. 414 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 415 SD 14/1/89. 416 SD 5/8/94.


117 Isto foi em 1934417. Em 1963, portanto trinta anos depois, fui à Câmara dos Deputados, já então funcionando em Brasília, para entregar um abaixo-assinado de fazendeiros contra a Reforma Agrária* 418. * Esse abaixo-assinado, iniciado em Bagé (RS), obteve a adesão de 27 mil agricultores de vários Estados brasileiros.

Fui com Dom Sigaud, Dom Mayer 419 e vários membros da TFP. tratava.

Abordamos lá o chefe dos funcionários e explicamos a ele do que se

Enquanto escrevia, ele às vezes parava, me olhava e continuava. Em certo momento ele perguntou: 420 — O senhor é... Eu pensei: “Vai sair algum negócio”. E fiquei quieto. — ... o senhor é o deputado que fez aquela encrenca com o Zoroastro de Gouveia? Eu dei uma risada e disse: — O senhor ainda se lembra daquilo? — Oh! lembro-me muito bem. Foi um trovão na Câmara!

11. Bom relacionamento com as outras bancadas Os meus colegas paulistas, pelo jeito cerimonioso e quieto deles, mantinham pouco contato com as bancadas de outros Estados. Eu, pelo contrário, de temperamento mais expansivo, falava muito e com isso fiz muito boas relações com deputados de mais ou menos todas as 417 SD 14/1/89. 418 Jantar EANS 23/11/90. 419 — D. Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) pertencia à Congregação do Verbo Divino. Quando ainda simples padre conheceu Dr. Plinio e apoiou abertamente seu apostolado. Nomeado depois Bispo de Jacarezinho (PR), foi coautor do famoso livro concebido por Dr. Plinio, Reforma Agrária—Questão de Consciência (1960). Em seguida a essa publicação foi nomeado Arcebispo de Diamantina (MG). A colaboração com Dr. Plinio e a TFP continuou até que o governo militar, instalado no Brasil a partir de 1964, publicou um truculento projeto de Reforma Agrária para o País. D. Sigaud tomou posição favorável a esse projeto, enquanto Dr. Plinio e a TFP se mantiveram fiéis aos princípios expostos em Reforma Agrária—Questão de Consciência. Quanto a D. Antonio de Castro Mayer (1904-1991), sua colaboração com Dr. Plinio, datada também do tempo em que era simples sacerdote, foi ainda mais estreita. Nomeado Bispo de Campos (RJ), não só foi coautor da obra citada, mas em numerosas ocasiões saiu em defesa de Dr. Plinio e da TFP face aos ataques de próceres progressistas. Quando já Bispo emérito, discrepâncias diversas o levaram a afastar-se da TFP. Participou das sagrações episcopais em Ecône (1988), juntamente com Monsenhor Marcel Lefebvre. Até o fim de sua vida, Dr. Plinio manteve uma recordação saudosa e agradecida do tempo em que Dom Sigaud e Dom Mayer apoiaram sua obra. 420 SD 5/8/94.


118 bancadas421. Cumprimentava-os, conversava com eles, ia ao café, falávamos longamente. Relacionei-me largamente com os meus colegas. * Lembro-me até hoje da primeira pessoa com quem fiz relações na Constituinte. Na disposição dos deputados na sala da Assembleia, logo depois da bancada de São Paulo, vinha outra bancada que eu nem sabia qual era. As nossas cadeiras eram giratórias e distraidamente pus meu braço na escrivaninha do deputado que ficava atrás. De repente vejo uma mão bater na minha e dizer com uma voz cantante: “Minha flor!” 422. Voltei-me para atrás, pronto a me zangar. Tratar-me de “minha flor”, a mim? Mas deparei-me com a fisionomia de um homem aproximando-se dos sessenta anos, fino, educado, olhar inteligente, benévolo, demonstrando estar muito cheio de simpatia e de estima, com ar mais ou menos malicioso, divertindo-se de antemão com o caso que estava criando. Era um deputado pela Bahia. Aí eu percebi que seria uma verdadeira estupidez zangar-me, volteime para ele e disse: — O senhor quer que eu tire o braço? — Não, minha flor, não seja tão arisco assim. Eu não tirei a mão. Aí ele começou a prosear comigo. Ele falava sobre pequenas banalidades com uma tal inteligência, que eu pensei: — Essa aí é a famosa Bahia! Numa palavra, é a Bahia do charme, da graça!423. * E assim, de ponto em ponto, eu ia passeando pelas bancadas: na pernambucana, conversava sobre Pernambuco, eles conheciam parentes meus. E me relacionei com a Constituinte inteira424.

421 SD 14/1/89. 422 SD 3/9/88. 423 SD 14/1/89. 424 SD 3/9/88.


119

12. Atuação numa crise espinhosa Lembro-me de que uma noite fui acordado pelo telefone do Hotel . Atendo. Ouço a voz habitualmente solene e afirmativa do deputado Alcântara Machado, falando desta vez com voz sumida: 426 425

— Dr. Plinio, aqui fala Alcântara Machado. — Pois não, Dr. Alcântara, o que o senhor deseja? — Eu queria lhe pedir o favor de vir com urgência aqui em minha casa, porque a situação política se tornou muito grave, e eu vou precisar do senhor. Fiquei espantado, porque a bancada paulista não ligava para as minhas relações fora da bancada. Fui à casa dele. Ele, como meu líder, estava no direito de me chamar; depois, era um homem muito mais velho do que eu. Eu tomei imediatamente um taxi, fui à casa dele e encontrei-o apreensivíssimo 427. Ele me disse: — Dr. Plinio, preciso lhe contar o que aconteceu à tardezinha na Constituinte. O senhor ainda ignora, mas tive uma briga na comissão tal 428. Eu queria uma certa coisa, os deputados do Nordeste não queriam. A discussão cresceu. De repente, eu perdi a paciência 429, e o deputado nordestino João Alberto Lins de Barros declarou 430 que assim não ia431, que iria arrancar o Antonio Carlos Ribeiro de Andrada pelas orelhas do lugar de presidente, e que ia fechar a Constituinte à força junto com uma série de oficiais nordestinos que ele tinha 432. Depois de explicar isto, ele me pediu: — Como o senhor e o Dr. Macedo Soares são os dois deputados mais relacionados da bancada paulista, eu queria pedir a cada um dos senhores, ainda esta noite, percorrer o maior número possível de deputados não paulistas, e conseguir colocar do lado da bancada paulista esses deputados. Só assim conseguiremos fazer uma pressão forte amanhã para não ser dissolvida a Câmara. Tomei imediatamente um automóvel, e fui percorrendo as casas dos 425 SD 22/6/73. 426 SD 14/1/89. 427 SD 22/6/73. 428 SD 10/9/88. 429 SD 14/1/89. 430 SD 10/9/88. 431 SD 14/1/89. 432 SD 10/9/88.


120 deputados católicos com os quais eu era mais relacionado, contando o que havia. * No dia seguinte, abre-se a Câmara num ambiente de expectativa. Antonio Carlos estava pálido como um castão de bengala de marfim . E os olhos dele, grandes, passeando de um lado para outro com preocupação, esperando a todo o momento uma encrenca qualquer. 433

Ele mantinha um ventilador funcionando bem no rosto, porque era um desses dias de calor intenso no Rio de Janeiro, desses de acabar com qualquer um que não esteja habituado. Além do mais, trazia um aparelhinho, creio que para efeito cardíaco, do qual ele inalava algum remédio 434. João Alberto andava com ares de soldadão pelo meio da Constituinte, e todo mundo apreensivo... Até que, afinal, a crise se aplacou435. O Antonio Carlos se levantou trêmulo. Tinha acabado o dia do perigo dele. Ele desceu quase apoiado, sumiu pela Câmara adentro, tomou um automóvel e foi-se embora. O seu dia “D” havia passado 436. Perguntei ao Alcântara Machado como estava a situação. Ele disse: “Foi possível, graças à ajuda do senhor e de outros, acalmar a situação. Sou-lhe muito agradecido.”437. Talvez por isso, quando ele, Alcântara Machado, escreveu um livro sobre os trabalhos da Constituinte, enviou-me com uma dedicatória, algo mais ou menos assim: “A Plinio Corrêa de Oliveira, cujo trabalho na Constituinte, reservado na aparência, foi notável na realidade. Alcântara Machado”438. * Esse trabalho de articulação era tão intenso que vários deputados (Cardoso de Melo, Barros Penteado e outros), conversando com padres chegados à Cúria de São Paulo, diziam isso: “Olhe, vocês mandaram um representante esperto para lá, e ele luta mesmo pela causa católica!” Certo dia apareceu o próprio Monsenhor Gastão Liberal Pinto na 433 SD 22/6/73. 434 SD 10/9/88. 435 SD 22/6/73. 436 SD 10/9/88. 437 SD 14/1/89. 438 CSN 7/8/93.


121 Câmara, creio que para observar meu trabalho. Eu não percebi que ele estava lá, pois sentara-se numa tribuna especial. Quando terminou a sessão, ele me procurou e disse: — Meus parabéns. Eu vi você trabalhar o dia inteiro, falando com uns, com outros, e estou muito satisfeito do deputado que nós pusemos neste lugar.

13. Vitória das emendas católicas As emendas católicas foram sendo votadas uma a uma e todas entraram na Constituição. Entraram até duas outras que não constavam de nosso programa439. Enquanto a Constituição de 1891 não pronunciava o nome de Deus, a de 1934 começava por dizer: “Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus etc...”440 Foi uma vitória católica enorme! * * Votaram a favor da inclusão do nome de Deus 168 deputados constituintes, e contra apenas 57 deputados (v. Legionário n° 145, 13 de maio de 1934).

O panorama católico no País ficou largamente mudado: a Igreja aparecia como uma potência dentro do Brasil. As leis brasileiras tinham perdido, não tudo, mas uma boa parte da carranca laicista que as caracterizava anteriormente. * Seria muito exagerado dizer que tudo isso se deveu ao deputado mais votado da Constituinte. Nossa Senhora havia se servido de mim como instrumento para lançar a ideia da Liga Eleitoral Católica e para fazer com que andassem as negociações para o lançamento da LEC. E também Ela se serviu de mim como um dos propulsores do movimento mariano que estava na raiz da vitória da LEC. Mas, de fato, havia muitos outros deputados católicos dedicados 441. Lembro-me, entre eles, do meu amigo Barreto Campelo, deputado por Pernambuco e católico fervoroso, professor na Faculdade de Direito de Recife. Lembro-me também de outro amigo, Adroaldo Mesquita da Costa, pelo Rio Grande do Sul, que foi mais tarde Ministro da Justiça, e que durante toda a sua existência manteve uma atitude católica desassombrada. 439 SD 22/6/73. 440 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 441 SD 22/6/73.


122 E lembro-me ainda de vários outros: Luís Sucupira, pelo Ceará; Furtado de Menezes e Polycarpo Viotti, por Minas Gerais, entre tantos outros de vários Estados442. Um deputado católico sozinho não teria conseguido o que foi conseguido. Tenho, graças a Deus, a alegria de ter trabalhado muito para que isso se conseguisse e de ter alcançado uma larga rede de relações que serviriam enormemente, de futuro, para a causa católica443. Um dos que colaboraram estreitamente comigo, o tempo inteiro, e de um modo muito discreto mas sempre eficaz, foi um deputado que eu considero poder chamar de católico no sentido profundo da palavra. Era um antigo professor meu chamado Moraes de Andrade, que depois foi deputado ainda por muitos anos, e que frequentava a igreja do Imaculado Coração de Maria. Ele era um dos chefes da guarda noturna de orações. Senhor de idade, de cabelos brancos, usando barba, ele se fez eleger porque tinha força eleitoral no bairro das Perdizes, fruto do prestígio político dele próprio, e talvez de alguns votos da paróquia, a que ele tinha bem direito, porque era um paroquiano exemplar. Durante todo o tempo, sendo eu o deputado eleito pelos católicos, para efeito religioso ele sempre me considerou líder dele, embora eu tivesse sido seu aluno. E nunca deu um passo para a frente sem eu pedir; e deu para a frente todos os passos que eu pedi a ele444.

14. Encerramento da Constituinte A Constituinte tinha poderes para dispor se continuaria durante mais quatro anos, como legislativa, ou se seria dissolvida imediatamente. Veio ordem do Getúlio para todos os deputados getulistas votarem a favor da dissolução da Constituinte. Como tinham a maioria, ganharam. E deram apenas mais seis meses de vida legislativa a ela. Chegou por fim o dia do encerramento da Constituinte 445.

442 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 443 SD 22/6/73. 444 SD 23/6/73. 445 — O encerramento oficial deu-se no dia 16 de julho de 1934, no qual foi promulgada a Constituição. No dia seguinte houve ainda uma sessão em que ocorreu a eleição indireta para a Presidência da República. Venceu Getúlio Vargas (com 173 votos), derrotando Borges de Medeiros (com 59 votos). Este, desde 1931, fazia oposição a Getúlio. A bancada paulista votou em Borges de Medeiros, contrariando a orientação do interventor federal Armando Sales de Oliveira.


123 A sessão de encerramento foi como na inauguração: sala toda enfeitada de rosas, com música tocando, Hino Nacional 446, corpo diplomático presente, altas autoridades etc. 447. Aparece afinal o Getúlio pronunciando o seu discurso, com os holofotes percorrendo todos os ângulos da Câmara, isto para depois a propaganda dele ser passada nas salas dos cinemas de todo o Brasil (não havia ainda televisão). E mais uma vez a bancada paulista foi a única que compareceu de fraque, cartola e tudo mais 448. O Getúlio, pequenino, também vestido de fraque, sempre com a mãozinha no colete. Eu votei, junto com Chapa Única, contra a continuidade dele, mas a Constituinte o elegeu Presidente da República. Nesse mesmo dia da promulgação da Constituição, recebi telegramas em separado de Dom Duarte, e também de todos os Bispos da Província Eclesiástica do Estado de São Paulo, agradecendo-me em termos calorosos os serviços que eu tinha prestado.

Capítulo XI No pós-Constituinte, convites para carreira política 1. Necessidade de continuar a luta parlamentar e o fechamento da LEC Antes mesmo de a sessão tomar um fim, eu me retirei: guardei o meu fraque, guardei a minha cartola e na noite seguinte embarquei para São Paulo449. Eu tinha naquele tempo 25 anos 450. * 446 SD 28/1/89. 447 SD 10/9/88. 448 SD 28/1/89. 449 SD 10/9/88. 450 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90 — Dr. Plinio tomou o trem noturno no Rio na noite do dia 17/7/34, chegando a São Paulo dia 18 de manhã. Isto está registrado no jornal Diário da Noite (edição de 18/7/34), ao qual ele concedeu entrevista na tarde do dia em que chegou. Na entrevista, ele critica o continuísmo de Vargas, considerando que "tinha o Sr. Getúlio Vargas o dever de tirar do cartaz político a sua candidatura" para o apaziguamento do Brasil. Esse continuísmo, afirmou, havia desagradado profundamente a oposição.


124 Uma semana antes de sair do Rio, eu havia escrito uma carta a Dom Duarte apresentando-lhe o balanço das atividades e as perspectivas futuras da Liga Eleitoral Católica* 451. * Esta carta, datada de 9 de julho de 1934, dizia: "É justo [...] que eu venha prestar contas a V. Ex. Revma. da situação em que a Liga vai enfrentar a segunda etapa, a da regulamentação das conquistas obtidas, por via da lei ordinária e da reconstitucionalização do Estado. [...] O total de requerimentos [de alistamento eleitoral] que deram entrada na Liga, quer na Capital, quer no interior da Arquidiocese, é de 16.296. Todos estes 16.296 requerentes assinaram um compromisso de disciplina eleitoral em relação à Liga. Cada um deles tem em nossa secretaria uma ficha própria, com o respectivo nome, idade, naturalidade, residência, estado civil etc. [...] Como vê V. Ex. Rev., é um eleitorado perfeitamente arregimentado e que conhecemos até os menores detalhes".

Em outra carta, comuniquei a ele uma estranheza: eu vinha notando com certa frequência, mesmo da parte do Clero, a ideia de que a vitória das teses católicas na Constituinte havia representado o termo final das atividades da Liga. E que, dado o triunfo obtido, dificilmente se justificaria a continuação de sua atividade452. Ora, todas as reivindicações que havíamos conseguido introduzir na Constituição estavam dependentes de uma boa ou má legislação complementar 453. Com o que eu não contava, era que o próprio Dom Duarte tivesse a intenção de paralisar as atividades da Liga. O fato é que, pouco depois, recebo uma convocação dele, que me comunica: — Queria dar um duplo aviso a Vossemecê. A Liga Eleitoral Católica não tem mais que atuar, porque já obteve tudo quanto tinha que obter. Nessas condições, não precisamos mais da Liga. O senhor pode até fechá-la. Não havendo Liga, o senhor não vai poder ser candidato dela. Agora, dos dois partidos que há em São Paulo, Partido Republicano Paulista e Partido Constitucionalista, qual é que prefere?454 Ele sabia bem que eu não tinha afinidade com nenhum dos dois partidos. O prefere tinha, portanto, um sentido relativo, que seria “qual o partido que lhe desagrada menos?” O Partido Republicano Paulista era dos velhos coronelões, fazendeiros do interior, portanto, com uma certa nota aristocrática455, de centro-direita. O Partido Constitucionalista era de tendência centro451 Carta a Dom Duarte, 9/7/34. 452 Carta a D. Duarte Duarte, datada provavelmente da primeira metadede julho de 1934. 453 Carta de Dr. Plinio a Dom Gastão Liberal Pinto, de 1°/8/34. 454 SD 28/1/89. 455 SD 11/10/80.


125 esquerda456. Espantado, respondi que não tinha simpatias por nenhum. Mas a ter que preferir um, preferiria o PRP, que era o Partido Republicano Paulista 457. Ele insistiu: — Vossemecê quer ter um cargo de deputado federal no Partido Republicano Paulista, ou no Partido Constitucionalista? Em qualquer dos dois, se Vossemecê quiser, eu falo para o convidarem como candidato. Eu disse a ele: — Senhor Arcebispo, agradeço o seu interesse, mas sou obrigado a dizer a Vossa Excelência que prefiro não entrar em partido nenhum 458. Dom Duarte pediu-me que eu ainda pensasse. Respondi: — Não mudo de opinião459. Ele disse: — Está bem. Não diga então que eu me desinteressei de Vossemecê. mim.

— Eu agradeço o interesse que Vossa Excelência está tomando por E terminou nisso* 460. * Em carta a Dom Epaminondas, Bispo de Taubaté, confidenciou: "Até o último momento, esperei que o Exmo. Sr. Arcebispo [Dom Duarte] mudasse de deliberação, segundo me parecia que exigiam as circunstâncias. Vendo, porém, que tal não se dá, vou agora sair a campo com minha iniciativa individual" (Carta a Dom Epaminondas, sem data, provavelmente de setembro ou outubro de 1934).

2. Pressões e convites de partidos políticos. Razões da recusa Depois dessa conversa com Dom Duarte, comecei a receber pressões para me anexar à carreira política fora dos quadros católicos. A essas pressões eu respondi categoricamente não 461. Essas pressões estavam sendo exercidas porque, de acordo com o mecanismo da organização democrático-representativa e federal no Brasil, 456 SD 11/2/89. 457 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 458 SD 11/10/80. 459 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 460 SD 11/10/80. 461 Reunião com os mais antigos do movimento 8/6/86.


126 o natural era que, terminada a Constituinte, o eleitorado fosse convocado para a eleição de uma Câmara Federal e de uma Câmara Estadual. Os políticos se entregaram empenhadamente a isso 462. E então deputados do PRP e do Partido Constitucionalista começaram a insistir para que eu aceitasse candidatura em suas chapas 463. Um dia recebo um telefonema: “O Partido Republicano Paulista quer falar com o senhor”. Fui ao telefone e um deputado cujo nome não me lembro me disse: “Dr. Plinio, nós queríamos convidar o senhor para deputado estadual, portanto, queríamos que o senhor marcasse uma hora.” Eu marquei na minha própria casa. Esse deputado foi até em casa, conversamos muito cordialmente. Ele me convidou com muita insistência para ser deputado pelo PRP. Eu agradeci muito, disse por cortesia que ia pensar. Deixei passar alguns dias e telefonei para ele: “Fulano, sou muito agradecido, mas não convém eu entrar no partido”. E descartei o convite. Dias depois aparece o Dr. Antonio Cintra Gordinho, presidente da Associação Comercial de São Paulo, homem muito rico, muito influente, de um trato aliás muito simpático, dizendo que queria me falar464. Ainda me lembro dele na saleta da minha casa, na época situada na rua Marquês de Itu, n° 124, me dizendo: 465 — Plinio, em nome do Partido Constitucionalista eu venho insistir junto a você para se eleger deputado federal em nossa chapa. Eu respondi: — Dr. Gordinho, muito obrigado. É muito amável de sua parte, mas eu não posso aceitar essa candidatura. Levou muito tempo tentando me persuadir. E, no fim, disse: - "Olhe, a convenção está reunida. E estão só esperando o “sim” ou o “não” de você para votarem a chapa. Estão todos lá fazendo discursos para entreter os convencionais466, enchendo o tempo à espera da sua resposta 467. Se o senhor aceitar, eu daqui telefono dizendo que o senhor aceitou. O senhor vai comigo de automóvel para a convenção e é 462 SD 17/9/88. 463 SD 11/10/80. 464 SD 17/9/88. 465 SD 11/10/80. 466 SD 11/2/89. 467 SD 11/10/80.


127 aclamado candidato lá. Se o senhor não aceitar, será uma tristeza. Eu voltei a dizer: “Dr. Gordinho, eu lhe sou muito agradecido, o convite me honra muito, mas não é minha intenção aceitar”. Bom, afinal ele se despediu e foi comunicar que eu não tinha aceito . 468

É de se notar que o partido que eu preferia ofereceu-me um cargo de deputado estadual, menos bom do que o de deputado federal. E o Partido Constitucionalista, de centro-esquerda, fez insistência para eu ser deputado federal, portanto, uma situação politicamente melhor, mas que não me convinha. São os eternos paradoxos 469. * Foram motivos imperiosos que me levaram a recusar as cadeiras que me ofereceram os Partidos Republicano Paulista e Constitucionalista. De tais motivos, o mais imperioso se resumia no seguinte: se a ação católica devia ser desenvolvida fora e acima dos partidos, estaria em más condições para servi-la um católico filiado diretamente a uma corrente partidária qualquer, máxime se este católico, graças à carência de elementos melhores, estava destinado a ocupar — como no meu caso — cargos de grave responsabilidade no comando do laicato católico 470. Enquanto eu me conservasse alheio a dissídios partidários, estaria em bons termos com ambos os grupos em que se dividia a representação paulista na Câmara dos Deputados. Pelo contrário, desde que eu assumisse qualquer atitude partidária, teria contra mim a facção hostil ao meu grupo. E só quem teria a padecer com isto seria a causa católica, pois que o grupo a quem eu hostilizasse tomaria suas represálias contra os princípios que eu encarnava471.

3. Candidato avulso, sem partido Tendo, pois, recusado os dois partidos, lancei a minha candidatura como deputado estadual independente472. Aluguei um escritório de uma sala só (sala 211), de bom tamanho, situada no segundo andar da rua Libero Badaró n° 10, quase esquina com a 468 SD 17/9/88. 469 SD 11/2/89. 470 Carta de Dr. Plinio a D. Epaminondas, Bispo de Taubaté, data desconhecida, certamente da segunda metade de 1934. 471 Carta de Dr. Plinio ao Vigário Geral de Rio Preto, 6/10/34. 472 SD 17/9/88.


128 avenida São João. Ali montei meu comitê eleitoral. Mandei imprimir cartazes, que mandei colar em vários lugares de São Paulo. E fiz toda uma montagem de envio de correspondência para o interior do Estado: cartas para padres, para congregados marianos, para listas de amigos e outros fichários de que eu dispunha. Tudo isso foi mandado em quantidade473. Mandei também uma circular a todo o Clero do Estado de São Paulo . E ainda publiquei um manifesto anunciando a minha candidatura475. O escol da mocidade católica mariana de São Paulo apoioume, assinando o manifesto. 474

Ao mesmo tempo pedi ao Tristão uma carta a respeito de meu trabalho na Constituinte, para apresentar ao público como modo de prestigiar a candidatura. Ele mandou a carta mais fria e sabotante que se possa imaginar476. Organizei caravanas de cerca de vinte rapazes, congregados marianos, e evidentemente de membros do grupo do Legionário, que iam por essas paróquias afora pedindo votos, fazendo propaganda. Distribuí centenas de milhares de cédulas 477. O consumo de cédulas foi fantástico. Tudo indicava que a eleição correria bem 478. Mas aí entraram algumas circunstâncias que atrapalharam a minha votação 479.

4. Uma circular inesperada prejudica a candidatura de Dr. Plinio Dom Duarte, na conversa que tivera comigo, fez-me sentir que não combateria nem apoiaria a minha campanha eleitoral. Outros elementos eclesiásticos com que eu contava também se desinteressaram completamente. Dos Bispos, a única exceção foi Dom Epaminondas Nunes D’Ávila e Silva, Bispo de Taubaté480. Um dia, apareceu em minha casa o vigário de Santa Cecília. Era o Padre Paulo de Tarso Campos, mais tarde nomeado Bispo de Santos e posteriormente Arcebispo de Campinas 481. 473 SD 11/2/89. 474 SD 17/9/88. 475 SD 11/2/89. 476 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 477 SD 17/9/88. 478 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 479 SD 17/9/88. 480 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 481 — Dom Paulo de Tarso Campos (1895-1970) foi nomeado em 1932 pároco da Igreja de Santa Cecília


129 Eu tinha boas relações com ele, visto que era vigário de Santa Cecília e eu congregado ali também. Ele chegou à minha casa vibrante, dizendo que tinha tomado contato com um grupo de padres e que estava simplesmente indignado com o que estava acontecendo. E então me contou que Monsenhor Pereira Barros passara uma circular a todos os padres de São Paulo, dizendo que o Partido Republicano Paulista havia indicado para deputado estadual o médico Tarcísio Leopoldo e Silva, irmão de Dom Duarte. E — alegava ele — como ficaria muito mal para o prestígio do Arcebispo que esse médico não fosse eleito, ele pedia a título individual, a todos os padres, que fizessem votar no irmão de Dom Duarte. O Padre Paulo de Tarso Campos então mostrou-me a carta e disseme, vibrante de indignação: — Se você quiser, nós vamos constituir uma comissão de padres e fazer um protesto junto a Dom Duarte. E vamos com você fazer esse protesto. Eu tinha um grande respeito pessoal por Dom Duarte. E não queria fazer nada que representasse uma pressão sobre ele. Então disse ao Padre Paulo de Tarso que ficava muito agradecido. E se eles quisessem fazer esse protesto, eu igualmente lhes ficaria grato, mas que eu não podia me associar. E a coisa morreu como espuma. Mas a circular de Monsenhor Pereira Barros circulou...482

5. Atacado em coluna religiosa Outro fato estranho aconteceu na mesma linha. O Estado de S. Paulo publicava a seção Movimento Religioso, muito lida pelo público católico e redigida por um velho católico militante chamado Júlio Rodrigues. E saiu um artigo desse Júlio Rodrigues, pouco antes das eleições, deblaterando violentamente contra os candidatos avulsos 483. Essa seção era muito lida pelo público católico.

em São Paulo; em 1935 Bispo da Diocese de Santos e, por fim, em 1941, Arcebispo de Campinas. 482 SD 11/2/89. 483 SD 17/9/88.


130 Eu li de manhã isso, e como sabia que essa seção era escrita por um particular e não exprimia a voz da Cúria, não liguei e saí para o meu trabalho eleitoral. Tudo isso antes das eleições 484. Mas na realidade aquele artigo me prejudicou, e prejudicou-me não pouco . 485

6. Trabalho abnegado dos congregados marianos Os congregados marianos que trabalhavam comigo eram pessoas de condições econômicas ainda mais deficientes do que a minha. Vários deles tinham pedido férias nos seus empregos para poder trabalhar pela minha eleição. E isso não se paga. Nem eu tinha dinheiro para pagá-los, nem eles quereriam. Era um trabalho desinteressado, de bons congregados marianos. Eu procurava compensar isso rezando por eles e dispensando-lhes toda a minha amizade. Era só o que eu tinha. Lembro-me que, quando foi encerrada a campanha eleitoral, à noite, já um pouco tarde, os congregados marianos afluíram para o escritório eleitoral para comentar as disposições do eleitorado 486. E eu disse a eles: — A todos, muito obrigado. Foi uma luta que mantivemos pela causa católica e há muitas possibilidades de vencer. Se essas possibilidades se verificarem, nós teremos vencido para a causa de Nossa Senhora. Se não se verificarem, estou com minha carreira política quebrada. Estamos jogando o tudo pelo tudo. Se eu for reeleito, será por pouco; se for derrotado, será por pouco. Não foi, portanto, uma temeridade, eu não dei trabalho a vocês por uma tentativa vã. A tentativa tem todo o cabimento. Os números o dirão. Agora, se ela será coroada de êxito, não sei. É a Providência que sabe. Despedimo-nos muito amistosamente e ficamos aguardando a apuração eleitoral.

7. Apurações suspeitas: urna aberta com chave de papelão Estranhamente, a apuração não começou logo depois. Os votos ficaram empilhados em não sei que prédio do Parque Dom Pedro II, expostos: todo mundo podia vê-los através de uma grade487. Comecei a ficar preocupado: “Como é essa história? O que é que 484 SD 11/2/89. 485 SD 17/9/88. 486 SD 11/2/89. 487 SD 11/10/80.


131 vão fazer com isso?” 488 Começa a apuração. Os resultados são completamente diferentes do que todo o mundo esperava. Era esperada a vitória do Partido Republicano Paulista e esse partido recebeu votações muito menores nos lugares onde havia os melhores motivos para esperar grande vitória. E começou a correr o boato de que as urnas tinham sido forçadas489 e que tinha havido fraude nas eleições. E um deputado oposicionista, inimigo do governo, homem rico, político importante de Limeira, o Major Levy 490, deu uma declaração pelo rádio de que o cadeado daquelas urnas era tão vulnerável, que ele se responsabilizava perante o público paulista de abrir qualquer uma delas com uma chave de papelão que ele cortaria na hora. E foi marcada essa demonstração. Chega na hora, sensação em torno do caso: o Major Levy corta uma chave de papelão, mete dentro da fechadura e esta se abre. Ele disse: “Agora me tragam outras urnas, eu abro todas”. E de fato abriu, diante das autoridades e outras testemunhas. Imediatamente telefonaram para a Gazeta, que era naquele tempo o jornal audacioso de São Paulo, e que tinha uma sereia cujo som, na São Paulo pequena daquele tempo, cobria toda a zona onde morava o centro decisivo da cidade. A sereia normalmente só tocava ao meio-dia e às seis da tarde. Desta vez, a sereia da Gazeta tocou, digamos, às dez da manhã. Tocou, tocou, a cidade toda ficou em polvorosa: “As urnas foram abertas, as eleições estão fraudadas”. Deveriam ter anulado as eleições, não anularam491. * Antes de arrebentar esse escândalo, bem no começo da apuração, eu tive que tratar um negócio qualquer com o presidente do Tribunal Eleitoral de São Paulo, a respeito de meu título eleitoral. Entrei numa sala cheia de gente e notei a fisionomia dele ser tomada de certa angústia ao me ver. Não dei importância ao fato, apenas o 488 SD 17/9/88. 489 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 490 — Major José Levy Sobrinho (1884-1957): natural de Limeira-SP, foi comerciante, industrial, político brasileiro, coronel da Guarda Nacional e presidente do diretório do Partido Republicano Paulista. Foi também pioneiro na implantação da citricultura e da sericultura paulista. 491 SD 23/6/73.


132 registrei. Depois tive todas as razões para suspeitar que meus votos foram retirados das urnas em quantidade, por um fato indiscutível que vim a saber mais tarde: Dom Mayer, que eu ainda não conhecia e que na época era simples sacerdote, votara em mim, mas na sua seção eu não tive sequer um voto computado492.

8. Prestígio intacto e até crescente Nesse período pós-deputado, eu dava sempre as minhas noites ao cultivo daqueles amigos da Congregação Mariana e ao relacionamento com o movimento mariano em geral. Era muito convidado para discursos e conferências no Movimento Católico. Quase todo mês havia duas ou até três conferências para fazer. Fazia-as com grande aplicação, o mais bem feito que eu conseguisse. E isto naturalmente multiplicava os convites. Vinham convites também do interior, para as festas de Bispos e outras ocasiões. Eu ia, comparecia, falava, discursava à vontade. Faziam de mim o que queriam. Neste sentido, minha influência como líder católico cresceu ainda mais depois de ser deputado. E também porque estava um pouco mais velho, e, portanto, com mais respeitabilidade do que um moço de vinte e cinco anos. Era muito frequente haver reunião católica em teatros, lotando-os inteiramente. Quando eu entrava (não tinha mais cargo nenhum) a sala toda se levantava e batia palmas. Não havia possibilidade de eu comparecer a uma reunião dessas sem ser convidado a fazer um discurso no fim. Não passava pela cabeça de ninguém. Antes de ser deputado já era assim. No meu período de deputado, era e às vezes não era. Depois de eu ser deputado, não sei por que disposições da Providência, isto subiu muito mais493. Esse prestígio pessoal, humanamente falando, me valia muito pouco, dada a estrutura aristocrática de São Paulo naquele tempo. Mas como meio de apostolado era um meio excelente, e a esse título, naturalmente, eu o prezava muito e procurava cultivar, para dispor de 492 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 493 SD 18/2/89.


133 influência junto aos católicos para os objetivos que eu tinha em vista494.

494 SD 23/6/73.


134

Parte III Professor Universitário e Advogado — Papel do “Legionário” Capítulo I As três Cátedras 1. Cátedras favorecem o apostolado Em 1935 saí definitivamente da política. Voltei para a vida privada e assumi, em épocas diferentes, três cátedras:495 a primeira, de professor de História da Civilização no Colégio Universitário, seção anexa à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1935; a segunda, de História Moderna e Contemporânea na Faculdade Sedes Sapientiae, em 1937; e a terceira, de História Moderna e Contemporânea na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras São Bento 496. Fiquei no exercício da docência creio que mais ou menos 20 anos. Só bem mais tarde fundei a TFP, em 1960. Quando a TFP foi fundada, eu já havia parado de lecionar. Porque para fundar essa associação foi necessário um trabalho prévio muito absorvente, incompatível, quanto a horários e demais exigências anexas ao cargo, com o ensino. Então deixei de lecionar497. Quando estudante na Faculdade de Direito, eu já sentia certa vocação para professor, certo gosto de explicar, expor ideias. Meu desejo sempre foi o de ser professor de História. Parecia-me a mais bonita das matérias para a cultura geral do homem. Não a História dada por professor que entra na aula e diz: “Meroveu I, filho de Chlodion: quando começou a reinar, quando morreu? Foi morto? Morreu de doença?”. Eu achava tal exposição de uma sensaboria sem nome. Para dar História assim, eu não me sentia atraído. Já para comentar a História, fazer sua análise, procurar mostrar o seu sentido

495 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 496 Notas biográficas ditadas em 1972. 497 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90.


135 profundo, aí eu me sentia apto 498. As datas, eu levava por escrito e as lia, e dava a minha aula histórica consultando tais datas na frente dos alunos 499. Eu aspirava por uma vida em que a preocupação de ganhar dinheiro ocupasse o menor espaço possível, para poder me dedicar ao apostolado. O ideal seria uma profissão que de si já possibilitasse o apostolado, em que se pudesse fazer o bem. E ser professor de História parecia-me a melhor forma de realizar esse intento 500, uma vez que abria caminho para um curso contra-revolucionário da História, com possibilidade de fazer adeptos 501. Aquelas cátedras deram-me a possibilidade de exercer uma ação pública de expressão doutrinária marcante, porque a formação histórica, mesmo quando colocada numa objetividade que roce pelas raias da neutralidade absoluta, não deixa de ter uma profunda repercussão sobre a formação doutrinária e a mentalidade dos alunos 502.

2. Dito de Alcântara Machado Como foi que me tornei professor de História? Como deputado, eu me via obrigado a prever o momento em que deixaria de o ser. Então, o que iria fazer da vida? Eu estava muito preocupado com isso. Foi aí que, numa reunião da bancada paulista, à qual confesso que não estava prestando muita atenção, o líder Alcântara Machado em certo momento olha para os presentes e diz: — Isto aqui está aprovado? Silêncio na sala. — Está aprovado? Silêncio na sala. — Então, está aprovado! E voltando-se para mim, acrescentou: — Quem ganhou com isto foi o senhor. — Por que eu ganhei? Eu notei que ele viu que eu não tinha prestado atenção. Mas queria saber por que tinha ganho. 498 SD 10/6/89. 499 Conversa 20/1/93. 500 SD 10/6/89. 501 SD 18/2/89. 502 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90.


136 — Porque nesta Constituição nova está dada licença à Igreja de fundar universidades católicas503 e quase não é compreensível que uma universidade católica em São Paulo não tenha o senhor como professor 504. E o senhor tem todas as condições para começar a sua vida por onde outros acabam505. Até então, no Brasil, todo o ensino universitário estava nas mãos do Estado. E por aquela disposição da Constituição de 1934, estabelecia-se a possibilidade de grandes entidades privadas, entre elas a Igreja Católica, montar faculdades e universidades, sujeitas naturalmente à fiscalização do Ministério da Educação506. Quando o Alcântara Machado disse aquilo, eu espevitei-me. Fiquei muito contente, mas disfarcei para não notarem que eu não prestara atenção na matéria.

3. Convite da Faculdade São Bento Pouco tempo depois, estando em São Paulo (eu ainda era deputado), recebi um telefonema dos padres beneditinos. Queriam falar comigo. Eu disse que poderíamos nos encontrar. E eles adiantaram: — Estamos fundando uma Faculdade, a Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de São Bento 507. Uma das cadeiras é de História e há três ou quatro cátedras: História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea. Precisamos de apresentar nomes que impressionem bem o Ministério da Educação. Serão professores catedráticos, logo de uma vez. O senhor aceitaria de ser catedrático de duas cadeiras? Como deputado, seu nome impressiona. Depois acrescentaram as amabilidades: “E o senhor é conhecido como bom orador”. — Pode ser. Se os senhores precisam, pode ser 508. — O senhor está informado de que ganhará pouco? O Estado paga 503 SD 10/6/89. 504 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 505 SD 18/2/89. 506 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 507 — A Faculdade Livre de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento preexistia e era mantida pelos monges beneditinos. Nela figuravam professores de primeira grandeza, como o professor Alexandre Correia e o professor Leonardo Van Hacker, ambos de distinta formação intelectual e diplomados pela Universidade de Louvain, na Bélgica (cfr. entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90). A Faculdade de São Bento dava um ensino de grau superior, mas não era reconhecida oficialmente. Ia lá quem quisesse conhecer a filosofia de São Tomás (cfr. entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90). Com a nova Constituição, ela foi oficialmente reconhecida e passou a chamar-se Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento (cfr. entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, cit.). 508 SD 10/6/89.


137 por volta de mil e quinhentos por mês a um professor universitário. A Igreja tem menos dinheiro que o Estado, pois Ela não arrecada impostos. Portanto, vai pagar só duzentos e cinquenta. Eu pensei com os meus botões: “É melhor do que nada” e respondi: — Não, não. Eu aceito de bom grado 509. E assim fiquei professor catedrático da Faculdade São Bento. Avisei-os de que, enquanto fosse deputado, não teria tempo de lecionar. Ainda exercendo a legislatura, eu ia recebendo deles convites para reuniões, para isto e para aquilo outro. Não podia comparecer, mas ficava bem claro que eles se lembravam bem de que eu estava inscrito no Ministério da Educação como catedrático.

4. Convite da Faculdade Sedes Sapientiae Algum tempo depois recebo outro convite: “As freiras do Colégio Santo Agostinho (da rua Marquês de Paranaguá) convidam o senhor para ser professor de uma faculdade que vão fundar, a Faculdade Sedes Sapientiae, e da qual farão parte os melhores intelectuais do País. Pedem para o senhor aceitar como deputado quatro cátedras”. Evidentemente aceitei e fiquei muito contente510. De fato, pouco depois, as cônegas regulares de Santo Agostinho abriram em São Paulo essa Faculdade especial para moças: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae, reconhecida pelo Ministério de Educação 511. A grande propulsora da fundação dessa Faculdade foi uma belga, pessoa de grande valor, disseram-me que de uma família rica, distinta, a Mère Saint-Ambroise, que eu conheci pessoalmente. Inteligente, culta, muito realizadora, capaz de fazer o que queria, sabendo bem o que visava e a quem as superioras deram uma liberdade muito grande na direção da Faculdade 512.

5. Nomeação para o Colégio Universitário Já a minha nomeação para o Colégio Universitário foi uma verdadeira epopeia513. 509 SD 18/2/89. 510 SD 10/6/89. 511 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 512 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 513 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54.


138 Eu ainda era deputado. E estando em uma sala da Congregação Mariana de Santa Cecília, um congregado mariano pôs-me a par de uma informação que ele ouvira de um amigo que trabalhava numa repartição de determinada Secretaria do governo de São Paulo: iam ser criados postos de professores para o Colégio Universitário da Faculdade de Direito de São Paulo514. Esse Colégio Universitário seria uma espécie de ensino secundário ministrado no próprio prédio do ensino superior, para elevar o curso secundário ao nível do ensino superior515. Era, portanto, um curso de introdução à Faculdade de Direito. Ser professor lá era muito honorífico. Era quase ser catedrático da Faculdade 516. Davam-se aulas no mesmo prédio, faziam-se reuniões na mesma sala dos professores da Faculdade de Direito, usavam-se nos intervalos as mesmas salas. Portanto, tudo muito misturado e num contato contínuo com os professores da Faculdade. Era o mesmo diretor, o mesmo secretário, a mesma secretaria517, direito do tratamento de Excelência em aula, quase os mesmos vencimentos 518. * De posse desta informação, dias depois fui falar com o Governador, Dr. Armando Sales de Oliveira. Como deputado, eu tinha o privilégio de ser recebido logo. Cheguei e disse: — Quero falar com o Governador. — Ah! pois não519. Entrei: — Dr. Armando, como vai o senhor? Eu não estava habituado aos estilos governamentais, não os conhecia. Quem trata com o governador deve dizer: “Senhor Governador”, e não “Dr. Fulano”. Sobretudo não se deve tratá-lo pelo primeiro nome, mas pelo sobrenome: “Dr. Sales de Oliveira” ou qualquer coisa assim. — Dr. Armando, como vai o senhor? 514 SD 14/9/91. 515 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 516 SD 14/9/91. 517 SD 11/2/89. 518 Jantar EANS 15/6/82. 519 SD 14/9/91.


139 — Como vai, Dr. Plinio? 520 Encontrei o Governador meio intrigado com o que eu quereria. Recebeu-me muito amavelmente e uma das primeiras coisas que me disse foi: — Essa Constituinte está demorando muito tempo, precisava andar mais depressa, o senhor precisava trabalhar para isto acabar logo. Pensei: “É mais do que a hora de apertar esse homem para me dar o cargo, senão eu fico a pé”. Eu disse: — Dr. Armando, eu não tenho nada a objetar ao que o senhor diz, mas eu vim aqui tratar de outra coisa. Eu o apoiei quando se tratou de indicar o seu nome para Interventor Federal em São Paulo. E vim pedir ao senhor um favor. — Pois não, Dr. Plinio 521. Ele estava sentado de lado, mas olhando para a frente, muito calmo, com as mãos em cima da escrivaninha. Eu: — Soube que se anda cogitando em fundar uma seção anexa à Faculdade de Direito de São Paulo. — Ah! pois não, Dr. Plinio. Não negou. — Eu queria dizer ao senhor que vim pedir-lhe para ser nomeado professor de História da Civilização. — História da Civilização! Que bonita matéria, não? — Muito bonita matéria, e eu a desejo muito. Conversou mais um pouco comigo e depois 522 me disse: — Bom, eu vou tomar uma nota e vamos ver o que é possível. — Bem, então, Dr. Armando, não vou lhe tomar mais tempo. Aqui está o meu pedido, que deixo nas suas mãos 523. saí.

Eu me levantei, ele se levantou também. Cumprimentamo-nos e eu

520 SD 10/6/89. 521 SD 14/9/91. 522 SD 10/6/89. 523 SD 14/9/91.


140 * Bom, passaram-se uns dias, eu fui para o Rio, voltei e o meu amigo veio me dizer que meu pedido havia causado uma polvorosa: “Na roda da Secretaria524 acham que você vai emporcalhar a Universidade com clericalismos, vai dar aula com água benta debaixo do braço etc. 525. Mas o Governador declarou que não podia contrariá-lo, por causa dos compromissos políticos com a Liga Eleitoral Católica. Os deputados viviam enchendo o Governo de pedidos. O senhor nunca lhe havia pedido nada, e estava pedindo só aquilo. Ele então mandou lavrar o decreto de sua nomeação 526. Dias depois eu estava no Rio 527, chego à Constituinte e vieram vários deputados de São Paulo me cumprimentar, me abraçar, felicitar. Eu disse: — Mas o que aconteceu? — Você não viu? O Diário Oficial publicou um decreto do governador Armando Sales de Oliveira, nomeando-o professor do Colégio Universitário da Faculdade de Direito de São Paulo, História da Civilização, vitalício e inamovível. Telegrafei logo para São Paulo, agradeci e pensei: “Bem, essa preocupação desapareceu”528. Depois disso, fui visitar o Armando Sales para agradecer. Ele me disse: “Por favor, entre. O que o senhor deseja?” — Eu vim agradecer a nomeação que lhe pedi. Abraços 529.

6. Tomada de posse na Faculdade de Direito Faltando alguns meses para começarem as aulas na Faculdade de Direito, eu ainda tinha certa dúvida se me acolheriam como professor530. Não foi, portanto, sem uma certa ansiedade que me apresentei lá. A Faculdade estava em obras. A diretoria estava instalada numa saletinha, só se conseguia entrar pelos fundos, era toda uma bagunça. Eu me apresentei para falar com o diretor, Dr. Rafael Correia de 524 SD 10/9/88. 525 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 526 SD 10/6/89. 527 SD 10/9/88. 528 SD 14/9/91. 529 SD 10/9/88. 530 SD 11/2/89.


141 Sampaio, que se não me engano tinha sido o meu professor de Direito Processual. Entrei na sala, ele estava lendo qualquer coisa, sentado em uma cadeira. Não quis interromper a leitura dele e me dirigi ao secretário, que eu não conhecia. Então disse: — Quero falar com o secretário. — Sou eu. — Sou Plinio Corrêa de Oliveira 531, e aqui está o decreto do governador Armando Sales nomeando-me professor do Colégio Universitário 532. Agora vão começar as aulas e vim avisar que quero assumir meu cargo. Eu falava alto, e o diretor me ouviu. Baixou o jornal e me disse: — Plinio, como vai? — Oh! Dr. Rafael Sampaio, como vai o Sr.? — Vem cá 533 e deu-me um abraço 534. Então, você vem assumir seu cargo? Está muito bem, vamos dar posse a você. E lavrou o termo de posse535. Tive que preencher as formalidades de praxe: idade etc. Uma vez feitas todas as declarações, percebi que não era oportuno mais conversas, pois estavam em hora de trabalho. Então despedida, abraços, e para o secretário: “Muito prazer em conhecê-lo”. E fiquei esperando o primeiro dia de aula. Mas aí já não havia mais dúvida nenhuma. Pelo menos nesse ponto eu podia ficar tranquilo 536.

7. Tomada de posse na Sedes Sapientiae Depois que as cônegas do Colégio Santo Agostinho me convidaram para ser professor da Faculdade Sedes Sapientiae, eu não havia tomado mais contato com elas. Deixei que a coisa caminhasse no Ministério da Educação e que me registrassem como catedrático vitalício. Passado certo tempo, apareço lá e digo:

531 SD 17/9/88. 532 SD 11/2/89. 533 SD 17/9/88. 534 SD 11/2/89. 535 SD 17/9/88. 536 SD 11/2/89.


142 — Madre, sou o professor Plinio Corrêa de Oliveira. — Ah! sei. — Eu queria saber se está registrado o meu nome. — Está registrado. — Eu vim dizer à senhora que gostaria de vir dar as aulas que correspondem à minha matéria. — Oh! mas que ótimo, professor. E comecei a lecionar lá537. A Faculdade Sedes Sapientiae ficava na rua Caio Prado, bem mais perto de minha casa que o São Bento.

8. Meus dias como professor e como advogado Na Faculdade de Direito eu tinha aulas, se não me engano, quatro dias por semana e duas aulas de cada vez. Na Faculdade Sedes Sapientiae, creio que eram três aulas por semana. Eu dava, portanto, onze horas de aulas semanais. Por indicação do Padre Leonel Franca, astro da intelectualidade católica daquele tempo, mandei comprar uma História Universal em 10 ou 12 volumes, e que era a mais recente e a mais famosa, cujo autor era João Baptista Weiss, um austríaco de boa orientação católica. De manhã, eu comungava, voltava para casa e preparava as aulas. À tarde, dava as aulas. Ia da Faculdade de Direito para o Sedes Sapientiae sempre de bonde, porque nunca tive jeito para guiar automóvel. E ônibus não os havia. Ia a tarde quase inteira nisso. Nas tardes que eu tinha livres, ou depois das aulas, eu movimentava o meu escritório de advocacia538. O escritório ficava perto das Faculdades, de maneira que, acabadas as aulas, eu ia atender os meus clientes. Depois, vinha cedo para casa, para ler antes do jantar e preparar minha aula para o dia seguinte. As noites, depois do jantar, eram livres. E estas eu dedicava ao apostolado. Tinha reunião com o grupo do Legionário mais ou menos até à meia-noite539. A essa hora voltava para casa. E no dia seguinte recomeçava a mesma faina.

537 Almoço EANS 17/6/82. 538 SD 10/6/89. 539 Jantar EANS 9/11/90.


143

9. Aulas diferentes para públicos diferentes: a) na Sedes Sapientiae A Faculdade Sedes Sapientiae era uma faculdade de moças 540, mas com o corpo docente composto de professores homens e mulheres 541. Manter a disciplina na aula não era difícil. O problema era manter a atenção, fazer com que prestassem atenção. Para isto, era necessário que as aulas tivessem substância (eu não as ia dar sem substância, era uma questão de honestidade: se estou ganhando, tenho que dar uma aula bem dada). Além disso, era também necessário que fossem feitas um pouco em tom de discurso e tivessem muita clareza. Procurei tanto quanto possível adestrar-me nisso, pondo em minhas aulas para as moças um pouquinho de literatura, às vezes enfatizando os pormenores da História mais significativos, dando-os para saborear. As aulas corriam sem nenhuma dificuldade. Até corriam muito bem. Durante quase todo o meu curso de professor correram muito bem542. b) na Faculdade de Direito Na Faculdade de Direito, já era inteiramente diferente o meu modo de lecionar, porque o corpo discente era diverso 543. Eu tinha naquele tempo 25 anos. E cinco anos antes eu havia sido aluno na mesma Faculdade. Meus alunos eram, portanto, de uma idade muito próxima da minha. Naturalmente, eles julgavam, devido a isso, que tinham muito mais liberdade do que com um professor de uma idade provecta544. E poderia ocorrer-lhes a ideia de serem indisciplinados comigo. Eu sabia que existia toda uma corrente anticatólica lá, quadrada e declarada. E todos sabiam que eu era católico e que545 estava no extremo oposto do esquerdismo 546. Percebi desde logo que o esquema que porventura usassem contra mim seria de me desmoralizar, começando por vaiar as minhas aulas. Como a Faculdade de Direito naquele tempo era de predominância ateia, havia clima para começar a chamar-me de carola, cantar cançõezinhas de 540 SD 10/6/89. 541 SD 18/2/89. 542 SD 10/6/89. 543 Almoço EANS 17/6/82. 544 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 545 SD 10/6/89. 546 Palavrinha bolivianos 1/2/91.


144 igreja durante a aula, distribuir caricaturas minhas rezando o rosário e coisas assim547. Eu tinha dois caminhos a escolher para conquistar a disciplina na aula: ou ser muito simpatizado por eles, ou me impor. Qual seria a melhor solução? Não era certo que eu conseguiria conquistar a simpatia. E, se a conquistasse, eu perderia o respeito deles. Então, eu teria que me impor. * Lembro-me de que, no primeiro dia de aula, subi à cátedra sem olhar para os alunos. Subi olhando para a frente. Sentei-me. E eles fazendo bagunça, visto que tinham entrado há pouco na sala. Eu quieto, com cara de pouca amizade. Eles viram que era uma coisa diferente que vinha entrando em cena548. A entrada da aula era a chave do que ia acontecer depois. Se eu entrasse com a cara alegre: “Boa tarde, meus alunos, boa tarde!”, estaria arrasado, o respeito estaria destruído. Se entrasse com a mesma cara que a gente faz para tomar ônibus, quer dizer, de nada, seria a mesma coisa. Então entrei, não com uma cara zangada, mas com uma cara séria de quem está pensando em coisa muito superior à aula. Mas isso era preciso fazer em todas as aulas, da primeira até à última549. Nessa primeira aula eu disse: “O primeiro ponto de meu programa é este. Eu vou passar a discorrer sobre esse assunto”. E comecei a discorrer. Passada a primeira surpresa, eu vejo um: ppssstttt, pppsssttt de um para outro. Eu, tok-tok-tok, batendo com a mão na mesa: “Silêncio!” Dali a pouco outro, mais adiante, fala. Eu, tok-tok-tok: “Silêncio!” E eles quietos e com aquele silêncio de ninguém se mexer550. Entendiam bem que era melhor parar porque 551 percebiam que eu faria um berreiro552.

547 Almoço EANS 17/6/82. 548 SD 10/6/89. 549 Chá 7/2/95. 550 SD 10/6/89. 551 Palavrinha 11/6/92. 552 Almoço EANS 17/6/82.


145 Quando tocou o sino (era sempre o sino da igreja de São Francisco que regulava os horários), eu interrompi a aula dizendo: “Na minha aula de amanhã vou continuar”. Ia embora e estava acabada a aula. Eu notei que eles perceberam que a coisa não seria fácil. De outro lado, notaram que a aula era clara e sentiram certa atração . 553

* Nos dias seguintes, eu entrava com a mesma cara patibular, subia à cátedra sem olhar para eles, e me instalava. Já aí alguns se sentavam antes de eu ter me sentado. Eu: “Levante-se!”, batendo na cátedra. “Não lhe dei o direito de sentar-se!” Mas era uma agressão ocular e verbal tão categórica que o sujeito se levantava meio aturdido. Depois de eu correr os olhos pela sala e ver que toda a sala estava de pé, eu me sentava e dizia: “Podem sentar-se”. Mas era um choque554. * No desenvolvimento do curso da História eu entrava em matéria religiosa; e político-social atingindo o campo religioso 555. Eu começava a falar e saía desde logo com coisas catolicíssimas, mas dessas de aturdir556. Dava tudo quanto tinha de mais reacionário e mais católico que se possa imaginar. E de vez em quando dizia: — Se os senhores quiserem perguntar-me alguma coisa, ou mesmo fazer uma objeção, podem. Mas não era com a afabilidade com que eu digo isto num auditório amigo. Era ali!557. Apesar da severidade, o modo de eu tratar meus alunos era sempre cortês. E dava as aulas com um cuidado enorme de fazê-las bem demonstradas, cercando-as de respeitabilidade e fazendo com que essa respeitabilidade tivesse certa beleza, um certo pulchrum da frase bien tournée, bem torneada. Além disso, empregando um timbre de voz alto, e comunicando a 553 SD 10/6/89. 554 Almoço EANS 17/6/82. 555 SD 10/6/89. 556 Almoço EANS 17/6/82. 557 SD 10/6/89.


146 impressão de que eu não receava nada da parte deles. Por esta forma, eu dominava a sala de aula558. No total, o relacionamento com meus alunos acabou sendo muito cordial. Eu sempre dei a eles a liberdade de objetarem. Tinha alunos que se levantavam, que pediam licença para objetar, faziam discursos dentro da aula etc. 559. Eu ouvia com serenidade e dava resposta calma, mas fazendo entender que argumentar, sim, faltar ao respeito, não. Argumentava e a coisa corria560. Por outro lado, as minhas relações com o corpo docente foram sempre muito boas, muito agradáveis 561.

10. Inesperadas repercussões, trinta anos depois Trinta anos depois, ou talvez mais, eu estava jantando num restaurante muito bom aqui de São Paulo, o Ca D’Oro, e um ex-aluno encontrou-me lá 562. Ele estava sentado em uma mesa, jantando com uma jovem que era evidentemente sua esposa. Quando ele terminou seu jantar, levantou-se, e enquanto a senhora dele saía, dirigiu-se à minha mesa e me disse: — Professor, o senhor me permite dizer-lhe uma palavra? Eu disse de uma maneira amável: — Pois não, com muito gosto. — Eu me chamo Fulano, e queria dizer-lhe que eu e o meu grupo de amigos fizemos muita oposição ao senhor, quando o senhor era nosso professor na Faculdade de Direito. Mas outro dia estávamos conversando e dizíamos que nós devemos ao senhor mais do que a muitos outros professores, porque aprendemos do senhor noções de disciplina que nunca jamais ninguém nos havia dado. Eu fui amável, estendi a mão cordialmemte e despedimo-nos563. *

558 Almoço EANS 2/4/92. 559 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 560 Palavrinha curitibanos 11/3/91. 561 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 562 Chá 7/2/95. 563 Palavrinha 1/2/91.


147 Eu soube de outra coisa curiosa. Numa casa “x” da sociedade paulista comemorava-se o aniversario do dono. Fez-se uma roda, e a esposa do aniversariante entrou para tomar alguma providência, essas coisas de dona de casa. Ao sair, ela se descolou da conversa na roda. De repente, da copa ou da cozinha onde estava, ela ouve uma brigaria na sala, mas uma coisa medonha: uns achavam que “sim”, outros que “não” e tal. Ela ficou um pouco preocupada e voltou para ver o que era. Ela disse: — Por que é que vocês estão brigando aí, o que é que arranjaram? Tinham-se formado dois partidos, um a meu favor e outro contra. Essa senhora interveio: — Mas o que é isto?! Vocês, num dia de aniversário, dia de descanso, vocês brigarem, e brigarem pelo Plinio Corrêa de Oliveira?! Por favor, vamos tratar de outro assunto. Todo mundo deu risada, tomou como brincadeira e mudou o assunto. Vários ali eram meus antigos alunos 564.

11. Formação da PUC Como já disse anteriormente, eu ainda era deputado quando fui convidado pela Faculdade de São Bento para ser professor de História. E aceitei a cátedra, mas não pude aceitar a docência imediata. A Faculdade se fundou, começou a funcionar, sendo eu apenas professor titular. 1940.

Nisto funda-se a Universidade Católica de São Paulo, na década de

Por uma razão de conveniência da Igreja, o Cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, naquele tempo o Arcebispo, vendo que já havia alguns institutos superiores oficiais e reconhecidos existentes em São Paulo, resolveu agregá-los, formando uma Universidade. A Universidade Católica de São Paulo — atual PUC — abrangia duas espécies de faculdades: uma eram as faculdades diretamente dependentes da Reitoria; e outra eram as faculdades agregadas, que gozavam de uma certa autonomia. A Faculdade de São Bento era 564 Chá 7/2/95.


148 diretamente dependente da Reitoria. A Sedes Sapientiae era faculdade agregada565. Da fundação da Universidade Católica eu não tomei parte. Quando o Cardeal resolveu constituí-la, eu era apenas professor titular da Faculdade de São Bento e, como tal, entrei para ela. E quando ele resolveu agregar o Sedes Sapientiae, deixei-me agregar também como elemento do corpo docente. * Havia outro problema de fundo. Como na década de 1940 eu me tinha empenhado muito numa posição de direita categórica, portanto de combate aberto ao comunismo, esta minha posição tornava embaraçosa para Dom Carmelo a minha participação como um dos mentores da Universidade Católica. E então não tive parte ativa na formação da Universidade. Da criação da Universidade eu só soube o que deram os jornais, e o que se comunicou aos professores nas reuniões de congregação do Sedes Sapientiae. Exatamente pela razão que mencionei, eu estava inteiramente afastado disso 566.

12. Pedido para assumir a cátedra na Faculdade São Bento: receios do Cardeal Somente quando eu li no jornal que a Faculdade de São Bento ia passar por uma reorganização de professores, e que estava sendo convocado o corpo docente, é que escrevi uma carta ao Reitor da Universidade Católica, que era Dom Paulo de Tarso Campos, Arcebispo de Campinas, com quem eu tinha tido boas relações. Na carta eu dizia a ele que eu queria assumir a minha cadeira. E como ele era meu amigo, eu pedia a ele para levar o assunto ao conhecimento do Cardeal. Mandei a carta para Campinas. Não muito tempo depois recebo um telefonema dele: “Plinio, você quereria passar pelo palácio Pio XII para falar comigo às tantas horas?” Eu: “Pois não. Vou lá”. Pensei que fosse algum encontro com o Cardeal, em que ele 565 — A PUC-SP foi criada no dia 2 de setembro de 1946, a partir da união da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento (fundada em 1908) e da Faculdade Paulista de Direito. Agregadas a elas, mas com estruturas administrativas financeiras independentes, estavam outras quatro instituições da Igreja. Tomou o título de Pontifícia em 1947, por concessão do Papa Pio XII (cfr. http://www.pucsp.br/universidade/historia). O Legionário n° 735, de 8 de setembro de 1946, traz uma reportagem sobre o ato de inauguração. 566 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90.


149 estivesse presente. Não. Era só com ele, Dom Paulo de Tarso, mas no palácio do Cardeal, certamente para eu sentir bem que o Cardeal estava de acordo com o jogo todo. Ele me disse: — Olhe, recebi sua carta e você tem realmente direito à cátedra. Acontece que se você for introduzir nas suas aulas de História os temas da Ação Católica, ou falar contra Jacques Maritain, você cria toda uma polêmica dentro da Universidade que vai pôr a Universidade pelos ares. Neste caso, nós preferimos ter uma demanda com você. Você fica alguns anos sem assumir, porque a demanda levará anos, e depois iremos ver o que faremos, caso você ganhe a demanda. Ganhar a demanda era difícil. O peso da Arquidiocese era colossal. Eu disse: — Dom Paulo, se o único compromisso for este e eu ficar inteiramente livre de ensinar História como eu entenda, eu aceito. Ele, olhando-me bem de frente, perguntou: — Eu posso contar com sua palavra de honra? Eu disse: — Pode contar com minha palavra de honra e de católico. Ele ficou muito sorridente e me disse: — Então apareça na Universidade Católica a tal hora assim e trate com o Padre tal, que vai empossar você na cátedra e você começará a lecionar. Retirei-me amável, ma non tropo, e alguns dias depois fui lá e procurei o Diretor: — Eu queria falar com o Diretor, eu sou Plinio Corrêa de Oliveira. — Ah! pois não. Atendeu-me um Padre, íntimo de uma corrente já progressista de beneditinos e que era o diretor da Faculdade. Eu já o conhecia. Eu disse: — Dom Fulano, o senhor me conhece, sou Plinio Corrêa de Oliveira. — Pois não! O que o senhor quer de mim? — Eu combinei tal coisa com Dom Paulo de Tarso e vim aqui para assumir minha cátedra. Ele disse: “Pois não”, mas de modo sombrio, e começou a tratar


150 comigo questões de horário e assuntos congêneres, por onde vi que ele tinha recebido ordem de me receber. Ele me disse qualquer coisa e eu respondi: “Pois não”, que é uma alocução corrente em português. Ele voltou-se para mim com uma cara de fera e disse: “Pois não, pois sim, pois sim, pois não, dá na mesma coisa, ouviu?!!!”567. Percebi que ele queria arranjar motivo para criar uma briga. Eu me fiz de doce. E ele, não tendo com quem brigar, me disse: — Bem, o senhor então começa as aulas depois de amanhã. — Está bem, estou de acordo. — A tantas horas o senhor começa as suas aulas 568. Comecei a lecionar569 e cumpri religiosamente o compromisso que havia assumido com Dom Paulo de Tarso. Na Faculdade eu dizia o que eu queria, sem referência concreta a nada da situação do Brasil. Mas os alunos percebiam que, o que eu dizia em matéria de História, tinha relação com o que eu fazia como homem público. E ensinei sempre o que julgava dever ensinar. Nem aceitaria o curso em outras condições. Por exemplo, o meu ensino era muito contrário à Revolução Francesa, muito contrário à Revolução Russa de 1917. A nova orientação da Universidade, da qual haveria de sair a esquerda católica, era diversa dessa. Portanto, havia uma divergência, mas tocada com muita cortesia de parte a parte, quase até o fim. No fim de minha estadia na Universidade, senti uma certa pressão da esquerda. Mas foi uma pressão episódica, pequena, num momento em que eu já estava resolvido a sair e pensava em deixar o ensino para me colocar numa situação de homem público, intervindo oficialmente nos debates do País através da organização que eu fundaria depois, a TFP570.

13. Lógica que mete medo Certa vez, houve um desentendimento entre os professores e a parte 567 Almoço EANS 17/6/82. 568 Palavrinha 26/2/89. 569 Almoço EANS 17/6/82. 570 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90.


151 administrativa da Universidade Católica por causa dos salários insignificantes que a Universidade pagava. Era uma coisa que não tinha nada que ver com doutrina. E reuniu-se o conselho universitário, do qual eu fazia parte. O presidente do conselho era adversário de minha posição. Pediram que eu tomasse uma atitude qualquer saliente nesse protesto, e eu disse bem claramente: — Olhe, eu preciso ver. Vocês sabem que estou em polêmica com o Cardeal e com sacerdotes que dirigem a Universidade a respeito de temas teológicos e filosóficos. Se eu for atuar nessa questão salarial, crio a impressão de que estou explorando a questão salarial como pretexto para azedar a questão teológica. E isto é contrário à própria eficácia da questão salarial, porque eles, então, vão embirrar e não conceder. O presidente do conselho disse: — Não faz mal, qualquer que seja o tropeço que haja no caminho, a sua lógica é tal que mete medo neles. Esse presidente era íntimo amigo deles, estava em desacordo só em matéria de salário. E era professor de Lógica da Universidade571. Afinal de contas, Nossa Senhora me favoreceu e eu exerci durante uns 15 anos o magistério 572.

Capítulo II No escritório de advocacia 1. Meu primeiro escritório Antes de ser eleito deputado pela Chapa Única em 1933, eu tinha um escritório de advocacia573. Quando fui eleito deputado, eu o mantive fechado 574. O escritório tinha uma sala muito boa, muito grande. O prédio ficava na esquina da rua Líbero Badaró com a Ladeira de São João, onde está hoje o Banco do Brasil. O prédio pertencia à minha avó. São Paulo estava naquele tempo 571 Chá 19/7/92. 572 Almoço EANS 17/6/82. 573 SD 3/9/88. 574 SD 17/9/88.


152 numa crise tremenda, com muitas salas desalugadas. Então eu a procurei e perguntei se me autorizava a ocupar uma das salas desalugadas. Ela naturalmente consentiu 575.

2. Contrato para administrar bens da Cúria Após o encerramento da Constituinte, com o meu ordenado de professor e com o resto de rendas de aluguel de prédios que minha mãe tinha em comum com as irmãs dela, dava para irmos vivendo. Meu pai advogava em São José do Rio Preto, vinha com frequência para São Paulo. Mas qualquer pequena encrenca, qualquer pequeno incidente, qualquer pequena inflação, já poderia desequilibrar o orçamento e eu precisava cuidar de minha vida. Certo dia, Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra me perguntou: “Por que você não pede a Dom Duarte uns prédios da Cúria para administrar?” Escrevi então a Dom Duarte uma longa carta. Recebi logo um telefonema do secretário dele, dizendo que ele mandava me perguntar se estava bem às tantas horas assim para ele me receber. Eu disse que sim. Fui lá e ele me disse: — Olhe, a sua carta eu recebi de muito bom grado. Eu vou dar para Vossemecê administrar tais e tais prédios da Cúria”. Era uma boa soma de prédios. — E o senhor ganhará tanto. Não era nada de brilhante, mas razoável, e eu já dava graças a Deus de ter o razoável. — E Vossemecê então poderá começar a trabalhar. E começamos então. Aí passei a receber clientes, minha vida profissional começou a se desenvolver, a tomar corpo, e uma grave preocupação saiu do meu espírito 576. Depois mudei o escritório para um conjunto na rua Quintino Bocaiúva 176, num dos melhores prédios de escritório de São Paulo naquela época. Era um prédio muito grande e com boas salas. Advoguei ali por muitos anos. Eram duas salas: uma a minha, a

575 SD 3/9/88. 576 SD 17/9/88.


153 outra era sala de espera e sala do Dr. Paulo. * Nesse conjunto havia um ângulo, um cantinho do corredor que não era aproveitado. Nesse cantinho plantou-se uma semente, de início de tamanho insignificante. O Dr. Adolpho Lindenberg, recém-formado, pôs ali uma espécie de biombo, e montou o seu escritório de engenharia. Mas tão inicial que a mesa de desenho desse escritório era a folha de uma porta que ele arranjou não sei onde e que servia para fazer os desenhos. Entrou depois como sócio dele um rapazinho extremamente vivo chamado Plinio, e que era o Plinio Xavier da Silveira577.

3. Inesperada visita e advocacia da Ordem do Carmo Lá por volta de 1940, Dr. Paulo e eu começamos a advogar para a Ordem do Carmo 578. Fomos advogados dessa Ordem durante uns 10 ou 15 anos579. Não pensem que os carmelitas me procuraram por eu ser um católico conhecido580. Foi uma coisa diferente. Eu estava no meu escritório, ouço baterem na porta: “Entre!” Entraram pela sala 581 um Padre magro, alto, simpático, já idoso, com uma fisionomia respeitável, mas de não brasileiro. E, junto, um brasileiro mais velho 582, cearense de olhar vivo, baixinho, com chapéu de coco na cabeça583. Eu não conhecia nenhum dos dois. O padre se revelou desde logo de muito poucas palavras. E pelo contrário, o meu nordesto de muitas palavras. apertei.

Ele avançou rumo a mim, estendendo a mão, que eu naturalmente

Vi que era uma pessoa de consideração. Depois vim a saber que tinha sido um líder católico, mas tão anterior à minha militância no

577 Chá 27/2/92. 578 SD 4/11/72. 579 Almoço EANS 9/4/87. 580 SD 4/11/72. 581 Chá 27/2/92. 582 Almoço EANS 9/4/87. 583 Chá 27/2/92.


154 movimento católico, que eu não me lembrava dele 584. Ele disse: — Dr. Plinio, eu sou o Desembargador Primitivo Sete, já aposentado 585. E me apresentou ao padre: — E este aqui é Frei Canísio Muldermann, holandês, Provincial da Ordem do Carmo. se.

— Ah! muito prazer em conhecê-los, tenham a bondade de sentarFrei Canísio: — Prazer... Só. Mas era um bom homem586.

O senhor mais velho, que era visivelmente o que promovia os fatos, saiu-se com uma tirada que eu nunca imaginei: — Eu até aqui advoguei para a província carmelitana fluminense, aqui representada pelo Frei Canísio Muldermann. E eu queria entregar para o senhor o último cliente meu e encerrar todas as minhas atividades de advogado. Para mim este meu ato tem um valor simbólico, pois é uma ocasião para prestar homenagem a um homem ao qual eu tive a maior admiração, e que era o seu tio-avô, o Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira. Fui um grande admirador do Conselheiro por isso, por aquilo, por aquilo outro. E eu, dando ao senhor o meu último cliente, eu o faço ao portador do mesmo sangue que o Conselheiro e com isto homenageando o Conselheiro 587. Eu nunca imaginei que através do Conselheiro João Alfredo algum dia me viesse um cliente. Era a coisa que eu menos podia imaginar no mundo588. Eu disse: — Oh! Desembargador, quanta honra, quanta bondade, eu me sinto muito honrado. E disse a ele todas as amabilidades que se dizem nessas ocasiões. E dirigindo-me a Frei Canísio: 584 Almoço EANS 9/4/87. 585 Chá 27/2/92. 586 Almoço EANS 9/4/87. 587 Chá 27/2/92. 588 Almoço EANS 9/4/87.


155 — Espero que eu possa ser um sucessor do desembargador Primitivo Sete à altura do nível de advocacia a que ele habituou o senhor; espero desempenhar-me bem. Despedimo-nos e ficou combinado um encontro com Frei Canísio para começar o serviço. * Frei Canísio era um holandês alto, quieto. Era uma torre 589. Já idoso, cabelo branco, tinha uma particularidade curiosa: umas sobrancelhas com uns fios compridos, que pareciam bigodes colocados sobre os olhos590, formando dois tufos. Tinha um sotaque holandês muito acentuado e quando era dito qualquer coisa que o deixasse perplexo, ele dizia: “hhomem, hhomem” e coifava a sobrancelha 591. Não era de muita conversa: tratava dos assuntos dele, mas era muito cordial, amigo 592. Era um homem imensamente apreciável, respeitável, tal como alguns padres da antiga geração: muito direito, muito honesto, levando os negócios da Ordem do Carmo no fio, e sabendo zelar pelos interesses dela593. Ficou muito nosso amigo, convivíamos muito bem, ele ia muito ao escritório porque precisava tratar dos negócios da Ordem. Um dia eu disse a ele: — Frei Canísio, tal Companhia está querendo comprar tal ilha assim, que a Ordem tem em tal lugar. Eles oferecem tal preço, e o preço é muito bom. — Ho, ho! Pode ser, pode ser... eles.

Perguntei ao Frei Canísio como fazer para entregar a escritura para Resposta de Frei Canísio:

— Ah! é difícil. Não pode ser. Eles têm que examinar a escritura em casa. — Mas Frei Canísio, não é o hábito comercial. O indivíduo entrega ao advogado os títulos e o advogado entrega-os para o comprador. — Não. É um título de doação que vale mais do que a ilha. — Como é essa história?

589 Chá 27/2/92. 590 SD 16/7/88. 591 SD 4/11/72. 592 Jantar EANS 15/6/82. 593 Chá 27/2/92.


156 Ele disse: — É um título assinado pelo próprio rei Filipe II, quando era rei do Brasil, dando a ilha de presente para Ordem do Carmo! Eu dei risada e disse para a companhia: “Se os senhores quiserem, mandem lá um advogado. Mas ele não permite que esse título saia lá do convento”. E expliquei a situação. Eles também acharam graça e parece que mandaram lá o advogado. O negócio fez-se em Santos 594. De repente ele morreu e vieram outros mais moços. E os mais moços eram bem mais falantes. Então, longas conversas sobre política brasileira. Mas o tema predileto deles era a Holanda. Adquiri mais conhecimento da Holanda nesse tempo do que em toda a minha vida! Conversas sobre Holanda, colônias da Holanda, iam longe!595

4. Serviços advocatícios para o Mosteiro São Bento Havia também a advocacia do Mosteiro de São Bento, que me fora dada por meio de Monsenhor Pedrosa. Os dois procuradores do Mosteiro eram Dom Desidério Schmitz e Dom Aidano Ebert, ambos alemães, muito amáveis 596. Dom Aidano era muito gordo. Mas tinha maintien (postura), longamente ensinada nos noviciados e conventos beneditinos 597. Já Dom Desidério era esguio, alto 598, muito delicado, muito fino, tinha sido banqueiro antes de ser monge beneditino. Mas tinha rompido com o mundo do banco, e resolveu entrar para um mosteiro da Ordem na Alemanha 599. Era bem moço ainda, parecia uma figura medieval, com uma cabeça bem proporcionada para o corpo, cabelo rapado à beneditino, alourado, de olhos azuis, inclinações agradáveis, homem inteligente 600. Ambos iam tratar de negócios comigo na hora em que o escritório estava fechando. Os dois, em geral, entravam muito risonhos. Mas eu, já conhecendo bem o estilo alemão, mandava vir sanduiches do bar e umas cervejas601.

594 SD 16/7/88. 595 Jantar EANS 15/6/82. 596 SD 16/7/88. 597 Jantar EANS 15/6/82. 598 Palavrinha 30/6/92. 599 SD 16/7/88. 600 Jantar EANS 15/6/82. 601 SD 16/7/88.


157 Tratavam dos negócios, mas estavam muito mais interessados na conversa. E os dois tomaram o hábito de, cada vez que vinham fazer uma consulta, terminada esta, ficarmos conversando por horas. E a conversa às vezes ia até tarde. Eles já vinham com a provisão de cigarros (fumavam como uma chaminé). Às vezes eles estavam em desacordo comigo em matéria de doutrina, pois já eram meio liturgicistas 602. E nós nos atracávamos, discutíamos. Mas eles, com largueza de espírito, gostavam, achavam interessante e também me atacavam. Eles diziam que a minha espiritualidade era espanhola. Eu respondia: “Está muito bem. Espanhola, seja o que os senhores quiserem: mas é católica! Agora vamos ver”603. O gosto dos dois padres pela conversa era tão fenomenal, que uma vez eles foram visitar a Congregação Mariana e o Legionário, chegaram por volta das 8:30 da noite e a conversa se prolongou até as 4 horas da manhã. Como de costume, eu tinha mandado vir cervejas e outras coisas. Mas a partir da meia-noite vigorava a lei do jejum. Eles iam celebrar, eu ia comungar e, portanto, não podíamos comer. manhã.

Assim, depois da meia-noite, a conversa foi a seco até as 4 horas da

5. Calúnia soez de um parente de Dom Motta Um dia, os dois beneditinos foram me visitar e entraram na sala com uma certa solenidade que não tinham normalmente. Eu percebi que havia surgido algum problema. Dom Desidério tomou a palavra: — Uma coisa desagradável tenho para lhe dizer. Parece que as nossas relações estão abaladas, porque realizamos um grande capítulo dos beneditinos sob a presidência do Arquiabade. E apresentou-se o Sr. Fulano de tal, católico militante, comendador da Santa Sé, um medalhão do Movimento Católico, o qual declarou que, pela simpatia que nos tinha, iria fazer uma comunicação a respeito do senhor. Ele recomendou que nós tivéssemos cuidado, porque o senhor é muito bom católico, pessoa muito agradável de trato, mas ignora completamente a advocacia. E contou-nos 602 Jantar EANS 15/6/82. 603 SD 16/7/88.


158 que o Padre Riou, Provincial dos jesuítas em São Paulo, tinha uma queixa muito grande contra o senhor. Os jesuítas quiseram reformar os estatutos legais deles, o senhor meteu a mão e foi um tal desastre que ficaram ameaçados de fechamento, de perda de propriedade, de tudo. Ora, o grande serviço que temos para o senhor no momento é exatamente a reforma dos nossos estatutos. Então o Capítulo Geral, muito impressionado com isto, mandou dizer ao senhor que lamenta muito, mas que não pode continuar a tê-lo como advogado. Eu: — Só isso, Dom Desidério? Dom Desidério: — Não é pouco! Eu: — Não é nada! Eu conheço o Padre Riou, e exijo que os senhores venham comigo falar com ele amanhã, para ouvir da boca do Padre Riou que isto é uma mentira, uma calúnia torpe. Eu nunca fui advogado deles. Grande alívio deles. Dom Desidério: assim.

— Mas nós nunca pensamos que tal homem houvesse de mentir Respondi: — Bom, o senhor vai ouvir do Padre Riou.

Peguei o telefone, liguei para o Padre Riou no Colégio São Luís e pedi uma hora. O Padre Riou marcou o encontro e no dia seguinte fomos os três falar com ele. Entrou o Padre Riou na sala, não se conheciam. O Padre Riou era francês, eles dois (os beneditinos) alemães. Foram feitas as apresentações. Nenhum calor de parte a parte. Sentaram-se e eu disse: — Fulano de tal disse em tal lugar, a meu respeito, tal coisa. Foi isso que os senhores me disseram, ou não? Os beneditinos: “Sim, foi”. Eu: — Agora, Padre Riou, o senhor irá dizer o que há de verdade nisso. O Padre Riou respondeu: — Depois que falei com o senhor pelo telefone, eu estive pensando. Estou como Provincial aqui apenas há três ou quatro anos e o Sr. está


159 formado há mais tempo do que isso. Então fui me informar com meus antecessores se havia alguma coisa com o senhor, e eu posso confirmar que o senhor nunca advogou para nós, nunca mexeu nos nossos estatutos, nunca lhe consultamos. Aliás, os estatutos são de 1900 e até agora estão intatos. Dei um sorriso e disse: — Bem, foi num ano em que eu nem havia nascido. Os dois deram risada, ficaram contentes e disseram: “Vamos comunicar a quem de direito”. Eu: — Não. Isso não pode ficar assim. Eu quero pedir ao Padre Riou o favor de me dar uma carta dizendo isto tudo e esta carta os senhores vão ler para o Capítulo Geral e mostrar. Padre Riou escreveu a carta, eles levaram e ficaram de mostrar no Capítulo. * Depois do Capítulo, à tarde aparecem os dois beneditinos no meu escritório de advocacia. Perguntei como tinha sido o Capítulo Geral e disseram: — Foi um desaponto como o senhor não queira saber. Chegamos lá, perguntaram se havíamos despedido Dr. Plinio, e respondemos que não, que tínhamos feito uma coisa melhor ainda: o tínhamos conservado. Exclamação geral: — Mas, como?!!! Diante de fatos narrados por um homem de uma veracidade indiscutível, o senhor ainda o conserva?! Dom Desidério tira então a carta do Padre Riou e mostra* 604. * Esta carta foi encontrada entre os documentos guardados por Dr. Plinio e tem o seguinte teor: “A pedido de V. Rvma. venho declarar que, tendo a Companhia de Jesus, há muitos anos, um profissional a quem encarrega de seus serviços jurídicos, jamais se nos ofereceu oportunidade para solicitarmos ao Dr. Plinio Corrêa de Oliveira qualquer consulta ou trabalho de natureza profissional. Carece, pois, do menor fundamento a afirmação de que Dr. Plinio Corrêa de Oliveira teria cometido algum erro técnico em negócios concernentes à Companhia de Jesus, a qualquer obra, associação ou instituição por ela mantida ou dirigida.

604 Jantar EANS 15/6/82.


160 “Com referência aos nossos estatutos civis, mais particularmente, cumpreme informar que datam de 15 de agosto de 1900, época em que o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira não era nascido. Até agora tais estatutos não foram reformados e sobre eles jamais foi ouvido o mesmo senhor. “Esperando que esta declaração elimine qualquer versão desairosa em sentido contrário, apresento a V. Rvma. os sentimentos de minha religiosa estima, recomendando-me às suas orações e SS. Sacrifícios. “De V. Rvma. etc. etc.” (Carta do Padre Riou a Dom Aidano Erbert O.S.B., 18/6/43). — Era uma calúnia tão clamorosamente injusta, e inserida dentro do contexto de uma campanha surda de difamação que soprava contra Dr. Plinio, que Dom Antonio de Castro Mayer, na época apenas Monsenhor, sentiu-se na obrigação moral de relatar o acontecido ao Sr. Núncio Apostólico, Dom Aloisi Masella, em carta datada de 9/9/44, e da qual destacamos o seguinte tópico: "Talvez em toda esta campanha não esteja alheio também o Comendador "X". Pois, como é sabido, este senhor, abusando da confiança que seu exterior religioso cria nos meios católicos, tem desenvolvido ultimamente uma campanha de difamação contra o Dr. Plinio, e, em geral, [contra] nós do Legionário. Mais especialmente ainda, depois da nomeação do novo Arcebispo, em quem talvez pense poder contar devido ao parentesco de Sua Excia. com sua senhora. Já em tempos atrás, para ver se prejudicava ao Dr. Plinio nos negócios de advocacia, não teve dúvida de falsificar um texto de lei, no intuito de convencer aos RR. Monjes Beneditinos de que o Dr. Plinio era um incapaz em questões jurídicas. Nesta mesma ocasião, andou propalando que o Dr. Plinio tinha prejudicado enormemente aos Jesuítas em negócios semelhantes, quando é certo que o Dr. Plinio jamais teve negócios de advocacia com os RR. PP. Jesuítas. Sobre todo esse tristíssimo caso R. P. Riou pode dar testemunho, porque sabe de fatos, e viu documentos que o deixaram definitivamente convencido".

* Não quero dar o nome do homem que me havia caluniado. Não guardei o mínimo rancor e resolvi não brigar com ele. Lembro-me que tempos mais tarde, estando eu na Cúria, vi uma roda constituída pelo novo Arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva605, pelo Arcebispo de Belo Horizonte, Dom Antonio dos Santos Cabral (o qual tomaria depois atitudes virulentas contra o meu livro 605 — Dom José Gaspar de Affonseca e Silva (Araxá-MG, 1901-São Paulo, 1943) fez os cursos universitários, Filosofia e Teologia no Seminário Provincial em São Paulo e no Colégio Pio-Latino Americano, em Roma. Graduou-se pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e fez doutorado em Direito Canônico. De 1934 a 1937 foi reitor do Seminário Central do Ipiranga. Nomeado Bispo Auxiliar de São Paulo em 1935 durante o pontificado de Dom Duarte, sucedeu-lhe após a morte deste em 1939, sendo então elevado a Arcebispo Metropolitano. Se de um lado confiou a Dr. Plinio a presidência da Junta Arquidiocesana da Ação Católica (em 11/3/40), em um dos postos de maior importância do laicato, de outro lado foi a peça-chave para a introdução das ideias novas nos meios católicos de São Paulo. Faleceu no dia 27 de agosto de 1943, no Rio de Janeiro, aos 42 anos de idade, em trágico desastre de avião. A aeronave em que viajava chocou uma das asas em um paredão da Escola Naval, localizada junto ao Aeroporto Santos Dumond, caindo em seguida nas águas da baía. O Legionário n° 577, de 29/8/43, traz amplo e detalhado noticiário desse desastre.


161 Em Defesa da Ação Católica), e por esse leigo que me caluniou. E vi Dom José Gaspar apresentar esse leigo ao Arcebispo de Belo Horizonte, como grande amigo: — Ele é grande amigo meu e parente do Arcebispo de Maranhão, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta. O Arcebispo de Belo Horizonte, ao saber que ele era parente de Dom Motta, abriu os braços e se abraçaram efusivamente606.

6. Amizade sólida com Dom Desidério e Dom Aidano, apesar das diferenças Em várias ocasiões, Dom Desidério deu prova cabal de verdadeira sustentação a minha pessoa. E Dom Aidano entrou na luta contra Dom Pedrosa, isto mais tarde, por ocasião do affaire em torno do livro Em Defesa da Ação Católica, por solidariedade comigo. Dom Aidano era prior de um convento de beneditinos muito gracioso em Santos, localizado numa zona montanhosa. Acima dele só tinha o Arquiabade. Certa vez fui lá visitá-lo e encontrei logo na entrada uma imagenzinha de madeira de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, inundada de gáudio e pisando aos pés uma série de cabecinhas de padres. Eu dei risada e disse: — Que é isso, Dom Aidano? A gente entra no seu convento e logo de saída vê um acesso de anticlericalismo? — Doutor, estes são os heresiarcas, quase todos padres... Então tem Nossa Senhora pisando cabeça de padres. Veja um pouco. Aparecia a cabeça daqueles heresiarcas até o pescoço, e podia-se distinguir a ordem religiosa a que pertenciam pelo pedaço de hábito que ficava em cima. Então havia beneditinos, dominicanos, agostinianos — entre eles Lutero, naturalmente. Eu disse a ele: — O senhor me daria licença de publicar uma fotografia dessas no Legionário? — Pois pode, Doutor, é a verdade histórica! 607.

606 SD 16/7/88. 607 MNF 24/4/92.


162 * Não muito tempo depois, deixei de dar aulas e também de advogar, para dedicar meu tempo inteiramente à causa católica e comecei então a aplicar-me full time ao apostolado608.

Capítulo III “O Legionário” (1935-1947) 1. Remodelagem: de publicação paroquial a semanário com projeção nacional No ano de 1935, eu me tornei diretor efetivo do Legionário 609. Uma vez que a Liga Eleitoral Católica tinha sido fechada, escrevi a Dom Duarte pedindo o mobiliário da LEC para o Legionário. Era um bem bom mobiliário. Eram bonitas cortinas, escrivaninhas, tapetes, móveis de couro. E mandei instalar esse mobiliário na sala da diretoria do Legionário, para comunicar a esta uma certa categoria, um certo prestígio, e assim fazer entender que não era um jornalzinho religioso qualquer. Obtive do vigário de Santa Cecília quase todo o andar térreo da sede da Congregação Mariana de Santa Cecília, e mobilizei um grupo de amigos para me ajudar a reformular completamente o jornal, numa tentativa de transformá-lo no primeiro jornal católico do Brasil, combatendo na direção que nós queríamos 610. Um certo número de padres combativos colaborava no jornal. Entre outros, o padre jesuíta Arlindo Vieira, que manifestava para conosco uma extraordinária simpatia. Tinha a cultura de grande classe dos jesuítas. Escrevia artigos muito combativos contra Maritain 611, contra Tristão de 608 Almoço EANS 10/4/87. 609 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54 — A primeira vez que constou o nome de Dr. Plinio como diretor do Legionário foi no número 125, de 6/8/33, quando Dr. Plinio ainda era deputado constituinte. Tendo ele assumido efetivamente a direção em 1935, já no ano seguinte, ou seja, em seu número 203, de 2/8/36, o jornal passou de quinzenário de duas folhas a semanário de oito páginas, saindo todos os domingos. A 11 de abril de 1938, foi fundada a sociedade de capital aberto Legionário S/A, que passou a gerir a publicação, tendo o claro intuito de, com o tempo, transformar o Legionário em diário católico, meta que acabou não sendo alcançada pelas injunções que serão abordadas mais adiante. 610 SD 23/6/73. 611 — Jacques Maritain (1882-1973) foi um escritor e pensador francês convertido ao catolicismo, cuja linha de pensamento variou desde a rejeição do movimento modernista e adesão à Action Française, até à profissão do Humanismo Integral dentro de um Estado laico "vitalmente cristão", mesmo que constituído por ateus. Como tal, foi um dos grandes responsáveis pela política da mão estendida em relação ao comunismo, e um dos principais ideólogos da democracia cristã latino-americana. Ele esteve na raiz da


163 Athayde e contra toda a escola liberal-católica que ia se formando. Igualmente Monsenhor Ascânio Brandão, que escrevia a coluna Pregando e martelando, cujo título já indica o caráter polêmico dela. Ele era de Pindamonhangaba. Depois passou a ser vigário de São José dos Campos. Pertencia á diocese de Taubaté, que abrange toda aquela zona. Bem alto, tez morena, com todo o modo afável dele, era um homem realmente polêmico e combativo 612. Também Monsenhor Antonio de Castro Mayer, que fazia a Coluna Católica comentando o Evangelho. Era uma seção muito apreciada, na qual os padres se baseavam para fazer o sermão. Convidei, dentro da Congregação Mariana de Santa Cecília, todo mundo que era intelectualizável, como também convidei congregados de nível universitário de outras Congregações para fazerem o Legionário junto conosco. E assim alguns outros colaboradores se destacaram desde logo613. Os católicos verdadeiramente corajosos, amigos da polêmica e de espírito batalhador, apoiavam o jornal. Também pessoas de espírito mais acomodatício, que não faziam muita questão da luta, mas ainda não eram “ecumênicas” como as de hoje, apoiavam-nos igualmente, porém com menos entusiasmo. Tínhamos então um núcleo seguro de partidários, e depois pessoas que aplaudiam e assinavam, mas que não levavam a batalha até o ponto que deveriam levar 614. * Foi assim que, em torno do Legionário, começou a se desenvolver a semente da TFP615. Entre os que desde a primeira hora me seguiram estavam 616: Paulo Barros de Ulhôa Cintra, Adolpho Lindenberg, Fernando Furquim de Almeida, José de Azeredo Santos, José Benedito Pacheco Sales, José Carlos Castilho de Andrade, José Fernando de Camargo, José Gonzaga de

criação, em 1947, da Organização Democrata-Cristã da América (ODCA). Seu pensamento influenciou profundamente Alceu Amoroso Lima e toda a corrente de esquerda católica brasileira e latino-americana. 612 SD 18/3/89. 613 SD 25/8/73. 614 SD 18/3/89. 615 SD 23/6/73. 616 SD 18/2/89.


164 Arruda 617. Pode-se dizer que a TFP nasceu do Legionário 618.

2. Meta do “Legionário” A meta que tínhamos para o Legionário era a seguinte. Os jornalistas católicos daquele tempo, com exceção de uns poucos, tinham horror à polêmica e viviam de arranjos com a Revolução. Não a elogiavam mas também não a atacavam. Fingiam que não percebiam que ela existisse. Eu ouvira falar de dois jornalistas que constituíam exceção, mas que eram anteriores à minha entrada no Movimento Católico: Jackson de Figueiredo e Carlos de Laet. O gênero vigente era, chegado o mês de Maria, publicar por exemplo um artigo intitulado: Açucena, com umas florezinhas desenhadas à mão em volta, e dentro uma poesia de uma Filha de Maria. Nesse estilo era redigida a maioria dos jornais católicos, lidos apenas pelos que frequentavam a sacristia e aquele meiozinho paroquial. Eram na verdade boletins internos para satisfazer o ambiente da paróquia. Assumindo a direção do Legionário, eu formei o projeto de abrir todas as janelas, todas as portas, fazer entrar largamente os ventos da política nacional, internacional, dos problemas culturais, filosóficos, teológicos. E de tratar esses temas em estilo combativo, escrevendo com a ponta da espada, e mantendo uma polêmica contínua com mais ou menos todo o mundo oposto ao espírito católico 619. * Inicialmente, o Legionário teve uma certa tendência de se dirigir ao grande público, com o interesse de conquistá-lo. Era portanto em parte escrito para converter aqueles que não eram católicos, e em parte feito para afervorar e orientar os que já eram católicos. Lendo o jornal Sept, que, apesar de servir à corrente liturgicista, tinha muita garra, compreendi que essa visualização teria de ser retificada. E percebi que um jornal pequeno, ou ele se dirige para um público especial, pequeno mas influente, e através desse público influencia todo o conjunto, ou não conseguiria vingar. Sept era um semanário francês com aproximadamente o mesmo número de páginas do Legionário. E era organizado de um modo vivaz, possuía paginação atraente, tratava de temas atuais, candentes e delicados 617 Um homem, uma obra, uma gesta, cit. 618 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 619 SD 18/2/89.


165 da França daquele tempo, intervindo assim nos acontecimentos, influenciando-os 620. Seguindo este exemplo, o Legionário deixou de ser um jornal feito para converter os não-católicos, e passou a ser um jornal destinado a orientar os que eram católicos. Não quaisquer católicos, mas os participantes do Movimento Católico, então constituído pelos católicos mais fervorosos, que iam sempre à Missa dos domingos e que, em geral, pertenciam a associações religiosas: formavam um conjunto que dedicava uma parte de seu tempo, ou todo o seu tempo, a favorecer por sua atuação a Igreja Católica, a expansão da Fé. Eu entendia bem que, agindo sobre esse público, orientando-o, formando sua mentalidade, teríamos possibilidade de influenciar o conjunto dos acontecimentos no Brasil 621.

3. Órgão oficioso da Arquidiocese de São Paulo O Legionário começou assim a se difundir muito 622. Em pouco tempo transformou-se em uma das publicações mais expressivas da imprensa católica do Brasil, sendo lido de ponta a ponta do País por causa das atitudes que tomava623. Quando Dom José Gaspar foi nomeado Arcebispo de São Paulo, no começo as relações nossas com ele eram cordiais. E eu obtive dele com facilidade que o Legionário fosse elevado à condição de “órgão oficioso da Arquidiocese”. De maneira que o Legionário transmitia até certo ponto a voz e o pensamento do Arcebispo, característica esta que lhe dava muito prestígio 624. 620 — Em correspondência enviada em 1947 a Dom Manuel d'Elboux, então Bispo de Ribeirão Preto e depois Arcebispo de Curitiba, Dr. Plinio assim caracteriza o semanário Sept: "Na França, o movimento litúrgico era sobretudo orientado pelo semanário Sept, que não se preocupava tanto com o problema litúrgico propriamente dito, — se bem que dele cuidasse dentro dos princípios gerais da corrente — quanto desenvolvia os princípios políticos e sociais professados pelos adeptos do liturgicismo. "O semanário Sept era órgão de todo um grupo de intelectuais, reunidos em torno do prestígio intelectual dos dominicanos franceses da província de Toulouse. Um dos chefes do grupo era o Sr. Jacques Maritain, verdadeiro pontífice da corrente, cujos livros eram considerados, todos, como repositório da doutrina coletiva da qual nenhum membro poderia discordar sem ‘apostasia’. "A doutrina social de Sept foi tão audaciosa, sustentou de tal maneira a necessidade de uma temerária cooperação dos católicos com o comunismo, que o próprio Mestre dos Sagrados Palácios Apostólicos, o Padre Cordovani, OP, publicou no Osservatore Romano um forte artigo contra tais erros. A revista estampou o artigo, dizendo que o fazia forçada pela Santa Sé". 621 SD 4/3/89. 622 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 623 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 624 SD 18/3/89 — O Legionário só foi retirado das mãos de Dr. Plinio em dezembro de 1947 por ordem


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4. Ponto de referência dos católicos do Brasil inteiro O Legionário começou, assim, a pesar na vida interna dos movimentos católicos e nas discussões dos católicos do Rio, de Minas, de Porto Alegre, de Recife. Além disso, repercutia em Montevidéu, Buenos Aires, um pouco em Santiago do Chile, que já ficava mais distante. Algumas repercussões na Europa também. Muito raramente nos Estados Unidos. Tendíamos a transformá-lo em diário, que era a minha meta: ter um cotidiano. O Legionário transformou-se assim em um meio para o exercício de influência de nosso grupo e de nossas ideias contra-revolucionárias no Brasil625.

5. Visita de rigor para os católicos estrangeiros Era de rigor que, vindo qualquer grande personalidade estrangeira católica a São Paulo, ela fosse visitar o Legionário. A visita ao Legionário era ponto de honra para um estrangeiro católico. Recebemos assim a visita do famosíssimo teólogo dominicano Padre Garrigou-Lagrange. E também a do Almirante Shingiro Yamamoto (ele era católico e líder religioso no Japão). Também éramos visitados por pessoas de relevo do meio católico brasileiro. Por exemplo, tendo Dom Cabral 626, Arcebispo de Belo Horizonte,

de Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, então Cardeal-Arcebispo de São Paulo. Depois continuou a ser publicado sob outra direção. Nove anos depois, ou seja, em 25 de janeiro de 1956, foi substituído pelo atual O São Paulo. Em O São Paulo, Dr. Plinio não teve nenhuma participação, e sua orientação foi diametralmente oposta à do antigo Legionário. O São Paulo é hoje órgão oficial da Arquidiocese; o Legionário era órgão oficioso. 625 SD 18/2/89 — Padre Arlindo Vieira transmitiu em carta a Dr. Plinio um comentário elogioso que ouvira do famoso Padre Leonel Franca: “Para animá-lo, vou referir-me ao que me disse há uns quatro ou cinco anos o P. Franca. Lamentávamos a falta de um jornal católico no Rio, que os que passam por tal não merecem esse nome. São semanários em geral mal orientados e que nenhuma repercussão têm em nosso meio. [E então] disse-me o P. Franca: ‘Não é o lado financeiro que nos preocupa. Sua Eminência [Dom Leme] poderia sem grande dificuldade levantar em pouco tempo alguns milhares de contos para esse fim. Mas... a quem entregar o jornal? Não temos gente bem formada. Isso só será possível quando tivermos meia dúzia de Plinios’". 626 — Dom Antonio dos Santos Cabral (1884-1967) foi Bispo de Natal (1917-1921), primeiro Bispo (1921-1924) e depois Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte (1924-1967). Veio a se tornar um inimigo acérrimo de Dr. Plinio e do Legionário depois que aderiu à corrente progressista nascente. Consta que chegou mesmo a mandar queimar em reunião da Ação Católica o livro de Dr. Plinio que tratava dos desvios do movimento.


167 constituído um diário naquela cidade, o Diário Católico, no qual colaborava um bom número de intelectuais mineiros, certa noite fui surpreendido pela visita de todo o corpo de direção daquele jornal. Tinham vindo de Minas para combinar comigo uma colaboração e uma linha comum de ação entre o Legionário e O Diário. Até que surgisse a crise da Ação Católica, as relações foram assíduas e cordiais 627. Em São Paulo, a Federação Mariana congregava e dirigia todas as Congregações Marianas do Brasil. Mas o elã estava no Legionário, que representava de longe a aile marchante do Movimento Católico em São Paulo628. Havia, no geral do Movimento Católico, uma espécie de confiança intuitiva no Legionário, por onde uma opinião dada por este era tida pelo laicato católico como indiscutível629. * Muitos anos depois, conversando com um diretor da TFP, um Arcebispo de Belo Horizonte fazia essa queixa: que foi necessário me derrubarem, porque quando eu aparecia em público, em reuniões nas quais havia também Bispos, eu era mais aclamado que os Bispos630. Dizia ainda que tinha sido necessário quebrar a minha autoridade moral, pois eu havia adquirido tal influência pessoal que, se um leigo soubesse que eu estava em desacordo com um Bispo, o leigo teria escrúpulos de entrar em desacordo comigo e não teria escrúpulos de entrar em desacordo com o Bispo. É possível que ele tenha exagerado. Mas o exagero tinha certo fundo de verdade. O povo já desconfiava um tanto dos Bispos silenciosos (naquela época ainda não eram progressistas) e amava os chefes duros e fortes, que desejavam entrar em combate631. Se a autoridade eclesiástica continuasse a nos prestigiar, nós poderíamos transformar a ala intermediária dos católicos e obter que ficasse realmente contra-revolucionária. As portas estavam abertas para tudo! Pode-se calcular como o Brasil, cujo papel no século XXI está se delineando com tanta clareza, estava apontando para um ponto muito alto. 627 SD 18/3/89. 628 Jantar EANS 17/6/82 — A este propósito comentava o insuspeito Bispo de Nova Friburgo, Dom Clemente Isnard, um expoente da ala liturgicista da Igreja no Brasil: “O movimento mariano havia crescido extraordinariamente no Estado de São Paulo: faziam-se concentrações que eram movimentos de massa nunca vistos” (cfr. Bernard Botte, O.S.B., O movimento litúrgico, Ed. Paulinas, São Paulo, 1978, p. 217). 629 Almoço EANS 8/4/87. 630 Despacho Itália 18/8/93. 631 Despacho Itália 26/3/92.


168 E imaginem o bem que teria feito à Europa e aos Estados Unidos saberem que, num país tão novo, havia esse potencial de Contra-Revolução632.

6. O “Legionário” denunciou reiteradamente a aliança comuno-nazista Dentro dessa orientação, o Legionário tomou atitudes muito polêmicas, de combate a dois males que, além do comunismo, se vinham formando e que marcariam os tempos futuros. Um deles é a penetração do progressismo no Brasil e outro a penetração do nazifascismo. O progressismo, embora assumindo aparências e usando formulações primeiras mais moderadas, era uma corrente que haveria de chegar nitidamente, de futuro e nos seus extremos, a uma posição análoga à do modernismo condenado por São Pio X. Já a corrente nazifascista haveria de suscitar no Brasil, sobretudo entre os anticomunistas, um grande entusiasmo, devido ao espírito polêmico da época, o qual levava à convicção de que acabar com o perigo comunista à paulada e pela violência era uma legítima defesa do País. Desta forma, numerosos eram os católicos que viam no nazismo e no fascismo uma solução. Menos o Legionário. Complicava ainda mais a situação o fato de que essas duas correntes (o progressismo e o nazifascismo) pareciam opostas entre si. Essa visualização errônea trouxe como consequência uma tríplice polêmica, travada muitas vezes dentro dos meios católicos, entre progressistas, nazifascistas e católicos ortodoxos da antiga linha633. A grande tragédia da luta entre nazismo e comunismo, entre fascismo e democracia, não foi tanto o extravio completo dos que já eram maus, mas a ruína, a confusão, a dilaceração interna entre os que eram bons 634. * Um exemplo dessas dificuldades: quando em certo momento o Legionário entreviu que haveria uma aliança entre nazistas e comunistas, e publicou que devia estar em gestação um pacto entre a Rússia e a Alemanha 635, houve uma reação de desagrado muito acentuada, sobretudo da parte das direitas, porque a nossa previsão tomava um caráter de crítica 632 Jantar EANS 17/6/82. 633 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 634 Mystici Corporis Christi, Legionário nº 585, 24/10/43. 635 RR 8/7/89.


169 ao nazismo, que então se apresentava como o partido condestável da luta anticomunista636. Daí a alguns dias deu-se o pacto Ribbentrop-Molotov 637. Os dois diplomatas pactuaram uma porção de pontos, incluindo o domínio da Rússia sobre as pequenas nações do Báltico. Aí foi um “escândalo”: como os do Legionário adivinharam isso? 638 Produziu naturalmente um murmúrio geral. O próprio Arcebispo, Dom José Gaspar, que não simpatizava com a nossa posição, convidou-me a passar pelo Palácio para uma explicação: como é que eu tinha sabido disso antes de acontecer? Eu disse: “Senhor Arcebispo, eu não sei dizer. O que eu sei dizer é que isso me veio ao espírito naturalmente, pensando”. Ele ficou quieto, não disse mais nada; não gostou nada também639. 636 RR 3/6/89 — A denúncia da afinidade profunda entre nazismo e comunismo foi feita reiteradamente pelo Legionário, chegando até a previsão clara de que um pacto entre ambos se urdia. Alguns rápidos exemplos extraídos daquele hebdomadário: 14/8/38 — O governo mexicano, então comunista, exportou para a Alemanha dois navios carregados de petróleo. A esse propósito, o Legionário nota “a cooperação cada vez mais estreita entre o México comunista e a Alemanha nazista, contrastando com as declarações de Hitler, quando se afirma o campeão do anticomunismo no mundo inteiro”. 28/8/38 — O Legionário nota mais uma vez “o contraste entre as declarações anticomunistas de Hitler e sua política amigável com a Rússia”, lembrando ainda “diversas ofertas feitas pela Alemanha à Rússia depois do advento do nazismo, como a de um crédito de 200 milhões de marcos pagáveis em cinco anos”. 11/9/38 — “Nazismo e comunismo: Por várias vezes, e isso desde há muito tempo, o Legionário assinalou os parentescos ideológicos das duas doutrinas políticas. Em resumo, o fundo, a essência destas doutrinas é a mesma, elas têm ambas um mesmo pensamento central”. 2/10/38 — “Se reduzirmos ao devido valor os termos ‘nazismo’ e ‘comunismo’, a diferença entre ambos é insignificante. [...] Optar entre o comunismo e o nazismo é optar, portanto, entre Lúcifer e Belzebuth, entre o demônio e o demônio”. 4/12/38 — “Como os bolchevistas, os nazistas não respeitam o direito de propriedade”. 1º/1/39 — “Enquanto todos os campos se definem, um movimento cada vez mais nítido se processa. É o da fusão doutrinária do nazismo com o comunismo. A nosso ver, 1939 assistirá à consumação dessa fusão”. 12/3/39 — “Cada vez mais se identificam os dois mais perigosos regimes do mundo contemporâneo: comunismo e nazismo”. 14/5/39 — “Pesem-se bem as palavras: entre um ‘nacionalismo socialista’ e um ‘nacionalismo comunista’, que diferença há?”. No mesmo dia, a Nota Internacional do Legionário observa que “as notícias de um pacto germano-russo não foram desmentidas e que a imprensa nazista cessou suas diatribes contra os sovietes”. Ainda em 7 Dias em Revista, comenta-se a surpresa que essas notícias têm causado em certos meios: “Essa surpresa não a pode ter um observador menos superficial, dada a afinidade ideológica entre nazismo e comunismo, e porque Hitler está realizando uma verdadeira proletarização da vida social em sua pátria”. 6/8/39 — “Se as missões militares francesa e inglesa, que vão a Moscou, fracassarem — o que é bem provável — será certa a neutralidade, se não [a] aliança com o Reich, por parte dos sovietes”. 637 — Assinado no dia 23/8/39, o nome desse pacto vem de que ele foi costurado entre o Ministro do Exterior nazista Joachim von Ribbentrop e o Ministro do Exterior soviético Vyacheslav Molotov. 638 RR 8/7/89.


170 Essas e outras previsões do gênero foram um dos marcos que serviram para assinalar a ascensão do Legionário como órgão de expressão nacional no Brasil, passando assim de órgão paroquial e arquidiocesano, para órgão de expressão nacional 640.

7. Persistência de uma difamação O fascismo e o nazismo morreram. Mas alguns adversários da TFP ainda afirmam que ela foi fascista e nazista. Como resposta, nós apresentamos a eles as coleções do Legionário, para que possam ver com os próprios olhos a polêmica contínua entre a pré-TFP e os fascistas e nazistas do tempo, bem como contra os comunistas. Ficam sem ter o que dizer, pois a polêmica era contínua 641. * O fato concreto é que se estabeleceu dessa forma uma seleção 642. E formou-se toda uma corrente em torno do Legionário, notória em todo o Brasil643. O Legionário teve horas de grande brilho, de grande eficácia, de grande glória 644. Mas ruiu pelas razões que vamos ver. E das ruínas dele nasceu a TFP. De maneira que, em nossa história, cada ruína deixava uma semente maior. E aprouve a Nossa Senhora que, de ruína em ruína, e de “rio chinês” em “rio chinês”645, chegássemos até o nascimento da TFP646.

639 Telefonema Estados Unidos 17/2/95. 640 RR 3/6/89. 641 Entrevista à Professora Nádia Silveira, 13/6/90. 642 SD 18/3/89. 643 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 644 — A esse respeito, D. Clemente Isnard, Bispo de Nova Friburgo e prócer liturgicista, assim descreve o alcance da batalha levada a cabo pelo Legionário: “Composto de pessoas que se entendiam muito bem entre si, o grupo [do Legionário] representava uma espécie de ponta de lança contra o movimento litúrgico. Quem quisesse sofrer [sic] que esperasse a edição semanal de 'O Legionário', onde podia sempre encontrar artigos contra o Movimento e suas manifestações, contra Maritain, contra os 'desvios' da Ação Católica etc.” (cfr. Bernard Botte, O.S.B., op. cit., p. 221). 645 — A expressão “rio chinês” era uma metáfora muito usada por Dr. Plinio para caracterizar os vaivéns do caminho da Providência, antes da realização das esperanças de vitória da Igreja e da civilização cristã. Essa metáfora se baseia no fato geográfico das múltiplas curvas que fazem alguns rios na China, os quais se encaminham rumo ao litoral e, quase chegando ao mar, caprichosamente se desviam e retornam ao continente, dando assim inúmeras voltas antes de desaguar no oceano. 646 SD 23/6/73.


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Parte IV Como foi desviado o Movimento Católico Capítulo I Os inimigos da Igreja colocam a máscara do sorriso Eu alcancei restos do tempo em que a impiedade se apresentava escarnecendo e insultando o bem. Os inimigos da Igreja falavam abertamente contra a Igreja, queriam agredi-la, queriam fechá-la, increpavam-na, caluniavam-na de frente. Caluniavam o Clero, os Bispos, os padres, debicavam dos sacramentos, queriam destruir materialmente as igrejas. Enfim, estavam numa oposição completa contra a Igreja647. Mas tais adversários perceberam que o Movimento Católico se tornara no Brasil uma potência. E as forças do mal entenderam que seria inútil atacar essa potência de frente. Era preciso miná-la, dessorá-la, desviála, dividi-la, de maneira que ela caísse vergada ao peso de suas divisões internas e de sua deterioração 648. Para isto, a impiedade viu que era vantagem mascarar-se e iniciar uma conversa nova com os católicos. Lembro-me do meu desconcerto quando, pelo ano de 1932, dando minhas costumeiras investidas contra os erros, comecei a ver o adversário — que em 1930 me fazia caretas — agora como que me dizer: “Sua lança não me machuca. Você não tomou em consideração que estou mudando, que estou ficando outro?” No fundo, vinha o seguinte recado: “Os séculos mudaram e a Igreja não vai mais ser militante assim. Os inimigos dela passaram a ser mansos e ela também. E, para todo o sempre, essa sua posição combativa deve não só ser posta fora de uso, mas esquecida. Uma nova era começou”. Procurei observar em torno de mim e vi os próprios católicos que aplaudiam a minha combatividade um ano antes, agora olhavam com simpatia para o adversário. E implicitamente davam a entender que, se eu 647 SD 14/6/82. 648 SD 18/6/88.


172 insistisse em minha posição combativa, eles me atacariam649. Pessoas antes resignadas a lutar comigo por verem o adversário fazer cara feia, agora que viam o adversário sorrir, passaram para o outro lado. E eu fiquei só 650. Tristão de Athayde era um grande adepto dessa nova posição. Ele e eu tínhamos fricções violentas a esse respeito. O temperamento dele era todo feito de trato ameno, cordial, de homem fino, muito interessante, de uma conversa agradável. Era o contrário do truculento. Ele dava de si e das coisas que dizia só impressões amenas. Era o literato do ameno, não era o literato do forte. E eu era entusiasta da virtude da fortaleza651. Esta era portanto a nova estratégia do ataque das forças do mal contra a Igreja. Este princípio de ataque procurou minar aquilo que havia de mais ardoroso dentro do Movimento Católico, que era o movimento dos congregados marianos 652. Desarticulada pela base essa força católica, destruía-se o que ela tinha de melhor. E, liquidado isso, o resto se desarticularia. Como isto se fez?653

Capítulo II No terreno político: prestigia-se o Integralismo e desprestigia-se as Congregações Marianas 1. Posição pouco varonil diante do comunismo Considerem a situação em 1934. Movimento mariano pujante, movimento comunista desenvolvendo-se muito também654. A Liga Eleitoral Católica havia se transformado em um mamute 655. Qual era então a esperança natural de todo o mundo? Que o Movimento Católico fornecesse as armas espirituais para abater o 649 Jantar EANS 14/6/82. 650 Reunião com os mais antigos do movimento 16/5/93. 651 Jantar EANS 14/6/82. 652 SD 18/6/88. 653 SD 25/6/88. 654 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 655 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54.


173 comunismo, que o movimento mariano fosse a solução contra o movimento comunista. Seria o curso natural dos acontecimentos. Vivíamos num período em que havia a ideia de que o comunismo era um perigo grave e que só por meio de um regime firmemente anticomunista se resistiria a esse perigo. Essa ideia estava cada vez mais acreditada e todo mundo a achava razoável. E todos que tinham uma mentalidade capaz de ser bem orientada, simpatizavam com um regime anticomunista. Mas, nessa emergência, o movimento mariano começou a tomar diante do comunismo uma posição pouco varonil, que era proveniente, infelizmente, da própria posição pouco varonil das autoridades eclesiásticas. E todo mundo sentia que as Congregações Marianas só poderiam mover-se pela direção da autoridade eclesiástica nesse terreno.

2. Balde de água fria no entusiasmo dos melhores congregados Menciono apenas um caso. Para comemorar o primeiro aniversário da vitória das emendas católicas na Constituinte de 1934, foi convocada pela Federação das Congregações Marianas de São Paulo, para o dia 16 de julho de 1935, uma concentração mariana monstro, na Praça da Sé, em São Paulo 656. Foi precedida por três dias de conferências solenes na igreja de São Bento, feitas por leigos, com uma afluência colossal. A igreja estava repleta. Aí começam a correr boatos de que os comunistas iriam entrar em choque com os congregados marianos. Isto desceu como corisco para todos os congregados que estavam reunidos na igreja de São Bento. E todos ficaram elétricos de contentamento de irem enfrentar, sem armas, os comunistas no Largo da Sé. Dom Duarte estava assistindo, um dia antes da prevista concentração, à sessão solene atrás do órgão da igreja de São Bento, sem ser visto, por estar adoentado.

656 — Esta concentração mariana, para a qual acorreram congregados da capital e de todo o interior do Estado, revestia-se em seu plano inicial de grande solenidade, e estava destinada a marcar de alguma forma a história de São Paulo, com repercussões no Brasil inteiro. O Legionário publicou o seguinte programa, o qual depois foi modificado, como se verá mais adiante: "[No dia 16, às 15 horas], após a passeata pelas ruas principais da cidade, as duas colunas marianas dirigir-se-ão à praça da Sé, onde no alto da escadaria da Catedral de São Paulo estarão as altas autoridades religiosas e civis: o Episcopado, o Governador do Estado, o Secretariado, a Magistratura, o Prefeito Municipal, os deputados à Constituinte [estadual] e os representantes diplomáticos. Falarão nessa ocasião os drs. Plinio Corrêa de Oliveira, Cassio Vidigal, Cônego Manuel Macedo e Padre Antonio de Moraes" (Legionário n° 175, 7/7/35).


174 De repente, ele vê entrar o secretário da Justiça e Segurança Pública, Artur Leite de Barros, que trazia um recado do governador do Estado, Armando Sales, pedindo que ele impedisse aos congregados marianos de desfilar em praça pública, pelo receio de um insucesso com os comunistas. E acrescentou que, se houvesse choque e morresse algum congregado, o governo de São Paulo lavava as mãos. E o velho Arcebispo, de aproximadamente setenta anos, naturalmente pensando nos filhos de família que poderiam morrer, nas mães que poderiam chorar, em outros aspectos sentimentais da mesma tecla, e sobretudo na oportunidade de fazer uma gentileza ao governador do Estado, o que é que fez? Mandou Dom José Gaspar, Bispo Auxiliar nessa ocasião, dirigir-se aos congregados aproximadamente nos seguintes termos: — Meus caros congregados marianos, eu venho vos pedir um sacrifício tremendo, um sacrifício formidável: não fazer amanhã a concentração mariana no Largo da Sé, mas no pátio do Liceu Coração de Jesus. Depois nós faremos o desfile 657. Os congregados marianos receberam essa comunicação com um desapontamento respeitoso, sem revolta, mas com tristeza por não poderem oferecer a vida pela causa católica658. Mas, diante da perspectiva de um desfile posterior, aceitaram mais ou menos bem a ideia da concentração no Coração de Jesus. E a concentração foi transferida do Largo da Sé para o pátio do Liceu. No dia seguinte, realiza-se a concentração. Uma imensidade de congregados marianos! Foi uma das cenas mais bonitas que eu tenha visto em minha vida! Era uma quantidade que correspondia ainda à ideia de qualidade, não era pura inflação. Foi o mais bonito episódio, esteticamente falando, do movimento mariano659. Naquela efervescência, com todo o mundo esperando o momento do desfile, Dom José comunica “outro desejo” de Dom Duarte, “um segundo sacrifício”: que os congregados marianos não realizassem o desfile. Aquilo foi, na concentração, uma espécie de balde de água fria. 657 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 658 SD 4/11/92. 659 — Segundo matéria publicada no Legionário, o número calculado foi de 15 mil participantes. Não há exagero nessa cifra, considerando-se que o prédio do Sagrado Coração de Jesus ocupa dois quarteirões de comprimento, por um quarteirão de largura, sendo o pátio interno de proporções imensas. As fotos do evento mostram esse pátio inteiramente tomado por compacta multidão de marianos (cfr. Legionário n° 176, 21/7/35).


175 Todo mundo sentiu perfeitamente que, no momento em que era preciso tomar diante do comunismo uma atitude máscula, a autoridade eclesiástica queria uma atitude débil. Isto desacreditou o movimento mariano aos olhos dos melhores, dos mais dedicados, daqueles que naturalmente seriam nossos. Quer dizer, foi uma desmoralização das elites do Movimento Católico. E o pior é que toda a conversa, toda a atitude da autoridade eclesiástica estava nessa orientação. Nós, congregados marianos, íamos reagir? Podíamos reagir? Não podíamos reagir quando a palavra de ordem era: “Não se metam na política e não criem dificuldades”.

3. Decepção e migração de muitos para o Integralismo Justamente nesse momento, aparece o Integralismo 660, servido por uma propaganda muito boa da mídia, promovendo desfiles aparatosos, portando camisas verdes, e dando a ideia de uma arregimentação muito forte contra o comunismo. Então, qual era a força naturalmente capaz de reagir? Era o Integralismo. E assim a dialética integralismo-comunismo enlouqueceu os meios católicos, estabelecendo-se a ideia de que quem não era integralista era comunista. E quem não era integralistizante era bolchevizante 661. Alguns elementos excelentes, próximos de nosso grupo, de primeira ordem , pessoas bem inteligentes, se bandearam nessa época para o Integralismo, apesar de todo o meu esforço para os manter no nosso movimento 663. O Integralismo levou muitos e muitos dos nossos elementos e dos melhores. Diziam que não queriam ser congregados marianos, porque a Congregação Mariana era uma bobagem, enquanto o Integralismo é que era positivo664. 662

E mesmo católicos que foram postos de lado pelos integralistas davam um certo apoio a eles, dizendo que era melhor o Integralismo do que o comunismo, e que só o Integralismo poderia salvar o Brasil, e outras coisas do gênero.

660 — O Integralismo se consubstanciava na chamada Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em 7 de outubro de 1932 por Plinio Salgado (1895-1975), escritor, jornalista e político brasileiro. 661 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 662 Almoço 8/5/87. 663 SD 25/2/89. 664 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54.


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4. Ascensão e queda do Integralismo: Estado Novo de Getúlio Vargas Nessa época, Dom Helder Câmara665 tornou-se um chefe integralista no Norte do País, apesar de ser padre. Diz-se que, quando ele foi ordenado padre, ele levou a camisa verde integralista por debaixo da batina, no dia da ordenação. Tristão de Athayde também se dizia simpático ao fascismo e ao Integralismo. E escreveu um artigo aconselhando todos os católicos a entrarem no Integralismo 666. Engrossando muito as suas fileiras, os integralistas começaram a organizar marchas. Realizaram então, na Avenida Paulista, uma manifestação contra o comunismo.

Promoveram também, no Largo da Sé, uma manifestação colossal. Comunistas postados no alto de alguns prédios desse Largo fizeram uma fuzilada em cima deles. Por uma coincidência feliz feriram só uns três ou quatro. Então, houve dispersão. Mas ficou assim provado o “perigo do comunismo” 667. A imprensa informou que tinha sido descoberto um papel revelando que se preparava um tremendo golpe comunista no Brasil. Esse papel teria sido perdido por um judeu chamado Cohen e por isso ficou chamado “Plano Cohen”. 665 — Dom Helder Pessoa Câmara (1909-1999) foi um sacerdote cearense ordenado em 1931. Participou ativamente da Ação Integralista Brasileira, tornando-se em 1937 membro do conselho supremo da AIB, composto de 12 membros. Quando em 1946 o Arcebispo do Rio, Dom Jaime de Barros Câmara o quis como seu Bispo Auxiliar, encontrou dificuldades da parte da Santa Sé, dada a participação que teve no Integralismo. O Papa negou a nomeação, que chegou apenas seis anos depois, ou seja, em 1952, graças à intercessão de Monsenhor Montini, então sub-secretário de Estado da Santa Sé e futuro Papa Paulo VI. Nesse período deu-se a rotação ideológica de D. Helder do Integralismo para o progressismo militante. Sempre com o apoio de Monsenhor Montini, foi o grande articulador para a criação, em 1952, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da qual se tornou Secretário Geral; e da criação, em 1955, do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Teve participação ativa no Concílio Ecumênico Vaticano II e foi um dos propositores do Pacto das Catacumbas, assinado por cerca de 40 Padres conciliares no dia 16 de novembro de 1965, pacto este que teve forte influência, décadas depois, no desenvolvimento da Teologia da Libertação. As divergências de posições com o Cardeal Dom Jaime Câmara tornaram difícil sua permanência no Rio de Janeiro, sendo então designado para Arcebispo de Olinda e Recife, no Estado de Pernambuco, múnus que exerceu até 2 de abril de 1985, quando resignou (cfr. Roberto De Mattei, O Cruzado do século XX — Plinio Corrêa de Oliveira, cit.; e dados de conhecimento geral). 666 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 667 SD 25/2/89.


177 Então o Getúlio, “alarmado”, aproximou-se dos integralistas, teve várias conferências com Plinio Salgado, com Rocha Miranda*. * Rocha Miranda pertencia a uma família de integralistas muito conhecida na época.

E nessas conferências ficou mais ou menos entendido que o Getúlio daria um golpe de Estado, dissolveria a democracia-liberal e chamaria Plinio Salgado para ministro da Educação. No dia 10 de novembro de 1937, o Brasil todo foi surpreendido pela notícia de que o Getúlio tinha dado um golpe, que acarretou a dissolução da Câmara dos Deputados, do Senado e a suspensão da Constituição; os governadores foram nomeados interventores federais demissíveis ad nutum nos Estados em que até o momento eram governadores e o Getúlio promulgou uma Constituição federal de caráter absolutamente fascista668. Mas Plínio Salgado não foi chamado e, para encurtar a história, antes de terminar o mês de novembro, Getúlio declarou dissolvido o Integralismo 669. No ano seguinte, ou seja, 1938, Plinio Salgado exilou-se em Portugal 670.

Capítulo III Nos ambientes católicos, a infiltração do comunismo e da mentalidade modernista 1. Ambiente católico antes da crise Depois de ter tratado das circunstâncias que minaram o Movimento Católico no terreno político, falo agora das que minaram esse movimento no terreno propriamente teológico e eclesiástico 671. E aqui começa a história da crise católico-progressista 672. Pelos idos de 1935, eu já contava com sete anos de militância dentro do Movimento Católico. E tinha presenciado uma série de malentendidos entre os membros desse movimento, mas que eram resolvidos logo; e sempre me edificava ver a facilidade com que aqueles mal668 — O novo regime ditatorial, conhecido como Estado Novo, durou até outubro de 1945. 669 Palestra sobre Memória (IV) 9/8/54. 670 SD 25/2/89. 671 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 672 SD 18/3/89.


178 entendidos se dissipavam. Às vezes ocorria uma pequena concorrência entre uma associação e outra, uma pequena rivalidade, uma coisinha assim: não havia nada mais fácil de se resolver. A concórdia que reinava era portanto completa673 e, como não havia ainda o fenômeno da esquerda católica, todos estavam unidos em torno da mesma doutrina. Por causa disso via-se muita união e coesão 674. Nós vivíamos numa paz religiosa completa, numa confiança inteira de uns católicos para com os outros, e a concórdia das associações religiosas entre si era a maior possível. Não passava pela cabeça de um congregado mariano, ou de uma outra congregação ou associação, qualquer intenção desleal, malévola, anticatólica, fazer um trabalho de sapa em relação a outros. Inclusive pela minha cabeça a ideia de que isto poderia acontecer não passava. As crises internas que atingiam a Igreja na Europa e um pouco nos Estados Unidos ainda não haviam chegado ao Brasil. E eu julgava que havia de um lado os católicos, e do outro o mundo. E achava que a parte da população sensível à influência cinematográfica de Hollywood, às más revistas, à má imprensa, constituía uma massa diferente da nossa, que não estava diretamente em guerra contra nós, mas que nos via com maus olhos. Havia, sim, um começo de movimento comunista. E esse movimento comunista era o grande dragão, o grande adversário.

2. Incubação progressista em pequenos núcleos Na realidade, essa ideia de uma grande concórdia do Movimento Católico e da inexistência de inimigos internos era um quadro irreal, porque precisamente dos movimentos de esquerda católica da Europa já começavam a vir propagandistas apoiados por pessoas de prestígio de dentro desse mesmo Movimento Católico. Tristão de Athayde, Sobral Pinto 675 e numerosos eclesiásticos começaram a convidar esses propagandistas, que vieram ao Brasil com a missão de fundar grupos e veladamente espalhar as ideias da esquerda católica. 673 Palestra sobre Memórias (IV) 9/8/54. 674 SD 16/6/73. 675 — Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1893-1991) foi um jurista brasileiro. Considerado como católico de esquerda, enquanto advogado defendeu o chefe comunista Luís Carlos Prestes, preso por ter encabeçado o levante comunista de 1935.


179 O Movimento Litúrgico e a Ação Católica foram, dentre todos, os grandes meios de penetração da mentalidade esquerdista. Esses grupos, instalados no Movimento Católico, dispunham do apoio de forças católicas consideráveis676. Eram movimentos visivelmente voltados para destruir aquele tom contra-revolucionário que o ambiente católico brasileiro tinha, para transformá-lo num movimento revolucionário 677. Eu evidentemente ia vendo a JOC — Juventude Operária Católica, ramo da Ação Católica, que trabalhava a favor de uma modificação da organização social — promovendo no fundo uma luta de classes para acabar com os ricos e com a propriedade privada, e promover a igualdade completa das classes sociais 678. Era o adversário que penetrava nos porões do navio, estabelecendose nele . 679

Sustento mesmo que estávamos em presença de um verdadeiro renascer do modernismo: as mesmas tendências, o mesmo espírito, os mesmos métodos sinuosos e camuflados, o mesmo espírito de revolta contra todo o freio, toda autoridade, toda tradição 680. * Julgo não ser ocioso acentuar que esse espírito novo não pairava nas nuvens, como uma ideologia subtil e impalpável. Esse espírito tinha chefes que o introduziram no Brasil, possuía uma ideologia muito precisa, tinha na Ação Católica um instrumento de difusão de primeira ordem, e era portanto uma verdadeira organização 681. Os seus propagadores eram fanáticos e dissimulados, viviam em estado de conjuração, e tinham a suprema arte de impugnar como agressivos aqueles mesmos que eles queriam agredir. Quando surgia uma polêmica sobre suas posições erradas, uma de suas táticas era tentar impedi-la sob o pretexto de paz e evitar de todos os modos que a questão subisse até a Santa Sé. Aos poucos, essa corrente foi dominando inteiramente a situação e 676 SD 2/7/88 — As bases da Ação Católica haviam sido lançadas no Brasil durante durante o 1° Congresso Eucarístico Nacional, realizado em Salvador-Bahia nos dias 3 a 10 de setembro de 1933. Dois anos depois, a 9 de junho de 1935, a ACB foi oficialmente criada com a aprovação de seus estatutos pelo Episcopado brasileiro. 677 SD 18/2/89. 678 SD 18/6/88. 679 SD 18/2/89. 680 Carta de Dr. Plinio ao Abbé Luc Lefebvre, 7/11/47. 681 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48.


180 acabou por destruir todos os óbices com que se defrontava682. Estávamos com o inimigo dentro de casa e tínhamos que lhe fazer face, numa luta de natureza completamente diferente da que até então havíamos travado 683.

3. Robert Garric e as Equipes Sociais A primeira notícia que tive dessa tentativa para destruir o movimento das Congregações Marianas e, portanto, implantar o progressismo no Brasil, veio singularmente através de Mamãe, que me abriu os olhos. Eu era deputado e passava boa parte do tempo no Rio. Um dia recebi dela uma carta que infelizmente não guardei, em que vinha junto, preso com muito esmero por um alfinete, um pedacinho de notícia de jornal, creio que de O Estado de S. Paulo, cortado com tesourinha bem fina. Depois de tratar de vários assuntos, em certo momento ela disse: “Agora sua mãe vai passar para um outro ponto. Leia a notícia acima, a respeito do professor francês fulano de tal” 684. Pouco depois a Agência Havas começou a telegrafar para todos os jornais do Brasil685, distribuindo uma notícia que vinha apresentada da maneira como os jornais costumam fazer quando querem valorizar alguém 686. Essa notícia dizia mais ou menos o seguinte: “Encontra-se no Brasil o professor Robert Garric, notabilidade francesa (nem era tão notável assim) que vem a São Paulo para lançar as ‘Equipes Sociais’, movimento que visa interessar a juventude católica pelo destino dos operários e movimentar a fermentação das ideias sociais no Brasil”687. A notícia não falava uma palavra a respeito das Congregações Marianas, mas dava a entender que qualquer organização de apostolado tornava-se caipira em comparação com a grande novidade que vinha da França 688. Mamãe, que entendia pouco de tudo isto, pôs entretanto na carta o seguinte comentário: “Filhão, veja se isto não é feito para derrubar as 682 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948. 683 Palestra sobre Memórias (IV) 9/8/54. 684 SD 16/4/94. 685 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 686 Almoço EANS 10/6/82. 687 SD 26/11/88. 688 Almoço EANS 10/6/82.


181 Congregações Marianas e prejudicar você” 689. Não sei como ela percebeu atrás dessa notícia a intenção de acabar com as Congregações Marianas 690. Eu gostei que Mamãe me escrevesse, mas não gostei da notícia que ela me havia transmitido 691. O Tristão me escreveu: “Garric está para chegar. E vocês precisam se interessar pelo Garric etc.”. * Garric apresentava-se como professor da Sorbonne, uma espécie de agregé ou coisa que o dera e que viera ao Brasil, sendo contratado como professor pelo governo do Estado de São Paulo para a cadeira de Literatura Francesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. E aqui ele queria fundar as Equipes Sociais 692.

4. Conversa com Robert Garric Eu havia conhecido de passagem esse Robert Garric no Rio, e consegui esquivar-me do contato com ele693. Mas em uma das minhas vindas de fim de semana a São Paulo, recebo um telefonema: — O professor Garric está hospedado no Hotel Terminus e gostaria de travar contato com o senhor, e falar das Equipes Sociais. Fui ao Hotel e tivemos ali uma conversa, estando junto um rapaz carioca que o acompanhava, chamado Roberto Pantoja, pessoa de trato muito agradável, de muito boa apresentação e falando o francês na perfeição694. O Pantoja simplesmente assistiu à nossa conversa. Tinha ficado

689 SD 26/11/88. 690 Almoço EANS 10/6/82. 691 SD 26/11/88. 692 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54 (v. também notícia no Legionário n° 145, 13 de maio de 1934) — Robert Garric (1896-1967): admitido em 1914 na Escola Normal Superior francesa, foi professor adjunto (agrégé, ou seja, contratado temporariamente) de Letras em 1919 e, como tal, nomeado em 1928 assistente de Filosofia na Sorbonne. Ele fundou em 1920 as Équipes Sociales e fazia parte do meio católico reformista. Sua primeira vinda ao Brasil está assinalada no Legionário n° 124, de 16/7/33. E sua contratação em 1934 como professor de literatura francesa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi noticiada no Legionário n° 145, de 13/5/34. Ele chegou a São Paulo, proveniente do Rio, em 12 de junho de 1934. Os jornais leigos da capital paulista noticiaram a sua vinda com grandes elogios. Em 4 de dezembro de 1934, O Estado de S. Paulo publicava matéria com o título “A Questão Social”, assim introduzida (mantemos a grafia da época): “A conferencia de hoje do professor Robert Garric será sobre as ‘Equipes Sociales’, grande movimento social que está prestando os melhores serviços á França — Uma conferencia que interessa aos intelectuais, estudantes e demais pessoas de boa vontade.” 693 Almoço EANS 10/6/82. 694 SD 26/11/88.


182 mais ou menos no ar que, após esse encontro com o Garric, o Pantoja iria almoçar comigo e teríamos uma conversa só os dois. Mas, na hora de sair, ele não formulou o convite para o almoço, e as nossas relações pararam aí695. Muito amável, Garric explicou que estava no Brasil para lançar o movimento das Equipes Sociais, destinado a conglomerar jovens, e capaz de fazer muito bem à juventude católica brasileira, porque a tirava da obsessão dos assuntos de piedade e ajudava-a a se preocupar também com as questões sociais. Não gostei nada dessa maneira de abordar o assunto, porque, segundo a boa doutrina, o principal é a vida de piedade, a vida interior, a devoção; as outras coisas vêm depois, em segundo lugar. E esse movimento já vinha para inverter esta boa ordem 696. M. Garric contou então que ele tinha participado da guerra de 19141918 e que, junto com outros companheiros, tinha conhecido nas trincheiras homens de classes sociais diversas. E eles perceberam que esse convívio entre classes sociais diferentes aproximava os homens entre si. Então era preciso continuar esse convívio depois da guerra, para estabelecer um vínculo entre as classes sociais697. Segundo ele, isto se deveria fazer assim: os estudantes irem aos bairros de operários e conviver com estes. Nesse convívio, se operaria um apostolado "fantástico": davam aos operários algumas noções culturais complementares, ensinavam-lhes a ler e a escrever, mas não lhes falavam de religião698. Então os operários, "comovidos", acabavam um dia perguntando ao estudante: “Mas o senhor o que é: católico?” 695 SD 16/4/94. 696 SD 26/11/88. 697 — A líder feminista Simone de Beauvoir, que além de discípula de Jean Paul Sartre e admiradora de Che Guevara, tinha sido aluna de Garric no Instituto Sainte-Marie de Neuilly, explicava com menos véus o fundo do pensamento de seu professor: "Aos seus vinte anos, explicava-nos ele, havia descoberto nas trincheiras as alegrias de uma camaradagem que suprimia as barreiras sociais. […] Negar todos os limites e todas as separações, sair de minha classe, sair de minha pele: esta palavra de ordem me eletrizava" (Simone de Beauvoir, Mémoires d'une jeune fille rangée, Gallimard, 1979, p. 173. — Os destaques são nossos). 698 — Para medirmos o grau de desprevenção dos meios católicos em relação à infiltração que ia entrando, remetemos o leitor a um artigo em tom laudatório das Equipes Sociais, publicado no dia 13 de maio de 1934 no Legionário, nº 145, numa época em que Dr. Plinio ainda não exercia efetivamente a direção do jornal: "Fundaram-se as primeiras 'equipes'. Em que os universitários vinham dar às classes proletárias o ensino complementar que lhes faltava. O preparo técnico que havia de lhes facilitar a vida. [...] E essas preleções familiares, em que eram excluídas obrigatoriamente a religião e a política, cimentavam simpatias, desfaziam prevenções. [...] Nos passeios em comum, se requeria a camaradagem mais perfeita" (doc. cit., p. 5 - destaque do original).


183 E o estudante respondia: “Sim, eu sou”. E então o operário tinha uma como que "revelação" e alguns se convertiam. Ele apresentava isto como fantástico, como o que poderia haver de melhor. Eu perguntei: M. Garric, mas então o seu movimento é católico? — No sentido de movimento cristão. não é?

— Mas eu queria saber bem precisamente o seguinte: é católico ou

— Não, os católicos devem tomar o cuidado de evitar que o movimento apareça como católico. Eu pensei de mim para comigo: “Para que deixar as Congregações Marianas, movimento brilhante, para me meter nisso”? 699. Garric ainda acrescentou: — As Equipes atuam nos meios operários também para ensinarlhes a reivindicar os seus direitos. Afinal, eles não podem ficar dependendo de bons patrões que queiram dar-lhes o que é o direito deles. Os operários, ou arrancam seus direitos da mão do patrão, ou nunca ficarão bem instalados na vida. É preciso ensinar-lhes esse senso de inconformidade. Eu fui ouvindo aquela conversa toda e sorrindo. Sorri o tempo inteiro. E perguntei: — Professor Garric, o seu movimento é bem visto pela Igreja? — Ah! muito. Tais Arcebispos, tais Cardeais veem muito bem o meu movimento enquanto movimento leigo, enquanto movimento não oficialmente católico. Eu sou católico. Eu tenho vários jovens que são de comunhão diária. Mas isto não tem nada que ver com a religião. Ora, na concepção contra-revolucionária, todas essas questões sociais são principalmente questões morais. Se se procura tirar a resolução de tais questões da influência da Igreja, caminha-se para a Revolução 700. Ele por fim me pediu que eu desse a ele vários congregados marianos, como se os congregados fossem móveis que a gente dá de presente para alguém. São entes vivos que não podem ser "dados" como quem dá dez laranjas. Eu naturalmente não dei...701 — Pois não, professor Garric. Eu vou pensar. Depois, conforme for, comunico-me com o senhor. Até logo. 699 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 700 SD 26/11/88. 701 SD 17/9/88.


184 eu.

Nunca mais nos vimos. Ele era um homem bem mais velho do que

O fato concreto é que eu senti uma coisa muito singular se mover nisso tudo 702. * Dom Duarte não quis saber dessas Equipes Sociais. Mas, apesar de Dom Duarte não querê-las e de elas não se terem fundado em São Paulo, foram fundadas no Rio. E, mesmo aqui em São Paulo, alguns rapazes do Movimento Católico acabaram entrando para essas Equipes. E passaram a constituir uma oposição liberal contra nós 703. Desde logo, essas Equipes Sociais foram promovidas por Tristão de Athayde. Foi ele quem impulsionou o Movimento Litúrgico, a Ação Católica e tudo aquilo que seria depois objeto de minha denúncia no livro Em Defesa da Ação Católica. No carteio de ruptura entre Tristão e eu a propósito desse livro, ele se eriçava, porque cada letra da obra era contrária às convicções e sobretudo ao programa dele704. Os rapazes das Equipes Sociais do Rio formados por ele vieram a constituir o elemento inicial do Movimento Litúrgico carioca 705.

5. As “construtivas” em São Paulo Relato um outro episódio, que prenunciou essa ofensiva para a derrubada do Movimento Católico por pessoas provenientes da Europa, antes mesmo da vinda de Garric ao Brasil. Em 1932, apareceu em São Paulo uma senhora belga, Mlle. Adèle de Loneux, professora da Escola Católica de Serviço Social de Bruxelas. Essa belga se apresentava de uma maneira bem singular: cabelos pretos lisos com um coque atrás, com aparência de pessoa muito bem nutrida, toda vestida de preto, sapatos sem salto para uns pés de tamanho considerável. Ar misterioso, muito ruminativa, tinha olhos impassíveis com aparência de cândidos, muito úmidos. Mas no fundo da aparente impassibilidade do olhar, cintilava uma esperteza que, creio eu, poucas pessoas percebiam. Promoveu ela uma série de conferências no Colégio Des Oiseaux. 702 SD 26/11/88. 703 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54. 704 Almoço EANS 10/6/82. 705 Palestra sobre Memórias (II) 7/8/54.


185 Eu mesmo fui encarregado de fazer duas ou três conferências nessa série, direcionada para um público que era a nata, o creme, a flor de farinha do movimento feminino católico em São Paulo 706. Lembro-me que, enquanto eu fazia as conferências, Mlle. Loneux permanecia no fundo da sala observando. Naqueles dias começou a correr a notícia de que Svend Kok se iria ordenar sacerdote*. * Ele de fato entrou pouco depois, em 1934, para a Ordem de São Bento, passando a ser conhecido como Dom Teodoro Kok. E em 1955 tornou-se monge trapista.

Perguntaram-me então se eu também não iria ficar padre. E soube depois que Mlle. Loneux, ouvindo isto, havia feito o seguinte comentário, que julguei um tanto esquisito: “Ele é bom católico demais para se tornar padre”. Comentário um pouco sinuoso, mas, enfim, a coisa passou. * Eu soube com toda a certeza, cerca de dez anos depois, por informação do próprio Arcebispo Dom José Gaspar, e também de uma moça que fora convidada para o movimento de Mlle. de Loneux e não aceitou, que Mlle. de Loneux havia fundado aqui uma congregação religiosa secreta de freiras, as quais deveriam trajar-se como leigas, mas que ficavam ligadas pelo voto de obediência a essa congregação. Essa congregação religiosa secreta havia sido fundada na Bélgica pelo Cardeal Mercier 707 e chamava-se Auxiliares do Apostolado. Tinha dois ramos, um dos quais especialmente destinado a auxiliar os padres da Companhia de Jesus. Essas Auxiliares do Apostolado aliciaram várias moças desse grupo feminino e fizeram algumas delas passarem um, dois ou três anos estudando numa Escola de Serviço Social de Louvain ou de Bruxelas, para depois voltarem ao Brasil. Quer dizer, fizeram ali um verdadeiro noviciado 708. 706 — Esse Curso Intensivo de Formação Social para Moças, organizado pelas Cônegas de Santo Agostinho entre 1° de abril e 15 de maio de 1932, tinha em sua direção Mlle. Adèle de Loneux (18861969), diretora da Escola Católica de Serviço Social de Bruxelas, auxiliada por Mademoiselle Christine de Hemptinne, presidente fundadora da ACJBF (Ação Católica das Jovens Católicas Belgas). Desse curso participaram moças da melhor sociedade de São Paulo (cfr. http://www.prof.joaodantas.nom.br/materialdidatico/material/1_-_O_significado_socio_historico_da_profissao.pdf; e Dicctionaire des femmes belges, Éliane Gubin etc., Editions Racine, Bruxelas, 2006). 707 — Cardeal Désiré-Félicien-François-Joseph Mercier (1851-1926), Primaz da Bélgica, foi Arcebispo de Malines desde 1906 até sua morte, elevado ao cardinalato em 1907. 708 — Em artigo de 16/8/2010, assinado pela assistente social baiana Talita Carmona Vieira, encontramos a seguinte informação:


186 As pessoas das relações delas não sabiam que tinham se tornado religiosas: nem o público sabia, nem eu sabia. E isto ajuda-nos a compreender a gênese do movimento liturgicista no Brasil, pois com elas se formou toda uma organização com muita influência no Movimento Católico de São Paulo. Eram moças na sua quase totalidade ricas, das melhores famílias de São Paulo, inteligentes, capazes, sabendo dirigir muito bem as coisas, e que haviam recebido uma formação errada proveniente da Bélgica*. * O grupo do Legionário costumava apelidá-las intramuros de “construtivas”, por elas afirmarem que a Ação Católica reformularia completamente os métodos de apostolado da Igreja, inaugurando uma nova era de “boa vontade”, na qual as divergências, as polêmicas e as condenações ao erro seriam deixadas de lado. E seriam estabelecidas relações construtivas, cordiais e amigáveis com todas as pessoas e correntes até então consideradas adversárias do catolicismo, para supostamente conseguir a sua conversão.

6. De início as vi com simpatia, depois percebi... Quando em determinado momento notei que elas apareceram, vi com muita simpatia o fato de que o ambiente católico de São Paulo estava enriquecido pelo surgimento de um grupo de moças de boa sociedade (eram dez, mais ou menos), extraordinariamente capazes e inteligentes. A princípio eu julguei que se tratava do aparecimento de mais uma força definida, decidida, capaz de lutar a favor da causa católica. De onde, então, eu as ter acolhido muito bem e, guardadas as diferenças que naturalmente deve haver entre os sexos, ter feito com elas boas relações, bom equilíbrio. Mas, ao cabo de algum tempo, comecei a perceber que havia qualquer coisa de esquisito, de meio modernoso, meio arrojado, meio igualitário na atitude que elas vinham tomando. Eu tinha a sensação de que a elas faltava exatamente a mentalidade católica*. * O então Cônego Antonio de Castro Mayer delas dizia, em carta (data desconhecida) ao Cardeal Dom Sebastião Leme: “Quase todos os membros da Ação Católica incipiente eram pessoas mais ou menos convertidas, moças todas elas. Mais ou menos convertidas, pois, se não passaram da infidelidade para a Fé, passaram de uma falta de interesse pelas coisas da Igreja para um aparente fervor maior. Diziam: foi

“Em 1932 o Brasil contou com a visita de Adèle de Loneux, trazendo novos ideais europeus acerca do Serviço Social por meio de diversas conferências que fez pelo país e ao retornar para a Bélgica levou consigo duas brasileiras, Maria Kiehl e Albertina Ramos, que ao se formarem sob influência europeia, voltaram ao país e fundaram a Escola de Serviço Social de São Paulo” (cfr. http://www.webartigos.com/artigos/a-historia-do-servico-social/44882).


187 a A.C. que nos entusiasmou. [...] Pode bem dizer-se que a A.C. entrou pela janela, excluindo as pessoas mais recomendadas pelo senso da pureza dos costumes católicos e integridade de fé. Mais. A Ação Católica apareceu como francamente revolucionária”.

Elas procuravam agradar o nosso grupo do Legionário, procuravam ter boas relações conosco. Eu até certo ponto fiquei com um pé atrás, mas de outro lado achando que, quem sabe, a situação ainda se recomporia se um bom padre, um bom diretor espiritual desse a elas uma boa orientação. Elas começaram a trabalhar em torno da Ação Católica, e apresentavam a Ação Católica como ultra novidade de apostolado, uma novidade que haveria de reformular completamente os métodos de ação da Igreja, e que teria uma capacidade de conversão extraordinária, uma espécie de raio laser em matéria de apostolado. E eu achando aquilo uma coisa esquisita.

7. O “serviço social” das “construtivas” era socialismo puro Esta formação tinha como seu ponto principal de atração a ideia do serviço social, que era no fundo, e continuou depois a ser, socialismo puro. Depois dessas conferências, Mlle. de Loneux voltou para a Bélgica e nunca mais retornou ao Brasil, que eu saiba. Mas as suas discípulas foram as moças que fundaram em São Paulo, em 1932, o Centro de Estudos e Ação Social; e em 1936 a Escola de Serviço Social. Todo o elemento de esquerda do movimento feminino liturgicista recebeu sua formação social (em última análise, socialista) nessa Escola de Serviço Social 709. Essa escola foi o foco da Ação Católica e do maritainismo feminino em São Paulo710. Também criaram aqui o Centro Leão XIII e A Lareira 711, esta última uma organização interconfessional em que trabalhavam sacerdotes conhecidos como liturgicistas e modernistas por suas doutrinas e hábitos: o Padre Benedito Mário Calazans e o Padre Ramón Ortiz, de quem falaremos mais adiante 712. Segundo me consta, a Escola de Serviço Social do Rio de Janeiro também foi fundada por elas. 709 Palestra sobre Memória (IV) 9/8/54. 710 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 711 Palestra sobre Memórias (IV) 6/8/54. 712 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950 — O Padre Calazans dedicou-se também à política, tendo sido eleito duas vezes deputado estadual em São Paulo e depois senador. O Padre Ramón Ortiz, sacerdote natural de Taubaté, foi também professor de jornalismo na Fundação Cásper Líbero e Vice-Reitor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).


188 * Vimos, portanto, no ano de 1932, a penetração do socialismo nos meios católicos de São Paulo, feito de um modo muito velado, muito indireto. O que correspondia à tática modernista de divulgação de ideias: formação socialista feita em um nucleozinho, mas isto não se dizia para fora. Depois, aos poucos, divulgação dessas ideias por meias palavras, de maneira a não se perceber logo o seu fundo doutrinário 713.

8. As "construtivas" tomam os postos-chave da Ação Católica Prestigiadas pelos conhecimentos especializados que traziam da Europa, e pela magnífica bandeira sob a qual trabalhavam, ou seja, a Ação Católica, elas começaram a fundar núcleos em vários lugares como São Paulo, Rio, Belo Horizonte. Dentro em breve, esses núcleos se irradiaram por todo o Brasil, atraindo a si elementos do melhor quilate intelectual e religioso da mocidade. Por meio de viagens, de contatos epistolares frequentes e diversos outros meios, elementos vindos da Bélgica formaram, a bem dizer direta e pessoalmente, todos os dirigentes dos principais núcleos. Decorreu daí para a Ação Católica em todo o Brasil uma tal homogeneidade de espírito e uniformidade de ação, que dela fizeram uma potência de primeira ordem para difundir ideias e diretrizes nos círculos católicos do País 714.

9. Dom Martinho Michler, propulsor do liturgicismo Enquanto a Escola de Serviço Social, de origem predominantemente belga, se desenvolvia em São Paulo, o Movimento Litúrgico, de origem alemã e francesa nascia no Rio de Janeiro por volta de 1933 715. O grupo de litúrgicos no Rio surgiu da convergência de influência dos padres dominicanos de Toulouse, França; e dos beneditinos de Beuron e de Maria Laach, Alemanha716. O Rio de Janeiro tornou-se a cidadela do Movimento Litúrgico. Um bom número de monges do prestigioso mosteiro de São Bento, e leigos 713 Palestra sobre Memória (IV) 9/8/54. 714 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48. 715 Palestra sobre Memória (IV) 9/8/54. 716 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54.


189 como Tristão de Athayde (homem da total confiança do Cardeal-Arcebispo do Rio, Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra) apoiaram esse movimento. E em São Paulo, a Ação Católica gozava de todo apoio do jovem Bispo Auxiliar Dom José Gaspar de Affonseca e Silva 717. Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Athayde na literatura), foi um dos que se fizeram mais ardorosamente entusiastas da nova tendência. Escritor de grande prestígio, presidente da Ação Católica de todo o Brasil; também presidente do Centro Dom Vital, organização católica com sua rede de filiais em várias cidades do País e muito conhecida da intelectualidade brasileira; e além do mais diretor da revista Ordem, lida e assinada em todo o nosso território, inclusive nos seminários, seu prestígio levou muitos a passarem para o campo liturgicista 718. * O monge alemão que dirigia toda essa investida era Dom Martinho Michler 719, do mosteiro de São Bento no Rio. Foi um dos homens mais atraentes que eu tenha conhecido. Alto, esguio, com um sorriso muito comunicativo, maneiras muito afáveis, as quais davam à pessoa com quem tratava vontade de estar de acordo com ele. Tinha um modo de ser que realmente encantava 720. Muito inteligente, muito enjôleur sobretudo, havia nele uma espécie de irradiação que lhe dava uma verdadeira graça721. Mas era o mentor de todas essas ideias com que não se podia estar de acordo 722. Eu me lembro que assisti a algumas conferências dele no Centro Dom Vital, no Rio. Ele dava a impressão singular de uma extraordinária maestria em todos os seus movimentos. Os seus movimentos, mesmo os menores, eram 717 SD 2/7/88. 718 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48. 719 — Dom Martinho Michler, O.S.B., nasceu em 1901 em Ravensburg, na Alemanha e faleceu em 1988, no Rio. Formado na escola de Romano Guardini, ele trouxe para o Brasil, segundo Dom Clemente Isnard, "as elaborações da Escola Litúrgica de Maria-Laach e do movimento litúrgico belga" (cfr. Frei José Ariovaldo da Silva, O.F.M., O Movimento Litúrgico no Brasil — Estudo histórico, Vozes, Petrópolis, 1983). Ele chegou ao Brasil em 1933 e promoveu em julho desse ano o primeiro retiro com a participação de seis jovens, no qual celebrou entre nós a primeira missa dialogada e versus populum [voltada para o povo] (cfr. Laudimiro de Jesus Borges, estigmatino, artigo A participação da juventude no movimento litúrgico no Brasil, Revista de Liturgia - www.revistadeliturgia.com.br). 720 SD 18/6/88. 721 Palestra sobre Memória (IV) 9/8/54. 722 SD 18/6/88.


190 bonitos: ele se dobrava para apanhar um pedacinho de papel que caiu no chão, aquilo era feito com naturalidade, com uma beleza quase clássica; ele dava uma risada, a risada dele era cativante; ele olhava, o olhar era aveludado e agradava; ele descansava, o repouso dele era comunicativo. Entretanto — é um mistério — ele era feio, e até bem feio. E um pouco pesadão 723. * Eu me lembro também do último encontro que tive com ele. Os componentes do grupo do Legionário e eu tínhamos ido visitar Dom Mayer na Diocese de Campos. Estávamos andando por uma das praias de lá, daqueles arredores. Tempo lindo, sol magnífico, praia enorme, areia estupenda, mar muito mais bonito do que a areia. Conversávamos sobre várias coisas, quando vimos ao longe uma camionete que se aproximava e uma pessoa que de longe nos sorria. Mais perto, percebemos que usava batina. Eu, sem reconhecer bem (nunca fui bom fisionomista), sorria amavelmente também. Quando ele chegou próximo de nós, vi que era Dom Martinho Michler. Eu já havia escrito o livro Em Defesa da Ação Católica e estávamos rompidos. Mas ainda olhei para ele e pensei: “Como é um homem atraente e encantador”! Passamos um pelo outro em meio às mostras da maior cordialidade. E depois nunca mais nos vimos724. O fato concreto é que este monge começou a dar, para os membros da Ação Católica do Rio de Janeiro, cursos sobre a Sagrada Liturgia inteiramente na orientação condenada pela encíclica Mediator Dei725. 723 Palestra sobre Memória (IV) 9/8/54. 724 SD 18/6/88. 725 — Muitos anos mais tarde, por ocasião do Concílio Vaticano II, D. Clemente Isnard, seguidor de D. Martinho Michler em questões litúrgicas, deu um testemunho eloquente de quanto a Encíclica Mediator Dei havia obstaculizado os planos dos liturgicistas, sobretudo ao comprovar meridianamente as teses do livro de Dr. Plinio, Em Defesa da Ação Católica, prefaciado pelo Núncio Apostólico no Brasil, Dom Aloisi Bento Masella. D. Isnard, eufórico, opõe o documento conciliar sobre liturgia à Encíclica de Pio XII, a qual considera ter sido superada pela Constituição conciliar; posição esta, diga-se de passagem, bastante singular na pena de um Bispo católico. O documento conciliar sobre liturgia parece ter significado, para D. Isnard, uma espécie de redenção dos erros do liturgicismo condenados na Mediator Dei, e já anteriormente no livro de Dr. Plinio. Chama também a atenção que, no próprio momento em que D. Isnard comemorava com D. Martinho Michler o que eles consideravam uma hora de triunfo da causa liturgicista, seus pensamentos estavam


191 Esses cursos atraíram vários jovens, que dentro em breve se fizeram notar por seu excessivo liturgicismo. Eram jovens inteligentes, que abraçaram a vida religiosa na Ordem de São Bento e na de São Domingos, e que desenvolveram um trabalho ativo em favor do liturgicismo no Brasil. Dom Martinho Michler irradiou sua mentalidade em São Paulo, em Belo Horizonte e em várias outras cidades, sempre com o apoio de bom número de seus irmãos de hábito. Em escala menor, o mesmo se deu junto a outras abadias e mosteiros beneditinos. Assim, o espírito da abadia de Maria-Laach, no que ele tinha de temerário, penetrou largamente no Brasil, atingindo de preferência os próprios círculos da Ação Católica, tão preparados para o receber. E, por fim, os dois movimentos, o liturgicista e a Ação Católica, se fundiram inteiramente726.

10. Meu primeiro contato com o Movimento Litúrgico A primeira vez que tomei contato com esse Movimento Litúrgico foi através do Tristão de Athayde. O Tristão realizava todo mês uma reunião de líderes católicos no prédio da Coligação Católica, da qual ele era o presidente, que ficava em frente ao prédio da Assembleia Constituinte. E ele convidava um deputado por mês para falar. Às horas tantas ele se lembrou de me pôr como orador. E me pediu que tratasse de um tema de vida espiritual.

centrados na oposição levantada por Plinio Corrêa de Oliveira no livro Em Defesa aos erros liturgicistas. Sinal de como o livro calou fundo! Segue a expansão de D. Isnard: “Uma cena para mim inesquecível. Na manhã de 4 de dezembro de 1963 ia ser promulgada a Constituição Sacrossanctum Concilium, sobre a liturgia. Milhares de bispos estavam chegando à Basílica de São Pedro. “No momento em que eu, comovido, ia transpondo os portões de entrada, encontro providencialmente no pórtico o abade D. Martinho Michler, OSB. Eu vinha da ‘Domus Mariae’ e ele do Colégio Santo Anselmo, e ali nos encontramos, nos abraçamos e nos felicitamos. O que ele havia ensinado em 1933, sua definição de liturgia, sua visão da integração da liturgia na vida da Igreja, tudo estava lapidarmente formulado no texto que foi aprovado por 2147 bispos contra 4 e promulgado pelo Santo Padre. “A Igreja dava um passo além da Mediator Dei. Quantos pontos que os inimigos do Movimento haviam condenado como ‘liturgismo’ ou ‘liturgicismo’ iam ser canonizados pela Constituição conciliar! Que confusão para aqueles que haviam duvidado da ortodoxia de D. Martinho, que haviam atirado pedras no movimento, que haviam acoimado os beneditinos de hereges! “Não creio que o Cardeal Bento Aloisi Masella tenha se lembrado naquela manhã do prefácio que escrevera para o livro de Plinio Corrêa de Oliveira. Mas o sorriso de D. Martinho era a expressão do gáudio, dom do Espírito, que tudo fazia esquecer para apenas agradecer aquele dia de alegria e vitória” (cfr. Bernard Botte, OSB, O Movimento Litúrgico-Apêndice de D. Clemente Isnard, OSB, Editora Paulinas, São Paulo, 1978, Coleção Igreja Eucaristia, pág. 230). 726 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48.


192 Eu ignorava a existência desse Movimento Litúrgico, e por pura coincidência expus várias coisas que estão no livro de Dom Chautard 727 a respeito de liturgia e do bom movimento litúrgico de Dom Guéranger. E falei disso com muito calor. Notei que, pelo meio deles, um grupo de rapazes que eu não conhecia se movia com um afã, mas uma coisa única! Terminada a conferência, o Tristão, que morava pelos lados do meu hotel, me disse: — Você me espere um pouquinho que eu vou com você e o deixo junto ao seu hotel. — Pois não. Descemos, sentei-me no automóvel, e foi a única vez que Tristão elogiou uma conferência minha na vida. — Plinio, você hoje falou de um modo fantástico! Estou encantado com seu discurso! Tem um grupo de rapazes doidos para se aproximar de você, e que quer ter contato. São tais rapazes assim, assim, bons católicos. Eu, naquela confiança que reinava entre católicos naquele tempo, pensei comigo: “Como, afinal de contas, ele está mudado comigo”! Porque ele era muito amável na aparência, mas no fundo muito frio. quê?

No primeiro convite que me fizeram, eu fui. E me deparei com o

Numa sala do prédio da Coligação Católica, com os móveis afastados de lado, eles todos com breviários e roupa de leigos, recitando o Ofício Divino, um fazendo papel de abade, outros fazendo papel de monges. Isto, de si, não tem nada de mal 728. Mas curiosamente me disseram, com ar de mistério: “Dr. Plinio, é uma coisa muito interessante. Mas é reservada”. Dessa história de “reservada” eu não gostei. Reservada por quê? Nosso Senhor recomenda que os filhos da luz proclamem do alto das casas o que fazem. Reserva para quê? Que negócio é esse? Terminado o Ofício, era natural que me apresentassem aos rapazes e que conversássemos um pouco. 727 — Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-19350), abade de Sept-Fons, França, autor da famosa obra A Alma de todo o Apostolado. 728 Reunião com os mais antigos do movimento 8/6/86.


193 Não! Os rapazes foram em fila para uma outra sala e sumiram. — O que você achou?, perguntou o Alceu. Eu disse: — Bom, é uma oração da Igreja, uma oração do Breviário... É um pouco curioso que os rapazes usem o Breviário. — É, porque... você sabe? Isso corresponde a uma coisa nova. Um frade alemão do Mosteiro de São Bento aqui do Rio está nos ensinando uma nova forma de piedade, que já está sendo divulgada pelo mundo e que faz parte do que se chama Movimento Litúrgico. — Em que consiste? — Valorizar a Sagrada Liturgia, as pessoas serem levadas a gostar do Ofício Divino. Você não acha isso bom? — É uma coisa excelente, mas qual é a razão do caráter reservado? Uma coisa tão boa pode-se fazer na frente de todo o mundo. — Não, não, porque não convém atrair muita gente. Eu achei a coisa meio esquisita: “Como não convém? Se é uma coisa muito boa, quanto mais gente entrar, melhor é. Por que panelinhas fechadas? Não senhor, abra esse negócio! Que negócio é esse”? Somente mais tarde é que vim a perceber que se tratava de um movimento que trazia doutrinas erradas, paralelas às doutrinas da Ação Católica729.

11. A influência de Maritain, Mauriac e Bernanos Além de todas essas influências tivemos a atuação, como já disse, de certos dominicanos franceses, cuja Província no Brasil dependia da Província de Toulouse, toda ela formada no espírito do semanário Sept, ou do semanário Aurore. Em consequência, no espírito dos escritores franceses Maritain, Mauriac730 e Bernanos 731, e dentro da mentalidade da 729 SD 18/6/88. 730 — François Mauriac (1885-1970), escritor francês pertencente à Academia Francesa de Letras e prêmio Nobel de literatura em 1952. Frequentou entre 1905 e 1907 os círculos do movimento Sillon, de Marc Sangnier, movimento este condenado por São Pio X. O Sillon lhe deixou marcas profundas, apesar de haver rompido com esse mesmo movimento posteriormente. Sua linha política foi guiada por um ideal de socialismo cristão, que o levou, por exemplo, a sustentar durante certo tempo o prócer socialista Pierre Isaac Mendès Frances. 731 — Georges Bernanos (1888-1948), romancista francês de orientação católica, tendo várias de suas obras alcançado grande repercussão no mundo literário, entre elas o Diário de um pároco de aldeia e Diálogo das carmelitas, ambos posteriormente adaptados ao cinema. Morou no Brasil de 1938 a 1945 e aqui estreitou laços com Alceu Amoroso Lima, sobre quem teve influência. Em sua trajetória ideológica passou por variações e mutações análogas à de seu amigo carioca, dizendo de si mesmo que não era "democrata nem republicano, homem de esquerda nem homem de direita" mas "cristão".


194 "politique de la main tendue". Por outro lado, vários dominicanos brasileiros foram estudar na França. E também hauriram essa mentalidade. Todas essas tendências, as de Maria-Laach como as de Toulouse, e ainda as da Ação Católica desviada, a bem dizer se fundiram em uma só. Elas tinham entre si uma afinidade profunda, que o gênio essencialmente intuitivo e latino dos brasileiros bem percebeu. Maria-Laach era em teologia o que Toulouse era em filosofia e sociologia, e o que os erros e exageros da Ação Católica eram em Pastoral. Assim, de tudo isto se formou um imenso corpo de doutrinas, adotadas de Norte a Sul do Brasil pelas mesmas pessoas, defendido concretamente por grandes organizações religiosas, verdadeiras potências, tendo a seu serviço a autoridade de sua situação eclesiástica e as vantagens do dinheiro, do número e do talento. A tantas influências somava-se ainda a de numerosos sacerdotes que, um pouco por toda a parte, no púlpito, no confessionário, nos seminários favoreciam esse espírito.

12. Também do Canadá e dos Estados Unidos chegam influências laxistas E, para complicar mais o quadro, a isto deve se acrescentar ainda a aproximação entre os círculos católicos brasileiros e norte-americanos inovadores, as bolsas de estudo para brasileiros nos Estados Unidos, a criação de casas religiosas de congregações norte-americanas e canadenses no Brasil etc. As ideias, hábitos e tendências liberais desses católicos norteamericanos e canadenses penetraram assim entre nós, festivamente recebidos pelos inovadores brasileiros, os quais tinham, todos eles, uma tendência manifestamente laxista em matéria moral 732. Era com suma preocupação que eu via uma nação, na época com 40 milhões de católicos, e uma das maiores esperanças da Igreja, ser trabalhada em suas vísceras por uma grande força de desagregação religiosa e moral que agia em nome da própria Igreja733.

732 — Um relatório, provavelmente do ano de 1951, de D. Antonio de Castro Mayer, já como Bispo de Campos, informava que “S. Emcia. [o Cardeal D. Carlos Carmelo] introduziu na Arquidiocese [de São Paulo] os dominicanos canadenses, que desde logo chocaram a população por suas maneiras pouco sacerdotais e francamente levianas. Um destes, Padre Marcelo Desmarais, pronunciou pelo rádio conferências que se tornaram famosas por sua condescendência para com os piores vícios modernos e sua linguagem escandalosa”. Referia-se também a “uma Congregação feminina norte-americana [...] que dá aulas de danças modernas às moças da classe rica”, iniciando-as “nos encantos de um catolicismo ‘renovado’ e liberal’”. 733 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48.


195

13. Padre José Gaspar: entusiasmo pela Ação Católica; Dom Cabral: propugna liturgicismo Um fato pequeno, mas que também prognosticava o futuro. Era diretor espiritual da Federação das Filhas de Maria de São Paulo, o então Padre José Gaspar de Affonseca e Silva, o qual escreveu um prefácio para o anuário delas. Nesse prefácio ele falava com grande entusiasmo e pela primeira vez da Ação Católica734. * Outro foco intenso de liturgicismo foi Belo Horizonte. O então Arcebispo de Belo Horizonte, Dom Antonio dos Santos Cabral, tomou imediatamente partido das ideias novas. E passou a ser um dos propugnadores mais enérgicos delas. Belo Horizonte transformou-se numa Meca (Tristão de Athayde chegou a escrever que havia se transformado numa Roma...) dos movimentos liturgicistas dentro do Brasil 735. A serviço desse liturgicismo colocou-se desde logo o primeiro e maior diário católico de nosso País, o Diário, de Belo Horizonte, lido em todo o território nacional. Ao lado da revista Ordem, acolitado por revistas menores como Vida, órgão da Ação Católica de Porto Alegre, o Diário foi mais uma grande força a serviço do liturgicismo 736.

14. Conclusões a que cheguei Depois de muito ouvir e observar, não tardei a perceber: — Que a tal ordem religiosa clandestina trazida da Bélgica para cá por Mademoiselle de Loneux tinha instalado, na Ação Católica de São Paulo, uma mentalidade que era a mesma versão da mentalidade que havia no Movimento Litúrgico de Tristão de Athayde no Rio. — Que essa gente da Ação Católica de São Paulo colaborava intimamente com Tristão de Athayde, e que esses dois movimentos (Movimento Litúrgico e Ação Católica) constituíam o verso e o reverso de uma só coisa, embora cada um deles quase não falasse a respeito do outro 737. — Que havia um certo número de padres, e mesmo um certo número de Bispos que davam apoio a esses movimentos: viam o que eles 734 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 735 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 736 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48. 737 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68.


196 diziam e faziam, estavam de acordo, e por debaixo do pano até sopravam essas ideias. — Que esses clérigos, antigamente amigos do Legionário e meus, iam nos colocando à margem e pondo esse pessoal na direção do movimento católico. — Que estava se armando uma verdadeira conspiração para introduzir essas ideias novas no lugar das ideias antigas 738. — Que essa conspiração tinha caminhado muito e até galgado graus dos mais excelsos na Hierarquia Eclesiástica, entre os quais se destacava, a perder de vista, Dom Antonio dos Santos Cabral, Arcebispo de Belo Horizonte739. — E que, por fim, o principal patrono dessa mentalidade nova era um homem de seus 37 anos, resplandecente, encantador: o Bispo Auxiliar de São Paulo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva 740.

15. Jesuítas perseguidos apoiam Dr. Plinio Os litúrgicos, os maritainistas, o pessoal do Serviço Social, os componentes da Ação Católica começaram as atividades deles com uma propaganda violenta contra a Companhia de Jesus. Essa propaganda não se voltava contra os homens da Companhia de Jesus, mas contra a própria instituição e os métodos de apostolado que esta empregava: contra os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, reputados antiquados, nocivos; contra a ascese inaciana; contra a espiritualidade dos jesuítas. Como as Congregações Marianas e também as federações marianas eram em geral dirigidas por jesuítas, vieram os ataques às Congregações Marianas. * Talvez por isto, entre as pessoas que se levantaram para combater esses erros não figurávamos apenas nós. Desde o início, destacou-se um jesuíta extraordinariamente capaz, inteligente, o Padre César Dainese741.

738 SD 16/6/73. 739 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 740 SD 16/6/73. 741 — Padre César Dainese (1894-1986) era natural de Luvigliano, Pádua. Entrou para a Companhia de Jesus no Brasil, em 1912. Estudou filosofia em Roma, e teologia no Heythrop College, Inglaterra. Ordenado sacerdote em 1927, em 1930 voltou para o Brasil, onde ocupou os cargos de Reitor do Colégio Anchieta em Nova Friburgo (1934-1935 e 1940-1945), do Colégio Antonio Vieira em Salvador (Bahia), onde foi provincial (1953-1957), e do Colégio Santo Inácio do Rio de Janeiro (1963-1964) (cfr. Roberto De Mattei, O Cruzado do século XX — Plinio Corrêa de Oliveira, Livraria Civilização Editora, Porto,


197 Além dele, levantou-se mais tarde outro jesuíta de quem já falei, o Padre Arlindo Vieira, este brasileiro, orador verboso, popular, boa alma dedicada e que fez conferências célebres contra Bernanos e escreveu artigos contra Maritain. E também o Padre Louis Riou, provincial da Companhia de Jesus. Esses três jesuítas tomaram partido muito a favor das boas ideias. Também o padre Felix Pereira de Almeida e o padre Walter Mariaux742. Sobre como conheci este último, falarei mais adiante. Mas, notem uma coisa curiosa: vários outros jesuítas eram de uma indiferença soleníssima em relação a nós, uma indiferença que chegava às vezes até à hostilidade. A impressão curiosa que se tinha era de uma espécie de divisão dentro da Companhia. O Padre Saboia743, por exemplo, desde que chegou dos Estados Unidos, já desceu no Brasil falando mal de nós744.

Capítulo IV Doutrina do Movimento Litúrgico e da Ação Católica 1. Coparticipação no poder de santificar dos sacerdotes Tanto no que se referia à liturgia quanto à Ação Católica, os erros da nova corrente que tínhamos de enfrentar giravam em torno do conceito do sacerdócio dos leigos.

1997). 742 — Padre Walter Mariaux (Ülzen, 1894-Munique,1963): sacerdote jesuíta alemão, iniciou o seu apostolado junto das Congregações Marianas em Colônia (1929) e em Münster (1933). Em 1935, já em Roma, trabalhou no Secretariado Central das Congregações Marianas. Sua luta aberta contra o nazismo tornou impossível a sua volta à Alemanha. No ano de 1940 veio para o Brasil, onde, no mesmo ano, conheceu e tornou-se grande amigo de Dr. Plinio e se ligou ao grupo do Legionário. Em 1949, voltou para a Alemanha, onde, desde 1953, dirigiu o Paulus-Kreis, a célebre congregação Maior Latina e o secretariado nacional das Congregações Marianas. A revista Die Sendung foi expressão do seu apostolado leigo. Sob o pseudônimo Testis Fidelis, publicou El Cristianismo en el Tercer Reich (Editora La Verdad, Buenos Aires, 1941), documentada e implacável análise do anticristianisimo nazi (cfr. Roberto De Mattei, O Cruzado do século XX — Plinio Corrêa de Oliveira, cit.). 743 — Padre Roberto Saboia de Medeiros (1905-1955), o qual era qualificado por Alceu Amoroso Lima como “uma ponta de lança nas conquistas sociais”. O site da Fundação Educacional Inaciana Padre Saboia de Medeiros afirma que “sua grande preocupação era a questão social” e informa ter sido ele “ardoroso adepto do filósofo francês Maurice Blondel e leitor assíduo de Aldous Huxley”, tendo mantido correspondência com ambos (cfr. http://www.fei.org.br/PadreSaboiaMedeiros.aspx). 744 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54.


198 Segundo a doutrina tradicional, o sacerdote traz consigo um poder que lhe vem da ordenação sacramental. E os leigos participam passivamente do sacerdócio do padre. Segundo os inovadores, Pio XI teria acrescentado algo ao sacerdócio passivo dos leigos, de sorte que, com a inscrição de um leigo na Ação Católica, este adquiriria ipso facto um modo de participação no sacerdócio, participação essa que já não seria inteiramente passiva 745, mas lhe conferiria certa parcela no poder de jurisdição, visando assim estabelecer uma transformação do estatuto do leigo na Igreja746. De onde eles deduziam que os membros da Ação Católica participariam da liturgia, não passivamente, mas ativamente como verdadeiros liturgos oficiantes. O Movimento Litúrgico também sustentava que eles não pertenciam apenas à Igreja discente, governada e santificada, mas exerciam funções de docência, governo e santificação que lhes pertenciam como atributos próprios de seu novo estado 747. Seriam, no fundo, uns padrezinhos, um padre em ponto menor. E, como tal, deviam em alguma medida participar do governo da Igreja, deviam santificar e deviam ensinar. Segundo a concepção deles, quando o padre celebra a Missa (ato central da Fé católica) e faz a consagração da hóstia (ato central da Missa), se o fiel diz as mesmas palavras do padre, tomaria parte ativa no ato da transubstanciação 748, cooperaria com o sacerdote no operar a transubstanciação 749. Assim também, em todas as orações, pedidos, súplicas, atos de adoração que o sacerdote faz durante a Missa: se o leigo pronunciasse junto com o padre, é como se ele se enxertasse nas palavras do padre e em algo concelebrasse a Missa. Todos os leigos eram assim mais ou menos sacralizados. E — notem bem — as leigas também. As que entrassem para o Movimento Litúrgico ficariam meio sacerdotisas. E a velha proibição, que vem dos Apóstolos, de mulheres acederem ao sacerdócio ou ao governo da Igreja, saltava pelos ares. Quer dizer, era a abolição da fronteira sagrada que separava os 745 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948. 746 Memorando sobre a crise religiosa brasileira por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional (Rio, 1955). 747 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948. 748 SD 25/6/88. 749 SD 18/6/88.


199 leigos dos sacerdotes.

2. Coparticipação no governo da Igreja Algo semelhante se dava na Ação Católica no que diz respeito, não mais no santificar pela liturgia, mas no governar a Igreja. Eles sustentavam que era preciso tomar em consideração o que São Pedro disse de nós, o povo católico: somos um povo sacerdotal e régio. Então — deduziam os adeptos das ideias novas da Ação Católica — nós, os leigos, somos co-sacerdotes, somos co-reis, somos cogovernadores 750. Em que sentido? No sentido de uma definição de Pio XI, que dizia ser a Ação Católica uma participação dos leigos no apostolado hierárquico da Igreja. Daí eles deduziam que Pio XI havia dado aos leigos um poder de fazer apostolado em nome da Hierarquia, como se os leigos fossem uma espécie de padre e participassem das graças muito especiais que tem o apostolado de um sacerdote751. Tudo caminhava, portanto, para afirmar que, na Igreja, não havia diferença entre leigos e padres, e que no fundo, na Igreja, o leigo valia tanto quanto o sacerdote.752. Daí também a tendência, pelos exageros relativos à Ação Católica e à liturgia, a apagar a noção de que a Igreja é uma sociedade de desiguais, dos quais uns têm a incumbência de ensinar, governar e santificar, e os outros de se deixar governar, ensinar e santificar (cfr. São Pio X, Encíclica Vehementer Nos, de 11 de fevereiro de 1906)753. Em consequência, o leigo na Ação Católica devia tomar a direção e empurrar o padre de lado 754. O fundo do pensamento era: “Acabou-se o tempo em que os padres, Bispos e Papas mandavam nos leigos. Chegamos a uma época de liberdade, igualdade e fraternidade. E na Igreja deve também reinar a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Nós agora traçamos o nosso caminho. Porque o tempo de hoje é o tempo do povo. E

750 — Interpretavam assim, de modo extrapolado, a linda frase da Sagrada Escritura que dizia: “Vós, porém, sois uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus, a fim de que publiqueis as virtudes daquele que das trevas vos chamou à sua luz maravilhosa” (I São Pedro, 2, 9). 751 SD 25/6/88. 752 SD 16/6/73. 753 Relatório apresentado por Dr. Plinio a Monsenhor Valentini no ano de 1950, em Roma. 754 SD 16/6/73.


200 nós somos o povo dentro da Igreja”755. Na concepção deles, deveria continuar a haver padres e Bispos, mas com um poder puramente representativo, figurativo; e os leigos deveriam ter independência e resolver dentro da Igreja as coisas como quisessem756. De outro lado, segundo essas doutrinas novas, todos os leigos seriam obrigados a inscrever-se como sócios nos quadros da Ação Católica. Desta forma praticamente essas funções governativas seriam estendidas a todo o laicato.

3. Visão panteísta e falsa concepção de “mandato” Esses inovadores gostavam muito de usar a expressão “Corpo Místico de Cristo”. Para eles não se tratava apenas de uma metáfora para designar uma realidade sobrenatural, mas de uma verdadeira incorporação física. E assim as doutrinas novas caíam no panteísmo, que é o nivelamento estabelecido entre o homem e Deus 757. * Por outro lado, os mentores dessa nova escola diziam que Pio XI, fundando a Ação Católica, tinha dado a ela um “mandato” para fazer apostolado. Em virtude desse “mandato”, a Igreja tinha restringido apenas à Ação Católica, e a nenhuma outra organização, a incumbência de fazer apostolado. Todas as outras organizações que se dedicassem ao apostolado o fariam a título puramente auxiliar, ou então não deveriam fazer, porque só a Ação Católica tinha o direito, em virtude desse “mandato”, de fazer apostolado758. Assim, deviam desaparecer todas as antigas associações religiosas (Congregações Marianas, Ordem Terceira do Carmo, Ordem Terceira de São Francisco, Apostolado da Oração, Filhas de Maria etc.) e deveriam ser substituídas por uma só organização — a Ação Católica —, porque ela sozinha valia mais do que todas as outras, e os seus membros participavam do apostolado do sacerdote759. Ademais, diziam eles, Pio XI também tinha dado aos leigos a ordem de fazer apostolado na Ação Católica. De maneira que o leigo que tirasse alguma coisa de seu tempo livre para fazer um apostolado de caráter particular, fora da Ação Católica, era um indisciplinado. Ele deveria entrar 755 SD 18/6/88. 756 Conversa 7/2/93. 757 Relatório apresentado por Dr. Plinio a Monsenhor Valentini no ano de 1950, em Roma. 758 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 759 SD 25/6/88.


201 na Ação Católica e fazer o seu apostolado dentro dela. O resultado era o estabelecimento de uma verdadeira ditadura da Ação Católica. Pois, se só se podia fazer apostolado dentro da Ação Católica, e como na Ação Católica todo apostolado era dirigido, ou se fazia o apostolado progressista deles, ou não se fazia apostolado nenhum. Era a implantação de um perfeito nazismo eclesiástico. Naquele tempo, tudo isso era reputado muito moderno. E eu notei desde logo a que resultados eles queriam chegar: a morte das Congregações Marianas760.

4. Imunes ao pecado: levar “o Cristo” aos lugares moralmente suspeitos moral.

Esta doutrina vinha acompanhada de outra, atingindo o campo

As “construtivas”, por exemplo, afirmavam, em última análise, que o católico podia frequentar lugares moralmente suspeitos, até de perdição, sem perigo para a sua alma, desde que ele tivesse comungado antes, porque ele tinha dentro de si "o Cristo" (eles não gostavam de falar “Nosso Senhor Jesus Cristo”)761. Ele deveria comungar de manhã, fazer um pouco de oração durante o dia, e à noite ir para esses lugares suspeitos, para ali “levar o Cristo”762. A ideia era de que, quando a pessoa comungava, a comunhão eucarística fazia com que ela ficasse “vacinada” contra toda tentação, contra toda a solicitação do mal763. Na concepção deles, os leigos da Ação Católica estavam de tal maneira “sacralizados”, tinham tais graças novas, e estavam de tal maneira justapostos à Hierarquia, que não havia mais possibilidade de eles pecarem764. Por isso mesmo, a pessoa podia ir, por exemplo, ao cassino da Urca (que era naquela época um dos lugares de frequentação imoral mais conhecidos no Rio de Janeiro), e ela não pecava, antes fazia um ato de virtude. Por que ela fazia um ato de virtude? Porque ele ia “levar o Cristo’ ao cassino da Urca, que estava cheio de gente que nunca tinha recebido a comunhão, ou que havia tanto tempo que a tinha recebido, que a recordação eucarística estava apagada nessas almas miseráveis. 760 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 761 RR 16/4/94. 762 SD 18/6/88. 763 RR 16/4/94. 764 SD 25/6/88.


202 E essa pessoa da Ação Católica que comungou cedo, recebeu de tal maneira uma união com “o Cristo”, que ela podia levar “o Cristo” até essas pessoas que há trinta ou quarenta anos viviam em estado de pecado mortal. Haveria então um contágio: “o Cristo” estava no rapaz da Ação Católica e não estava na moça com quem ele dançava. Mas aquela moça acabava recebendo uma ação “do Cristo”, por dançar com um moço que tinha recebido “o Cristo” de manhã765. Portanto, para conquistarem o mundo moderno, não deveriam mais sair do mundo, como recomendavam as antigas associações religiosas a seus membros. Pelo contrário, agora deveriam entrar no mundo, misturarse com ele, fingir não ver o que o mundo tinha de ruim, e meter-se dentro de todos os ambientes 766. Compreende-se facilmente que essa doutrina acabasse por conduzir a abismos mais profundos. Não faltaram os que começaram a considerar que os atos contrários à moral podiam ser feitos de um certo modo “santo”, quando praticados com “sinceridade”, “inocência” e “simplicidade”. Essa ideia de santidade subsistente na imoralidade se manifestava, por exemplo, na copiosa literatura místico-sensual da revista A Ordem 767. No fundo, as ideias novas − importa notar este ponto, que é o âmago da questão − constituíam uma tentativa de adaptar o catolicismo aos sistemas filosóficos e aos costumes de nosso século. Não seria difícil demonstrar que o misticismo panteísta a-racional que caracteriza muitos sistemas filosóficos modernos influenciava também, a fundo, o movimento ideológico dos inovadores. A moral de nossos dias, que favorece de todos os modos o livre exercício dos instintos, e despreza todo o exercício disciplinador que sobre eles pode exercer a inteligência e a vontade, também influenciava profundamente as concepções morais dos inovadores768.

5. Negação do pecado original e da militância da Igreja. Ecumenismo Esta concepção envolvia uma virtual negação do pecado original. A ideia subjacente era a seguinte: “Os homens, no fundo, não são maus. Eles são maus porque os bons desconfiam deles. No dia em que o 765 RR 16/4/94. 766 SD 25/6/88. 767 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948. 768 Minuta de relatório para Monsenhor Ottaviani (Santo Ofício), oferecida por Dr. Plinio a Dom Mayer, ano 1950.


203 bom confiar no mau, o mau se converte e se torna bom. Com o mau a gente deve conduzir a política da mão estendida. Deixemos todos os homens fazerem o que quiserem, que tudo correrá bem” 769. No livro Em Defesa da Ação Católica apontei esse erro fundamental como sendo o ponto de partida de um certo ecumenismo. O ecumenismo pressupõe que, estabelecendo-se relações amáveis, dulçurosas, com os hereges, com os cismáticos, a pessoa os acaba convertendo 770. O apostolado deveria ser, portanto, ecumênico: discussões jamais, polêmicas jamais; o sorriso seria o veículo natural da graça de Deus. E se uma pessoa, em vez de sorrir e de ser amável, discutisse com os que estão no erro, essa pessoa rejeitaria o “fiel do Cristo” que quer vir “ao Cristo”. Era preciso, portanto, jamais dizer a alguém: “Você está no erro, você não pode pensar assim”. Ou: “Tal maneira de proceder é contra tal Mandamento da Lei de Deus”. Não! Sorrir! Somente sorrir771. E então a atitude militante da Igreja não tinha mais razão de ser. A atitude da Igreja devia ser conciliante, própria a reconciliar e fazer com que as pessoas boas, as pessoas honestas vencessem sempre a batalha não combatendo. O resultado seria que, diante de tanto amor, tanto amor, tanto amor, a maldade humana não resistiria. Não havia, pois, razão para estar combatendo. A luta era uma coisa errada . 772

6. Arte sacra extravagante, literatura erótico-mística, combate à “mania” da moral Uma coisa que me chocava nesses inovadores era também o apoio que davam às realizações mais audaciosas e extravagantes da arte sacra, e uma certa literatura religiosa erótico-mística das mais perigosas. Por isto também apregoavam nos ambientes católicos uma grande liberdade de costumes. Acusavam os congregados marianos, as filhas de Maria e outras associações de terem um ideal de pureza farisaico e algum tanto antiquado. Pregavam o favorecimento da intimidade entre os sexos, dos passeios e excursões em comum, do uso de trajes de banho hipermodernos. E diziam que os problemas sexuais podiam e deviam ser tratados não só em 769 SD 25/6/88. 770 RR 16/4/94. 771 Palavrinha canadenses 17/8/93. 772 RR 16/4/94.


204 particular e com modéstia, mas em cursos e conferências feitos para ambos os sexos e até pelo rádio e demais meios 773. Em suma, era preciso acabar com a preocupação moralizante. A “mania” da moral devia desaparecer. A Igreja existia, diziam, não para pregar a moral, mas para o “apostolado”774. No fundo, no fundo, no fundo, a Moral deixava de ter importância. E era o próprio perfil do católico que mudava também. Em geral, o católico do tempo em que fui deputado timbrava por ser sério, rir pouco, apresentar-se com gravidade, dizer coisas que tinham importância, alcance, maturidade, pensamento. Para eles, não. O católico novo devia estar sempre rindo, sempre brincando, sempre gracejando, tomando tudo com ar de ingenuidade 775. Resumindo: a Ação Católica era, em matéria de apostolado, o que o Movimento Litúrgico era em matéria de piedade. Ou seja, eram dois aspectos de uma mesma heresia776.

7. Luta de classes latente na opção exclusiva pelo operariado Naquele tempo havia um movimento que teve na Europa, sobretudo na Bélgica, um desenvolvimento extraordinário, chamado JOC, Juventude Operária Católica. Esse movimento era dirigido pelo Padre Joseph-Léon Cardjin, que mais tarde, se não me engano no pontificado de Paulo VI, foi elevado a

773 Relatório apresentado por Dr. Plinio a Monsenhor Valentini no ano de 1950, em Roma — Um relatório de membros da Federação Mariana encaminhado por Dr. Plinio ao sacerdote espanhol Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, professor de Psicologia da Universidade Gregoriana, em Roma (data provável 1950), dizia: “O ambiente mundano sensual penetrou nessa Congregação Mariana [do Ginásio do Estado] também por outra via. Sendo seu diretor ao mesmo tempo Assistente Geral da Ação Católica, deliberou emprestar a sede da Congregação Mariana para cursos mistos (isto é, com a participação simultânea de jovens de ambos os sexos) da J.O.C. Esses cursos [...] são ministrados por jovens da J.U.C. No encerramento dos cursos houve uma reunião festiva, com música e canto. Uma dessas músicas foi um samba [...] intitulado ‘Chiquita Bacana’. As palavras deste samba são extremamente imorais [...]. Cantar este samba é evidemente um descrédito para qualquer pessoa decente. Contudo, durante a festa da J.O.C. foi ele cantado, com uma letra diferente, que assegurava que a própria Chiquita Bacana seria atraída para a J.O.C. “Aliás, os contatos da Congregação com a A.C. têm sido desedificantes para aquela. Assim, numa reunião conjunta de congregados e jecistas, [...] resolveu a J.E.C. organizar conferências sobre ‘assuntos atraentes como os assuntos sexuais’, segundo disse um de seus dirigentes. [...] Se os congregados não quisessem comparecer por se sentirem chocados, melhor seria que não comparecessem. [...] Um fato, entre outros, impressionou muito desfavoravelmente os marianos: uma retirante acendeu seu cigarro na lamparina que ardia na capela, diante do Tabernáculo”. 774 SD 18/6/88. 775 SD 25/6/88. 776 SD 18/6/88.


205 Cardeal 777. Esse movimento tinha uma eficácia, tinha uma precisão de movimentos, de atitudes e um bom gosto no realizar as suas manifestações públicas que verdadeiramente entusiasmava. Lembro-me de ter visto álbuns com fotografias da JOC belga ocupando estádios colossais, com as famílias dos operários católicos nas arquibancadas, e os jovens desfilando e fazendo exercícios. Eu ficava encantado considerando aqueles desfiles. As primeiras “bandeirantes” do progressismo em São Paulo sustentavam que a única coisa que valia a pena, hoje em dia, era promover movimentos operários, porque as classes mais altas tinham perdido completamente o prestígio. E que a existência dessas classes altas era uma espécie de bossa, de saliência errada, mais ou menos como uma espécie de corcova de zebu na organização social. E que era preciso acabar com essas classes. O que era uma manifestação clara do espírito de luta de classes para a qual tendia esse movimento. Contra isto, eu — que era entusiasta da JOC belga e dos movimentos que esta fazia, do número impressionante de jovens que recrutou, quer na JOC masculina, quer na JOC feminina — me opus categoricamente 778. Eu sustentava que era fácil dirigir para o bem as classes populares, desde que as classes altas tomassem a direção boa em relação à Fé, à doutrina católica779. 777 — O Cardeal Joseph-Léon Cardijn (1882-1967) foi diretor das Obras Sociais de Bruxelas, capelão dos sindicatos cristãos e coordenador da Juventude Operária Cristã. Em 1920 fundou a Ação Católica belga. Participou do Concílio Vaticano II e em 22 de fevereiro de 1965 recebeu de Paulo VI o capelo cardinalício. 778 — O acerto de Plinio Corrêa de Oliveira ao detectar a tendência de luta de classes nascente na JOC, encontra hoje uma confirmação impressionante. A JOC belga, depois de se aprofundar no espírito marxista, chegou ao ano de 2014 renunciando até ao nome de católica ou cristã. O boletim francês La Vie, pertencente ao grupo do jornal Le Monde, de Paris, informa em sua edição de 14 de abril de 2014: “Após debates e votos, o Conselho Nacional da JOC belga concluiu que não tem mais significado chamar-se ‘Juventude Operária Cristã’, mas sim ‘Jovens Organizados Combativos’ (Jeunes Organisés Combatifs). [...] Há alguns meses o movimento escolheu um novo nome para si, mais de acordo com suas lutas atuais. “‘Um desafio importante era poder nos definir, não por aquilo que não somos, mas por aquilo que somos’, informa a revista do movimento. ‘Tornara-se evidente que uma grande parte dos jovens não se viam refletidos nas palavras cristão e operário’”. “O qualificativo cristão era visto também como impeditivo da inclusão de pessoas de outras confissões religiosas: “‘Há dois anos que os jovens jocistas decidiram entregar-se a um longo processo de reflexão sobre a identidade da JOC’, explica um comunicado de imprensa do movimento. Agora, ‘os membros da JOC buscam organizar todos aqueles que se revoltaram e querem combater todas as formas de opressão causadas notadamente pelo sistema capitalista’”. 779 SD 14/10/94.


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8. Balanço final: uma outra “igreja” metida dentro da Igreja era:

Isso tudo posto, o balanço a ser dado sobre todo esse movimento

— Estávamos em presença de uma religião nova, otimista, alegre, permissivista e satisfeita, a qual partia da ideia de que o homem, tendo inteira liberdade, se conduz bem. — À maneira da lâmina de uma espada oculta dentro de uma bainha, assim eles queriam ocultar, dentro da bainha da verdadeira Religião Católica, a lâmina de uma religião anticatólica; era uma outra “igreja” metida dentro da Igreja. — Estava sendo pregada uma revolução que vinha a ser, dentro da Igreja, o que a Revolução Francesa foi dentro do Estado. Exatamente a mesma coisa. Era, portanto, um começo de Revolução Francesa que assistíamos dentro da Igreja. — Tudo isto era, antes mesmo da Revolução de Maio de 1968, a implantação na Igreja Católica do ideal da Sorbonne, cujo lema foi: “É proibido proibir”.

Capítulo V Métodos de difusão dessa doutrina e a expansão do movimento: caráter conspiratório 1. Conspiração feita em surdina. Combate à devoção a Nossa Senhora Essa doutrina não era enunciada com esta clareza. Ela era toda “conspirada”780. Em seus escritos, raramente afirmavam sem rebuços sua doutrina. Mas punham em silêncio todas as verdades que queriam destruir, apresentando uma imagem implicitamente mutilada e deformada do catolicismo. De mais a mais, adotavam uma linguagem ambígua, que tanto podia ser entendida em seu sentido errôneo quanto em seu sentido verdadeiro. Assim, combatiam a devoção a Nossa Senhora falando dela o menos possível, isto é, quase nunca. E em seus livros de piedade, abstraíam 780 SD 25/6/88.


207 da existência de Maria Santíssima, induzindo o leitor ignorante e desprevenido a julgar a devoção a Nossa Senhora supérflua e de pouca valia781. Também elogiavam tanto e tanto o Bispo, que o fiel era levado a ter uma visão falsa da organização da Igreja, pela impressão de que o Bispo era quase tudo e o Papa quase nada 782. Essa doutrina eles não davam claramente, davam de um modo confuso, para a ir colocando aos poucos na cabeça das pessoas. Um outro exemplo desse modo confuso eu notei no Movimento Litúrgico: muita correção no recitar o Ofício, muita afinação, tudo muito direito. Só podia impressionar bem as pessoas. Porém, na hora em que explicavam por que faziam aquela oração, vinham os erros: as formas antigas de piedade deviam ser substituídas; não mais o Rosário, não mais a Via Sacra, não mais a comunhão fora da Missa: participe da Missa com o padre e não se preocupe mais com os atos antigos de piedade. Isto era dito assim: “O leigo participa com o sacerdote da Santa Missa”. Mas o que é “participar”? Nunca diziam claramente. Davam a entender que era qualquer coisa de muito novo, de muito importante. Quando notavam que uma pessoa oferecia certa resistência, eles então a sabotavam. E só promoviam, só davam lugares de honra aos que se engajavam em sua escola 783. E assim na surdina, dentro da obscuridade, no meio católico se fazia uma espécie de conspiração de um “catolicismo” que não era catolicismo, porque não há dois gêneros de catolicismo. Existe uma só Religião Católica Apostólica Romana, e todo tipo de adaptação do catolicismo a uma mentalidade dita “nova” é uma deformação do catolicismo. Portanto uma coisa que não se deve aceitar784.

781 — Padre Arlindo Vieira, então em Belo Horizonte, escreveu em 13 de maio de 1943 a Dr. Plinio, dizendo: “As coisas aqui não vão nada bem. É inconcebível a confusão que reina nos espíritos. As almas simples e verdadeiramente piedosas mostram-se escandalizadas. As tais ‘sacerdotisas’ são de uma petulância irritante. Há pouco uma delas iniciou um círculo de estudos no Colégio Imaculada observando que ali reinava um grande mal que inutilizava os esforços da Ação Católica (!) e era que as alunas punham exagerada devoção a Maria no centro da vida espiritual... A superiora tomou em seguida a palavra e enalteceu os benefícios imensos que nos traz a devoção a Nossa Senhora. As meninas prorromperam em aplausos e a herética orientadora saiu furiosa. Estamos evidentemente diante de uma perigosa heresia, cujas consequências são imprevisíveis”. 782 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48. 783 SD 25/6/88. 784 Palavrinha canadenses 17/8/93.


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2. Núcleos aparentemente desarticulados Inteiramente outro era o procedimento dessa gente em seus conciliábulos. Nos seus pequenos círculos de estudo e nas suas palestras, de pessoa a pessoa usavam eles de uma franqueza maior e, por um processo de verdadeira iniciação, à medida em que notavam que as tendências de seus ouvintes iam-se manifestando favoráveis, aumentavam suas confidências, até fazer o "apostolado" direto das doutrinas mais audaciosas. E assim o liturgicismo caminhava cautelosamente, jogando muito mais com palavras que voam do que com escritos que permanecem. E se alguém ousasse denunciar seus manejos, eles se faziam imediatamente de vítimas, dizendo-se caluniados. Era pois uma das tarefas mais difíceis provar que alguém pertencia ao liturgicismo. Pessoalmente eu possuía um grande arquivo de cartas, artigos de jornais, que me permitiram, com algum trabalho, demonstrar o que está no livro Em Defesa da Ação Católica. Mas poucos teriam sido os que, sem igual esforço e documentação, poderiam exibir esta prova785. Já mencionei que havia blocozinhos de pessoas que iam à Europa para formar-se nos movimentos europeus contaminados com essa mentalidade. E que depois voltavam ao Brasil para espalhar esses erros. E que vinham pessoas da Europa com essa mentalidade, para incuti-la nos meios católicos brasileiros. Esses núcleos eram articulados entre si, mas não apareciam como articulados. A generalidade dos católicos não percebia esta articulação e foi na onda, pois esses núcleos eram compostos de pessoas de comunhão diária, de aparência muito religiosa, muito católica, mas que sabotavam de todos os modos tudo quanto havia de bom e de antigo, e pregavam sua doutrina de modo velado 786. Eles em geral procuravam pôr em relevo aspectos legítimos da doutrina católica, mas apresentados de uma maneira exagerada 787. Era, portanto, uma conspiração velada 788.

3. Alguns Bispos perceberam e fecharam as portas Houve reação? Nas principais dioceses o erro não encontrou nenhuma reação: Rio 785 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48. 786 SD 25/6/88. 787 Palavrinha canadenses 17/8/93. 788 SD 25/6/88.


209 de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e outras. Nelas os liturgicistas assumiram os postos de direção, aí exerceram toda a sua influência e conseguiram afastar os elementos de mentalidade tradicional. E assim trabalhavam à vontade. Também em centros menores, como por exemplo Guaxupé. O Bispo, Dom Hugo Bressane de Araújo, mandou tirar da matriz de Poços de Caldas, que dele dependia, todas as imagens. E isto depois da publicação da encíclica Mediator Dei, que fustigava essa prática. Em Uberaba, em Campinas, em Juiz de Fora e outras cidades, a campanha liturgicista continuava infrene. Muitos de nossos Bispos perceberam o problema, e se defenderam contra ele fechando suas dioceses aos agentes da dissolução. Foi o que se passou por exemplo em Piracicaba, Ribeirão Preto, Bragança Paulista, Curitiba, Jacarezinho, Valença, Mariana e outros lugares. Mas esses Bispos não ignoravam que a Ação Católica era dirigida, em seus centros principais, por uma mentalidade fundamentalmente imersa no erro, e que, mais cedo ou mais tarde, não conseguiriam evitar que essa mentalidade se propagasse das Juntas Nacionais e Arquidiocesanas para as suas próprias dioceses. E julgaram melhor não lutar de frente contra o mal, mas apenas opor-se a ele pela abstenção e pelo prudente recuo. Isto subtraiu momentaneamente ao mal certas dioceses. Mas foram resistências individuais, todas elas posteriormente destroçadas. Reação oficial não existiu789. Ora, teria sido preciso, para mover à ação os mais fracos, os mais imprevidentes, como também a grande maioria inerte, que se compreendesse que estávamos em presença de um vasto sistema de ideias, constituindo toda uma mentalidade nova. Que a penetração desse sistema de ideias nos meios católicos existiam não só no Brasil, mas em quase todos os países. Que, em última análise, era uma tentativa sutil, e por isto mesmo duplamente perigosa do espírito do século, de arrebatar as almas ao aprisco da Igreja. E que a própria sutileza do perigo o tornava ameaçador, não só para os propensos ao mal, mas até para espíritos sinceramente orientados ao bem. Nessa tarefa, a cooperação franca e geral dos membros do Episcopado teria sido indispensável para resolver o problema. Sem essa cooperação, não haveria trabalho fecundo e completo 790.

789 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48. 790 Minuta oferecida por Dr. Plinio a Dom Mayer, para relatório a ser entregue no Santo Ofício a Monsenhor Ottaviani, 1950.


210 Infelizmente vimos o contrário. E o destroçamento das resistências sadias não teria sido possível se − e este é o ponto básico − a corrente inovadora não tivesse tido o apoio da autoridade eclesiástica nos centros a que acabo de me referir, e também em várias dioceses de importância embora não tão central. Não julgo as intenções. Verifico o fato concreto. E esse fato concreto foi que, invariavelmente, a autoridade desses focos centrais fez tudo para prestigiar os inovadores e inutilizar, nesses vários centros, a reação sadia. A razão é que o impulso dado pelos centros dirigentes a toda a periferia foi neste sentido 791.

Capítulo VI Faz-se o vazio em torno de Dr. Plinio e do “Legionário” 1. Críticas mordazes para cercear a influência de Dr. Plinio Foi aí que comecei a notar que se ia fazendo o vazio em torno de mim nos meios católicos792. E que, da parte de alguns daqueles que eu tinha em conta de bons católicos, vinha contra mim, e na minha presença, uma série de pequenas críticas mordazes que indicavam uma conspirata qualquer para me afastar e me pôr de lado. E eu não sabia por quê. Dou aqui um exemplo desse tipo de críticas, muito característico 793. Em minhas aulas de História na Faculdade Sedes Sapientiae eu colocava um empenho enorme em ser claro. E as alunas achavam minhas aulas realmente muito claras. Certo dia Mlle. de Loneux, aquela freira que não se dizia freira mas pertencia a uma ordem religiosa meio oculta, disse à diretora da Faculdade: “Eu gostaria de assistir a uma aula do Professor Plinio Corrêa de Oliveira”. A diretora 794 veio me pedir licença, dizendo que uma compatriota belga queria assistir a uma das minhas aulas, por ter ouvido falar muito delas. 791 Memorando enviado por Dom Mayer ao Padre Leiber, provavelmente em 1949. 792 Jantar EANS 23/11/90. 793 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 794 SD 25/6/88.


211 Eu disse: “Pois não, à vontade. Arranjem uma cadeira mais confortável para ela, eu tenho todo o gosto de dar a aula diante dela”795. Do fundo da sala, ela observava a minha aula796. Terminada a aula, seria normal que ela viesse me felicitar, uma vez que eu tinha dado licença a ela para assisti-la. Ela tinha sumido 797. Dias depois, a diretora da Faculdade me disse: “O senhor não sabe o que Mademoiselle Loneux achou de sua aula798. Ela fez um comentário muito elogioso”. Eu achei esquisito que esse comentário elogioso ela não o fizesse para mim, fosse fazer para outra. E pensei: “Aqui tem ronha”. — Ah, sim? O que ela disse? — Ela disse que o senhor é um professor tão claro, tão claro, tão claro, que ela acha que está mal empregado numa universidade, e que era muito melhor que fosse utilizado numa escola de ensino de débeis mentais. Porque sendo claro como é, nem os débeis mentais conseguiriam não entender o senhor. 799. Era uma mordida de serpente. À primeira vista, um grande elogio . Mas na realidade um modo de degradar um professor, não por um defeito, mas por uma qualidade. Quer dizer, a qualidade era tão grande que até merecia ser degradado 801. 800

Aí se vê qual era o método de sabotagem: sob o aspecto de amabilidade802, aconselhar que me mandassem para junto dos imbecis e evitar que, pela minha influência, eu fizesse apostolado 803.

2. “Recados” sobre o fim das Congregações Marianas Outro caso de que me lembro, um pouco antes da Ação Católica aparecer, deu-se com uma boa senhora, que eu respeitava muito e até queria bem. Ela não tinha nenhum parentesco comigo e era de muito boa família de São Paulo. Era também muito católica, mas influenciada por alguns padres.

795 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 796 Palestra sobre Memórias (IV) 9/8/54. 797 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 798 SD 25/6/88. 799 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 800 Palavrinha canadenses 17/8/93. 801 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 802 SD 25/6/88. 803 Palavrinha canadenses 17/8/93.


212 Disse-me ela uma vez: — Plinio, você está satisfeito de ser congregado mariano? Você não queria alguma coisa a mais? ser?

— Se houvesse alguma coisa melhor, quereria. Mas o que pode

— Ainda virá, você vai ver. Com as viagens de tal e tal pessoa à Europa, virá coisa nova. É feita para você. A Congregação Mariana já fez o seu tempo, é coisa superada! — Mas superada pelo quê? — Você vai ver. — Sim, senhora. * Algum tempo depois, quando a Congregação Mariana estava em pleno esplendor, Monsenhor Gastão Liberal Pinto, que era muito chegado a mim, e que tivera um papel muito grande na minha candidatura a deputado, me disse: — Então, senhor congregado, como vai você? — Bem, e o senhor, como vai? — Bem, obrigado. Ah! a Congregação Mariana já fez seu tempo, hein! já acabou. — Mas acabou por quê, Monsenhor? — Tem que vir outra coisa. Não pode ficar eternamente Congregação Mariana. Roda, roda, roda... Congregação Mariana! Quase lhe perguntei: “Roda, roda, roda... e o senhor é padre sempre? Comigo, roda, roda, roda e sou batizado sempre. O que é que o senhor está querendo?” vinha.

Mas não disse nada. Fiquei quieto, procurando ver o que é que

E me perguntei: por que tubulações chega a mim esta espécie de palavra de ordem? Qual é a fonte emissora? O que essa palavra de ordem contém? “Écoutons, parlons bas, marchons à petits pas, ne faisons point de bruit” — “Escutemos, falemos baixo, andemos devagarzinho, não façamos nenhum ruído”. O que é que vai sair de tudo isso?804

3. Conversa com um redador: ultimatum para o grupo do 804 RR 23/11/85.


213

“Legionário” Em certo momento, notei que um rapaz que pertencia ao nosso grupo ia se deixando envolver pelas construtivas. Ele era dos mais moços do nosso grupo. Rapaz de razoável inteligência, muito amável no trato com as pessoas, mas sempre disposto a concordar com quem ele notasse que estivesse de cima. Daí o fato de a adesão dele às nossas ideias não me convencer muito. Certo dia, essas moças da Ação Católica resolveram fazer um congresso no mesmo prédio onde funcionava a sede da Congregação Mariana de Santa Cecília, na rua Imaculada Conceição. No andar térreo ficava o Legionário, que era o órgão da Congregação Mariana. No 2° andar funcionava a Congregação Mariana. E toda a parte de cima, o 3° andar, era tomado por um salão grande, destinado a conferências, apresentações de teatro e outras atividades. Enquanto as moças realizavam esse congresso na parte de cima805, eu embaixo trabalhava com os que estavam preparando o próximo número do Legionário806, e que pertenciam à equipe formada em boa parte por rapazes que mais tarde seriam os fundadores do jornal Catolicismo e por fim da TFP. Eles, sentados de modo recolhido na sala de redação, diante de suas mesinhas, estavam compondo as notícias com as matérias que lhes eram fornecidas. Enquanto na sala do Legionário havia aquela quietude de trabalho e silêncio religioso, em cima, na reunião progressista, eu ouvia palmas, palmas e mais palmas 807. Achei aquilo estranho, porque era um gênero de palmas frenético, e gargalhadas a propósito de coisas que pareciam engraçadíssimas. O modo pelo qual uma pessoa ri de uma piada imoral, este era o modo pelo qual se ria naquele andar de cima. Terminada a festa, vejo aquele mundo de gente que desce. E afinal aparece o tal redator do Legionário (mais tarde tornou-se um político) que naquele dia tinha deixado de trabalhar na redação para ficar com as construtivas lá em cima. Ele se dirigiu à minha sala, pôs-se de pé em frente a mim, numa atitude de quem esfrega as mãos. 805 SD 16/6/73. 806 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 807 CCEE 5/8/90.


214 Olhando-me meio de cima, ele disse808: — Plinio, note a diferença entre os dois andares. Você aqui em baixo com os jovens do Legionário representam a Igreja antiga, séria, que reza, que trabalha, que luta contra o adversário. Em cima é a Igreja nova, que ri, que dança, que se diverte, que vai à praia, que vai à piscina, que vai para toda a parte levando o Cristo. E eu queria avisar a você que há uma combinação de mudar completamente a Igreja. Se você aderir à Igreja nova, nós teremos muita força política e não há cargo a que você não possa ser elevado. Mas se você continuar nessa sua posição, você vai ficar só e completamente esmagado, e o seu futuro terá acabado 809. Você será cancelado e sua carreira como homem público ficará cortada também 810. Ou vocês mudam completamente seus métodos e sua doutrina de ação, ou ficarão completamente postos à margem. Porque a Ação Católica tomou um impulso que não vai mais com os métodos do Legionário. E o Legionário estará liquidado811, será posto completamente de lado pela Hierarquia. E seremos nós que passaremos à sua frente 812. Era evidentemente um recado vindo de mais altas paragens 813.

4. Prossegue a conversa: informações importantes Eu disse a ele: — Fulano, espírito não se escolhe por política. Ou você me explica o que é esse espírito, e então eu analiso, e se estiver de acordo sigo, ou por política não vai: não espere que, por causa de um estardalhaço desses, eu vá mudar de posição. Ele se sentiu apanhado, mas retrucou: — Você se fecha. Até nos dancings imorais nós levamos o Cristo. Você não iria a um lugar desses. Se lhe levassem lá amarrado, você ficaria vituperando e com cara furiosa. E logo que lhe desamarrassem, você sairia. Você sabe nós o que fazemos? Dançamos! Não se choque nem se irrite, nós dançamos. Porque nós vamos com o espírito desprevenido, alegre, e nós levamos o Cristo em nós. Resultado: o Cristo entra naquele lugar e produz conversões. Eu disse:

808 SD 16/6/73. 809 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 810 CCEE 8/11/92. 811 SD 16/6/73. 812 Palavrinha canadenses 17/8/93. 813 CCEE 8/11/92.


215 — É verdade, mas não é Cristo que entra nesses lugares, mas Satanás que entra em vocês. Num lugar desses, qualquer homem normalmente constituído tem tentações, não é possível que vocês não as tenham. Ou vocês foram concebidos sem pecado original? Se assim é, e se me demonstrarem isso, presto minha homenagem, está aqui um vassalo disposto a admirá-los, mas demonstrem. — Não. Essas coisas não são assim. Se você entra lá procurando o mal que há lá, há mesmo. Se você, lá, pensa nisso, é claro que o mal lhe entra pelos olhos. Mas se você vai lá com a ideia de não ver o mal, o mal não te assalta. Não veja o mal! — A mim assalta! Então, você e todo o mundo que está no andar de cima desse prédio é muito mais virtuoso do que eu. Os de cima são imunes ao mal. Aqui em baixo, não. Resultado: nós combatemos e vocês não combatem814. Eu percebi que ele estava transmitindo coisas que se conversavam nas rodas confidenciais. E que era um bom momento de eu me informar do que é que diziam lá. Ele então me disse: — A questão é a seguinte: você representa aqui no Legionário um tipo antigo de católico. Você é combativo. Você acha que a doutrina católica deve ser desfraldada por inteiro aos olhos dos outros. Você acha que a discussão é um bom meio de firmar os princípios. Você acha que quando uma pessoa não anda bem na doutrina e nos costumes, é preciso dizer isso de frente. Você acha que o tipo do homem e da moça deve ser um homem sério, uma moça séria, que vivem pensando em coisas elevadas, que têm uma linguagem nobre e bonita. Não, acabou! Agora é uma era nova. Nós vivemos no mundo da igualdade, no mundo da Ação Católica. A meta da Ação Católica é fazer a Igreja lutar por uma revolução social. É preciso acabar com as classes sociais, acabar com as desigualdades, acabar com a seriedade carrancuda. Nós vivemos em uma época de alegria, de despreocupação. A gente deve pensar nas alegrias de Cristo. As dores de Cristo passaram. Eu: — Ah! sei, sei815. — Todo mundo tem medo de você, com essas suas certezas, com este seu autoritarismo, com este seu modo de discutir que vai empurrando a pessoa contra a parede. Nós não estamos mais na época disso. 814 Jantar EANS 19/6/82. 815 SD 16/6/73.


216 Eu interrompi: — Perdão, nós estamos numa época de quê? Não se falava ainda em diálogo, mas já a mentalidade do diálogo super-ecumênico estava no veneno da víbora. Ele disse: — Nós não estamos mais na época em que um homem com aspecto aristocrático, com aspecto de professor de todo mundo, desce e resolve um problema, e depois ninguém mais tem nada que dizer. Nós estamos na época dos círculos de estudos, na época em que ninguém é mestre de ninguém na busca do caminho. Mas chegamos à época em que todos fazem uma roda, cada um dá um fragmento de opinião amiga, desprevenida, dá opinião como colaborador entre outros colaboradores, sem dizer a ninguém que ele está errado. Não se faz mais tanta carga nessa distinção entre erro e verdade, bem e mal, ortodoxia e heterodoxia. Não! Temos de caminhar juntos, procurando a verdade, a mão na mão, com caridade. Eu pensei: “Aqui está o espírito da Revolução Francesa, aqui está a víbora contra a qual eu consagrei a minha vida. Depois de eu ter martelado contra essa víbora de todas as formas, fora dos ambientes católicos, vejo que ela se fez de morta fora e entra por debaixo do assoalho”. Eu disse a ele: — Mas eu faltei com a atenção a alguém, para meter tanto medo? — Não, mas o seu modo anacrônico mete medo. — Mete medo em quem? — A mim e a todo o mundo. — Mas, é curioso, aqui a sala está cheia de gente que não tem medo de mim. — É, mas é porque você não sabe, você precisa ver o vazio que está se cavando em torno de você. Você é muito afirmativo. Hoje não se deve mais ser afirmativo. Estamos em uma época de liberdade de opiniões. Opiniões que tendem a se encontrar e se conciliar, e não de opiniões que querem se apresentar por esta forma. Eu pensei: “Ah! aqui está outro aspecto”. E deixei-o falar, para ver o que é que vinha. — Deve haver colaboração feminina, os sexos hoje são iguais,


217 todos colaboram de igual a igual816.

5. Fim da conversa: “eu prefiro tudo a me vender” Eu retruquei: — Você está querendo, afinal de contas, me comprar. Porque vejo um companheiro de armas que me pede para largar a luta, misturar-me com o adversário, para depois ser recompensado generosamente por todo tipo de promoções. E me diz que, se não for isto, rua. E então me levantei e falei cortesmente, mas firme817: — Fulano, eu prefiro tudo a me vender. Ainda que eu tenha que ser o último dos homens, eu serei o último dos soldados da Igreja tradicional, mas a Igreja tradicional nunca morrerá. Dizer que eu serei o último dos soldados é um modo de dizer, porque depois de mim virão outros que pensarão como eu, pois a Igreja não morre818. A Igreja Católica nunca mudará e ela nunca se venderá. Ela nunca adotará uma modernidade falsa e contrária aos princípios dela só para se encontrar bem nesse mundo. Ela está no mundo não para se reformar segundo o mundo, mas para reformar o mundo segundo ela. Ou isto é assim, ou quem não pensa assim não pensa com a Igreja Católica. E eu prefiro tudo, prefiro ser cancelado, barrado, empurrado de lado, ignorado, caluniado, esquecido; eu prefiro tudo isso a trocar a verdadeira imagem da Igreja Católica que conheci quando aprendi o meu catecismo nos braços de minha mãe819. — Bem, você foi avisado. Depois não se queixe. — Eu só me queixaria se soubesse que Deus vai me abandonar na luta. Mas isso nunca acontecerá, porque eu tenho confiança n’Ele e confiança em Nossa Senhora. E eles não abandonam nunca, isto não acontecerá. Poderei ser derrotado, mas outros virão que vencerão. Portanto, eu não abandono a minha posição 820. Era a pré-TFP que se enunciava nesse projeto de sacrifício total, de renúncia total, desde que Nossa Senhora fosse servida até ao fim. * O fato concreto é que aquele jovem que me falava deixou as fileiras do antigo Legionário, entrou para o movimento progressista, aderiu àquele clima de alegria excitada que se realizava no andar superior, e que era 816 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 817 Palavrinha canadenses 17/8/93. 818 Palestra para Neocooperadores 28/2/95. 819 CCEE 8/11/92. 820 Palestra para Neocooperadores 28/2/95.


218 símbolo de um estado de espírito, de um modo de ver as coisas que depois chegou ao seu auge. Este rapaz depois galgou as posições mais brilhantes da vida política brasileira. E ajudou a conduzir o Brasil para a triste situação em que está, uma situação de pré-comunismo, a dois passos do comunismo. E nós, lutando na trincheira oposta, ajudamos muitos brasileiros a se porem na brilhante situação em que estão: de uma minoria, mas uma minoria que disse energicamente não, que se fez conhecer no Brasil inteiro, porque não há no Brasil lugar onde não se saiba da existência da TFP. Mas aquela intimação que esse pobre jovem enunciou, realizou-se. Nós fomos relegados, fomos postos de lado, procuraram pôr-nos na penumbra821.

6. O que está por detrás? Essa conversa com esse rapaz deixou-me intrigado 822. Parecia que ele estava instruído a fazer uma provocação para ver se me induzia a uma imprudência qualquer que pudesse servir de slogan numa campanha de difamação contra a nossa orientação 823. E pensei o seguinte: “Esse rapazinho (isto foi em 1939 e ele tinha cerca de 23 anos e eu 30-31) e essas senhoras devem se sentir apoiados de cima, para iniciar essa luta. Quem é, em cima, que os apoia?” 824 Então resolvi o seguinte: “Em vez de combater, eu vou ouvir, para descobrir o que está atrás da cabeça deles; eu vou fazer com que, apesar do suposto medo de mim, eles digam o que está na ‘arrière-pensée’ deles; e quando eu tiver descoberto, aí eu tomo as providências que as circunstâncias possam comportar”. Então, convívio, conversa, gentilezas, sorrisos 825.

7. Convidado para uma reunião da Ação Católica me diz:

Um dia o meu vigário, chamado Padre Luiz Gonzaga de Almeida826, — Plinio, vai haver uma reunião da Ação Católica aqui, uma coisa

821 CCEE 8/11/92. 822 SD 16/6/73. 823 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 824 SD 16/6/73. 825 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 826 — O Padre Luiz Gonzaga de Almeida era então pároco da igreja de Santa Cecília, em São Paulo. Nomeado em 27 de janeiro de 1936, deixou a paróquia em setembro de 1946.


219 extraordinária, você não quer comparecer? — Vou. Creio que o Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra estava nessa reunião. Fomos até lá, uma casa alugada pela paróquia no próprio largo de Santa Cecília 827. Chegando lá, encontrei esta situação: uma mesa, no centro dela um jarro verde-claro que comunicava uma impressão colorida agradável, com umas flores comuns, digamos copos-de-leite. Aquelas flores pareciam sorrir828. Estavam presentes três senhoras de boa família, de trinta e tantos anos, mas com ares de moças, e vestidos com desenhos de florezinhas claras. — Então, vai haver uma reunião aqui? — É, mas não na sala de reuniões, porque não fazemos reuniões. Nós fazemos círculos de estudo. Passou-se o tempo em que um falava e outros ouviam (já era a tendência para a colegialidade). Na Europa ninguém aceita mais isso, não se tolera mais. Nem nos Estados Unidos. E aqui no Brasil vai mudar também. Elas fizeram um círculo e disseram: “Em vez de entrar aqui uma pessoa que conheça a doutrina e a justifique por argumentos, e os outros ficam quietos, cada um de nós dá um fragmento da verdade. E daí, de fragmento em fragmento, compomos uma verdade completa, sem polêmica, numa discussão de amigos829. Eu estava entre os assistentes da história. Sentaram-se três moças e começaram um diálogo, de cujos termos exatos não me lembro, mas era mais ou menos nessa linha: — Fulana, o que você acha da definição da Ação Católica? Ela é uma participação ou é a colaboração no apostolado da Igreja? A outra responde em tom sorridente e melífluo: — Ah! Beltrana, você sabe que é até difícil responder? — É difícil, sim. Mas se nós nos quisermos bem e discutirmos com amor, haveremos de chegar a uma definição. — Você acertou. O amor resolve tudo!... Eu achei aquilo uma coisa espantosa! Encontrar uma definição por 827 RR 23/11/85. 828 Despacho Itália 24/7/95. 829 RR 23/11/85.


220 meio do amor e não da lógica, isto extrapolava completamente de meu modo de ser, era uma coisa inaudita. Mas eu fiquei quieto, tomei uma atitude urbana830. E continuei a observar tudo aquilo arregalando os olhos, mas disfarçando. Eu só me espantava de elas não perceberem o que eu estava achando831. A ideia de fundo era de que, por processos muito amistosos, havia uma forma de adocicar os homens que os faria mudar de pensamento, faria com que o ecumenismo fosse possível a partir da ideia da queda da razão. Era evidentemente uma escola filosófica, mas uma escola filosófica completamente errada 832. Era uma nova forma de governo que entrava na Igreja. Era uma nova Igreja. Mas, à noite, os congêneres dessa gente no Rio de Janeiro iam ao Cassino da Urca para dançar e levar “o Cristo ao Cassino”. Iam assistir à Missa liturgicista de Dom Martinho Michler, com oferendas de hóstia na mão e todas essas coisas que já eram o prenúncio da liturgia modernizada que vemos hoje, com todos os seus erros. Todos eram amigos de todos e constituíam uma conspirata833.

Capítulo VII Papel de Dom José Gaspar de Affonseca e Silva na articulação 1. Perfil do Arcebispo Já me referi a isto, mas vale a pena repetir: em 1935, o então Padre José Gaspar, na qualidade de diretor espiritual da Federação das Filhas de Maria de São Paulo havia escrito um prefácio para o Anuário dessa Federação, em que falava com entusiasmo da Ação Católica834. Ele tinha a intenção de fechar as Congregações Marianas e transformá-las em Ação Católica835.

830 Despacho Itália 24/7/95. 831 RR 23/11/85. 832 Despacho Itália 24/7/95. 833 RR 23/11/85. 834 Palestra sobre Memórias (III) 8/8/54. 835 SD 6/8/88.


221 Mas ainda era Arcebispo o velho Dom Duarte Leopoldo e Silva, que manteve a rédea firme durante todo o seu longo governo episcopal. Como já estava velho e muito cardíaco, a Santa Sé deu-lhe como Bispo Auxiliar o jovem sacerdote Padre José Gaspar de Affonseca e Silva. E a Ação Católica passou a gozar de todo o apoio deste836. * Dom José Gaspar era da cidade de Araxá, no Estado de Minas Gerais . Era uma pessoa que valia a pena ter conhecido. 837

Era o contrário do velho Arcebispo de granito, Dom Duarte Leopoldo838. Pessoa de uma presença muito agradável, as fotografias dele não dão bem ideia de como ele era. Homem alto, ainda moço (tinha 34 anos na época em que foi elevado a Bispo Auxiliar), com uma contradição curiosa: apesar de uma tez morena, era ao mesmo tempo muito corado 839. Sobrancelhas pretas um pouco grossas, que terminavam num ponto meio indefinido. E com olhos pretos meio aveludados 840, muito atraentes, que davam à pessoa a vontade de concordar com ele 841. Com um ar muito sonhador842, e um tom de voz também aveludado 843, assim: — Bom diiia, Dr. Plinio. Como vai passando? Vai bem? Como vão os senhores seus pais, vão passando bem? — Bem, e Vossa Excelência como vai, Senhor Bispo? — Ah! vou bem, obrigado, obrigado. Era ao mesmo tempo uma pessoa extremamente política, labiosa, atraente844, muito afável, muito amável, mas também muito voluntarioso. O que ele queria, ele queria. Era também bom orador845, de inteligência mediana e com ares de muito culto. Qualquer coisa que se falasse diante dele, ele deitava um olhar de profunda compreensão, não dizia nada e, depois, conforme fosse o caso, sabotava ou não. Mas a sabotagem dele era sempre suave, mansa, em geral acompanhada de um suspiro. 836 SD 2/7/88. 837 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 838 SD 16/6/73. 839 SD 9/7/88. 840 SD 16/6/73. 841 SD 9/7/88. 842 SD 16/6/73. 843 SD 9/7/88. 844 SD 16/6/73. 845 SD 6/8/88.


222 Debaixo de certo ponto de vista, era a antítese do meu modo de ser. Para quem conhece o meu retrato em moço, pode imaginar o encontro dos dois homens: um definido, categórico, tom de voz firme, dizendo as coisas como são; o outro, suave, gentil, amável, atraente 846. Ele era um homem de temperamento, curso de ideias, doutrinas, em tudo completamente diferentes de como eu entendia como as coisas deveriam ser na Igreja 847. No meu trato com ele, sempre mantive as mais cordiais relações. E tinha por ele um sentimento de viva e natural simpatia, desde que o conheci, quando ainda era simples sacerdote. Mas inegavelmente era uma pessoa em cuja mentalidade a contradição era um hábito, a irreflexão um sistema e a ingenuidade uma segunda natureza. O modo pelo qual ele concebia a humanidade e julgava dever tratar as pessoas fazia abstração completa dos efeitos do pecado original no homem.

2. Dom José Gaspar dava provas de confiar nos adversários da Igreja Sua tática constante e uniforme, sempre que encontrasse diante de si um adversário da Igreja, consistia em procurar desarmá-lo por múltiplas manifestações de afeto e carinho. Mais grave ainda: dando-lhe provas efetivas e indiscutíveis de confiança. Assim, ele não temia entregar assuntos dos mais delicados a adversários declarados do catolicismo. Esse era, para ele, o modo de “conquistar” as almas. * Havia em São Paulo um banqueiro, conhecido por sua vida não muito recomendável. Mas o Sr. Arcebispo queria “conquistar” essa alma pelos “seus” métodos. Para isto, logo que foi nomeado Arcebispo, mandou que seu secretário, o Padre Rolim Loureiro 848, levasse ao banqueiro a minuta da Pastoral de saudação a fim de que fizesse sugestões quanto à parte referente às questões sociais. O banqueiro, que também era grande industrial, cancelou todo um trecho, alegando que, por seu tom, poderia favorecer a propaganda comunista. O Sr. Arcebispo se queixou do fato ao Padre Rolim Loureiro... mas não publicou o trecho incriminado. 846 SD 16/6/73. 847 SD 6/8/88. 848 — O Padre Paulo Rolim Loureiro (1908-1975) foi ordenado sacerdote em 15 de agosto de 1934. Mais tarde elevado a Cônego, foi posteriormente sagrado Bispo (em 22 de maio de 1948), nomeado Bispo Auxiliar de São Paulo e posteriormente titular de Mogi das Cruzes. Morreu em acidente automobilístico em 2 de agosto de 1975.


223 Esse banqueiro foi o único leigo consultado sobre a Pastoral. Tudo isto me foi narrado pelo Cônego Loureiro 849. * Certa noite, enquanto escrevíamos as matérias para o Legionário, vieram nos avisar que estava na entrada do prédio o automóvel do Bispo Auxiliar (Dom José), que vinha nos fazer uma visita. Fiquei surpreso, mas imediatamente fui recebê-lo e ele veio para nossa sala trazendo para os redatores um bolo enorme que lhe haviam dado de presente. E também um quadro de Nossa Senhora Aparecida. Dei o bolo para os rapazes e começou uma conversa. A certa altura desvenda-se o objetivo da visita: ele, Dom José, havia conversado com um padre beneditino chegado da Alemanha. E este explicara para ele que o problema nazista não estava sendo bem focalizado pelas pessoas aqui do Brasil. Que de fato a Anschluss 850 tinha sido um benefício para a Áustria. E que o Episcopado austríaco não tinha sabido ver bem a necessidade premente da entrada dos nazistas naquele país. Ora, a Anschluss havia indignado todo o mundo. E nós, no Legionário, havíamos publicado artigos e mais artigos cuja tese era: o problema alemão só tinha como solução a restauração da dinastia dos Habsburgos, a derrota dos Hohenzollerns, a supressão da República de Weimar e de todo o nazismo. Isto o Legionário sustentava com todas as notas. Dom José ainda acrescentou que o único homem que vira bem essa situação, e o grande homem capaz de salvar a Áustria, era o Cardeal Theodor Innitzer, Arcebispo de Viena entre 1932 e 1955. Por causa disso, ele vinha pedir um obséquio ao Legionário: que suspendêssemos todo ataque ao nazismo. Esses ataques, afinal de contas, só poderiam magoar a colônia alemã e desorientar os espíritos, porque era evidente que nós estávamos errados, uma vez que esse padre beneditino havia dito o contrário. Por respeito a ele, não respondi aquilo que me saltava aos lábios: não é porque nos vem dizer isso um padre beneditino que esteve na Alemanha, que todos os argumentos de caráter histórico e doutrinário, e os fatos evidentes não ficam valendo nada. Então eu disse:

849 Notas de Dr. Plinio sobre D. José Gaspar, ainda em vida deste, sem data definida. 850 — A anexação da Áustria por Hitler deu-se em 1938, É conhecida como Anschluß ou Anschluss, palavra do idioma alemão que significa conexão ou anexação.


224 — Senhor Bispo, é muito fácil cessar de atacar o nazismo. Basta V. Excia. mandar. O que eu não posso é escrever um artigo elogiando a anexação da Áustria, o que é contra a minha convicção. Dias depois vinha um artigo do Osservatore Romano criticando a anexação da Áustria e sustentando mais ou menos a mesma posição do Legionário. Mostrei a ele o artigo do Osservatore e ele disse: — Ah! bem, neste caso pode deixar. * Outro fato que me chamou imediatamente a atenção dizia respeito à mudança de orientação que ele imprimiu no governo da Arquidiocese. Até o momento da morte de Dom Duarte, em que Dom José Gaspar era ainda Bispo Auxiliar, sempre que havia algum assunto importante ligado aos interesses católicos, nosso grupo era chamado para opinar. E era regra da Cúria evitar de tratar tais assuntos com católicos suspeitos, liberais e de meias tintas. Estes ficavam à margem 851. Quando se tornou Arcebispo, Dom José Gaspar já tomou como lema de seu brasão de armas Ut omnes unum sint — Para que todos sejam um. É um belíssimo desejo expresso por Nosso Senhor no Evangelho, no sentido de que todos se unissem em torno d’Ele, portanto se tornassem católicos. Mas Dom José era levado a entender o lema no sentido ecumênico de hoje, ou seja, para que os católicos se confundissem e se misturassem com os outros 852. Imbuído dessa mentalidade, na hora de escolher pessoas para cargos de confiança em instituições católicas, a solução do caso terminava sempre assim: para tal incumbência ou tal encargo, não vamos nomear os católicos líderes; estes poderiam ficar na sombra, porque eram servidores com os quais a Igreja contava em qualquer situação. Vamos chamar pessoas que sejam ovelhas perdidas e dar a elas os cargos e as incumbências de direção. * Não posso deixar de contar um fato muito exemplificativo dessa mentalidade. A certa altura do ano de 1936, ainda como Bispo Auxiliar, ele 851 Palestra sobre Memória (IV) 9/8/54. 852 SD 2/7/88.


225 resolveu instituir uma estação de rádio católica. Como não tinha dinheiro para montar uma nova, ele fez um contrato de compra e venda de uma rádio leiga, dirigida por um homem que nada tinha a ver com a Igreja. Um dia ele disse que queria minha opinião de advogado sobre o contrato, concebido nos seguintes termos: ele entraria com uma quantia “x”, obtida em donativos, como sinal do pagamento. As outras parcelas deveriam ser pagas em mensalidades de 40 contos 853, que a Cúria arrecadaria junto à massa dos fiéis. E, como medida de economia, para não ter de pagar funcionários para organizar a coleta, o tal homem da rádio se incumbiria de receber as mensalidades. E, quando tudo estivesse pago, a rádio passaria para a Cúria. Ele me perguntou: — O senhor, como advogado, Dr. Plinio, o que acha deste contrato? — Senhor Bispo, há uma escrituração qualquer para tomar nota das entradas dos donativos, para controlar a rádio? Sem esse controle, esse homem da rádio não poderá receber mais e dizer que recebeu menos? — Não há esse controle. O senhor acha necessário? — Como advogado, acho necessário. Mas se V. Excia. confia no tal homem, e tem razões para agir como um advogado não agiria, isto é uma decisão pessoal sua sobre a qual não saberia opinar. — Eu vou lhe contar um segredo: o Padre Tal disse-me que ele, o tal homem, está se convertendo nessas relações comigo. E que vai até doar a rádio à Cúria muito antes do pagamento completo. quieto.

Ao ouvir isto, entendi que não era para dizer mais nada. E fiquei

Dentro de algum tempo, a rádio começou a receber os donativos e anunciou quantias muito menores do que o esperado. Acabou saindo uma polêmica pelos jornais. E Dom José Gaspar ficou sentidíssimo com o negócio. Logo depois, os banqueiros a quem ele devia 15 contos o apertaram de um modo brutal para que ele pagasse as dívidas. Isso ele mesmo me contou. Não sei como ele conseguiu pagar essas dívidas, mas a aventura da rádio católica acabou. Esse fato mostra bem o modo pelo qual o problema das relações 853 — Conto de réis era um valor monetário que equivalia a um milhão de réis, até a reforma de 1942, que substituiu o réis pelo cruzeiro como unidade monetária no País.


226 com pessoas infensas à Igreja se punha aos olhos dele. E como era um homem feito para ver preto em tudo quanto nós víamos branco, e ver branco em tudo quanto nós achávamos que era preto.

3. Hostilidade declarada contra as Congregações Marianas Ele tomou aquele redator do Legionário de quem falei acima, tomou aquelas moças do Centro de Estudos de Ação Social e organizou com eles a Ação Católica. Depois convidou-nos também para entrarmos na organização. E começou uma luta declarada contra as Congregações Marianas. Houve até uma solenidade de recepção de membros da Ação Católica em que ele fez um discurso tão violento contra as Congregações Marianas, que chegou a provocar uma pergunta oficial da Nunciatura Apostólica a ele: qual a razão daquela virulência?854

4. Morte de Dom Duarte Manhã do dia 13 de novembro de 1938. Minha criada portuguesa bate na porta e me acorda. Eu me levanto e pergunto: “Ana, o que há de novo”? — Sua tia, Dona Fulana, telefonou dizendo que o Senhor Arcebispo Dom Duarte está muito mal. — Ah! está muito mal, é? Ela era uma portuguesa fidelíssima. Até hoje não posso me esquecer do jeito dela, uns brações roliços de camponesa. Ela deu uma pirueta e respondeu: “Já se foi!” 855. Imediatamente me compenetrei do que o acontecimento tinha de triste, de grave e de importante para nós. E me preparei para comparecer aos funerais. * Pôs-se um primeiro problema para mim. Naquele tempo, em funerais de grandes autoridades, ia-se de fraque. Quando era uma pessoa comum, ia-se de terno azul-marinho e gravata preta. Minha pergunta: “Hoje, com tudo mudado, os leigos irão de fraque ou de roupa azul comum?”

854 Palestra sobre Memórias (I) 6/8/54. 855 SD 16/6/73.


227 Eu pensei: “É inegável que eu fui o braço direito de Dom Duarte para grande número de assuntos, e que era tido e havido como tal. Tendo ele sido um homem de tanto cerimonial, vou comparecer de fraque. Os outros que compareçam como quiserem”. O corpo dele foi exposto na igreja de Santa Ifigênia, naquele tempo catedral provisória, pois a catedral do Largo da Sé estava em construção. E me dirigi para lá. À medida em que eu me aproximava da igreja, fui notando a massa de povo que afluía. Chegando ao local, lá rezei, e a certa hora o enterro se organizou para sair. Fizeram uma procissão imponente, com todo o Clero, mas absolutamente todo o Clero de São Paulo representado. Depois vinham os Arcebispos e Bispos da Província Eclesiástica de São Paulo, mais os Arcebispos e Bispos vindos de outras dioceses de fora. Havia representantes das autoridades civis e outras pessoas gradas, várias de fraque. E os sinos do mosteiro de São Bento tocavam o dobre de finados. Foi um cortejo muito bonito. Saiu em linha reta através do viaduto de Santa Ifigênia rumo ao Largo de São Bento. Em seguida tomou a rua Boa Vista, depois a rua 15 de Novembro e daí seguiu até o Largo da Sé, cheio de povo. O povo era tanto que nos vários prédios do percurso as pessoas subiam ao alto do teto. Era uma manifestação da popularidade de Dom Duarte, como eu nunca pensei que em São Paulo pudesse haver para alguém. Era a popularidade desse alto respeito, dessa alta seriedade, dessa consciência de sua própria dignidade que habitualmente o povo não elogia, mas na hora de ele deixar o cenário, percebe o vazio imenso que deixa. E o povo todo compareceu para acompanhar, ao menos com o olhar, a ida do Arcebispo para a sua última morada856.

5. Sede vacante em São Paulo: decepção de Dom José Gaspar Cessadas as funções do antigo Arcebispo, a sede arquiepiscopal de São Paulo ficou vacante. Quem seria o sucessor de Dom Duarte?857 856 Chá 19/9/94. 857 SD 16/6/73.


228 Dom José não era Bispo Auxiliar da sede, mas Bispo Auxiliar do Arcebispo, de maneira que, com a morte de Dom Duarte, as funções de Dom José automaticamente cessavam. E aconteceu que o cabido metropolitano não elegeu Dom José Gaspar como Vigário Capitular, mas sim a um velho monsenhor: Monsenhor Martins Ladeira. Quando soubemos do resultado dessa eleição, o Legionário noticiou e publicou duas fotografias, uma do novo Vigário Capitular, e outra de Dom José Gaspar, com uma homenagem muito carinhosa. Naquela noite mesmo eu fui visitar Dom José Gaspar no Seminário, fui lá para consolá-lo. Ele estava abatidíssimo por não ter sido escolhido. Ele me abraçou, eu abracei a ele, conversamos, ambos lamentamos o acontecido. E na hora da saída, ele me disse: “Dr. Plinio, o senhor creia que, para qualquer lugar onde eu vá, eu nunca me esquecerei do Legionário”. Eu respondi: “Excelência, creia que nós também nunca nos esqueceremos de V. Excia.” Despedimo-nos. Foi uma despedida muito amável, até afetuosa. * O fato concreto é que, por uma série de circunstâncias, essa não nomeação de Dom José representou uma ducha de água fria no movimento da Ação Católica em São Paulo. Isto porque, não tendo sido eleito Vigário Capitular, ele teve que abandonar a Arquidiocese de São Paulo. E durante todo o tempo da vacância da sede — perto de um ano — ele passou fora de São Paulo. E com isto todas essas questões progressistas ficaram amortecidas858. Nisto morre Pio XI. E ficaram vacantes ao mesmo tempo o Papado e a sede arquiepiscopal de São Paulo. Foi preciso então aguardar a eleição do novo Papa (Pio XII), e esperar que ele elegesse o sucessor de Dom Duarte 859. Sendo São Paulo, já naquele tempo, uma grande sede arquiepiscopal, fazia parte do estilo da Igreja levar muito tempo para a preencher. Em parte porque a Igreja ouvia opiniões de vários lados, em parte também porque era bonito a Igreja mostrar sua sabedoria sendo lenta nas grandes ocasiões. Isto incutia confiança na maturidade de seus juízos, 858 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 859 — Dom Duarte faleceu a 13/11/38 e Pio XI no dia 10/2/39. Vinte dias depois (2/3/39), Pio XII era eleito Papa. Somente a 29/7/39 Dom José Gaspar foi designado Arcebispo de São Paulo, mais de oito meses depois da morte de Dom Duarte.


229 de maneira que se passaram muitos meses em que nós ficamos com esta interrogação: Quem será o Arcebispo de São Paulo? 860. * José Carlos de Macedo Soares desejou ardentemente a vinda de Dom José Gaspar para São Paulo. Quando o Cardeal Eugenio Pacelli (futuro Pio XII) esteve no Brasil de volta da Argentina, onde havia ido como legado papal para o Congresso Eucarístico Internacional que se realizara em Buenos Aires 861, José Carlos de Macedo Soares foi visitá-lo. E disseram-me que ele, nesse encontro, falou umas dez ou quinze vezes do Padre José Gaspar de Affonseca e Silva, recomendando-o, inculcando-o, dizendo que fez isto, que acha aquilo, pensa de outro jeito. Tudo indica que sua intenção era fazer, assim, com muita antecedência, propaganda para que Dom José fosse eleito Arcebispo de São Paulo.

860 SD 16/6/73. 861 — O 32° Congresso Eucarístico Internacional realizou-se em Buenos Aires de 9 a 14 de outubro de 1934. Ao retornar, o Cardeal Eugenio Pacelli permaneceu no Brasil nos dias 20 e 21, tendo-se hospedado, a convite do governo brasileiro, no Palácio do Catete (Rio de Janeiro), sede do poder executivo até 1960, data da mudança da capital do País para Brasília.


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Parte V Dom José Gaspar e Dom Carlos Carmelo, sucessivamente Arcebispos de São Paulo Capítulo I Dom José Gaspar, novo Arcebispo de São Paulo 1. “Dias duros nos esperam” Quanto a nós, do Legionário, estávamos muito esperançados na eleição de um Arcebispo que corrigisse os desvios na liturgia, os erros na Ação Católica e restaurasse as Congregações Marianas. Estávamos nessa esperança, quando recebo um telefonema de um membro da Ação Católica comunicando-me, radiante, que Dom José havia sido eleito Arcebispo de São Paulo. De nossa parte, prestamos a Dom José todas as homenagens, todas as atenções, todas as cortesias. Mas senti que toda a nossa situação estava precária e abalada com a vinda dele para São Paulo862. Evidentemente, a tal roda de moças da Ação Católica ficou esfuziante de alegria. Ele estava em Itanhaém passando férias. E essas moças seguiram imediatamente para lá, para felicitá-lo. Eu também resolvi descer até Itanhaém para felicitar o Arcebispo. Ele me acolheu muito bem, muito amavelmente, mas notei que toda a simpatia ia para o outro lado. Quando elas chegavam perto, ele se tornava vivaz, alegre, divertido. E quando eu me aproximava com o pessoal do Legionário, ele tomava um ar tristonho, distante e cerimonioso. Eu pensei: “Dias duros nos esperam” 863. 862 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 863 SD 16/6/73.


231 * Dom José veio para São Paulo e nós fizemos parte da comissão de recepção. A cerimônia de posse foi no dia 17 de setembro de 1939. Eu me lembro que a Praça da Sé estava cheia de gente para festejálo, para homenageá-lo. As moças da Ação Católica se destacavam com umas boinas brancas, gritando: “Viva o nosso Arcebispo! Viva o nosso Arcebispo!” Ao vê-las, ele desviou-se do trajeto, chegou até elas, deu uma bênção e prosseguiu. Foi um entusiasmo, um delírio da parte delas. Quando houve aquela bênção, avaliei novamente o que é que vinha . 864

* Também por esse tempo eu notei que o presidente da Ação Católica Brasileira, Tristão de Athayde, com quem eu me correspondia − era meu fraternal amigo: quando ele vinha a São Paulo, almoçava ou jantava na minha casa; e quando eu ia ao Rio eu jantava em casa dele; e nossas famílias acabaram fazendo relações − começava a mudar também e a adotar as diretrizes novas. E pensei comigo: “Preciso arranjar um jeito de conservar junto ao novo Arcebispo uma situação que me permita lentamente ir abrindo os olhos do Arcebispo, para que ele veja que espécie de coisas ele está apoiando involuntariamente”865.

2. “Recado” para Dom José Dias antes de Dom José tomar posse, eu tinha ido à Cúria866. Lá estava o secretário dele, Padre Paulo Rolim Loureiro, que depois se tornou Bispo de Mogi das Cruzes867, o qual, vendo-me lá, veio sentar-se ao meu lado e me disse: José?

— Então, Dr. Plinio, o Sr. está contente com a nomeação de Dom

— Estou e não estou. Eu tenho no fundo muita queixa de Dom José. Eu não digo a ninguém, mas ao senhor que é tão amigo dele, eu devo dizer: eu tenho muita queixa de Dom José. — Mas não diga! Qual é a queixa que o senhor tem dele? 864 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 865 SD 16/6/73. 866 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 867 SD 16/6/73.


232 — Dom José não me compreende. Dom José é um homem de um temperamento muito diferente do meu e por causa disso ele vive preocupado com os adversários da Igreja e não cuida dos melhores amigos da Igreja. Nós, que somos fiéis a ele, nós que o estimamos, nós que somos verdadeiros católicos, ele nos põe constantemente de lado, enquanto aos adversários da Igreja, ele favorece constantemente. Com isso o Movimento Católico de São Paulo está ficando praticamente um feudo dos adversários da Igreja 868. E continuei: — Ele tem a impressão de que o mundo todo se conquista com um sorriso, e que todos os adversários da Igreja, à força de bons agrados, passam a ser amigos. Quem tem a respeito dos adversários da Igreja essa posição, deve achar que um jornal combativo como o Legionário, e um homem combativo como eu, estragamos tudo, porque exatamente azedamos aqueles que, por meio de um sorriso, poderiam ser conquistados. De maneira que eu compreendo que ele tenha a respeito de nós a mesma impressão de um homem que está recebendo visitantes e que tem um cachorro buldogue solto no jardim: para que a festa dê bom resultado, a primeira coisa é pôr focinheira no cachorro. Então a primeira preocupação dele deve ser acabar com a nossa combatividade. E acabando com a nossa combatividade, acabar conosco. Quer dizer, em última análise, eu tenho a impressão de que nós não temos mais nada que fazer debaixo do governo arquidiocesano dele 869. O Padre Loureiro ficou muito incomodado e disse: — Meu amigo, meu amigo, não pense assim! Isso é uma coisa errada! Eu vou falar com ele870. * Outra coisa que fiz foi procurar um jovem padre chamado Antonio de Castro Mayer, que era íntimo amigo do Arcebispo. Em conversa, chamei a atenção dele a respeito das tendências da Ação Católica e das simpatias do novo Arcebispo para com esse movimento. Quer o Padre Mayer, quer o Padre Rolim Loureiro falaram com o Arcebispo871.

868 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 869 SD 16/6/73. 870 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 871 SD 16/6/73.


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3. Presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica O fato é que, quando depois eu fui falar com Dom José, ele estava açúcar e mel, querendo adocicar a situação 872. ele:

Daí a pouco o Arcebispo mandou-me um convite para ir ter com

— Dr. Plinio, eu queria constituir a Ação Católica aqui em São Paulo, e que o senhor fosse presidente e me indicasse os membros da diretoria. (Chamava-se Junta Arquidiocesana da Ação Católica). — Como não, Senhor Arcebispo. Com todo gosto. Eu estou aqui para servi-lo. Indiquei então para os cargos de direção da Junta pessoas do grupo do Legionário873: O presidente, eu, por escolha do Arcebispo; primeirosecretário, José Gonzaga de Arruda; segundo-secretário, Fernando Furquim de Almeida; tesoureiro, José Benedito Pacheco Sales. Dom José convidou o Cônego Mayer para ser Assistente Geral da Ação Católica de São Paulo e Padre Geraldo de Proença Sigaud para Assistente Geral da JEC874. De maneira que, de um modo inteiramente inesperado, nós ficamos colocados na direção da Ação Católica. E eu levei a sério os encargos dessa nomeação 875. Hoje, com o recuo do tempo, percebo que, tanto Dom José como eu, tínhamos cada um a intenção de converter o outro: eu ia com a esperança de mostrar a ele como aquele grupo progressista andava mal; e ele com a esperança de me virar a cabeça para o outro lado.

4. Diferença completa de mentalidade Como presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica, eu dirigia a Ação Católica masculina e feminina. O Cônego Mayer estava acima de mim, era o assistente eclesiástico. Começam então as reuniões da diretoria 876. Tive com Dom José Gaspar várias conversas sobre os rumos da Ação Católica. Ele manifestava sempre uma tendência contemporizadora, 872 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 873 SD 16/6/73. 874 — Estas nomeações foram oficialmente anunciadas na reunião do Clero do dia 11 de março de 1940 (v. Legionário n° 392, de 17/3/40). A cerimônia de posse realizou-se no dia 12 de maio do mesmo ano, no salão nobre da Cúria Metropolitana (v. Legionário n° 401, de 19/5/40). 875 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 876 SD 16/6/73.


234 não me desautorando, mas também não querendo desautorar a outra parte877. Íamos ao Palácio São Luís, que era então o Palácio do Arcebispo. Era uma grande casa senhorial, muito bonita. O Arcebispo nos recebia na saletinha dele: — Então, que novidades trazem, que ideias trazem? — Senhor Arcebispo, nós viemos aqui trazer a V. Excia. um projeto de regulamento para a Ação Católica. — Ah! sei. — No projeto tem isso, tem aquilo, aquilo outro. E entramos no assunto modas: — As saias têm que ser abaixo do joelho e as moças não podem deixar de andar com meias. — É verdade... Nossa Senhora, entretanto, não usava meias878... Dr. José Gonzaga de Arruda, que estava presente por ser secretário da Junta Arquidiocesana da Ação Católica, com seu timbre de voz característico, replicou: — Senhor Arcebispo, é verdade. Mas Ela usava a túnica até embaixo nos pés 879. Ele: suspiro profundo. Essas eram mais ou menos todas as reuniões: desinteligências e dúvidas 880. * No ano de 1940, o Cônego Mayer e eu levamos a ele uma declaração de princípios a respeito da Ação Católica, pedindo a ele aprovar. Esta declaração definia, entre outros, o seguinte ponto: que a Ação Católica deveria tratar de valorizar as Congregações Marianas em vez de romper com elas. E fazer delas uma espécie de núcleo interno de seleção dentro do Movimento Católico. Eu me lembro de que nós lemos esse documento para Dom José numa reunião da Junta, em ambiente de muita cortesia, mas pesado de cortar com faca. 877 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 878 SD 16/6/73. 879 SD 5/8/94. 880 SD 16/6/73.


235 Depois de fazermos esta proposta, Dom José, com o olhar perdido no vago, disse para Dom Mayer, na época Monsenhor por ser o VigárioGeral da Arquidiocese: — O senhor quer mesmo publicar isto aí? Monsenhor Mayer respondeu: — Isto me parece uma coisa verdadeira. — Se isto lhe parece assim, publique então em seu nome. “Em seu nome” queria dizer: aguente com as consequências, eu não tenho nada com isto. É um modo de tirar o corpo e de fazer cair sobre nós toda a responsabilidade. Monsenhor Em vista de todas essas circunstâncias, no ano de 1941Mayer disse: “Está bem”. No dia seguinte sai pelos jornais: “De ordem do Senhor Arcebispo Metropolitano...”

5. Aproximação do Padre Mariaux Seis anos depois de ter sido deputado 881, numa certa noite de 1940 882, houve uma conferência do Padre Roberto Saboia de Medeiros, um jesuíta célebre883, na Escola de Comércio Álvares Penteado, um prédio no Largo de São Francisco, à direita de quem sai da Faculdade de Direito. Como era para o público em geral, achei que havia conveniência em comparecer, e fui com os nossos amigos para assistir à conferência. Chegando lá, eu vejo, do meio para o fim do anfiteatro, uma bancada de uns cinco jesuítas sentados juntos. Entrei, cumprimentei-os, pois eu era conhecido de quase todos eles. Cumprimentaram-me amavelmente. Entre eles, bem no centro, destacava-se um gigantão 884 que transbordava da cadeira por todos os lados. Era alto, mocetão ainda, com um nariz pontudo, os olhos azuis, dir-se-ia um dos primeiros germanos que invadiram o Império Romano do Ocidente 885, e que me cumprimentava efusivamente. Eu vi desde logo que não era brasileiro e tinha muita possibilidade de ser alemão. Nunca tinha visto aquele homem. 881 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 882 Jantar EANS 9/4/87. 883 SD 14/4/79. 884 Jantar EANS 9/4/87. 885 SD 7/7/73.


236 Quando terminou a reunião, vi os jesuítas que se aproximavam em fila para falar comigo. Não era comum. E me apresentaram o Padre Walter Mariaux, dizendo: “É um jesuíta que está vindo de Roma, e era até há pouco o diretor do Secretariado Mundial das Congregações Marianas. Está passando um tempo no Brasil”. O Padre Mariaux me disse em francês 886: — Eu vim a São Paulo só para falar com o senhor. Procurei o seu endereço por todo lado e não havia meio de encontrar. Afinal de contas, telefonei para o lugar “x” e o telefone não respondia. E vim aqui com a esperança de encontrar o senhor, porque me disseram que o senhor talvez viesse a esta conferência. Não era possível eu ter um encontro com o senhor em um desses dias? 887 — O senhor quantos dias fica em São Paulo? — Quantos dias for preciso para conseguir falar com o senhor. Ele me disse uma coisa que me chamou a atenção: “Eu sou um entusiasta dos artigos do senhor no Legionário”888. E referiu-se muito a um artigo intitulado Medalhões 889, que descrevia o tipo de homem vazio, inútil, pomposo, que ocupa posições e não adianta para nada. Ele disse que deu risadas com o artigo, que era isso mesmo no mundo inteiro: medalhões que não prestavam para nada890. E comentou: — Com certeza o senhor viu que eu tenho reproduzido muitos artigos do senhor no nosso boletim mundial. Eu nem sabia que eles tinham um boletim mundial. Mas quando ouvi isto (este secretariado era em Roma)891, minhas orelhas se levantaram 892. Louro, muito alto, hercúleo, exuberante de saúde, gestos largos, mãos de feld-marschall, ele causava sempre uma primeira impressão de robustez e determinação, que aos poucos se ia completando com elementos psicológicos novos. Não conheci personalidade mais rica em aspectos

886 Jantar EANS 9/4/87. 887 SD 2/7/88. 888 Jantar EANS 9/4/87. 889 — V. Legionário nº 300, 12/6/38 (o site http://www.pliniocorreadeoliveira.info disponibiliza este artigo, bem como outras colaborações de Plinio Corrêa de Oliveira para o Legionário). 890 SD 2/7/88. 891 Jantar EANS 9/4/87. 892 SD 2/7/88.


237 contrastantes e todavia harmônicos 893. Marcamos um encontro, não sei bem onde, e começamos a conversar. E vi que ele tinha muita afinidade conosco em uma porção de pontos. Enfim, foi uma conversa cordialíssima. Ele me contou que tinha sido diretor de Congregações Marianas na Alemanha, obtivera tais e tais resultados e queria fazer uma organização de jovens aqui.

6. Consolidação da amizade com o Padre Mariaux Como trabalhávamos em muita conexão com o Cônego Mayer, que naquele tempo era Assistente Geral da Ação Católica, eu quis que ele o conhecesse. Ele era um personagem extremamente pitoresco, tinha gestos categóricos: “Ach!” “Ach!” é uma exclamação alemã equivalente ao nosso “Ah!”894. Ele me interrompeu 895: “Ach nein!”896 As maneiras dele não eram as mais suaves do mundo. “Não”, um mãozão enorme, “não!” — Mas, “não” por que, Padre Mariaux? — Essas figuras importantes do Clero eu não gosto. Em geral são “medalhões” como o senhor escreveu. O senhor vai me fazer perder tempo falando com esse homem. Eu insisti e ele acabou aceitando: — Olha, é só porque o senhor está insistindo. Onde será esse encontro?897 Não quero que seja em nenhum lugar eclesiástico. — Está bom, Padre Mariaux, em minha casa. Ele não era de levantar tarde como eu, era ultra madrugador. Afinal, com certo jeito eu consegui que o encontro fosse às 10 horas em casa898. * Minha casa era, nesse tempo, na rua Itacolomi. Hoje está demolida. Eu morava ali com minha mãe.

893 Em Itaici, Legionário n° 609, 9/4/44. 894 Jantar EANS 9/4/87. 895 SD 2/7/88. 896 Jantar EANS 9/4/87. 897 SD 2/7/88. 898 Jantar EANS 9/4/87.


238 A casa, alugada, era pequena, mas primorosamente arranjada899, com acabamentos esplêndidos: papéis de parede de primeira ordem, cristal nos vidros separando as portas, maçanetas também de primeira ordem. Minha irmã havia montado nossa sala de visitas e tinha ficado realmente muito bem. Muitíssimo agradável a sala, mas era pequena, e nela cabiam poucos móveis 900. Aparece o nosso homem em casa. Cumprimentos 901, e entra o alemãozão enorme, bem mais alto do que eu, na minha sala cor-de-rosa902. Ele por assim dizer encheu a sala. Ele comprometia um pouco a solidez dos móveis, mas eu não olhei para isso, eu estava olhando só para as relações romanas dele 903. E ele me disse, num francês, assim: “Vous habitez bien”. Eu disse: “Está à disposição, Padre Mariaux” 904. Entra o Cônego Mayer. O contraste não poderia ser maior. Cônego Mayer moreninho, pequenino, transbordante de vida, mas muito pouco parecido com um alemão. E o Padre Mariaux personificando a Alemanha a cem por cento. Na primeira conversa ficaram logo amigos905. Eu mandei a empregada trazer, numa bandeja de prata, cálices e uma garrafa de vinho do Porto, o que para nós é banal. Ele: “Ach! Portugal, hein?” Ele gostou muito do vinho do Porto. Mas em dose correta, nem de longe em excesso, mas enfim, largamente. Acendeu um charuto, começou a fumar e aí teve início uma conversa sobre a situação geral da Igreja, sobre o nazismo e vários assuntos do gênero. No que diz respeito à crise da Igreja, em alguns pontos ele foi mais longe do que eu. E contou várias coisas passadas em Roma 906. A crise dentro da Igreja ele percebia bem. Entendíamo-nos vigorosamente nesse ponto907. 899 SD 2/7/88. 900 SD 14/4/79. 901 Jantar EANS 9/4/87. 902 SD 14/4/79. 903 SD 2/7/88. 904 Jantar EANS 9/4/87. 905 SD 7/7/73. 906 Jantar EANS 9/4/87. 907 Jantar EANS 16/6/82.


239 Falamos contra Jacques Maritain, que era um filósofo da esquerda católica com enorme voga no mundo inteiro. Nós aqui escrevíamos muitos artigos contra esse filósofo, e ele acompanhava todos 908. Entendemo-nos totalmente sobre o nazismo. Ele tinha lançado um livro contra o nazismo, de umas 700 ou 800 páginas, superdocumentado, provando que o nazismo havia perseguido a Igreja Católica de um modo brutal. O livro se chamava 909: Testis Fidelis — La Iglesia en el III Reich Alemán 910. É a melhor obra que eu conheço a respeito do nazismo: as perseguições religiosas, todo o mal que o nazismo fez, argumentação muito séria e muito sólida; parte doutrinária límpida911. À vista dessa concórdia, sendo ele jesuíta e eu ex-aluno dos jesuítas, e admirador até hoje, a perder de vista, de Santo Inácio de Loyola e da Companhia de Jesus como ela foi e como ela deveria ser; e gostando muito das coisas alemãs, mas muito, não tardei em formar uma simpatia enorme para com o homem. E depois, com o tempo, uma verdadeira amizade. Não oculto que a condição de alemão do Padre Mariaux me dava muito gosto no trato com ele. Aquele categórico, certa truculência, certa ênfase oratória, eu gostava muito. Nós o convidávamos frequentemente para as nossas coisas, íamos jantar em restaurantes, uma coisa e outra. E ele era um parceiro para um almoço ou para um jantar, interessantíssimo. Tinha muito boa prosa, era engraçado, inteligente. E comia de maneira a dar apetite a uma estátua de pedra ou de bronze. Ele era engraçado até nos erros de português que cometia 912.

7. Razões da vinda para o Brasil do Padre Mariaux Brasil?

Por que razão o Padre Mariaux tinha vindo da Europa para o

913

Ele não me contou, mas deixava escapar pequenas coisas por onde eu percebia que ele estava sendo perseguido 914. Contaram-me depois que, em certo momento, ele fez não sei que imprudência 915, talvez alguma 908 SD 2/7/88. 909 Jantar EANS 16/6/82. 910 SD 17/6/89 e SD 7/7/73. 911 SD 17/6/89. 912 Jantar EANS 9/4/87. 913 SD 17/6/89. 914 Jantar EANS 9/4/87. 915 SD 17/6/89.


240 pirueta política916, tornando-se necessário que saísse correndo de Roma. Então, o Geral da Companhia, um polonês, Conde Wlodimir Ledochowski, deu-lhe a liberdade de escolher o país para onde quisesse ir. Ele foi à Argentina e de lá 917 veio para o Brasil, atraído pelo Legionário. E eu me pus inteiramente à disposição dele, para o que ele quisesse. Ele disse que ia visitar o Rio. Mais do que compreensível. Foi ao Rio, passou um tempo lá, e de lá ele me telefonou um dia: — Queria que o senhor me dissesse, com toda franqueza, o que o senhor pensa: para o meu apostolado no Brasil, é melhor eu me fixar em São Paulo ou no Rio? Então dei a ele uma resposta imediata 918: — Padre Mariaux, o senhor querendo, fique no Rio. Acho que o senhor pode fazer um grande bem no Rio. Agora, preciso lhe dizer que o Rio é capital do País, mas o centro econômico é São Paulo. E acontece que a sociedade de São Paulo é organizada de modo cônico. São Paulo, no fundo, economicamente, comanda o Brasil. E há umas 200 ou 300 famílias que comandam São Paulo. Os filhos dessas famílias estudam no Colégio São Luís, onde o senhor pode formar um grupo. Se esse seu grupo for dessas famílias, o senhor, através desse grupo, toma impulso no Brasil 919. Ele bateu-se então para São Paulo, fixou-se no Colégio São Luís e começou a trabalhar junto aos alunos. Tudo muito normal. Essa foi a semente do “grupo da Martim”, constituído na década de 50, de que falarei mais adiante 920.

916 Almoço EANS 16/6/82. 917 SD 17/6/89. 918 Jantar EANS 9/4/87. 919 SD 7/7/73. 920 Almoço EANS 9/4/87.


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Capítulo II Escândalo progressista em Taubaté: primeiro golpe no liturgicismo 1. Padres novos: polvorosa na cidade, escândalos Entrementes, um fato rumoroso acontecido na Diocese de Taubaté, interior de São Paulo, abriu os olhos de muitos a respeito dos extremos de virulência a que podia chegar a corrente nova que ia surgindo. A Diocese foi governada, como já dissemos, até 1935 por um excelente Bispo, Dom Epaminondas Nunes D’Ávila e Silva, ao qual sucedeu, em 1936, o Bispo Dom André Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti 921. Nesta Diocese formou-se um grupo de sacerdotes moços, os quais entraram freneticamente para o movimento litúrgico: Padre Ramón de Oliveira Ortiz, Padre Carlos Ortiz (que depois apostatou 922 e publicou, sob a forma de romance, a história de sua apostasia e ligação pecaminosa com uma jovem da Ação Católica “moderna”923, tornando-se cineasta e propagandista comunista), Padre Benedito Mário Calazans, Padre Jairo de Moura, Padre Carlos Gomes e mais alguns outros. Esses padres ficaram logo e imediatamente liturgicistas quando o movimento apareceu. E constituíram uma célula liturgicista que teve muita repercussão no Brasil 924. Esse grupo de padres litúrgicos levou a sarabanda a tal ponto que chegaram a fazer os atos de culto de modo quase comunista. Eles não rezavam mais a Missa nos altares, mas tomavam uma mesa de copa e a colocavam no centro da nave, com todos os bancos afastados e cadeiras em volta, como em uma refeição. E ali celebravam a Missa com as pessoas sentadas em torno, para dar ideia de um banquete. Nenhuma imagem sobre a mesa, a não ser um pequeno crucifixo, e isto porque o Código de Direito Canônico obrigava. A ideia era a da comunidade cristã reunida em torno do padre, visto enquanto deputado da comunidade para oferecer o sacrifício. Na hora da oferenda, todos os que iam comungar levavam uma partícula na mão para 921 — Dom André Arcoverde nasceu em Pesqueira-PE, no dia 15 de dezembro de 1878 e faleceu em Taubaté, a 20 de junho de 1955, de onde foi Bispo entre 1936 e 1941. 922 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 923 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948. 924 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54.


242 que o padre a consagrasse. E faziam disto um cavalo de batalha. Essa conduta pôs Taubaté em polvorosa. As ideias dos padres litúrgicos repercutiram aí como uma verdadeira explosão. Outro motivo de escândalo eram os namoros de alguns daqueles padres com moças da Ação Católica. Depois, ditos incríveis dos membros da Ação Católica, como a ideia de que todos eles deveriam frequentar lugares não recomendados pela moral católica para aí "levar o Cristo", e outras loucuras de todo o tamanho.

2. Reação de Monsenhor João de Azevedo e de Monsenhor Ascânio Brandão O pobre Bispo Diocesano, Dom André Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, havia sofrido um desfalque financeiro da parte de um padre, que fugiu com o dinheiro do Bispo. Tudo isto obrigou-o a renunciar. Ele propriamente teve que fugir: partiu para a Nunciatura e deixou uma carta na Cúria. Reuniram-se os conselheiros da Diocese e foi eleito Vigário Capitular um sacerdote, que era amigo meu, Monsenhor João José de Azevedo925, vigário de Pindamonhangaba. Monsenhor João de Azevedo era um homem de grande estatura, já naquele tempo com os cabelos grisalhos, de óculos, traços do rosto regulares e um todo de homem decidido, perspicaz, inteligente. O braço direito de Monsenhor João era um padre de São José dos Campos, Monsenhor Ascânio Brandão. Homem também alto, lógico e decidido. Foi essa dupla — Monsenhor Ascânio e Monsenhor João — que deu o primeiro golpe frontal no liturgismo no Brasil. Eles têm essa glória que é preciso que lhes seja reconhecida por justiça. O caso passou-se assim: Monsenhor Ascânio era capelão de uma congregação religiosa feminina, as Pequenas Missionárias de Maria Imaculada, de São José dos Campos (então pertencente à Diocese de Taubaté). Esta congregação religiosa havia sido fundada por uma prima minha que conheci pouco: Madre Maria Teresa de Jesus Eucarístico 926. Era pessoa inteligente e com 925 — Monsenhor João José de Azevedo foi Vigário Capitular de 1941 até a nomeação do novo Bispo, Dom Francisco Borja do Amaral, no ano de 1944, o qual prescindiu de sua colaboração na Diocese. 926 — Madre Maria Teresa de Jesus Eucarístico, no século Dulce Rodrigues dos Santos (1901-1972). Seu pai, Brasílio Rodrigues dos Santos (tio-avô de Dr. Plinio) foi catedrático de Direito Comercial na Faculdade de Direito de São Paulo, tendo exercido o cargo de deputado estadual e depois federal. Sua mãe, Helena Herold, era filha de imigrantes alemães. A congregação foi fundada em São José dos


243 muita ascendência sobre Monsenhor Ascânio. Madre Maria Teresa chamou Monsenhor Ascânio e perguntou a ele se não estava percebendo alguma coisa esquisita no grupo do Padre Carlos Ortiz e naquela farândola toda. E pediu a Monsenhor Ascânio que analisasse a questão. Monsenhor Ascânio atendeu ao pedido, e teve um primeiro lampejo sobre aqueles desvios. Homem de consciência reta, espírito tradicional, em desacordo com os abusos que estavam sendo praticados, começou a intervir e a falar com um e com outro daqueles padres, dizendo: “Vocês estão errados nisto, naquilo”. Os padres retrucavam dizendo que não, que era assim que se deveria fazer. Em dado momento ele diz a um desses padres o seguinte: — A prova de que vocês estão errados é que Monsenhor Ramón Ortiz (que tinha esse título por ser Vigário Geral) é muito mais moderado do que vocês. Respondeu o padre: — Ora, Ascânio! Você não vê o que é? Monsenhor Ramón tem a tarefa de se fazer de moderado, pois assim ele é elevado a Bispo. Os outros, pelo contrário, fazem o jogo franco. Ele, uma vez Bispo, fará depois os outros subirem”. Fiat lux na cabeça de Monsenhor Ascânio, o qual imediatamente escreveu ao Sr. Arcebispo de São Paulo, Dom José, mandando pouco depois carta semelhante (18/11/41) ao Sr. Núncio Dom Aloisi Masella, contando o caso*. * Pouco depois, em 30 de novembro de 1941, Monsenhor Ascânio escreveu carta ao Padre Carlos Ortiz, da qual destacamos os seguintes trechos: "Meu caro, desde há algum tempo para cá, diante de certos fatos e atitudes suas e do Padre Calazans, Padre Jairo e dos dois moços da A.C. em Taubaté, o Benedito Ortiz e o Quintanilha, fatos e atitudes bem conhecidos, estou e continuo em desacordo com vocês quanto a alguns métodos e ideias. [...] Desde que o vi aprovar e sustentar o estilo do Padre Carlos Gomes na 'Agonia do cristianismo' e o vejo discípulo fervoroso de Leon Bloy e Bernanos, nesta matéria, senti que não podia e não devia em consciência apoiá-lo e incentivá-lo, como o fiz até ainda há pouco, julgando não chegasse suas ideias àquele extremismo irreverente e perigoso. [...] Só lhe pediria um favor: não use esta linguagem nem no púlpito nem na imprensa.

Campos, Estado de São Paulo, onde está localizada a casa-mãe do Instituto das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada.


244 Ela escandaliza e faz mal. É chocante. Não aprecio o seu modo de encarar a vocação religiosa da A.C. no século. [...] "Quanto à formação sentimental, tive queixas de pessoas que ouviram seus círculos de estudos e estranharam a linguagem. [...] "Sempre censurei e comigo bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis, a linguagem irreverente que usam vocês no púlpito, em círculos de estudos, em palestras, sobre os altares, imagens, e tradições sagradas do povo. Não imagina a repercussão de certas expressões de vocês nesta matéria! [...] "A sua frase: - A Igreja não é nenhum feudo da autoridade eclesiástica, é ousada. Não admito leigos da A.C. fazendo policiamento litúrgico nas igrejas e chamando a atenção de vigários. Os fatos, meu caro, são por demais conhecidos. A ideia de propagar Missa versus populum, casula gótica substituir paramento romano por gótico etc., e a linguagem: altares prateleiras, santos horrendos etc. perante o povo, tudo isto é chocante e escandalizante. Não sou pela piedade exclusivamente litúrgica com menosprezo da extra-litúrgica. Não gosto dessas ironias sobre Congregações marianas e Associações pias, escapulários, medalhas e o terço. [...] " A maneira de falar e de criticar as procissões extra-litúrgicas, de vocês, é quase a dos protestantes... [...] "A respeito da Autoridade, dos Bispos etc., não use expressões de comunistas: Clero burguês e amigo da burguesia [...]. "Os métodos para reforma do mundo são os da Igreja e nesta hora os da A.C. Não encontro porém nos documentos pontifícios a linguagem que vocês usam às vezes... A reforma do mundo virá não pela revolução mas pela santidade" [Todos os grifos são do original].

3. Denúncia e panos quentes na reunião do Episcopado paulista Na reunião seguinte do Episcopado paulista, Monsenhor João de Azevedo compareceu como Vigário Capitular de Taubaté e disse que tinha um caso do Movimento Litúrgico na Diocese de Taubaté a relatar. Tomou a carta em que Monsenhor Ascânio contava esses fatos todos, e também uma série de outros documentos, e leu na reunião. Como em Taubaté já tinha havido um escândalo com a saída do Bispo Dom André, o Episcopado paulista resolveu não agravar as coisas e apenas fazer uma circular reservada ao Clero da Província contando os abusos litúrgicos ali ocorridos, mas recomendando que nada fosse dito aos leigos927. Com isso punham uma pedra no assunto para evitar novos escândalos. * 927 — Esta circular ao Clero da Província Eclesiástica de São Paulo, alertando contra os excessos do liturgicismo, é de agosto de 1942 (cfr. Elói de Magalhães Taveiro, Para evitar as prescrições da História, Catolicismo n° 150, de junho de 1963).


245 Nós, nas conversas com Dom José Gaspar, sempre lembrávamos esse documento: — Senhor Arcebispo, veja como foi bom V. Excia. ter conseguido atalhar isso na Arquidiocese, com as medidas que nos permitiu tomar na Ação Católica. Isso foi uma uma coisa excelente. Ele não dizia nada. Esses fatos também concorreram para deixar o Núncio de sobreaviso, e ajudou-o a compreender a gravidade do problema diante do qual estávamos.

4. Dom José Gaspar impede punição e acolhe os padres escandalosos Dom José Gaspar não esperava que estourasse esse caso. E vendo que Monsenhor João estava resolvido a tomar medidas enérgicas contra aqueles padres, interveio dizendo que achava perigoso que esses padres chegassem à apostasia. E que era melhor mandá-los para São Paulo, que ele iria tratar de lhes mudar a orientação. Todos esses padres então levantaram voo de Taubaté e desceram em São Paulo. Naturalmente foi evitado o pior para os padres liturgicistas, pois Monsenhor João de Azevedo acabou não lançando um decreto contra eles na Diocese de Taubaté. E foi muito bom para o liturgismo, pois, chegando aqui em São Paulo, esses padres começaram a prestar serviços ao pessoal da Ação Católica que se reunia no Centro Leão XIII e em outras organizações do mesmo gênero. Mas foi muito ruim para Dom José, pois muita gente ficou vendo que ele de fato estava protegendo essa corrente. Tanto mais que ele fez uma coisa ainda mais grave: tomou o Monsenhor Ramón Ortiz e o fez morar no próprio Palácio, incumbindo-o de uma tarefa de suma importância e responsabilidade, que era secretariar e redigir o futuro sínodo diocesano de São Paulo. Ora, o sínodo era uma assembleia de padres presidida pelo Bispo, e convocado para tomar as medidas necessárias para a organização da Diocese, o que só pode ser planejado por um padre muito bom, observante e competente. Dar ao Monsenhor Ramón Ortiz essa tarefa era uma bofetada em Monsenhor João e um ato de apoio à corrente nova. Ademais, nomeou a outro desses padres para o cargo de Inspetor de


246 Ensino Religioso, o que causou muito escândalo*. * Nessa ocasião, Monsenhor Ascânio Brandão escreveu carta a Monsenhor Mayer (em 31 de dezembro de 1942) desabafando: "A campanha surda contra mim e Monsenhor Azevedo continua terrível e sorrateira. E... se fazem de vítimas! [...] Porém (e aqui permita que eu fale com franqueza), o que mais me abateu e chocou é a atitude do Sr. Arcebispo [de São Paulo]. [...] S. Exª não vê bem a Monsenhor Azevedo, sei que me trata com desconfiança e... tem lá no Palácio o líder do Movimento de Taubaté, o responsável, o defensor nato de toda a Revolução litúrgica do caso de Taubaté! Sei que lá no Palácio de São Luís se cochicha em favor das 'vítimas' (!) contra os 'carrascos'... Percebo tudo. Vejo e ouço os despautérios e os boatos do "Inspetor do Ensino religioso" que se gaba e afronta a todos nós com a petulância que o distingue. Sei de muita coisa, Monsenhor Mayer, muita atitude dúbia, indecisa, da Autoridade. [...] Julgo que S. Exª está nas doces ilusões de Dom André [Arcoverde]... o despertar poderá ser muito triste... Sei que os líderes da célebre A.C. [Ação Católica] se carteiam, tramam, organizam-se em segredo e... se orgulham de andar conquistando o Arcebispo! Esperam depor o Vigário Capitular de Taubaté e me desterrar após um processo canônico com que me ameaçam. [...] As atitudes do Sr. Arcebispo me desconcertam..." (grifos do original).

Isso tudo produziu, em muitos meios católicos de São Paulo, uma crepitação contra Dom José*928. * O Cônego Mayer, escrevendo ao Cardeal Leme, comentava de Dom José Gaspar: “A maneira com que ele [Dom José Gaspar] tem agido nestes dois últimos anos mostra esta sua intenção, intenção que, a julgar pelas coisas que aparecem, não fruto de uma inadvertência, de uma tolerância mal compreendida [para] com elementos perniciosos, mas fruto de um plano premeditado e aplicado com muita inteligência e argúcia. O exame atento da maneira como tem ele procedido com o chamado caso de Taubaté demonstra-o com a evidência possível [...] Sem que esses padres mudassem de opinião, ou dessem a menor demonstração de reprovarem os erros que professavam antes, o Sr. Arcebispo começou uma campanha desmoralizadora do Exmo. Sr. Vigário Capitular de Taubaté [Monsenhor João de Azevedo], porque este padre não era favorável às doutrinas dos anteriores. [...] Acusou-o de violar o sigilo a que estão obrigados os que tomam parte nas reuniões dos Srs. Bispos, quando Monsenhor Vigário Geral limitou-se a comunicar ao seu Clero as resoluções tomadas. [...] Acusou-o de violência e arbitrariedades [...]. Não contente com esta ação à distância, foi a Taubaté com o fim de desautorar a Monsenhor Vigário Capitular, pois foi para inaugurar um centro de higiene e puericultura confiado a um grupo de moças que tinham tomado e ainda tomam atitude francamente contrárias à orientação de Monsenhor Vigário Capitular [...]. Mas, como disse, tudo isso é feito com muita inteligência. Assim, por escrito ele não fornece documento nenhum sobre nenhum desses pontos. Há até documentos em que ele diz o contrário. Mas em conversa com padres que ele sabe que espalharão suas ideias, ele se abre, com leigos ávidos de maior liberdade na Moral Católica, também ele se abre”.

928 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54.


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Capítulo III Deposição das “construtivas” 1. Desvios e doutrinas esotéricas: relato verbal ao Arcebispo Em vista de todas essas circunstâncias, no ano de 1941, o Cônego Mayer e eu — ele enquanto assistente eclesiástico e eu enquanto presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica — começamos a chamar os dirigentes dos diversos setores já existentes, para tomarmos conhecimento do que estava se passando dentro da Ação Católica. Falamos na ocasião com os altos dirigentes, mas também com as diretorias de nível médio, para ter esse contato rico, vital, que se deve ter entre pessoas que são irmãs de apostolado. E nessas conversas veio à tona a doutrina esotérica dessa gente, não dita pelos chefes, mas pelo pessoal de 2° grau que nos contou algumas coisas reveladoras. Fizemos então um relato verbal para Dom José, mostrando que estava pegando fogo na casa. E dissemos a ele: — Dom José, a Ação Católica está toda infectada, está com gente que pensa assim, tem tais erros assim. Nós temos informações tais e tais. E contamos tudo quanto ouvimos, e que era muito grave 929. A certa altura o Cônego Mayer disse a Dom José: — Excelência, a situação é muito grave. E eu só terei condições de governar a Ação Católica, se V. Excia. me der a autorização de depor todas as diretorias e nomear diretorias novas. Se V. Excia. não der, eu não 929 — O Cônego Mayer, na citada carta-relatório ao Sr. Cardeal do Rio, Dom Sebastião Leme, punha-o a par de alguns desses desvios: "A respeito dos padres, [essas moças] achavam que eles não entendiam nada de A.C. e apostolado, de maneira que era necessário por meio de suaves infiltrações 'convertê-los'. "Com relação à austeridade que apresentavam nossas moças das associações religiosas, opinavam que eram atitudes reprováveis, pois só serviam para afastar as pessoas de Nosso Senhor. O necessário era apresentar um semblante alegre, jovial, acompanhar as ideias novas, pois que somente dessa maneira é que se poderia obter algum resultado no apostolado. "Ao lado desse liberalismo na Moral, professavam um laicismo no apostolado: o padre deveria restringir suas funções à administração dos Sacramentos, o apostolado era com elas: os padres fazem o que nós não podemos fazer, dar Comunhão, confessar etc. [...] E quanto às religiosas, não se admitia que frequentassem os círculos dos membros da Ação Católica, porque a A.C. era só de leigos". Encontramos ecos dessa carta a Dom Leme, embora sem se referir concretamente a ninguém, na página 7 do Legionário n° 478, de 9 de novembro de 1941, coluna Federação Mariana Feminina Cruzada contra o mundanismo, escrita pelo Cônego Mayer.


248 saberei como continuar. De maneira que V. Excia. veja o que quer fazer.

2. Dom José entre a espada e a parede Diante da gravidade da denúncia, se Dom José mantivesse essas diretorias e nos pusesse fora, ele tomaria partido oficial pelo lado errado. E isto absolutamente não convinha a ele. Então, entre suspiros, ele disse a Dom Mayer que poderia depor essas diretorias, mas que esperasse ele estar fora de São Paulo para fazê-lo. E saiu para uma viagem de vinte dias a uma estação de águas 930. Em outubro de 1941, Dom Mayer e eu, devidamente habilitados, reunimos, ele as diretorias femininas e eu as masculinas, e comunicamos a destituição de todas as diretorias. Depois publicamos que, com a autorização de Dom José, tinham sido nomeadas tais outras diretorias 931. As novas diretorias eram constituídas todas por moças que tinham aberto os olhos a respeito dos desvios da Ação Católica. Elas assumiram a doutrina católica séria, veiculada pelo Legionário, e forneceram ao Cônego Mayer relatórios do que se passava entre elas, o que foi decisivo para nós. A líder dessa ala sadia era Dª Adalgisa Giordano. As outras eram Dª Estela Dourado, Dª Aurora Ruiz, Dª Angélica Ruiz, Dª Caetaninha (Angelina Caetano), Dª Iraci Ribeiro e mais um certo número de moças, que assumiram a direção da Ação Católica 932.

3. Saída hábil de Dom José As antigas diretorias foram depois queixar-se a Dom José quando este voltou. Com uma perícia incomparável, ele disse o seguinte: — Vocês estão depostas. Mas, debaixo de minha autorização, vocês fundam uma associação chamada Centro Social Leão XIII. E continuem na mesma orientação, que eu não deixarei o Padre Mayer mexer com vocês. Vocês têm toda a minha simpatia 933.

930 — Dom José, nessa circunstância, foi para Araxá-MG, que, além de ser uma estação de águas, era também sua cidade natal e onde residiam seus familiares (cfr. carta a Dom Leme, já citada). 931 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 932 SD 16/6/73. 933 — O Portal MiniWeb Educação (http://www.miniweb.com.br), ao apresentar a biografia de Edith Junqueira Azevedo Marques, fundadora do Centro Social Leão XIII, confirma, vista de outro ângulo, a narração de Dr. Plinio: “Dom Castro Mayer, Bispo responsável pela Ação Católica em São Paulo, depois de várias divergências, demitiu toda a diretoria leiga do movimento [Ação Católica], para instituir outra de sua confiança. (Segundo Clarisse Wey e Genoefa Frederico todas foram expulsas). O Arcebispo da época [...] Dom José Gaspar de Affonseca e Silva (amigo de Dª Edith), chamou-a na Cúria e pedindo desculpas pelo


249 Poucos dias depois, elas promoveram uma homenagem a Dom José, com notícia publicada em todos os jornais, e ele dando mostras de que as recebia carinhosamente. Era, portanto, a nossa desautorização indireta. Mas resolvemos não dizer nada934. * Quando vi que a situação estava azedando, dei-me conta de que deveria procurar a Nunciatura Apostólica no Rio, para ver o que o Núncio pensava a respeito de todos esses desvios.

Capítulo IV Padre César Dainese: relatório para o Núncio 1. Aparecimento providencial do Padre Dainese caso . 935

E aqui se situa um dos episódios mais rocambolescos de todo esse

Lembro-me que, uma noite936, eu estava na sede da Ação Católica atendendo ao expediente, quando entrou um sacerdote de estatura baixa937, com uma maletinha na mão938. Pela roupa, por certo modo de cortar o colarinho, eu percebi logo que se tratava de um jesuíta939. Era o Padre César Dainese, italiano da região do Vêneto 940, no físico muito parecido com Santo Inácio de Loyola 941. Homem de seus sessenta e tantos anos, portanto bem mais velho do

acontecido com Dom Mayer, solicitou criasse outro grupo para continuar a auxiliar as operárias. Assim, nos idos de 1940, Dª Edith [Junqueira Azevedo Marques] e suas companheiras do movimento, Heloisa Prestes Monzoni, Helena Junqueira, Lucy Montoro, Clarisse Wey, Genoefa Frederico, Maria Kiehl, Albertina Ramos, estas ultimas fundadoras da primeira Escola de Serviço Social do Brasil — Escola de Serviço Social de São Paulo — alugaram uma casa na Av. Celso Garcia, 755, bairro operário do Brás”. 934 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 935 SD 16/6/73. 936 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 937 SD 2/7/88. 938 SD 16/6/73. 939 SD 2/7/88. 940 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 941 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68.


250 que eu, mas ainda na força do trabalho 942. Era de fato muito inteligente, muito vibrátil, de uma vibratilidade informativa, de tal maneira que, em qualquer lugar que ele entrasse, as vibrações dele o informavam de tudo o que se passava ali dentro 943. Todo feito de sutilezas944, dava a impressão do jesuíta da escola clássica do tempo de Santo Inácio de Loyola 945. De outro lado, sabia muito bem como tratar com as pessoas, dizendo coisas acertadas no momento acertado: um homem muito capaz 946. Eu me aproximei dele e o cumprimentei 947. Ele agiu como se me conhecesse. — Ah! Padre, como vai o senhor? — Dr. Plinio, como vai? Sou o Padre Dainese948. Passamos para a minha sala e eu disse: — Padre, estou às suas ordens, o que o senhor deseja?” 949 — O senhor é presidente da Ação Católica em São Paulo, não? — Sou sim, Padre Dainese. — O senhor quereria me dizer bem exatamente qual o seu objetivo, o que o senhor tem em mente com a atuação que desenvolve à testa da Ação Católica? Eu quereria muito saber. Olhei para ele e pensei: "Este aqui veio mandado por outrem. Ele é muito esperto e muito experiente da vida e eu tenho que me mostrar em relação a ele esperto e experiente também. Eu não vou fazer o papel de bobo e perguntar quem o mandou falar comigo. Ele vai me dar a entender aos poucos. Vou conversar com ele em português claro”. E então respondi: — Padre Dainese, eu vou ser franco com o senhor. A situação é esta assim, assim. É uma doutrina errada, é uma corrente errada. Eles pretendem destruir toda a autoridade eclesiástica, pretendem destruir a moral tradicional da Igreja, pretendem destruir as devoções tradicionais e colocar uma outra religião no lugar da primeira. É uma religião toda feita 942 Jantar EANS 8/4/87. 943 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 944 SD 2/7/88. 945 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 946 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 947 SD 2/7/88. 948 Jantar EANS 8/4/87. 949 SD 16/6/73 e SD 2/7/88.


251 de pagodeiras, de concessões ao espírito do mundo. Em última análise, é uma religião que reproduz o modernismo condenado por São Pio X. Eu me sinto profundamente chocado com o que estou vendo e luto contra isso. Pode ser que eu seja esmagado nessa luta, mas eu lutarei até o fim, porque essa é uma luta pela Igreja Católica. Ele foi ouvindo tudo e depois me disse: — É, eu dou toda razão ao senhor. O senhor merece verdadeiramente apoio. O senhor nunca procurou informar ninguém? Eu disse: — Padre Dainese, moro em São Paulo e tenho pouca oportunidade de ir ao Rio. O meu informante natural seria o Núncio Apostólico, a quem eu dirigiria minhas informações. Mas falta-me quem sirva de instrumento de ligação junto ao Núncio. — Algo eu posso fazer. — Então, Padre, eu poderia fazer para o senhor um relatório? — Pois não. Então o senhor faça assim 950. Mais adiante, ele solta uma frase: “O Senhor Núncio, um dia, depois de confessar-se comigo, disse-me tal coisa”. Evidentemente ele não disse nada do segredo de confissão, mas deixava entendido que era confessor do Núncio. logo.”

A certa altura ele se levanta e se despede: “Então, Dr. Plinio, até

951

* Não preciso dizer que logo na manhã seguinte procurei o Cônego Mayer e comentei o assunto com ele. Cônego Mayer então me explicou que ele era um jesuíta de alta categoria, homem tido como muito inteligente952. A partir dessa conversa, até o momento em que o Dom Carmelo foi nomeado Arcebispo de São Paulo, e mesmo depois, eu pude contar com o apoio decisivo do Padre Dainese953.

2. Relatório e encontro com o Núncio Eu então fiz o relatório. Alguns dias depois esse relatório estava

950 SD 16/6/73. 951 SD 2/7/88. 952 SD 16/6/73. 953 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54.


252 seguindo para o Rio 954, por intermédio de meu bom e distinto amigo, Padre Dainese955. Passou-se algum tempo e certo dia vem um recado do Padre Dainese. — Olha, aquele senhor gostaria de conversar consigo. — Quando? — Ele passa esta semana toda aqui no Rio. O senhor pode vir quando quiser. Foi aí que conheci pessoalmente o Núncio e a Nunciatura. * O Núncio, Dom Bento Aloisi Masella956, foi um dos homens mais interessantes que eu tenha conhecido em minha vida. Naquele tempo ele teria seus sessenta e poucos anos. De família nobre da Itália, ele era sobrinho de outro Cardeal Aloisi Masella que tinha sido um grande teólogo. 954 SD 16/6/73. 955 Carta de Dr. Plinio ao Núncio Dom Masella, 4/8/42 — Por uma carta do Cônego Mayer ao Padre Dainese, que seguiu junto com outra carta de Dr. Plinio encaminhando o relatório, ambas datadas de 5 de setembro de 1941, pode-se deduzir que houve certa vacilação se o referido relatório deveria ser apresentado em nome de Dr. Plinio ou do Cônego Mayer: “O Dr. Plinio disse-me que o Sr. havia pedido informasse a Nunciatura a respeito da situação aqui em São Paulo. Como, por ser leigo, ele tem certo receio de o fazer da maneira como o Relatório composto [...] o faz, pediu-me ele licença para apresentá-lo em meu nome, ou melhor, que eu o apresentasse. O Padre Dainese pode facilmente ver que a coisa não é simples. De minha parte não me negarei a nada que possa concorrer para aliviar a situação da Arquidiocese. Mas não fui interrogado, talvez choque o Sr. Núncio um Relatório desses. [...] Por tudo, peço instantemente ao Padre Dainese que reflita, e depois de rezar resolva como achar que melhor condiz com os interesses da Igreja em São Paulo”. À carta do Cônego Mayer, Dr. Plinio juntou a sua, em que referia ao Padre Dainese os “apontamentos que julguei mais típicos acerca da situação da Arquidiocese de São Paulo”, pedindo àquele sacerdote que fizesse “a caridade de os apresentar ao Exmo. Revmo. Sr. Núncio Apostólico” e de ser “meu intérprete junto a S. Excia. Revma.”. Ao mesmo tempo tratava, nesta missiva, da conveniência de manter o incógnito com referência à autoria do documento. Parece que Padre Dainese optou por apresentar o relatório em nome do próprio Dr. Plinio, tanto pela narração deste em suas reuniões de memórias, quanto à documentação existente. Vale a pena deixar registrado, para se compreender esse pedido de Dr. Plinio no sentido de D. Mayer assumir a autoria do texto, que, dada a íntima relação de amizade e o senso do serviço a uma causa comum então existentes entre D. Mayer e Dr. Plinio, como também D. Sigaud, era corrente e mesmo frequentíssimo Dr. Plinio escrever para uso dos dois Bispos textos de sua lavra, cuja autoria eles meritoriamente assumiam, e não menos meritoriamente Dr. Plinio a ela renunciava, por conveniência dessa mesma causa, numa colaboração e entendimento mútuos que muito serviu à Igreja. Aliás, este é um procedimento comum também nas instituições de alto nível, inclusive na Santa Sé, em que os documentos pontifícios são frequentemente elaborados por assessores do Papa. 956 — Dom Benedetto Aloisi Masella (1879-1970) foi, por indicação de Pio XI, Núncio Apostólico no Brasil desde 26 de abril de 1927, continuando a sê-lo sob Pio XII. Proclamado Cardeal no consistório de 18 de fevereiro de 1946, deixou o Brasil após 19 anos de permanência em nosso País, assumindo o cargo de Prefeito da Sagrada Congregação para a Disciplina dos Sacramentos. Durante o Concílio, fez parte do Coetus Internationalis Patrum.


253 Claro, corado, de altura mediana, com um rosto um pouco quadrado, os traços muito regulares, cabelos já brancos, atitudes muito distintas e sumamente reservado 957. Era um aristocrata e um prelado da Igreja tradicional na força do termo, muito bom diplomata e muito relacionado na alta sociedade do Rio de Janeiro 958. Eu fui apresentado a ele pelo Padre Dainese, numa sala de visitas grande, toda dourada, com mosaicos, toda arranjada à maneira de palácio. Ele entrou muito jovial, muito amável, deu-me o anel para beijar e depois me disse: “Venha, venha”. E me fez entrar para uma segunda sala de visitas menor, também bem arranjada, mas feita evidentemente para confidências. Sentou-se no sofá e perguntou-me: — Caro Doutor, o que o senhor tem para me dizer? Eu então desfilei diante de seus olhos toda a situação como eu a via. Ele me ouviu impassível durante o tempo inteiro. A fisionomia dele não mudou nada. Nem um gesto de aprovação, nem de desaprovação. Um diplomata perfeito. Ele me tinha posto numa atitude de confiança, e eu disse a ele tudo o que tinha de dizer. Ele não quis revelar o juízo dele. Mas no fim me disse: — É, precisamos rezar muito. O senhor reze muito, eu vou rezar muito também. Mas o que os lábios não diziam, o olhar dizia. E o olhar era sumamente complacente, sumamente amável, dando a entender que ele atuaria. Volto para São Paulo. E segue-se uma série de novos encontros com o Padre Dainese, novas informações, que depois iam, naturalmente, para a Nunciatura.

3. Dom José Gaspar manobra para afastar Dom Mayer De repente chega-nos a notícia de que Dom José estava manobrando para tirar o Cônego Mayer do cargo de Assistente Geral da Ação Católica959. 957 SD 16/6/73. 958 SD 2/7/88. 959 SD 16/6/73 — Em carta enviada ao Sr. Núncio no dia 27 de novembro de 1941, Cônego Mayer confirmava isto, dizendo que “várias pessoas chegadas aos círculos heterodoxos daqui faziam constar que o Sr. Arcebispo me afastaria, no fim do ano, das funções de Assistente Geral da Ação Católica”.


254 O Vigário Geral da Arquidiocese, Monsenhor Ernesto de Paula, que aliás era muito simpático a nós, havia sido convidado para Bispo de Jacarezinho (depois tornou-se Bispo de Piracicaba). E Dom José planejava elevar, no lugar de Dom Ernesto, o Cônego Mayer a Vigário Geral, para assim retirar dele o cargo de Assistente Geral da Ação Católica. Dom José evidentemente pretendia colocar no lugar do Cônego Mayer um padre litúrgico. E assim eu, como presidente da Junta, teria de acabar me demitindo. O Cônego Mayer ficaria pairando nas nuvens, despachando papéis, e a Ação Católica tomaria um outro rumo 960. disse:

Telefonei então ao Padre Dainese, contei para ele o caso, e ele me — Está bem, vamos ver o que se pode fazer.

4. Padre Dainese e o Núncio intervêm Estava eu dando aula na Faculdade Sedes Sapientiae, quando uma freira veio me dizer que havia um padre do Rio querendo falar comigo com muita urgência. Eu fui voando ao telefone, e ele, sem dizer o nome: — Como vai passando? Eu vi bem que ele não queria que se mencionasse o nome dele. E eu respondi: — Bem, e o senhor, como está? — Bem. Olhe aqui, se o seu amigo receber um convite para ser promovido, diga a ele que não recuse. Não recuse! — Pode estar certo que eu digo para não recusar 961. Custei para conseguir dar o resto da aula. Terminada esta, fui e contei para o Cônego Mayer o telefonema. Ele também ficou com uma interrogação na cabeça. * Dias depois sai a nomeação de Dom Ernesto de Paula como Bispo. E, logo em seguida, o Arcebispo convida o Cônego Mayer para Vigário Geral962. 960 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 961 SD 16/6/73. 962 — Este convite foi feito no dia 25 de novembro de 1941, pois na referida carta enviada ao Sr. Núncio no dia 27, o Cônego Mayer dizia que “anteontem o Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo me convidou para a Vigaria Geral [e] já me disse que minha nomeação implicaria em meu afastamento da Assistência Geral da Ação Católica”.


255 Mas mesmo assim o Cônego Mayer aceita o convite. Soubemos que, logo em seguida à nomeação, o Núncio escreveu um cartão a Dom José, dizendo mais ou menos o seguinte: “Felicito-o pela escolha de seu excelente Vigário Geral, mas não dispense os serviços dele na Ação Católica, tão preciosa é a sua colaboração”. O Cônego Mayer acumulou, deste modo, o cargo de Vigário Geral e o de Assistente Geral da Ação Católica. E a tentativa de Dom José de afastar o Cônego Mayer da direção da Ação Católica ficou frustrada963. Criou-se assim uma situação difícil para Dom José: o Cônego Mayer estava sustentado como Assistente Geral da Ação Católica pelo Núncio. Como demiti-lo, sem pedir licença ao Núncio? E se o Núncio não desse licença, no que ficava?964 Foi um serviço inestimável que o Padre Dainese prestou naquela ocasião em favor da boa causa965.

5. Fato muito significativo: a Carta Apostólica “Com singular complacência” Dois meses depois, no dia 21 de janeiro de 1942, Pio XII dirigiu ao Cardeal Leme a Carta Apostólica Com singular complacência da qual fizemos um exame atento e meticuloso. Preliminarmente, é digno de nota que o Sumo Pontífice tenha tratado um problema de envergadura mundial, qual seja o da situação jurídica das Congregações Marianas nos quadros do apostolado leigo depois da fundação dos atuais organismos da Ação Católica, por meio de um documento dirigido ao Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro. O Santo Padre poderia exprimir-se pela voz autorizada de seu Secretário de Estado. Preferiu, entretanto, honrar o movimento mariano do Brasil, dirigindo-se pessoalmente e em português - o texto oficial é em nosso idioma - ao Cardeal Dom Sebastião Leme. Quis o Santo Padre mencionar nominalmente a Confederação Nacional das Congregações Marianas no Brasil, e seu “dileto filho César Dainese, da Companhia de Jesus”. Maior ainda foi Sua satisfação “ao saber que as valorosas Falanges Marianas são cooperadoras eficazes na propagação do Reino de Jesus Cristo e que exercem um fecundo apostolado, por meio de múltiplas e variadas obras de zelo”. O Pontífice se rejubila com a magnitude desse 963 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54. 964 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 965 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54.


256 papel, e acrescenta a expressão de seu grande contentamento pelo fato de que elas “ocupam um lugar conspícuo, segundo está informado, no trabalho e na luta para a maior glória de Deus e bem das almas, e que são, como força espiritual, de grande importância para a causa católica no Brasil”. Que informações teve o Sumo Pontífice para chegar a tal afirmação? Foram as mais autorizadas e imparciais, e é Ele mesmo quem no-lo diz: “com tanto entusiasmo, publicamente o tem manifestado em repetidas ocasiões, dileto Filho Nosso, bem como também o tem feito outros Veneráveis Irmãos no Episcopado” 966. Logo que este documento chegou às mãos do Cardeal Leme, este resolveu dá-lo à publicidade em uma Concentração Mariana que dentro em breve se iria realizar. Mas ao mesmo tempo recomendou aos padres jesuítas que, eles mesmos, falassem o menos possível sobre a Carta Apostólica. Assim, os padres jesuítas emudeceram. Mas em São Paulo, o Legionário consagrou à Carta Apostólica uma série de artigos claros e precisos. Salvo o Legionário, ninguém mais tratou do assunto 967.

Capítulo V O IV Congresso Eucarístico Nacional em São Paulo 1. Eventos do ano de 1940 a 1942 Em 1940 houve a chegada do Padre Mariaux a São Paulo. Em 1941 foi a nomeação do Cônego Mayer para Vigário Geral. E também o ano em que comecei a escrever o meu livro Em defesa da Ação Católica. Passamos agora para 1942, ano do IV Congresso Eucarístico Nacional, realizado entre os dias 4 a 7 de setembro aqui em São Paulo. O Congresso teve muita solenidade. E um brilho extraordinário*. 966 Com singular complacência, Legionário nº 505, 17/5/42. 967 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948.


257 * No dia de seu encerramento, o Vale do Anhangabaú estava tomado por uma multidão de mais de 500 mil pessoas, vindas do Brasil inteiro.

O Presidente da República não estava presente, mas havia altas autoridades na tribuna: 968 o Interventor Federal (equivaleria ao governador do Estado, hoje); membros do governo e das Forças Armadas; o Arcebispo Dom José Gaspar, o Núncio Apostólico Dom Bento Aloisi Masella, que como Legado do Papa tinha honras especialíssimas969.

2. Tensões e triunfo: discurso no Vale do Anhangabaú Durante esse Congresso, deram-se fatos que mostram bem a tensão em que nós estávamos. Dom José convidou-me para ser o orador da 3ª sessão solene no Parque do Anhangabaú. E eu devia, a pedido dele, fazer a saudação às autoridades, mesmo sabendo que eu era antigetulista. Antes do evento, Dom José mandou dizer que não queria que nenhum orador improvisasse, e que todos pusessem seus discursos por escrito para ele ver. Escrevi então o meu discurso e mandei para ele. Quando à noite chego para falar, Dom José se aproxima de mim muito amável e diz: — Dr. Plinio, há um ressentimento muito grave de diversos Ministros de Estado contra o Congresso Eucarístico, porque ninguém até agora fez elogio do Doutor Getúlio (ele gostava muito do Getúlio). E eu queria pedir ao senhor para fazer uma homenagem calorosa ao Doutor Getúlio Vargas, e exprimir toda a simpatia pelo apoio que ele tem dado ao Congresso. Então eu disse a ele: — Mas, Senhor Arcebispo, V. Excia. me manda alterar o meu discurso agora, diante de todo este mundo? V. Excia. calcule essas 500 mil pessoas aqui e outras milhares de pessoas ouvindo pela rádio. E eu vou improvisar um discurso assim? Ele ainda me pediu uma outra coisa: — Como o Doutor Getúlio (ele dizia sempre “Doutor” Getúlio) sofreu um acidente na estrada de Petrópolis e está com uma das pernas encanadas, exprima também toda a nossa alegria pelo fato do restabelecimento dele. 968 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 969 SD 11/7/81.


258 E depois acrescentou: — Ademais, Dr. Plinio, eu queria lhe fazer outra recomendação. Como mandei falar alguns oradores fora do programa, eu quero que o senhor faça um discurso bem rápido: uns 10 minutos no máximo. O único orador dessa noite que iria falar só 10 minutos seria eu. Eu lhe respondi: — Senhor Arcebispo, eu calculei o meu discurso para muito pouco tempo: quinze minutos no máximo. — É, mas aquele seu discurso está muito longo. O senhor abrevie esse discurso de qualquer maneira. De fato o meu discurso não estava muito longo. Eu disse: — Bem, Senhor Arcebispo, eu vou fazer o que for possível, mas eu não lhe garanto o que conseguirei fazer. * Nessa mesma noite deveria falar o Tristão, depois eu, e por fim o Bispo de Kansas City que não dizia uma palavra em português. Ficou ele, Dom José Gaspar, numa mesa com as autoridades, e eu na mesa dos oradores. Nessa mesa dos oradores, o Bispo de Kansas ficou no meio, eu à esquerda e o Tristão à direita. E eu com cara amarrada. O Tristão então passou a mão por detrás do Bispo e me perguntou: — O que é que você tem? — O que tenho é que Dom José fez assim, assim e assim comigo, e isto é uma coisa que não se faz. Diz o Tristão: — Mas, não tem nada. Você se arranja de qualquer jeito e às vezes esses improvisos saem melhores. Eu insisti: — Mas isto é uma falta de consideração dele. * Chegou a minha vez de falar. O locutor anunciou e eu fui e fiz exatamente o discurso que eu tinha redigido, que levou no máximo uns 10 minutos. E arranjei um jeito, sem me comprometer em nada, de me referir ao Getúlio de modo totalmente


259 impessoal970. O discurso não teve um elogio sequer ao Getúlio. Eu insinuei que ele tinha em torno de si uma equipe de propaganda do outro mundo. E que à glória de ter essa propaganda se juntava uma outra glória, que era a unanimidade dos brasileiros no que diz respeito à luta contra o estrangeiro*. Mais nada971. * Esse “elogio” ao Getúlio limitou-se às seguintes palavras: “Poucas vezes, no curso da História Brasileira, se tem erguido em torno de uma figura concerto tão generalizado de louvores e admiração, do que em torno de S. Excia., o Sr. Presidente da República, Dr. Getúlio Vargas. “Será supérfluo neste momento acrescentarmos a tantos louros, mais um. A situação de beligerância em que nos encontramos [contra as nações do Eixo], fez erguer-se em torno de S. Excia. todos os brasileiros de todos os quadrantes geográficos e ideológicos do País. Esse apoio unânime ao governo de S. Excia. é hoje um imperativo patriótico, em cujo cumprimento os católicos reclamam para si a primeira linha, no terreno do devotamento e da disciplina. “Mas há uma afirmação sobremaneira importante a fazer aqui. Mil e mil vezes têm sido ditos a S. Excia. os motivos pessoais que em torno de sua figura têm congregado tanta solidariedade. “É preciso que o intérprete da opinião católica afirme que a disciplina dos católicos ao Poder Temporal firma suas raízes mais no fundo, e que, abstração feita das considerações de ordem pessoal, sua obediência aos poderes públicos se baseia na convicção de que obedecem assim a vontade do próprio Deus, conhecida pela luz da razão natural e pelos esplendores da revelação cristã. “Católicos, não somos nem podemos ser partidários da doutrina da soberania popular, e por isto mesmo recusamo-nos a ver a augusta autoridade do Poder Temporal firmada sobre a areia, movediça entre todas, da popularidade. Ela se crava na rocha firme de nossas consciências cristãs” (cfr. O Legionário, n° 525, de 7/9/42).

O que me salvou foi que o representante do Getúlio, Fernando Costa (era o Interventor em São Paulo), ficou literalmente maravilhado com o discurso. Ele acompanhava com os olhos encantados. Uma vez até interrompeu puxando as palmas 972. E os outros políticos, vendo o Interventor contente, mostraram-se contentes também. O Legado Papal, Cardeal Masella, permaneceu impassível. E Dom José Gaspar, vendo o efeito do discurso, ficou um pouco mais serenado 973. * Quando acabou o discurso, passei em frente do Interventor, 970 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 971 SD 11/7/81. 972 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 973 SD 11/7/81.


260 Fernando Costa e fiz uma inclinação diante dele, como fazem os oradores. Ele então se levantou para me abraçar. Eu o abracei também. Dom José estava bem longe, por causa do protocolo, mas quis também entrar na onda, sorrindo para mim974. Embaixo o povo começou a aplaudir, gritando: “Plinio! Plinio!” Dom José ficou vendo que a posição verdadeiramente popular era a antigetulista, porque eu tinha feito um discurso que, sem falar mal do Getúlio, não falava nada de bem dele. Naquele tempo já era uma prova clara de antigetulismo 975. Logo que eu me sentei, o Tristão me disse por detrás do Bispo de Kansas: “Seu improviso foi bem bonzinho 976. Sabe que até elegância tinha o seu discurso?”977

3. “No meu Estado você seria preso” No fim da sessão, ao descer as escadas do palanque, encontrei-me978 lado a lado com Agamenon Magalhães, que era interventor federal em Pernambuco, e que tinha sido meu colega na Constituinte979. Cumprimentamo-nos, ele me pegou por dentro do braço e descemos juntos. E ele me disse, com aquela voz um pouco cantante do pernambucano 980: — Plinio, Plinio, ainda bem que você fez esse discurso em São Paulo e não em Pernambuco. — Por que, Agamenon? — Porque eu, em Pernambuco, mandava pôr você na cadeia 981. Quer dizer, ele tinha sentido até onde ia o discurso. Eu me dava muito com ele e respondi: 982 — Não sou bobo, sei onde falo. Por causa disto eu não aceitaria o convite para falar em Pernambuco. Ele me deu uns tapinhas nas costas e nos despedimos. 974 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 975 Telefonema Nova York 7/1/92. 976 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 977 Reunião com os mais antigos do movimento 20/8/78. 978 SD 11/7/81. 979 Almoço 1/7/93. 980 SD 11/7/81. 981 Almoço 1/7/93. 982 SD 11/7/81.


261 Com isso, acabou sendo que a noite foi de vitória para a ContraRevolução983. E foi uma ovação como talvez eu nunca tenha recebido em minha vida!984 * Dias depois, o Conde Ernesto Pereira Carneiro 985 me convida para um almoço no Hotel Esplanada, em São Paulo. Cheguei lá pensando que fosse um almoço para muitas pessoas, mas era apenas numa salinha interna do Hotel. Estavam ali para almoçar também Mateus Pereira Carneiro (aparentado com familiares meus), Dom Aquino Corrêa (Arcebispo de Cuiabá), Dom José Gaspar e eu. Nem Dom José esperava me encontrar ali, nem eu a ele. Mas durante o almoço conversei normalmente com ele. Na saída, ele me pegou pelo braço e disse: — Meu Presidente da Junta Arquidiocesana ainda está muito zangado comigo? Respondi: — Não, Senhor Arcebispo. A gente se esquece de tudo com o tempo. Ele “mineirou” 986 em cima do assunto e o incidente do Congresso Eucarístico se deu por encerrado. Mas esse incidente mostrava bem como, por detrás da amabilidade, a tensão era grande. E o livro Em Defesa da Ação Católica nem estava ainda publicado... 987

Capítulo VI “Em Defesa da Ação Católica”: livro 983 Telefonema Nova York 7/1/92. 984 MNF 16/7/82. 985 — Ernesto Pereira Carneiro era jornalista, político e empresário, tendo em 1918 adquirido o Jornal do Brasil. Em 1935, fundou a Rádio Jornal do Brasil. Foi deputado constituinte em 1933, e reeleito deputado em 1935 (cfr. http://biografias.netsaber.com.br/ver_biografia_c_1606.html). 986 — Trata-se de um neologismo (“mineirou”) nascido da palavra mineiro, ou seja, pessoa natural do Estado de Minas Gerais, o qual se explica pela habilidade política atribuída à população desse Estado, no sentido de resolver os conflitos jeitosamente, evitando os confrontos diretos desnecessários. Dom José era mineiro, da cidade de Araxá. 987 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54.


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kamikaze 1. Reviravolta em nossa história Na avaliação de nosso passado, julgo importante ter em mente as circunstâncias que determinaram o golpe desferido no progressismo nascente pelo livro Em Defesa da Ação Católica. Esse golpe representou um tournant, uma reviravolta em toda a nossa história. Essa reviravolta foi marcada por uma voluntária renúncia a uma situação de fastígio dentro dos meios católicos brasileiros, em vista de um interesse maior da Igreja. A Ação Católica era a tubulação por meio da qual os erros que denunciei estavam penetrando na Igreja. Era de fato a Igreja que estava em jogo 988.

2. Desprevenção dos católicos face à inoculação do erro Eu notava que a corrente progressista ia crescendo cada vez mais em São Paulo e no Brasil, penetrava nos seminários, tomava influência no Clero, entrava, enfim, como uma torrente por todos os lados 989. Era uma infiltração gradual, poderosa, mas ao mesmo tempo muito prudente. Os meios católicos tradicionais eram muito mais numerosos do que hoje, mas ingênuos, e não tinham — diferentemente de hoje — nenhuma prática da luta interna no seio da Igreja. Por causa disso, estavam a léguas de admitir que um Bispo pudesse favorecer ideias erradas, ou que essas ideias fossem pregadas por um eclesiástico. Essa ideia era tão arraigada que, anos depois, certo católico veio falar comigo e me disse: “Para mim, é obrigação do católico ‘sentire cum Ecclesia’, ou seja, sentir com a Igreja. E isso quer dizer ‘sentire’ com o Romano Pontífice, ‘sentire’ com o Bispo, ‘sentire’ com o pároco, ‘sentire’ até com o sacristão”. Para se ter o sacristão como padrão de ordenação do próprio pensamento, vê-se até que ponto chegava essa ideia errada de disciplina. A batalha não era, portanto, da maioria tradicional contra a minoria nova, mas a batalha da penetração velada de uma minoria nova nos meios tradicionais, mudando-lhes gradualmente as ideias. 988 CM 29/4/90. 989 SD 16/6/73.


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3. Um sacrifício aceito de antemão Ora, como eles eram muito ingênuos, era necessário que alguém assumisse a tarefa de lhes abrir os olhos, denunciar a infiltração. Também que estivesse disposto a sofrer as perseguições, as calúnias, as detrações que viessem, e ser esmagado se fosse necessário, mas jogar-se como um kamikaze contra os infiltrantes. Eu via perfeitamente que, se eu fizesse isto, ficaria criado um caso e a maioria ingênua ficaria de pé atrás com essa infiltração. E se eu não fizesse essa denúncia, a maioria ingênua se deixaria dominar completamente. Portanto, era preciso preparar uma denúncia monumental 990. Fiz então o seguinte cálculo: — Vou escrever um livro denunciando toda essa doutrina 991. Criado o escândalo, muitos ficarão atemorizados. Não aderirão a nós, mas também não aderirão a eles. Ficarão com uma interrogação na cabeça. A minha posição de líder católico vai ser arrasada. Mas é melhor eu começar o fogo e iniciar a batalha enquanto ainda tenho soldados, do que iniciar o fogo no momento em que tudo em torno de mim estiver gangrenado992. Eu me dava bem conta, portanto, de que o livro iria produzir um estouro do outro mundo e que era uma obra, como disse, de kamikaze: eu iria destruir o adversário, mas eu também iria me destruir. Era portanto uma autoimolação 993. Mas ao menos a prevenção contra o progressismo, que viria em decorrência desse gesto, haveria de brecar o ímpeto da infiltração na Ação Católica994.

4. Preparando o livro e prevenindo os companheiros para o contragolpe que viria pronto.

Comecei a escrever o livro em 1941. Mas só em 1942 ele ficou

Primeiramente, mandei vir uma coleção de documentos pontifícios publicados pela editora francesa Bonne Presse, desde Leão XIII até Pio XI inclusive (era Pio XII o Papa reinante)995 para estudar. Tive de ler também 990 SD 2/7/88. 991 SD 16/6/73. 992 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 993 SD 16/6/73. 994 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 995 SD 16/6/73.


264 muitas publicações da corrente progressista 996. Isso tudo me tomou meses, e o fiz no maior segredo. Depois, no livro, eu citei mais de quatrocentos documentos pontifícios para mostrar os erros daquela corrente. Para escrever o livro, resolvi passar um mês em Santos 997. Toda a vida tive uma letra muito feia e também não conseguia escrever por muito tempo. Precisava levar, portanto, alguém a quem eu ditasse. Convidei o Dr. José Carlos Castilho de Andrade998, pois a praia naquela época permanecia deserta, não havia o inconveniente moral de hoje999. Castilho se hospedou no Hotel Atlântico e eu no Hotel Santos. E então ditei ao Dr. Castilho o Em Defesa da Ação Católica, anotado por ele com aquela correção, aquela paciência, aquela meticulosidade, aquela sobriedade de atitudes que todos os que conviveram com ele conhecem1000. * A luta foi particularmente árdua em vista de nosso intuito de tentar extinguir o mal, mas de forma a causar o mínimo possível de ressentimentos e de divisão nos meios católicos. Para isto era preciso conduzir o combate na ordem das ideias, poupando as pessoas tanto quanto possível. E só mencionando os opositores que tivessem matéria publicada sobre o assunto. Se tivesse descido ao plano concreto em meu livro, indicando nomes e lugares, acusar-me-iam, na época, de “falta de caridade”... 1001 996 SD 2/7/88. 997 SD 16/6/73. 998 — No livro Um homem, uma obra, uma gesta, assim vem delineada a figura de José Carlos Castilho de Andrade (1924-1988): “advogado, militante católico firme e entusiasmado desde sua juventude, foi secretário de redação do Legionário, propulsionador e diretor do jornal Catolicismo. Sócio-fundador da TFP. Homem de grande dignidade pessoal e cheio de zelo pela causa da Igreja, dotado de qualidades invulgares de lucidez e precisão ao par de notável saber jurídico, exerceu de maneira exímia o cargo de diretor vice-superintendente da Diretoria Administrativa Financeira Nacional da TFP até sua morte edificante”. Em mais de uma ocasião, Dr. Plinio o elogiou publicamente. Por exemplo, em artigo para a Folha de S. Paulo (1º/7/73): “José Carlos Castilho de Andrade, excelente amigo de todos os tempos, e brilhante diretor da TFP”. E, em seu Auto-retrato filosófico, escreve: “o advogado, escritor e redator exímio, José Carlos Castilho de Andrade, sob cujas mãos os artigos e textos de Catolicismo alcançavam um brilho e uma correção inexcedíveis”. 999 SD 2/7/88. 1000 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 1001 Um homem, uma obra, uma gesta, cit.


265 * Eu também precisava prevenir os mais chegados a mim de que a casa poderia cair, para que eles soubessem se proteger contra os escombros que viessem por cima deles, e assim permanecessem firmes. Era um susto para eles: a casa vai cair! E era preciso incutir nos meus companheiros a ideia da conspiração que estava sendo feita. E conspiração de homens de altar, o que há dois anos antes seria uma “blasfêmia” imaginar. Não havia clima, por exemplo, para se fazer uma reunião geral. Era preciso conversar com cada um. Levou tempo até que todos se dessem conta da situação 1002. Então, tive de desenvolver um triplo trabalho ao mesmo tempo: ler os documentos pontifícios para embasar o livro; ir colhendo os fatos que comprovassem os erros denunciados; e por fim ir conversando com os mais íntimos, para mostrar-lhes que nos sacrossantos meios católicos, na Cidade de Deus, na Santa Igreja Católica, haviam penetrado os erros progressistas. Alguns dos meus primeiros irmãos no Movimento Católico tiveram medo e fugiram, se dispersaram. Mas um punhado permaneceu fiel. E esse punhado viria a ser de futuro a semente do grupo de Catolicismo e posteriormente da TFP 1003.

5. Revisão e a necessidade de um prefácio do Núncio Quando terminei o livro, procurei os sacerdotes com quem eu podia contar: Cônego Mayer, Padre Sigaud e três jesuítas: o Padre Walter Mariaux (que, como disse, eu conhecera durante essa batalha), o Padre César Dainese e o padre Louis Riou, provincial dos jesuítas em São Paulo. Ao Cônego Mayer e ao Padre Sigaud eu disse: — Aqui está esse livro. Os senhores querem fazer o favor de ler e opinar se pode sair? Terminada a revisão de ambos1004, mandei uma cópia ao Padre Dainese: — Padre Dainese, estou com vontade de publicar este livro, o senhor veja o que acha. Tempos depois, o livro me volta do Rio de Janeiro, restituído por

1002 Almoço EANS 8/4/87. 1003 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 1004 SD 2/7/88.


266 ele1005. Folheei um pouco e encontrei, escrito numa tira de papel comprido, creio que à tinta: “Livro admiravelmente exato quanto à doutrina, muitíssimo original mesmo em questões muito debatidas e maravilhosamente oportuno, providencial, atualíssimo”, mas sem dizer de que livro se tratava1006. Marquei então um encontro com o Padre Dainese e disse a ele: — Padre Dainese, eu não tenho a menor ilusão de que este livro vai ser uma explosão, e que com essa explosão eu me liquido. Eu estou disposto a essa liquidação, desde que ele saia em condições de representar uma bomba para o progressismo. Eu me liquidar em vão, não. Portanto, este livro só sairá se tiver um prefácio do Núncio Apostólico. Com isto eu publico o livro. Sem isto o livro não sai. — Bem, eu vou falar 1007. O resultado foi que pouco depois seguia uma carta minha ao Sr. Núncio oficializando o pedido de prefácio*. * A carta era datada de 4 de agosto de 1942.

6. Frieza de Dom Pedrosa e Dom Teodoro Kok Levado pelo desejo de proceder em tudo com cortesia, eu mostrei o livro também a Dom Pedrosa e a Dom Teodoro Kok, para opinarem. Algum tempo depois, Dom Teodoro me telefona: — Sabe, lemos o seu livro e estamos prontos a opinar. Como Monsenhor Mayer é Vigário Geral, Dom Pedrosa declarou que ele prefere tratar do assunto na casa do Vigário Geral. Então manda propor um encontro em casa de Monsenhor Mayer entre nós dois, Monsenhor Mayer e você. No encontro, os dois foram amáveis, mas frios. Notava-se, entretanto, que estavam uma pilha de nervos, sobretudo Dom Pedrosa.. A certa altura Dom Pedrosa disse com fisionomia mortificada: — Bem, eu li o livro, aqui está. Eu: “O senhor teria alguma ponderação a fazer?” Resposta de Dom Pedrosa: “Não teria nada de especial a dizer”. Dom Pedrosa, dirigindo-se a Monsenhor Mayer: “Monsenhor leu, 1005 SD 16/6/73. 1006 SD 2/7/88 — Felizmente este elogio ao livro foi encontrado nos guardados de Dr. Plinio. É textual. 1007 SD 16/6/73.


267 não, Monsenhor?” Diz Monsenhor Mayer: “Li”. Dom Pedrosa: “É, Monsenhor, com certeza está bem”. Eu disse: “Teria algum ponto que o senhor gostaria que eu alterasse?” Dom Pedrosa: “Bem, digamos, tal ponto e tal ponto”. Eram dois ou três pontos sem importância, pequenas correções de forma que não atendiam à doutrina. Eu logo concordei. Dom Pedrosa por fim pegou o livro, colocou-o em cima de uma mesinha e disse: “Bem, então está tratado o nosso assunto”. Como Monsenhor Mayer era o dono da casa, eu voltei meus olhos para Dom Mayer, pois não competia a mim continuar uma visita em casa de outro. Monsenhor Mayer, sempre muito positivo, categórico e belicoso, respondeu: “Está bem!” Os dois se levantaram, despediram-se e estava acabado 1008. Eu quis mencionar a participação deles no livro, e mostrar a cordialidade com que eu os tratava, para se compreender a gravidade das acusações feitas por eles pouco tempo depois 1009. Era visível que o livro os tinha desagradado no mais alto grau, mas que não tinham nenhuma objeção a fazer. Ficou visível também que eu estava combatendo contra uma doutrina disposta a não discutir e a não se mostrar. Foi nessa ocasião que acabei percebendo o quanto Dom Pedrosa estava comprometido com a nova corrente, e que não sairia mais dessa orientação1010.

7. Carta e entrevista com Dom José e pedido de “imprimatur” Uma coisa que também pensei: “Eu não posso publicar este livro como presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica sem consultar o Arcebispo. Nós vamos ao Arcebispo”1011. Na segunda-feira à tarde (21/12/42), enviei-lhe o trabalho, juntamente com uma carta em que lhe dava uma explicação sobre as 1008 Jantar EANS 19/6/82. 1009 Palestra sobre Memórias (VI) 11/8/54. 1010 Jantar EANS 19/6/82. 1011 SD 2/7/88.


268 minhas intenções e pontos de vista ao elaborar a obra 1012. O livro estava num desses classificadores de tamanho enorme, porque um livro de 400 páginas enche um classificador 1013. * Naquele mesmo dia o Sr. Arcebispo foi à chácara que ele possuía em Santo Amaro e leu o livro, ao menos em parte1014. Certa pessoa que servia o Arcebispo, e que se sentia escandalizada com o que ouvia sobre toda a espécie de trama e conspiração que estava sendo feita no sentido do liturgicismo, contou-me que Dom José passou a noite em claro, andando muito. De manhã, ele encontrou o classificador aberto, com anotações nas 20 ou 30 primeiras páginas1015. * No dia seguinte (portanto na terça-feira, 22 de dezembro), Dom José chamou-me com insistência ao Palácio São Luís, procurando-me com açodamento em vários lugares 1016. Ele me recebeu mais amável do que nunca 1017. Muito gentil, pegou o classificador com o livro e disse: 1018 — Que livro enorme, hein? Quanta dedicação escrever um livro tão grande! 1019 Mas notei que ele estava vermelho 1020. Ainda com fisionomia muito prazenteira, disse-me de modo mais ou menos vago que aprovava o esforço que eu tinha desenvolvido em confeccionar o trabalho. Mas não fez um só elogio ao livro, nem por amabilidade. E logo abriu o “jogo”. Disse que lera os dois primeiros capítulos do livro, aproveitando uma noite de insônia que tivera. E que desde já me deveria declarar que era muito ocupado, e não poderia lê-lo senão muito devagar, pelo que inevitavelmente deveria ser grande a demora na saída do livro.

1012 Carta de Dr. Plinio ao Padre Dainese, 23/12/42. 1013 SD 16/6/73. 1014 Carta de Dr. Plinio ao Padre Dainese, 23/12/42. 1015 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1016 Carta de Dr. Plinio ao Padre Dainese, 23/12/42. 1017 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1018 SD 16/6/73. 1019 SD 9/7/88. 1020 SD 16/6/73.


269 Ademais, ele não achava clara a exposição da parte que leu. As frases eram muito grandes, contendo “muitas ideias”, o que tornava muito complexa a leitura. Seria preciso portanto “arejar” o livro, alterando-lhe a redação. E que ele conhecia “um doutor” que poderia se encarregar disso. Não gostaria eu de dar o livro ao Dr.? Ele mesmo gostaria de me auxiliar, mas estava ocupadíssimo. Outra coisa: ele havia notado no livro algumas repetições e certos conceitos eram objeto de muita insistência. Para que, por exemplo, insistir tanto sobre o fato de que há erros na Ação Católica? Respondi ao Sr. Arcebispo que reconhecia que minhas frases tinham o defeito de ser muito grandes. Entretanto, eu não precisava do “doutor” conhecido dele para as reduzir. Pediria isto a um amigo, Pacheco Sales. Diante dessa resposta, o Sr. Arcebispo ficou contrafeito, e me disse que ele mesmo, então, indicaria as frases que era necessário “desbastar”. Iria lendo “lentamente” o livro, e, à medida que fosse lendo, me enviaria as páginas tendo entre parênteses o que não deveria sair. Ficava evidentíssimo que os pretextos literários encobriam simplesmente o intuito de tornar o livro tão inócuo quanto possível. E a atitude dele punha em risco de morte o livro. Respondi-lhe a tudo com muita cordialidade, dizendo-lhe que agradecia a cooperação que ele iria me prestar 1021. Eu ainda disse que queria que o livro saísse sob o meu título de presidente da Junta da Ação Católica, e assinando-o como tal. Ele, muito amável, disse: “Está bem”. * Tal era o poder de sedução dele, que eu saí do Palácio alegre1022, sem perceber a cilada em que caíra. Saí pela rua São Luís em direção à rua da Consolação, e quando transpus a grade do Palácio, parece que a ação de presença dele se desfez. sai”.

E eu pensei: “Meu Deus! Estou liquidado. Este negócio nunca mais

8. Perplexidade: intervenção do Núncio desencalha o livro Tomado de perplexidade, escrevi uma carta ao Padre Dainese com o pedido de que transmitisse ao Núncio as dificuldades que estava 1021 Carta de Dr. Plinio ao Padre Dainese, 23/12/42. 1022 SD 9/7/88.


270 havendo*. * A carta ao Padre Dainese era datada de 23 de dezembro de 1942. No dia seguinte, 24 de dezembro, Dr. Plinio escreveu diretamente ao próprio Núncio, relatando-lhe com luxo de detalhes os termos da conversa mantida com Dom José, e solicitando uma intervenção para resolver o impasse.

Dias depois chegava ao Palácio São Luís uma comunicação da Nunciatura mandando o Arcebispo entregar o livro para ser publicado tal como estava. O Arcebispo então chamou Monsenhor Mayer e disse: — Mayer, eu estive vendo este livro. Vamos mandar publicá-lo. Você leu o livro? — Li sim, Senhor Arcebispo. — Bem, se você leu, dê você o imprimatur. — Pois não. Monsenhor Mayer então bateu o imprimatur: “De mandato Ecmi. ac Revmi. DD. Archiepiscopi Metropolitani. — Monsenhor Antonio de Castro Mayer, Vicarius Generalis.” *. * Traduzindo para o português: "Por mandato do Exmo. e Revmo. DD. Arcebispo Metropolitano — Monsenhor Antonio de Castro Mayer, Vigário Geral". O imprimatur vem datado de 25 de março de 1943, festa da Anunciação de Nossa Senhora.

Passados alguns dias, chegou-me o prefácio do Núncio. Vinha também datado de 25 de março de 1943. Tomei o prefácio 1023, tirei uma cópia e tranquei-o na minha melhor gaveta 1024.

9. “Em Defesa da Ação Católica” vai para a gráfica Com o prefácio do Núncio e o imprimatur de Dom Mayer, mandei o livro para a tipografia Ave Maria1025 dos padres da igreja do Coração de Maria1026. Vinte dias ou um mês depois, não posso me lembrar, a tipografia entregava os primeiros exemplares1027. Era uma edição de 2500 exemplares, insignificante hoje, mas não para aquele tempo. Além do mais, eu queria que o livro só circulasse nos

1023 SD 2/7/88. 1024 SD 16/6/73. 1025 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1026 SD 16/6/73. 1027 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54.


271 meios católicos, para não desedificar os meios não católicos 1028. A edição custou 5 contos de réis. Naquele tempo era muito dinheiro. E era também o único dinheiro que eu tinha depositado em banco. Não tinha mais. O doloroso é que eu era responsável pela subsistência de meus pais já velhos. Uma doença que houvesse, eu não teria recursos para resolver a situação. Mas confiei em Nossa Senhora e paguei o livro 1029.

10. Lançamento da “bomba” e difusão Bem, eu estava prevendo que o livro iria ocasionar uma confusão, uma desordem, um desconcerto nos meios contaminados pelos erros nele denunciados. E tinha nossos pequenos dispositivos preparados para o combate1030. * Nisto ocorreu um fato escandaloso que tornou o ambiente mais favorável ao lançamento de meu livro. Um dos padres de Taubaté, que depois se tornou apóstata, Carlos Ortiz, escreveu na Ordem, revista do Tristão de Athayde, um artigo com uma série de inconvenientes de caráter doutrinário. Diante disso, Monsenhor Rosalvo Costa Rego, eleito Vigário Capitular pela morte de Dom Sebastião Leme, depois Arcebispo Auxiliar do Rio, publicou em 1943 algumas Instruções condenando indiretamente o artigo e dizendo que Dom Leme, antes de morrer, estava muito aborrecido com essas tendências litúrgicas*. * Essas Instruções, dadas a lume dia 21 de maio de 1943, foram publicadas na íntegra no Legionário n° 564, de 30 de maio de 1943. Nelas lemos: "Estas lamentáveis confusões e outras temerárias asserções, que não raramente se ouvem acerca da Sagrada Liturgia, muito e muito preocuparam o espírito do nosso falecido Cardeal".

Era mais um escândalo público dessa corrente contra a qual nós nos opúnhamos1031. O que facilitou a receptividade ao livro. * Mandei o livro, antes, para os amigos. E escrevi uma carta para cerca de vinte Arcebispos e Bispos, também amigos meus, acompanhada do livro com uma dedicatória. 1028 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1029 SD 16/6/73. 1030 SD 9/7/88. 1031 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54.


272 De todos recebi respostas boas, algumas até calorosas, entusiásticas, manifestando todo apoio 1032. De algumas dessas cartas, eu tive de suprimir certas expressões que teria sido imprudente publicar. Por exemplo, Dom João Batista Muniz, um redentorista, Bispo da Barra, na Bahia, dizia que eu denunciara um protestantismo em estado larvar, que ele já observara grassando em Juiz de Fora. Por respeito ao Sr. Bispo de Juiz de Fora — de quem eu recebi depois uma injúria grave — não publiquei esse comentário 1033. Depois de receber essas cartas, soltei a bomba! Primeiro, o Legionário publicou uma notícia dizendo que iria sair o livro Em Defesa da Ação Católica, com prefácio do Exmo. Revmo. Senhor Dom Bento Aloisi Masella, Núncio Apostólico no Brasil, e com imprimatur, da parte do Arcebispo Metropolitano, de Monsenhor Castro Mayer. E também com cartas de aprovação dos senhores Arcebispos e Bispos tais e tais 1034. Procuramos então as principais livrarias católicas de São Paulo, pois naquela época livro católico só se vendia em livraria católica. E livraria católica só vendia livro católico. Os livreiros em geral pertenciam ao Movimento Católico. E o livro foi posto à venda em várias delas 1035. Isto foi em junho de 1943. Todo esse mundo católico se atirou em cima do livro 1036. Repercutiu nos meios católicos do Brasil inteiro. Foi uma verdadeira bomba! 1037 1032 — Os seguintes Bispos enviaram carta de apoio: Dom Helvécio Gomes de Oliveira, Arcebispo de Mariana, Dom Ático Eusébio da Rocha, Arcebispo de Curitiba, Dom João Becker, Arcebispo de Porto Alegre, Dom Joaquim Domingues de Oliveira, Arcebispo de Florianópolis, Dom Antonio Augusto de Assis, Arcebispo-Bispo de Jaboticabal, Dom Otaviano Pereira de Albuquerque, Arcebispo-Bispo de Campos, Dom Alberto José Gonçalves, Arcebispo-Bispo de Ribeirão Preto, Dom José Maurício da Rocha, Bispo de Bragança, Dom Henrique César Fernandes Mourão, Bispo de Cafelândia, Dom Antonio dos Santos, Bispo de Assis, Dom Frei Luís de Santana, Bispo de Botucatu, Dom Manuel da Silveira D’Elboux, Auxiliar de Ribeirão Preto, Dom Ernesto de Paula, Bispo de Jacarezinho, Dom Otávio Chagas de Miranda, Bispo de Pouso Alegre, Dom Frei Daniel Hostin, Bispo de Lajes, Dom Juvêncio de Brito, Bispo de Caetité, Dom Francisco de Assis Pires, Bispo de Crato, Dom Florêncio Sisinio Vieira, Bispo de Amargosa, Dom Severino Vieira, Bispo do Piauí, Dom Frei Germano Vega Campón, Bispo Prelado de Jataí (cfr. artigo Para evitar as prescrições da História, cit.). Muitos sacerdotes também elogiaram o livro. Destacamos, a título de exemplo, o Padre João Batista Lehmann, SVD, do Rio de Janeiro, que assim se manifestou: “Teve o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira a feliz inspiração de pôr a serviço da periclitada Ação Católica, seu rico saber de sociólogo experimentado, sua têmpera de católico militante, seu preparo e indiscutível valor de apologista ativo, seu acendrado amor à Igreja Católica e elaborar um suculento estudo sobre a matéria que se compendia na esfera da Ação Católica [...] Linguagem clara e desapaixonada, argumentação nítida e convincente, sã doutrina, caracterizam o trabalho” (cfr. Legionário, nº 601, 13 de fevereiro de 1944). 1033 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 30/5/47. 1034 — Este anúncio foi estampado na primeira página do Legionário n° 562, de 16 de maio de 1943. 1035 SD 9/7/88. 1036 SD 16/6/73. 1037 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90.


273 Mandei o Em Defesa em encadernação especial, com dedicatória, a Dom José Gaspar. Também mandei ao Tristão de Athayde e a uma série de outras pessoas do Movimento Católico. E o correio levou a bomba por toda a parte1038. Um belo dia, para um lindo automóvel em frente à minha casa e entrega uma carta do Arcebispo 1039 agradecendo o exemplar encadernado, e fazendo votos de que na Arquidiocese houvesse uma unidade de espírito como a já reluzente entre os primeiros cristãos*1040. * A carta do Sr. Arcebispo vinha datada de 25 de junho de 1943 e afirmava que “nada tenho mais a peito do que fazer de todos os meus caríssimos diocesanos um só coração e uma só alma, porquanto assim se tornariam a ver, na arquidiocese de São Paulo, aquelas maravilhas de caridade e prodígios de santidade, que os primeiros cristãos, consoante refere o Livro dos Atos dos Apóstolos, exibiam aos olhos atônitos dos pagãos”. E acrescenta: “E não será este apostolado de concórdia e amor fraterno o que devemos exercer, num mundo trabalhado pelos maus fermentos do paganismo?”. Terminava dando a entender que não lera a obra: “Vou ler atentamente o seu livro, prezado Dr. Plinio, na medida em que os meus muitos e graves encargos do ministério pastoral me facultarem algum vagar”. Em notas pessoais (certamente do 2° semestre de 1943), Dr. Plinio registrava os “rumores entre pessoas chegadas a S. Excia., que declaram o aborrecimento do mesmo com a difusão do livro”. A Monsenhor Mayer, em reunião na Cúria, diante dos Vigários Gerais, o Arcebispo disse que o livro fora escrito com períodos longos, o que “é pena, porque senão ele poderia fazer muito bem”.

11. Primeiras reações contrárias Aí comecei a receber repercussões do lado contrário ao livro. Tristão de Athayde escreveu-me uma carta em que ele se queixava amargamente, dizendo que no meu livro, sob o aspecto de defender a Ação Católica, eu fazia denúncias injustificadas a personalidades respeitáveis. Que ele lamentava que eu desse o meu nome a essa campanha indigna que estava sendo feita. E cortamos relações. A última vez que nos vimos foi em 1955, por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional que houve no Rio. Encontramo-nos casualmente no corredor do Palácio São Joaquim, depois de anos de relações rompidas. Ele foi muito amável: — Oh! Plinio, como vai você? 1038 SD 9/7/88. 1039 SD 16/6/73. 1040 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54.


274 — Dr. Alceu, o senhor como está? Quase não paramos para nos falar. Apertamos as mãos e depois disso, até a morte dele, não nos vimos mais. Acabaram-se as relações1041. Também Dom Cabral e outros começaram a dizer que o livro deveria se chamar “Indefesa Ação Católica”1042. A reação contrária teve três etapas. Ela fracassou na primeira, e novamente fracassou na segunda. Porém alcançou pleno êxito na terceira. Vejamos cada uma delas.

12. Ameaças de condenação que não vieram A primeira etapa foi a das ameaças. Lembro-me ainda que, de volta de uma viagem a Minas, meu então jovem amigo José de Azeredo Santos (que seria depois tão conhecido como polemista de indomável coerência) nos informou bem humorado e divertido: — Estive com Frei BC, que me disse estar constituída uma comissão de teólogos para refutar o livro do Plinio. ‘Ele se arrependerá’ — disse Frei BC — ‘de o ter publicado’. Resolvemos esperar a refutação. Até hoje ela não veio. * Também penso, escrevendo estas linhas, em um cartão de uma muito ilustre e respeitável personalidade. Dizia o missivista que agradecia o oferecimento do livro e que em breve denunciaria de público os erros nele contidos. Nada se publicou 1043. Excetuou-se a tentativa de réplica explícita do Bispo de Uberaba, Dom Alexandre do Amaral. Com ela não estive de acordo. Mas agradoume a franqueza com que, de viseira erguida, ele afirmou o que lhe parecia bem1044. 1041 SD 9/7/88. 1042 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1043 Para evitar as prescrições da História, cit. 1044 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista — Apelo aos Bispos Silenciosos, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 4ª edição, 1977 — Dom Alexandre do Amaral pretendeu refutar o Em Defesa da Ação Católica dizendo que via predominante no livro a “preocupação negativa da destruição do erro”, sem considerar “o elemento positivo”, somado ao fato de que “são muitos os erros de Plinio, ao lado do feitio superficial com que ele preferiu examinar questões tão graves”. À maneira de ver do Prelado, o livro “documenta muito bem [...] a carência dos conhecimentos mais elementares da doutrina da A.C. no seu aventureiro autor”. A contrario sensu, em 1949, menos de dez anos depois, veio para Dr. Plinio uma carta da Secretaria de Estado da Santa Sé, em nome de Pio XII, dizendo: “Sua Santidade regozija-se contigo porque explanaste e defendeste com penetração e clareza a Ação Católica, da qual possuis um conhecimento completo”.


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13. Zum-zum que também fracassa Fracassadas as ameaças de refutação, veio a fase do zum-zum. O livro continha erros. Até numerosos erros. Não se dizia quais eram. Mas que os havia, havia. Já não se falava de refutação. Era somente a reafirmação insistente da mesma acusação imprecisa: “há erros, há erros, há erros”. Pobre Em Defesa da Ação Católica: dele tudo se disse. Ora se afirmou que era obra de sapateiro trabalhando fora de seu mister: livro de leigo, que supunha conhecimentos de Teologia e Direito Canônico. Ora, para melhor combater o livro, se afirmava que um leigo jamais teria conseguido escrever tal trabalho. E então se lhe fazia a honra de atribuir como autor, ora a Monsenhor Mayer, ora ao Padre Sigaud* 1045. * Em Belo Horizonte, chegou-se até o baixo recurso da calúnia. De lá, o Padre Dainese escreveu a Dr. Plinio contando: “O livro suscitou por aqui uma grande celeuma: espalham até o boato de que o autor ‘foi’ católico mas que agora é um simples ‘apóstata’, que não frequenta mais a religião etc....” (cfr. carta do Padre Dainese a Dr. Plinio, de 9 de julho de 1943).

* Houve uma coincidência desagradável que contribuíu para azedar o ambiente. Quando publiquei o Em Defesa, eu ignorava completamente que Dom Cabral, Arcebispo de Belo Horizonte, havia preparado uma Carta Pastoral sustentando exatamente o contrário do meu livro 1046, por ocasião do 25º aniversário de sua sagração episcopal. Era uma Pastoral ousadíssima, em que ele defendia com calor a maior parte dos erros existentes em matéria de Ação Católica1047. Essa Pastoral saiu a lume mais ou menos concomitante com o lançamento do Em Defesa. * O fato deixou Dom Cabral exacerbado e fora de si, conforme contou o Padre Dainese, então residente em Belo Horizonte, em carta de 3 de novembro de 1943 a Monsenhor Mayer: “No dia 21 de outubro p.p., fui chamado a palácio pelo Sr. Arcebispo [Dom Cabral]. Entre outras coisas falou-me S. Excia. do livro do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, ‘Em Defesa da Ação Católica’. A respeito desta obra

Dr. Plinio replicou as críticas de D. Alexandre do Amaral, desmontando de forma respeitosa, porém pormenorizadamente, as objeções levantadas pelo Sr. Bispo, em um documento de 40 laudas datilografadas que foi entregue ao Prelado. 1045 Para evitar as prescrições da História, cit. 1046 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1047 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948.


276 exprimiu-se o Sr. Arcebispo em termos de franca censura e oposição, salientando os pontos seguintes: 1°) o livro do Dr. Plinio é um livro ‘negativo’: prejudica a A.C. em lugar de favorecê-la ou defendê-la. [...] 2°) É portanto um livro contraproducente: é como se alguém escrevesse um livro em defesa do sacerdócio, pondo em realce suas dificuldades, as misérias e os escândalos dos maus padres... 3°) A propósito da afirmação de Pio XI de que o apostolado da A.C. faz parte do próprio ministério sacerdotal, diz S. Excia. que encontrou cinco textos em que o Papa reafirma esta sua asserção. Ora o Dr. Plinio sustenta que o Papa não pode entender esta participação no sentido estrito porque seria heresia. Donde o Sr. Arcebispo conclui que praticamente o Dr. Plinio qualifica de herética uma afirmação do Papa. 4°) Disse também o Sr. Arcebispo que o Dr. Plinio, sendo um simples leigo, não pode arvorar-se em juiz e censor dos Srs. Bispos, nem da A.C. que está sob a imediata vigilância do Episcopado. 5°) Afirmou finalmente S. Excia. que o Dr. Plinio fez uma lista de Bispos ‘hereges’, na qual incluiu o nome do Sr. Arcebispo de Belo Horizonte. [...] “O livro do Dr. Plinio suscitou aqui, como V. Revma. deve saber, uma verdadeira celeuma, com escândalo de muitas almas: pois que de um lado o livro foi praticamente banido do Seminário e da A.C. (a Presidente da J.F.C. chegou a telefonar a todas as dirigentes proibindo-lhes a leitura do livro), e do outro é um livro que se apresenta sob a égide e com aprovação do representante do Papa no Brasil”.

* Amainada a segunda etapa do zum-zum, deram-se os acontecimentos que marcaram a terceira etapa, esta sim, profundamente prejudicial a nós. É a que narro a seguir.

Capítulo VII O episódio Svend Kok 1. Antecedentes Havia sido criado um setor da Ação Católica, que era a JUC — Juventude Universitária Católica. Foi, aliás, o primeiro setor da Ação Católica em São Paulo, fundado ainda quando Dom José era Bispo Auxiliar. O cargo de assistente eclesiástico foi entregue a Dom Pedrosa. E, indicado por mim, teve como presidente primeiramente José Pedro Galvão de Sousa e depois Franco Montoro. O vice-presidente era Paulo Barros de Ulhôa Cintra. De nosso grupo faziam parte da JUC, além de Paulo Barros, José Fernando de Camargo, José Gustavo de Souza Queiroz e outros. Acontece que, como já disse, Dom Pedrosa tinha uma orientação


277 profundamente oposta à nossa, mas ele não a revelava claramente. Houve atritos entre ele e nós durante todo o tempo em que ele foi assistente eclesiástico da JUC. É preciso dizer que eu estimava sinceramente Dom Pedrosa e sempre o tratei com a maior consideração com que se possa tratar uma pessoa. Como presidente da Ação Católica, nunca publiquei um ato sem antes levar ao conhecimento dele e perguntar o que achava. Agia assim por deferência, sem ter a mínima obrigação de fazê-lo, pois ele era assistente eclesiástico de um setor e eu era presidente da Junta Arquidiocesana. Lembro-me de que, quando os mal-entendidos entre ele e eu estavam muito grandes e com algumas intrigas pelo meio, combinei com Dom Pedrosa e com Dom Teodoro Kok que nunca um de nós tomaria qualquer atitude em desabono do outro, sem antes avisar e procurar ver se o mal-entendido não poderia ser desfeito. Foi o que me levou, por exemplo, a pedir a ambos que opinassem, como já mencionei, sobre o livro Em Defesa, antes de publicá-lo.

2. Confidências numa viagem a Campinas Um dia, como eu ia a Campinas fazer uma conferência para os salesianos, pedi a Dom Pedrosa para levar junto Dom Teodoro Kok. Na viagem, conversamos como antigos amigos e companheiros da Congregação de Santa Cecília sobre a situação toda, baseado na amizade que ele continuava a me demonstrar, e também baseado no fato de que ele me contou vários abusos litúrgicos que havia observado no Colégio Santo Anselmo de Roma, onde ele havia feito os seus estudos. Então contei a ele várias das minhas impressões e mesmo alguns fatos relativos ao andamento do liturgicismo aqui no Brasil, e referi-me ao apoio que Dom José vinha dando a essa corrente. Chegamos a Campinas, fiz a conferência e pernoitamos naquela cidade. Na manhã seguinte, encontrei Svend Kok e perguntei maquinalmente como passara a noite. Ele respondeu: — Eu não consegui dormir depois do que você me contou! Fiquei tão impressionado com a situação, que custei a conciliar o sono. Então, haverá nos dias de hoje um Bispo capaz de ter uma doutrina oposta ao Papa? Isto é uma coisa que me deixa arrasado, eu não posso compreender isto. Ele dizia isto não como quem objetava contra mim, mas como uma


278 pessoa que deplorava a situação. Falamos um pouco mais sobre isto e voltamos de trem para São Paulo, conversando sobre outras coisas*. * O Cônego Mayer, em carta ao Sr. Núncio (em 12/5/45), acrescenta que Dr. Plinio havia falado a respeito do mesmo problema com Dom Pedrosa, ao tentar alertá-lo para a má influência exercida pelo Padre Ramón Ortiz. Eis o trecho da carta: "Não ignora Vossa Excelência todo o apoio que o Sr. Arcebispo dá ao Padre Ramón Ortiz, e aos demais padres de Taubaté. Esses sacerdotes desenvolvem um movimento incessante em prol do liturgicismo, procurando penetrar em todos os ambientes católicos. Ultimamente, o Padre Ramón tem adquirido grande ascendente no espírito do Revmo. Dom Paulo Pedrosa, que o tem levado a Itanhaem fazer férias com os jovens universitários. O mesmo Dom Paulo já convidou para idêntica excursão o Revmo. Padre Calazans, e também já encarregou de um retiro na JUC o Padre Carlos Ortiz. "O Dr. Plinio sempre foi muitíssimo amigo de Dom Paulo Pedrosa, bem como de Dom Teodoro Kok. Por este motivo, procurou explicar a ambos os inconvenientes do convívio de tais padres com os universitários. Evidentemente, o argumento dos dois Monges foi de que, se tais padres fossem perigosos, o Sr. Arcebispo não os apoiaria. E o Dr. Plinio, então, no mais estrito sigilo, abriu-se com aqueles dois sacerdotes sobre o Sr. Arcebispo. Ambos - e especialmente Dom Paulo - são muito confiantes. Assustaram-se com a afirmação de que o Sr. Arcebispo não desconhece os erros daqueles padres e os apoia" (carta do Cônego Mayer ao Sr. Núncio, de 12/5/45).

3. Estouro na reunião do Clero Pouco depois realizou-se, sob a presidência do Arcebispo Dom José Gaspar, uma Semana de Estudos de Ação Católica para o Clero regular e secular de São Paulo, no térreo do prédio vizinho à igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Estavam presentes os Vigários Gerais, todo o Clero e muitos padres de fora da Arquidiocese1048. Esta semana de estudos do Clero realizou-se no próprio momento em que o meu livro e a Pastoral de Dom Cabral faziam todo o barulho: a polêmica estava no ar em virtude da efervescência dos dois documentos. Na primeira sessão, a Pastoral de Dom Cabral havia sido colocada anonimamente na sala de reuniões. Quando os padres entraram, viram-na em cada cadeira. Qual não foi a minha surpresa quando eu soube que, no segundo dia desse evento, Dom Teodoro Kok se levantou e, sem citar nomes, mas numa 1048 — A Semana de Estudos teve duas sessões, cada uma para uma turma diferente de participantes: a primeira entre os dias 25 a 28 de maio, e a segunda entre os dias 8 e 11 de junho de 1943 (cfr. Legionário n° 565, 6 de junho de 1943).


279 alusão translúcida a nós, fez um discurso denunciando-nos como conspiradores contra Dom José Gaspar. Afirmou ele que se tratava de membros de projeção da Ação Católica, portanto pessoas de confiança de Dom José Gaspar, os quais diziam que1049 há Bispos que têm doutrinas erradas em matéria de Ação Católica: — Eu nem vou dizer os nomes dos Bispos que eles indicam, porque causaria neste ambiente um verdadeiro horror. Mas venho fazer aqui um protesto contra a insolência desses elementos, que se atrevem a imaginar que um Bispo católico possa cair em erro em matéria de doutrina1050. São pessoas que julgam tudo por seus próprios conceitos, e isto é uma falta de humildade. E reafirmava: "Acusarem um Bispo de erros em matéria de doutrina... onde já se viu isto.": Terminado o discurso de Dom Teodoro Kok, foi um escândalo na sala, uma coisa tremenda, pois naquele tempo dava-se como certo que um Bispo não podia errar... Dom José sabia de antemão que esse golpe ia ser dado. Ele estava presidindo à sessão e assistindo à explosão, combinada antes com ele, como depois ficou evidente pelo desenrolar dos fatos. À direita dele estava Monsenhor Mayer como vítima, porque indubitavelmente falar de nós era falar de Monsenhor Mayer. Mas então Monsenhor Mayer se levantou e disse: — Temos que salvar os princípios. Dom Teodoro afirmou que um Bispo nunca pode cair em erro de doutrina. Ora, esta sala está cheia de pessoas que estudaram Teologia, e todos sabem que um Bispo pode cair em erro. E este princípio precisa ser salvo aqui dentro. Nós não podemos aceitar a doutrina da infalibilidade dos Bispos. Dom Teodoro havia também afirmado que um leigo nunca poderia criticar um Bispo. E Monsenhor Mayer rebateu: — Eu discordo. Há casos em que um leigo pode e até deve criticar um Bispo. E isto, em boa doutrina, é preciso sustentar. Com a grande autoridade de teólogo que ele tinha, foi tal o impacto, e estabeleceu-se uma tal confusão, que Monsenhor Mayer saiu mais simpatizado do que nunca da sessão, embora as opiniões fossem muito contrárias a mim pessoalmente e aos demais membros da Junta 1049 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1050 SD 16/6/73.


280 Arquidiocesana da Ação Católica. Aí os senhores podem ver o Dom Mayer inteiro dos bons tempos: lealdade, coragem, inteligência, e entrando inteiro dentro da luta. Era Daniel na cova e puxando o bigode do leão. Dom José não esperava aquela intervenção de Monsenhor Mayer e encerrou a sessão com palavras muito anódinas.

4. Monsenhor Mayer exige ver antes o novo discurso de Dom Teodoro Kok Dom Teodoro havia anunciado que continuaria a falar no dia seguinte. Terminada a sessão, Monsenhor Mayer desceu do estrado, dirigiuse a Dom Teodoro e disse: — Teodoro, o senhor amanhã, se falar de novo, tem que me mostrar o seu discurso, porque o senhor não é homem que possa falar sem que se veja antes o que o senhor vai dizer. Dom Teodoro gaguejou, ficou lívido. Monsenhor Mayer teve ainda a audácia de dizer a Dom José que ele tinha proibido Dom Teodoro de fazer seu novo discurso sem que ele visse antes.

5. “Golpe profundamente nocivo para nós” Ficamos sabendo depois, através de uma pessoa das cercanias do Arcebispo, o que se passou no Palácio naquele dia, após a reunião. Dom José havia chegado muito preocupado. Chamou o Padre Ramón Ortiz, que tinha estado presente e assistido à cena. E os dois passearam nervosamente pelos jardins do Palácio durante bastante tempo. Logo depois do almoço, Dom José saiu. A atmosfera era contrafeita dentro do Palácio. Eles não ficaram contentes com o resultado do golpe dado. Mas esse golpe foi profundamente nocivo para nós. * Dom Teodoro acabou por enviar o discurso dele a Monsenhor Mayer. E na sessão seguinte ele leu o texto aprovado pelo Monsenhor Mayer. Era um discurso anódino. Dom Mayer e Dom José não comentaram entre si o incidente. Trocaram alguns comentários sobre outros pontos, o que era como que não comentar. Ficou assim no ar e o incidente foi dado como encerrado.


281

Capítulo VIII Começam as represálias 1. Retração e gelo Aí começaram as represálias. Eu tinha sido convidado para fazer um discurso em Campinas. Dias depois recebo uma carta do Bispo de lá comunicando que esse discurso estava adiado sine die. Começo a notar, desde esse dia, vários padres mudarem completamente a sua atitude a meu respeito. Em praticamente todo o meio eclesiástico de São Paulo, isto é, entre os padres (no laicato isso não repercutiu), minha cotação, se antes era 80, desceu para 8 ou menos que 8. Foi uma baixa vertiginosa1051. Um certo número de Bispos que havia apoiado o livro Em Defesa da Ação Católica, vendo que os Bispos novos e influentes se voltavam contra nós, foram também tirando o corpo 1052. * Houve belas exceções. O Provincial dos jesuítas, Padre Louis Riou, tomou uma atitude decididamente favorável ao livro. E evidentemente uma parte dos jesuítas continuou absolutamente na mesma conosco. Muitos outros, entretanto, foram contra, e boa parte deles afastou-se de mim. E ficou criada entre os jesuítas uma situação de polêmica. Especialmente continuaram a me apoiar, além do Padre Riou, o Padre Dainese, o Padre Arlindo Vieira e em alguma medida o Padre José Achótegui. A atitude do Padre Mariaux, que também me apoiou, constitui um capítulo à parte, de que vamos falar depois 1053. Um bom número de Bispos e também de sacerdotes de São Paulo e do interior do Brasil ficaram de nosso lado. Permaneceram também conosco, obviamente, os componentes do grupo do Legionário e os dois sacerdotes que depois se tornariam Bispos: o então simples padre secular Monsenhor Antonio de Castro Mayer, e o 1051 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1052 SD 18/6/88. 1053 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54.


282 jovem sacerdote mineiro da congregação do Verbo Divino, Padre Geraldo de Proença Sigaud 1054.

2. Difamação e palavra de ordem A partir desse momento, houve uma alteração na situação de nosso grupo, já prevista de antemão: antigamente estava no candelabro e agora era posto debaixo do alqueire, quer dizer, numa situação muito cruel 1055. Eu tinha na época 35 anos1056. Soprou uma onda de difamação tremenda contra mim em toda a Arquidiocese de São Paulo e nos meios católicos de todo o Brasil. Ninguém mais me convidava para nada. Fui completamente posto à margem, como um exilado. Em 20 dias, a minha situação mudou inteiramente, como, aliás, repito, eu havia previsto 1057. Baixou uma ordem extraoficial de não mais me convidarem para falar em nenhuma, mas absolutamente nenhuma reunião católica. Sendo que antes eu era um dos oradores mais convidados para toda espécie de discurso em São Paulo, e muito frequentemente em outras cidades. Tão verdadeiro era isto, na situação anterior ao ostracismo, que a Folha de S. Paulo fez a certa altura uma pesquisa para saber qual era o orador mais apreciado em São Paulo, numa lista de cinco ou dez nomes. Publicados os resultados, o segundo orador escolhido da lista de São Paulo era eu. Não se passa da condição de segundo orador de São Paulo para a de um homem que nunca mais é convidado para falar em público em eventos católicos, sem uma enérgica palavra de ordem. E essa palavra de ordem foi cumprida ao pé da letra e em todos os pormenores, exceto em duas ou três ocasiões em que fui convidado para falar em cerimônias da Universidade Católica e aceitei. Mas aí a situação era diferente: o convite não dependia de ordens secretas da Cúria, por ser a Universidade uma entidade autônoma. Duas ou três vezes também fui escolhido paraninfo e aí a Cúria não tinha o direito de proibir. Aceitei essas minúsculas possibilidades de atuação para que não se pudesse dizer que eu fiz o papel de émigré à l‘interieur1058. Pelo contrário, tomei parte naquilo que me pediram, e o que 1054 SD 18/6/88. 1055 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1056 SD 4/1/95. 1057 SD 16/6/73. 1058 — A expressão “émigré à l'intérieur” designa, no linguajar político da monarquia de Julho da França dos anos 1830, os nobres legitimistas que deixavam suas residências parisienses e iam viver em


283 eu não fiz foi porque não me pediram1059. Esses convites indicavam uma popularidade “subcinerícia”. “Cinerício” vem de cinis, cineris, em latim, cinza. Subcinerício é aquilo que fica por debaixo das cinzas1060. E esta situação perdura até hoje1061. * Uma exceção nessa época foi a cidade de Santos. Havia ali um amigo nosso, Reinaldo Cruz, católico militante, que se aproximara de nós mais ou menos nesse período de ostracismo. Ele era um fogosíssimo entusiasta de nossas atividades e um propagandista de primeira ordem. Muito amigo do Dr. Antonio Ablas Filho, que era nosso representante em Santos. E promoveu naquela cidade uma série de conferências minhas que lotavam literalmente um salão muito grande que havia no centro da cidade, da Humanitária1062. Todos os jornais de Santos davam depois a notícia. Ele me convidava também para ir falar na rádio (não havia TV naquele tempo). O Bispo de Santos, Dom Idílio José Soares, ia sempre às conferências, e foi sempre muito amável. Várias vezes fui visitá-lo para agradecer essa atenção. Era uma situação paradoxal: nós afundando de todos os lados em São Paulo, e com uma popularidade extraordinária em Santos! 1063

3. Removido da presidência da Ação Católica Eu tinha ido passar alguns dias de descanso, junto com o grupo do Legionário, numa fazenda muito agradável dos jesuítas em Itaici, a mesma onde se realizam hoje, num prédio enorme construído posteriormente, as reuniões do Episcopado nacional*. * Naquele tempo, Itaici, no município de Indaiatuba-SP, era ainda uma velha fazenda que havia pertencido a Jorge Tibiriçá Piratininga, governador do

seus castelos do interior da França. Esses nobres legitimistas se abstinham de tomar parte na vida política em sinal de protesto contra a ascensão ao trono do Duque de Orleans, a justo título considerado por eles revolucionário e usurpador. 1059 SD 4/1/95. 1060 Chá ESB 7/3/95. 1061 SD 4/1/95. 1062 — Refere-se do salão da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, fundada em Santos no ano de 1879. 1063 SD 7/7/73.


284 Estado de São Paulo e avô de Dr. Eduardo de Barros Brotero, futuro membro do grupo de Catolicismo e um dos fundadores da TFP.

Estávamos andando no parque, quando 1064 recebo um telefonema de Monsenhor Mayer avisando-me que tinha recebido uma carta de Dom José comunicando que, quando o nosso mandato terminasse, ele queria que saíssemos da direção da Ação Católica 1065.

4. Pressão econômica Chegou-me, pouco depois, uma outra comunicação. Eu era advogado da Cúria desde o tempo de Dom Duarte, mantendo com ela dois contratos de serviços advocatícios. E Dom José, através de Monsenhor Consentino, mandou-me o seguinte recado: — O Senhor Arcebispo pede para avisar a Dr. Plinio que ele será advogado da Cúria apenas até o fim do mês. No fim do mês, lhe serão tirados os serviços 1066. * Pouco depois, outra medida, desta vez indireta: inexplicavelmente saiu um decreto do governo do Estado — estávamos em regime de ditadura — fechando o Colégio Universitário onde eu era catedrático vitalício. Depois eu soube que o decreto de fechamento fora pedido por Dom José Gaspar ao governador Ademar de Barros, de quem ele era muito amigo. O decreto determinava que o Colégio se dissolvesse, podendo seus professores serem aproveitados em cadeiras de colégios de cursos secundários na capital ou no interior. Se não quisessem aceitar isto, seriam aposentados com vencimentos proporcionais. 1064 SD 9/7/88. 1065 — Nas já referidas notas de Dr. Plinio do 2° semestre de 1943, além da deposição da Junta Arquidiocesana da Ação Católica, encontramos o seguinte registro de outras resoluções tomadas por D. José Gaspar nessa mesma época: “1. desligou a JUC e a JOC (ambas masculinas) da direção de Monsenhor Mayer, para tirar da jurisdição deste a D. Paulo Pedrosa, D. Teodoro Kok e Padre Eduardo Roberto, salesiano, assistentes eclesiásticos da JUC os dois primeiros, e da JOC este último; “2. começou a dirigir pessoalmente, mediante reuniões diretas com ele e os assistentes eclesiásticos, tudo quanto se refere à Ação Católica; “3. Deu provas públicas de desagrado ao Legionário, mandando na Cúria e no Palácio que suspendessem a remessa para o Legionário de notícias distribuídas a todos os jornais, de maneira que dos jornais de S. Paulo, os matutinos, só o Legionário ficava impedido de dar esse noticiário; “4. Procurou evitar qualquer interferência de Monsenhor Mayer na Federação das Congregações Marianas, declarando-se ele pessoalmente diretor da mesma após a morte do Padre Cursino”. 1066 — O rompimento desse contrato deu-se no dia 18 de agosto de 1943, segundo registro encontrado entre os papéis de Dr. Plinio.


285 Como eu era professor novo, optar pela aposentadoria significaria receber a terça parte dos vencimentos. Assim, eu era praticamente jogado na miséria com essas duas providências* 1067. * Posta essa situação, Dr. Plinio teve de ir lecionar no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, situado na rua São Joaquim, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Ali foi objeto de grande apreço por parte dos alunos. Os alunos de uma das turmas que, por razões administrativas, deveriam não mais ter aulas com Dr. Plinio, chegaram a promover um abaixo-assinado para que ele continuasse a lecionar para a turma.

Note-se que o homem que agia assim (Dom José Gaspar) pregava a tolerância e a bondade para com todos os inimigos da Igreja, levadas a um grau inimaginável...1068

5. Boicote do livro nas livrarias Enquanto isto, o livro Em Defesa pipocava no ambiente católico, estourando de todo o jeito. Mas de repente os membros do grupo do Legionário encarregados da distribuição às livrarias começam a me comunicar que crescia o número de livrarias que se recusavam a continuar a venda, alegando tratar-se de um livro de oposição ao Arcebispo. Apenas a Livraria Catedral continuou a vendê-lo. Eu não conhecia o dono, mas mandei felicitações a ele, dizendo que eu apreciava a sua coragem. Este senhor, até o fim, enquanto houve leitores em São Paulo para o livro, ele o vendeu 1069.

Capítulo IX Morte trágica de Dom José Gaspar 1. Morte completamente inesperada Eu estava muito preocupado com essa situação toda quando, durante uma aula no Colégio Roosevelt, sou chamado ao telefone. Disseram-me tratar-se de um assunto urgentíssimo. Era o José N. César Lessa, redator do Legionário, que com uma voz cava me disse1070: — Plinio, eu queria lhe avisar que está correndo o boato de que o 1067 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1068 Palavrinha 23/8/91. 1069 SD 9/7/88. 1070 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54.


286 avião que levava Dom José Gaspar ao Rio de Janeiro caiu e ele morreu. Morreram também o Cásper Libero, Monsenhor Alberto Pequeno, o Padre Nelson Vieira, secretário dele e toda a tripulação*. * Em meio a densa cerração, o piloto da VASP havia feito uma primeira tentativa de pouso sem resultado, e na segunda bateu com a asa direita em um dos prédios da Escola Naval situado na Ilha de Villegaignon, contígua ao Aeroporto de Santos Dumond. Três passageiros foram resgatados com vida pelos cadetes da Marinha e as restantes 18 pessoas morreram no desastre. O desastre ocorreu às 9:05 horas do dia 27 de agosto de 1943 (cfr. Legionário n° 577, de 29 de agosto de 1943).

Fiquei muito espantado 1071. Esse desastre de avião era uma coisa com a qual ninguém contava1072. Voltei para dar aula, mas aquela impressão diante do meu espírito se tornou tão clamorosa, que interrompi a aula. Tomei um automóvel e, ao passar em frente à agência da Vasp, de longe vi uma aglomeração diante da vitrine. Cheguei perto e encontrei um aviso: “Temos o pesar de informar que faleceram Dom José Gaspar, o senhor Cásper Líbero e outras pessoas.” Parei um minutinho, olhei e mandei o automóvel tocar para o1073 meu escritório de advogado, no centro da cidade. Fechei as portas e deiteime um pouco no sofá. Eu estava muito emocionado e, pela única vez em minha vida, tomei um calmante chamado Água das Carmelitas 1074.

2. Premonição dessa morte prematura Uma das razões pelas quais fiquei impressionado 1075 foi por ter-me lembrado de uma cena ocorrida algum tempo antes com o Arcebispo. Numa solenidade na Cúria,1076 estávamos os dois em pé, o Arcebispo e eu, conversando sobre assuntos do Movimento Católico. Ele se referiu a uma coisa qualquer e depois, não sei por que, disse-me o seguinte: “Nos poucos anos de vida que me restam, ainda conto fazer tal coisa”. Quando falou isto, ele, que estava casualmente olhando para o chão, levantou os olhos e olhou no fundo de meus olhos. Nossos olhares se cruzaram. E percebi perfeitamente que ele tinha razão e iria viver pouco

1071 SD 16/6/73. 1072 Telefonema Estados Unidos 17/2/95. 1073 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1074 Palavrinha 23/8/91 — A Água das Carmelitas é também conhecida como Água de Melissa. 1075 Telefonema Estados Unidos 17/2/95. 1076 SD 16/6/73.


287 tempo 1077. * Apesar de todas as desavenças, prestei a ele todas as honras fúnebres que deveria prestar. E ainda fizemos um número especial do Legionário em sua homenagem1078.

3. A morte o colhe em plena campanha contra nós Depois da morte de Dom José, soubemos que ele estava de tal maneira empenhado na luta contra nós, e posto numa campanha tão formidável nesse sentido, que ele havia programado uma visita a todos os Bispos da Província Eclesiástica de São Paulo, com o intuito específico de recomendar que não nos convidassem para nada e nos mantivessem no ostracismo mais completo. Soubemos também que ele estava indo ao Rio de Janeiro para levar à Nunciatura documentos contra nós e tentar nos demolir junto ao Núncio. Foi encontrado até um caderninho, que um sacerdote amigo nosso chegou a ler, com a agenda dos encontros que ele deveria manter naqueles dias no Rio. Eram quase todos amigos nossos daquela cidade. * Nessa campanha contra nós, ele havia tido um desaponto. Ele passara uma circular aos seus colegas de Episcopado comunicando que eu tinha deixado a Presidência da Junta Arquidiocesana da Ação Católica. Os Bispos mandaram uma resposta muito corriqueira e inteiramente burocrática, agradecendo a comunicação, quando ele esperava perguntas: “Por que? Mande informações”. E alguns Bispos, com quem ele foi falar, receberam mal a visita. O velho Bispo de Ribeirão Preto, Dom Alberto José Gonçalves, chegou a dizer a ele: — Senhor Arcebispo, V. Excia. é moço e eu sou velho. Cuidado! O caminho da heresia é o que V. Excia. está seguindo. O Bispo Auxiliar, Dom Manuel da Silveira d‘Elboux, também disse a Dom José coisas muito pesadas. Numa visita a Dom Cintra1079, na época Reitor do Seminário e mais 1077 Telefonema Estados Unidos 17/2/95. 1078 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1079 — Dom Manoel Pedro da Cunha Cintra (1907-1999): Reitor do Seminário Central da Imaculada Conceição do Ipiranga e Visitador Apostólico dos Seminários do Brasil, foi eleito em 1948 1° Bispo da


288 tarde Bispo de Petrópolis, Dom José perguntou: — Cintra, você também é dos que acham que eu sou herege? Dom Cintra respondeu: — Senhor Arcebispo, eu não acho que V. Excia. seja herege, mas acho que V. Excia. protege os hereges, e que infelizmente a sua atitude não é boa. Falando depois a meu respeito para Dom Cintra, ele disse: “O Plinio não tem mais razão de ser nesta vida. A única solução para ele é morrer”. * Tudo isto mostrava bem que nós, apesar de precipitados de uma situação brilhante, tínhamos deixado muitas consciências alertadas. Portanto, dentro de nossas desgraças, havíamos feito, até certo ponto, o papel de Sansão. A coluna estava derrubada 1080. E o nosso cadáver, atravessado na estrada, impedia o inimigo de continuar. Quer dizer, o sacrifício tinha sido útil 1081.

4. O dom de romper as estagnações, quebrar as indiferenças e mover as águas paradas Lá pelo fim da década de 1940, quando as devastações produzidas contra nós em consequência do lance do Em Defesa estavam no auge, por essas ou aquelas circunstâncias fortuitas, a Universidade Católica de Porto Alegre convidou-me para fazer uma conferência.

Diocese de Petrópolis, até a sua resignação em 1984. 1080 — O episódio aqui referido é da Sagrada Escritura. Sansão, aprisionado pelos filisteus pela traição de uma mulher, teve seus olhos furados. Segue a narração da Bíblia, na tradução da Editora Ave Maria: “Ora, os príncipes dos filisteus reuniram-se para oferecer um grande sacrifício a Dagon, seu deus, e celebrar uma festa. Nosso deus, diziam eles, entregou-nos Sansão nosso inimigo. Também o povo, vendo isso, louvava o seu deus, dizendo: O nosso deus entregou-nos o nosso inimigo, aquele que devastava nossa terra e matava tantos dos nossos. E estando eles de coração alegre, exclamaram: Mandai vir Sansão para nos divertir! Tiraram-no da prisão, e Sansão teve que dançar diante deles. Tendo sido colocado entre as colunas, Sansão disse ao jovem que o conduzia pela mão: Deixa que eu toque as colunas que sustêm o templo, e que me apóie a elas. Ora, o templo estava repleto de homens e mulheres, e estavam ali todos os príncipes dos filisteus; havia cerca de três mil pessoas, homens e mulheres, que do teto olhavam o prisioneiro dançar. Sansão, porém, invocando o Senhor, disse: Senhor Deus, rogo-vos que vos lembreis de mim. Dai-me, ó Deus, ainda esta vez, força para vingar-me dos filisteus pela perda de meus olhos. Abraçando então as duas colunas centrais sobre as quais repousava todo o edifício, pegou numa com a mão direita e noutra com a mão esquerda, e gritou: Morra eu com os filisteus! Dizendo isso, sacudiu com todas as suas forças o edifício, que ruiu sobre os príncipes e sobre todo o povo reunido. Desse modo, matou pela sua própria morte muito mais homens do que os que matara em toda a sua vida” (Juízes, 16, 24-30). 1081 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54.


289 Fui recebido gelidamente pelo Arcebispo Dom Vicente Scherer1082, mas com muito interesse pelos jesuítas de lá. Ao que parece, esses jesuítas estavam naquele momento numa tensão interna, e eram pertencentes à ala da Companhia de Jesus que me tinha dado apoio. Por causa disso, conseguiram que eu fosse convidado para fazer conferência em São Leopoldo, que dista cerca de uma hora de Porto Alegre e onde há um grande seminário jesuíta. * Em São Leopoldo havia um sacerdote jesuíta chamado Cândido Santini, que publicara um livro com críticas à Ação Católica. Por causa dessas críticas, a Ação Católica promoveu um rumor contra esse Padre, que foi posto de lado e transferido para o Seminário Central de São Leopoldo, onde ficou professor. Por uma conjunção de horários, antes ou depois da conferência, não me lembro bem, os padres me convidaram para um lanche. Eles me levaram ao refeitório, onde encontrei o Padre Cândido Santini. Não nos conhecíamos. Mas cumprimentei-o muito cordialmente, como se cumprimenta uma pessoa que está na mesma ordem de ideias. E sentamo-nos. Aproveitando alguns instantes em que estávamos sós no refeitório, o Padre Santini, talvez por se sentir não observado, me disse à queimaroupa: “O senhor tem o dom de romper as estagnações, quebrar as indiferenças e mover as águas paradas”. Mas ele disse isto como uma pessoa que estava numa situação muito desagradável, perseguido, oprimido, e que tinha oportunidade de fazer um desabafo com alguém capaz de compreendê-lo, e que só tinha oportunidade de dizer aquelas palavras entre a saída de um padre e a entrada de outro. E disse isto visivelmente com a intenção de me animar. * Morou e morreu neste mesmo seminário o Padre Reus1083, que não 1082 — Dom Alfredo Vicente Scherer (1903-1996) foi Arcebispo de Porto Alegre entre os anos 19461981. Na Revolução de 1930, acompanhou como capelão as tropas revolucionárias de Getúlio Vargas. Paulo VI o elevou ao cardinalato em 29 de março de 1969. 1083 — Padre João Baptista Reus (Johann Baptist Reus) nasceu a 10 de julho de 1868, na cidade alemã de Pottenstein. Em 1883 tornou-se sacerdote jesuíta e veio para o Brasil em 1900. Morreu a 21 de julho de 1947, na cidade de São Leopoldo, com fama de santidade. Seu processo de beatificação, aberto em 1958, sofreu uma pausa em 1974, em parte devido à resistência do Cardeal Dom Vicente Scherer, que enviou carta a Paulo VI desaconselhando a beatificação. Mais tarde, em 1993, Dom Scherer mudou de ideia e julgou melhor apoiar uma carta de 26 Bispos gaúchos pedindo essa beatificação (cfr.


290 conheci pessoalmente, mas foi meu contemporâneo. Esse Padre Reus era muito mais velho do que eu. Só um pouco antes de sua morte é que me falaram dele. Após sua morte, mostraram-me a sua fotografia. Ou eu me engano enormemente, ou esse padre foi um grande santo. Na minha caixa de relíquias, eu tenho uma relíquia indireta dele, um pano que o tocou. Eu osculo metodicamente cada uma das relíquias que tenho diariamente, e quando chega a vez da do Padre Reus, eu osculo com uma particular piedade. A sua sepultura no cemitério de São Leopoldo é visitada continuamente por pessoas que depositam flores e pedem graças 1084. Não há gente nossa que vá ao Rio Grande do Sul que eu não recomende de ir à sepultura dele1085.

Capítulo X Vacância da Sede Arquiepiscopal: período de trégua 1. Monsenhor Monteiro como Vigário Capitular Após a morte de Dom José Gaspar, estava vaga a Arquidiocese. E foi eleito Vigário Capitular1086 o Monsenhor José Maria Monteiro. O Cônego Mayer foi convidado por Monsenhor José para ser próVigário Geral e pediu a ele para continuar como assistente eclesiástico da Junta da Ação Católica. E autorizou-o a nos manter na Junta Arquidiocesana até que viesse o novo Arcebispo. Com isto diminuíram também as oposições que se faziam a nós 1087. Eu não perdi os meus serviços advocatícios na Cúria, e nós tivemos assim alguns meses de tranquilidade1088.

http://www.derradeirasgracas.com, título O Padre Reus). 1084 Palavrinha da noite 12/6/82. 1085 Despachinho 9/12/93. 1086 SD 9/7/88. 1087 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1088 SD 16/6/73.


291 A situação se prolongou ad interim, e durante esse tempo o meu livro continuou a sair e a polêmica em torno da Ação Católica a ferver.

2. Polêmica a respeito de Maritain O Legionário já tinha, ainda no tempo de Dom José, iniciado uma polêmica a respeito de Maritain que ele continuou durante a vacância da sede 1089. Os livros de Maritain tiveram entre nós a mais ampla divulgação, trazendo consigo a aceitação entusiástica, por parte de seus adeptos, de seus principais erros: jesuitofobia, separação entre a Igreja e o Estado, concepção interconfessional e laica da “nova cristandade”, socialismo, “politique de la main tendue” (política da mão estendida) etc. Era fácil perceber que os erros referentes à Ação Católica e à liturgia preparavam os espíritos para receber muitas das teses de Maritain, como a jesuitofobia e o interconfessionalismo. E a tendência ao panteísmo favorecia uma inclinação para o socialismo e o comunismo* 1090. * O primeiro artigo dessa polêmica foi publicado no n° 586 (31/10/43), e tinha como título A doutrina de Jacques Maritain e os documentos pontifícios. Era de autoria do Padre Arlindo Vieira S.J., e analisava os vários conceitos expostos por Maritain em sua obra Les Droits de l’homme. Padre Arlindo Vieira tecia um paralelo entre as teses heterodoxas do escritor francês e as doutrinas ensinadas por Pio IX, Leão XIII e São Pio X, apontando a inegável oposição entre o que apregoava Maritain sobre o papel da Igreja e do Estado no mundo contemporâneo e o que a esse respeito ensinava o magistério infalível da mesma Igreja. Como era de se prever, o artigo suscitou numerosas objeções. Pouquíssimas versavam sobre o mérito da questão. A imensa maioria delas ficava nas preliminares: — “Padre Arlindo teve uma atitude a priori injusta, infeliz e prejudicial aos interesses da Igreja; Maritain fora atacado em sua honra de católico; foram postos em dúvida os ensinamentos do maior filósofo cristão da atualidade”, e assim por diante. Mas ficavam nisto, não entrando nem de longe na análise dos textos produzidos pelo Sacerdote. O Diário Católico de Belo Horizonte, por exemplo, estampou em sua edição de 14/11/43 um artigo indignado de Fábio Alves Ribeiro, sob o título Ataques contra Maritain, em que chegava a lançar em rosto do Padre Arlindo Vieira a acusação de que ele estava agindo de “má fé”. Esse artigo fora encaminhado ao Diário por Alceu Amoroso Lima, que assim endossava esse violento ataque. Em vista dessas reações, o Legionário publicou um artigo, assinado por José Fernando de Camargo, dizendo, em nome da Redação, que ao inserir em suas colunas o trabalho do ilustre Sacerdote, o jornal não se colocava na

1089 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54. 1090 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948.


292 atitude comum da imprensa, que impunha a seus colaboradores a inteira e exclusiva responsabilidade por tudo quanto tivessem assinado, mas o Legionário se manifestava de acordo com o Revmo. Sacerdote. E por isso, não só lhe franqueou suas colunas, mas se esmerou em dar ao trabalho um destaque proporcional à importância do assunto. Esse artigo de Dr. José Fernando tomou o sugestivo título de Maritain e o “dogma” de sua infalibilidade, e foi publicado no Legionário n° 590, de 28 de novembro de 1943. Nesse mesmo número o Padre Arlindo Vieira apresentava sua réplica aos ataques que havia sofrido.

Essa polêmica enchia colunas inteiras do jornal e contribuíu para nos afastar ainda mais de Tristão de Athayde e de todos os seus partidários.

3. A “Mystici Corporis Christi” reforça a nossa posição Durante esse período de vacância, o Legionário fez a difusão da encíclica Mystici Corporis Christi, e isto favoreceu ainda mais a posição do nosso jornal. Pouco antes de Dom José morrer, aconteceu uma coisa muito boa para nós: saiu a encíclica Mystici Corporis Christi, a qual condenava alguns dos erros de que eu falava em meu livro 1091. Ela retificou importantes desvios doutrinários referentes ao elemento sobrenatural e ao elemento jurídico na Igreja1092. Ora, a ofensiva feita pelos nossos adversários contra o meu livro dizia que ele relatava erros que não existiam. E a encíclica denunciava esses mesmos erros, o que me dava naturalmente muito mais base para denunciá-los.

Capítulo XI Dom Motta Arcebispo de São Paulo: oposição pertinaz ao “Legionário” 1. Eleição de Dom Motta e inquietação do Sr. Núncio Certo dia, atravessava eu muito preocupado o Largo de São Francisco, em São Paulo, quando me encontro com Paulo Monteiro, ministro na Ordem Terceira de São Francisco, cargo leigo equivalente ao de prior na Ordem Terceira do Carmo. 1091 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54 — Esta encíclica de Pio XII foi publicada em 29 de junho de 1943 e a morte de Dom José Gaspar deu-se um pouco menos de dois meses depois, a 27 de agosto de 1943. 1092 Veneração e tristeza da Igreja enlutada, Catolicismo nº 95, novembro de 1958.


293 Ele me chamou e disse o seguinte: — Dr. Plinio, tive informações absolutamente seguras de que Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, Arcebispo do Maranhão, será nomeado Arcebispo de São Paulo. Amigo íntimo de Dom Cabral, ele vem executar em São Paulo a política do Arcebispo de Belo Horizonte, e já está decidido que o primeiro golpe dele será contra os senhores. Lembro-me de ter dito a ele: “Sr. Monteiro, nós estamos nas mãos de Nossa Senhora. Ela fará ou permitirá o que entender. Vamos continuando a viver”. * Pouco depois fui a Barra do Piraí para fazer uma conferência no Congresso Eucarístico que iria haver lá 1093. Deparei-me com uma situação quase engraçada, pois a mesa era presidida por Dom Jaime de Barros Câmara, sucessor do falecido Dom Leme na Sé do Rio. Ele estava no centro, à direita o Tristão e à esquerda eu. Tristão e eu éramos oradores no Congresso 1094. De Barra do Piraí fui para o Rio de Janeiro, de onde seguiria depois para Friburgo, convidado para fazer uma conferência no seminário dos jesuítas de lá. Estava eu nesse dia de repouso no Rio, quando, por volta do meiodia , telefona-me o Dr. Pacheco Sales, de São Paulo: “O novo Arcebispo de São Paulo é Dom Carmelo!” 1095

Eu sabia que ele fora intimíssimo amigo de Dom José Gaspar. E tive a impressão de que o Núncio sabia quem é que vinha. O Padre Dainese, dias depois, me contou que viu o Núncio andando nervoso e dizendo a ele 1096: “O Arcebispo que vem para São Paulo é inimigo pessoal de Dr. Plinio; e vem com intenção de demolir o Dr. Plinio e o seu grupo. É uma tristeza, mas não tem remédio. Coitado do Dr. Plinio, coitado do Dr. Plinio!” 1097 Eu fiquei tão, tão aborrecido, que à noite, já em Nova Friburgo1098, estava com uns quarenta graus de febre, tal o sofrimento moral que a 1093 — Este Congresso Eucarístico, realizado entre os dias 16 e 20 de agosto de 1944, reuniu dignitários eclesiásticos de todo o Brasil, e no dia 17 Dr. Plinio discursou sobre o tema “A Eucaristia e o Sacerdócio” (cfr. Legionário n° 628, 20/8/44). 1094 — As relações entre Dr. Plinio e Tristão de Athayde já estavam muito estremecidas nessa época, devido ao lançamento do livro Em Defesa da Ação Católica e à polêmica que se lhe seguiu. 1095 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1096 Jantar EANS 8/4/87. 1097 SD 16/7/88. 1098 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54.


294 notícia me provocou1099. Fiz minha conferência como Deus foi servido, voltei para São Paulo, e aqui tomei conhecimento da situação como ela se apresentava. Então, passei um telegrama a Dom Carmelo, felicitando-o. Ele mandou-me uma resposta amabilíssima*, que eu publiquei no Legionário, dirigida a mim como presidente da Junta Arquidiocesana, e saudando o “valoroso líder católico”, uma porção de coisas assim. * Dom Carlos Carmelo ainda se encontrava no Maranhão quando enviou seu telegrama, em data de 14 de setembro de 1944, no qual dizia: “Receba valoroso presidente Ação Católica Diretor Legionario nossos agradecidos abraços bênçãos Pt Arcebispo Carlos Carmelo”.

Eu até hoje não sei por que ele me passou esse telegrama 1100.

2. Honroso convite do Sr. Núncio como prêmio de consolação Alguns meses mais tarde, recebi convite do Padre Dainese para fazer uma conferência no Teatro Municipal, durante uma sessão solene da Federação das Congregações Marianas do Rio de Janeiro*. * Esta sessão realizou-se no dia 29 de novembro de 1944, em comemoração do centenário de nascimento de Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, o grande Bispo-mártir pernambucano protagonista da Questão Religiosa que abalou o Império no século XIX (cfr. Legionário n° 645, de 17/12/44).

Falar no Teatro Municipal do Rio era reputado uma coisa muito honrosa. E eu era ainda relativamente moço naquele tempo. Ficava evidente que o Padre Dainese queria com isto fazer-me uma gentileza, em virtude de todas as lutas de que tínhamos participado 1101. E por detrás da iniciativa estava o Núncio, que, para me afagar um pouco, promoveu esse discurso no Teatro Municipal 1102. Chegando ao Teatro, vi uma mesa de honra colossal posta ali. Sentados, estavam o Padre Riou, o Núncio Apostólico Dom Aloisi Masella, o Padre Dainese e uma série de personalidades políticas e intelectuais, entre as quais o ministro da Agricultura do governo Getúlio Vargas, Dr. Apolonio Sales. Chamam-me para a mesa, toca uma música, dois outros oradores me precedem, sou o terceiro a fazer o discurso. Nesse discurso eu crivei a facção progressista de indiretas e de farpas de toda ordem. Olhei para o Núncio, cara impassível. Olhei para o Apolonio Sales, 1099 SD 8/4/89. 1100 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1101 SD 16/7/88. 1102 Jantar EANS 8/4/87.


295 sorrindo. Olhei para o Padre Dainese, impassível. Fui muito veemente nas minhas palavras e o discurso foi longo. Terminado este, houve uma verdadeira ovação! 1103 O Apolonio Sales saiu do seu lugar e veio me abraçar efusivamente1104.

3. Carta Pastoral de Saudação: para Getúlio elogios, para o “Legionário” ordem de se calar Depois disso, os fatos se sucederam. Dom Carlos Carmelo veio do Maranhão para o Rio de Janeiro em avião da FAB1105, com todo o apoio de Getúlio Vargas. E lançou a sua primeira Carta Pastoral antes mesmo de chegar a São Paulo. Em um de seus trechos saudava o Getúlio como o homem da legislação social*. * Eram as seguintes as palavras laudatórias ao Presidente da República dessa Carta Pastoral, “dada e passada no Presbitério da Matriz de São João Batista da Lagoa, no Rio de Janeiro”, aos 29 de outubro de 1944, festa de Cristo Rei: “Ao insigne Presidente da República, Doutor Getúlio Vargas, os Nossos respeitosos cumprimentos, quer na Nossa qualidade de cidadão brasileiro, quer na de Bispo da Igreja de Deus. Não podemos os católicos do Brasil deixar de proclamar, com sincera gratidão, as obras beneméritas de seu Governo, que nos tocam mais de perto: a legislação operária, modelar e cristã” etc. etc. (cfr. Legionário n° 641, 19/11/44).

Ao mesmo tempo em que elogiava Getúlio, essa Carta Pastoral era um tiro contra nós. De princípio a fim, esse documento pode ser qualificado como um libelo contra o Legionário 1106. Eu soube então, com toda a certeza, que Dom Paulo Pedrosa, prior do Mosteiro de São Bento, havia tomado um avião e ido ao Maranhão para indispor ainda mais Dom Carmelo contra nós. E que essa Pastoral tinha sido conseguida por manobra dele, Dom Pedrosa* 1107. * Informação essa que, décadas depois, seria confirmada por Dom Polycarpo Amstalden, O.S.B., diretor da Faculdade de São Bento nos anos 30 e 40. Segundo ele, "Dom Pedrosa, Abade do Mosteiro de São Bento, logo advertiu Dom Motta a respeito do problema 'Plinio Corrêa de Oliveira' e o grupo ligado a seu livro 'Em Defesa da Ação Católica'" (cfr. Frei José Ariovaldo da Silva, O.F.M., O Movimento Litúrgico no Brasil, p. 352).

1103 SD 16/7/88. 1104 SD 8/4/89. 1105 — Nomeado Arcebispo de São Paulo em 13 de agosto de 1944, tomou posse por procuração no dia 7 de setembro, mas só chegou a São Paulo a 16 de novembro. A cerimônia de entronização realizou-se no dia 18 do mesmo mês (cfr. Legionário n° 641, de 19/11/44). 1106 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1107 SD 8/4/89.


296 Em carta ao Sr. Núncio Dom Aloisi Masella, o Cônego Mayer se referia a essa mudança de ânimo de Dom Paulo Pedrosa, que de amigo passou a inimigo acérrimo de Dr. Plinio. Ele se queixava de que Dom Pedrosa “tomou como empreitada levantar escândalos contra nós” (carta de 9/9/44). Em outra carta ao Núncio, datada de 9 de setembro de 1944, o mesmo Cônego Mayer apontava para uma possível causa dessa rotação: “Desde o rompimento que brutalmente ele teve conosco, na semana de Ação Católica para o Clero em 1943, a aliança de Dom Paulo [Pedrosa] com os RR. PP. Ramón Ortiz e Benedito Calazans é fato público e notório. O Padre Ramón Ortiz fez várias conferências aos jucistas de Dom Paulo Pedrosa, e o P. Benedito Calazans foi constituído por Dom Paulo Assistente Eclesiástico dos jucistas da Escola Politécnica; e se ultimamente deixou esse cargo, foi devido a desejo expresso do Exmo. Monsenhor Vigário Capitular, finalmente alarmado com as reiteradas queixas que contra ele formulavam zelosos vigários da Arquidiocese, e a um sermão escandaloso do seu colega Padre Carlos Ortiz” (doc. cit., de 9/9/44).

O sentido da Carta Pastoral de Dom Carmelo era o seguinte: que os católicos não devem estar divididos. As polêmicas procedem do demônio e são sempre más. A verdade sem a caridade não adianta de nada. E a caridade devia primar por cima da verdade. E por isso ele condenava, censurava, verberava, reprovava, discrepava das polêmicas havidas até então entre católicos 1108. Depois de ter dirigido as mais severas censuras aos causadores de polêmicas 1109, dava uma ordem formal: cessar todas essas polêmicas1110, num armistício (a expressão era dele) até que a Comissão Episcopal da Ação Católica julgasse as doutrinas que circulavam sobre essa organização*1111. * O Legionário n° 641, de 19 de novembro de 1944 publicou na íntegra esta Pastoral de Saudação, cujo tom pode ser medido nos seguintes destaques: “Os pretextos mais fúteis bem se prestam ao diabólico intento da discórdia. Mesmo entre os católicos de nossa terra se há lançado, por entre o trigal de Cristo, a semente maléfica da cizânia. [...] Os católicos que se deixam fanatizar por disputas e partidarismos doutrinários ou pessoais, cometem contra a vida da Igreja um atentado [...]. Em suas dissidências internas, [...] procure cada um restringir-se aos assuntos de sua competência e do seu dever de estado, sem estorvar as funções e os deveres de outrem. [...] Na hora presente, abstenham-se os católicos de tudo quanto os possa distrair e dividir. [...] Ocupemo-nos e preocupemo-nos com a vida real e objetiva da Fé, ou seja, com sua prática eficiente, mais do que com a vida especulativa da doutrina, isto é, com a teoria pura. [...] Faça-se um armistício total e absoluto nos arraiais contendores! Esta orientação queremos dá-la não em carácter definitivo, mas apenas de emergência, enquanto momentosos assuntos não forem julgados pela Comissão Episcopal da Ação Católica.

1108 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1109 Carta de Dr. Plinio ao Padre Arlindo Vieira, 31/12/44. 1110 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1111 SD 16/7/88.


297 [...] Seja tida e havida a Ação Católica por instituição oficialmente incorporada ao nosso ministério pastoral” (destaques nossos).

Pouco depois, Dom Carmelo proibiu que na Ação Católica se adotasse o meu livro, ou até se falasse nele. O mesmo nas Congregações Marianas e outras associações religiosas. Exerceu tal pressão, que nem sequer as livrarias católicas ousavam vender a obra, não obstante a aprovação de tantos Bispos e o prefácio que lhe deu o Núncio Dom Aloisi Masella 1112. Dom Carmelo nos pôs, dessa forma, na posição mais humilhante que uma pessoa possa ficar: réus que daqui a pouco iriam ser julgados. Sem o dizer claramente, o Sr. Arcebispo dava a entender que iria fazer uma verdadeira devassa para, armado de todas as provas contra nós, esmagar aqueles a quem ele estava denunciando1113. * Escrevi então no Legionário o artigo Armistício (fora a palavra utilizada pelo Sr. Arcebispo), comentando a Pastoral de Saudação e dizendo em outras palavras mais ou menos isto: “Como é sábia a Pastoral! Afinal, nos promete uma decisão. Nós não queremos outra coisa senão decisão; nós vamos nos calar porque temos a perspectiva de uma decisão. E essa decisão, nós a acataremos de todo o coração”*. * O Legionário publicou, no mesmo número, tanto a Pastoral de Dom Carlos Carmelo quanto o artigo Armistício, de Dr. Plinio, este muito respeitoso, cheio de dignidade, mas ao mesmo tempo ousado, pois dizia: “Promete-nos S. Excia. o julgamento da Comissão Episcopal para os ‘momentosos assuntos’ referentes à A.C. Essa promessa é áurea. Todo ato de magistério da Igreja é uma joia. E por isto S. Excia. [...] pede um ‘armistício’. Para este ‘armistício’ o Legionário entra, não só a fim de atender ao augusto pedido, mas de ‘grand coeur’ [...] Um distinto sacerdote [...] me aconselhava silêncio a respeito dos assuntos debatidos em matéria de A.C. [...] E eu lhe respondi: a meu ver, paz na estagnação da ambiguidade será para a A.C. uma ruina. Mas a paz à vista de uma solução dos pontos controvertidos é o meu sonho dourado. [...] Que mais pode desejar um espírito sedento de Verdade? O pronunciamento da Comissão Episcopal será um verdadeiro divisor de águas. [...] Na autoridade da Comissão Episcopal [...] esperamos a água viva da Verdade, com a sedenta e abrasada sofreguidão do cervo ‘ad fontes aquarum’” (Armistício, Legionário n° 641, 19/11/44).

Mandei esse artigo ao Arcebispo, acompanhado de uma carta muito respeitosa. Não obtive resposta. *

1112 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48. 1113 Jantar 31/12/93.


298 Nos dias seguintes à posse dele, fui visitá-lo. Ele me recebeu amavelmente, fez-me até sentar no sofá ao seu lado. Logo em seguida, o Cônego Mayer, o Padre Sigaud e eu, como dirigentes do setor de homens da Ação Católica, fizemos uma outra visita a Dom Carlos Carmelo. E ele ainda nos recebeu muito amavelmente.

4. Atitudes hostis e violentas do Arcebispo Alguns dias depois, o Cônego Mayer organizou uma homenagem da Juventude Feminina Católica ao Sr. Arcebispo. Eram naturalmente algumas centenas de moças de várias cidades, de todas as gamas sociais, e que pertenciam à Ação Católica. Dom Carlos Carmelo chegou muito mal humorado, nem queria vir, e afinal obteve-se que ele fosse. Fez um discurso que foi um libelo contra o Cônego Mayer, sem mencioná-lo diretamente. Disse de si mesmo, na ocasião, que ele, Dom Carmelo, era uma pessoa muito reta e detestava os subterfúgios. E que também detestava gente que falasse mal dos outros. E que a doutrina dele era paz, paz, paz. Que ele vinha aqui para pregar o amor. E acabou dizendo que ele era como uma locomotiva, um comboio que ia pelos trilhos1114: ia cortando tudo e não admitia réplica de ninguém. E que ele estraçalharia qualquer pessoa que resistisse a ele, tal como uma locomotiva estraçalha os objetos que encontra no caminho 1115. Disse ainda que, quanto a essa mania de falar em Papa, Papa, Papa, que isso também tinha limites. Que, do ponto de vista da hierarquia de Ordem, Bispo e Papa valiam exatamente a mesma coisa; e só do ponto de vista da hierarquia de jurisdição, sim, é que o Papa era o juiz dos Bispos. Ora, essa era uma afirmação contrária à doutrina católica. O Papa não é mero juiz dos Bispos. O Papa é o Pastor dos Pastores, ele é quem governa os Bispos. Diante disso, o Cônego Mayer, muito habilmente, fez apenas um discurso de agradecimento. As moças bateram palmas, serviram champanhe e acabou a festa. * Pouco tempo depois, o Padre Sigaud, cuja mãe conhecia muito Dom Carlos Carmelo, foi fazer uma visita a ele no Palácio Pio XII. Eles se encontraram no momento em que o Padre Sigaud subia uma 1114 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1115 SD 15/12/73.


299 escada interna do Palácio e Dom Carlos Carmelo descia. E conversaram então no patamar dessa escada. O Padre Sigaud explicou que era Assistente Geral da JEC, que vinha apresentar as homenagens e que trabalhava junto com o Cônego Mayer. Dom Carlos Carmelo tratou o Padre Sigaud muito friamente. E a visita deu em nada. * As coisas estavam nesse pé, quando, depois de um retiro do Clero em 1945, Dom Carlos Carmelo chamou o Cônego Mayer e passou-lhe uma repreensão, a mais violenta, a mais apaixonada e a mais injusta que um homem possa passar em outro 1116. Disse que estava muito desgostoso com a Ação Católica; que ele absolutamente não queria saber de a Ação Católica continuar nas mãos do Cônego Mayer; que ele o destituía do cargo de pró-Vigário Geral; que ele cassava todos os seus poderes e que o reduzia a simples vigário; e que, de mais a mais, ele tinha a dizer que, se ele estivesse aqui no momento em que o Cônego Mayer declarou que um Bispo podia errar, ele o teria suspenso de ordens. Era evidentemente uma jogada bem feita da parte do Cardeal, porque se o Cônego Mayer entabulasse uma discussão, ele diria: “Está vendo? Revoltoso, orgulhoso.” Como o Cônego Mayer ficou quieto e observou o silêncio mais modelar, ele ainda acrescentou: — Bem, outra coisa: eu ouvi dizer que esse Imprimatur que figura no livro do Dr. Plinio foi dado sem autorização de Dom José Gaspar. Eu quero as provas de que foi dado com autorização dele. O Cônego Mayer respondeu: — Não costuma haver prova nesses casos, porque não há na Cúria documento escrito por onde habitualmente o Arcebispo manda dar “Imprimatur ex comissione”. Mas tínhamos as provas, pois Dom José Gaspar tinha visto o livro e tínhamos as primeiras páginas do rascunho anotadas pela mão do Arcebispo. 1116 — A data desse encontro foi no dia 13 de janeiro de 1945, pois, em carta ao Padre Dainese datada do dia 14, o Cônego Mayer dizia-lhe ter sido chamado “ontem” pelo Arcebispo: “fui chamado ontem pelo Sr. Arcebispo, que, com imensa estranheza e pesar meus [...] me disse que possuía contra mim denúncias, a respeito das quais passaria a me interrogar”, pois era seu desejo “vingar a memória de seu antecessor”.


300 E, pelo que seguiu, o Sr. Arcebispo Dom Carlos Carmelo sabia disso, pois disse: — Ouvi também dizer que vocês possuem um dos originais do livro de Dr. Plinio tendo nas primeiras páginas marcas do próprio punho de Dom José. Quero ver isto para confrontar a letra”. O que significava nos chamar de falsários. O Cônego Mayer soube ficar quieto e não disse uma palavra. No fim, o Arcebispo disse: — Bem, o senhor tem duas paróquias para escolher: ou vai ser vigário do Ó, ou vai ser vigário do Belenzinho. Escolha. O Cônego Mayer acabou indo para a paróquia de São José do Belém*. * Em carta ao Sr. Núncio Dom Aloisi Masella (de 14/1/45), o Cônego Mayer assim narra o episódio: “Chamado pelo Sr. Arcebispo para um encontro particular, verifiquei desde logo que tinha diante de mim um juiz que me condenava in pectu sem me ouvir, que me chamava para me acusar, me humilhar e me punir, e que parecia disposto a não me dar sequer a oportunidade de expor com calma e filial confiança o que minha consciência me inspirasse em minha defesa. Fiquei reduzido a interpor, durante a conversa, apenas uma ou outra rápida alegação em minha defesa, mas que foram sempre postas em dúvida. [...] Por fim [fui] intimado a redigir um documento, respondendo a duas perguntas que S. Excia. me formulava no momento, documento este que será enviado a V. Excia. pelo Sr. Arcebispo, segundo este me disse. Se, nesse documento eu fizesse alguma acusação ao Sr. Dom José, seria aberto contra mim um processo canônico, disse-me o Sr. Arcebispo. [...] Por fim, S. Excia. me declarou que chamava a si a direção da A.C., o que implicava na minha exoneração. E ordenou-me que aceitasse uma paróquia, oferecendo-me duas para escolher: Freguesia do Ó e S. José do Belém. Disse, então, que estava nas mãos de S. Excia., ao que me replicou que isto não era resposta, pois eu devia escolher positivamente. Respondi que dificuldades oriundas de minha saúde impediam-me de ser tão positivo como S. Excia. desejava, mas S. Excia. ordenou-me que escolhesse, dando-me prazo de alguns dias”. A nomeação do Cônego Mayer para vigário da paróquia de S. José do Belém deu-se no dia 25 de janeiro de 1945.

* O Cônego Mayer falou comigo a respeito do problema do rascunho revisto por Dom José. Eu disse a ele: — Não mande os originais do livro a Dom Carlos Carmelo. Se ele vier falar de falsificação, eu entesto com ele, porque aí eu faço o contrário: eu digo a ele que me dê ordem por escrito para que eu apresente esses documentos. E quando ele me der essa ordem por escrito, eu apelo para a Santa Sé.


301 O Cônego Mayer não deu os documentos e ele também não falou mais nisso. * Ainda na anterior conversa, o Arcebispo ameaçou o Cônego Mayer de instaurar contra nós um processo canônico por difamação a Dom José Gaspar, por termos dito que Dom José Gaspar tinha erros de doutrina. E também levantava a acusação de que o Cônego Mayer havia obtido fraudulentamente a nomeação para Vigário Geral, o que era evidentemente falso. * Dois ou três dias depois, não posso me lembrar bem, saiu um edital da Cúria Metropolitana declarando dissolvidas todas as diretorias e juntas da Ação Católica, e nomeando novas1117. Desta forma, todos os jovens da Ação Católica com quem cooperei na luta contra o liturgicismo, e eu, estávamos fora das posições de direção. Além disso, fomos cuidadosamente mantidos à distância de todas as iniciativas católicas importantes: Liga Eleitoral Católica, Universidade Católica etc. Ao pé da letra, estávamos feridos de morte civil em todo esse campo. Ficamos assim desprovidos dos meios para pôr cobro a um perigo gravíssimo como era o do liturgicismo 1118. Tudo isto somado, constituiu-se em São Paulo um ambiente de tal terrorismo, que praticamente todos os bons se calaram e só os maus tiveram liberdade de se mover. Este terrorismo chegou a tal ponto que, quando em 1948 o Cônego Mayer foi elevado ao Episcopado pela Santa Sé, um dos Bispos Auxiliares de São Paulo, instrumento dedicado de S. Emcia., proibiu aos antigos companheiros de Ação Católica de irem prestar homenagem ao novo Bispo, sob pretexto de que isto seria "injurioso" ao Sr. Cardeal1119. * Quando Dom Carmelo foi eleito cardeal (em 1944 ele tinha sido eleito Arcebispo de São Paulo, e sua elevação ao cardinalato deu-se em 1946), eu estava em Santos e me lembro que fiquei muito na dúvida sobre o que deveria fazer. Porque era tal o prestígio de um cardeal naquele tempo que, sendo ainda diretor do Legionário, ficaria mal eu não ir homenageá-lo 1117 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1118 Carta de Dr. Plinio ao Núncio Dom Masella, 1/1/46. 1119 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48.


302 no seu embarque1120. Então, escrevi-lhe uma carta felicitando-o e justificando o meu não comparecimento à estação para apresentar as minhas despedidas 1121.

5. Sucessão de catástrofes Debaixo do peso desses acontecimentos, e empurrados compulsoriamente para fora da Ação Católica, portanto no cúmulo do desprestígio, fomos substituídos pelos inovadores que, em sua maior parte, haviam sido afastados da Ação Católica por seus desvios. E assim voltaram para os cargos que ocupavam antes. Os padres e leigos que assumiram eram todos da linha nova. Tudo isto coincidiu com uma série de acontecimentos muito tristes para nós. * Deixou-nos Dom Aloisi Masella, que permanecera 19 anos no Brasil sem conseguir sua elevação ao cardinalato. De repente, as coisas desencalharam misteriosamente. Ele recebeu o chapéu cardinalício e foi-se embora*. * Ele viajou no navio Duque de Caxias, cedido pela Marinha brasileira, junto com os Arcebispos do Rio e de São Paulo, na data de 22 de janeiro de 1946. Os três foram elevados simultaneamente por Pio XII ao cardinalato, no consistório de 18 de fevereiro de 1946. Em lugar de Dom Masella, assumiu o Núncio Dom Carlo Chiarlo (1881-1964), o qual permaneceu no Brasil de 1946 a 1954, sendo elevado por João XXIII, em 1958, ao cardinalato.

* Muito triste também foi a morte de José Gustavo de Souza Queiroz, um dos membros do grupo do Legionário, que tendo recaído na sua doença, após um ano veio a falecer*. * Seu falecimento se deu no dia 8 de março de 1946, à idade de 31 anos, devido à tuberculose que o acometeu. Ele havia ingressado muito cedo na Congregação Mariana de Santa Cecília, onde estreitou relações com o grupo do Legionário. Filho das mais antigas e ilustres famílias paulistas, era de um trato aristocrático e gentil para todos, sem se vulgarizar jamais, e fez amigos sinceros e devotados em todas as classes sociais. Era também de uma pureza exemplar, e um verdadeiro católico de mentalidade ultramontana na força do termo (cfr. Legionário n° 710, de 17/3/46).

* 1120 Palavrinha 30/6/92 — Esse embarque deu-se na Estação Roosevelt no dia 22 de janeiro de 1946, seguindo o Sr. Arcebispo para o Rio em trem especial, acompanhado de uma comitiva de Bispos, sacerdotes e de representantes do governo do Estado. Aí embarcou em navio para Roma, onde participou do Consistório de 18 de fevereiro de 1946 (cfr. Legionário n° 703, de 27/1/46). 1121 Carta de Dr. Plinio a D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, 24/1/46.


303 Logo em seguida, veio a notícia de que o Padre Sigaud seria transferido para a Espanha. O Padre Sigaud, antes de embarcar, ainda nos prestou um grande serviço. Estava chegando da Europa Dom Jaime de Barros Câmara, que também tinha ido receber o chapéu de Cardeal juntamente com Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, na mesma ocasião em que o recebera o Núncio Dom Aloisi Masella. Faltando algumas horas para partir, Padre Sigaud foi a uma sessão onde Dom Jaime Câmara iria promulgar os novos estatutos da Ação Católica. Nessa sessão, o Padre Sigaud ouviu coisas que mostravam o lado escorregadio desses estatutos. E repassou-nos essas informações, que nos foram de muita utilidade mais tarde, quando se tentou aplicar aqui no Brasil esses estatutos, fazendo tabula rasa da encíclica Bis Saeculari Die, de 27 de setembro de 1948. Durante essa sessão, quando o Padre Sigaud passou diante de Dom Jaime, este perguntou: — O senhor, quem é? Era uma pergunta surpreendente, pois Padre Sigaud era um sacerdote já ilustre e muito conhecido. — Senhor Cardeal, eu sou Geraldo de Proença Sigaud, padre do Verbo Divino, e agora vou como missionário para a Espanha. O Cardeal olhou para ele e disse: — Me parece que alguma vez já ouvi o seu nome. — Pois não — respondeu Padre Sigaud. Nas vésperas da partida do Padre Sigaud, lembro-me de que fizemos uma despedidazinha, nos crepes do luto mais profundo. Acompanhei-o até o Rio de Janeiro 1122. Recordo-me até do lugar onde me despedi dele com uma tristeza enorme: foi num ponto de ônibus Rio-Juiz de Fora, perto da igreja de São Francisco de Paula, no largo do mesmo nome. O navio que devia levá-lo à Europa sofrera um atraso e ele aproveitou esses dois ou três dias de delonga para visitar um amigo em Juiz de Fora. Eu não poderia ficar no Rio esse tempo todo. Então o abracei e, no 1122 — A partida do Padre Sigaud de São Paulo foi no dia 13 de março de 1946 (cfr. Legionário n° 711, 24/3/46).


304 momento em que eu voltava, pensei: “Um capítulo em minha vida que está encerrado é o Padre Sigaud. Ele agora vai para a Europa e está acabado”.

6. Risco de processo canônico: crise na Igreja vista com maior clareza Como já disse atrás, o Cardeal Dom Carlos Carmelo nos havia ameaçado com um processo canônico. Levado pelo receio de que essa ameaça se concretizasse a qualquer momento, como eu tinha direito a uma licença-prêmio no Colégio Estadual, requeri essa licença e passei seis meses lendo as coleções da revista Ordem, do Diário de Belo Horizonte, do Correio Católico de Uberaba e de outras publicações da corrente progressista*, para extrair delas proposições que pudessem me servir de defesa, pois continham muitos erros. * Serviam também à corrente inovadora revistas como Palavra, de Belém do Pará; Idade Nova, de Porto Alegre; Lampadário, de Juiz de Fora; Presença, de Salvador e outras mais.

Mas, dada a linguagem viscosa que essa corrente costumava adotar, naturalmente muitas dessas proposições eram duvidosas, e eu precisava mostrá-las a censores eclesiásticos. O Padre Sigaud, antes de sua partida para a Espanha, tendo de vir muitas vezes ao centro de São Paulo fazer compras para a sua viagem, ia almoçar em casa. E eu mostrava a ele aquela pilha de documentos. Ele começou a ler aquele material e a detectar algumas coisas erradas. Certo dia me disse: — Plinio, não estou satisfeito com este serviço. Não se trata de pegar um errinho aqui ou outro ali. É preciso aprofundar o estudo desses erros e verificar qual é a doutrina oculta dessa gente. Detectada essa doutrina, nós saberemos bem exatamente que heresia está caminhando aí. Ora, o livro Em Defesa da Ação Católica desenvolvera bem a doutrina errônea em matéria de Ação Católica, mas não focalizara a doutrina errada do liturgicismo. Apontava apenas algumas proposições erradas nessa matéria. O Padre Sigaud foi então farejando essas publicações e encontrou os primeiros dados para explicar essa questão. O assunto interessou muito ao Cônego Mayer, a Dr. Pacheco, a mim, e pedimos ao Dr. Pacheco para preparar um estudo com base nos dois autores liturgicistas mais citados pelos inovadores: Dom Anselm Stolz,


305 OSB, e o Padre Romano Guardini 1123. Lendo esses autores, foi possível a Dr. Pacheco delinear perfeitamente toda a doutrina liturgicista. O Dr. Pacheco estava preparando também, nesse tempo, um livro refutando as teses de Maritain. E o trabalho sobre Maritain serviu para auxiliar o trabalho sobre Romano Guardini. Com base nesses estudos, nós teríamos o que dizer para nos defender em um eventual processo canônico. De outro lado, começamos a perceber, mais claramente do que nunca, todo o vulto da trama herética que combatíamos, e que agia dentro da Igreja para introduzir uma religião falsa no âmago da religião verdadeira. Naturalmente isto nos confortava e dava-nos redobrado ânimo para a resistência 1124.

7. Principais focos de oposição ao livro Os principais opositores do meu livro eram Dom Carlos Carmelo, Arcebispo de São Paulo, Dom Antonio Cabral, Arcebispo de Belo Horizonte1125. Constou-me que Dom Cabral tinha inclusive mandado queimar o Em Defesa numa reunião da Ação Católica* 1126. * O grau de exacerbação de Dom Cabral em relação ao livro pode ser medido pelo cartão manuscrito, sem data definida, que ele escreveu a Dr. Plinio: “... ‘Em Defesa da Ação Católica’ que melhor deveria chamar-se — Ataque disfarçado à Ação Católica...”

1123 — Anselm Stolz (1900-1942), beneditino alemão, foi professor no Pontifício Ateneu de Santo Anselmo, em Roma. Para se ter ideia da inspiração panteísta de suas obras, em sua Théologie de la Mystique (Éditions des Bénédictins d’Amay, Chevetogne, Bélgica, 1939) ele sustentava que no princípio era o Abismo, o Silêncio eterno, a quem nós chamamos de Pai, fonte primordial e insondável do ser divino, e que repousa em si mesmo, encerrado em seu próprio ser na mais absoluta indeterminação [sic]. É na Segunda Pessoa, o Filho, que o ser divino se concretiza, se determina, tomando consciência de si mesmo (cfr. estudo do Padre Benigno de Brito Costa, Síntese esquemática da doutrina e da prática do liturgicismo moderno, 1950, feito para uso de D. Mayer em sua viagem a Roma em 1950). Já Romano Guardini (1885-1968) foi um sacerdote, teólogo e filósofo de origem italiana, mas radicado na Alemanha, para onde sua família se mudou quando ele tinha um ano de idade. Caminhou ombro a ombro com teólogos progressistas como Henri de Lubac, Karl Rahner e Hans Urs von Balthasar e é considerado um dos maiores protagonistas do movimento liturgicista e ecumênico, sendo sua doutrina apreciada tanto por protestantes como por católicos de ideias novas. Paulo VI quis fazê-lo cardeal em 1965, mas ele recusou. Foi professor em Tübingen e depois em Munique, sendo um de seus alunos nesta última cidade o jovem Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI. 1124 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1125 Almoço EANS 16/6/82. 1126 SD 16/6/73.


306 Cabe acrescentar que também em Porto Alegre, Arquidiocese que tinha à frente o Arcebispo e depois Cardeal Dom Vicente Scherer, havia uma campanha cerrada contra o livro, segundo informou o Padre Dainese em carta de 4 de junho de 1944: “Começou-se naquele Estado uma campanha em grande estilo contra nossas ideias, contra seu livro e contra o que chamam o grupo ‘intransigente’ e ‘fanático’. O movimento está muito bem articulado (por quem?...)”.

8. Reunião da Comissão Episcopal da Ação Católica: carta de pedido de julgamento, silêncio como resposta Nesse ínterim, pelos jornais chega ao meu conhecimento uma reunião da Comissão Episcopal da Ação Católica*. * Ela se realizou no Palácio Arquiepiscopal de São Joaquim, no Rio de Janeiro, no dia 23 de setembro de 1945, tendo como presidente Dom Jaime de Barros Câmara, e como participantes os Arcebispos e Bispos brasileiros empenhados na mobilização da Ação Católica. E nela se debateu a reforma dos estatutos dessa organização (cfr. Legionário n° 686, de 30/9/45).

Era este o evento que o Sr. Arcebispo de São Paulo anunciara, um ano antes, que iria levantar os assuntos controvertidos referentes à Ação Católica. Parecia-me fora de dúvida que o meu livro seria objeto do pronunciamento da Comissão. Resolvi então mandar uma carta a Dom Carlos Carmelo. Eu dizia a ele que havia escrito o meu livro fundando-o todo em textos do magistério infalível e documentos pontifícios. E que estava disposto a derramar até o meu sangue, se preciso fosse, para defender aquelas verdades. Mas, se estivesse errado na interpretação do pensamento do Romano Pontífice, eu estaria igualmente disposto a aceitar por falso e pernicioso tudo o que, a meu juízo privado e falível, parecesse verdadeiro e bom. E que, com a graça de Deus, eu me retrataria publicamente e sem reservas, praticando esse ato de humildade com a ufania com que os filhos do mundo recebem as glórias da terra. Eu acrescentava estar no firme propósito de prestar ao Sr. Arcebispo toda a obediência que a S. Excia. eu devia por divina instituição e pelas leis eclesiásticas, muito exatamente na medida e extensão em que a Santa Igreja preceituava tal obediência. Sentimentos esses, dizia eu na carta, que se estendiam à Veneranda Comissão Episcopal que iria se reunir1127. A mensagem, entregue em mãos na Cúria, levava junto um termo de solidariedade dos demais redatores do Legionário para com essa tomada 1127 Carta de Dr. Plinio a D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, 22/9/45 (adaptação).


307 de posição*. * A carta era datada de 22/9/45, portanto de um dia antes da reunião da Comissão Episcopal da Ação Católica.

Não obtivemos nenhuma resposta. E os assuntos não foram julgados. Não soubemos o porquê de tal silêncio 1128. Fui depois informado de que a Comissão Episcopal havia resolvido nomear uma subcomissão de sacerdotes, para elaborar uma relação de livros “recomendados” sobre a Ação Católica. Dessa lista o meu livro seria excluído. E seria esta a “resposta” ao meu livro 1129.

9. Nova carta ao Episcopado, novo pedido para ser julgado: melodrama de Dom Cabral e pedra sobre o assunto Meses mais tarde, os jornais começaram a noticiar uma reunião do Episcopado brasileiro no Rio de Janeiro 1130, com o objetivo de cuidar do assunto Ação Católica. Não tive dúvida: escrevi uma carta a Dom José Maurício da Rocha, Bispo de Bragança Paulista, pedindo-lhe que lesse, no plenário da reunião dos Bispos, uma carta minha ao Episcopado nacional, e encarreguei Dr. Paulo Barros de a levar àquela cidade. Dom José Maurício era muito amigo meu, desde o tempo do apogeu do Movimento Católico. E no meio daquela degringolada toda, sempre continuei a ter boas relações com ele1131. Homem rígido, decidido, de estatura alta, cabelos brancos, sempre de solidéu1132, era um alagoano muito tradicional e mantinha toda a pompa episcopal em sua Diocese1133. Usava um anel com um dos mais bonitos rubis que eu tenha visto em minha vida. Ele apresentava esse anel para o ósculo, quando íamos falar com ele1134. * Meu apelo se explicava. O meu livro não tinha sido ainda aprovado pela Santa Sé e eu receava muito que os nossos adversários quisessem indiretamente desautorá-lo nessa reunião do Episcopado*. * Este receio teve posterior confirmação numa carta do padre jesuíta João de Castro e Costa, antigo professor de Dr. Plinio no Colégio São Luís. Escrita 1128 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 10/10/46. 1129 Carta de Dr. Plinio ao Padre Sigaud, 16/12/46. 1130 — Esta reunião foi no último dia de maio de 1946 ou inicio de junho. 1131 Almoço EANS 16/6/82. 1132 SD 16/7/88. 1133 Almoço EANS 16/6/82. 1134 SD 16/7/88.


308 de Roma, onde desempenhava funções no Colégio Pio Brasileiro, aquele sacerdote dizia a Dr. Plinio: “Achei que devia dar conhecimento do seu livro às autoridades superiores, e levei à Sec. de Estado a Monsenhor Lombardi, meu grande amigo, bem informado das cousas do Brasil e já conhecedor da celeuma aí levantada. Dias depois, uns quinze, chamou-me e perguntou-me o meu parecer, dizendo que o livro tinha sido examinado, creio que por outros 2 monsenhores. [...] Vieram os dois exemplares, o pergaminho e a carta [material enviado por Dr. Plinio para ser oferecido ao Papa e à Secretaria de Estado]. Voltei a Monsenhor Lombardi que se encarregou de entregar tudo, como de fato o fez. Mais tarde chamou-me para dizer que lhe escrevesse [a Dr. Plinio], consolando e animando. Pedi que fosse alguma coisa de oficial. Não o quis fazer, pois uma carta da Sec. de Estado iria melindrar a muita gente, principalmente aos Srs. Bispos. Pouco depois recebi uma carta alarmante de Monsenhor Librelotto [capelão chefe da FAB na II Guerra] avisando-me que corriam vozes que o livro seria condenado pela Comissão Nacional [Episcopal brasileira]. Voltei à carga e Mons L. [Lombardi] respondeu-me: seria um absurdo: o livro é ortodoxo, e além disso traz aprovação do representante do Papa. Insisti de novo para que a Sec. mandasse, não digo uma aprovação, mas uma palavra de animação. Desta palavra está encarregado V. R., respondeu-me” (carta do Padre João de Castro e Costa a Dr. Plinio, de 7/9/46).

* Na véspera da reunião do Episcopado, uma vez tudo combinado com Dom José Maurício, pedi a Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra ir ao Rio e organizar a distribuição da carta-circular (datada de 31 de maio de 1946) a todos os Bispos presentes na cidade. Dr. Paulo fez maravilhas: ele conseguiu no palácio do Cardeal os endereços dos Bispos, tomou automóvel, distribuiu para todos e ainda conversou com vários deles. * Minha carta era muito respeitosa. E também um desafio do outro mundo!1135 Ela ia acompanhada de página separada com uma lista das teses que meu livro levantava. Eu relembrava nessa carta que o livro havia despertado reações as mais diversas, desde cartas de aprovação de numerosos Bispos e sacerdotes do Clero secular e regular. Que Dom Carlos Carmelo havia pedido para cessar as discussões e polêmicas, o que para o Legionário foi tomado como uma ordem, abstendo-nos de qualquer referência aos assuntos que antes tanto nos empolgavam. Que nossos contendores, pelo contrário, protegidos por nosso silêncio forçado, sustentavam livremente as suas teses em seus órgãos de imprensa, com referências muitas vezes amargas às nossas posições. 1135 Almoço EANS 16/6/82.


309 E que agora reafirmávamos a todo o Episcopado nacional o pedido anteriormente feito a Dom Carmelo: se qualquer das proposições contidas em meu livro estivesse contra a doutrina católica, eu estaria na inteira disposição de aceitar com docilidade as correções que a doutrina infalível da Igreja de Deus determinasse, pois a receberia com toda aquela medida de submissão que o Direito Canônico estabelece. Terminava dizendo nessa carta que apenas uma coisa eu desejava, e esta eu pedia pelo sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo: que o quanto antes se fizesse luz, se condenasse a treva, se dissipasse a confusão, se estraçalhasse o erro, ainda que pela humana fragilidade a treva, a confusão, o erro só de mim procedessem1136. * Além dessa carta-circular ao Episcopado, juntei uma carta especial aos Bispos amigos que haviam elogiado o Em Defesa, na qual lançava mais um apelo: se houvesse qualquer dúvida, o que mais simples do que suplicar a Roma que decidisse a questão? Eu mesmo me associaria de bom grado aos que pedissem tal pronunciamento. Pois, se eu estivesse certo, só teria a lucrar. Se estivesse errado, o que poderia querer de melhor do que ser corrigido de meu erro? Era justamente o que os opositores de meu livro não haviam querido fazer. Em vão eu lhes pedia apresentarem concretamente a tese, a página, o texto em que errei. Em geral preferiram ficar no terreno das afirmações imprecisas, que não se prestavam a qualquer troca de ideias 1137. * Chega então o dia da reunião do Episcopado. Dom José Maurício da Rocha − um homem que falava alto, com voz nordestina, peito cheio, expressão fácil e ar sobranceiro − se levanta e diz: — “Meus caros irmãos do Episcopado, eu lhes trago uma boa notícia. Tenho aqui esta carta. É um ato de submissão completa do Professor Plinio Corrêa de Oliveira. Ele não pede senão para ser julgado. Julguemo-lo”. O próprio Dom José Maurício foi quem me contou o fato1138. Dom Jaime ficou lívido 1139. Dom Carmelo, rubro, entretanto não

1136 Carta-circular de Dr. Plinio aos Bispos reunidos no Rio, 31/5/46 (adaptação). 1137 Carta de Dr. Plinio aos Bispos amigos, juntada à carta-circular ao Episcopado, 31/5/46 (adaptação). 1138 SD 7/4/79. 1139 SD 4/11/72.


310 disse uma só palavra1140. Mas fez uma cara iracunda e furiosa. chorar.

O Arcebispo de Belo Horizonte, muito mais hábil, começou a Perguntaram a ele: — Por que V. Excia. está chorando? — Porque quem vai ser julgado sou eu. — Mas como é que V. Excia. vai ser julgado?

— V. Excias. não percebem? 1141 O Dr. Plinio, com essa carta, inverteu a situação. Ele estava no banco dos réus e nós éramos os juízes. Agora1142, o julgado serei eu, porque eu condenei esse livro. E julgar-me a mim, um Arcebispo de trinta anos de serviço, é um insulto que minha velhice recebe. Equivalia a dizer: como fui eu, Dom Cabral, que condenei, aquele que foi objeto de minha condenação não tem direito à justiça. Razão? Porque sou um velho Arcebispo de trinta anos de serviço... Onde estava a noção de justiça nesse raciocínio?1143 O Sr. Bispo de Ribeirão Preto (Dom Manuel da Silveira d'Elboux) fez ainda na reunião uma apologia da oportunidade de meu livro. Não chegou contudo a haver votação. Dom Cabral fez questão fechada de que minha circular não fosse respondida. E o Sr. Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, que presidia à sessão, nem pôs o assunto em votação. Deu-o por liquidado ex auctoritate propria. E a minha carta-circular ficou sem resposta1144. * Eu recebi depois carta de vários Bispos, felicitando-me por minha atitude e dizendo que eram solidários comigo. Um deles foi o Sr. Bispo da Barra (Bahia), Dom João Batista Muniz1145, que me felicitou pela “atitude edificante”1146. Eu não publiquei nada1147. O fato resultante é que prevaleceu a decisão de não julgarem nada*.

1140 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 10/10/46. 1141 Almoço EANS 16/6/82. 1142 Palavrinha canadenses 17/8/93. 1143 SD 4/11/72. 1144 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 10/10/46. 1145 SD 16/6/73. 1146 Almoço EANS 16/6/82. 1147 SD 16/6/73.


311 * Pouco antes de Dom Masella partir de volta para Roma, onde receberia o capelo cardinalício, Dr. Plinio escreveu-lhe uma carta em que dizia: “Vossa Eminência sabe o que penso sobre a gravidade do risco a que esses problemas expõem a Igreja, no Brasil. Não vejo no “liturgicismo” e nos excessos da A.C. apenas exorbitâncias de certos grupinhos de leigos de cabeça quente. O mal deitou raízes mais fundas, e põe em risco a fidelidade do próprio Brasil à Igreja de Roma. Enquanto tive liberdade de ação, lutei contra esses erros com todas as forças. Há mais de um ano, porém, a Pastoral escrita ainda no Maranhão pelo Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo me impôs silêncio. E Vossa Eminência tem visto no ‘Legionário’ até que extremos levei minha obediência a esta ordem. [...] O que é certo é que ninguém pode negar que existem os erros que mencionei. Meu livro é bem anterior à Encíclica Mystici Corporis Christi, e entretanto já impugnava os mesmos erros contra os quais agiu a paternal solicitude do Sumo Pontífice. Como explicar essa atitude ‘profética’ que tomei? Adivinhei os erros? “O único ponto que pode ser posto em dúvida é se a doutrina que sustentei sobre a A.C. é certa ou errada. Se for certa, diga-se isto para defesa da verdade, preservação das almas e exaltação da Igreja. Se for errada, declare-se isto do mesmo modo. O que não posso compreender é o silêncio. O silêncio, em que os fautores do erro tanto se obstinam, e com o qual só eles podem lucrar. “Já fiz a outros este oferecimento, e o deixo agora em mãos de Vossa Eminência: consta-me que certos membros de nosso Venerando Episcopado acham que caí em erro em meu livro. [...] Denunciem, pois, meu trabalho ao Sumo Pontífice. Eu mesmo escreverei uma carta, que acompanhará a denúncia, em que me comprometo a retratar quanto escrevi, a destruir os exemplares restantes da edição, e a fazer a penitência pública que a justiça do Santo Padre mandar, na hipótese de que eu tenha realmente errado” (carta a Dom Bento Aloisi Masella, de 1°/1/46).

Mas, então, do que adiantaram essas cartas? — Muito. Eu fiquei de posse da minha carta ao Episcopado. E tenho a carta de vários Bispos dizendo-me que estavam inteiramente solidários comigo. Portanto, fiquei com a prova de que pedi o julgamento e de que o julgamento não me foi dado. E o medo deles de me julgar trazia a certeza de que eu estava certo. É uma parte da história que não foi publicada, mas a documentação eu a tenho. E para a História, isto fica1148.

10. No isolamento e no ostracismo A par de tudo isso, eu ia claramente notando um desânimo cada vez maior em todos os nossos aliados, não os do nosso grupo. Isto queria dizer em outros termos que a corrente ultramontana, que havíamos formado com 1148 SD 7/4/79.


312 "sangue, suor e lágrimas"1149, se estava esfacelando. Cada dia eu sentia o isolamento e a indiferença em torno de nós*. * Em carta ao seu antigo professor no Colégio São Luís, Padre Castro e Costa, Dr. Plinio se abria sobre a situação em que se encontrava: "Minha situação pessoal é a mais dolorosa possível. Os Srs. Bispos das sedes mais importantes me hostilizam sem rebuços. No Rio, em Belo Horizonte e particularmente em São Paulo estou oficialmente colocado na categoria de lobo com pele de ovelha, que convém manter afastado do rebanho. Meu nome é cancelado de todos os Congressos, de todas as reuniões e dos postos de atividade, por mais apagados que sejam. Sou ainda Diretor do Legionário, órgão cuja existência a Autoridade finge não perceber [...]. Todos esses fatos repercutem intensamente nos meios católicos, onde passei a ser mal visto por muitos daqueles que outrora me estimavam. Nos meios sociais em geral, percebe-se este ostracismo, sem que se lhe conheçam as verdadeiras causas: fico, pois, exposto a suspeitas que podem atingir até a minha própria honorabilidade pessoal (Carta ao Padre João de Castro e Costa, de 10 de outubro de 1946).

Antigamente, quando o funcionário do Legionário ia ao correio abrir a caixa postal, trazia as mãos cheias de cartas. Mas nesse período, houve dia em que chegavam uma ou duas. E numa certa semana não chegou nenhuma. Foi fato virgem na vida do jornal. Para mim, nada era mais lamentável, mas nada também mais explicável. O adversário progressista estava senhor de todas as posições 1150. Nada faltava a ele: influência, postos-chave, revistas, jornais, bafejo oficial, grandes tipografias. Nenhuma vitória poderia ser mais clara, mais total, mais absoluta e ter ares de mais durável. Também nenhuma derrota poderia ser mais completa, mais fragorosa, mais pública do que a nossa. Ela se cercava de todos os estigmas das penas infamantes, e nada fazia prognosticar que elas iriam cessar. * Enquanto isto se dava, o Arcebispo de Belo Horizonte realizava congressos da Ação Católica, rodeado de vinte a trinta Arcebispos e Bispos. E era prestigiado pelo comparecimento do Sr. Cardeal de São Paulo, por delegações de leigos do Brasil inteiro que iam lá aprender as doutrinas novas, para depois as disseminar por todo o País. O Alceu Amoroso Lima tinha liberdade de vir falar em São Paulo contra nós, com o prestígio do bafejo oficial de Dom Motta. Nós continuávamos no pelourinho1151, reduzidos ao silêncio 1152. E a isto o Sr. 1149 — Célebres palavras de um discurso do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, convocando os ingleses a enfrentarem de cabeça erguida as agruras da guerra contra a Alemanha nazista. 1150 Carta de Dr. Plinio a D. Sigaud, 8/8/47. 1151 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 16/10/47. 1152 Carta de Dr. Plinio a D. Sigaud, 8/8/47.


313 Cardeal chamava de "armistício". Nossos amigos de outrora eram empurrados a um canto, ou se recolhiam espontaneamente ao canto. As fileiras dos que lutavam pela ortodoxia foram desbaratadas pela única força capaz de as desbaratar: a obediência 1153. Era o caso de dizer como Corneille no Cid: 1154 "et le combat cessa faute de combattants" - A batalha cessou por falta de combatentes 1155. * O que mais me fazia sofrer, entretanto, não era isto, mas o fato de que o "delendus Plinius" não era a simples satisfação de uma animosidade pessoal, mas o meio julgado indispensável para derrubar um dos empecilhos que obstavam a uma cabal modificação da mentalidade religiosa no Brasil. Era para lá que íamos caminhando com passo seguro. Muita gente via o perigo e gemia. Ninguém, ou quase ninguém estava disposto a agir. As posições-chave estavam quase todas em mãos dos "outros". Desarticulados, desanimados, inativos, os partidários da ortodoxia, ou procuravam não ver toda a extensão do problema, ou, se não conseguiam não vê-la, choravam em segredo*. * Nesta batalha, dizia Dr. Plinio em carta ao Padre João de Castro e Costa datada de 16 de outubro de 1947, “empenhei tudo: nome, posição, tempo, energias, amizades. [...] Não lutei por interesses pessoais, nem me deixei arrastar pelo desejo de exercer cargos, desfrutar influências, fazer carreira. Se estes fossem meus intuitos, eu teria tomado o lado oposto. Dom Cabral e Dom Carmelo têm feito pelo Alceu e pelos leigos que o seguem, o que por mim não fez nenhum dos Bispos que me aplaudem e aprovam. É esta a realidade evidente. Se eu me deixasse arrastar pelo desejo de nome e prestígio, bastaria que hoje mesmo eu me resolvesse a tomar outra orientação doutrinária, para ser acolhido por meus detratores de braços abertos.

11. O jogo dos “moderados” no Brasil e dentro do próprio Vaticano Para completar esse quadro de desolação, havia quem procurasse apresentar os liturgicistas como pessoas que erraram, é verdade, mas que estavam sendo intempestivamente agredidas por nós. Estariam elas sendo humilhadas, perseguidas, espezinhadas, enquanto nós triunfávamos orgulhosamente1156. 1153 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 16/10/47. 1154 — Pierre Corneille, Le Cid, Ato IV, cena 3. 1155 Carta de Dr. Plinio a D. Sigaud, 8/8/47. 1156 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 16/10/47.


314 Enviavam assim do Brasil informações falsas ou semifalsas. E em Roma tinham correspondentes que acolhiam e encaminhavam essas informações, e que na proximidade do Santo Padre escolhiam o momento oportuno para apresentá-las. Procuravam estes semear a impressão de que, da parte dos liturgicistas, os desvios eram uma inclinação fútil, passageira, sem solidez nem raiz, de certos setores da opinião católica. Essa impressão falsa procurava inspirar uma tática também errada. Com efeito, em se tratando de um movimento superficial de mocinhos e mocinhas em efervescência, a contemporização poderia parecer a melhor política. E isso alimentava a ideia de que os partidários mais ardentes do liturgicismo não tinham verdadeira convicção dele, mas simplesmente eram levados por uma certa simpatia alimentada quiçá por circunstâncias inteiramente pessoais, como amizade, relações etc. Assim, as polêmicas suscitadas aqui pelos adversários do liturgicismo teriam chocado a alma sensível dos corifeus liturgicistas que, por isto e só por isto, se aferraram ainda mais em suas opiniões. Portanto, todas as polêmicas havidas aqui teriam sido nocivas, e melhor teria sido que jamais elas tivessem ocorrido. De onde os elementos mais obedientes à Santa Sé, mais zelosos da doutrina, mais eficazes em limitar a extensão do erro ficavam parecendo pessoas imprudentes, aos quais não se deveria dar nem prestígio nem cargos, sob pena de comprometer a solução do problema. Esses elementos deveriam, pois, ficar inteiramente privados da confiança da Santa Sé, e sem meios para empenhar combate salutar contra o erro. Para quem deveria convergir tal confiança e tais cargos? Forçosamente para os “moderados”, isto é, na maior parte das vezes para pessoas que se mantiveram arredias à luta por motivos bem diversos da verdadeira prudência. Ou seja, porque não tiveram senso católico suficiente para perceber o erro, para o repudiar, e a abnegação para arrostar os terríveis embaraços daí provenientes. Neste panorama falso, não seria difícil apresentar os fatos de tal maneira que os erros imputados aos liturgicistas não fossem vistos como suficientemente graves, nem suficientemente generalizados para justificar que contra eles se escrevesse todo um livro como o Em Defesa da Ação Católica, nem se movesse uma campanha de jornal como a do Legionário. Inércia diante do liturgicismo, eis a verdadeira estratégia.


315 Contemporização e indulgência para com os os liturgicistas, eis a solução 1157. Na ordem prática, tiravam então uma consequência curiosa: a se proceder com “justiça” e “prudência”, seria preciso punir por sua empáfia os partidários da boa doutrina, e consolar por seus dissabores os propagandistas da doutrina errada. De um ou de outro modo, alguns informantes do Vaticano participavam desse estado de espírito*. E assim não era de espantar que, estando longe do cenário brasileiro, até pessoas amigas pudessem ter dado um tal ou qual crédito a esta opinião 1158. * Notava-se realmente àquela época, dentro do próprio Vaticano, um jogo de forças antagônicas representadas por expoentes que atuavam pró ou contra a nova corrente. Os primeiros tinham tendências modernistas, e os segundos eram herdeiros da oposição férrea de São Pio X contra aquela corrente. Este jogo de forças, cheio de vaivéns e de sutilezas, ainda era desconhecido do grande público, mas infelizmente se refletia na posição o mais das vezes vacilante da Santa Sé em face do progressismo que nascia. Dr. Plinio chegou mesmo a apelar aos préstimos do Padre Louis Riou, que nessa época encontrava-se em Roma, pedindo-lhe em carta para tentar desfazer essa falsa impressão. Dizia Dr. Plinio: “Julgo que seria importante dissipar alguns mal-entendidos que percebo perfeitamente estarem dominando em Roma, vindos de informantes muito astuciosos ou muito ingênuos do Brasil, e entretidos aí por outros elementos não menos astuciosos ou não menos ingênuos”. Esses informantes passam a imagem de que “os liturgicistas são cândidos anjinhos que se aferram a seus erros porque eles foram algum tanto ‘malmenés’, mas que se corrigirão infalivelmente se a Santa Sé se abstiver de os condenar” (v. carta ao Padre Louis Riou, de 16/6/47).

O perigo dessas informações tendenciosas estava em que elas eram feitas para induzir Roma a contemporizar, a não agir claramente contra o liturgicismo, receando os efeitos de qualquer luta movida no Brasil. E a focalizar a crise, não como a luta de duas tendências opostas — a da verdade e a do erro — mas de três: a dos que erraram num excesso, a dos que erraram noutro excesso, e a dos “sensatos” e “moderados” que constituiriam um centro “prudente” e “zeloso”, cheio de tato, e poderia levar tudo a bom termo. O que os propugnadores dessa posição não pareciam admitir era que os liturgicistas constituíam, conscientemente ou não, uma verdadeira organização que espalhava as informações que lhe convinham, difamava os personagens que a hostilizavam, estabelecia o silêncio em torno dos outros, e desenvolvia um plano metódico e admiravelmente articulado para ir conquistando uma a uma todas as posições-chave da vida religiosa do 1157 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948. 1158 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ,16/10/47.


316 Brasil. Nessa focalização, ficava inteiramente impossível admitir aquilo que sabíamos de sobra, isto é, que os liturgicistas dispunham de elementos totalmente dedicados à sua causa, os quais faziam o papel de “moderados” apenas para galgar cargos e depois cobrir com sua proteção “insuspeita” os elementos mais ardidos* * Dr. Plinio externou em carta a Dom Sigaud esta sua preocupação: "Nossos adversários perceberam isto com uma sagacidade infernal. Por isto, enquanto timbram em manter o Cônego Mayer e a todos nós num ostracismo absoluto, inauguram uma política de pseudo-conciliação, capaz de dar a nossos amigos a ilusão de que a situação vai se consertando por si mesma". Nessa mesma carta, Dr. Plinio se refere a esse estado de espírito presente numa Semana de Ação Católica realizada em Campinas entre os dias 20 e 27 de outubro de 1947 (v. Legionário n° 781, 27/7/47): “O Cônego ["X"] nos contou que todos os discursos eram num sentido ‘moderado’ do ponto de vista da doutrina. Falavam veementemente do Rosário, dos Exercícios etc. iludindo os ingênuos [...] Eles estão reconquistando lentamente a atmosfera de falsa tranquilidade [...]. Na aparência, tudo ortodoxo. Os bons se iludem e aceitam incautos o veneno destilado nos conciliábulos, círculos de estudo etc.”. E isto a tal ponto que “o Cardeal Caggiano [Bispo de Rosário, Argentina, presente ao evento, mais tarde Cardeal Arcebispo de Buenos Aires] declarou que leu meu livro, e que, sem se pronunciar sobre a doutrina, disse que não se resolvia a crer que tais erros tivessem existido jamais: típico da nova tática. [...] Tudo se passa, pois, como se nunca tivesse havido um Cônego Mayer, um Padre Sigaud, um Plinio, um ‘Legionário’, um livro ‘Em Defesa da Ação Católica no Brasil’" (Carta a Dom Sigaud, 8/8/47).

Este ponto era muito importante para eles, porque, na invariável escolha dos “moderados”, entrariam muitos partidários ocultos da causa liturgicista. E os que ignorassem esse jogo, seriam levados a confiar sem restrição em todo e qualquer elemento “moderado” que aparecesse, o qual seria a priori considerado como “neutro”, “sereno” e “insuspeito”. Ficaria assim impossível impedir a infiltração do que se poderia chamar de criptoliturgicismo em nosso meio. E o acesso desse criptoliturgicismo às mais altas situações se tornaria inevitável. Isto também induziria Roma a adotar a política de não agir, não deixar agir, e assim dar inconscientemente aos liturgicistas a liberdade de movimento e as posições-chave que tanto almejavam1159. * Acontece que, aceito como verdadeiro o fato de que as vítimas eram da esquerda e os agressores da direita, daí se seguiria fatalmente uma “terapêutica” para o “caso brasileiro” sumamente perigosa. Com efeito, se a 1159 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948.


317 uns era preciso abater, ou ao menos deixar rolar indefinidamente sob os pés dos “esquerdistas”, e a outros era preciso consolar, confortar e acariciar, nunca chegaríamos ao dia em que o erro tivesse suas asas e suas garras cortadas. E em boa parte era o que estava acontecendo no Brasil*. * Em carta posterior, dirigida ao professor da Gregoriana e assessor de Pio XII, o padre jesuíta Robert Leiber, cuja minuta Dr. Plinio ajudou a redigir, Dom Mayer expressava esta preocupação: “Padre Leiber é mestre em História: lembre-se da aceitação cortês mas exterior dos jansenistas diante dos documentos pontifícios, e entenderá o que se está passando no Brasil. [...] Nosso povo não compreende bem documentos doutrinários, e pois olha como autorizada e aprovada por Roma a orientação dos que se encontram nos maiores cargos, nas posições de maior confiança. E pesa muito na opinião o fato de que os Bispos recentemente promovidos, ou transferidos para sedes com mais amplo raio de ação, serem, em bom número, simpáticos às tendências novas. [...] Tudo isto cria um ambiente que vai desalentando os melhores. E neste desalento está para mim o mais grave da situação (Carta de Dom Mayer ao Padre Leiber, 1/6/52).

Enquanto isto, a Ação Católica — a pseudo-Ação Católica deveria eu dizer — se expandia, incorporava a si os melhores, deformava-os a seu talante, e preparava no laicato católico a incubação de erros que daí a não muitos anos frutificariam em fel e vinagre. Também os círculos da Ação Católica continuavam a ser dominados pela influência de Alceu Amoroso Lima. Ele havia saído da direção da Junta Nacional, mas continuava a publicar o que bem entendia, a abordar todos os assuntos como queria, e a fazer propaganda de suas ideias no Brasil inteiro. O Cardeal Dom Jaime Câmara julgava dever tratá-lo com “caridade”. O que produziu esse resultado concreto: aos olhos do grande público, o Dr. Alceu tinha todo o prestígio para fazer o mal que entendesse 1160. Era, aliás, a sua conduta constante diante dos inovadores. Quando levavam ao seu conhecimento exorbitâncias muito evidentes desses inovadores, limitava-se a lamentar e recomendava “caridade”. Contudo, intervinha sempre para evitar que elementos ortodoxos atacassem os inovadores. De onde decorria a mais ampla liberdade de ação para os inovadores. Exemplo dessa conduta: devendo substituir na direção suprema da Ação Católica o Sr. Alceu Amoroso Lima (há mais de dez anos no cargo) e demais membros da Junta Nacional, nomeou um discípulo e colaborador do Dr. Alceu, e outras pessoas da mesma orientação. 1160 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ,16/10/47.


318 Outro exemplo. Realizando-se em 1948, no Rio de Janeiro, um Congresso Internacional de Obras Sociais Católicas, S. Eminência designou o Dr. Alceu de Amoroso Lima para presidir o importante congresso, prova de prestígio e confiança que muito impressionou 1161. Ficávamos então diante deste paradoxo: enquanto alguns viam nesta crise do liturgicismo, de hipertrofia da Ação Católica, de 'maritainismo' apenas uma briga de sacristias, eu percebia sem a menor sombra de dúvida que estava latente uma hidra, um monstro à maneira do protestantismo. Também o protestantismo, de início, pareceu uma “querela de frades”. Depois se viu qual era o verdadeiro porte do problema" 1162.

Capítulo XII Imergindo dentro da catacumba 1. Pequeno grupo em discreta resistência Após o nosso lance de “kamikaze”, tornamo-nos um pequeno grupo de seis pessoas que resistiam, não no sentido de ficar fazendo discursos contra os Bispos solidários com os erros da Ação Católica, mas vivendo a nosso modo, segundo a nossa consciência. Não desobedecíamos a eles, mas sobretudo obedecíamos à Igreja, enquanto que eles faziam coisas contrárias às máximas católicas. E esta nossa minúscula presença no panorama tinha o seu peso, como o comprova um pequeno fato que aconteceu comigo. O fato foi o seguinte. Estava eu tratando, certo dia, de questões de Direito com um Bispo Auxiliar de São Paulo. De repente, ele fez uma pausa e me disse: — O senhor sabe que o Cardeal está contente com o seu comportamento? “Parce que vous avez mis tout à fait de côté” — o senhor colocou muitas coisas de lado sem lhe fazer oposição. E também porque o senhor é muito discreto e não faz nenhum esforço para levantar as pessoas contra ele. Eu lhe respondi: — Fico contente de saber que o Sr. Cardeal faça justiça ao meu 1161 Memorando sobre a crise progressista brasileira por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional (Rio, 1955). 1162 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ,16/10/47.


319 senso de ordem e de disciplina. Ele me disse: — Sim, mas o Cardeal tem uma queixa. Ele sabe que a sua conduta é inteiramente correta, mas o senhor aparece em público com um grupo de amigos, vai a restaurantes, a passeios com eles, e todo o mundo diz: “Eis aí o grupo do Plinio”. Isto representa um fermento de oposição. Percebese que o senhor permanece firme em seus princípios e que não deseja mudar. Mas o Cardeal lhe daria qualquer coisa, desde que o senhor dissolvesse esse grupo. Eu respondi: — Ah! Excelência. Aqui as coisas são diferentes. Porque ele me pede que eu renuncie aos meus princípios e aos meus amigos. Quanto a renunciar aos meus princípios, jamais. Quanto aos meus amigos, eu não posso permitir que ninguém me imponha a renúncia a amizades que não têm nenhuma relação com os assuntos da Igreja. São meus amigos particulares, nós nos reunimos em nossas casas ou numa pequena casa que alugamos, não formamos nenhuma associação religiosa. A minha vida privada não pode ser contrariada, desde que não se lhe possa fazer nenhuma objeção quanto aos bons costumes ou à boa doutrina. Havendo alguma objeção, eu serei o filho obediente da Igreja. Mas não é este o caso. Qualquer que seja o preço monetário desse arranjo, eu não posso aceitar 1163. O fato concreto é que, apesar desse reconhecimento, o Cardeal chegou a pedir ao governo do Estado que não me nomeasse como catedrático para uma Universidade oficial, possibilidade esta que estava muito bem encaminhada1164.

2. Tentando juntar os restos do naufrágio. Várias tendências Dentro dessa reclusão, nós tomávamos os restos do desastre e com os fios que restavam da bandeira estraçalhada, procurávamos tecer outra bandeira, ou tecer todo um estandarte. Dos pequenos elementos que nos restavam de cá, de lá e de acolá, tentamos reaproximar vários antigos amigos, mas eles tiravam o corpo dessa reaproximação, amedrontados e apavorados ao verem as sanções de que tínhamos sido objeto. Alguns desses, mais do que amedrontados e apavorados, estavam postos em uma dúvida cruel ao verem que, aqueles que haviam 1163 Despacho Itália 26/3/92. 1164 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 10/10/46.


320 tomado essa atitude hostil para conosco, eram homens que falavam em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. E diziam de si para consigo a meu respeito: “Ele não era quem nós imaginávamos”. Outros, apesar de compreenderem a nossa posição, tomavam infelizmente uma atitude movida ao pé da letra pelo medo vil e covarde. Assim, não era raro eu encontrar nas ruas do centro de São Paulo vários conhecidos, os quais me abraçavam e diziam baixinho ao ouvido: “Plinio, muito bem, continue”. Equivalia a afirmar, no fundo: “Plinio, leve na cabeça para ver se salva a causa de que eu gosto, mas com você não tomo outro compromisso senão um abraço rápido e um elogio cochichado”. Apesar de tudo, era ao menos uma meia simpatia, que ficava cintilando em meio às trevas e que poderia se manifestar favoravelmente de futuro, numa situação crítica que se pusesse 1165.

3. Pontos de apoio para futuras lutas Nesse ambiente catacumbal, não nos esquecíamos da luta externa. Ela era tocada por nós a partir de pontos mínimos de apoio de que dispúnhamos, e que conservávamos quanto podíamos. Um deles era a nossa relação com o Padre Mariaux, que conhecia o Padre Leiber 1166, o qual por sua vez era íntimo de Pio XII. Outro ponto de apoio eu já mencionei: o Bispo de Bragança, Dom José Maurício da Rocha. Havia ainda vários outros pontinhos assim. E desses pontos de apoio começaram a renascer os arvoredos1167.

1165 SD 14/4/79. 1166 — Padre Robert Leiber (1887-1967), jesuíta alemão, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana. Foi também assistente pessoal e secretário privado do Cardeal Eugenio Pacelli, depois Papa Pio XII, entre os anos 1924 e 1958. Trabalhou como diplomata do Vaticano nos contatos secretos com a resistência alemã contra o nazismo. Ele apoiou o escritor e diplomata austríaco Ludwig von Pastor na preparação da célebre História dos Papas. 1167 Almoço EANS 16/6/82.


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Capítulo XIII Estruturação e consolidação do pequeno grupo 1. Necessidade de sobreviver ao naufrágio Nós percebíamos que mais cedo ou mais tarde íriamos perder o Legionário. E surgiu para nós um problema: onde nos reunirmos, caso isto aconteça? O grupo tinha que sobreviver1168. Em 1946 éramos ainda muito moços: o mais velho de nós, Dr. José de Azeredo Santos, tinha 39 anos e o mais novo, 22. E constituíamos um grupo pequeno, composto apenas de dez pessoas 1169: Dr. Adolpho Lindenberg, Professor Fernando Furquim de Almeida, Dr. José de Azeredo Santos, Dr. José Benedito Pacheco Sales, Dr. José Carlos Castilho de Andrade, Dr. José Fernando de Camargo, Dr. José Gonzaga de Arruda, José Gustavo de Souza Queiroz (que pouco depois faleceria), Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra, e evidentemente eu 1170. Tínhamos também em Santos o Dr. Antonio Ablas Filho, que era um dos melhores cirurgiões da cidade, creio que dois ou três anos mais novo do que eu, ou talvez da minha idade. Pai dedicado, comendador da Santa Sé e professor de Medicina Legal na Faculdade de Direito de Santos, ele tinha conosco a maior intimidade e a maior ligação1171.

2. Sede da rua Martim Francisco Para termos um lugar onde nos reunir, alugamos o andar térreo da rua Martim Francisco, número 665. Dr. Adolpho Lindenberg herdara algum dinheiro de seu pai, que acabara de morrer. E os outros ganhavam alguma coisa por mês, com o que podíamos ajudar na manutenção da sede. Compramos também alguns móveis, arranjamos tudo de um modo modesto, decente, agradável e com bom gosto. E ali nos instalamos 1172.

1168 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1169 Simpósio 24/1/91. 1170 Um homem, uma obra, uma gesta, cit. 1171 SD 7/7/73. 1172 SD 9/7/88.


322 Como a sede da Martim Francisco era uma casa alugada, ninguém nos tiraria dali. Se o grupo não dispusesse daquele lugar onde se reunir, ele teria se dispersado. A instalação dessa sede assegurou a nossa sobrevivência enquanto grupo. E fizemos dela uma espécie de catacumba onde respirar e viver. Certo dia um dos nossos viu o secretário do Cardeal passar muito devagar em um automóvel e observar atentamente a casa. Ele talvez quisesse ver como era a toca da onça... 1173

3. Reuniões diárias: coesão no pensar, no sentir e no agir Esse grupo era tão pequeno que se contentava em ocupar o andar térreo daquele prediozinho 1174. Apenas três salas, depois uma cozinha e no fundo uma área minúscula1175. Foi uma coisa terrível sair da direção e da liderança de um Movimento Católico espalhado pelo Brasil inteiro, e ficar reduzido a uma coisinha pequena como aquela1176. Mas ali nos reuníamos todas as noites, sem exceção. Recordação, sem amargura nem orgulho, das glórias da imolação dos dias idos. Análise solícita e entristecida, da deterioração discreta e implacável da situação religiosa. Estudos doutrinários em comum. Convívio fraterno e cordial. Assim, a Providência colocava as condições ideais para nos unir. Veio daí um tal enrijecimento de nossa coesão no pensar, no sentir e no agir, como mais seria difícil imaginar. Escondida em terra, a semente germinava. A nosso lado, organizava-se a solidariedade preciosa e discreta de um pugilo de moças que conosco lutara na Ação Católica contra o progressismo nascente, e também se retirara conosco para o ostracismo 1177. Eram as antigas dirigentes da Ação Católica, que passaram a constituir um grupo orientado pelo Cônego Mayer e vivendo com vida própria, distinta das associações religiosas, para não perdermos aquelas colaboradoras que nos prestaram depois muitos bons serviços 1178.

1173 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1174 Simpósio 24/1/91. 1175 SD 9/7/88. 1176 Palavrinha 16/1/91. 1177 Nasce a TFP, Folha de S. Paulo, 22/2/69. 1178 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54.


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4. Vida de sede: TFP em germinação Todos nós trabalhávamos para nos manter. De maneira que a sede, de dia, ficava habitualmente vazia1179. Mas, à noite, terminado o jantar, todos confluíamos para a sede da rua Martim Francisco. Quando chegávamos, havia o costume de irmos visitar um pequeno oratório que se situava numa sala do fundo, e onde instalamos a imagem de Nossa Senhora Auxiliadora que está hoje na capela do prédio da rua Maranhão 341. Ela nos acompanha desde os tempos iniciais do Legionário. Após as orações, voltávamos para a sala onde iniciávamos as nossas conversas. Os assuntos eram os mais variados. Em geral começavam por coisas banais da vida da sede, ou pelos ecos do que ouvíamos sobre a marcha da heresia progressista que lavrava em São Paulo. Também tratávamos de alguma notícia mais importante ou menos do dia, ligada à política nacional ou internacional. Por fim, entrávamos nos temas de caráter mais intelectual. Aí as conversas subiam muito de nível e eram abordados assuntos verdadeiramente elevados. Éramos todos principiantes, e uma porção de temas hoje ultra surrados, naquele tempo despertavam em nós um real interesse1180. * Em certo momento o Professor Fernando Furquim de Almeida começou a estudar a história de Louis Veuillot1181, o infatigável paladino do jornalismo católico na França 1182. E trouxe ao nosso conhecimento o fato de que na Europa, durante todo o século XIX, a disputa dos católicos ultramontanos e dos católicos liberais era muito análoga à que havia entre nós e a Arquidiocese. Os liberais tinham do seu lado Montalembert, e os ultramontanos Louis Veuillot. Saber disso foi para nós uma forma de alento. O mesmo Professor Furquim foi estudando depois a história dos católicos do século XIX e revelando outros nomes e movimentos: De Maistre, Balmes, De Bonald, Donoso Cortés, o carlismo na Espanha, a 1179 Simpósio 24/1/91. 1180 Almoço EANS 16/6/82. 1181 SD 7/7/73. 1182 Um grande passo, Diário de São Paulo, 8/3/35.


324 Amicizia Cristiana de Pio Bruno Lanteri e ainda outros. Constituía para nós um alento, porque compreendíamos que éramos continuadores de uma certa tradição de luta pela Igreja 1183. * Tomei a meu cargo incrementar o quanto pudesse a devoção a Nossa Senhora. Então, longos comentários sobre São Luís Maria Grignion de Montfort e sobre a espiritualidade dele. Eu tratava muito com meus companheiros do tema da Revolução Francesa1184, por considerá-la, quando bem estudada, a grande parábola da história do Ocidente cristão decadente. Como tal, ela foi um acontecimento emblemático que continha lições para todos os séculos. Mostrando a eles como as situações políticas de hoje repetiam de algum modo situações análogas da Revolução Francesa, eu os levava à consideração do processo revolucionário na História1185. Dr. Pacheco Sales, homem muito inteligente, brilhante, que no fim da década de 1950 infelizmente se afastou do Grupo, cuidava muito da questão da sociedade orgânica e do ponto de equilíbrio entre o individualismo e o socialismo. Eram exposições muito bem apanhadas. Ele tinha talento para isto e desenvolvia superiormente bem o assunto. Dr. Adolpho Lindenberg era ainda muito mocinho, Dr. José Carlos Castilho de Andrade também. Eles prestavam pequenos serviços, não tinham ainda iniciado a fase da contribuição intelectual que depois deram para o Grupo. Quando batia onze e meia da noite, saíamos apressadamente para tomar um sorvete ou comer alguma coisa antes da meia-noite, pois o jejum eucarístico naquele tempo se iniciava a essa hora até a comunhão do dia seguinte. Chegada a meia-noite, pagávamos a conta e saíamos. E todos íamos dormir . 1186

* Nossa vida interna começou assim a se estruturar aos poucos em bases novas. 1183 SD 7/7/73 — O primeiro Legionário que publicou artigo do Professor Fernando Furquim sobre o assunto é de 9 de fevereiro de 1947. Catolicismo, desde o seu primeiro número, retomou o tema e publicou uma longa série desses artigos históricos, primeiramente usando o pseudônimo de Bertrand de Poulengy, depois assinando com seu próprio nome, a partir do número 13, de janeiro de 1952. 1184 Almoço EANS 16/6/82. 1185 Reunião Normal 9/7/71. 1186 Almoço EANS 16/6/82.


325 Fazíamos habitualmente reuniões baseadas numa seleção de notícias compiladas em recortes de jornais sublinhados por nós, tradição essa que trouxemos desde o tempo do Legionário. Mas combinamos que tais reuniões não seriam dadas durante a semana, mas numa reunião especial, em dia fixo, na sexta-feira à noite1187. Íamos ao Belenzinho e fazíamos essa reunião junto com o Cônego Mayer. E ela ficou conhecida em nosso Grupo, e depois na TFP, como a Reunião de Recortes 1188. As Reuniões de Recortes tinham como finalidade analisar, com base no noticiário de imprensa, os acontecimentos nacionais e internacionais à luz dos princípios que depois foram expostos no ensaio Revolução e Contra-Revolução1189. Como São Paulo começou a adotar o sistema da semana inglesa1190, combinamos de, aos sábados à tarde, nos encontrarmos para visitar alguma exposição bonita que se abrisse, ou fazer alguma excursão de automóvel, ou qualquer outro entretenimento que nos servisse de distração. Assim, aos poucos, foi-se delineando uma estruturação, uma institucionalização da vida interna ao nosso Grupo. Era a estruturação da TFP que ia nascendo. Nossa Senhora ia favorecendo essa estruturação 1191.

5. Esboço do serviço de documentação Como não podia deixar de ser, nossos trabalhos estavam voltados para a nossa luta. Instalamos na sede da rua Martim Francisco uma pequena seção de leitura de jornais e revistas progressistas que se publicavam no Brasil. Durante meses e meses, eu lia essa documentação católica liturgicista e nela sempre encontrava novos erros doutrinários 1192. E era nessas publicações brasileiras do Movimento Litúrgico e da Ação Católica que eu acabava encontrando material interessante e ilustrativo sobre os rumos da revolução progressista dentro da Igreja, muito mais do que em revistas e jornais europeus importantes. Isto tinha uma explicação. Os padres seculares, que haviam feito seus cursos em Roma ou em outras grandes cidades europeias, voltavam ao 1187 SD 8/4/89 e Almoço EANS 16/6/82. 1188 SD 8/4/89. 1189 Guerreiros da Virgem: a réplica da autenticidade — A TFP sem segredos, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1985, p.160, nota 7. 1190 — Outrora, no Brasil, a semana de trabalho ia de segunda-feira ao fim do dia de sábado, restringindo-se o dia de descanso apenas ao domingo. Com a semana inglesa, aplicada primeiramente no Rio de Janeiro em 1945, esse período de descanso passou a vigorar já no sábado à tarde. 1191 Almoço EANS 16/6/82. 1192 SD 7/7/73.


326 Brasil encharcados das ideias novas. E mantinham correspondência com centros da mesma índole no Velho Continente, os quais sempre lhes enviavam livros e publicações que não circulavam publicamente aqui. Assim, eles recebiam tudo quanto havia de mais ousado. E esses padres reproduziam essas matérias nos tais jornaizinhos para dar formação a seus grupos de progressistas. O mesmo processo se repetia com os padres regulares, dentro das mais variadas ordens religiosas, incluindo a Companhia de Jesus. Todas essas ordens tinham alguns alunos formados nas universidades eclesiásticas mantidas pelas respectivas ordens na Europa. Quando regressavam, voltavam intoxicados, e através dos condutos dessas ordens no Brasil faziam o mesmo serviço. Vários leigos também recebiam do Clero esse material arrojado, e publicavam artigos de caráter progressista no jornalzinho local da ordem religiosa, da paróquia ou da cidade. E eu então lia e assinalava tudo isto 1193.

6. Serviço fotográfico: “tiros na lua” Esses documentos selecionados eram depois fotografados por Dr. José Fernando de Camargo, Dr. José Carlos Castilho de Andrade e Dr. Adolpho Lindenberg, num laboratório que funcionava na sala dos fundos da rua Martim Francisco. Naquele tempo não havia nada das sutilezas das fotografias de hoje. Eram fotografias em papelões enormes, que nós, fazendo economia, comprávamos. Eu punha um comentário junto 1194 e mandávamos para os mais altos páramos de Roma, até mesmo para a mesa do Papa Pio XII, por intermédio de pessoas que nós conhecíamos muito pouco, mas que nos prestavam este serviço. Dizia o Dr. Paulo que aquilo era “dar tiros na lua”1195. Esse conduto funcionava? Funcionava! 1196. Mas em nossa catacumba não recebíamos resposta1197. Tive a comprovação de que funcionava, na viagem que fiz a Roma em 1950, quando verifiquei que na Santa Sé tomavam muitíssimo em conta

1193 RR 3/2/90. 1194 SD 7/4/79. 1195 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54 e SD 2/7/88. 1196 SD 2/7/88. 1197 SD 17/6/89.


327 o material que mandávamos 1198. Mandávamos por meio do Padre Dainese, por meio do Padre Mariaux, por meio do Padre Castro e Costa1199 e de outros condutos que eu fui conhecendo1200. Depois, em 1950, o Padre Mariaux deu-me uma carta de apresentação ao Padre Leiber, confessor do Papa, e que era o destinatário desses documentos. Falarei da audiência com o Padre Leiber mais adiante. Na ocasião, ele me disse, “os seus documentos estão aqui guardados”. E deu-me a entender que ele os encaminhava para Pio XII. De fato, no Vaticano tomei depois vários contatos e constatei que os documentos que enviávamos para ele, todos circulavam. Assim, no andar térreo da rua Martim Francisco, tudo parecia “trancado”, mas — sempre foi a conduta característica da Providência para conosco — havia um tubo que dava para o mais puro ar. De lá, os documentos iam para a mesa de Pio XII. Isto explica em larga medida a posterior nomeação de Dom Mayer e Dom Sigaud como Bispos, a carta de aprovação ao meu livro e outras coisas mais 1201.

7. “O período mais bonito de nossas vidas” Mas, sem saber de tudo isso, os componentes de nosso grupo participavam das mesmas ideias, dos mesmos ideais, das mesmas esperanças, da mesma mentalidade e sobretudo da mesma Fé Católica Apostólica Romana. Por isto sentiam-se todos muito unidos entre si 1202. Sabíamos que remávamos contra toda a maré. No entanto, esperávamos contra toda a esperança 1203. Vendo hoje esses fatos retrospectivamente, confesso que foi o período mais bonito de nossas vidas. Fazíamos uma série de coisas que pareciam absurdas, mas era o que estava ao nosso alcance fazer. E todas essas coisas deram depois um resultado espetacular. Foi um tempo de provação tremenda, mas foi também um tempo de

1198 Almoço EANS 16/6/82. 1199 — Padre João de Castro e Costa, sacerdote jesuíta, havia sido professor de religião de Dr. Plinio no Colégio São Luís e com quem este mantinha correspondência. Naquele momento ele exercia a função de Reitor do Colégio Pio Brasileiro em Roma. 1200 SD 16/6/73. 1201 Almoço EANS 16/6/82. 1202 Palestra para Neocooperadores 26/2/95. 1203 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54.


328 perseverança1204. Nesse andar térreo da rua Martim Francisco o Grupo e depois a TFP começaram verdadeiramente a nascer1205.

Capítulo XIV Reabilitação, reviravolta e contra-ofensiva 1. Padre Sigaud nomeado Bispo de Jacarezinho Depois dessa enxurrada de desastres, fatos auspiciosos começaram a acontecer1206. Ainda me lembro de um dia de janeiro de 1947 1207, em que noticiei aos meus amigos que, segundo uma emissora, Pio XII nomeara Bispo de Jacarezinho o Padre Sigaud. — Como? O quê? A nossa alegria era grande, mas a dúvida ainda maior . 1208

Ele tinha sido removido de São Paulo por pressão do Sr. Cardeal Motta, e mandado pelos superiores para a Navarra, na Espanha, como missionário. E agora se tornara Bispo!?1209 A razão de minha dúvida se explicava. Em geral, a nomeação de um Bispo era noticiada pelos jornais. E a nomeação de Dom Sigaud só tinha sido divulgada pelo rádio. Fiquei desconfiado de que houvesse algum equívoco. Para tirar bem a limpo a veracidade da notícia, telefonamos para a Navarra. Naquele tempo, era dificílimo conseguir uma ligação para a Europa, então muito cara. E nosso dinheiro estava para lá de escasso. Dom Sigaud veio ao telefone. Ele não sabia quem estava falando. A telefonista não dizia e apenas o informava de que era do Brasil. Do outro lado do fio eu dizia: 1204 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54. 1205 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 1206 Almoço EANS 9/4/87. 1207 — Na verdade, tendo Dom Sigaud sido designado pela Santa Sé Bispo de Jacarezinho em 29 de outubro de 1946, a notícia chegou a Dr. Plinio em meados de novembro desse mesmo ano. Tanto é que a designação foi notícia de primeira página do Legionário n° 745, de 17/11/46. 1208 Nasce a TFP, cit. 1209 Chá ESB 7/3/95.


329 — Padre Sigaud! Padre Sigaud! E ouvi de longe: — O que é? — É Plinio quem fala! — Ah! Plinio. Como vai você? E eu apressando-me, pelo medo de que a ligação caísse de um momento para outro. Perguntei-lhe: — Queria saber se é verdade que o senhor foi nomeado Bispo de Jacarezinho! — Que éééééé? — O senhor foi nomeado Bispo de Jacarezinho ou não foi? — Fui, sim. Estou preparando minha volta ao Brasil1210. Voltaria então? Sim, voltaria 1211. Grande alegria, porque era uma vitória, uma espécie de endosso da Santa Sé para a boa orientação de nosso livro* 1212. * Depois desse telefonema, Dr. Plinio escreveu a Dom Sigaud contando as reações havidas em São Paulo a respeito de sua nomeação: “Dom Ernesto [de Paula] ficou radiante: a primeira coisa que fez foi telegrafar a Dom Attico [Arcebispo de Curitiba] felicitando-o. Entre os Jesuítas nem é bom falar: Padre Riou, Padre Felix, Padre Dainese, Padre Arlindo Vieira, Padre Santini exultaram. De Pindamonhangaba, Monsenhor João de Azevedo veio a São Paulo nos abraçar. O Cônego Silvio [Matos], o Cônego Geraldo, o Padre Benigno [de Brito] não couberam em si de contentes. No Seminário do Ipiranga, entre os Professores ‘foi uma bomba’, disse-me o Padre Veloso. No Oiseaux (curso secundário) e na Santa Mônica, o júbilo foi grande. Eu felicitei vivamente Mère Saint Ambroise porque era o primeiro catedrático de lá a ascender ao Episcopado. [...] Dom Pedro Henrique ficou muito alegre e me disse que queria vir à sagração. De Roma, o Padre Castro e Costa [...] escreveu ao Padre Riou sobre sua nomeação dizendo ‘que esplêndido triunfo do Legionário’. A miuçalha da JEC [a quem Padre Sigaud dirigia enquanto assistente eclesiástico] está radiante. Em suma, é um regozijo geral” (carta de Dr. Plinio a Dom Sigaud, 16/12/46).

* Lembro-me que fomos ao Rio de Janeiro esperar o navio que vinha trazendo Dom Sigaud da Europa*.

1210 SD 17/6/89. 1211 Nasce a TFP, cit. 1212 SD 16/6/73.


330 * Ele embarcara em Barcelona no navio Cabo Hornos no dia 4 de março de 1947, e atracou no Rio no dia 20 do mesmo mês, após um ano de ausência de nosso País.

Do Rio viemos com ele para São Paulo. Pouco mais de um mês depois realizou-se a sua sagração* 1213. * Essa sagração episcopal deu-se no dia 1° de maio de 1947.

Dom Sigaud convidou o Núncio Dom Carlo Chiarlo para sagrante, porque não queria convidar o Sr. Cardeal. E era seu desejo fazer a sagração aqui em São Paulo, na Basílica do Carmo. O Núncio veio, fez a sagração, tendo como consagrantes Dom José Maurício da Rocha e Dom Manuel da Silveira d‘Elboux 1214. * Demos publicidade a essa sagração através dos jornais e do Legionário1215. Era nossa intenção mostrar que não se tratava de um grupinho, nem de uma manifestação contra ninguém, embora deixássemos claro que o passado de Dom Sigaud na Ação Católica não era um capítulo duvidoso de sua biografia e agora relegado a uma espécie de esquecimento penitencial, mas um autêntico florão de sua coroa. Neste ponto, ponderei com Dom Sigaud que era preciso muita clareza, do contrário nossos adversários iriam espalhar que o Santo Padre havia imposto a ele uma “retratação”, e que Dom Sigaud se vira forçado a ingerir “calmantes” em Roma. Por isto, os convidados para a homenagem foram escolhidos entre os melhores elementos — social, intelectual e moralmente falando — do laicato católico e mesmo da sociedade de São Paulo*. * Estavam presentes à cerimônia o governador de São Paulo, Sr. Ademar de Barros e seu secretário, Comendador Mario Antunes Maciel Ramos. Ele teve como paraninfos o governador do Paraná, Sr. Moisés Lupion, S.A.I.R. Dom Pedro Henrique de Orleans e Bragança, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira e o Dr. Lucas de Proença Sigaud. De Jacarezinho vieram para a cerimônia o Sr. Prefeito, Juiz de Direito e o Delegado. Também presentes o Vigário Geral da Arquidiocese de São Paulo, Monsenhor Manuel Macedo Freire, Monsenhor Luiz Gonzaga de Almeida, Dom Aidano Ebert, prior do Mosteiro beneditino de Santos, e os representantes do Cabido Metropolitano, os Srs. Cônegos Benedito Marcos de Freitas, Antonio de Castro Mayer, Antonio Leme Machado, Luiz Geraldo do Amaral Mello, Francisco Cipulo e o Cônego João Pavesio, que oficiou como cerimoniário.

Assim, mais do que homenagens pessoais, a cerimônia foi a 1213 SD 17/6/89. 1214 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1215 SD 16/6/73 — A reportagem da sagração em São Paulo foi estampada no n° 769 do Legionário, de 4/5/47. E a da tomada de posse em Jacarezinho no n° 770, de 11 de maio do mesmo ano.


331 expressão da vitalidade diplomaticamente1216.

de

uma

tendência

que

se

afirmava

No fundo, todo mundo ficou entendendo que era um sinal de que a Santa Sé queria nos reabilitar1217. * Fui depois até Jacarezinho, acompanhando Dom Sigaud para as cerimônias de posse na Diocese 1218. Se não me engano fiz discurso na ocasião 1219.

2. Nova grande vitória: a encíclica “Mediator Dei” Ainda em 1947, tivemos outra grata surpresa, que representava uma nova e grande vitória: a publicação por Pio XII da encíclica Mediator Dei 1220. A doutrina condenada pela encíclica era, ponto por ponto, tão idêntica à que professavam os liturgicistas no Brasil, que sou levado a admitir como certo que o Sumo Pontífice teve sob os seus olhos, pelo menos em parte, o nosso País 1221. Sem dúvida, essa encíclica constituía de si, de alguma forma, uma carta de alforria que nos libertava das algemas em que estávamos colocados. Podíamos afinal falar, podíamos denunciar o erro. Já não havia mais as "prudências" que pudessem destruir essa conquista, não havia 1216 Carta de Dr. Plinio ao Padre Sigaud, 16/12/46. 1217 SD 16/6/73. 1218 — A tomada de posse foi no domingo, dia 4 de maio de 1947. Dr. Plinio discursou, em nome da comitiva que viera de São Paulo, durante almoço oferecido no Palácio Episcopal às pessoas gradas e aos membros dessa comitiva. 1219 Palavrinha 30/1/94. 1220 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54 — A encíclica Mediator Dei, de 20 de novembro de 1947, era mais uma confirmação da Santa Sé dos desvios que haviam se introduzido na sagrada liturgia. Em um de seus trechos, Pio XII acentuava: “Notamos, com muita apreensão, que há algumas pessoas muito ávidas de novidades e que se afastam do caminho da sã doutrina e da prudência. Na intenção e desejo de um renovamento litúrgico, esses inserem muitas vezes princípios que, em teoria ou na prática, comprometem esta santíssima causa, e frequentemente até a contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina ascética”. Pio XII remarcava ainda a importância da piedade particular, ao apontar as “novas teorias sobre a ‘piedade objetiva’, as quais [...] desejariam descurar ou atenuar a ‘piedade subjetiva’ ou pessoal”. E considerava “completamente falsas, insidiosas e perniciosíssimas” as ideias dos que julgavam que se deveria “descurar as outras práticas religiosas não estritamente litúrgicas, e realizadas fora do culto público”. Dizia também que “o fato de tomarem os fiéis parte no Sacrifício Eucarístico não significa entretanto que eles gozem de poderes sacerdotais”. E condenava vários outros erros que o livro Em Defesa havia apontado no liturgicismo. O Legionário saudou essa encíclica com júbilo e publicou-a em duas partes, nas edições nºs 801 e 802, respectivamente de 14 e 21/12/47. 1221 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 30/4/48.


332 mais "armistícios" que permitissem reduzir ao silêncio apenas um dos lados contendores, deixando que o outro escrevesse, sussurrasse, falasse e urrasse à vontade 1222. * Eu absolutamente não acreditava que os liturgicistas iriam desanimar ou renunciar às suas ideias. E não me enganei: essa encíclica foi recebida pela "ala esquerda" com frieza, publicada sem entusiasmo nem pressa (O Diário, órgão católico de Belo Horizonte, levou mais de um mês para a publicar), e foi tratada pelos inovadores como um documento sem importância. Mais ainda, arranjaram um jeito de distorcer o seu sentido, trombeteando contra toda a evidência que o Papa havia condenado energicamente, nela, certos brasileiros que combatiam o movimento litúrgico. E que ele queria, dali por diante, que o movimento litúrgico se intensificasse muito mais* 1223. * Essa mesma convicção, Dr. Plinio a manifestou em carta ao Padre Dainese: "O clã liturgicista continuará a agir (às escâncaras? na sombra? eis a questão!), e não perderá nem as influentes proteções de que gozou até aqui, nem os órgãos de imprensa e os meios de ação de que presentemente dispõe. A pergunta que se põe, portanto, é esta: qual a reação dos liturgicistas? (Carta de 31 de dezembro de 1947).

* De nossa parte, o que nos competia fazer, fizemos, que era difundir a encíclica. E escrevi um artigo dizendo que1224, no momento em que a encíclica vinha dirimir questões de tão funda repercussão em nossa vida religiosa, dois deveres se impunham ao católico: um para com a Verdade, outro para com a Caridade. Para com a Verdade: acima de tudo e antes de tudo, devíamos cuidar de combater o erro e difundir a sã doutrina. A este dever primordial, tudo se devia sacrificar. Mas a Verdade venceria atraindo a si os que erraram. E isto se faz com Caridade. Assim, pois, era preciso difundir a Verdade com Caridade. E, se seria falso manter a Caridade calando ou velando a Verdade, seria igualmente falso difundir a Verdade com espírito de orgulho ou vã glória. 1222 Carta ao Padre Dainese 31/12/47. 1223 Carta de Dr. Plinio ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 2/2/48. 1224 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54.


333 Há na Igreja duas situações inteiramente distintas, a da inocência e a da penitência. Mas quem ousaria ver no inocente um vencedor orgulhoso, e no penitente um vencido cheio de opróbrio? A Igreja não dá tréguas nem quartel ao pecador impenitente. Mas basta que este reconheça seu erro, repare humildemente o escândalo, queime à vista de todos o que adorou, e adore o que queimou, para que estejam abertas de par em par diante dele as portas do lar paterno. Ninguém, é certo, tinha autoridade para dispensar o que Deus não dispensa, e confundir o penitente com o impenitente. A Igreja, bem o sabemos, ama demais seus filhos penitentes para os injuriar com esta confusão. A Igreja, aos que erram pede tão somente que façam o que o camelo tinha de fazer para transpor as portas baixas das cidades, que no Oriente se denominavam “buracos de agulha”: deponham a carga de seus erros, e façam-se pequeninos pela humildade. Quando os reerguer o perdão da Igreja, ver-se-á que eles se tornaram gigantes porque nada engrandece mais do que a verdadeira penitência. Não havia o menor motivo para que os que erraram se sentissem obrigados a silenciar vergonhosamente sobre seus próprios erros. Pelo contrário, cobrir-se-iam de glória mencionando-os e refutando-os. Nem estes erros deviam ser tratados por nós com um silêncio “caridoso”, que seria, no fundo, essencialmente desdenhoso porque insinuaria cruel e insidiosamente que a nódoa continuava. A solidariedade entre o homem que errou e seus erros pretéritos era inteiramente destruída pela penitência. Ao pecador penitente em aberto conflito com seus erros passados, a Igreja ama com entranhas de mãe: ai de quem o moleste por aquilo que Deus perdoou! Ninguém tinha, pois, o direito de achar que os ataques desferidos contra o erro podiam humilhar os que do erro se retratassem1225. Dom Sigaud escreveu também um artigo para o Legionário, dizendo que a encíclica era uma confirmação de toda a nossa linha de apostolado e da denúncia feita pelo livro Em Defesa da Ação Católica*1226 . * Nesse artigo, publicado sob o título A Encíclica Mediator Dei e um pouco de história da Igreja no Brasil, o Prelado dizia que “era uma grande 1225 Legionário n° 801, de 14/12/47 — O artigo tinha como título Na casa do Pai comum, publicado, junto com a primeira parte da encíclica, no n° 801 do Legionário, de 14/12/47. O n° 802, de 21/12/47, estampava a segunda e última página do documento pontifício. E o n° 803, de 29/12/47, trazia Notas e comentários à encíclica Mediator Dei, em que Dr. Plinio ressaltava os trechos da Encíclica que condenavam a corrente litúrgico-progressista. Isto foi a gota d’água para o que veio em seguida. Este mesmo número estampava o artigo de D. Sigaud de que se fala em seguida. 1226 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54.


334 consolação lembrar neste momento o livro magistral do Diretor do Legionário, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira”, o qual “foi um brado de alarme e um cautério. Brado de alarme, impediu que milhares de fiéis se entregassem, em sua boa fé, aos erros e desmandos do Liturgicismo que avançava como uma onda avassaladora”. O livro “abriu os olhos a muitos fiéis já envoltos nas ondas do ‘liturgicismo’ e os reconduziu ao caminho que a Igreja aponta como o certo e tradicional”. Ao terminar seu artigo, dizia que “fomos testemunha da história de que este livro foi o centro. Hoje damos graças a Deus por ter surgido tão oportunamente este brado de alarme, que preservou e salvou para a Verdade e Vida tantas ovelhas de nosso rebanho” (art. cit., Legionário n° 803, de 28/12/47).

3. Semana seguinte: Cardeal retira o “Legionário” das mãos de Dr. Plinio O resultado foi que, na primeira hora da madrugada de 31 de dezembro, quando Dr. José Carlos Castilho de Andrade, como de costume, se dirigiu à tipografia para os serviços comuns de acompanhamento da edição da semana seguinte, já em fase de composição gráfica, foi informado de que todo o material necessário para a confecção do jornal havia sido removido para a tipografia dos Padres Paulinos, e que o Legionário não mais seria impresso ali. Diante da gravidade dessa comunicação, Dr. Castilho me pôs logo a par do ocorrido 1227. Procurei imediatamente pelo Machado, que era o diretor administrativo e financeiro do Legionário 1228. Não consegui encontrá-lo. Ele foi localizado muito mais tarde pelo Cônego Mayer por telefone, a quem informou que não tinha mais nada com o assunto, pois o Legionário estava agora nas mãos da Cúria. Como diretor-financeiro havia passado todos os títulos de propriedade para o Cardeal 1229. Eu então me comuniquei com o Vigário Geral, Monsenhor Luís Gonzaga de Almeida, a quem indaguei se essa medida provinha de ordens 1227 Relatório ao Sr. Nuncio Dom Carlo Chiarlo sobre a perda do Legionário, 30/1/48. 1228 — Francisco de Paula Monteiro Machado era o diretor financeiro e contábil do Legionário S.A., empresa proprietária legal do jornal. Para garantir a independência deste e sua fidelidade ao pensamento católico, havia ficado assente, ainda na década de 30, que a maioria das ações ficaria nas mãos de um sacerdote. O Sr. Arcebispo Dom Duarte escolheu para isso o Cônego Antonio de Castro Mayer, o qual fez um testamento deixando à Mitra a propriedade de suas ações, em caso de morte. Como o Sr. Francisco Monteiro Machado era considerado bom católico, irmão de vários congregados marianos e ligado por relações pessoais a muitos outros congregados, ele mereceu uma confiança à qual, em vários episódios posteriores, não correspondeu. Para dar a ele mais liberdade de movimento na direção financeira, o Cônego Mayer transferiu em seu favor a propriedade das ações de que era portador. Tendo depois ficado patente certas irregularidades de conduta da parte do Sr. Francisco Machado, o Cônego Mayer e Dr. Plinio exigiram a dissolução da Sociedade, ficando nas mãos do Machado o encargo de levar a termo a liquidação. Essa liquidação foi longamente protelada e, sem que fosse concluída, o Sr. Francisco Machado transferiu para a Cúria a propriedade do jornal. E daí a sequência inexorável dos fatos que vieram em seguida. 1229 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54.


335 do Sr. Cardeal. Ele respondeu que de nada sabia, e que Sua Eminência estava em Belo Horizonte, não podendo ele dar nenhuma informação. Telefonei então para a Cúria Metropolitana e pedi para falar com o chanceler, que era então Monsenhor Loureiro. Ele me disse que lamentava o ocorrido e que não tivera nenhuma participação no fato. Sabia apenas que o Dr. Luís Tolosa de Oliveira e Costa Filho1230 fora incumbido pelo Sr. Cardeal de dar todas as providências para a execução dos desejos de Sua Eminência no atinente ao Legionário. Então comentei com Monsenhor Loureiro que um fechamento brusco do jornal, num momento em que fazíamos a divulgação da encíclica Mediator Dei, só favoreceria os fautores do erro, com evidente desdouro do diretor e redatores do Legionário, expulsos ignominiosamente de uma folha onde trabalharam gratuitamente durante 13 anos1231. E por fim afirmei: — Monsenhor Loureiro, em relação aos que são hereges, esse Cardeal não é pai, mas é mãe. Em relação àqueles que são fiéis à doutrina da Igreja, esse Cardeal não é pai nem padrasto, mas é carrasco. Porque, desde o dia em que ele pisou em São Paulo até agora, ele não teve nenhum gesto de pai, ele só teve crueldade de carrasco. Esta é a verdade! E a razão do fechamento do Legionário veio do fato de sermos favoráveis à doutrina da Santa Sé. Transmita isso a ele da minha parte. O Monsenhor Loureiro me respondeu: “Meu amigo, eu não posso aceitar isso”1232. * Dr. Castilho recolheu, no próprio dia 31 de dezembro de 1947, um depoimento do chefe das oficinas. Ficava claro que a ordem de recolhimento do material tinha sido tão clandestina, que nem os próprios tipógrafos a conheciam. No tal depoimento do funcionário ele atestava até a hora em que tinham recebido de Dr. Castilho os originais para a composição 1233. Documentamo-nos bem, para que ficasse claro que o Legionário não tinha sido fechado por nós. Uma das provas era a de que, na gráfica, a matéria havia sido composta pela metade, e as chapas já compostas tinham 1230 — Luís Tolosa de Oliveira e Costa Filho era um conhecido católico, e íntimo do Sr. Cardeal Dom Carlos Carmelo. 1231 Relatório ao Sr. Nuncio Dom Carlo Chiarlo sobre a perda do Legionário, 30/1/48. 1232 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1233 Relatório ao Sr. Nuncio Dom Carlo Chiarlo sobre a perda do Legionário, 30/1/48.


336 sido recolhidas. * Na noite de 31 de dezembro, quase na virada do Ano Bom de 1947 para 1948, quando eu ainda estava jantando, recebo um telefonema do Monsenhor Loureiro dizendo que o Cardeal havia regressado inesperadamente de Minas e mandava me dizer que estava à minha disposição se eu quisesse falar com ele. Acabei de jantar, tomei o automóvel e parti para o Palácio. Ele me recebeu em companhia do Cônego Loureiro, dizendo que o tinha trazido para presenciar a nossa conversa. E se manifestou nos seguintes termos: — Eu queria dizer ao senhor que o Francisco Monteiro Machado procurou-me espontaneamente para oferecer a propriedade do jornal, como liquidante da sociedade. E também queria lhe dizer que não fui eu quem dei ordem para fechar o jornal. Como ele me entregou a propriedade do jornal e eu não quero que o senhor continue na direção, eu lhe tirei o jornal. Ele estava muito trêmulo. Compreendi que uma briga não convinha a ele, mas também não convinha a nós 1234. Limitei-me a dizer que não oporia nenhuma resistência à determinação dele, mas que manifestava-me profundamente chocado com o modo pelo qual fora coagido a sair1235. Além do mais, atraía a atenção dele para o fato de que a situação criada com a transferência de propriedade do Legionário era ilegal segundo as leis do País 1236, pois a deliberação da assembleia dos sócios de liquidar a Legionário S. A. 1237 não havia sido cumprida pelo Machado. E que ele, Dom Carlos Carmelo, mandasse um advogado imparcial estudar a questão. O Cardeal respondeu que não se incomodava com isso. E me despedi debaixo dos votos de bom Ano Novo que ele me desejava*. * Nesta conversa, o Sr. Cardeal havia dito que confiaria aos padres paulinos, dali por diante, a edição do jornal. Com efeito, no número de 29 de Fevereiro de 1948 apareceu um editorial em que se anunciava o início de uma "nova fase" na existência do semanário, resumida no mote final do artigo, não assinado: "Incipit vita nova". Nem uma palavra sobre Plinio Corrêa de Oliveira, que havia dedicado ao Legionário, com imensa generosidade, quinze anos da sua vida (cfr. Roberto De Mattei, O Cruzado do século XX —

1234 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1235 Relatório ao Sr. Nuncio Dom Carlo Chiarlo sobre a perda do Legionário, 30/1/48. 1236 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1237 Relatório ao Sr. Nuncio Dom Carlo Chiarlo sobre a perda do Legionário, 30/1/48.


337 Plinio Corrêa de Oliveira, op. cit.). Nessa "nova fase", é claro, nenhuma referência houve mais aos desvios progressistas. Dr. Plinio escreveu em seguida a Dom Sigaud (carta de 5 de janeiro de 1948), contando o que tinha havido: "As notícias que envio hoje a V. Excia. são bem tristes. O Legionário foi fechado. [...] Sobre a Mediator Dei, aqui, reina o mais absoluto silêncio. Púlpitos, tribunas, nas reuniões das associações, tudo se cala”.

Uma coisa ficava clara: o Legionário foi tirado de nossas mãos porque havíamos publicado comentários e notas à Mediator Dei. E porque aproveitamos o jornal para dar todo o realce à encíclica 1238. E foi justamente enquanto esses estudos e notas vinham sendo publicados, que o Cardeal Motta resolveu retirar, do modo mais brusco, a direção da folha de nossas mãos. Transferiu-a a pessoas como o Padre Enzo de Campos Gusso 1239, inteiramente afeito às ideias novas. O Legionário, mudando de diretor, mudou inteiramente de feitio e de aspecto, bem como de orientação. A campanha de difusão da encíclica Mediator Dei se encerrou ipso facto e inteiramente 1240. Algumas matérias nele publicadas passaram a apresentar uma tendência pronunciada para a esquerda em matéria social, e outras atacavam vivamente e em traços caricaturais os costumes religiosos antigos, com o fito de insinuar uma era religiosa nova e moderna. Também exprimiam com clareza a penetração da mentalidade laxista e modernizante naquele órgão oficial da Arquidiocese* 1241. * Foi tal a rotação ideológica do jornal, que a revista Vozes de Petrópolis publicou a certa altura o seguinte comentário: “"Há um ano mais ou menos, no fascículo Maio-Junho dessa Revista, manifestamos a nossa surpresa sobre algumas manifestações de liberalismo impresso no hebdomadário católico de São Paulo, O Legionário. Hoje experimentamos a mesma surpresa, vendo nova manifestação aparecida no número de 10 de Setembro passado daquele periódico" (Vozes, setembro-dezembro de 1950).

4. O Cônego Mayer elevado a Bispo de Campos No Carnaval do ano de 1948, fomos fazer um passeio em São

1238 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1239 — Cônego, e mais tarde Monsenhor Enzo Campos Gusso (nascido em 1919) era homem de confiança do Sr. Cardeal e havia sido designado por este como assistente de setores da Ação Católica, especialmente a JUC. Sob esta sua assistência, a JUC ficou tristemente famosa por sua atuação comunoprogressista nos anos 1960, a qual desaguou na formação da AP — Ação Popular, cujo caráter maoístaleninista levou-a até à ação armada e ao terrorismo. Ele foi também professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras São Bento. 1240 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948. 1241 Carta de Dr. Plinio ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, 23/1/50.


338 Pedro1242. Na volta, enquanto visitávamos o Salto de Piracicaba, comentávamos com o Cônego Mayer nossa situação humanamente perdida, e manifestávamos a disposição de ir até o fim do caminho, permanecendo fiéis até a morte. * Dias depois, de volta à sua paróquia do Belém, o Cônego Mayer recebe a visita de Dom Siqueira1243, que veio lhe oferecer seus préstimos para efetivá-lo na paróquia. O Cônego Mayer conversou com naturalidade com Dom Siqueira, mas já tinha no bolso, naquele momento, um convite para ser Bispo Coadjutor de Campos. Mas ele não disse nada a esse respeito ao Prelado. * Pouco depois, aparece o Cônego Mayer em meu escritório e começa uma conversa assim: — Se eu fosse convidado para Bispo, você acha que eu deveria aceitar qualquer diocese do Brasil? Fiquei com muita pena do Cônego Mayer: “Coitado, pensando nesse assunto numa situação tão miserável como a nossa”. Em todo o caso, providencialmente respondi: — Cônego Mayer, marque uma periferia que, para o Norte, não passe da cidade de Campos. Mais distante do que Campos não me parece que convenha. Ele conversou um pouco mais e despediu-se. Em seguida, recomecei a trabalhar e o assunto passou. * Dias mais tarde, chego à nossa sede da rua Martim Francisco e encontro o Dr. Pacheco elétrico: — Episcopus habemus! Ele estava numa tal vibração, que eu pensei que tivesse sido nomeado algum padre péssimo.

1242 — A cidade de São Pedro, situada a 190 km da capital paulista, é uma estância turística e termal do Estado de São Paulo. 1243 — Dom Antonio Maria Alves de Siqueira (1906-1993), Bispo Auxiliar de São Paulo em 1943, Bispo Coadjutor desta mesma cidade em 1957, Bispo Coadjutor com direito à sucessão de Campinas em 1966 e por fim Arcebispo de Campinas em 1968. Era pessoa de confiança de Dom José Gaspar de Affonseca e Silva e também de Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta.


339 Ele me disse: — O Cônego Mayer foi eleito Bispo Coadjutor de Campos! Nesse ínterim, foram chegando os outros rapazes do grupo, e nós nem conseguimos nos sentar. Esperamos que todos viessem e fomos direto ao Belenzinho em três táxis. Um dos nossos levou até duas garrafas de vinho para comemorar. De lá mesmo o Dr. José Fernando de Camargo telefonou a O Estado de S. Paulo, pedindo a publicação da notícia, que de fato saiu no dia seguinte1244 na seção religiosa do jornal. E ficamos imaginando o efeitobomba dessa notícia no Palácio Pio XII. Soubemos depois que, pela manhã, o Cardeal mandou o Cônego Enzo Gusso, seu secretário, ler os jornais. E este lhe deu a notícia. O Cardeal estava tão pouco informado sobre essa nomeação que perguntou: “Será notícia oficial?” * Houve então a cerimônia de sagração de Dom Mayer1245. Sagrante, o Núncio, e consagrantes Dom Sigaud e Dom Ernesto de Paula, tendo como padrinho Dom Pedro Henrique de Orleans e Bragança. Grande festa! O Núncio cordial. Com a sagração de Dom Mayer, muitas coisas subiram de ponto. E tudo isto animou muito o nosso grupo 1246.

5. Três encíclicas de Pio XII mostram o acerto do “Em Defesa” Quando publicamos o Em Defesa, nossos adversários criaram em torno de nós uma atmosfera em que ficávamos apontados como caluniadores da autoridade eclesiástica, rebeldes contra ela, infectados de heresia. E diziam que em relação a nós era preciso que todo bom católico se afastasse o quanto possível 1247. Ora, no seu conjunto, três documentos pontifícios enunciavam, refutavam e condenavam os principais erros sobre que versava o livro: Mystici Corporis Christi, Mediator Dei e Bis Saeculari Die. 1244 — Esta notícia foi publicada na coluna Movimento Religioso, edição de 18 de março de 1948. 1245 — D. Antonio de Castro Mayer foi nomeado Coadjutor com direito à sucessão por Pio XII, a 6 de março de 1948. Sagrado no dia 23 de maio do mesmo ano, o Núncio sagrante foi Dom Carlo Chiarlo, e os assistentes — Dom Ernesto de Paula e Dom Geraldo de Proença Sigaud — foram respectivamente o Bispo de Piracicaba e o Bispo de Jacarezinho. Em 1949, com o falecimento de Dom Otaviano Pereira de Albuquerque, D. Mayer tornou-se Bispo Diocesano de Campos até sua resignação no ano de 1981. 1246 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1247 Chá 10/11/94.


340 Mystici Corporis Christi − A encíclica Mystici Corporis Christi apareceu em 29 de junho de 19431248. Isto pouco antes ou pouco depois de um Congresso de Ação Católica realizado em Belo Horizonte, em que uma das resoluções foi de que, se houvesse erros doutrinários entre os fiéis, as pessoas que tomassem conhecimento de tais erros porventura existentes os comunicassem às comissões de vigilância das respectivas dioceses. Ficava proibido aos fiéis combaterem eles próprios tais erros. Mas como, de outro lado, ditas comissões de vigilância não existiam nem foram ulteriormente criadas, praticamente o combate aos erros dos inovadores ficou impedido pela carência do órgão a que a denúncia deveria ser feita. Aliás, o próprio fato de não haverem sequer sido criadas ditas comissões revelava um desinteresse bem próprio a desanimar os fiéis no combate ao erro. Os inovadores, com os imensos meios ao seu alcance, puseram em circulação: 1. que tais erros nunca existiram no Brasil; 2. que a principal preocupação da Santa Sé consistia em difundir a devoção ao Corpo Místico, e não em destruir os erros porventura existentes em outros países sobre o assunto; 3. que, em consequência, discrepavam da mente do Pontífice os que se sentissem alarmados ou preocupados com tais erros; 4. que, ademais, a repressão a tais erros competia ao Episcopado; 5. e que os sacerdotes ou leigos que chamassem a si combater tais erros se mostravam, com isto, pouco confiantes em relação à Autoridade, insubmissos, orgulhosos, provocadores de discórdia etc. Foi nessa atmosfera que apareceu a encíclica. * Mediator Dei −Quatro anos depois, em 20 de novembro de 1947, veio a Encíclica Mediator Dei. Repetindo as condenações da Mystici Corporis e estendendo muito o campo de visão dos estudiosos para novos erros, era uma oportunidade incomparável para o combate a esses erros. Porém, também esta encíclica foi alvo da mesma campanha de silêncio. 1248 Para evitar as prescrições da História, cit.


341 O Diário católico de Belo Horizonte, o Correio da Noite, órgão católico do Rio de Janeiro, e demais jornais da mesma corrente, levaram meses sem publicar o documento, o que evitou que seu texto fosse conhecido na efervescência das primeiras notícias. Quando o publicaram, já o primeiro interesse em torno do assunto havia passado. Única exceção foi o Legionário, que começou a apresentar a encíclica (a ideia era publicar a matéria em números sucessivos) com numerosos comentários, dando-lhe o máximo realce. Quando o primeiro número saiu com essa matéria, o Sr. Cardeal Dom Carlos Carmelo retirou de nossas mãos, conforme já dissemos, a direção do jornal,. Dentro em breve, não se falou mais da Mediator Dei, que teve o mesmo sepultamento que a Mystici Corporis Christi1249. Bis Saeculari Die − Por fim, em 1948 veio a lume a Constituição Apostólica Bis Saeculari Die, da qual passo a falar em seguida. *

6. Antecedentes da publicação da “Bis Saeculari Die” no Brasil Julgo que melhor seria recordar os antecedentes, para melhor entender a celeuma causada. Antes de aparecer essa Constituição Apostólica, os próceres da mentalidade nova apregoavam que outras associações religiosas que não fossem a Ação Católica não tinham mais razão de ser. Segundo eles, a nova situação jurídica desse movimento só competia aos leigos inscritos nas associações ditas da Ação Católica stricto sensu, ou seja, a JFC, a JEC, JIC, JOC, JUC etc. E as Congregações Marianas e outras associações religiosas deveriam ser apenas toleradas pela Igreja, e tenderiam a desaparecer*. * Dom Mayer, já Bispo, confidenciou ao Padre Leiber, em carta enviada antes de sua viagem a Roma em 1950, que “ouvi pessoalmente do falecido Arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva e de vários dirigentes da Ação Católica de outros bispados, a tese de que, segundo a mente do Santo Padre, as associações religiosas deviam ir morrendo por inanição. ‘A Santa Sé é muito sábia, de maneira que não extingue as associações, mas deixa que elas morram por si’ [dizia Dom José]”.

Alimentando essa tendência, os elementos dirigentes da Ação Católica trabalhavam implicitamente para dispersar e reduzir ao silêncio todos aqueles que não acertassem o passo com a corrente inovadora. Em suas mãos, a Ação Católica passou a ser uma trincheira de guerra contra tudo quanto no Brasil representasse o bom espírito ou a tradição. 1249 Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948.


342 Daí o colorido muito particular que o problema das relações entre a Ação Católica e as Congregações Marianas tomou entre nós. Antes da Bis Saeculari Die, havia a tal questão jurídica entre Congregações Marianas e Ação Católica, que em si mesma não apresentava interesse primordial pela circunstância de que a Ação Católica estava densamente infiltrada dos erros que já apontamos, e se ela chegasse a suprimir as Congregações Marianas e outras associações, todas dotadas de espírito tradicional, a mentalidade dos inovadores teria dominado inteiramente o laicato católico do Brasil.

7. Publicada a “Bis Saeculari Die”. Desagrado do Cardeal de São Paulo Em 27 de setembro de 1948 foi publicada por Pio XII a Constituição Apostólica Bis Saeculari Die. O documento definia tão claramente a situação das Congregações Marianas, que desfazia definitivamente qualquer tentativa progressista de imolá-las em favor da Ação Católica 1250. * O texto dessa Constituição chegou até nós por intermédio do Padre Dainese. E tal foi o nosso entusiasmo, que resolvemos passar, em nome próprio, um telegrama ao Santo Padre, felicitando-o. Qual não foi a nossa surpresa ao sermos informados, alguns dias depois, que o Cardeal Dom Carlos Carmelo estava enfurecido contra nós. Por quê? Porque, contra toda a expectativa, Monsenhor Montini havia telegrafado a ele dizendo que Pio XII recebera o nosso telegrama, e solicitava ao Sr. Cardeal que, em nome da Santa Sé, agradecesse aos signatários da mensagem. O Sr. Cardeal ordenou então que fosse aberto um inquérito para saber quem havia passado telegrama ao Papa em nome da Federação Mariana sem falar com ele. E censurou fortemente o Bispo Auxiliar, Dom Siqueira, por haver deixado ocorrer fato “tão grave” à sua revelia. Sabendo disso, procurei logo Monsenhor Loureiro e expliquei-lhe que o telegrama havia sido enviado em nosso próprio nome e não em nome da Federação1251.

1250 Memorando sobre a crise progressista brasileira por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional (Rio, 1955). 1251 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54.


343 Tudo elucidado, seria normal que o texto da resposta pontifícia fosse dado a conhecer aos congregados autores do telegrama, entre os quais eu, pois disso o Sr. Cardeal fora incumbido pela Santa Sé. Mas esse texto jamais nos foi comunicado. O fato, que de si não tem muita importância, entretanto revela de modo expressivo o ambiente em que estávamos vivendo 1252. * No domingo seguinte, durante uma Concentração Mariana em Santo André, um congregado mariano ligado a nós citou vários trechos da Bis Saeculari Die. Novas dificuldades, pois um congregado havia ousado citar um documento pontifício do qual a Cúria ainda não tomara conhecimento. Demos então, na Federação das Congregações Marianas, uma resposta categórica, afirmando que o Santo Padre tem jurisdição direta sobre todos os fiéis e os documentos pontifícios não precisam do imprimatur da Cúria.

8. A “Bis Saeculari Die” no Congresso Eucarístico de Porto Alegre Assim que recebemos o texto completo do Osservatore Romano, traduzimo-lo. Ele foi mimeografado e depois levado para o Sul por Dom Mayer e por Dom Sigaud, e distribuído no V Congresso Eucarístico Nacional de Porto Alegre de 1948. Ninguém lá o conhecia. Durante esse Congresso, o Bispo de Uberaba, Dom Alexandre do Amaral, fez um discurso em que restringia o sentido da Bis Saeculari Die, dizendo que as Congregações Marianas eram Ação Católica lato sensu e não stricto sensu, desvirtuando desse modo o alcance das palavras do Papa*. * Abria campo a esse gênero de desvirtuamento a confusão que pairava sobre o conceito da palavra Ação Católica, confusão esta explicitada por Dom Antonio de Castro Mayer em documento enviado ao Sr. Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, em 19 de março de 1956, a propósito das Conclusões da I Conferencia Geral do Episcopado Latino Americano, realizada no Rio de Janeiro entre 25 de julho e 4 de agosto de 1955. Dom Mayer ponderava que as relações entre a Ação Católica e outras associações com fins e forma de apostolado, como por exemplo as Congregações Marianas, era matéria “inçada de dificuldades decorrentes, em não pequena parte, de servirem as palavras Ação Católica para designar ao mesmo tempo um conceito abstrato (colaboração dos leigos no apostolado hierárquico), e uma das tantas entidades, nas quais se concretiza aquele conceito (a associação chamada ‘Ação Católica’). Daí a facilidade com que 1252 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950.


344 qualquer texto referente à Ação Católica se tem prestado a dúvidas de intelecção entre os especialistas”.

Declarava Dom Alexandre do Amaral que aquela Constituição Apostólica nada vinha alterar, mas apenas reafirmar doutrinas já expostas pelo Santo Padre. E portanto se deveria entender que o Papa declarava as Congregações Marianas ação católica no sentido lato, uma vez que enquanto Secretário de Estado este mesmo Papa as distinguira da Ação Católica no sentido estrito. Portanto — concluía S. Excia. — as Congregações Marianas continuariam como sempre foram, ou seja, meras auxiliares da Ação Católica*. * Nesse discurso, pronunciado na 2ª sessão solene do V Congresso Eucarístico Nacional realizado em Porto Alegre entre os dias 28 a 31 de outubro de 1948, o Bispo de Uberaba, ante o fato de que suas ideias restritivas a respeito das Congregações Marianas se viam agora desautoradas pela nova Constituição Apostólica, procurava forçar uma interpretação labirintiforme do texto da Bis Saeculari Die, que não contundisse sua posição progressista. E para isso utilizava uma antiga carta escrita pelo Cardeal Pacelli, quando Secretário de Estado de Pio XI, a respeito da Ação Católica, e o próprio texto de Pio XI. Dizia ele: “Ainda agora, no último documento pontifício, a Constituição Apostólica sobre as Congregações Marianas, Sua Santidade fez questão de conservar intata aquela linha de delimitação da A.C. em face das suas venerandas e preciosas auxiliares, que ele mesmo estabelecia quando, em carta luminosa, explicava o discurso incisivo de Pio XI de 30/3/30. Pio XII era então Secretário de Estado de Pio XI. Este discurso e esta carta permanecem plenamente em vigor”. E, tentando minimizar o alcance da Bis saeculari, afirmava: “Não se pode negar às Congregações Marianas, como às demais associações que se entregam ao apostolado social, ‘característica alguma das que distinguem a A.C.’, enquanto se considera, em sentido lato, na definição mais descritiva de Pio XI: ‘o apostolado dos fiéis que se põem a serviço da Igreja e de certo modo a ajudam a cumprir seu ministério’” (Transcrição datilografada enviada a Dr. Plinio pelo Padre Walter Hofer, SJ, professor e, entre 19511954, diretor do Colégio Anchieta de Porto Alegre).

9. Concentração mariana paralela ao Congresso Eucarístico. Discurso de Dom Sigaud Acontece que os congregados marianos haviam organizado, durante o mesmo Congresso Eucarístico, uma Concentração Mariana no Teatro São Pedro de Porto Alegre, à qual compareceram Dom Sigaud, Dom Mayer e cerca de trinta outros Bispos, dos setenta que estavam na cidade 1253. Era de esperar que, após a Bis Saeculari Die, os Srs. Bispos procurassem aproveitar a ocasião e mostrar apoio a um movimento tão do agrado do Romano Pontífice. Nada disso! Ambos os Srs. Cardeais — tanto o do Rio como o de São Paulo — estiveram ausentes. E o próprio Arcebispo de Porto Alegre lá não apareceu 1254. Durante a sessão, Dom Sigaud fez um discurso em que leu vários trechos da Bis Saeculari Die, com comentários sustentando a perfeita equiparação entre as Congregações Marianas e a Ação Católica. Terminou sugerindo aos congregados 1253 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1254 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950.


345 marianos que passassem telegrama ao Santo Padre agradecendo o documento. Vários Bispos presentes abandonaram o recinto enquanto Dom Sigaud falava. Mas nos meios marianos o discurso causou intenso júbilo*. * Esse discurso de Dom Sigaud, pronunciado no dia 30 de outubro de 1948, repercutiu cerca de um mês depois em Roma, recebendo menção elogiosa no Osservatore Romano, edição de 6 e 7 de dezembro do mesmo ano: “S. Excia. Monsenhor Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Jacarezinho, pronunciou um inspirado discurso comentando a recente Constituição Apostólica ‘Bis saeculari’ sobre as Congregações Marianas, que, por sua exatidão e fidelidade no interpretar a letra e o espírito do documento pontifício, merece ser por nós referido”.

* Logo depois do discurso de Dom Sigaud, Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra e Dr. José Fernando de Camargo, presentes em Porto Alegre, procuraram a redação do Jornal do Dia e conseguiram a publicação das teses aprovadas na Concentração Mariana * 1255. * De fato, no dia seguinte, 31/10/48, o jornal publicou um resumo fidedigno desse discurso. E registrou a presença de 35 Bispos, sob a presidência do Sr. Arcebispo Primaz da Bahia, o qual quis prestigiar o evento. O jornal destacava também o trecho no qual Dom Sigaud dizia que “Sua Santidade o Papa gloriosamente reinante declara que as Congregações Marianas devem ser tidas na mesma categoria que as demais associações aplicadas à finalidade apostólica, e define de ‘pleno jure’, isto é, de pleno direito [que] são as Congregações Marianas verdadeira e legítima ação católica”. E transcreveu a lista de teses das Conclusões apresentadas por Dom Sigaud e aclamadas com prolongada salva de palmas, texto este que seria distribuído depois a todas as Federações de Congregações Marianas do Brasil “para fiel e cabal cumprimento da Constituição Apostólica”.

* Depois dessa divulgação, a reação contra o discurso de Dom Sigaud foi vivíssima. O Sr. Arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, proibiu sua divulgação na imprensa católica* 1256. * Esta informação havia chegado a Dom Mayer através de carta do Padre Antonio Loebmann, SJ, reitor do Seminário Central de São Leopoldo, em que este dizia: “Não sei se V. Exc. já sabe que o Arcebispo de Porto Alegre proibiu a publicação da conferência de Dom Geraldo Sigaud em jornal, como também se expressou aborrecido com a publicação das Conclusões da Concentração Mariana” (doc. cit., de 3/12/48). E em carta a Dom Sigaud, datada de 3 de novembro de 1948, esse mesmo sacerdote narra detalhes pasmosos da meticulosa proibição:

1255 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1256 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950.


346 “Hoje de manhã (4ª f) o Sr. Arcebispo de Porto Alegre visitou o nosso pobre Padre Jorge Sedelmayer, doente no hospital, Diretor da Federação das CC MM [Congregações Marianas], não para lhe agradecer o bom termo e a vibrante concentração Mariana, mas para deixar o seu enérgico protesto contra dita concentração, proibindo terminantemente a publicação de coisa alguma, aqui em Porto Alegre, sobre a nossa concentração, em particular proibiu a publicação do comentário de V. Exc. Revma. sobre a Constituição pontifícia, como também a oração do Senador Apolonio Sales como sendo cantos inconvenientes e provocantes de uma vitória obtida!! Diz ele ter sido uma Providência [sic] não ter estado presente na dita concentração, porque ele teria protestado contra a oração de V. Exc.... Também a publicação das conclusões ele teria impedido se tivesse sabido delas...” (grifos do original).

Por iniciativa do Padre Leme Lopes, jesuíta e professor na PUC do Rio, o Jornal do Commercio publicou (em 6/11/48) o texto completo do discurso de Dom Sigaud. O Sr. Cardeal Dom Jaime Câmara manifestou-se profundamente desgostoso com o que se passara. Acrescentou que, embora não censurasse a substância do discurso de Dom Sigaud, notara nele alusões ao “caso de São Paulo”, o que, segundo ele, podia desedificar, dando a ideia de que havia uma cisão no Episcopado. O fato concreto era que, observando-se as atitudes dos dois Cardeais e de Dom Scherer, notava-se nelas um traço comum fundamental: o desejo de abafar o discurso de Dom Sigaud, e o de afirmar a coesão do Episcopado. Eles pareciam não ter conseguido definir bem a situação criada pelo discurso de Dom Sigaud, e a linha de conduta que deviam seguir. Daí uma atitude de contemporização e de vacilação, quer em São Paulo quer no Rio. A posição tomada por eles parecia ser de expectativa, limitando-se a comentar o menos possível o assunto, e abafar tudo. Tanto é que, na reunião do clero o Sr. Cardeal não disse uma palavra sobre a Constituição, limitando-se a ler um documento pontifício do ano anterior, sobre os homens da Ação Católica, acrescentando que “cumprir as diretrizes deste documento, isto sim, é obedecer ao Papa”. E ficou nisto1257.

10. Artigo e discurso de Dom Mayer No mês seguinte, novembro de 1948, foi a vez de Dom Mayer entrar em cena. No dia 22 saiu um artigo dele para o Santos Jornal, em que, à luz da Bis Saeculari Die, firmava diversos conceitos que permaneciam mais ou menos obscuros nos tratadistas da Ação Católica. 1257 Carta de Dr. Plinio a Dom Sigaud, 1949, sobre os efeitos imediatos da Bis Saeculari Die.


347 Em 19 dezembro, fez ele um momentoso discurso no interior de São Paulo, durante uma concentração mariana em Piracicaba: analisou detalhadamente a Bis Saeculari Die, impugnou as interpretações incorretas que circulavam sobre o documento e ao mesmo tempo pôs em evidência todo o enorme alcance daquela Constituição Apostólica1258. O discurso agradou tanto que foi objeto de publicação em Roma pelo Boletim Acies Ordinata, do Secretariado Mundial das Congregações Marianas. No Brasil, foi publicado pelo Jornal do Commercio do Rio, edição de 19 de abril de 1949, o que despertou viva repercussão* 1259. * Dom Mayer recebeu cartas elogiosas de Bispos, sacerdotes e leigos de todo o Brasil, que o cumprimentavam pela clareza do discurso e coragem de o fazer. Padre Arlindo Vieira, por exemplo, dizia que “os argumentos apresentados por V. Exc. são irrespondíveis, embora não hajam de persuadir aqueles que interpretam a seu modo a palavra do Papa” (Carta de 2/5/49).

* Pouco tempo depois, veio a réplica do Cardeal de São Paulo, Dom Carlos Carmelo, que publicou uma Carta Pastoral na qual procurava refutar os pronunciamentos dos dois Bispos, citando ad verbum o de Dom Sigaud em Porto Alegre e in genere o de Dom Mayer*. * Frei Batista Blenke, sacerdote carmelitano muito amigo do grupo do Legionário e que na época estava em Roma, na Casa Generalícia da Ordem do Carmo, escreveu a Dom Mayer em abril de 1950, contando o seguinte: “V. Exc.ia pode ficar tranquilo. Parece que esta vossa atitude foi comunicada ao S. Padre. O S. Padre está ao par das cousas brasileiras; disseram-lhe que houve alguma dúvida a respeito da ‘Bis Saeculari’; ele respondeu (admirado): ‘mas como é: eu falei com tanta clareza!’ “Porém seria muito oportuno se V. Exc.ia e Dom Sigaud viessem a Roma e falassem claramente e explicassem tudo ao S. Padre (assim falou Padre Danti S.J.). Pois o Papa gosta de ouvir os Snrs. Bispos e toma nota do que dizem. Também houve boas referências a respeito de vossa atitude; parece que o Srn. Núncio escreveu neste sentido também a S. Santidade” (Carta de Frei Batista Blenke a Dom Mayer, 12/4/50).

11. A questão da tradução da “Bis Saeculari Die” Novo problema na Federação Mariana. Como éramos membros da diretoria da Federação Mariana de São Paulo, julgamos de nosso dever dar divulgação à Bis Saeculari Die. Então alguns dos nossos distribuíram em folhas mimeografadas a tradução de alguns tópicos do documento.

1258 Memorando sobre a crise religiosa brasileira por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional (Rio, 1955). 1259 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54.


348 O presidente da Federação, Dr. José Amadei, repreendeu-os por isto, alegando que deveríamos ter antes pedido licença à Autoridade eclesiástica local para fazêlo* 1260. * Dom Antonio Alves de Siqueira, designado em 1948 pelo Sr. Cardeal de São Paulo para substituir os jesuítas na direção da Federação das Congregações Marianas, e o Padre Boaventura Cantarelli, sacerdote salvatoriano que era seu braço direito, afirmaram que a tradução continha erros, e que ouviram no Palácio São Luís a informação de que a publicação tinha sido feita como um acinte a Sua Eminência (cfr. Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54). Ao mesmo tempo, pessoas chegadas ao palácio cardinalício avisavam à diretoria da Federação Mariana que era preciso ter muito cuidado na divulgação do documento pontifício, porque “estava fazendo sofrer nosso Cardeal” (cfr. Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948).

* Pouco depois, outro incidente. Quando levantamos a necessidade de publicar no Boletim da Federação a íntegra do documento pontifício, houve da parte do presidente da Federação má vontade e protelações, que seria longo narrar aqui. Foi mesmo necessário que um membro da diretoria lembrasse ao presidente que incorriam em excomunhão, pelo Código de Direito Canônico, as pessoas que impedissem a difusão dos documentos pontifícios 1261.

Vencidas essas dificuldades, foi impresso por fim, no número de outubro de 1948, o texto latino da Constituição Apostólica com a respectiva tradução portuguesa, feita de modo muito fiel pelo Padre Augusto Magne S.J., um conhecido latinista 1262. A edição foi avidamente recebida pelos congregados marianos, e se esgotou logo. * Fez-se então uma segunda edição. 1260 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950. 1261 — Referência ao anterior CDC (Código Pio-Beneditino), então em vigor, cuja elaboração foi feita no pontificado de São Pio X e promulgado por Bento XV em 1917. Diz o cânon 2.333: “Os que recorrem ao poder laical para impedir as encíclicas ou qualquer espécie de documentos que foram dimanados da Sé Apostólica ou de seus legados, e os que direta ou indiretamente proíbem sua promulgação ou execução, ou por razão deles causam dano ou aterrorizam, já seja àqueles que possuem as encíclicas ou os documentos, já seja a outros, caem ipso facto em excomunhão reservada de um modo especial à Sé Apostólica”. 1262 — Padre Augusto Magne (1887-1966), nascido no Langedoc francês, emigrou para o Brasil aos 17 anos, aqui ingressando no seminário da Companhia de Jesus e tornando-se cidadão brasileiro em 1908. Fez seus estudos superiores em Roma, sendo doutor em filosofia e teologia pela Universidade Gregoriana. Foi diretor da Faculdade de Filosofia da PUC do Rio, membro da Sociedade Linguística de Paris e da Indogermanische Gesellschaft. Escreveu cinco dicionários sobre filologia e diversas outras obras. Além do francês, do português e do latim, conhecia bem o grego, o alemão, o inglês, o italiano, o espanhol e os dialetos provençal e romeno (cfr. Jornal do Brasil, 22/7/66).


349 Estava ela sendo distribuída quando o presidente da Federação, em reunião da diretoria, declarou que o Padre Enzo Gusso, enquanto secretário do Sr. Cardeal, lhe transmitira ordem para suspender essa edição1263, mandando recolher todos os exemplares que traziam a nossa tradução, porque o Sr. Cardeal iria publicar um texto oficial 1264. Pouco depois, o mesmo Padre Enzo Gusso enviou, para ser publicada em terceira edição, uma tradução substancialmente idêntica à primeira, exceto num ponto absolutamente capital, este adulterado1265. A alteração era a seguinte. O texto latino, oficial, afirmava, em síntese, que, como as Congregações Marianas são reconhecidas pelos sagrados pastores, são Ação Católica. Já o texto adulterado dizia que as CC.MM. são Ação Católica “desde que sejam recebidas nas fileiras da milícia apostólica pela Hierarquia Eclesiástica e dela dependam em iniciar e realizar os trabalhos de apostolado”. Essa tradução transferia jeitosamente aos Bispos o poder de reconhecer ou não as Congregações Marianas como Ação Católica 1266

1263 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950. 1264 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1265 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950. 1266 — Nota voltada especialmente para os estudiosos do assunto. Para que se possa constatar a diferença entre a tradução correta promovida pelas Congregações Marianas, de um lado, e, de outro lado, a versão modificada pelo Sr. Cardeal, transcrevemos primeiramente o texto latino do trecho questionado, em seguida as traduções mencionadas, às quais acrescentamos a da Poliglota Vaticana: Versão latina, oficial: “Quapropter, cum et ab Ecclesiastica Hierarchia inter apostolicae militiae copias excipiantur ab eaque in operibus adoriendis et perficiendis plane pendeant, jure meritoque, ut quondam notavimus, hierarchici apostolatus cooperatrices sunt dicendae”. Tradução difundida pela Federação das Congregações Marianas: “Portanto, admitidas pela Hierarquia Eclesiástica nas fileiras da milícia apostólica e dependendo claramente dela, tanto em aceitar como em levar a termo qualquer atividade apostólica, com pleno direito — como já tivemos ensejo de notar — são cooperadoras do Apostolado Hierárquico”. Tradução da Poliglota Vaticana: “Por isso, visto serem recebidas entre os esquadrões da milícia apostólica pela hierarquia eclesiástica, e dela inteiramente dependerem na iniciativa e realização das suas atividades, com razão, como noutra ocasião advertimos, se devem denominar cooperadoras do apostolado hierárquico”. Versão modificada aprovada pelo Cardeal: “Pelo que, por justo título, (como tivemos ensejo de notar) devem ser ditas cooperadoras do apostolado hierárquico, desde que sejam recebidas nas fileiras da milícia apostólica pela Hierarquia Eclesiástica e dela dependam em iniciar e realizar os trabalhos de apostolado” (grifos nossos). Portanto, aquilo que o Santo Padre afirmava, com sua autoridade, que era de fato Ação Católica, na interpretação de S. Emcia. o Cardeal Motta ficava dependendo do beneplácito dos Bispos. E se o Bispo não quisesse receber a Congregação Mariana nas fileiras da milícia apostólica, não seria Ação Católica. A discussão se cinge a como interpretar, no texto latino, a conjunção cum seguida de verbos no subjuntivo: “cum ... excipiantur ... ab eaque ... pendeant”. Na tradução do Cardeal Motta, esse cum foi traduzido por desde que. Porém, quando seguida de subjuntivo, a conjunção cum introduz uma proposição causal e deve ser traduzida por dado que, ou posto que, modismo latino vigente desde a época clássica, como indicam as boas gramáticas da língua latina (cfr., por exemplo, Simone Deléani et JeanMarie Vermander, Initiation à la langue latine et à son système — Manuel pour grands débutants, publié sous la direction de Jean Beaujeu, Société d’Édition d’Énseignement Supérieur, Paris, 8ª ed., 1975, vol. I, pp. 144 e 269). Assim, a tradução da Federação das Congregações Marianas e a da Poliglota


350 Os Congregados recusaram-se a divulgar esta versão com o sentido tão gravemente adulterado. Dr. José Fernando de Camargo apresentou então ao Padre Boaventura Cantarelli o nosso texto em português da Bis Saeculari Die. Este o entregou a Dom Siqueira para apreciação. Dom Siqueira, de posse das traduções — a oficial da Arquidiocese, adulterada, e a nossa, equivalente à da Poliglota Vaticana 1267 — disse que considerava certa a nossa tradução publicada pelo boletim da Federação das Congregações Marianas. Mas que, “em homenagem ao Sr. Cardeal”, aceitássemos colocar, na terceira edição, a que ele estava mandando. E acabou exigindo que fosse publicada tal qual 1268. E essa versão, com o sentido adulterado*, nunca foi retirada de circulação no Brasil 1269. * Uma curiosidade. No site do Vaticano (vatican.va) por nós recentemente consultado, aparecem em latim todas as constituições apostólicas emanadas durante o pontificado de Pio XII, e também as traduções em algumas línguas, em geral feitas pelo departamento competente da Cúria Romana. Da Bis Saeculari Die, a única tradução existente é... para o português! Isto parece indicar que essa Constituição Apostólica tinha especial interesse para o Brasil. O que, por sua vez, mostra como a Santa Sé acompanhava com atenção a polêmica que aqui se travava a respeito do tema.

* Esses embates nas reuniões da diretoria da Federação Mariana de São Paulo foram tão comprometedores para os adversários da Bis Saeculari Die, que eles fizeram desaparecer por muito tempo o livro das atas, pelo que foi impossível registrar metodicamente as ocorrências durante as reuniões. Sob pretexto de brevidade, fez-se uma ata sumária relativa ao período em que o livro estivera “perdido”. Essa ata “sumária” omitia tudo quanto pudesse prejudicar os inovadores, e era tão tendenciosamente redigida que acabou não sendo aprovada pela diretoria 1270.

12. Comissão Episcopal se arroga o privilégio de interpretar os documentos pontifícios Outro fato significativo. Pouco depois do V Congresso Eucarístico de Porto Alegre, a Comissão Episcopal de Ação Católica, composta pelos Srs. Cardeais Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta e Dom Jaime de Barros Câmara,

Vaticana, que se equivalem, são as corretas. 1267 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1268 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950. 1269 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1270 Relatório enviado por Dr. Plinio ao Padre Labúru, SJ, data provável 1950.


351 pelos Srs. Arcebispos Dom Augusto Álvaro da Silva, de Salvador e Dom Antonio dos Santos Cabral, de Belo Horizonte, e pelo Sr. Bispo Dom João da Matha de Andrade Amaral, de Niterói, fez publicar um edital, datado de 3 de novembro de 1948, dizendo que a interpretação dos documentos pontifícios cabia apenas àquela Comissão*. * Era uma afirmação de suma gravidade, pois a Comissão Episcopal extrapolava de seu papel ao chamar a si a interpretação de um documento pontifício. Além do mais, ela não tinha nenhum poder legislativo sobre os Bispos e só podia falar em nome deles para todo o Brasil com o assentimento unânime de todos e de cada um dos Bispos brasileiros. No comunicado oficial está dito que a Comissão Episcopal da A.C. “determina” [sic!] oficialmente ao Episcopado que, “para salvar a unidade de orientação”, ela “se reserva, naquilo que se refira ao apostolado externo, a interpretação oficial da ‘Bis Saeculari Die’ no âmbito nacional”. Assinava pela Comissão Episcopal da A.C.B. o seu secretário, Dom João da Matha de Andrade Amaral, Bispo de Niteroi. A repercussão desse documento em certos círculos vaticanos parece não ter sido nada boa, a se julgar pelas informações do seminarista Amaury Castanho, futuro Bispo de Valença (RJ) e depois de Jundiaí (SP), então estudante no Pio Brasileiro. Dizia ele numa carta de 17/2/50 para um destinatário ignoto: “Depois das dissensões surgidas por causa daquele item da Comissão Episcopal da A.C. que se reservava o direito de interpretar a Carta Apostólica do Santo Padre, Dom Jorge [Marcos de Oliveira] ficou encarregado de consultar a Santa Sé sobre o que se deveria fazer entre nós. Lá por agosto do ano passado a resposta seguiu para o Brasil. A respeito do teor da resposta, somente se conseguiu saber por aqui que ‘è stata favorevolissima alle Congregazioni’ [‘foi favorabilíssima às Congregações Marianas’]. [...] Houve conveniência em não divulgar no Brasil a resposta da Santa Sé? Parece que houve pelos seguintes motivos: 1) a solução ou carta mandada por Roma foi só para o Episcopado. 2) Não terá sido favorável à ala oposicionista [à Carta Apostólica] e pois estava fadada, a tal resposta, ao arquivo. [...] Dentro do mesmo assunto Dom Jaime, quando esteve em Roma quis tirar as coisas a limpo. Pediu soluções às dificuldades que tinha ao Sr. Cardeal Pizzardo, que praticamente não respondeu por si a Sua Eminência. Foi quando Dom Jaime interrogou diretamente o Santo Padre. Ele, o Santo Padre, respondeu simplesmente ao Sr. Cardeal, nós só fomos informados disso por Dom Jaime (!), que ‘Soltanto il Papa ha il diritto di interpretare la Lettera Apostolica’ [‘somente o Santo Padre tem direito a interpretar a Carta Apostólica’]. Conseguintemente, aquele item da Comissão Episcopal foi prematuro. Aliás, há bem uns anos que o Código [de Direito Canônico] não deixava dúvida sobre quem pode interpretar um documento pontifício!!!”

Tomando conhecimento dessa circular da Comissão Episcopal, Dom Mayer e Dom Sigaud enviaram, cada um por seu turno, uma carta ao secretário Dom João da Matha de Andrade Amaral, em que sustentavam não ter a Comissão Episcopal o poder de impor determinada interpretação dos documentos pontifícios: somente o Papa podia fazê-lo. * Na carta de Dom Mayer, datada de 18 fevereiro de 1949, ele afirmava:


352 “Diz essa DD. Comissão Episcopal que se reserva a ‘interpretação oficial’ da Constituição Apostólica no plano nacional. Com toda a reverência, permita, Sr. Bispo, que declare que não posso reconhecer à Veneranda Comissão Episcopal o direito de ‘interpretar oficialmente’ a palavra do Santo Padre. A interpretação autêntica da palavra pontifícia só à Santa Sé pertence. [...] “Como é bem evidente, os dois princípios que dominam o assunto são: a) a suprema, inteira e direta jurisdição do Santo Padre sobre cada Bispo e cada fiel; b) a autonomia do Bispo em sua diocese — ressalvadas as disposições canônicas com relação ao Metropolita — no governo de sua grei com relação aos poderes que não sejam do Santo Padre, e o conjunto de organismos que constituem a Santa Sé e que, sob dependência do Sumo Pontífice, constituem o governo da Igreja. “Do primeiro princípio decorre, como já lembrei, que, em tudo que se relaciona com atos do magistério ou governo supremo da Igreja, a situação da Comissão Episcopal é, como a de qualquer Bispo, meramente obediencial. Não pode nem sequer interpretar autenticamente a palavra do Pontífice. “Mas — e passo para o segundo princípio — esta função obediencial não se exerce sobre os Bispos e fiéis a título governativo. Em outros termos, não compete à Comissão Episcopal dar ordem aos bispos no que diz respeito ao cumprimento de determinações emanadas da Santa Sé”.

13. Resultado do esforço: a “Bis Saeculari Die” ficou conhecida no Brasil Narro ainda um último episódio. Em 1950, quando estive em Roma, apresentei as provas das resistências e manobras dos que procuravam cercear os efeitos do documento papal, e Dom Mayer apresentou um relatório oficial como Bispo. No ano seguinte, quando Dom Sigaud por seu turno ia partir em viagem a Roma, de passagem pela Nunciatura no Rio, ouviu o seguinte do Sr. Núncio, na época Dom Carlo Chiarlo: — V. Excia. vai a Roma? Muitos brasileiros têm ido lá entregar uns pedacinhos de papel à Secretaria de Estado. E, por causa disso, eu recebi recentemente a maior repreensão de minha vida diplomática. Eu não posso compreender porque mandam esses recortes para Roma e não me entregam aqui. Para que levar a Roma? Dom Sigaud ouviu, despediu-se e tudo ficou em ordem*. * Mal sabia o Sr. Núncio que Dom Sigaud não estava levando apenas “uns pedacinhos de papel” a Roma, mas um substancioso relatório de 123 páginas datilografadas, para cuja elaboração teve a ampla colaboração de Dr. Plinio. A data desse relatório é 10 de junho de 1951.

* Assim, com todos esses esforços, foi possível evitar que a Bis Saeculari Die não fosse conhecida no Brasil.


353 Mas também ficou patente a luta que houve para se conseguir publicar aqui um documento pontifício 1271.

1271 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54.


354

Capítulo XV Santa Sé elogia o “Em Defesa” 1. Boicote do Cônego Enzo Gusso a um recado da Santa Sé? Anos antes de eu receber da Santa Sé a carta de elogio ao meu livro, havia acontecido um fato muito grave. O Padre Veloso1272 comunicou-me que havia recebido uma carta do Padre Castro e Costa, meu antigo professor no Colégio São Luís, muito sentido comigo por eu não ter respondido a uma carta muito importante que ele havia me enviado por intermédio do Cônego Enzo Gusso, que acompanhara o Cardeal Motta à Europa1273. Padre Costa e eu éramos muito amigos, e sempre conservamos boas relações. Ele se tornou ardente protetor do meu livro em Roma1274. Escrevi então ao Padre Costa*, dizendo que não havia recebido a carta que ele entregara em confiança ao Cônego Enzo Gusso. * No post scriptum dessa carta ao Padre João de Castro e Costa, SJ, diz Dr. Plinio: “Relendo a carta, vejo que omiti o seguinte: Padre Enzo disse ao Padre Veloso que reconhece haver recebido do Sr. a dita carta, que, chegando a São Paulo, ele pôs no correio, com endereço a mim! Esta carta não me chegou às mãos, como o Sr. vê” (Carta ao Padre João de Castro e Costa, SJ, 7/8/46).

Padre Costa enviou-me então uma outra carta do mesmo teor, na qual ele me dizia que Monsenhor Lombardi, então encarregado dos assuntos brasileiros na Secretaria de Estado, mandava dizer-me que meu livro havia sido examinado pela Secretaria de Estado e considerado rigorosamente ortodoxo. Dizia também que 1275 não iria mandar uma carta da Secretaria de Estado, pois isso iria melindrar o Sr. Cardeal Arcebispo de São Paulo e outros prelados. O Padre Costa, além disso, pediu-me a mais estrita reserva sobre as informações que estava fornecendo1276: não deviam ser publicadas, e eram dadas só para a tranquilidade de minha consciência. E que esperava da minha discrição que eu nada dissesse. *

1272 — Padre José Francisco Versiani Velloso (1919-1972) foi em 1966 nomeado primeiro Bispo de Itumbiara, Goiás, permanecendo no cargo até sua morte, em 1972. 1273 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1274 Carta de Dr. Plinio ao Padre Sigaud, 16/12/46. 1275 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1276 Carta de Dr. Plinio a um Prelado, data desconhecida, seguramente da segunda metade de 1948.


355 Por coincidência, no mesmo dia em que eu recebi a nova carta do Padre Costa, encontrei-me com o Cônego Enzo Gusso na rua. Perguntei-lhe então se não havia recebido uma carta do Padre Costa para me entregar. Muito atrapalhado, ele disse que recebera sim, e que havia colocado um selo nela e posto no correio, endereçando-a a mim aqui em São Paulo. Eu disse: — Mas o senhor recebe uma carta em Roma para trazer a mim e a põe no correio de São Paulo? Ele: — Eu não tenho obrigação de levar carta em sua casa. — Realmente, e eu não discuto isto: bastaria o senhor me telefonar, que eu a mandaria buscar. — É, eu não tive essa ideia. — Porque a carta extraviou-se... Extraviou-se, mas eu recebi cópia. Naturalmente, logo depois seguiu um relatório para Roma, contando o sucedido.

2. Conversa com o provincial dos jesuítas. Nossos documentos chegavam à Santa Sé Alguns dias antes 1277 de ter eu recebido a carta de aprovação de meu livro, ainda em março de 1949, fui chamado pelo Padre Arturo Alonso, provincial dos jesuítas 1278. Para se saber que orientação tinha este Padre Arturo Alonso, basta dizer que os Padres César Dainese e Arlindo Vieira haviam sido destinados por ele a cargos em que automaticamente ficavam afastados de mim e do grupo do ex-Legionário1279. Ele havia chegado há pouco de Roma e o encontrei acamado, com a perna fraturada. Ele me disse: — Não adianta continuar a cutucar a Santa Sé com os sucessivos relatórios que manda para Roma, visando crucificar este pobre Provincial

1277 — Em carta datada de 22/3/49 e dirigida ao Padre Riou que se encontrava em Roma, Dr. Plinio diz: “Estando há dias em visita ao Padre Alonso, ouvi dele que o ambiente do Vaticano não autorizava a menor esperança de que meu livro ‘Em Defesa da A.C.’ fosse objeto de alguma apreciação ou declaração da Santa Sé. Recebi a notícia com conformidade, não porém sem tristeza. [...] Pode, pois, V. Revma. aquilatar minha surpresa e meu júbilo, quando, pouco depois, recebi do Exmo. Revmo. Monsenhor Montini a carta cuja cópia junto”. 1278 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1279 Relatório apresentado por Dr. Plinio a Monsenhor Valentini no ano de 1950, em Roma.


356 da Companhia 1280. E abrindo teatralmente os braços em forma de cruz, disse: — Eu vi os seus relatórios na mesa do Papa. Para mim, ouvir aquilo foi interiormente um júbilo. Ele continuou: — Sei que o senhor quer a aprovação do seu livro. Não insista, pois a Santa Sé nunca jamais aprovará o seu livro. Está preparado um golpe da Santa Sé a favor das Congregações Marianas. Se o senhor soubesse de que natureza é, o senhor iria ficar muito contente. Mas esse golpe não acarretará a aprovação de seu livro 1281. Depois explicou: — A atitude que os jesuítas têm tomado, de não mover nenhuma luta, tem explicações transcendentais que eu não posso dar ao senhor. E por isto não adianta o senhor me apontar nos seus relatórios como homem que atraiçoa a Igreja. Eu respondi: — Padre Alonso, eu não tenho autoridade para dizer-lhe o que eu penso a seu respeito. O senhor não é meu súdito. Mas, uma vez que o senhor foi ler cartas dirigidas a quem eu tenho, segundo o Código de Direito Canônico, o direito de me dirigir, eu devo dizer que, o que o senhor leu lá, é exatamente o que eu penso a seu respeito. — Então, o velho Plinio é sempre o mesmo, inflexível contra mim? — Enquanto o senhor for inflexível nessa atitude de flexibilidade para com o erro, eu serei inflexível contra o senhor 1282. — E o senhor acha que o senhor foi justo comigo? — Padre, eu pergunto ao senhor: nesses relatórios há algum argumento que seja falso? Algum fato que seja errado? Alguma coisa que não esteja bem raciocinada? Se houver, estou disposto a dar a mão à palmatória. Mas, “amicus Plato, sed magis amica veritas” — “Platão pode ser nosso amigo, mas a verdade é mais nossa amiga do que Platão”. Quer dizer, o senhor pode ser meu amigo, mas eu sou mais amigo da verdade do que do senhor. — É, Dr. Plinio, nem tudo é lógica, muita coisa na vida é coração. — Padre, é exatamente com o que eu não estou de acordo. O 1280 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1281 SD 2/7/88. 1282 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54.


357 coração contra a lógica não vale nada. Um coração contra a lógica é um coração torto e errado. Ou é lógica ou é nada1283. — O senhor não enxerga que a gente deve se contentar com o mal menor, quando não se pode conseguir tudo? Os golpes que o senhor quer dar nos adversários nunca surtirão bons resultados. O senhor quer o impossível. E por aí foi a conversa, muito longa, mais de uma hora. Mas achei muito esquisita a insistência dele de sempre me recomendar que não insistisse pela aprovação de meu livro 1284. Nunca mais vi esse homem. Mas fiquei encantado de ver que o conduto por onde enviávamos nossos documentos a Roma funcionava e que Pio XII tinha mandado chamá-lo para apertar1285.

3. Em nome de Pio XII, carta de louvor de Monsenhor Montini Um belo dia1286, lá pelo mês de março de 1949, Frei Jerônimo Van Hinten, um carmelita que tinha se aproximado de nós em 1946 ou 1947, portanto no período da desgraça, telefonou-me 1287 na hora do almoço dizendo o seguinte: — Recebi uma carta vinda de Roma dirigida ao senhor. É da Secretaria do Estado da Santa Sé, mas está fechada. O senhor quer que faça o quê? — Abra e leia a carta. Ele leu e era uma carta de aprovação da Santa Sé ao livro Em Defesa da Ação Católica. Uma carta oficial em latim, assinada por Monsenhor João Baptista Montini, que dirigia então a Secretaria de Estado. Eu caí de várias nuvens e disse a ele: — Frei Jerônimo, isso é fantástico!1288 Eis seu texto em português: Palácio do Vaticano, 26 de fevereiro de 1949 Preclaro Senhor,

1283 SD 2/7/88. 1284 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1285 SD 2/7/88. 1286 SD 4/11/72. 1287 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1288 Almoço EANS 17/6/82.


358 Levado por tua dedicação e piedade filial ofereceste ao Santo Padre o livro “Em Defesa da Ação Católica”, em cujo trabalho revelaste aprimorado cuidado e aturada diligência. Sua Santidade regozija-se contigo porque explanaste e defendeste com penetração e clareza a Ação Católica, da qual possuis um conhecimento completo, e a qual tens em grande apreço, de tal modo que se tornou claro para todos quão oportuno é estudar e promover tal forma auxiliar do apostolado hierárquico. O Augusto Pontífice de todo o coração faz votos que deste teu trabalho resultem ricos e sazonados frutos, e colhas não pequenas nem poucas consolações. E como penhor de que assim seja, te concede a Bênção Apostólica. Entrementes, com a devida consideração me declaro teu muito devotado (a) J. B. MONTINI Subst.* * Esta carta da Santa Sé, com o timbre da Secretaria de Estado, chegou às mãos de Dr. Plinio acompanhada de uma outra carta de Frei Batista Blenke, em que este explicava porque havia mandado a correspondência através de seu irmão de hábito, Frei Jerônimo (Frei Batista tinha sido o primeiro pároco da igreja, depois Basílica, de Nossa Senhora do Carmo da rua Martiniano de Carvalho, em São Paulo, e posteriormente Procurador Geral da Ordem em Roma). Em sua carta a Dr. Plinio, Frei Batista dizia: “Tenho o prazer de passar às suas mãos a carta que o Santo Padre lhe manda por intermédio do Monsenhor Montini. Peço desculpa por mandá-la por este caminho [através de Frei Jerônimo]; porque o endereço ut supra seja talvez errado, achei mais prudente enviá-la ao convento do Carmo. Conforme ao seu pedido, tentei obter a opinião do Santo Ofício, mas não foi possível, porque este Dicastério não costuma manifestar-se nesse sentido. Faço votos que a bênção do Santo Padre seja um estímulo para continuar seus trabalhos com o intuito de fazer Cristo sempre mais e mais conhecido e amado no Brasil” (carta de Frei Batista Blenke a Dr. Plinio, de 4/3/49) Por uma carta anterior do mesmo Frei Batista a Frei Jerônimo, datada de 21 de fevereiro de 1949, constatamos que, se Frei Batista não foi o único a fazer chegar o livro Em Defesa à Secretaria de Estado, foi pelo menos um dos que o encaminharam àquela alta Secretaria, e o que teve o encargo de transmitir a aprovação da Santa Sé a Dr. Plinio. Na referida carta de Frei Batista, ele diz a Frei Jerônimo: “Escrevi-lhe a respeito do livro ‘Em Defesa da Ação Católica’. Dr. Plinio me pediu no ano passado mandar o livro para o Santo Ofício e ver se havia possibilidade de obter a opinião do mesmo Dicastério. Fiz alguma coisa nesse sentido, mas não foi possível; na mesma ocasião o Sr. Plinio me disse que já tinha mandado antes o livro ao Padre Costa S.J., que está no Colégio Brasileiro em Roma, para oferecê-lo ao Santo Padre e ver se havia possibilidade de


359 obter alguma coisa neste sentido; porém o mesmo Padre Costa não havia dado resposta. Eu por mim pensava que fossem talvez motivo de ordem por assim dizer ‘diplomática’ que o livro não foi introduzido na Secretaria de Estado, pois, como sabemos, no Brasil não faltaram as ‘críticas’. Portanto não quis imediatamente fazer alguma coisa neste sentido, pois nestas coisas precisamos de usar da maior prudência. Tomei diversas informações etc. Agora está assim: o livro já está na Secretaria de Estado; eu espero qualquer resposta. Se vier uma resposta, i. é, uma carta, mandarei ao Sr. [...] Infelizmente não pude oferecer o livro na sua própria forma: deveria ser encadernado com couro branco, e com a inscrição em letras douradas; não sabia disso. [...] Naturalmente suponho que venha qualquer resposta da Secretaria de Estado”. Significativa também é a carta de agradecimento que Dr. Plinio enviou a Frei Batista, da qual destacamos o seguinte trecho: “Tudo isto me leva, prezado Frei Batista, a sentir o mais comovido reconhecimento pela amizade com que V. Revma. me prestou seu valiosíssimo e decisivo auxílio neste passo importante de nosso apostolado. Todos os meus amigos do ‘ex-Legionário’ e muito particularmente Dom Mayer e Dom Sigaud participam comigo, intensamente, desse reconhecimento. Vejo um requinte de bondade de Nossa Senhora no fato de tão grande graça haver chegado a mim, modesto noviço carmelita da Ordem Terceira, pela única e direta interferência do Procurador de nossa Ordem” (carta sem data conhecida, provavelmente de março de 1949). Curiosa é a carta dirigida a Dr. Plinio pelo Monsenhor Pascoal Gomes Librelotto (1901-1967), Major Capelão do 1º Grupo de Caça e da FEB, e também 1º Capelão da FAB (cfr. http://www.sentandoapua.com.br). Nesta carta, ele narra a audiência privada que teve durante mais de uma hora com Pio XII, na qual falou-se sobre o livro Em Defesa da Ação Católica: “Em 1944 segui para a guerra como Ten. Cel. Capelão Chefe da FAB, e a pedido do Santo Padre fiz um Relatório sobre a situação da religião no Brasil em 19 páginas papel almaço à máquina, que apresentei aos 21 de Março de 1945 em audiência privada que durou mais de hora. “Escrevi um Capítulo inteiro sobre o tema: - Como eu entendo a Ação Católica — que o Santo Padre aprovou com estas palavras: - ‘È proprio così’ [‘É exatamente isto’]. — No Relatório fiz um apelo ao Santo Padre mandasse examinar o seu livro e o do Padre Cândido Santini S.J., e, caso houvesse neles algo menos certo, fossem disso notificados os autores que certamente fariam a correção. “Disse, e por escrito, que uns condenavam como falso o seu livro, outros silenciavam e outros o aprovavam e aplaudiam, e que eu, pertencendo aos últimos, o achava ótimo, digno de ser conhecido” (carta de 18/5/49). Em carta a Dr. Plinio (7/9/46), o Padre João de Castro e Costa conta que Monsenhor Librelotto o havia alertado sobre rumores de que o livro Em Defesa seria condenado pela Comissão Episcopal da Ação Católica brasileira.

Desta vez, tudo se tornava cristalino. Pio XII louvava e recomendava o livro do kamikaze1289.

1289 Nasce a TFP, cit.


360 Era um triunfo enorme. Um triunfo que deixava muito mal os nossos adversários, sobretudo o Arcebispo de São Paulo, Cardeal Dom Carlos Carmelo. Eu nem almocei. Fui diretamente de automóvel pegar a carta no Convento do Carmo 1290. Fiquei evidentemente muito contente, senti um alívio como se uma série de pressões que se exerciam contra mim se descomprimissem 1291. Na sede, fizemos em conjunto grandes orações a Nossa Senhora, para agradecer a Ela este imenso favor. E naquela mesma noite organizei um jantar para os meus companheiros de luta, num dos melhores restaurantes de São Paulo. * No dia seguinte, a primeira providência foi redigir uma notícia a respeito. E a distribuímos a todos os jornais de São Paulo. Dois ou três publicaram a notícia, dando um resumo da carta. Era o que podíamos fazer como publicidade. Mas foi uma bomba! Ninguém imaginava isso1292. Mandei também uma carta muito respeitosa ao Cardeal, através de Monsenhor Loureiro, comunicando o recebimento do documento da Santa Sé, e colocando-me inteiramente à disposição dele como o menor dos servidores. Carta esta que ficou sem resposta1293. Por fim, enviei a Monsenhor Montini a seguinte carta: “São Paulo, 19 de março de 1949 “Excelência Reverendíssima, “Apresentando-vos minhas homenagens muito sinceras, eu vos agradeço a carta que Vossa Excelência Reverendíssima me fez a honra de escrever, ao transmitir os augustos sentimentos de benevolência do Santo Padre em relação ao meu livro ‘Em Defesa da Ação Católica’. “Compus este meu trabalho com o único desejo de tornar conhecidas as sábias diretivas da Santa Sé no assunto Ação Católica, e de as defender contra as interpretações verdadeiramente perigosas. Nada, pois, pode me tocar mais profundamente do que saber que meu livro foi honrado pela augusta aprovação do Soberano Pontífice. 1290 SD 4/11/72. 1291 Chá 26/2/89. 1292 Palavrinha 26/2/89. 1293 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54.


361 “Suplico a Vossa Reverendíssima de ter a condescendência de depositar aos pés do Vigário de Jesus Cristo meus sentimentos do mais humilde e do mais filial reconhecimento. “Possa Deus conceder-me a graça de servir ao Santo Padre em todos os instantes de minha vida, e de derramar meu sangue por Ele, se a ocasião se apresentar. “Conto, para isto, com as preces de Vossa Excelência Reverendíssima, e aproveito a ocasião para vos apresentar, Monsenhor, os protestos de minha respeitosa consideração. “De Vossa Excelência Reverendíssima, o “mais devotado em Nosso Senhor” etc. 1294.

4. “Quem é de Deus, una-se a nós” Nossa situação começou assim a se recompor, e um problema pôsse para nós. Percebia-se que uma multidão de católicos continuava a não ter a mínima ideia da crise medonha que lavrava dentro da Igreja e, portanto, não estava acumpliciada com essa crise. Se nós de algum modo tivéssemos possibilidade de agir, ainda poderíamos salvar uma boa parte desse contingente. E aos que eu chamaria de católicos intermediários, poderíamos fazer o convite de São Luís Maria Grignion de Montfort: Quem é de Deus, una-se a nós!1295 Agora, como fazer isto? Um dos primeiros passos foi dar uma clarinada, para fazer entender a esse público que todos os ideais defendidos e sustentados no Em Defesa da Ação Católica continuavam de pé. E que aquela corrente que se reunia em torno do livro, já agora em novas fortificações, oferecia um reinício de batalha. Para isto, foram adotadas algumas medidas.

5. Carta de Dr. Ablas ao Padre Helder Câmara Uma importante providência que tomamos foi uma declaração de guerra ao lado progressista, para que este sentisse que a batalha havia recomeçado, pois cortava-lhe espaços. Consistiu no seguinte.

1294 Carta de Dr. Plinio a Monsenhor Montini, 19/3/49. 1295 — Essa conclamação feita por São Luís Maria Grignion de Montfort é retirada da Sagrada Escritura, quando Moisés, encolerizado pelo fato de o povo ter se entregue à adoração do bezerro de ouro, exclamou: “Si quis est Domini, jungatur mihi” (Ex, 32,26). Juntaram-se então a ele os membros da tribo de Levi, aos quais Moisés ordenou que passassem ao fio da espada os idólatras. Eles assim procederam e por isso Moisés lhes disse que tinham atraído sobre si uma bênção.


362 Dr. Antonio Ablas Filho era presidente da Ação Católica de Santos e muito meu amigo. Quando viajávamos a Santos, todas as noites íamos à sua casa, tínhamos longas conversas com ele e com Dª Julinha Guimarães Ablas, sua esposa. Os filhos, ainda muito pequenos, ficavam ali ouvindo a conversa. Sem fazer rodeios, porque a posição dele para conosco era muito leal, eu propus o seguinte: — Ablas, você poderia nos prestar um favor? Escrever um ofício, enquanto presidente da Ação Católica de Santos, ao Monsenhor Helder Câmara, que é assistente eclesiástico da Junta Nacional da Ação Católica no Rio, dizendo a ele que havia chegado tal aprovação da Santa Sé ao meu livro. E que seria conveniente que a Ação Católica, indo ao encontro dos desejos do Santo Padre manifestados de modo claro ao se referir à difusão de tal trabalho, recomendasse oficialmente a leitura da obra aos seus membros. Ablas gostou muito da ideia e dentro de poucos dias a carta estava em mãos do Monsenhor Helder*. O primeiro ofício foi enviado pela Junta Diocesana de Santos no dia 30 de março de 1949, e levava a assinatura de Dr. Ablas enquanto presidente e do Sr. Ítalo Sartini enquanto secretário. Como não viesse resposta, Dr. Ablas mandou um segundo ofício, datado de 23 de junho de 1949, reiterando o mesmo pedido. Dizia que, “procedendo desta forma, empenha-se esta Junta Diocesana única e exclusivamente em ir de encontro dos desejos do Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, manifestados de modo claro e insofismável ao se referir a tão importante e oportuno trabalho”. Não tendo ainda desta vez obtido resposta, Dr. Ablas telefonou diretamente a Monsenhor Helder Câmara (em 20/1/50), o qual era o assistente geral da Junta Nacional de Ação Católica, mantendo o seguinte diálogo:

− É Monsenhor Helder Câmara? − Sim senhor. − Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! − Para sempre seja louvado. − Aqui quem fala é o Dr. Ablas Filho, presidente da Junta Diocesana de Ação Católica de Santos. A sua bênção, Monsenhor. − Deus lhe abençoe. O que o senhor deseja? − Monsenhor, eu desejo saber algo sobre aqueles dois ofícios que lhe foram enviados, um pelo correio, outro pelas mãos de pessoa amiga aí do Rio.

− O que o senhor pede naqueles ofícios é uma coisa muito delicada! − Como delicada? Não há a respeito uma carta do Santo Padre? − Vou me dirigir à comissão episcopal de AC para então lhe responder a respeito.


363 − Sim, Monsenhor, eu preciso de uma resposta, pois penso que, seja qual for a resposta, os tais ofícios precisam tê-la. Pelo menos me responda que recebeu os ofícios.

− Sim senhor, lhe responderei muito breve. Dr. Ablas se despediu dele, pediu sua bênção, mas o assunto não andou (cfr. relatório do dia 30/1/50, feito pelo próprio Dr. Ablas).

Monsenhor Helder não respondeu, mas ficou sentindo que a contraofensiva recomeçara. Foi como naquelas batalhas medievais, em que um dos lados sai, canta um hino e depois começa a guerra. Assim também nós levantamos a luva 1296.

6. Resultados do “Em Defesa” a longo prazo O Em Defesa foi um livro cujo alcance é muito mais fácil de se perceber hoje do que no tempo em que foi escrito. Naquela época estava em estado de vagido o bramido que hoje o progressismo dá no mundo inteiro1297. Os perigos que nele indiquei eram apenas a semente do que depois tomou corpo, se ampliou e deu no que vemos atualmente1298. Na relativa modorra do ambiente religioso daquela época, era difícil para um católico acreditar que se gestava uma heresia, a qual se anunciava como um bom e normal desenvolvimento da vida da Igreja. Ou seja, a Ação Católica se apresentava como uma novidade, quando de fato era uma revolução que estava nascendo. Nos seminários, nas universidades mantidas pelo Estado ou pela Igreja, na imprensa católica, na direção das grandes associações católicas, essas ideias foram introduzidas a um tempo, e aceitas geralmente pelas mesmas pessoas, e vieram a constituir o programa vastíssimo de transformações eclesiásticas, políticas e sociais propugnadas por uma imensa e poderosa corrente, cujo chefe leigo era Tristão de Athayde. E esta corrente difundia seus erros ora de modo explícito, ora de modo implícito. E era muito mais clara em suas doutrinas na propaganda verbal do que na escrita1299. Por isso, na época, muita gente católica julgou que o quadro que eu traçara era forçado demais. Esses católicos achavam que, depois da Contra-Reforma e da definição do dogma da infalibilidade papal, não havia nem poderia haver

1296 Jantar EANS 17/6/82. 1297 RR 15/1/77. 1298 SD 12/12/85. 1299 Memorando sobre a crise religiosa brasileira por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional (Rio, 1955).


364 dentro da Igreja espaço para desenvolver-se um movimento herético. E eriçaram-se contra o livro. Mas, à medida que a crise interna da Igreja foi-se acentuando, ficou patente aos olhos dessas incontáveis pessoas que era de fato a trama profunda de uma revolução na Igreja no século XX o que havia sido denunciado 1300. O livro foi perseguido porque furava essa conspiração que iria fazer prevalecer esse estado de coisas na Igreja Católica várias décadas depois 1301.

7. Lutamos para mudar o curso da História Nesta situação, parecia-me como certo que o único meio de disputar terreno ao adversário consistia em abrir a luta de viseira erguida, combatendo mais uma vez a tática da confusão pela tática da definição. Tenho como certo que, se não tivesse sido publicado o Em Defesa da Ação Católica, a heresia que acabou penetrando por toda parte teria penetrado muito mais, e já naquela época seria senhora do País. E se é verdade que hoje ela está espalhada de um modo tremendo, também é verdade que, por ter sido denunciada no seu início, ela caminhou limitada, mal à vontade e com o passo cambaleante, por ter havido alguma coisa que a freou. Disto eu tenho certeza1302. Quando a Ação Católica foi trazida da Europa para o Brasil, a intenção era transformá-la em um viveiro de revolução. E seu contingente era para ser tirado das Congregações Marianas, ou seja, dos jovens católicos mais fervorosos, mais entusiasmados, que iriam entrar na revolução religiosa. Revolução religiosa essa que faria por sua vez, mais tarde, o papel de viveiro para a Democracia Cristã. Os melhores da Ação Católica seriam depois transferidos — como foram! — para a Democracia Cristã, e em parte passariam a apoiar o comunismo. Neste processo 1303, a influência de Jacques Maritain foi bastante grande. Ela atingiu seu auge entre os anos de 1940 a 1960. Esses meios deram origem ao esquerdismo católico que apoiou Goulart e quase deitou o Brasil por terra. Na era, pós-goulartiana, 1300 RR 15/1/77. 1301 RR 6/10/90 — No livro Rapporto sulla Fede, o Cardeal Ratzinger (futuro Bento XVI), apontava erros graves existentes na Igreja. Se tomarmos os erros apontados por ele e os erros denunciados pelo Em Defesa, há uma grande simetria. A diferença é que, no Em Defesa, Dr. Plinio detectou esses erros no seu nascedouro, ainda em âmbito nacional; e, no Rapporto sulla Fede, o Cardeal tratou dos erros já desenvolvidos em âmbito universal. 1302 Chá ENSDP 2/12/91. 1303 MNF 17/7/87.


365 continuam atuando em correntes centristas ou esquerdistas 1304. * Temos então o seguinte balanço: nós lutamos para impedir o curso dessa revolução. E, com o favor de Nossa Senhora, contribuímos para mudar o curso da História!1305 Esta tese fica mais clara se imaginarmos como as coisas teriam corrido se simplesmente tivéssemos cruzado os braços 1306. Devemos tudo evidentemente a Nossa Senhora. Mas podemos dizer que fomos os instrumentos d’Ela. E damos graças a Ela por ter querido servir-se de nós. Mas em algo correspondemos à graça. E a tarefa foi feita 1307.

1304 Sobre um cão imaginário, Folha de S. Paulo, 15/12/74. 1305 Chá ENSDP 2/12/91. 1306 Reunião com os mais antigos do movimento 8/6/86. 1307 Chá ENSDP 2/12/91.


366

Parte VI Da catacumba ao jornal “Catolicismo” Capítulo I A fase de expansão 1. Ganha força a necessidade do combate aos inimigos internos da Igreja Nosso Grupo sobreviveu, suas ideias se aprofundaram, seus conhecimentos doutrinários se ampliaram, as relações com Roma se estabeleceram, a sede começou a existir com função definida. E o Grupo mudou de patamar, com situação definida dentro da Igreja1308. Das desgraças que o nosso Grupo sofreu, ele retirou uma espécie de transformação na própria estrutura e nos seus objetivos1309: Se não tivéssemos sido afastados do Legionário, a direção de nossa organização teria continuado eternamente nas mãos de prelados solidários com os erros da Ação Católica, e dirigidos por gente assim nunca poderíamos constituir uma entidade que visasse metas mais altas. Excluindo-nos, eles julgavam nos liquidar, e nos libertaram. Nós, sendo excluídos, receávamos deixar de existir, mas estávamos recebendo a libertação 1310. Éramos antigamente um grupo que visava um apostolado genérico. Esta finalidade passou por uma transformação: do apostolado que tínhamos antes, visando a conquista do Brasil para a Igreja, nós nos transformamos num Grupo que visava a conquista interior dos meios católicos para a mentalidade da Igreja1311. Por outro lado, foi nesse período que idealizamos o nosso brasão com o leão rompante 1312, executado por monjas dominicanas amigas. 1308 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1309 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1310 SD 7/4/79. 1311 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1312 — Em heráldica, utiliza-se mais comumente “rampante”, porém a expressão “rompante” também é, por vezes, utilizada no mesmo sentido. O dicionário Houaiss, por exemplo, apresenta


367 Esse estandarte tinha no começo as duas chaves da Santa Sé. Manifestação de ignorância de nossa parte, porque não sabíamos que as chaves da Santa Sé só podem ser usadas por organismos pontifícios. Mas eu queria exprimir esse traço fundamental do nosso Grupo, que é o serviço da Santa Sé, a defesa da Santa Sé contra seus adversários declarados ou ocultos. Inclusive os adversários encastoados n’Ela 1313. Foram lançados, então, os fundamentos de todos os trabalhos que fazemos hoje1314. Era um alicerce bem firme construído nas lágrimas, na dor1315. No meio de uma série de tragédias, a Providência dispôs que fosse germinando a TFP 1316.

2. Expansão das relações no Exterior Vem também desse tempo um comecinho da expansão de nossas relações no Exterior, porque apareceu na França uma revista muito contrarevolucionária, chamada La Pensée Catholique. Gostamos muito dela e começamos a escrever para um de seus brilhantes colaboradores, que era o Abbé Luc Lefebvre 1317. Detectamos também a existência de uma revista, então muito em voga, muito boa, Cristiandad, editada na Espanha, em Barcelona, pelo grupo de um padre chamado Orlandis1318, jesuíta bem inteligente. Começamos a escrever cartas, manter relações com eles, os quais também nos ajudaram em outros relacionamentos1319.

3. Gratidão pelos dons superabundantes de Nossa Senhora Quando olho para todo esse passado, sou obrigado a reconhecer que tudo isto se deveu a dons superabundantes de Nossa Senhora. Não fosse o fato de Ela nos ter dado, antes de tudo e acima de tudo,

como um dos sinônimos de “rompante” a palavra “rompente” que ele define como significando, em heráldica, “erguido sobre as patas traseiras (diz-se de animal)”. Dr. Plinio habitualmente utilizava “rompante”. 1313 SD 7/7/73. 1314 Palestra sobre Memórias (IX) 14/8/54. 1315 Almoço EANS 16/6/82. 1316 SD 7/7/73. 1317 — Padre Luc Lefebvre (1915-1979), sacerdote francês, era o verdadeiro mentor dessa revista trimestral, de alto nível intelectual, embora nela constasse como diretor o Cônego Henri Lusseau, autor do livro L’histoire du peuple d’Israel. 1318 — Padre Ramón Orlandis i Despuig (1873-1958), sacerdote jesuíta espanhol, fundador em 1944 da revista Cristiandad. 1319 Almoço EANS 16/6/82.


368 a devoção a Ela; não fosse o fato de Ela nos ter dado esse senso contrarevolucionário, que fazia com que, no primeiro momento, pudéssemos detectar o adversário da boa doutrina e perceber a extensão da trama que esse adversário havia articulado; não poderíamos ter concebido o livro [Em Defesa da Ação Católica] que de tal maneira se opôs aos planos por ele armados. Depois disto, Nossa Senhora coroou o gesto de fidelidade que foi o Em Defesa, fazendo nascer das cinzas de toda a batalha em torno desse livro a flor maravilhosa que é o nosso Grupo. E a partir desse momento a flor se desenvolveu, cresceu, e de sua haste nasceram outras flores 1320.

Capítulo II O grupo da Martim 1. Apostolado difícil Nós passamos talvez cinco ou mais anos procurando gente para aumentar o nosso movimento 1321. Poucos eram os que compareciam. E dos que compareciam, só dois ficaram amigos do Grupo: Dom Pedro Henrique de Orleans e Bragança 1322 e o advogado Carlos Mazagão, que depois se afastou 1323. Nosso número não crescia e nós parecíamos fadados à estagnação1324. Mas um acontecimento sobreveio, que marcaria a fundo nosso futuro 1325.

2. Colégio São Luís: congregados da melhor elite orientados pelo Padre Mariaux Nesse tempo todo, a amizade entre o Cônego Mayer, o Padre Mariaux e eu não fez senão crescer. Nós gostávamos muito do Padre Mariaux, suponho que o Cônego Mayer gostasse também. E tudo corria muito bem. 1320 Discurso no 25° aniversário do Em Defesa, 8/6/68. 1321 Palavrinha 7/5/92. 1322 — D. Pedro Henrique de Orleans e Bragança (1909-1981), descendente dos Imperadores do Brasil, neto da Princesa Isabel, era o chefe da Casa Imperial do Brasil. Deu irrestrito apoio a Dr. Plinio, no que foi seguido por dois de seus filhos, D. Luiz de Orleans e Bragança (atual chefe da Casa Imperial) e D. Bertrand de Orleans e Bragança. 1323 SD 7/7/73. 1324 Palavrinha 17/7/94. 1325 Nasce a TFP, cit.


369 Algum tempo depois o Padre Mariaux me disse: — Ah! eu agora compreendo por que é que o senhor me aconselhou São Paulo. Porque os alunos do Colégio São Luís estão começando a me procurar, e o meu apostolado está tendo êxito. De fato, entrou para a Congregação Mariana do colégio um grupo grande de rapazinhos, entre os quais, alguns muito ilustres: Plinio Vidigal Xavier da Silveira, Luiz Nazareno Teixeira de Assumpção Filho, Sérgio Brotero Lefèvre, Paulo Corrêa de Brito Filho, Celso da Costa Carvalho Vidigal1326. Estes formaram depois o chamado “grupo da Martim Francisco”1327 ao qual se agregaram Eduardo de Barros Brotero, Caio Vidigal Xavier da Silveira, Fábio Vidigal Xavier da Silveira. E ainda outros que — é doloroso dizer — foram saindo no decurso do tempo. A Congregação Mariana que o Padre Mariaux formou no Colégio São Luís era modelar1328. Ele dava uma formação muito boa aos congregados marianos, especialmente debaixo de três pontos de vista: acentuada devoção a Nossa Senhora, muita devoção à Igreja e muita formação para a pureza, conjugada com a coragem. Os rapazes dele eram corajosos, firmes, batalhadores 1329.

3. Oposição do corpo docente do Colégio Mas, ao contrário do que se poderia esperar, o Padre Mariaux encontrou viva oposição de quase todos os membros do corpo docente daquele colégio. Ele era muito expansivo, dizendo o que entendia, falando dos padres e do Reitor à vontade. Eu fiquei com a impressão de que ele possuía uma gradação superior à do próprio Padre Reitor, e que, portanto, podia fazer aquilo sem lhe acontecer nada. Ele entendeu a politicagem interna dos alunos dentro dos recreios do colégio. Compreendeu perfeitamente o jogo dos maus contra os bons. Entrou de paraquedas dentro da vida dos meninos, pegando aqueles que faziam propaganda da imoralidade e da impiedade, coibindo-os duramente: “Saia você daqui! Cale a boca você! Olha, este aqui é um bom menino. Venha cá”. Dava prestígio aos bons e esmagava os maus. Era este um ato raríssimo, dificílimo de encontrar nas Congregações Marianas e nos colégios católicos em geral. Naturalmente, os maus meninos tinham-lhe um ódio assinalado. 1326 Jantar EANS 9/4/87. 1327 SD 2/7/88. 1328 SD 17/6/89. 1329 SD 7/4/79.


370 Iam-se apoiar nos outros professores. Estes, por ingenuidade, ou por alguma outra razão, apoiavam os maus meninos contra o Padre Mariaux. * Ele contava-me episódios curiosos. Por exemplo, o caso de uma greve dos alunos ruins contra o colégio. Foi uma agitação nos jardins e por toda parte. E os padres se sentiam muito atrapalhados. Como ele era o diretor espiritual da Congregação Mariana de lá, ele tinha muita ascendência sobre os alunos congregados. E ele me contou que se colocara ostensivamente ao alcance dos outros padres, os quais sabiam que, a partir do momento em que ele pedisse o concurso dos congregados marianos para furar a greve, ela seria desfeita. Mas os padres preferiram sofrer as consequências da greve, do que dar força ao Padre Mariaux, de tal maneira havia uma coligação contra ele, embora todas as razões estivessem de seu lado 1330.

4. Padre Mariaux volta à Europa: pressão do Cardeal Quando a II Guerra Mundial terminou, o Padre Mariaux um dia me procura e diz: — Dr. Plinio, preciso lhe falar uma coisa confidencialíssima. A guerra terminou, caiu o nazismo. Enquanto o nazismo estava lá, eu não poderia ser mandado para a Alemanha. Agora os meus superiores me destinaram a voltar para a Europa, em parte por causa da reclamação do Arcebispo daqui, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, contra mim. Ele diz que eu sou um reacionário, que crio oposição contra ele, e ele então pediu que eu fosse tirado de São Paulo. De maneira que está tudo perdido. Eu vou ser removido”1331. A desavença com o Cardeal Motta se explicava, porque o Cardeal queria favorecer só a Ação Católica e via como um perigo a permanência de uma Congregação Mariana florescentíssima, esplêndida, de primeira ordem, numa diocese de onde ele queria eliminar todas as Congregações Marianas 1332. Eu perguntei: — Padre Mariaux, posso fazer alguma coisa pelo senhor? — Sim. Guardar reserva. Porque se o senhor mexer nisso, só vai piorar a minha situação. Mas eu quero do senhor outros favores.

1330 SD 17/6/89. 1331 Jantar EANS 16/6/82. 1332 SD 17/6/89.


371 — Mas o senhor pretende sair dessa história de que jeito? — Ah! Eu fui convidado para pregar um retiro no Rio de Janeiro e nesse retiro quero abordar o Cardeal Arcebispo de lá, Dom Jaime Câmara, e obter dele que consiga da Santa Sé que não me removam. Eu conhecia bem Dom Jaime Câmara... Mas não disse nada. Daí a alguns dias ele voltou do retiro. Perguntei: “Padre Mariaux, como foi o retiro? E sua conversa com Dom Jaime?” — Bom, eu conversei com Dom Jaime e fiz a ele o meu pedido 1333. E ele me disse: “Olhe padre, não espere nada de mim. O Cardeal de São Paulo é irredutível e ganhou a partida contra o senhor em Roma”1334. Passado um certo tempo, o Padre Mariaux me diz: — Estou num problema. Esses padres daqui não merecem confiança. Eu preciso deixar esses rapazes com um bom padre. Dom Mayer estava em Campos, não servia. Dom Sigaud estava em Jacarezinho, também não servia. Quem seria um bom padre? — Padre Mariaux, tem Frei Jerônimo. — Diga-me quem é esse Frei Jerônimo. — É holandês, assim. — Holandês? Durante a guerra tinha havido coisas sérias entre Alemanha e Holanda, de parte a parte. Eu disse: — Holandês. Mas é um homem muito bom, o senhor faria bem em conhecê-lo. — Bom, vejamos. Aproximei o Padre Mariaux de Frei Jerônimo. E Padre Mariaux viu que Frei Jerônimo era uma pessoa muito ortodoxa, um homem bem inteligente, e notou que era capacitado para dar uma boa orientação aos meninos. E aí aproximou os rapazes dele 1335.

5. Adesão do grupo da Martim Daí a alguns dias, ele me telefona de novo:

1333 Jantar EANS 16/6/82. 1334 SD 14/4/79. 1335 SD 4/11/72.


372 — Dr. Plinio, os padres da Companhia deram-me um prazo: depois que eu sair do Brasil, os meus rapazes têm que desocupar os locais onde se reúnem. E eles precisam se refugiar em algum lugar. Na sua sede teria lugar para eles?” Eu disse que sim, que poderiam se instalar lá na rua Martim Francisco. No dia seguinte, alguns daqueles rapazinhos apareceram trazendo os primeiros objetos da mudança1336: a batuta com que o Padre Mariaux, homem muito musical, regia a orquestra deles, também partituras de música 1337 e alguns outros objetos do mesmo Padre Mariaux1338. O grupo era de uns vinte e tantos rapazes. Mal cabíamos lá dentro. Mas não tínhamos dinheiro para os alojar noutro lugar. E então demos a sala da frente para esse pessoal do Padre Mariaux, e nós, os antigos, ficamos na sala dos fundos. * Bem, o Padre Mariaux preparou-se para ir embora, nos despedimos, ele seguiu viagem 1339 e os rapazes começaram a frequentar a sede. Começamos a notar que alguns deles tinham interesse por nós e eram cordiais. Os outros eram esquivos 1340. Mas não demos importância a isto. Mas ficou criado o problema da superlotação da sede. Antes de morrer, o José Gustavo de Souza Queiroz nos havia deixado um apartamento no 6º andar da rua Vieira de Carvalho n° 27, em um ponto da cidade que naquele tempo era muito prestigioso. Passamos então, em agosto de 1948, para este apartamento e deixamos a sede da rua Martim Francisco térrea, toda, para os rapazes do Padre Mariaux* 1341. * A partir daí os mais antigos do movimento ficaram conhecidos como Grupo da Vieira. Mais tarde, quando foi alugada uma sede da rua Pará, nº 50, eles passaram a ser conhecidos como o Grupo da Pará.

Eu convidava a todos eles para aparecerem na sede da rua Vieira de Carvalho em determinadas noites da semana e assistirem à reunião. E depois íamos todos juntos à Confeitaria Fasano, em frente a essa sede. Ali fazíamos uma grande mesa, conversávamos, comíamos alguma coisa e depois íamos embora. 1336 Jantar EANS 16/6/82. 1337 SD 17/6/89. 1338 Jantar EANS 16/6/82. 1339 Jantar EANS 9/4/87. 1340 SD 17/6/89. 1341 Jantar EANS 9/4/87.


373 Os mais abertos a nós, a certa altura, vieram procurar-nos e pediram para fazer parte de nosso grupo. E comunicaram isso aos outros 1342. Esses outros seguiram o caminho deles, se dispersaram e não ouvi mais falar deles. Os primeiros1343 passaram a militar de nosso lado 1344. Pertenciam todos eles a famílias influentes de São Paulo 1345. E foram os que constituíram o chamado grupo da Martim*. * O nome de grupo da Martim vinha, por simplificação, do fato de a sede estar situada na rua Martim Francisco n° 665. Este costume de designar os diversos grupos internos pelo nome da rua onde se situava a sede de cada um, ou pelo bairro onde esta se localizava, foi comum dentro do grupo de Catolicismo e depois na TFP.

* Não preciso explicar o enriquecimento que a adesão desse conjunto de rapazes representou para o nosso grupo. Foi para nós uma revitalização muito grande. Imaginem um grupo que passa anos e anos sem ver entrar ninguém, e no qual ingressa, de repente, um conjunto de dez 1346 congregados marianos excelentes, de muito zelo, de muita boa vontade1347, inteligentes, pessoas de futuro, com boas relações, e desde logo com uma união de espírito muito íntima, muito estreita conosco 1348. Era ar puro, ar fresco1349, que prometia os melhores resultados 1350. Era o pagamento que Nossa Senhora dava. Nossa Senhora tinha querido de nós perseverança. Ela entrou com o resto do capital, que foi a misericórdia d’Ela. E aí aquelas velas, que estavam quase para se apagar, iluminaramse de novo, e tudo mudou 1351.

1342 SD 17/6/89. 1343 Jantar EANS 9/4/87. 1344 CCEE 8/11/92. 1345 SD 14/4/79. 1346 SD 17/6/89. 1347 Despacho com os franceses 25/7/94. 1348 SD 17/6/89. 1349 SD 8/4/89. 1350 SD 17/6/89. 1351 Despacho com os franceses 25/7/94.


374

Capítulo III Fase de grande expansão de nosso apostolado 1. Grandes possibilidades de apostolado A adesão do grupo da rua Martim Francisco trouxe resultados incalculáveis para o nosso apostolado 1352. O Padre Mariaux tinha modelado esses rapazes com uma formação muito varonil, o que me agradava enormemente. Vários deles eram bem inteligentes. Alguns outros, não só inteligentes, mas com boa capacidade de ação. Todos eles muito representativos, mantinham num alto nível nosso apostolado, como eu desejava. Eram possibilidades de apostolado verdadeiramente colossais que se abriam, homens com full time para o apostolado e com possibilidades de ação muito grandes1353.

2. Fundação do mensário “Catolicismo” Daí veio a ideia de lançarmos um jornal e começarmos a expandi-lo pelo Brasil afora1354. Dom Mayer, mediante solicitação nossa, fundou o mensário Catolicismo, que ele nos entregou para dirigir e constituir o corpo de redatores. Era o Legionário aparecendo sob outro nome1355 e sustentando posições absolutamente idênticas 1356. Era editado em Campos e impresso em São Paulo1357. Catolicismo, entretanto, diferia do Legionário num ponto fundamental: este havia sido apenas um jornal; aquele, além de jornal, era um movimento1358. Tirávamos mais ou menos 5 mil exemplares. Para um jornal era muito pouco. Mas para um grupinho de pessoas poder dirigir-se todos os

1352 SD 4/11/72. 1353 Almoço EANS 10/4/87. 1354 Jantar EANS 9/4/87. 1355 SD 17/6/89. 1356 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1357 SD 17/6/89. 1358 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90.


375 meses a 5 mil leitores era um altofalantezinho que atingia o quarteirão1359, mas atingia. Começamos a mandá-lo para1360 assinantes do antigo Legionário e para simpatizantes espalhados pelo Brasil, que imediatamente começaram a assinar o Catolicismo 1361. Íamos também a várias Congregações Marianas por aí afora para apresentar o jornal.

Parte VII Viagens de 1950 e 1952 à Europa Capítulo I Planos e Intenções 1. Finalidade primeira: contatos com setores diretivos da Santa Sé No ano de 1950 fiz uma primeira viagem à Europa1362 que durou três meses 1363. Viajei em companhia do Dr. Pacheco Sales. Dr. Paulo Barros e Dr. Adolpho tinham me antecedido 1364. Dom Mayer nos alcançou em Paris e foi conosco depois para Roma1365. Nessa viagem de 1950, não nos acompanharam os da geração nova (ou seja, do grupo da Martim). Já na segunda viagem, de 1952, alguns desses mais jovens estavam mais amadurecidos, e ela foi feita com alguns deles. Quais os principais objetivos dessas viagens? Estava em nosso espírito a ideia de que Pio XII, como seus 1359 Jantar EANS 17/6/82. 1360 SD 17/6/89. 1361 SD 16/6/73. 1362 SD 17/6/89. 1363 SD 7/7/73. 1364 SD 28/7/73. 1365 SD 14/4/79 — Em carta ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, datada de 25 de março de 1950, Dr. Plinio traçava o programa de sua viagem: "Escrevo-lhe muito rapidamente para lhe comunicar que no dia 16 de abril devo partir para a Europa com três amigos, pousando em Madri no dia 18, com destino a Paris e finalmente Roma. Disponho de 4 dias de permanência na Espanha, durante os quais eu teria o maior empenho em me encontrar com V. Revma.".


376 antecessores, havia publicado encíclicas que freavam a Revolução em vários pontos. Nós, sentindo no Brasil toda a situação dramática descrita no Em defesa da Ação Católica, tínhamos visto que a Santa Sé nos dera aval pela nomeação de Dom Sigaud e de Dom Mayer como Bispos, e pela carta de louvor que eu recebera de Pio XII1366. Naquela época eu imaginava haver no Vaticano um ninho de contra-revolucionários colocado nos píncaros da humanidade 1367. A ideia era aproveitar alguns contatos epistolares que tínhamos travado na Europa a partir das indicações do Padre Mariaux nos anos 1940. E ver se nos era possível aproximar dos setores diretivos do Vaticano e conseguir da Santa Sé, para o mundo e para o Brasil, uma política mais definidamente contra-revolucionária, quer do ponto de vista da ortodoxia (para prevenir o progressismo que vinha nascendo), quer do ponto de vista da luta da direita contra a esquerda (para fazer avançar a Contra-Revolução no terreno temporal). De todos os objetivos, o que nos parecia mais concreto, mais palpável era o dos contatos com a Santa Sé. E nossas idas à Europa foram preparadas na intenção de fazermos de Roma — a Roma eterna dos mártires e dos santos — o pináculo de nossa viagem e, propriamente, o objetivo sumo 1368. Lá deveríamos procurar conhecer os contra-revolucionários do Vaticano, para colocá-los a par dos erros das correntes perniciosas que se haviam infiltrado no movimento católico no Brasil. E obter deles medidas pertinentes, conservando-me depois em contato com eles para a articulação de um movimento contra-revolucionário universal 1369.

2. Finalidade segunda: estreitar os laços com os movimentos contra-revolucionários da Europa Mas, para que fôssemos tomados a sério em Roma e nossa presença tivesse peso, pareceu-nos que deveríamos aparecer em Roma não só com as cartas do Padre Mariaux, mas com cartas de apresentação de todas as direitas europeias que não tivessem sido nazistas nem fascistas 1370. A este cálculo somava-se uma razão mais profunda..

1366 SD 22/3/80. 1367 SD 28/7/73. 1368 SD 22/3/80. 1369 SD 28/7/73. 1370 SD 22/3/80.


377 Como boa parte das minhas convicções eu devia à tradição que a minha família recebera de fontes europeias, eu pensava ser natural encontrar ali o foco dessas tradições ainda aceso, em pessoas capazes de ter o mesmo espírito que o nosso. E eu imaginava que o nosso grupo poderia se expandir muito mais na Europa do que no Brasil. Daí a minha segunda meta de encontrar no Velho Continente movimentos católicos, movimentos direitistas (excluídos naturalmente os nazistas e os fascistas) fiéis à tradição europeia, e que pudessem concordar conosco. E, dentro desses movimentos, ver se havia líderes de grande voo, de grande inteligência, de grande capacidade, com o mesmo pensamento que nós e com os quais pudéssemos articular uma coligação mundial das direitas, sob a direção desses líderes. Pois me parecia natural que na Europa estivessem os luzeiros capazes de dirigir o movimento contrarevolucionário universal. Então, eu procurava também esses líderes 1371. Resolvemos então começar a nossa viagem pela Espanha, tomando em consideração ser o mais católico dos países da Europa. Depois de tomar contato com os círculos espanhóis, passaríamos por Portugal, visitaríamos Fátima e depois iríamos à França para análogo trabalho. Como aqui no Brasil eu havia recebido um convite do Príncipe Alberto da Baviera para ir à Alemanha, teríamos contato também com os meios tradicionalistas alemães, inclusive com o pretendente ao trono da Áustria, o Arquiduque Otto de Habsburgo, que morava naquele tempo em Paris. Isto, antes de penetrarmos na Itália, de maneira a nos apresentarmos em Roma com a seleção dos contatos que fizéssemos, e todo o nosso jogo de xadrez guarnecido com todas as peças para travar a batalha final, que era a batalha romana1372. Foram portanto viagens de apostolado e comportavam muito trabalho e muita preocupação. Tudo foi muito pensado, muito refletido, e eu tomava notas meticulosas para depois não me esquecer1373.

3. Vassalo à procura de suserano Notem bem: eu não fui à Europa à procura de bases para liderar. Pelo contrário, se a minha viagem tivesse dado resultado, eu teria 1371 SD 28/7/73. 1372 SD 22/3/80. 1373 CSN 18/9/93.


378 vindo tendo por cima de nossas cabeças líderes. Líderes civis na esfera temporal, e líderes de alta categoria eclesiástica que pudessem nos dar uma diretriz. Isto foi o que fui procurar. Eu estava, portanto, como um vassalo à procura de suserano. E não como um suserano à procura de vassalos 1374. Fui como um peregrino à procura dos restos da Cristandade. Infelizmente, a nossa peregrinação deu resultados os mais pungentes, os mais desapontadores que se possa imaginar 1375.

Capítulo II Espanha 1. Carlistas, alfonsistas, movimentos católicos e personalidades Na Espanha, mantivemos contatos com próceres do movimento carlista e de algum modo também com os círculos alfonsistas. Os carlistas e os alfonsistas eram os que dividiam entre si o público monarquista da Espanha, público ainda muito forte. O pretendente carlista ao trono espanhol era o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma. Morava em Paris (creio que ele era proibido pela legislação franquista de ir à Espanha), e tinha como lugar-tenente um homem que nos meios tradicionalistas da América Latina era famoso: Don Manuel Fal Conde, um advogado da cidade de Sevilha. Depois, entramos em contato também com o público católico das associações religiosas.

2. Madri e San Sebastian Também tomei contato com Don Elias de Tejada Spínola, professor da Universidade de Salamanca, o qual eu havia conhecido no Brasil. Eu tinha ouvido falar também de Cristiandad, revista católica tradicionalista, que ficava a meio caminho entre o carlismo e o movimento especificamente católico1376.

1374 SD 28/7/73. 1375 Palavrinha EANS 11/6/82. 1376 SD 28/7/73.


379 * Quando Dom Sigaud veio de volta da Navarra, no navio ele travou amizade com um coronel do exército espanhol, chamado Manuel Barrera de Aguilar. Eu o procurei e mantive contato com ele em Madri. Fomos juntos a San Sebastián e ali participamos de uma reunião de carlistas.

3. Sevilha Fui também a Sevilha. Há um velho provérbio, creio que português: “Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”. É a própria e literal expressão da verdade. Sevilha é monumental! 1377 Dois monumentos muito importantes da cidade são a Catedral, com a famosa Torre da Giralda (uma torre ainda mourisca, de uma beleza extraordinária), e o Alcácer de Sevilha com seus jardins espantosos que, infelizmente, não tive tempo de visitar. A Giralda é uma torre colossal, muito alta, se não me engano tem mais de 80 metros de altura. Não é em escada, mas em rampa. Do lado de fora, a Giralda seria um paredão uniforme e monótono, sem graça, se os mouros não tivessem arranjado um jeito de abrir ali umas tantas janelinhas com desenhos em relevo, criando a impressão de tapete. Do lado de dentro a torre é feia. O que é bonito são as sucessivas visões da Catedral a alturas diversas, à medida que se sobe. Eu visitei tanto a Giralda como a Catedral, e andei pelo bairro velho de Sevilha onde morava Don Manuel Fal Conde. E no contato com esses monumentos, vi uma torre que toda a vida, desde menino, tive vontade de ver: a Torre do Ouro. É uma torre octogonal, tão bonita quanto esperava, refletindo-se dignamente no rio Guadalquivir. A cidade, apesar dos aspectos mouriscos, tem qualquer coisa de profundamente católica, fazendo uma síntese entre o católico e o mourisco. Mas, vendo-se a coisa mourisca, não se sente o mouro, mas o sevilhano. A cidade é “batizada” até onde pode ser, e católica mesmo no seu passado. Andando pelo bairro velho sentia-se alguma coisa do encanto do tempo antigo: junto com uma forma de pobreza-riqueza, um certo modo de 1377 SD 22/3/80.


380 ser da classe alta que também me pareceu encantador e que abria para mim horizontes novos. * Em Sevilha visitei Don Manuel Fal Conde, um homem grisalho, beirando os 60 anos, de estatura afidalgada, muito teso, muito ereto, cabelo cortado à escovinha, com olhos de andaluz, redondos e pretos, cor de pele um pouco dada ao moreno. No total, uma fisionomia atraente, um homem simpático, um pouco reservado, muito acolhedor, muito vivo, muito digno, muito amável. Uma amabilidade que não tinha nada daquele tipo de sorriso idiota e comercial de quem quer vender uma Electrolux, mas um sorriso de batalhador. Olhando de frente, fixando-me nos olhos, muito cavalheiresco, como quem diz: eu o respeito, me respeite. Eu apertei a mão dele com prazer1378. Conversamos longamente1379, disse a ele que ia a Paris e que talvez ali encontrasse o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma, então pretendente ao trono espanhol. E pedi uma apresentação para ele. Ele me respondeu que com todo o gosto, e me deu uma apresentação calorosa. Deu-me ainda uma apresentação para o Arquiduque Otto de Habsburgo.

4. Barcelona Fomos depois a Barcelona1380. Em uma Missa na igreja dos jesuítas, vi num altar um estojo muito bonito, com uma espada. Perguntei o que era, e a pessoa me respondeu com toda a simplicidade: “É a espada de Santo Inácio de Loyola quando ele era fidalgo”. Era, portanto, a famosa espada que ele tinha consagrado a Nossa Senhora no Santuário de Montserrat e que depois os jesuítas tinham conseguido. * A catedral de Barcelona é uma bonita catedral gótica. Iluminada de dentro durante a noite, de fora se veem os vitrais todos coloridos. É uma beleza. Na catedral de Barcelona há também um velho crucifixo, logo à direita de quem entra. Um Cristo até não muito bonito, mas de grande

1378 SD 29/3/80 e SD 28/7/73. 1379 SD 28/7/73. 1380 SD 29/3/80.


381 tamanho e meio torto. Perguntei: — Que Cristo é este? — É o Cristo que estava na nau capitânea de Dom João d’Áustria na Batalha de Lepanto. O movimento que o senhor o vê fazer foi devido ao seguinte, segundo uma piedosa tradição: na hora da batalha, uma bala ia atingir o Crucifixo; a imagem então se moveu, desviando da bala. Milagre que entusiasmou muitos combatentes. — Oooooooooooh! Outra coisa que é um encanto é uma casa que eles chamam Ayuntamiento, hoje ocupada pela Prefeitura. Toda construída de mármore branco, com pátios e perspectivas que dão a impressão de se estar imerso em plena feeria. Não estive em lugar nenhum em que a presença da Idade Média fosse mais carregada do que lá1381. Conheci em Barcelona um prato também maravilhoso: paella. É um prato com uma quantidade indefinida de arroz, azeite e toda espécie de frutos do mar. Como gosto muito de arroz, meu entusiasmo pela paella foi sem limites. Depois me levaram para ver, no cais, a reprodução fac-similar do Santa Maria, Pinta e Niña, os três naviozinhos com que Cristóvão Colombo descobriu a América: umas cascas de noz, sem conforto, sem tamanho, dir-se-ia sem estofo para enfrentar o mar! É a homenagem que se presta ali à coragem dos tripulantes, realmente extraordinária.

5. Entrevistas com o grupo de “Cristiandad” Visitamos também a sede da revista Cristiandad, que era editada em Barcelona por um grupo que tinha uma orientação bem parecida com a nossa. Ali tive contato com o Padre Ramón Orlandis i Despuig, jesuíta, aglutinador e diretor espiritual do grupo, um sacerdote bem idoso, alquebrado, curvo, mas com o olhar perfeitamente jovem, vivaz, prestando atenção em tudo 1382, inteligente, capaz, astuto, um bom padre1383. Ele era das ilhas Baleares, de uma família muito nobre, a tal ponto que um ramo da família se chamava Orlandis e Habsburgo, do tempo ainda em que os Habsburgos reinavam sobre a Espanha. Ele tinha sido contra-

1381 SD 28/7/73. 1382 SD 29/3/80. 1383 SD 25/8/73.


382 revolucionário a vida inteira1384. Ele foi logo falando de Teilhard de Chardin, e disse que falava contra porque é jesuíta. Cristiandad servia de instrumento ao Padre Orlandis para exercer uma ação profundamente sadia nas fileiras jesuíticas 1385. Confraternizamo-nos muito. Mas infelizmente dois ou três anos depois ele morreu.

6. Os alfonsistas: entrevista com Bultó Eu queria ter contato com um alfonsista — os quais desejam a restauração da linha de Alfonso XIII e não da linha de Don Carlos de Bourbon, príncipe das Astúrias — para conhecer a mentalidade que os movia. Apresentaram-me então um senhor cujo nome era Bultó, íntimo amigo de Don Juan de Borbon y Battenberg, pai do rei Juan Carlos. Homem muito fino, muito agradável, ele convidou-me para almoçar num clube de muita categoria, e via-se que tinha relações nesse clube. Dava-me a impressão de um gentil-homem realmente. Então, falamos longamente sobre os espanhóis da linha legitimista e do legitimismo espanhol 1386.

7. Cuenca: longa entrevista com o Cardeal Segura y Sáenz Na Espanha, apontaram-me como pessoa muito contrarevolucionária o Cardeal Pedro Segura y Sáenz*, Arcebispo de Sevilha. Disseram-me que era um homem comme il faut. E eu quis visitá-lo. * O Cardeal Segura nasceu em Carazo, Província de Burgos, no antigo reino de Castela, no dia 4 de dezembro de 1880 e faleceu no dia 8 de abril de 1957, em Madri, aos 76 anos.

Eu tinha uma carta de apresentação. Telefonei e me disseram que ele estava na cidade de Cuenca, que ficava a três ou quatro horas de Madri, e que me receberia às tantas horas. Tomei um automóvel de praça velho, com paralamas periclitantes. E fui sozinho a Cuenca, onde vi coisas encantadoras. Isto foi num sábado, dia 29 de julho de 1950. Cheguei mais ou menos às quatro horas da tarde. Tratava-se de saber onde era a casa do Cardeal. 1384 SD 29/3/80. 1385 Anotações 29/7/52. 1386 SD 29/3/80.


383 Desci e entrei em uma confeitaria para perguntar. E fiquei diante de um quadro como nunca imaginei. Em plena hora de trabalho, uma orquestra tocando a todo pano! E a confeitaria com grande número de homens jogando dominó, cada qual com a fisionomia de general dirigindo uma batalha: ocupadíssimos, entretenidíssimos e muito sérios. Perguntei sobre a casa do Cardeal e um homem me disse: — Suba aqui, desça lá. Chamei o meu chofer e lhe disse: “Tome nota desse caminho, porque não me cabe na cabeça”. Eles se entenderam e cheguei à casa do Cardeal. * O Cardeal mantinha todos os protocolos de antigamente. Fizeram-me entrar numa salinha de espera. Passados uns quinze minutos, tempo necessário para manter o visitante a uma respeitosa distância, ouço passos que descem a escada. E entra o Cardeal, homem já velho, devendo ter perto de 70 anos 1387. Ele era o tipo característico do espanhol. Parecia mais moço do que era. Não era anêmico, mas tinha uma tez pálida, na qual não se percebia o rubor do rosto. Olhos grandes, rosto um tanto comprido 1388, alto, seco, com um solidéu vermelho, vestido com toda a roupa própria de um Cardeal, portando um anel com um rubi lindíssimo. Eu gosto de admirar pedras e devorei o rubi com os olhos quando ele me estendeu a mão para cumprimentá-lo 1389. Sua voz não era de trovão, mas muito modulada, cheia de inflexões. Cortês, mas desses homens que diz o que quer e que vai falando logo 1390. Sentamo-nos e eu disse: — Tenho uma carta de Dom Geraldo de Proença Sigaud me apresentando a Vossa Eminência. Ele disse: “A ver”1391. Ele passou então a falar dos problemas da Espanha diretamente1392. 1387 SD 9/10/87. 1388 Almoço Rua Alagoas 5/6/82. 1389 SD 9/10/87. 1390 Almoço Rua Alagoas 5/6/82. 1391 SD 9/10/87. 1392 CSN 21/1/84.


384 Daí a pouco estávamos em conversa solta e em grande intimidade. Ele percebeu que eu era ultra antiprogressista e antimodernista. E começou a se abrir 1393. Seu programa era, evidentemente, de me abrir os olhos a respeito de mitos eclesiásticos e hierarcas. Ele do princípio ao fim não fez outra coisa senão procurar abrir-me os olhos 1394. Contou-me a longa história da perseguição que sofreu, pois fora expulso da Espanha pelos rojos (vermelhos). E contou-me também como ele teve de entestar com o Caudillo (Francisco Franco). Era bem o meu programa: nada de rojos, nada de caudilhos! 1395 * O enfrentamento com os rojos havia se dado no dia seguinte ao da proclamação da República em 1931. Ele estava em visita pastoral, quando um piquete de cavalaria o detém na estrada, o prende por 24 horas e o expulsa da Espanha sem dinheiro, sem breviário nem remédios. Começa então um ano de exílio na França: ele, sem dinheiro, rolando de diocese em diocese, sofrendo do mundo eclesiástico francês copiosas humilhações. Nas casas religiosas cobravam hospedagem dele, Cardeal da Santa Igreja Romana, Arcebispo de Toledo e Primaz da Espanha! Pio XI.

Ele contou-me que esse ano de exílio nessas condições deveu-se a

Logo que foi expulso, ele foi para Lourdes e pediu ordens ao Papa. Não recebeu resposta. Um mês depois, nova carta pedindo pelo menos auxílio financeiro, igualmente sem resposta. A certa altura, Monsenhor Maglione, Núncio em Paris, foi ter com ele para dizer que sua situação se normalizaria caso ele pedisse demissão da Sé de Toledo. Durante um ano ele resistiu. Ao cabo desse ano, estava ele em Sept-Fons, a famosa abadia trapista, e esteve mal à morte. Ali tiveram pena dele*. * O abade de Sept-Fons, nessa época, era Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-1935), o célebre autor do livro A alma de todo apostolado, cuja leitura, como vimos, marcou profundamente a vida de Dr. Plinio.

O médico diagnosticou a causa da doença: traumatismo moral. E 1393 SD 9/10/87. 1394 Almoço Rua Alagoas 5/6/82. 1395 SD 9/10/87.


385 escreveu pessoalmente a Pio XI, responsabilizando-o pela situação do Cardeal. Pio XI então se comoveu, pelo medo do escândalo, e convidou-o para ser Cardeal de Cúria. Restava um problema: como Cardeal de Cúria, ele deixava Toledo, mas por iniciativa própria. E o coitado, levado pela fome, concordou em princípio deixar Toledo, porque para ser Cardeal de Cúria não podia ser Arcebispo de uma diocese. Em Roma, ele é recebido na estação pelo Cardeal Pacelli e dois outros dignitários do Vaticano, que o acompanharam ao edifício de apartamentos dos Cardeais. E ali, logo na chegada, disseram-lhe que Pio XI lhe mandava dizer que desse uma entrevista à imprensa declarando que abandonara de espontânea vontade a arquidiocese de Toledo e o território espanhol. Resposta dele: — Cumprirei todas as ordens lícitas que o Papa me der, mas ele não pode me obrigar a pecar. O Papa sabe que isso é mentira, porque tem informação perfeita do ocorrido e não espere de mim que eu minta. * De vez em quando, o Papa se reunia com o Sacro Colégio e passavam juntos em revista os acontecimentos eclesiásticos e mundiais do tempo. Ele me contou que, numa dessas reuniões, Pio XI pronunciou um discurso contendo um magnífico elogio a ele, dizendo que era a joia do Sacro Colégio. Mas acrescentou que fora por livre vontade que o Cardeal pedira demissão da Arquidiocese de Toledo... 1396 Terminado o discurso, era do protocolo desfilar diante do Papa, Cardeal por Cardeal, para prestar homenagem. Quando o Cardeal Segura passou por Pio XI, o Papa lhe perguntou: — Eminência, gostou do discurso? Respondeu ele: — Exceto no ponto em que Vossa Santidade mentiu! — Eu menti? — Mentiu! Vossa Santidade declarou que pedi demissão, e Vossa

1396 Almoço Rua Alagoas 5/6/82 e Anotações 29/7/52.


386 Santidade sabe que eu não pedi demissão 1397. Pio XI deu uma risada e disse: — Vossa Eminência é sempre irredutível. * Em sua estada na Cúria, ele foi nomeado para todas as comissões cardinalícias, excetuadas as políticas. Começou então o regime de franqueza dele com Pio XI. Um exemplo. Na Congregação dos Ritos, ou dos Sacramentos, houve um caso gravíssimo a decidir. Pio XI mandou recado à Congregação de que queria que ela votasse de certo modo. Ele se levantou e formulou o protesto: — O Papa pode decidir sem nos consultar e pode fazer o contrário do que aconselhamos. O que ele não pode é forçar-nos a dar um mau conselho. Ele propôs então uma solução oposta à de Pio XI. Um Cardeal objetou: “A tese de Vossa Eminência seria válida no tempo de Pio X, não no tempo de Pio XI”. Resposta do Cardeal Segura: “Voto por Pio X”, que não estava canonizado. No dia seguinte, audiência com Pio XI: todos os Cardeais têm que prestar contas do voto decidido. Ele pede demissão da Púrpura por ver que estava prevalecendo o regime das conciliações. Pio XI recusa. Ele pede demissão da presidência da comissão, Pio XI recusa também. * Pio XI gabou-se diante dele de que nunca na vida estivera doente. O Cardeal Segura lhe disse, diante de outros: — Lamento profundamente. Vossa Santidade não tem a marca dos predestinados. Jesus”.

Pio XI diz: “Não, é uma proteção de Santa Teresinha do Menino O Cardeal Segura: — Com ela ou sem ela, ninguém muda a Teologia, e aqueles a

1397 SD 9/10/87.


387 quem Deus ama dá cedo ou tarde os sofrimentos físicos. Algum tempo depois, durante um retiro do Papa, ouve-se um estrondo por trás da cortina. O Papa cai desmaiado. Havia tido um enfarte de coração fortíssimo. O cardeal Segura então lhe manda um recado: “Parabéns a Vossa Santidade, porque agora tem o sinal dos predestinados”. O Papa mandou agradecer 1398. * Ele comentou que Pio XI tinha um gênio muito ruim, mas de um lado sentindo a morte chegar, e de outro lado com tirocínio, disse uma vez ao Cardeal Segura que ele era a única pessoa que lhe dizia a verdade. * O Geral dos Mercedários tinha um privilégio, dado por vários Papas, de conceder condecorações. Pio XI queria reservar só para o Vaticano o direito de condecorar. contra.

Instaurado o processo, o Cardeal Segura previne Pio XI que votaria Pio XI disse:

— Não faz mal, Vossa Eminência cumpra seu dever votando contra e eu cumprirei o meu, não tomando em consideração o seu voto. O Cardeal vota contra, apresentando uma tese de cem folhas datilografadas, provando efetivamente que os Papas haviam dado esse direito. Depois, houve uma audiência para explicar o voto vencido. Pio XI: “Vossa Eminência não me abalou com seu relatório, e não pense que estou disposto a mudar de orientação: suprimirei o direito”. O Cardeal: “Vossa Santidade pode fazer isto, mas lembre-se de que dará contas a Jesus Cristo, de quem é Vigário, sobre o acerto ou desacerto de sua medida. E aí, Santidade, não há apelação”. * Quando Mussolini fez um discurso no Senado, reduzindo a frangalhos o Tratado de Latrão, o Cardeal Segura disse a Pio XI que não havia remédio senão a ruptura completa com o fascismo e o nazismo. Pio XI: “Vossa Eminência é muito moço e não sabe que é preciso conciliar”. 1398 Almoço Rua Alagoas 5/6/82.


388 Mais tarde, Pio XI resolveu fazer a condenação do nazismo 1399. Nos seus últimos dias, como estava muito mal, pediu aos médicos mais 12 horas de vida para pronunciar um discurso que arrasaria com Mussolini. Os médicos disseram então que não dava mais tempo para isto*. * Pio XI veio a falecer na noite de 10 de fevereiro de 1939. Ele havia convocado a Roma todos os Bispos italianos, por ocasião do 10º aniversário da "reconciliação" com o Estado italiano. Estava programado para esses dias um importante discurso, preparado há meses, que seria o seu testamento espiritual e onde ele denunciava a violação dos Pactos de Latrão pelo governo fascista e a perseguição racial na Alemanha. Esse documento não foi divulgado.

* Palavras do Cardeal Segura na conversa comigo: “Quando fui transferido para Sevilha, Pio XI disse-me que, enquanto eu estava em Roma, ele não precisava se preocupar, porque sabia que eu sempre defenderia os interesses da Igreja. Depois de minha saída, não ficaria ninguém que se interessasse pela Igreja”. E, disse o Cardeal Segura, o Papa acentuou muito: “ninguém”. No total, ficou bem claro para mim que, apesar do “fraco” de Pio XI por ele, ele achava Pio XI um mau Papa, dizendo expressamente que foi o contrário de São Pio X. Ao longo da conversa ele me disse que era interessante saber tudo isso para se conhecer bem o Vaticano 1400. * Na época em que ele era Arcebispo de Sevilha, Franco mandou dizer, creio que na festa de São Fernando de Castela, que iria à catedral participar das comemorações. E queria ser tratado com o mesmo protocolo dos reis da Espanha, portanto que o recebessem no pórtico da igreja com o pálio, para ele entrar junto com o Cardeal. Isso equivalia ao Cardeal reconhecer Franco como uma espécie de rei de Espanha. E o Cardeal Segura disse que não. Se não me engano, Franco mandou recado de que se ele, Cardeal, não estivesse lá com o pálio, ele mandaria prendê-lo. O Cardeal disse: “É o que nós haveremos de ver”. Na hora da cerimônia, chega Franco com todos os batedores, automóveis, e aquela solenidade toda. Desce, vai falar com o Cardeal que o espera sem pálio e o cumprimenta.

1399 — A condenação ao nazismo e sua ideologia racista foi feita através da encíclica Mit brennender Sorge (Com profunda preocupação), de 14 de março de 1937. 1400 Almoço Rua Alagoas 5/6/82.


389 Ele pergunta: — Eminência, onde está o pálio para eu entrar? — Está guardado. — Mas eu disse a Vossa Eminência que só entro na igreja debaixo do pálio. entre.

— Então a conclusão é normal: não entre. Se só entra assim, não — Mas a questão é que eu tenho direito.

— Vossa Excelência não tem direito a não ser às honras de um Chefe de Estado interino. Vossa Excelência não é rei, nem lhe reconheço como rei. De maneira que, ou entra sem nada, apenas na minha companhia, ou não entra na catedral. Então Franco, que era galego, disse: “Esses castelhanos (o Cardeal era de Castela) são insuportáveis. Mas não tem remédio, vamos entrar”. E entrou comportadamente com o Cardeal 1401. * Depois de uma longa conversa, eu me despedi do Cardeal. Se não me trai a memória, duas horas inteiras de conversa. Saímos muito amigos. Alguns anos depois, veio a notícia da morte dele 1402.

8. Toledo: remanescentes do Alcácer Durante a Guerra Civil espanhola (1936 a 1939), o Alcácer de Toledo era uma fortaleza ocupada por espanhóis verdadeiramente heroicos que, junto com suas famílias, resistiram e não se entregaram. Os comunistas fizeram galerias subterrâneas por debaixo do Alcácer para fazêlo explodir, e deram prazo: “Se até tantas horas vocês não saírem, nós amanhã explodimos com o Alcácer”. E os que estavam no Alcácer ouviam embaixo, no subsolo, o barulho das picaretas e de outros instrumentos cavando o subsolo. Visitei este Alcácer, e mostraram-me o lugar, no claustro, onde as pessoas ouviam as pancadas dos comunistas preparando a explosão, enquanto se celebrava a Missa. Em determinado momento chegaram as tropas anticomunistas e salvaram o Alcácer, e os heróis puderam sair avivados e aclamados por todo o mundo. 1401 Palavrinha 11/9/94. 1402 SD 9/10/87.


390 Então perguntei1403 ao Coronel Barrera, que me acompanhava1404: — Não há uma associação de membros que pertenceram a essa epopeia do Alcácer? — Ah! sim, tem uma associação: uma irmandade que se reúne uma vez ao ano para celebrar uma Missa nesse lugar 1405. * Da viagem à Espanha ficou-me uma ideia: este povo é ainda tão católico, vale tanto e merece tanto que, apesar da decadência das coisas, o primeiro lugar da Europa onde eu procurarei fundar um grupo é nesse país. Foi o resultado da viagem à Espanha 1406.

Capítulo III Portugal 1. O pai de Jacinta e Francisco Da viagem a Portugal, lembro-me de ter conhecido um homem rústico mas respeitável. Foi num cemiteriozinho de Aljustrel: um trabalhador manual, que de tanto mexer e remexer a terra a sua pele parecia de couro. Olhos pequenos, estatura de média para baixa, vivaz apesar de idoso, apoiado num bordão e muito falante. Não era nada mais nada menos do que pai de Jacinta e Francisco*. * O bom homem chamava-se Manuel Pedro Marto (1873-1957).

Usava um gorro enorme, do estilo da zona, que descia até quase a metade do peito. O seu bordão era um pedaço de pau cortado de alguma árvore. Esse homem tinha alma! Vi nele uma certa forma de alegria no enfrentar a vida rude, que é um dos traços de alma do português. A naturalidade com o rude, a alegria no rude, a saúde dentro do rude e o tamancão davam um pouco a ideia da grandeza de Vasco de Gama. Eu fiquei observando o “ti” Marto conversar. Eles não dizem “tio”, mas “ti”. Ele me falava do cemitério, da hora que fecha, umas coisas 1403 SD 30/10/94. 1404 Chá 5/7/92. 1405 SD 30/10/94. 1406 SD 29/3/80.


391 dessas. E eu me deleitando com o entusiasmo com que ele falava dessas pequenas banalidades 1407.

2. Irmã Lúcia Estive com a Irmã Lúcia no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra. Dela só vi uma parte do rosto. Estava presente o Arcebispo de Coimbra, a quem eu havia pedido licença para visitá-la. Antes de ela aparecer, ele exigiu de mim um compromisso de nada perguntar sobre as visões. Eu não pude senão pedir orações, dizer-lhe três ou quatro palavras e tudo ficou encerrado por aí 1408.

3. Braga Todos nós já ouvimos a expressão: “Velha como a Sé de Braga”. Quando eu estive nesta cidade (lembro-me que fui lá com o Dr. Paulo Barros e Dr. Adolpho), eu quis ver a Sé de Braga1409. Na casa do Arcebispo havia umas chinoiseries (porcelanas chinesas) trazidas pelos navegantes portugueses, mas tão bonitas e de uma superior qualidade, que eu quase perguntei a ele se ele me vendia uma daquelas porcelanas. Mas achei que ficaria muito feio e não perguntei 1410.

Capítulo IV França 1. Segunda pátria de todos os homens Parti depois para a França. A viagem que fiz à França era a que me dava mais esperanças. As razões dessas esperanças se prendiam a vários motivos 1411. Churchill, num trecho das memórias dele, fala a respeito da França com aquela admiração comovida e fervorosa com que ele em geral se referia a essa nação. Ele então salienta tratar-se de um país dividido em 1407 CSN 20/10/84. 1408 SD 31/3/73. 1409 RR 19/11/88. 1410 Despacho com os franceses 31/7/90. 1411 SD 20/10/73.


392 dois por um sulco de sangue que não secou, e que é o sangue vertido na Revolução Francesa. E enquanto esse sangue não secasse, a França não poderia ser um país unido 1412. É onde a luta entre revolucionários e contra-revolucionários ainda é forte. E eu esperava encontrar ali o maior número de contra-revolucionários de minha viagem. Eu penso da França o que São Pio X, que não era francês, escreveu sobre ela: que o povo francês foi galardoado por Deus com os maiores benefícios, com as maiores graças, com as maiores bênçãos. E há realmente no gênio francês, na cultura francesa qualquer coisa que faz da França o ponto de referência do pensamento humano. Assim como havia entre os povos antigos o povo judaico, e em função dele é que se desenrolava toda a ação da Providência na história da Antiguidade, assim também há, depois da Redenção, um povo predileto. Esse povo é o francês. É o que eu penso da França. Alguém disse que é a segunda pátria de todos os homens, a partir do momento em que eles conheçam a cultura francesa e o papel da França na História*1413. * São Pio X, por exemplo, teve as seguintes palavras, que ele põe nos lábios de Nosso Senhor dirigindo-se à França: “Levanta-te, lava as manchas que te desfiguraram, desperta em teu seio os sentimentos adormecidos e o pacto da nossa aliança, e vai, filha primogênita da Igreja, nação predestinada, vaso de eleição, vai levar, como no passado, meu nome diante de todos os povos e de todos os reis da terra" (Alocução consistorial Vi ringrazio de 29 de novembro de 1911).

2. Abbé Luc Lefebvre e a “Pensée catholique” Na França, eu possuía várias apresentações, quer para o mundo eclesiástico, quer para o mundo civil 1414. A primeira pessoa que fui visitar foi o Abbé Luc Lefebvre. Ele era o diretor de uma excelente revista francesa de direita, chamada Pensée Catholique. Revista muito interessante, altamente intelectualizada. Trazia artigos de Teologia e de Filosofia muito bem feitos, atacando de frente o que já era a antecâmara do progressismo. Uma revista realmente de primeira classe. Os artigos do Abbé Luc Lefebvre, além de serem muito sólidos do 1412 RR 21/9/92. 1413 SD 20/10/73. 1414 SD 28/7/73.


393 ponto de vista teológico, eram muito engraçados. Ele tinha uma qualidade que o francês chama verve1415. Como já tínhamos certa correspondência com ele, quando cheguei a Paris eu lhe telefonei. Atendeu uma voz: “Alô, ici l’Abbé Luc Lefebvre”. Eu respondi no mesmo tom: “Aqui, Plinio Corrêa de Oliveira”. Paris?

Ele: Oh! bonjour, M. le professeur. Desde quando o senhor está em

Combinamos encontro na casa dele, num bairro que tinha um lindo nome: Neuilly-sur-Seine. Toco a campainha e abre a porta um padre vestido de batina, cabelo louro escovinha, com um topetinho próprio ao ataque. Rosto comprido e, apesar de já velho, ainda bem corado, rosado, com dois olhos azuis inteligentes. Mas o grande papel na fisionomia dele era o nariz monumental, não por ser grande mas pela forma, gênero nariz grego, que a certa altura fazia uma depressão e começava a crescer, formando uma ponta arredondada: uma coisa totalmente sui generis. Tinha-se a impressão de que a inteligência escorria dos olhos ao longo desse nariz, e que derivava para os lábios em palavras de vibração, de vida e de interesse. * Ele recebeu-me em seu escritório, onde havia uma escrivaninha, uma cadeira giratória e várias estantes com livros. Eu o estava achando um homem prodigiosamente interessante. A certa altura ele se levantou para pegar um livro e tomou uma bengalinha em forma de T, na qual se apoiava: “Isso é por causa de um ferimento que eu recebi no campo de batalha durante a I Guerra Mundial” 1416. Depois dessa guerra, ele exerceu o seu ministério sacerdotal, estudou muito e tornou-se um teólogo e escritor verdadeiramente de mão cheia. Fez muitas relações em todo o alto meio eclesiástico francês e romano, e uma boa parte de seus estudos teológicos ele fez em Roma1417. Almoçamos e jantamos várias vezes juntos. E verifiquei que o homem era muito conhecido em Paris: em todos os restaurantes onde ele ia, vinham pessoas cumprimentá-lo e exprimir solidariedade1418. Nas conversas ele contava fatos do tempo em que era seminarista 1415 SD 20/10/73. 1416 SD 26/4/80. 1417 SD 20/10/73. 1418 SD 26/4/80.


394 em Roma, histórias de São Pio X, de Pio XI, de Pio XII, histórias dos bastidores da vida religiosa francesa. Ele falava aos borbotões e conhecia tudo isso perfeitamente. * Ele havia montado uma livraria direitista, chamada Livraria Lefebvre, próxima ao bairro universitário de Paris. E no momento em que a direita francesa estava completamente achatada, ele, com algum risco para si, continuava com a sua bandeira desfraldada. A revista, a livraria e a organização dele eram as que mais lutavam contra o progressismo e contra o esquerdismo que ia avançando. E ele nos fez conhecer algumas relações de fato interessantes.

3. Duque de Lévis-Mirepoix Um amigo meu francês, o Conde Regis René de Coniac, levou-me para visitar um dos mais altos nobres da França, presidente da Associação dos Nobres, o Duque de Lévis-Mirepoix. Alto, seco, inteligente, o rosto dele parecia um castão de bengala. Era membro da Academia Francesa de Letras. Recebeu-me com aquela grande cortesia antiga e convidou-me para fazer uma tournée por vários castelos da França. Mas não pude aceitar e muito amavelmente recusei o convite, que teria sido interessante1419.

4. Com o Almirante Auphan Outro personagem que visitei foi um almirante bretão, com o qual tive uma longa conversa: o Almirante Gabriel Auphan. Ele fora Ministro da Marinha de Pétain. Durante a guerra teve um papel saliente, inclusive no afundamento da esquadra francesa em Toulon*. * Por ordem dele, enquanto Secretário de Estado da Marinha, dois almirantes de Toulon, André Marquis e Jean de Laborde, fizeram ir a pique, na noite de 26 para 27 de novembro de 1942, a frota de guerra ali ancorada, diante da notícia de que os alemães preparavam um golpe de mão para se assenhorear dos vasos de guerra franceses. Enquanto Ministro da Marinha do governo Vichy fez, juntamente com o General Weygand, uma oposição tenaz à política de colaboração com o governo nazista alemão.

A esquadra de guerra francesa era de primeira ordem. Se ela ficasse do lado dos alemães, eles podiam intentar o desembarque na Inglaterra. Se, pelo contrário, ela ficasse do lado da Inglaterra, a Inglaterra teria meios de reforçar o seu desembarque na França e de pôr os nazistas para fora.

1419 SD 20/10/73.


395 Os chefes da Marinha estavam na maior desorientação, não sabendo qual seria o dever deles: se aderir a Pétain, que havia tomado o poder em Paris, ou aderir a um governículo que se formou em Bordeaux. Então, o Ministério da Marinha, portanto o Almirante Auphan, ordenou que a Marinha fizesse a destruição de seus vasos de guerra e os pusesse a pique, caso ameaçados de passar para mãos estrangeiras 1420. Ele era tido como um dos chefes da direita francesa1421.

5. Entrevista com Monsenhor Beaussart Entre os contatos que me marcaram mais a memória cito o Arcebispo Coadjutor de Paris, Monsenhor Roger Beaussart. O Arcebispo de Paris tinha uma tendência mais para a esquerda. Este Monsenhor Beaussart era de direita 1422 e amigo do Abbé Luc Lefebvre. Já entrando na velhice e muito doente, morava perto da Catedral de Notre Dame, num castelinho de pedra que era a casa paroquial da catedral. O castelinho do lado de fora era um mimo, e o arranjo interno um encanto: veludos framboise, lâmpadas de cristal, tudo muito bem arranjado. Dentro poderia parecer quase uma casa de bonecas. Monsenhor Beaussart era um homem alto 1423, combativo1424, enérgico; era desses franceses possantes, voz de estentor. Usava bengala por causa da idade, e batia-a no chão quando fazia comentário de alguém com quem não estivesse de acordo. E rugia todas as verdades a respeito de toda espécie de coisas 1425. Recebeu-nos de braços abertos, ficou um grande amigo nosso. Queria que levássemos até o Papa Pio XII queixas a respeito do que acontecia no mundo religioso francês. Mas não podíamos falar sobre assuntos franceses no Vaticano. De maneira que tiramos amavelmente o corpo, não entramos na questão 1426. O recado que ele nos pediu para dar a Pio XII eu prefiro não repetir, de tal maneira era um recado ardido. Ele estava muito em desacordo com as concessões 1427.

1420 SD 26/4/80. 1421 Jantar EANS 7/6/82. 1422 SD 28/7/73. 1423 SD 20/10/73. 1424 SD 28/7/73. 1425 SD 20/10/73. 1426 SD 28/7/73. 1427 SD 20/10/73.


396

6. Conde de “X” e o plano da Europa unida “X”

1428

Na sala de espera desse Monsenhor Beaussart conheci um Conde de .

Este senhor era da Nobreza francesa, de uma velha família de origem protestante, calvinista, mas que com o passar do tempo e as boas dragonadas de Luís XIV, tomou juízo e voltou para a verdadeira fé. Ele se apresentava a mim como católico praticante e como grande amigo de Monsenhor Beaussart. Teria naquele tempo perto de 75 anos e eu 42 anos. Feitas as apresentações, ele manifestou o desejo de me conhecer mais de perto e convidou-me para almoçar no Automóvel Clube de Paris, ambiente muito fino, mas servindo um almoço plutôt medíocre. Ele, um homem muito agradável de trato. Como de costume, quando dois homens se encontram por razões de negócio, ou por razões de doutrina, de ideologia ou política, depois de se sentarem, observam um pouco o ambiente, encomendam o menu e os vinhos, e a conversa insensivelmente passa para os assuntos sérios. Ele me fez elogios de Pio XII (eu ouvira de Monsenhor Beaussart comentários bem diferentes). E quis contar-me coisas da França e da Europa. Fez também muitos elogios genéricos do Arquiduque Otto de Habsburgo: “Homem muito inteligente, capaz”. Só faltou dizer-me que Otto era de muito boa família... A conversa não parecia conduzir a grande coisa, quando de repente ele me disse1429: — Bom, Professor, o senhor com certeza, como líder católico, quer ganhar o seu tempo. Eu concordei enfaticamente . — E quer saber o que vai se passar. Vinha como numa bandeja. Então respondi: — Sim, claro. Ele então me fez uma descrição do que seria a política de aproximação entre as esquerdas e as direitas nos próximos decênios, a qual ele descrevia entusiasticamente, apresentando-a como uma coisa muito boa que deveria se dar. 1428 SD 28/7/73. 1429 SD 14/6/80.


397 Foi uma exposição fluente, que durou mais ou menos uns quarenta e cinco minutos, em que ele pôs todas as cartas sobre a mesa1430. — Sabe, professor, a Europa está mudando de um modo como ninguém imagina. Em vez de caminhar para uma dilaceração entre as correntes que a dividem, ela, pelo contrário, caminha para uma síntese. Está sendo preparada uma Europa Unida, cujo centro será provavelmente Estrasburgo, a cidade carolíngea. E continuou: — Está também em gestação um Parlamento da Europa; e, depois do Parlamento, está preparado um governo da Europa. Esse Parlamento e esse governo farão desaparecer completamente as diversidades nacionais. Vão ser eliminadas as fronteiras alfandegárias, de maneira que de um país para outro se poderá fazer exportação de mercadorias inteiramente à vontade, sem impostos, sem alfândegas nem taxas. A Europa terá, portanto, um só mercado consumidor, uma só indústria e um só comércio geral. Ainda dentro dessa confidência, ele acrescentou: — No interior dos países entrarão em composição todas as correntes, desde o partido comunista até os monarquistas, desde as mais moderadas até as mais radicais e intransigentes 1431. As esquerdas e as direitas vão convergir 1432. E neste Parlamento da Europa Unida haverá representantes de todas as classes sociais, representantes dos industriais, representantes dos sindicatos operários, especialistas e sumidades que exprimirão todos os valores da Europa1433. E afirmou uma coisa surpreendente: — Os próprios príncipes das casas reais vão colaborar para isso. No Conselho da Europa, eles vão representar a tradição. Outros representarão o dinheiro, e outros ainda representarão a cultura e assim por diante. E esse Conselho vai levar a Europa à completa ligação com a Rússia1434. E concluiu assim: — Vai assim se abrir uma nova possibilidade para os componentes das casas imperiais e reais, hoje destituídas. Eles não se tornarão monarcas, pois essa época histórica cessou. Mas ficarão como 1430 SD 28/7/73. 1431 SD 14/6/80. 1432 SD 28/7/73. 1433 SD 14/6/80. 1434 SD 28/7/73.


398 representantes da tradição, enquanto um dos valores da Europa. As casas reais e a antiga Nobreza vão também elas mandar seus deputados para o parlamento de Estrasburgo. E o senhor verá sentado, lado a lado, na mesma bancada, o Arquiduque Otto de Habsburgo e o presidente de um sindicato. E a Europa inteira, desde a sua mais antiga tradição quase carolíngea, até sua expressão mais moderna de extrema esquerda, toda reconciliada, caminhará no mesmo rumo. Ouvi tudo aquilo sem fazer o menor comentário. Ouvi com um ar de surpresa que velava o meu espanto e a minha completa falta de admiração por esse plano 1435. Na hora da partida, eu agradeci o almoço, dizendo que tinha sido muito interessante, muito instrutivo, mas sem dizer uma palavra que significasse aprovação àquele plano. Cumprimentamo-nos e ele saiu-se com esta: — Bom, Professor, eu sei que o senhor está de partida para Roma e seria necessário que conhecesse essas coisas antes de abordar um centro internacional tão importante quanto a Cidade Eterna. Aqui está meu cartão de visita. Procure-me na volta, porque então será a outra parte de sua viagem1436. E inclinando-se para o meu ouvido disse baixinho: “Vou então acompanhá-lo até as melhores casas de perdição, e aí o senhor poderá conhecer as verdadeiras ‘filles de Paris’”. Isto foi dito na hora de apertar a mão para a despedida. Soltei a mão dele, disse um “até logo” seco 1437 e amarrei a cara. E ele percebeu que eu havia fechado a cortina 1438. Ele foi para uma direção e eu fui para outra e nunca mais nos vimos. Esse homem sabia perfeitamente que eu era um católico praticante, de comunhão diária. Sabia de meu passado católico, de minha condição de escritor e jornalista católico. Como podia ele imaginar que pudesse me agradar um oferecimento infame daqueles? Diante de coisas dessas, e depois de alguns desapontamentos que eu tivera na Espanha, fiquei com a sensação desagradável de estar diante de uma parede que eu esperava ser de um probo granito resistente, e que de repente se transforma em uma parede de papelão, da qual saíam vermes e

1435 SD 14/6/80. 1436 SD 28/7/73. 1437 SD 14/6/80. 1438 SD 28/7/73.


399 podridão. Quem era essa gente?1439

7. Visita ao Arquiduque Otto de Habsburgo Eu possuía duas cartas de apresentação para o Arquiduque Otto: uma do Príncipe Dom Pedro Henrique e outra de Don Manuel Fal Conde. Mandei levar essas cartas ao castelo de Clairefontaine, onde morava o Arquiduque Otto, acompanhadas de um cartão perguntando quando ele poderia dar-me uma audiência. Telefonei depois e ele mesmo veio ao telefone, falando um francês excelente e com um bonito acento. Eu disse que gostaria muito de conhecêlo pessoalmente e perguntei quando viria a Paris. Ele então me convidou para almoçar com ele em Clairefontaine, onde ficaríamos mais à vontade. Ele marcou a data, desligamos e eu fui a Clairefontaine no dia combinado*. * A visita se deu no dia 17 de junho de 1952. Clairefontaine foi residência de exílio dos Habsbourg, inclusive da Imperatriz Zita, entre 1950 e 1953.

O castelo era todo de pedra, mas não medieval. Sua construção data do Ancien Régime. Bonito, digno, bem arranjado, possuía bons móveis, andar térreo com portas-janela em semiarcos muito altos dando diretamente para o pátio, e grandes cortinas. Nada era de grande luxo, mas tudo perfeitamente digno para um príncipe exilado. Toco a campainha, abrem a porta e eu entro no salão. Nesse salão havia um grande quadro do Imperador Carlos da Áustria-Hungria (pai do Arquiduque Otto), vestido com o traje de coroação, tendo na cabeça a coroa de rei da Hungria e o cetro na mão. Espero alguns minutos, entra o Arquiduque Otto. Era um homem esbelto, alto, muito amável, muito agradável, fascinante em todo o seu modo de ser. Manifestamente uma pessoa da Providência feita para grandes coisas. Era formado pela Sorbonne, com vários cursos superiores e famoso por sua inteligência. Foi um dos homens mais inteligentes que eu tenha conhecido. Um espírito luminoso, penetrante, compreendendo facilmente as coisas e sobretudo dotado de muita facilidade para estabelecer interrelações entre os vários temas, e percebendo, logo nas primeiras palavras, aonde o seu interlocutor queria chegar. Um interlocutor de mão cheia, com quem era agradável conversar. Muito fino, mas de uma finura que trazia o encanto incomparável 1439 SD 14/6/80.


400 das maneiras transcendentalmente finas da Nobreza. Ao mesmo tempo simplicíssimo, entretanto sabendo perfeitamente quem ele era. Nada de mais despretensioso do que ele, nada de mais afável, colocando a pessoa à vontade, sem que aparecesse o desejo de assim fazer. Porque esse desejo poderia dar o ar de um ato de compaixão. Ele era aberto mesmo em seu trato. Exprimia-se em um francês fluente, muito claro, muito elegante. Verdadeiramente tinha o physique de rôle do que deveria ser. Conversamos a respeito de vários temas, de política e outros. E ele contando fatos curiosos da vida dele, inclusive dizendo que tinha conhecido o Churchill. Perguntei-lhe a impressão que tivera dele. Ele disse: — Professor, o senhor imagine encontrar de repente um rabanete de um tamanho imenso, mas com todas as formas de um rabanete comum: o senhor diria que é um fenômeno da natureza. Assim é o Churchill. O Churchill está para o comum dos homens como esse rabanete estaria para os rabanetes correntes. É um homem colossal, é um fenômeno da natureza, uma superinteligência, supercultura, e com o dom de fascinar. Eu o ouvia falar e pensava com meus botões. “É verdade, mas o senhor não fica atrás, porque tem o dom da tradição, e um certo encanto indefinido que os charmes dinásticos comunicam às pessoas e que paira acima de tudo”1440. A certa altura da conversa, ele me fez os maiores elogios de Francisco Franco. E me disse que Franco estava dando uma educação tão esplêndida ao Príncipe das Astúrias, que correspondia exatamente à educação que ele, Otto, gostaria de dar a seu próprio filho 1441. À força de conversar com ele, acabei percebendo que ele se reputava o pretendente ao trono da esquerda e da direita europeias. Quer dizer, agradavam a ele os monarquistas de esquerda, que viam a possibilidade de uma composição, ou seja, de uma monarquia liberaldemocrática representativa, governando sobre uma sociedade burguesa. E demonstrou também pouca atração pela nobreza enquanto nobreza, e muita admiração pelo mundo comercial e industrial, que naquele tempo estava chegando ao seu oitavo ou décimo auge. Ele todo confluía para a ideia de uma longa época de paz, na qual 1440 SD 14/6/80 e SD 27/10/73. 1441 Despachinho 13/6/88.


401 tratava-se de ele se inserir, com a nota não tanto de um líder austríaco, mas de um líder mundial. E dado que ele era o mais alto representante de uma Casa que tinha liderado a Europa − porque o Sacro Império Romano Alemão era a liderança da Europa, e isto no tempo em que a Europa liderava o mundo − ele representava algo para os homens conservadores do mundo inteiro e não apenas os da Áustria, sem esquecer que ele era o pretendente ao trono austríaco e que tinha na Áustria uma base política séria. Isto, acrescido ao seu valor pessoal, faria dele um personagem mundial, representante não se sabe bem onde, mas pelo menos junto ao setor de opinião pública das direitas do mundo inteiro. Ele certamente imaginava que, sendo eu do continente sulamericano, ele deveria apresentar um direitismo temperado com um molho da América do Norte. Então transmitiu de si a visão de um pretendente que, se por uma circunstância inesperada fosse eleito presidente da República ou imperador da América do Norte, conservaria tudo tal qual estava, com uma lenta deflexão gradual para a esquerda. Foi a impressão que tive nesse contato. Ele não me perguntou o que eu pensava a respeito do que ele dizia. E não entrei em discussão com ele. Assim, a conversa correu cordialmente, agradavelmente, mas sempre com essa nota de ressalva1442. A certa altura entrou a esposa, a Princesa Regina de SaxeMeiningen, pertencente a uma daquelas antigas casas soberanas de pequenos Estados alemães, e cuja aparência era de pessoa inteiramente digna de estar casada com ele. Dama muito jovem ainda, e de aspecto régio magnífico! Era uma princesa que poderíamos ver descer, num conto de fadas, de uma carruagem. Uma princesa, enfim, que estaria bem num traje de princesa medieval. Delicada, muito atenciosa para com ele, embora fosse sua esposa, tratando-o discretamente como uma imperatriz trata um imperador. Em relação a mim ela se mostrou muito amável, muito gentil. E passamos para a sala de jantar, onde a conversa continuou. Terminado o almoço, voltamos para o salão e conversamos um pouco mais. Depois levantei-me, ele me acompanhou até o portão. Estava terminado meu contato com o arquiduque Otto de Habsburgo. 1442 SD 14/6/80 — O Professor Roberto de Mattei diz em sua obra biográfica de Plinio Corrêa de Oliveira, O Cruzado do Século XX, que o Arquiduque Otto de Habsburgo “pelas suas opções políticas acabou por decepcionar as esperanças de muitos contra-revolucionários”.


402

8. Conversa com o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma Digo agora uma palavra dos meus dois longos encontros com o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma, tio do Arquiduque Otto, e irmão da Imperatriz Zita, a qual era viúva do Imperador Carlos da Áustria. O primeiro encontro com ele foi em Paris*. * Ele era Duque de Parma e Piacenza, por isso chamado Francisco Xavier de Borbón y Parma de Bragança (1889-1977). Foi o chefe da Casa de BourbonParma e pretendente carlista ao trono de Espanha entre 1952-1975. Participou da Primeira Grande Guerra como oficial de artilharia do exército belga, combatendo nas frentes belga, francesa e inglesa. Igualmente como coronel de artilharia belga, lutou contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, sendo preso na França pela Gestapo por ter participado da Resistência. Ficou encarcerado em Clermont-Ferrand, sendo depois transferido sucessivamente para o campo de extermínio SchirmeckNatzweiler na Alsácia, depois para Dachau e por fim Prax, no Tirol, onde foi libertado em 1945 pelas tropas norte-americanas. Após uma série de vaivéns políticos ligados ao trono da Espanha, foi expulso do país pelo caudillo Francisco Franco. Em 1975 abdicou em favor de seu filho, Carlos Hugo de Bourbon-Parma, vindo a falecer na Suiça dois anos depois, à idade de 87 anos.

Era uma personalidade que tinha passado pelas mais diversas vicissitudes e eu já tinha lido muito a seu respeito e de seus dois irmãos, mais célebres do que ele: o Príncipe Sixto de Bourbon-Parma e a imperatriz Zita, da Áustria. O Príncipe Sixto, o mais velho, tinha ideias direitistas e por causa disso era odiado pela esquerda francesa. Xavier e Sixto haviam participado de uma das jogadas políticas mais importantes da I Guerra Mundial. A Áustria era aliada da Alemanha contra a França e a Inglaterra. E quando a Alemanha começou a perder a guerra, a Imperatriz Zita julgou necessário salvar o trono dos Habsburgos da destruição. Ela chamou os seus dois irmãos, Sixto e Xavier, e incumbiu-os de irem secretamente à França propor ao governo do presidente Poincaré uma paz em separado. O pivô das negociações era o Príncipe Sixto. A proposta foi levada a Georges Clemenceau, então presidente do Conselho de Ministros da França. Era tão vantajosa para a França, que Clemenceau teve que fingir adesão à proposta e escreveu encaminhando os dois príncipes para o Rei da Inglaterra, Jorge V. Eles de fato foram recebidos por Jorge V e pela Queen Mary, e expuseram a tal proposta. Jorge V gostou muito e o plano começou a ser realizado nos bastidores.


403 Mas a certa altura o plano se divulgou. Ondas de estudantes esquerdistas saíram pelas ruas de Viena vaiando o Príncipe Sixto com o refrão “Sixtus, das ist du”, quer dizer, “Sixto, quem é você”, o seu plano foi divulgado. Hoje os historiadores estão de acordo que foi uma verdadeira tragédia o fracasso dessa proposta, porque a Europa não teria o nazismo se o plano dos Príncipes Sixto e Xavier tivesse sido levado a bom termo. Morreu o Príncipe Sixto, ficou só o Príncipe Xavier, e o Príncipe Xavier era o representante de todas as tradições e o pretendente carlista ao trono da Espanha. * Eu tinha uma carta do chefe carlista espanhol, Don Manuel Fal Conde, apresentando-me a ele. Telefonei e ele mandou dizer-me que viria me visitar. Quando ele chegou ao hotel, o porteiro o anunciou com a maior naturalidade. Desci, levei-o para um salão isolado e iniciamos a nossa conversa. Ele me contou fatos da vida dele e eu contei um pouco da minha. Ele tinha participado de acontecimentos da história universal e eu tinha uma certa participação na história da Igreja no Brasil. Um dos fatos pungentes que ele me narrou foi sua prisão em campos de concentração nazista, onde teve uma inflamação dentro do ouvido que lhe trazia uma dor terrível e deitava pus. Por causa, disto foi recolhido na enfermaria. Então ele me narrou esta cena lancinante. Ele estava gemendo à noite na enfermaria e não havia médico alemão que o tratasse, quando se aproximou dele um prisioneiro judeu e, falando bem baixinho, disse: — Esta sua inflamação, do jeito que está, pode resultar em gangrena e o senhor morrer. A saída é lhe fazer um furo com uma tesourinha, que eu desinfetarei em uma vela às ocultas das autoridades. É a única possibilidade de viver. Mas não tenho anestésico e terei que furar fundo. Se Vossa Alteza tem a resistência de não dar um grito nem gemer até ao fim da noite, então eu faço a operação. Se Vossa Alteza não me garantir isto, eu não poderei fazer, pois eu não só morrerei, mas um mundo de pessoas a quem eu faço bem aqui ficará privada de meu auxílio. Vossa Alteza aceita ou não aceita? Ele disse: “Aceito, pode fazer”. Ele: “Não basta, de manhã Vossa Alteza tem que fingir que passou


404 bem a noite e cumprir o dia normal, porque do contrário desconfiam de qualquer coisa”. Ele aceitou. Disse-me que foi uma coisa terrível. Ele pôs a ponta do travesseiro dentro da boca e a encheu completamente, de maneira a não escapar um só gemido. E o médico trabalhou dentro do ouvido dele, extirpando o que era preciso extirpar, e ele lutando contra a dor, sem gemer, sem anestésico, até a luz começar de manhã a filtrar pela janela. * Quando chegou a minha vez de falar, pensei com meus botões: “Em vez de falar de meus atos, para ele saber quem eu sou, vou falar de nossas ideias”. E desenvolvi para ele aquilo que futuramente seria a tese do livro Revolução e Contra-Revolução. Em certo momento da exposição, ele me disse: — Sou obrigado a interromper, porque tenho um compromisso para a hora do jantar. Convidei-o para jantar e ele disse que não, por causa desse compromisso, e acrescentou: — Se o senhor permitir, depois do jantar volto, porque eu queria que o senhor acabasse a sua exposição. Às horas tantas ele apareceu e continuamos a conversar. Foi uma conversa de umas cinco-seis horas ao todo. Ele me ouvia atentamente. E na saída ele me apertou a mão e disse: — Que pena eu não ter conhecido o senhor antes! Muitas coisas se teriam passado de modo diferente. * Como ele ia a Roma, marcamos um encontro no apartamento da Duquesa de Sorrento Bracciano. Mas tive a oportunidade de dizer a ele o seguinte: — Príncipe, permita-me dizer-lhe uma coisa. Sou da América do Sul e portanto não conheço a Europa como Vossa Alteza. Mas tenho muito receio de que Vossa Alteza, dentro de pouco tempo, seja sabotado no Vaticano e não consiga mais nenhuma espécie de audiência e de entrada, por causa do progressismo que vai entrando. Ele não tinha ideia do problema. E nos despedimos. *


405 Viajo pela Alemanha, por uma porção de outros lugares, e por fim volto a Roma. Procuro por ele na casa dessa Duquesa e não havia notícias. Como não sabia onde achá-lo, retomei minha agenda. Um dia, andando pelas ruas de Roma, encontro-me com ele, com fisionomia acabrunhada. — Como vai, Príncipe? — Como vai, Professor. Olhe, não tive coragem de marcar encontro com o senhor. — Mas por que, Príncipe? — Estou completamente aniquilado. O que o senhor predisse me aconteceu. Cheguei aqui e encontrei o terreno completamente minado de progressismo, sem futuro, sem nada. Amanhã vou viajar. Ele estava realmente acabrunhado. * Muitos anos depois, já na década de 1960, esteve um filho dele aqui no Brasil. Veio procurar Dom Bertrand, porque são primos. Visitou a sede da rua Pará, conversamos um pouquinho e eu não disse ao filho que tinha conhecido o pai dele. A certa altura o filho me diz: — Papai conhece o senhor. — É verdade, eu tive o prazer de estar com ele em Paris em 1950. — É, e o meu pai tem o seu livro Revolução e Contra-Revolução na biblioteca. Era um vago eco daquela conversa que nós havíamos tido 1443.

9. Visita a Paray-le-Monial Ainda na França, estive em Paray-le-Monial. Paray-le-Monial é o lugar famoso onde está o convento da Visitação, em que Santa Margarida Maria Alacoque recebeu as revelações do Sagrado Coração de Jesus. Durante a Missa, enquanto eu rezava, mecanicamente os meus olhos foram se pousando na igreja. E eu fui saisi, me senti tomado pela igreja.

1443 SD 20/10/73.


406 O tamanho, o tipo de pedra, os arcos, não sei que imponderáveis havia ali que me prendiam a atenção. E eu procurando afastar a ideia, para prestar atenção na Missa. Mas a impressão me voltava: “Isto aqui não é uma igreja paroquial qualquer: é um monumento muito sério, muito importante, uma coisa magnífica”. igreja. Cluny.

Chegamos ao fim da Missa e eu saí com um enlevo enfático pela Recentemente alguém me disse que esta igreja tinha pertencido a

Eu havia esbarrado em Paray-le-Monial e, sem perceber que era um prédio de Cluny, o que ali havia de resto de Idade Média em mim palpitou 1444. * Saindo dessa minha visita ao convento, deparei com uma pequena livraria com todas as aparências de livraria católica. Divisei à distância uns cartõezinhos com iluminuras, muito bem arranjadinhos. Julgando que neles estivessem contidas frases de Santa Margarida Maria Alacoque para o uso dos fiéis, veio-me a ideia de, sendo Dª Lucilia fervorosa devota do Sagrado Coração de Jesus, comprar uma coleção desses cartões e levar para ela. Qual não foi a minha surpresa quando, aproximando-me da livraria, vi que esses cartões continham pensamentos de Voltaire, de Diderot, de D’Alembert. Ou seja, dos mestres da impiedade francesa do tempo do Iluminismo. E que eram vendidos sob a aparência de santinhos do Sagrado Coração de Jesus. Eu me retirei horrorizado e não mais pus os pés lá1445.

Capítulo V Alemanha: o príncipe Alberto da Baviera Eu havia conhecido no Brasil o Príncipe Alberto da Baviera e mantinha relações de amizade com ele1446. 1444 RR 1/11/80. 1445 RR 13/6/92. 1446 — Alberto Leopoldo Fernando Miguel (3 de maio de 1905 — 8 de julho de 1996), duque da Baviera, da Francônia e Suábia, conde palatino do Reno, filho do príncipe herdeiro Rodolfo da Baviera e de sua primeira esposa, a duquesa Maria Gabriela da Baviera. Seu avô paterno foi Luís III, o último rei da Baviera, deposto em 1918. A Casa de Wittelsbach a que pertencia era contrária ao regime nazista, e


407 Em 1950 ele esteve no Brasil e, sabendo que eu ia à Europa naquele ano, disse-me: — Faço questão de que o senhor vá visitar meu castelo, e vá conhecer a minha esposa e os meus filhos. Eu tenho todo empenho nisto. E então fui. Chegando ao aeroporto de Munique, eu o vi ainda em ruínas devido à guerra 1447. Eles haviam reconstruído somente a pista de avião, a qual era mais excelente do que a de antes da guerra. A Alemanha estava exaurida e não havia possibilidade econômica de reconstruir o prédio do aeroporto 1448. Chegando lá, telefonei para a esposa do Príncipe Alberto, a Princesa Marita . Ela me recebeu muito bem, jantei lá e pousei uma noite no Castelo de Berg. 1449

O castelo era o próprio lugar onde o Rei Luís II da Baviera morrera misteriosamente. No lago, uma cruz assinalava o lugar onde o cadáver dele havia aparecido, não se sabendo se foi assassinato ou suicídio. Um lugar histórico, portanto 1450.

Capítulo VI Roma Nesta viagem, alcancei o Vaticano antes da reforma conciliar. E ia lá com o espírito repassado de emoção e de veneração. É a postura natural do fiel que vai à colina suprema do mundo, à colina do Vaticano, no sentido figurativo da palavra incomparavelmente mais alta do que o Himalaia, mais alta do que as estrelas e, se se pudesse dizer, a colina cujo píncaro toca no Céu 1451.

Alberto levou a sua família para Sárvár, em Vas, Hungria, no ano de 1940. Em outubro de 1944, quando a Alemanha ocupou a Hungria, os Wittelsbach foram presos e enviados para o campo de concentração de Sachsenhausen. Em abril de 1945, foram removidos para Dachau, sendo afinal libertados pelo exército norte-americano. Alberto tornou-se o chefe da família real bávara com a morte de seu pai, em 2 de agosto de 1955. 1447 SD 27/10/73. 1448 SD 26/4/80. 1449 — Maria Francisca Juliana Joana Draskovich von Trakostjan (1904-1969). 1450 SD 27/10/73. 1451 RR 13/4/91.


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1. Canonização de Santa Joana de Valois A primeira canonização a que assisti foi a de Santa Joana de Valois, filha do Rei Luís XI da França*. * Ela foi canonizada no dia 28 de maio de 1950.

Vimos chegar os membros da Família Real da França, hoje destronada, mas gozando ainda de um grande prestígio. Os homens estavam de casaca e as princesas em grande traje de gala. Tomaram lugar do lado do Evangelho, que é mais honroso do que o lado da Epístola: é reservado aos príncipes. Em certo momento ouço do lado do povo, palmas, palmas, palmas, e vejo entrar, despertando um interesse visível em todo mundo, um chefe tribal africano, uma espécie de rei. O Vaticano, pai de todo o mundo, querendo atribuir a ele uma honra cabível, tinha reservado, entre os fiéis, um pequeno trono todo dourado, e com cadeiras para os assessores dele se sentarem também. De maneira que ele não se confundia com o povo, mas não se confundia com os príncipes. E estava contentíssimo! Ele entrou com uma coroa de madeira pintada de ouro. Mas era uma coisa a ser vista com muita simpatia do ponto de vista da Fé, porque significava uma penetração da Igreja, um desejo materno de civilizar, incorporar a si. Foi uma tempestade de aplausos. Ele sabia se comportar. Sentou-se dignamente no trono dele. Tenho a impressão de que esse homem, se não era católico, caminhou um passo na linha da conversão. Ele se sentiu querido, amado, não é apesar de ser negro, mas por ser negro. E convidado a sentar-se em um lugar condigno, que não era igual ao dos outros príncipes, mas um lugar muito melhor do que o da maior parte dos brancos que estavam dentro da Basílica, e usando aquela coroa de madeira que o deixava dignificado. É a mão de mãe com que a Igreja toca essas coisas todas. Acho magnífico!1452

2. Audiência com Monsenhor Montini Duas semanas depois de assistir a essa canonização, tive uma audiência com Monsenhor Montini. Estávamos em 1950, um ano apenas de distância do recebimento da carta assinada por Monsenhor Montini, felicitando-me em nome de 1452 Palavrinha 22/3/92.


409 Pio XII a respeito do meu livro. Indo a Roma era normal, era curial que eu fosse visitá-lo e apresentar minhas homenagens. Dom Mayer estava em Roma e queria ir também. E fomos juntos. Monsenhor Montini, junto com Monsenhor Tardini, era então Substituto da Secretaria de Estado do Papa Pio XII, o maior dignitário incumbido da política do Vaticano. Pois, após a morte do Cardeal Maglione, Pio XII não teve mais Secretário de Estado, mas dois Substitutos de Secretário de Estado: Monsenhor Montini (futuro Paulo VI) e Monsenhor Tardini* 1453. * Monsenhor Tardini, cujo nome completo era Domenico Tardini (18881961), fora nomeado Substituto de Secretário de Estado por Pio XII em 1944. Em 1958, João XXIII o elevou ao cardinalato e deu-lhe o cargo de Secretário de Estado. Sobre ele, Dr. Plinio ouviu de Monsenhor Antonio De Angelis, conselheiro universitário eclesiástico da Unione Internazionale Pro Deo e de orientação francamente favorável às inovações, a referência de que era um homem de direita e monarquista. Já o Monsenhor Montini, dizia o mesmo Monsenhor De Angelis, era "mais compreensivo diante dos novos problemas". Monsenhor De Angelis ainda achava que "a revolução ainda não se fez propriamente: está-se fazendo. Pois as revoluções na Igreja não se fazem com bombas, de um momento para outro e com grandes encenações. Não... na Igreja tudo se faz devagar, aos poucos. Vai-se passo a passo conseguindo isso dessa pessoa, convencendo aquele de que tal coisa é necessária. É aos poucos, por conversas... com o tempo..." (Relatório sobre essa conversa, realizada dia 9/7/52, redigido por um membro do grupo da Martim Francisco que havia acompanhado Dr. Plinio na viagem à Europa de 1952).

Uma audiência com Monsenhor Montini era muito difícil de se obter. Mas, nesta ocasião, foi só pedir pelo telefone ao seu secretário, que ele a concedeu1454. * Pode-se dizer que essa visita a Monsenhor Montini foi o último episódio da história do Em Defesa da Ação Católica1455. As audiências do Vaticano vão de nove horas da manhã até ao meio-dia ou uma hora. A nossa audiência estava marcada para o fim 1456. Eu entreguei ao secretário o meu cartão e ele veio logo com uma resposta muito amável: “Monsenhor Montini manda dizer que está 1453 SD 31/3/73. 1454 Palavrinha 26/2/89. 1455 SD 16/6/73. 1456 SD 31/3/73.


410 atendendo a uma pessoa de fora do país que terá de viajar, e revendo um material. A audiência vai ser forçosamente grande, mas se o senhor tiver tempo de esperar, ele ainda o atenderá”. Eu disse que esperaria, e Dom Mayer junto comigo. * Passei por uma dificuldade muito grande nessa espera. Entrou um Cardeal alto, um pouco magro. Esse Cardeal também pediu para falar com Monsenhor Montini. E o secretário disse a ele: — Doutor Plinio Corrêa de Oliveira, que está aqui, chegou antes de Vossa Eminência. E em princípio poderá ser recebido antes de Vossa Eminência. Mas se Doutor Plinio tiver essa gentileza, Vossa Eminência passa na frente. Era uma coisa que eu não podia recusar. Ele, que não me tinha visto ainda, olhou para mim e disse com um acento português carregadíssimo: — Mas, então o senhor é “brasilairo”? — Sim, senhor, sou. — Eu sou de tal lugar assim (uma das numerosas colônias que Portugal possuía). Então me dá cá um abraço, porque falamos a mesma língua. Eu me levantei, nos abraçamos e ele disse: — Minha audiência é curta, de maneira que o senhor vai perder pouco tempo por minha causa. Mas, enquanto não sou atendido, vamos conversando. — Oh! Eminência, quanto prazer. Sentei-me. O homem, muito amável, começou a conversar. Mas ele tinha um acento português tão carregado, que eu não conseguia entender o que ele dizia. E ele falava, falava, falava, e eu tendo que fingir que estava entendendo para não ser indelicado. De fato não entendia uma palavra1457. E eu muito mal à vontade, porque de repente ele poderia me perguntar: “O que é que o senhor diz a respeito de tudo isso?”. Afinal, o homem que estava com Monsenhor Montini saiu e fizeram entrar o Cardeal. Eu respirei 1458. 1457 Chá 15/11/94. 1458 Palavrinha 22/3/92.


411 O Cardeal demorou um pouco e eu pensei: “Monsenhor Montini vai dizer que já bateu a hora do almoço, que eu volte outro dia”. Mas veio o camareiro 1459 e disse que Monsenhor Montini, sabendo da grande amizade entre Dom Mayer e eu, propunha nos receber juntos, a não ser que cada um de nós tivesse algo particular para expor a ele. Achamos curioso que ele soubesse da grande amizade que nos ligava. Aliás, encontrei o Vaticano muito mais informado a nosso respeito do que poderia imaginar. Dissemos que sim e entramos juntos. * Monsenhor Montini era uma pessoa ereta como uma espada. Um prumo de engenharia não seria mais retilíneo do que era ele. Seco, magro, com um nariz muito avançado, olhos pequenos e penetrantes, olhando tudo e indagando tudo. Lábios muito finos e cortantes, e muito desejo de ser afável, de ser amável 1460. E ele nos recebeu muito amavelmente1461. Dom Mayer disse que tinha ido fazer uma homenagem. Eu disse mais ou menos a mesma coisa 1462. Depois de cumprimentar o Sr. Bispo, voltou-se para mim: — Professor, quero que saiba que a carta que lhe escrevi não foi mero documento de civilidade. Cada um de seus termos foi pesado atentamente. Tenho prazer de o declarar aqui, em presença do Sr. Dom Mayer 1463. Ele então começou a falar das imensas possibilidades do Brasil, teceu elogios ao Itamaraty, dizendo que era um dos primeiros ministérios de relações exteriores do mundo e de grande classe, comentou sobre as saídas diplomáticas de categoria que dava. Ele encheu o tempo elogiando o Itamaraty 1464. Percebi que ele não estava querendo conversar sobre a briga contra a Ação Católica, e eu não queria forçá-lo. Mas percebi também que ele estava querendo ser amável comigo 1465. Nisto, um relojinho colocado na lareira da sala bateu uma hora. 1459 Palavrinha 26/2/89. 1460 SD 31/3/73. 1461 Palavrinha 26/2/89. 1462 SD 31/3/73. 1463 E sobre ti está edificada a Igreja, Catolicismo n° 151, julho de 1963. 1464 SD 31/3/73. 1465 Palavrinha 26/2/89.


412 E então fizemos um movimento de ir embora. Em tese, deveríamos esperar ele nos despedir, porque ele era a autoridade maior. Mas manda o bom senso que se atenue o protocolo em certas circunstâncias. E dissemos: — Excelência, já está muito adiantada sua hora, o relógio está batendo. — Não, não, espere mais um pouco. Afinal de contas, ele deixou a conversa correr um pouquinho mais, mas a certa altura ele mesmo deu uma entrada de bom diplomata, como quem diz: “Se vocês agora pedirem para sair, é hora”. Então pedimos para sair 1466. Por fim, cessada a audiência, deu-nos medalhas comemorativas do jubileu episcopal de Pio XII1467. Eu agradeci e aí disse a ele: — Excelência, antes de ir embora queria lhe pedir um favor. Vai haver por esses dias uma canonização, a de São Vicente Strambi, e eu gostaria muito de assistir. E queria pedir um convite, para mim e para quatro companheiros”. Papa.

Dom Mayer não precisava, porque Bispo entra no cortejo do Ele me disse: “Pois não. Em que hotel o senhor está?”

Roma.

Eu disse: “Hotel Ambassatori”, hotel muito conhecido de Ele não pediu para escrever meu nome, nem nada: “Pois não”.

Dois ou três dias depois aparece no meu hotel um estafeta do Vaticano com cinco convites (honra excepcional) para assistir à canonização da tribuna do corpo diplomático 1468.

3. Canonização de São Vicente Strambi No dia da canonização para a qual tínhamos convite, chegamos bem antes da cerimônia começar 1469. Fomos colocados a uma certa distância de uma dama da aristocracia espanhola, com seu traje de gala, aquela mantilha presa ao cabelo com um pente alto de tartaruga. 1466 Palavrinha 26/2/89 e SD 31/3/73. 1467 E sobre ti está edificada a Igreja, cit. 1468 Palavrinha 26/2/89 e SD 31/3/73. 1469 — A canonização de São Vicente Maria Strambi realizou-se no dia 11 de junho de 1950. Ele era da Congregação dos Passionistas. Bispo de Macerata e Tolentino, foi confessor do Papa Leão XII, oferecendo sua vida por esse Pontífice. Sua festa comemora-se no dia 24 de setembro.


413 Julgamo-nos bem instalados e nos dispusemos a assistir à cerimônia. De repente, vejo um daqueles nobres da Câmara Papal, gola de renda ao sistema de Filipe II, roupa de veludo preto e ornamentos de prata, olhando-me e caminhando em minha direção. Eu pensei: “Comigo não há de ser essa história. Eu não conheço este homem e sobretudo ele não me conhece”. Quando chegou a certa distância, o homem faz uma vênia, e eu também faço uma vênia para ele. E ele diz: — Sua Excelência Monsenhor Montini manifestou-se preocupado pelo fato de o senhor Professor não estar bem colocado para assistir à canonização como conviria, nem o seu amigo. Então, manda-lhe oferecer dois lugares embaixo, que estão vagos, na primeira fila”. Eu disse: “Onde está Monsenhor Montini, para agradecer?” Ele disse: “Atrás”. Olhei para trás, estava ele reto, teso, com dois olhos em mim. Eu fiz uma reverência, ele fez um pequeno cumprimento e fomos, o Dr. Adolpho Lindenberg e eu, para a primeira fila. Ali, do meu lado direito, estava o embaixador do Egito, com um fez vermelho encimado por um pompom; e à minha esquerda, Dr. Adolpho. * Começa a cerimônia de canonização. Tocam os sinos da Basílica de São Pedro, sinos de bronze, com categoria e majestade. Tocam lentamente, mas expelem vibrações que criam a impressão de que vão mover as estrelas e o mundo. Em certo momento, todo o carrilhão está tocando. Quando os sinos param, ouve-se de longe o som das trombetas. São as duzentas ou trezentas trombetas de prata desenhadas por Michelangelo, que anunciam o cortejo do Papa que vem chegando. As portas de bronze da igreja de São Pedro se abrem e começa a entrar o cortejo1470. O Papa vinha na Sedia Gestatoria, toda de marfim, com incrustações de prata. E ao seu lado, dignitários carregando os flabelli, leques de pluma enormes, e a Guarda Nobre com couraça, a Guarda 1470 Palavrinha 26/2/89.


414 Suíça, a Guarda Palatina 1471. Era um cortejo lindíssimo, mas também longuíssimo, porque pelo protocolo da Igreja os inferiores vêm na frente e os superiores vêm atrás. Primeiro, eclesiásticos de uma ordem menor. Depois, os superiores gerais das Ordens religiosas. Em seguida o famoso papa negro, quer dizer, o superior geral dos jesuítas. Encerrando, os Bispos, Arcebispos, Cardeais 1472. Por fim entrava o Papa, sob uma tempestade de aplausos na Basílica. O povo se ajoelhava. Nisto, no alto da cúpula da igreja de São Pedro, onde há uma frisa, ouve-se um coro majestoso que canta: “Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam, et portae inferi non praevalebunt adversus eam” — Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra Ela”. Isto, mais os sinos, mais as trombetas, mais o coro, mais os aplausos do povo, o Papa muito ereto e dando bênção de um lado e do outro, formava um espetáculo verdadeiramente inesquecível, uma coisa extraordinária. Quando o Papa passou pela tribuna do corpo diplomático, ajoelhamo-nos. Os diplomatas de países não católicos, como o nosso vizinho egípcio, faziam uma profunda vênia como diante de um monarca que passa 1473. O Papa — alto, esguio, com mãos muito brancas, compridas, pareciam feitas de marfim — desce da Sedia Gestatória, vai de tiara ao seu trono e senta-se. Começa a Missa, que se desenrola com pompa. Chegado o momento da Consagração, o Papa levanta-se do trono, vai até ao altar da Confissão debaixo das colunas de Bernini, depõe a tiara, coloca a mitra, tira-a em seguida e assiste à consagração de cabeça descoberta. Na hora da Consagração, da frisa da cúpula de São Pedro as trombetas de prata tocam. A impressão era de um toque de anjos tocando no Céu. Aí notei lágrimas que escorriam dos olhos do embaixador do Egito. Ele não estava chorando, mas lacrimejava abundantemente. Eu desviei imediatamente o rosto, para ele se sentir à vontade e não se sentir

1471 SD 31/3/73. 1472 Palavrinha 26/2/89. 1473 SD 31/3/73.


415 observado 1474. Depois da Consagração, silêncio enorme na igreja, porque o Santíssimo estava presente, seguem-se as orações. O Papa volta para o trono, depois comunga. Por fim, volta-se e dá a bênção ao povo. Aí, nova explosão de alegria e toque de fanfarras 1475. * Antes de o Papa se levantar para sair, realiza-se um rito arcaico, datado dos primeiros tempos de Roma após a Igreja sair das catacumbas. Dois dignitários eclesiásticos aproximam-se, um trazendo uma gaiola com três pombinhos vivos, e o outro um saquinho de pano muito comum, contendo moedas de ouro. Fizeram uma reverência e foram oferecer o pagamento dos cônegos da igreja de São Pedro ao Papa, como óbulo da Missa que havia sido celebrada. E cantavam: “Pro Missa bene cantata!” — Reverência. Depois: “Pro Missa bene cantata!” — Reverência. Faziam isso por uma terceira vez e apresentavam o pagamento. Tudo terminado, Dr. Adolpho e eu tomamos o automóvel e fomos para o nosso hotel, com o coração e a cabeça transbordando de impressões 1476.

1474 Palavrinha 22/3/92. 1475 — Lendo essa descrição da belíssima cerimônia, feita por Dr. Plinio muitos anos depois de ocorrida, pedimos a um sacerdote especialista em liturgia, o Padre William Barker, da Fraternidade Sacerdotal São Pedro e atualmente Vigário da paróquia da Santíssima Trindade dos Peregrinos em Roma, que fizesse um comentário a respeito. Eis o que ele comentou:

“Penso que se trata de uma Missa celebrada por um outro (certamente algum Cardeal) com o Sumo Pontífice assistindo. Assim se fazia na grande maioria dos casos, pois o Pontífice, mesmo celebrando a Missa privada mais ou menos todos os dias, costumava celebrar a solene somente três vezes por ano, praticamente no Natal, Páscoa e na festa de São Pedro e São Paulo. “Neste tipo de Missa solene (ou Pontifical) à qual assistia o Papa, este último segue tudo de seu Trono, exceto no momento (grosso modo) da Consagração, durante a qual vem propriamente colocar-se diante do altar, e se ajoelha para assistir à Consagração, depois do quê, volta para o trono para a sequência e fim da Missa. “No que diz respeito à comunhão, não tenho notícia de que o Papa comungasse quando assistia à Missa deste modo, mas o costume pode ter sido um pouco flutuante durante o século XX, neste ponto. De qualquer modo, quando o Papa comungava numa missa que ele próprio celebrava, o fazia, de fato, no trono (a comunhão no trono, mesmo do celebrante, era um particular privilégio papal). Portanto, segundo me parece, se fossem dar a comunhão ao Papa durante uma Missa à qual ele assistia, lhe dariam, mesmo nesse caso, no trono”. 1476 Palavrinha 26/2/89.


416

4. Último encontro com Monsenhor Montini Antes de ir embora de Roma, impunha-se que eu deveria fazer a Monsenhor Montini uma visita de despedida. Eu não poderia deixar de ter para com ele todos os graus e formas de cortesia correspondentes ao que ele havia tido comigo. Fui ao Vaticano numa hora em que não havia expediente, mas que se toleraria a um estrangeiro que não conhece os horários fosse fazer uma visita. O Vaticano estava completamente aberto, entrava quem quisesse. Eram mais ou menos sete horas da noite. Subi por uma escada mandada construir por Pio IX, pela qual se chega ao Pátio de São Dâmaso e por onde habitualmente entravam os visitantes. Era uma escada que tirava o fôlego. No Pátio de São Dâmaso tomei o elevador e disse ao ascensorista que queria falar com Monsenhor Montini. Ele me respondeu que só subindo para ver. Subi. Lá chegando, encontrei, um pouco cochilando, um velho porteiro. Perguntei por Monsenhor Montini: “Non è”, não está. − Ah! “non è”, que pena etc. Dei a ele o meu cartão e ainda uma gratificação, pedindo-lhe para entregar depois a Monsenhor Montini. Quando saí, começo a ouvir de repente barulho de água. Eram faxineiros que começavam a lavar uma das galerias do Pátio de São Dâmaso, toda ela coberta, no teto, com pinturas de Rafael. Qualquer centímetro daquela galeria era inapreciável. Mas eu estava pensando em tudo, menos em Rafael... Havia uma certa penumbra, quase não se via nada. Com aquela água ensaboada, eu tomando cuidado para não cair. Ia andando no meio daquele aguaceiro, quando meus olhos se pousam instintivamente no fundo do corredor. E o que é que vejo? Um prelado magro, ereto, com um grande chapéu preto, envolto numa capa e pulando também por cima da água. Era Monsenhor Montini. Aproximei-me dele: “Monsenhor, vim exatamente fazer uma visita de despedida a Vossa Excelência etc. etc.” Ele cortou:

− Oh! Professor, que surpresa! Eu não encontro o senhor onde


417 esperava, e encontro onde não esperava. − Mas como, Monsenhor? Ele disse:

− Houve agora uma homenagem ao Senhor Cardeal de São Paulo

na embaixada do Brasil, e eu esperava encontrar o senhor nessa homenagem. E não esperava encontrar o senhor a esta hora aqui, tão deserto o Vaticano! Respondi:

− Oh! Monsenhor, imagine! Se eu soubesse que Vossa Excelência

estava lá. Não pude comparecer à homenagem (não expliquei a ele porquê) e vim empregar bem o meu tempo aqui, despedindo-me de Vossa Excelência. Mas a água da faxina estava vindo de tal maneira, que não era mais possível demorarmo-nos ali: o dilúvio vinha de todos os lados. Trocamos algumas palavra amáveis, ele me desejou boa viagem, e nunca mais nos vimos na vida. Esse foi o meu último encontro com Monsenhor Montini, futuro Paulo VI1477.

5. Conversa com o postulador do processo de canonização de Dom Vital Em Roma fui visitar os capuchinhos, e disse que queria falar com o padre promotor da canonização de Dom Vital. Era um padre alemão, mas falava o português com extraordinária fluência. Perguntei a ele: — Eu queria saber como está esse processo. — Ah! esse processo... Nos anuários ele está na lista das canonizações possíveis, mas é desses nomes que colocamos por formalidade. Todos sabemos que ele nunca será canonizado. — Mas, Frei, por que não será? É possível saber? — Muito simples: é que todas as pessoas do tempo de Dom Vital já morreram, e não há, portanto, possibilidade de colher testemunhos a respeito da vida dele. E então o processo não pode andar, é um processo morto. 1477 SD 31/3/73.


418 Era uma explicação inaceitável! Absolutamente não é verdade que só se canoniza com base em depoimentos de pessoas vivas. Às vezes canonizam-se pessoas que morreram há séculos. Santa Joana D’Arc foi uma delas, outra foi Santa Beatriz da Silva*. E quantíssimos outros santos estão nessas condições também! 1478 * Santa Beatriz da Silva (Campo Maior, 1424-1492), nascida D ª Beatriz de Menezes da Silva, de rara beleza, foi uma nobre portuguesa descendente de reis e neta de Dom Pedro de Menezes, senhor de grande influência. Com a ajuda da rainha de Espanha Isabel, a Católica, fundou a Ordem da Imaculada Conceição (concepcionistas). Foi elevada à honra dos altares somente no século XX, por Pio XI.

6. Audiências com o Padre Leiber e outros jesuítas O Padre Mariaux dispunha de um grupo de amigos jesuítas inteligentes, cultos, muito adversários do nazismo, que eu tinha muita vontade de conhecer. Acabei por visitá-los a todos em Roma: Padre Robert Leiber, Padre Gustav Gundlach 1479, bem como — antes de visitar Pio XII — uma série de Monsenhores muito chegados ao Papa, aos quais eu entregara um relato dos assuntos atinentes à Ação Católica1480. Padre Leiber era um sacerdote de origem austríaca. Ele tomava ares de um homem comum, mas bastava conversar com ele para se dar conta do contrário1481. Ótimo historiador, havia colaborado para a confecção de um dos volumes de uma das maiores coleções sobre a História da Igreja, que é a de Ludwig von Pastor1482. Além disso, era pregador de retiros e diretor espiritual do Papa Pio XII, tendo muita influência e facilidade de acesso junto ao Pontífice1483. Eu me lembro de minha emoção quando procurei o Padre Leiber e me disseram que ele estava pregando retiro numa casa de freiras no monte tal em Roma. Fui lá e disse: — Quero falar com o Padre Leiber. — Está pregando retiro. Se o senhor puder esperar, quando ele sair, ele lhe atenderá. 1478 SD 4/5/94. 1479 SD 17/6/89. 1480 SD 16/6/73. 1481 SD 17/6/89 e SD 14/4/79. 1482 Almoço EANS 16/6/82. 1483 SD 17/6/89.


419 Aguardei e, quando ele entrou na sala, eu disse: — Padre Leiber, eu sou Plinio Corrêa de Oliveira. E fui puxando do bolso uma carta de apresentação. Ele me disse: — Oh! Professor, agradeço a carta de apresentação, mas nos últimos dias tive nada menos de seis cartas de personagens vários da Europa anunciando-me que o senhor viria me visitar e me recomendando dar bastante tempo ao senhor. O que o senhor quer? Era o céu aberto1484. A fisionomia dele, pelos imponderáveis, me dizia: “Eu vou tomar um ar de quem não tem pressa. Mas me entenda, eu estou apressado”. Então eu fui direto ao ponto: — Padre Leiber, tem isso assim, a situação no Brasil é esta. Ele ouvia. No fim me disse: — Veja Professor, tudo isso que o senhor me disse é muito importante e muito concludente. É natural que, morando há tanto tempo em Roma, eu conheça a pessoa a quem interessa tomar contato com tudo isto. Portanto, se o senhor trouxe boa documentação, demonstrando tudo quanto me disse, é só me entregar, e passado algum tempo faça-me uma visitinha na Gregoriana*. Aqui está o meu cartão”. * A Pontifícia Universidade Gregoriana, a famosa Gregoriana, é um centro de estudos teológicos e filosóficos localizado em Roma. É a sucessora do Colégio Romano, fundado em 1551 por Santo Inácio de Loyola.

E escreveu nesse cartão os seus horários. me.

Eu agradeci, pedi desculpa por ter tomado o tempo dele e despediEle: “Mein Professor, até logo”. *

Depois tive vários outros encontros com o Padre Leiber, inclusive em minha posterior visita à Europa, em 1952. Ele, jeitosamente, falando por alto sobre assuntos na aparência banais, dava a entender uma porção de coisas: — Conversei com mais de um amigo (certamente um desses amigos era Pio XII), examinamos seus documentos, foram tidos como muito importantes para a História da Igreja. 1484 SD 16/6/73.


420 Ele também dizia: — Não faltarão ocasiões para agir, haverá oportunidade, contaram-me que o Santo Padre está preocupado, de repente documentos dele poderão esclarecer. De fato, Pio XII lançou depois algumas encíclicas nesse sentido. Mas ele dizia tudo em linguagem por assim dizer criptografada, que eu devia entender e não tentar furar nenhuma vez1485. Num desses encontros, ele comentou: — O Sr. deu-me um material muito rico. Eu disse: — Rico demais, não, Padre? Padre Leiber: — Mas muito significativo. Haveria naturalmente muito que dizer do relatório, mas acentuo o lado moral inteiramente incompatível com a doutrina da Igreja. O relatório apresenta uma imagem fiel da situação religiosa no Brasil. E, apontando para o relatório: — Esta coleção será muito apreciada na Secretaria de Estado 1486.

7. Conversa com o Padre Gundlach Quando eu ainda estava aqui no Brasil, o Padre Mariaux havia deixado escapar que o Padre Gundlach 1487 foi quem redigiu as minutas dos famosos discursos de Pio XII à Nobreza romana, e também de um texto clássico do mesmo Papa a respeito da sociedade orgânica1488. A partir dessa informação, resolvi conhecer o Padre Gundlach quando fosse à Europa. E em 1952 apresentou-se a ocasião. Imaginando que, como bom alemão, o Padre Gundlach gostasse de fumar charuto, comprei em São Paulo alguns charutos baianos muito finos e bons. 1485 SD 14/4/79. 1486 Anotações 29/7/52, conversa Padre Leiber em 14∕7∕52. 1487 Jantar EANS 9/8/93 — Padre Gustav Gundlach, S.J. (1892-1963) já havia colaborado na redação da encíclica Quadragesimo Anno (1931), de Pio XI, bem como de diversas encíclicas da época de Pio XII. De 1939 a 1958, ele foi um dos conselheiros mais próximos do Papa (cfr. www.catholicculture.org/culture/library/view.cfm?recnum=4744). No já citado relatório sobre conversa com Monsenhor Antonio De Angelis, este declarou que "o mal de muitos documentos pontifícios sobre assuntos sociais está em que são inspirados pelo Padre Gundlach, jesuíta conservador" (v. relatório sobre a viagem de Dr. Plinio à Europa, 9/7/52). 1488 SD 17/6/89.


421 Os charutos baianos gozavam então de fama mundial. Cada charuto era vendido numa espécie de tubo de celuloide transparente e meio azulado. Para fumar esse charuto, vinha junto uma limazinha com a qual a pessoa serrava a ponta. * O encontro com ele deu-se da seguinte forma. Estava eu conversando com o Padre Leiber, quando aproximou-se um outro padre que percebi tratar-se do Padre Gundlach1489. Era ele um alemão não tão grande como o Padre Mariaux, mas também de grande estatura1490. Ele se apresentou, a conversa se generalizou e tomou animação. Em certo momento eu disse ao Padre Gundlach: — Diga-me, Padre, o senhor é quem faz as minutas de certos discursos de Pio XII, não é? — Fazia até há pouco, porque o Padre Leiber e eu saímos dessas funções (quer dizer, tinham sido substituídos)1491. Os discursos de Pio XII minutados pelo Padre Gundlach têm trechos que são verdadeiras obras-primas. No fim da conversa eu disse: — Padre Gundlach, aqui estão uns charutos da Bahia, o senhor fumará e vai gostar 1492. Ficou muito contente. Estabelecemos muito boas relações 1493. E fui embora. Eu estava longe de pensar que iria tirar partido desses discursos de Pio XII muitos anos depois, no meu livro Nobreza e elites tradicionais análogas, baseado justamente nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à 1489 Jantar EANS 9/8/93. 1490 Despacho 6/11/91. 1491 — Esta afirmação inseria-se em um quadro assim descrito por Monsenhor Antonio De Angelis, na já citada conversa no dia 9 de julho de 1952: "Hoje nós estamos no período da penetração concreta da revolução nos diversos setores particulares do domínio da Igreja. O Papa está de acordo com essas inovações que aos poucos vão se concretizando, e aos poucos têm levado a revolução para todos os campos”. [...] Deu a entender que, “em grossas linhas, hoje já não há resistência à penetração dos novos princípios. Entre os Cardeais, é verdade que há alguns velhos conservadores... Mas são pouco numerosos e são homens de pouca influência. Entre esses conservadores está, por exemplo, o Cardeal Canali [...] Os novos princípios já penetraram inteiramente [...] Veja-se o que aconteceu com a Pro Deo: suas primeiras publicações, levadas sempre ao Papa, voltavam por ele anotadas com grifos vermelhos sobre todas as expressões novas. Aos poucos a coisa foi mudando, os grifos do Papa foram escasseando, e agora a Universidade é entusiasticamente aplaudida pela Santa Sé". 1492 Jantar EANS 9/8/93. 1493 SD 17/6/89.


422 Nobreza romana1494.

8. Audiência com Monsenhor Luigi Valentini Outra personalidade com quem falei durante essas minhas viagens à Europa na década de 50 foi Monsenhor Valentini, encarregado dos assuntos brasileiros no Vaticano. Levei para ele uma série de recortes de jornais mostrando os erros da Ação Católica. Eram os recortes que tínhamos fotografado na sede da Martim Francisco, creio que durante um ano, para depois levar para a Santa Sé 1495. Durante a entrevista, eu manuseava aquele maço de material documentando os erros e desvios da Ação Católica e do Movimento Litúrgico, mostrando para ele o que tinham de heterodoxo 1496. Ele se impressionou muito, e deu a acolhida a mais favorável possível 1497.

Capítulo VII Proveito das viagens à Europa 1. Compreensão do vulto total da crise da Igreja As viagens de 1950 e 1952 foram muito informativas do ambiente europeu, abria muito os horizontes, mas infelizmente não abria caminho. Elas aprofundaram a nossa noção da crise universal na Igreja. Tínhamos até então uma noção dessa crise circunscrita ao Brasil. Sabíamos que o foco vinha da Europa. Mas achávamos que eram apenas algumas congregações religiosas más, que mandavam seus missionários para os vários países espalhando o erro. E que no Brasil essa má semeadura havia vingado especialmente. Não tínhamos razão para achar que a crise na Europa era da proporção do que víamos no Brasil. Foi na viagem de 1952, sobretudo, que nos compenetramos de que 1494 Jantar EANS 9/8/93. 1495 SD 16/6/73. 1496 Jantar 14/1/92. 1497 SD 16/6/73 — Entre os dignitários ainda não citados, e com os quais Dr. Plinio manteve contato nessas duas idas à Europa na década de 1950, vale a pena destacar: Monsenhor Casaroli (posteriormente Secretário de Estado do Vaticano sob Paulo VI), em 16 de julho de 1952; e Monsenhor Roberto Ronca (Bispo de Pompeia, homem de confiança de Pio XII e fundador da Unione Nazionale Civiltà Italica), em 18 de julho de 1952.


423 se tratava de uma crise universal, com raízes em outras crises mais antigas. Aquele plano primeiro que eu tinha — de trabalhar para extinguir esse mal no Brasil e repor a boa ordem como ela era no começo de nossa ação no apostolado católico — eu vi que não era mais possível, era preciso cancelar. Então, impunha-se uma mudança completa de tática, que teríamos levado pelo menos dez anos para compreender se não fossem essas viagens de 1950 e 1952. Isto porque a infiltração do progressismo na Europa era ainda muito mais velada do que no Brasil 1498.

2. Compreensão do futuro latino-americano da ContraRevolução Na Europa vimos pessoas de direita, mas não propriamente gente jovem dessa tendência. As que encontramos — salvo honrosas exceções — eram divididas entre si, desanimadas e a maior parte com a ideia de que era preciso fazer concessões à Revolução para continuar a sobreviver. Nós não queríamos concessões, por estarmos convictos de que a Revolução deve ser combatida de frente e de corpo inteiro. Por outro lado, nessa viagem tivemos todas as portas abertas, entramos onde quisemos, fomos recebidos com cortesia, amavelmente1499. Formamos, é verdade, uma rede de bons amigos, de boas relações em quase todos os países da Europa. Gente que pensava mais ou menos como nós e que continuou com relações amistosas. Gente a quem nós devemos grande parte da repercussão das nossas obras no Exterior, porque as mandávamos para essas pessoas, e elas em geral promoviam traduções. Isto é o que explica haver tantas traduções em língua espanhola, italiana, francesa, alemã, das nossas obras. Esta rede de relações e de simpatias estabelecida em vários países, com o passar do tempo deu origem ao setor que internamente chamamos a Comissão do Exterior1500. Foi também ao longo dessas viagens que fui compreendendo que o futuro da Contra-Revolução estava mais na América do que na Europa. Na Europa havia tanta tradição fanada, tanta coisa murcha, que era difícil fazer caminhar essa tradição naquele continente. Pelo contrário, na América ela poderia caminhar. 1498 Conversa 30/9/88. 1499 SD 17/6/89. 1500 SD 14/7/73.


424 Essa tarefa de fazer ressurgir o fogo da Contra-Revolução num continente onde a tradição antiga quase não teve vigência, deixava bem claro que isto era mais uma obra da graça do que dos homens, porque se fosse obra dos homens teria nascido na Europa*. * Algo de muito parecido havia sido dito por Santo Antonio Maria Claret, numa carta ao Padre José Xifré datada de 16 de novembro de 1869 sobre a América Latina: “Na América há um campo muito grande e muito fecundo e com o tempo subirão ao céu mais almas da América do que da Europa. Esta parte do mundo é como uma vinha velha, que já não dá muito fruto, ao passo que a América é vinha jovem [...] Eu já estou velho [...]. Se não fosse isto, voaria para lá” (cfr. Santo Antonio Maria Claret, Escritos Autobiográficos, BAC, Madri, 1981, edição preparada por Maria Viñas e Jesus Bermejo).

O fato de o espírito das tradições europeias renascer mais vigoroso na América do que na Europa é o paradoxo dos paradoxos. Eu confio que Nossa Senhora não excluirá as nações europeias do ósculo d’Ela. Mas o bem que Ela fará para a Europa terá nascido a partir da América. Está sendo esta a história da Contra-Revolução na Europa 1501.

1501 SD 20/10/73.


425

Parte VIII O grupo de “Catolicismo” e suas lutas na década de 1950 Capítulo I A “Natimorta” 1951.

Nossa primeira bombarda contra a Reforma Agrária deu-se em

Dom Jaime Câmara, Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, havia passado uma circular confidencial a todo o Episcopado, pedindo vivamente uma Reforma Agrária que, segundo o que ali se dizia, resultava em confisco 1502. Essa circular, segundo S. Emcia., era um projeto de futura pastoral coletiva do Episcopado, e continha a minuta de uma Reforma Agrária, a mais descabelada que eu tenha conhecido. Isto em 1951! A tese essencial era a de que os homens não podiam se considerar proprietários das coisas: somente Deus é o proprietário da terra, de sorte que o homem, mero administrador, deve administrá-la em favor da coletividade. Era preciso, portanto, fazer uma Reforma Agrária em que cada terra fosse trabalhada pelas próprias mãos de seu proprietário. Ninguém poderia possuir uma extensão maior do que a que ele pessoalmente pudesse cuidar. Para remediar um pouco o inconveniente da pulverização da propriedade, o documento dizia que as pequenas propriedades poderiam se federar formando algo como os kolkhozes na Rússia soviética 1503. * Combinamos então com Dom Sigaud e Dom Mayer de elaborar uma réplica, também confidencial, e enviá-la a todos os Bispos do Brasil, objetando contra as teses de Dom Jaime Câmara*.

1502 RR 21/1/95. 1503 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54.


426 * Esse estudo foi entregue no Palácio São Joaquim, do Arcebispo do Rio, mediante protocolo, no dia 23 de junho de 1951.

Os Bispos ainda não estavam preparados para as pregações e os desmandos da esquerda católica, movimento esse que apenas começava a colocar a cabeça de fora. Eles se chocaram muito com a circular de Dom Jaime1504. Cerca de vinte Bispos se negaram a assinar. Logo em seguida veio uma chamada de Roma em Dom Jaime Câmara, e a Pastoral que ele projetava não saiu 1505. E Dom Jaime entendeu que era preciso deixar a poeira e o tempo passar sobre o episódio, para depois, mais tarde, começar outro esforço pela Reforma Agrária. Essa circular de Dom Jaime Câmara passou a ser chamada entre nós de Natimorta, porque, apenas saída da mente de Dom Jaime para o tinteiro, morreu. Então, em 1951, foi o primeiro brado do grupo, através dos dois Bispos, contra a Reforma Agrária. Se a Reforma Agrária tivesse sido aprovada em 1951, é mais ou menos certo que o Brasil há muito tempo seria comunista. Se naquela época o Brasil tivesse ficado comunista, dificilmente não estaria comunista também a maior parte dos países da América espanhola. E se esse imenso bloco de nações tivesse se tornado comunista, o comunismo teria podido tomar conta do mundo 1506.

Capítulo II Pastoral de Dom Mayer: a retomada 1. Lançamento e repercussões Outra medida que sugeri a Dom Mayer foi lançar, como Bispo de Campos, uma Carta Pastoral retomando e defendendo todas as teses do Em Defesa da Ação Católica*. * Foi com base nessa sugestão que saiu em 1953 a Carta Pastoral sobre Problemas do Apostolado Moderno. O modo de apresentação dessa Carta Pastoral trazia uma inovação: apresentava uma espécie de catecismo, com as teses erradas em uma coluna à esquerda, e as teses verdadeiras em outra coluna à direita. 1504 RR 21/1/95. 1505 Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54. 1506 RR 21/1/95.


427 Seu lançamento foi anunciado em artigo de primeira página do Catolicismo n° 31, de abril de 1953. Para a redação dessa Pastoral, Dom Mayer teve ampla e quiça total colaboração de Dr. Plinio, a se julgar pelo que o Prelado disse em carta ao mesmo Dr. Plinio: “Há outras pessoas, que se reservam horas mais tranquilas para lerem com vagar meu modesto e seu brilhante trabalho” (carta de Dom Mayer a Dr. Plinio, escrita de Itaperuna-RJ em 27/7/53, contendo diversas repercussões da Carta Pastoral — destaques nossos).

A Carta Pastoral teve uma repercussão curiosíssima, quase inesperada, no que toca ao número da correspondência recebida de eclesiásticos brasileiros. Dom Mayer foi elogiado com calor por 7 Arcebispos, 25 Bispos e 104 sacerdotes, sem contar as cartas de religiosas e leigos de todo o País1507. No total, foram mais ou menos 250 cartas. Nessas respostas, ficava claro quanta gente conhecia por experiência própria os erros que a Carta Pastoral condenava. E quanta gente achava a Pastoral benfazeja e muito oportuna. E quanta gente lhe apreciou a doutrina e o método de exposição (sistema de tese errada à esquerda e tese verdadeira à direita)*1508. * Vale registrar que a Pastoral foi enviada aos Cardeais Dom Carlos Carmelo e Dom Jaime Câmara, bem como a todos os Arcebispos e Bispos das 113 dioceses e prelazias então existentes no Brasil. Responderam 32 Arcebispos e Bispos, e 81 não responderam. Destes, certo número provavelmente não respondeu por não a terem recebido, por causa dos péssimos serviços postais da época. Os demais, ou por um vivo receio de tomar posição, ou por desinteresse, ou ainda por hostilidade. Do Sr. Cardeal de São Paulo, Dom Mayer não recebeu resposta, apesar de ter-lhe enviado uma dedicatória especial. Tampouco dos Bispos liturgicistas, nem de nenhum dos membros da Comissão Episcopal da Ação Católica, exceto Dom Jaime Câmara, que enviou um bilhete de felicitações, afirmando que estava começando a ler o texto. Mas não se pronunciou depois sobre o total da obra (cfr. Carta de Dom Mayer ao Padre Leiber, 1°/11/53).

* Então, divulgação da carta da Santa Sé ao livro Em Defesa da Ação Católica, de um lado; depois um Bispo que retoma aquelas teses todas do mesmo Em Defesa... era para os progressistas uma atitude arrasadora! Ainda mais naquele tempo, em que se considerava medonho dizer que havia cisão no Episcopado. Aliás, essa cisão é de fato horrível em si mesma. Hoje estamos super-habituados a essa realidade, mas naquele tempo era realmente 1507 Memorando sobre a crise religiosa brasileira por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional (Rio, 1955). 1508 Carta de Dr. Plinio a D. Sigaud, 20/9/54.


428 medonho. E nossos adversários evitavam o quanto possível levar a público o confronto. Imprimiu-se essa Pastoral e a pequena pré-TFP, então grupo do Catolicismo, começou a fazer propaganda dela. Nesse tempo eu dava aulas na Universidade Católica, e nos intervalos encontrava o creme dos professores “do outro lado”. E eu via as caras desapontadas. Não ousavam me dizer nada1509. Houve também uma manifestação de desagrado. Dias antes do 1° Congresso da Padroeira do Brasil, realizado em São Paulo em setembro de 1954, o Sr. Arcebispo de Manaus, Dom Alberto Gaudêncio Ramos, fez um discurso, irradiado para todo o Brasil, em que fazia uma alusão inamistosa, e muito notada pelos ouvintes, à Carta Pastoral de Dom Mayer1510. * Nossos recursos de difusão eram pequenos naquela época, mas sabíamos bem em que mãos colocar essa Pastoral para agitar as águas no meio católico de São Paulo, do Rio, de Belo Horizonte e onde mais pudéssemos atuar. E de fato a colocamos, e a efervescência continuou. Quer dizer, saíamos de nossa catacumba diretamente para a guerra por Nossa Senhora, e dizíamos como quem toca um clarim: “Aqui está a bandeira da Rainha, de pé de novo! Lutemos, pois!”

2. A tradução italiana Qual não foi a nossa surpresa quando Dom Mayer recebeu de repente, pelo correio internacional, a Pastoral dele traduzida para o italiano por ordem de Monsenhor Roberto Ronca1511, Arcebispo Titular de Lepanto e Prelado de Pompeia, na Itália, a famosa Pompeia das ruínas romanas. Ele havia traduzido para o italiano a Carta Pastoral, e a havia editado na Itália1512. Ele empacotou o livro e o enviou a nós sem uma palavra de explicação. Fizemos uma festa: parecia que íamos colocar fogo na Itália... Dom Mayer escreveu a Monsenhor Ronca dizendo que noticiamos essa edição italiana na imprensa do Brasil* 1513. 1509 Jantar EANS 17/6/82. 1510 Memorando sobre a crise religiosa brasileira por ocasião do 36° Congresso Eucarístico Internacional (Rio, 1955). 1511 Jantar EANS 17/6/82. 1512 SD 5/5/73. 1513 Jantar EANS 17/6/82.


429 * Parece que não estava tão longe da realidade a ideia de que a Pastoral poderia pegar fogo na Itália, pelo que pudemos ler em uma carta de Dom Mayer ao Padre Leiber: “Segundo rumores existentes no Brasil, a tradução de minha Carta Pastoral sobre problemas do apostolado moderno para o italiano, teria dado lugar a polêmicas de caráter político-partidário relativas à apreciação do Governo Democrata Cristão desse país. Tais polêmicas se teriam revestido de um caráter particularmente acerbo, e teriam sido julgadas inoportunas pela Santa Sé. Por esse motivo, a edição italiana de minha Carta Pastoral teria sido retirada da circulação. Não sei bem em que medida essas notícias merecem crédito”. Em seguida, Dom Mayer explicava: “A minha Pastoral foi traduzida para o italiano sem que eu tivesse disto qualquer notícia”. E acrescentava este comentário: “Que essa tradução de um documento exclusivamente doutrinário tenha produzido eventualmente repercussões de caráter políticopartidário num país tão remoto, e de uma cultura tão superior à das jovens repúblicas latino-americanas, é o que nunca imaginei ao escrever minha Pastoral” (Carta de Dom Mayer ao Padre Leiber, 28/4/56). A Carta Pastoral fora publicado pelo Instituto Editorial Bartolo Longo, de Pompeia. Essa edição, embora impressa em 1954, só chegou ao conhecimento do grupo de Catolicismo em novembro de 1955, conforme notícia desse lançamento no n° 60 de Catolicismo, de dezembro de 1955 (p. 2), o qual traz também notícia de outras edições: na França, pelas revistas Verbe e Cité Catholique; na Espanha, pela editora Fé Integra, de Madri e pelas revistas Cristiandad e San José Oriol, de Barcelona; também em Québec, no Canadá francês. Civiltà Cattolica, revista jesuíta de alta cultura religiosa de Roma, e mundialmente conhecida, publicou em seu número de 15/11/55 um comentário elogioso sobre a edição italiana.

Por causa dessa edição, Monsenhor Ronca foi chamado pelo Cardeal Piazza, representante do Vaticano, que o destituiu do cargo (isto em dezembro de 1955). Ele, Monsenhor Ronca, era direitista e dirigia o serviço de capelania de todas as prisões da Itália* 1514. * O Cardeal Adeodato Giovanni Piazza (1884-1957) acumulava na época os cargos de secretário da Sagrada Congregação Consistorial e de presidente da Conferência Episcopal Italiana. Sobre o Cardeal Piazza, assim escreveu Dom Mayer ao Padre Leiber, em carta de 3 de junho de 1954: “Estando em Roma com S. Eminência [o Cardeal Piazza], tanto o Exmo. e Revmo. Snr. Bispo de Jacarezinho quanto eu procuramos instantemente informá-lo sobre a situação brasileira, e não encontramos qualquer ressonância para nossas apreensões e preocupações. De outro lado, os fatos não deixam margem a dúvidas quanto à simpatia de S. Eminência por Prelados e Sacerdotes que veem os fatos de maneira diametralmente oposta à do Snr. Bispo de Jacarezinho e minha”.

* Nossa situação já era então muito mais forte. Não era mais como na época do porão do Legionário, propriedade da paróquia de Santa Cecília, do qual eles podiam nos expulsar. 1514 SD 5/5/73.


430 Éramos donos das nossas sedes, instaladas em casas alugadas por nós. Nem éramos tampouco uma associação religiosa dependente da Arquidiocese. Pelo Direito Canônico, não dependíamos dos Bispos progressistas para mais nada, a não ser no que diz respeito à doutrina e aos bons costumes, no que éramos ilibados. Fazíamos todas as coisas dentro do caminho reto. E eles, boca chiusa! De boca fechada. Lentamente, lentamente, lentamente a batalha se tinha invertido. E a contraofensiva recomeçava em posições bem mais seguras 1515.

Capítulo III Congresso Eucarístico do Rio em 1955 Em julho de 1955 realizou-se no Rio de Janeiro, no aterro do Flamengo, o 36° Congresso Eucarístico Internacional. Como era um Congresso Internacional, vinham personalidades de todos os países. E calculamos que seria uma boa ocasião para projetar a imagem do jornal Catolicismo junto ao público. O Congresso em si era controlado pela ala progressista, e nós estávamos fora da organização*. * O verdadeiro organizador do Congresso, escolhido pelo Cardeal Dom Jaime Câmara, foi Dom Helder Câmara, Bispo auxiliar do Rio, o qual já era então um destacado líder e propulsor do progressismo e da Ação Católica no Brasil.

Nessa ocasião montamos ali um stand. Foi instalado numa Escola Pública, cujo prédio nos foi emprestado por inteiro 1516. Pusemos uma faixa enorme de propaganda do Catolicismo, dando para a esplanada. E quando, às noites, realizavam-se as reuniões do Congresso, um projetor de luz ia passando pela faixa, chamando assim a atenção dos Bispos, dos padres e dos leigos que estavam lá. Dom Mayer, bem corajoso, sentado impávido no meio dos Bispos, ia vendo que vários deles estavam detestando. Mas o cumprimentavam: “Dom Mayer, como vai?” Não havia clima para dizerem nada 1517. grande.

Havia, portanto, uma espécie de dissidência. E o grupo aí já era

1515 Jantar EANS 17/6/82. 1516 SD 14/7/73. 1517 Jantar EANS 17/6/93.


431 Tudo isto servia para levantar o nosso estandarte. Era um show, produzia um rebuliço colossal e marcava a nossa presença. Os rapazes mais novos do nosso grupo faziam propaganda de Catolicismo no meio dos congressistas. Muitos se interessaram e começaram a frequentar o nosso stand. Fizemos na ocasião muitas relações com membros do Episcopado latino-americano, bem como com personalidades de vários países e de vários Estados brasileiros. * Nosso QG era na tal Escola. E em alguma medida também no Hotel Glória, no qual o grupo da Vieira, da Martim e os demais colaboradores nos hospedamos. O hotel estava lotado do que havia de mais conhecido em São Paulo e nos outros Estados. Chegada a hora do almoço e do jantar, eles viam aquela mesa enorme de congregados marianos (não tínhamos outra qualificação oficial). Entrávamos todos juntos 1518, com distintivo mariano, fazíamos o Nome do Padre como se fosse num convento, rezávamos e depois nos sentávamos. Nessa ocasião, tomamos contato com um mundo de Bispos de fora. E os convidávamos para conversas. Os que pareciam dar mais esperanças, convidávamos para almoçar ou para jantar no Hotel Glória. O que também contribuía para impressionar o público do Hotel Glória: rodas de sete ou oito Bispos, almoçando ou jantando com vinte homens leigos... não estavam habituados a ver nada daquilo. O Congresso Eucarístico representou um triunfo enorme. Mas representou também uma lição para nós. Acreditávamos que a crise religiosa era mais brasileira, pois não tínhamos informação do exterior. Mas percebemos a tibieza, a moleza, a indiferença doutrinária e às vezes coisa pior. * Vários jovens do Rio, nessa ocasião, começaram a entrar para o nosso grupo. Depois levavam irmãos, primos, amigos à sede e aí o grupo do Rio de Janeiro começou a florescer.

1518 SD 14/7/73.


432

Capítulo IV Formação dos primeiros grupos 1. Expansão: viagens de propaganda pelo Brasil Mesmo antes do Congresso Eucarístico, o jornal Catolicismo era utilizado como meio de recrutamento. Os rapazes do grupo da Martim começaram 1519 a realizar uma série de viagens pelo Brasil afora, com muita dedicação e capacidade de ação1520, fazendo propaganda do Catolicismo nas Faculdades, nos colégios e em diversos outros ambientes, recolhendo nomes de simpatizantes 1521. E assim começou a fundação de núcleos de Catolicismo pelo Brasil afora , formando-se vários grupos 1523. 1522

2. Semanas de Estudo: consolidação dos grupos novos Surgiu então entre eles a ideia de organizar um movimento. Eu já tinha essa ideia em mente, e então lançamos uma Semana de Estudos1524, para a qual convidamos nossos simpatizantes dos outros Estados. Foi a 1ª Semana de Estudos de Propagandistas de Catolicismo, realizada em 1953. Dessa primeira Semana de Estudos participaram seis pessoas de fora. À primeira vista, parecia um esforço completamente insensato. Como querer espalhar-se para outras cidades do Brasil, se já era tão difícil formar grupo em São Paulo? O que dizer dessa tentativa de grupos no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, no Rio Grande do Sul, no Ceará, na Paraíba? Seguiram-se outras Semanas de Estudo 1525, e as fazíamos seriamente para oito ou dez pessoas vindas de fora de São Paulo. E julgávamos um resultado importante1526. Essas Semanas de Estudos atingiram o seu auge no Congresso de Serra Negra (1961)*.

1519 Jantar EANS 17/6/82. 1520 Almoço EANS 10/4/87. 1521 SD 14/7/73. 1522 Jantar EANS 17/6/82. 1523 SD 17/6/89. 1524 Almoço EANS 10/4/87. 1525 SD 14/7/73. 1526 SD 16/6/73.


433 * Ele ficou conhecido como o I Congresso Latino-Americano de Catolicismo, e realizou-se entre os dias 25 de janeiro e 1º de fevereiro de 1961, no Hotel Pavani, da cidade de Serra Negra, estância hidromineral muito conhecida do Estado de São Paulo. A ele compareceram, além dos brasileiros, cerca de vinte participantes de fora do Brasil, iniciando-se assim a expansão de nossos ideais para além de nossas fronteiras.

Na época, esse congresso representou um grande sucesso, tendo a ele comparecido cerca de 400 pessoas1527, vindas inclusive de outros países latino-americanos*. * Foi um congresso tão momentoso, que deixou incomodado Dom Helder Câmara, o qual o chamou de "reunião clandestina". Interpelado o Cardeal Jaime Câmara por Dom Sigaud e Dom Mayer, em carta de 24/6/61, a respeito desse dito caviloso de seu Bispo Auxiliar, o Cardeal do Rio encaminhou no dia 24/7/61 cópia da resposta do próprio Dom Helder, que assim se justificava: "Quando aludi à 'reunião clandestina' de Serra Negra não o fiz pretendendo exercer qualquer missão fiscal ou supervisora do Episcopado, atribuições que seriam absurdas e ridículas", lembrando a seguir que "ocorrera também a publicação de 'Reforma Agrária, questão de consciência', fato que não era muito propício a uma melhor sintonização entre todos nós". Era uma reunião tão "clandestina", que foi matéria dos jornais O Estado de S. Paulo, Diário de S. Paulo e Diário da Noite de 24/1/61, que noticiaram a realização desse congresso, destacando a chegada à capital paulista das delegações de Medellin (Colômbia), Quito (Equador) e Santiago (Chile).

As Semanas de Estudos estão, de fato, na origem da fundação dos principais grupos do Brasil 1528.

3. Delineia-se o Movimento de “Catolicismo” Desde logo a Providência suscitou em vários lugares alguns primeiros fundadores capazes de escorar o peso de um grupo local, na etapa inicial desse grupo. Esses rapazes vinham a São Paulo durante o ano, em visitas ou para as Semanas de Estudo, e aqui chegando participavam da vida cotidiana de nossas sedes e eram preparados para entrar dentro daquilo que seria a TFP. Quando voltavam para suas cidades, muitas vezes fincavam — nem sempre, porque houve muitas decepções — uma estaca na qual nosso movimento podia se apoiar. Frequentemente mandávamos alguém de São Paulo fazer visitas aos núcleos mais distantes. E, por esta forma, fomos constituindo grupelhos de

1527 Entrevista a Catolicismo n° 481, janeiro de 1991. 1528 SD 14/7/73.


434 cinco, seis, sete pessoas aqui, lá e acolá. Era um trabalho imenso1529. A partir daí, nova frente de atividade se abriu: deu-se início ao sistema de viagens periódicas para visitar e consolidar os diversos grupos de outros Estados, fazendo conferências e dando apoio. Eu mesmo fiz algumas viagens dessas 1530. Desse trabalho, todo o grupo de São Paulo participava. Porque, como o grupo era pequeno, o visitante queria conhecer todo mundo. Havia ainda tempo para tudo. Todo mundo falava, todo mundo apoiava, todo mundo estimulava. Era um esforço enorme do conjunto do grupo. Isto durou anos, num esforço miúdo, mas terrível, que quase não pode ser narrado porque os dados desapareceram, ninguém se lembra mais dos detalhes. Não seria justo fazer esta história sem realçar a soma enorme de trabalho de todos dentro desse crescimento. Mas enorme!1531 * Saíramos assim da imobilidade absoluta para um crescimento lento, para um crescimento corpuscular. Nós desejaríamos um crescimento imediato. Entretanto o crescimento continuava, mas devagar. Sentíamos a necessidade urgente de entrar em luta, de agir, de bradar, de clamar. Mas aquela dádiva do Céu pingava gota a gota, num gotejamento que não enchia a concha da mão. Era preciso, portanto, esperar o dia, que haveria de chegar, em que tudo estivesse pronto e a caminhada pudesse começar1532.

4. Grupo da Aureliano Nessa fase de expectativa, Nossa Senhora nos favoreceu e começaram a se formar grupos maiores aqui em São Paulo. Esta frutificação se deu de várias formas. Uma delas veio com a fundação do chamado grupo da Aureliano 1533. Como se iniciou esse grupo? Os bons tratadistas de História, quando falam da história da Igreja, eles naturalmente contam muita coisa bonita. Mas a Igreja tem o elemento divino e o elemento humano. O elemento divino é sempre perfeito. Mas o 1529 SD 21/7/73. 1530 SD 17/6/89. 1531 SD 21/7/73. 1532 CCEE 8/11/92. 1533 SD 14/7/73.


435 elemento humano... é humano. Então, há defecções e outras coisas do gênero na história da Igreja, que é preciso contar também. E o método que os bons historiadores seguem, sobretudo os historiadores católicos, é, na fase anterior à defecção, se a pessoa fez um bem, não ocultar este bem, mas apresentá-lo tal como ele foi. E dizer honestamente: enquanto correspondeu à graça, fez tais e tais coisas boas; depois começou a decair, defeccionou, e fez tais e tais coisas ruins. É sempre a política da verdade que se deve seguir. Eu tinha na Faculdade de História do São Bento um aluno 1534 de estatura entre média e baixa, olhar extremamente vivo, e sempre com um topete louro virado para a frente1535. Ele se sentava nos primeiros bancos e acompanhava minhas aulas com um interesse extraordinário 1536. Quando eu relatava cenas da Revolução Francesa, ou descrevia fatos da Idade Média, ele se manifestava extremamente receptivo. Eu notava nele o coruscar de uma inteligência privilegiada1537. Seu nome era Orlando Fedelli. Ele se revelou dentro de pouco tempo um recrutador de primeira categoria. Expositor agradável, nas horas vagas mantinha uma conversa que também agradava às pessoas da geração dele. Em pouco tempo recrutou um grupo de pessoas que ele reunia em torno de si para conversarem, contar coisas sérias e engraçadas. Isto cresceu e atingiu logo vinte, trinta, quarenta pessoas. Sentimos com alegria a necessidade de alugar uma sede para eles. Os componentes do grupo da Martim forneceram o dinheiro e assim se formou o grupo da Aureliano Coutinho, que tomou esse nome por causa da rua onde ficava a sede*. * Esta casa existe até hoje, na rua Aureliano Coutinho n° 23, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Depois foi alugada também a casa geminada, de nº 25, formando um conjunto só.

5. Grupo do Alcácer Concomitantemente à formação do grupo da Aureliano, vinha nascendo um outro grupo de rapazes composto de alunos do Colégio São Luís, já não mais do Padre Mariaux, que voltara para a Europa.

1534 Almoço EANS 10/4/87. 1535 SD 14/7/73. 1536 Almoço EANS 10/4/87. 1537 SD 14/7/73.


436 Esse grupo foi chamado dos Juniores, porque alguns eram irmãos ou estavam na idade de irmãos mais moços dos do grupo da Martim. Tinham uma sede pequena na rua Martim Francisco n° 518, não muito distante da sede do grupo da Martim*. * Posteriormente esse grupo passou a ocupar uma nova casa na rua Aureliano Coutinho n° 258, a que se deu o nome de Alcácer, em lembrança do Alcácer do Sal, onde havia se travado uma das gloriosas batalhas da reconquista portuguesa. Desde então o grupo passou a ser chamado de grupo do Alcácer.

* Um dos membros desse grupo era habitué das Semanas de Estudo desde muito menino, numa idade quase não regulamentar. Ele vinha trazido por seu pai, o Príncipe Dom Pedro Henrique de Orleans e Bragança, o que lhe abria todas as portas. Chamava-se Dom Bertrand de Orleans e Bragança. Dom Pedro Henrique tinha sido uma das únicas pessoas que se acercara de nós no momento em que estávamos no fundo do abismo, circunstância da qual eu nunca me esquecerei. De vez em quando ele me dizia: “Plinio (ele tinha uma pronuncia ligeiramente afrancesada), eu já disse a você, hein? É preciso manter umas vagas para os meus filhos”. Eu, com toda a alegria, toda satisfação, respondia: — Dom Pedro, esteja tranquilo, não faltarão vagas. época.

O primogênito, Dom Luiz, estava fazendo estudos na Europa nessa

Mais tarde, sopraram bons ventos e Dom Luiz, que sempre foi católico praticante, frequentando os sacramentos, voltou para o Brasil. E com inteira naturalidade entrou também para a TFP, passando a fazer parte desse grupo dos Juniores-Alcácer1538. * O grupo do Alcácer, junto com alguns outros da Aureliano, foi o grupo nosso que com mais brilho agiu na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Dom Bertrand era aluno dessa Faculdade e causou uma certa sensação a notícia de que um Príncipe ia ser aluno lá. Dom Bertrand, com o apoio dos companheiros de grupo, criou tal atmosfera em torno de si, que todos o chamavam de Príncipe. E a passagem de Dom Bertrand pela 1538 Almoço EANS 10/4/87.


437 Faculdade foi muito marcante. O grupo dos Juniores, em boa parte representado lá, e mais outros do grupo da Aureliano, “pintaram o caneco” dentro das Arcadas*. * Foram várias as tomadas de atitude, entre elas as seguintes: 1°. Manifesto, em abril de 1961, de repúdio à atuação de núcleos comunoprogressistas em diversas universidades de São Paulo e Curitiba (adesão de 1200 universitários); 2°. Abaixo-assinado, em junho de 1962, de interpelação à JUC para que explicasse declarações a favor de uma ambígua e misteriosa “terceira posição, nem capitalista nem comunista” (os fatos posteriores, de envolvimento de elementos da JUC com a agitação comunista e até com o terrorismo, não deixaram dúvida no público sobre essa “terceira posição”, muito comunista e visceralmente contrária à propriedade privada). 3°. Manifesto “Dez afirmações anticomunistas” (setembro de 1962), contrárias às agitações e greves da UNE, e a outros acontecimentos favorecedores do comunismo no âmbito nacional e internacional. 4°. Abaixo-assinado, em julho de 1963, ao então deputado democrata-cristão André Franco Montoro, pedindo que definisse de público suas declarações contra o livro Reforma Agrária—Questão de Consciência, declarações estas em que se afirmava, tal como a JUC, adepto a uma terceira-posição nem capitalista nem comunista, mas democrata-cristã. O abaixo-assinado obteve a adesão de 7.400 universitários de várias faculdades. 5°. Manifesto, em outubro e novembro de 1964, que frustrou manobras de membros da JUC e de comunistas, os quais se esforçavam por eleger personalidades esquerdistas como paraninfos dos bacharelandos. Ao fim da formatura, os bacharelandos da TFP distribuíram aos colegas outro manifesto, recapitulando a luta anticomunista que mantiveram nas Arcadas (cfr. Meio século de epopeia anticomunista, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 1980)

Os campos estavam tão divididos que a formatura no Teatro Municipal foi acompanhada de palmas e de vaias. A presença de Dom Bertrand e a atuação dos colegas do grupo de Catolicismo cortou a Faculdade de Direito em duas. Foi uma bela realização1539. Assim, depois de anos e anos sem aparecer ninguém, a árvore começava a frutificar e a florescer. E aquele bairro de Santa Cecília ficou formigando de sedezinhas de membros do grupo de Catolicismo, os quais mais tarde ingressaram na 1540 TFP .

1539 SD 14/7/73. 1540 Almoço EANS 10/4/87.


438

Capítulo V “Revolução e Contra-Revolução” (R-CR) — 1959 A definição de um ideário 1. Razão de ser da obra Em 1959, julguei chegado o momento de definir nosso ideário e darmos assim um brado. E o brado adequado pareceu-me ser o livro Revolução e Contra-Revolução, que ficou conhecido entre nós pela abreviatura de R-CR1541. Nele condenso o essencial de meu pensamento e explico o sentido de minha atuação ideológica 1542. Num Brasil extremamente tranquilo como o daquele tempo, um tema doutrinário e histórico de grande envergadura era o que se impunha para pormos a cabeça fora d’água1543. A intenção era publicar e fazer uma larga divulgação do livro no Brasil e no Exterior1544. Naquela época éramos ainda pouco numerosos: menos de uma dezena de grupos no Brasil que, com o correr do tempo, foram constituindo o núcleo inicial do que seria logo depois a TFP. Era, portanto, uma espécie de pré-TFP que se restringia a publicar o Catolicismo 1545. Era fácil explicar a escolha do assunto. Catolicismo era um jornal combativo. Como tal, devia ser julgado principalmente em função do fim que seu combate tinha em vista. Ora, a quem, precisamente, queria ele combater?1546 Qual era o unum dessa batalha? Na elaboração desse livro, creio que fui capaz de proporcionar uma resposta unitária a esse problema. E também ao fato de que todo esse caos em que vivemos tem uma só causa profunda, que gera todos os males do mundo moderno, e com personalidade e uma razão de ser próprias. O nome dessa raiz comum foi-me facílimo encontrar, pelas razões 1541 SD 24/11/73. 1542 Auto-retrato filosófico, Catolicismo n° 550, outubro de 1996. 1543 SD 24/11/73. 1544 SD 14/7/73. 1545 SD 11/8/95. 1546 Revolução e Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 4ª edição em português, 1998.


439 que em seguida explicarei: Revolução 1547.

2. Temporada em Campinas Lembro-me de que escrevi este livro fora de São Paulo1548. Disse aos rapazes: — Vou a Campinas passar quinze ou vinte dias para escrever um livro. Devo ir no dia tanto e voltar no dia tanto. — Oh! mas o que é? Expliquei-lhes então resumidamente o que seria o livro. E já contava que fossem comigo os mais velhos da rua Vieira de Carvalho. Mas na hora de partir, para minha surpresa, encontrei todos os jovens do grupo da rua Martim Francisco de malas e maletas prontas. Estava ali todo o mundo. Era a grande maioria do Grupo de Catolicismo que assim se deslocava comigo... Eu fiz o meu programa de horários e afinal consegui trabalhar em Campinas com uma relativa regularidade. E escrevi o livro 1549. A R-CR foi revista, quanto a precisões de linguagem e citações, por Dr. Castilho e por outros ainda. Por Dom Mayer, certamente. Afinal, nós a publicamos em primeira mão no número 100 de Catolicismo, e logo depois em formato de livro 1550.

Capítulo VI Inesperada viagem à Europa 1. Pesando as circunstâncias Nisto, minha sobrinha telefona para casa e diz: — Tio Plinio, meu marido acaba de receber um oferecimento para ir como convidado de honra para o vôo inaugural do avião Caravelle da Air France, do Brasil para a Europa. Mas ele não pode ir por negócios e

1547 SD 11/8/95. 1548 SD 14/7/73. 1549 Chá 15/2/95. 1550 SD 24/11/73.


440 manda lhe oferecer esta passagem 1551. Logo depois ela acrescentou que tinha uma necessidade premente de que eu fosse, para fazer em Roma certo favor para ela. Eu pensei: “Para o lançamento do livro, não poderia haver coisa mais inconveniente do que ir à Europa agora1552. Mas, de outro lado, uma viagem gratuita para contatos no Velho Continente sempre valia a pena aproveitar” 1553. Pesei as duas coisas e achei que devia viajar. Então, fazendo-me de muito alegre, respondi a ela: “Oh! mas excelente! Muito bem, vamos pois.” 1554 Antes da viagem, deixei o livro em vias de ser impresso, a propaganda organizada, a lista de pessoas a quem distribuir, tudo o mais perfeitamente planejado para o nosso pessoal executar1555. E fui para a Europa1556.

2. Gripado em Paris Lembro-me de que convidei Dr. Fábio Xavier da Silveira para ir comigo. E ele pegou fogo com a ideia1557. Foi uma viagem relâmpago, de corre-corre e com muitas provações. Durou talvez umas três ou quatro semanas 1558. Paris

O voo era propriamente São Paulo-Paris-Roma, e não São Paulo.

1559

Muito francesamente cada avião tinha o nome de Ciel. Então, era Ciel de Bretagne, Ciel d’Anjou, Ciel de Normandie, cada nome mais bonito do que o outro. Se não me engano, viajei no Ciel de Lorraine 1560. Mas o ar condicionado sempre me resfria. O resultado é que cheguei a Paris gripadíssimo 1561. Comunguei e fui direto para o hotel me tratar. O hotel, Le Claridge, era pago pela Air France.

1551 SD 24/11/73. 1552 Palestra 1/8/92. 1553 SD 24/11/73. 1554 Palestra 1/8/92. 1555 SD 14/7/73. 1556 Palestra 1/8/92. 1557 SD 24/11/73. 1558 SD 14/7/73. 1559 SD 24/11/73. 1560 Chá 15/2/95. 1561 SD 24/11/73.


441 Na manhã seguinte, amanheci com febre alta1562 Telefonei para a companhia de aviação: — Olhe, eu não posso seguir para Roma porque estou com febre. Estou hospedado num hotel pago pelos senhores na Avenida ChampsEliseés. Os senhores vejam o que é possível fazer, estou à disposição. Obtive a seguinte resposta: — O senhor me desculpe, mas é preciso sujeitar-se a um exame médico. Nos nossos voos inaugurais há muitas pessoas que, por causa da atração de Paris, aqui chegando, declaram estar doentes, e ficam aqui se divertindo. — Bom, pode vir. Na manhã seguinte apareceu o médico, que constatou que realmente se tratava de uma febre alta. * Logo depois apareceu o Fábio para me visitar. E eu pedi a ele me comprar um livro interessante, agradável para se ler. E acrescentei: — Eu fico sozinho aqui, enquanto você vai passear pela cidade, pois não tem propósito estar numa cidade como Paris e você ficar trancado aqui dentro. Retz”.

Daí a pouco ele volta com um livro: “Mémoires du Cardinal de

Abri o livro e logo nas primeiras linhas leio: “Estas memórias do Cardeal de Retz são tidas como um dos documentos históricos mais confusos e mais monótonos da história da França”. Resultado: passei esses três ou quatro dias de cama devorando as indigestíssimas memórias do Cardeal de Retz... 1563 Afinal sarei e fui para Roma1564.

3. Em Roma: cãibras e Monsenhor Casaroli Em Roma, hospedamo-nos no Hotel Excelsior1565. 1562 Chá 15/2/95. 1563 Palestra 1/8/92 — Jean-François Paul de Gondi, Cardeal de Retz (1613-1679), foi um homem de Estado francês e memorialista nascido de uma família de pequena nobreza florentina que veio para a França com Catarina de Médicis. Personagem controvertida e dada à intriga e ambições políticas, fez parte da Fronda e depois exilou-se em Roma, escapando de uma prisão onde o havia encerrado Mazarino. De volta à França após a morte deste, não obteve as boas graças de Luís XIV, renunciando à Sé de Metz. Morreu como abade de Saint-Denis. 1564 Chá 15/2/95.


442 No terceiro dia, se não me engano, amanheço com crises de cãibra, com suas contrações bruscas dos músculos e sua dor pungente. Eu não conseguia andar1566. Então foram mais três ou quatro dias de cama em Roma, esperando passar essas crises para ir ao Vaticano estabelecer contatos e desincumbirme logo da tarefa — aliás simplíssima — dada pela minha sobrinha. * Afinal, já sem cãibras, dirigi-me ao Vaticano 1567. E encontro o expediente semifechado, devido a um feriado. Apesar de proibida a entrada, como estava tudo meio aberto, fui entrando1568. Apresentei-me dizendo que queria falar com o encarregado dos assuntos brasileiros e com Monsenhor Valentini, que me havia atendido nas viagens anteriores. Disseram-me que ele não se encontrava no Vaticano, mas que estava sendo substituído por Monsenhor Casaroli1569. Encontrei Monsenhor Casaroli no pátio de São Dâmaso, conversando em uma roda. Em torno dele havia vários leigos, numa prosinha de dia de feriado. Eu o reconheci, porque os interlocutores mencionaram o nome do personagem. Eu havia levado um livro de um clérigo brasileiro*, no qual ele narrava em tom erótico a prevaricação de um sacerdote. Como esse padre era progressista, era uma larga página de vergonha para o progressismo essa literatura. * Seu nome era Padre João Mohana (1925-1995), sacerdote, médico e escritor piauiense. Escreveu vários livros de orientação progressista, entre eles, em 1952, o romance místico-erótico O outro caminho, no qual ele romanceou as reações psicológicas de um sacerdote quando este celebrou a sua primeira missa sacrílega. Segundo o blog Chave de Leitura, o romance O Outro Caminho "não é uma obra totalmente escrita por João Mohana. Como deixa claro nas primeiras páginas, trata-se de relatos autobiográficos escritos por seu irmão e publicados após sua morte por Mohana" (cfr. http://chavedeleitura.blogspot.com.br/2012/05/o-outro-caminho-joaomohana.html)

1565 SD 14/6/80. 1566 Chá 15/2/95. 1567 Palestra 1/8/92. 1568 Chá 15/2/95. 1569 SD 14/6/80.


443 Eu disse a Monsenhor Casaroli, em francês 1570: — Excelência, sou do Brasil. Chamo-me Plinio Corrêa de Oliveira e queria trazer para o senhor um livro do Clérigo João Mohana, em que ele conta a apostasia de um sacerdote e1571 a primeira Missa sacrílega que esse padre celebrou depois de ter pecado contra a castidade na noite anterior. E entreguei-lhe também um número de uma revista católica, fazendo o elogio desse livro 1572. Ele me cortou a palavra e disse com cara alegre1573: — Ah! João Mohana. É um amigo íntimo que eu tenho! Eu olhei para ele e pensei 1574: “Não tenho mais nada a conversar com este homem 1575. É melhor entregar o livro com uma palavra salgada”. — Excelência, então o livro deverá lhe interessar a duplo título. — Vou lê-lo 1576. E nos despedimos. * Fui depois procurar o Cardeal Tardini, Substituto de Secretário de Estado. Bati-me para a ala onde ele tinha seu escritório. Vazio. Cheguei até a sala dele: — Monsenhor Tardini não está? — Ah! não, foi à montanha. — A que montanha ele foi? Não quis dizer, pensando que eu fosse correndo atrás do Cardeal. Dei então por encerrada a minha missão no Vaticano 1577. * O tempo inteiro da viagem houve transtornos desses, pequenos e grandes, um em cima de outro. E a volta foi como a ida, uma coisa do outro

1570 Chá 15/2/95. 1571 Palestra 1/8/92. 1572 SD 14/6/80. 1573 Palestra 1/8/92. 1574 Chá 15/2/95. 1575 SD 14/6/80. 1576 Chá 15/2/95. 1577 Palestra 1/8/92.


444 mundo1578.

Capítulo VII Dificuldades iniciais e, por fim, êxito da R-CR 1. Volta ao Brasil: notícia do fracasso da campanha De Roma embarquei novamente para Paris, para tomar o avião de volta ao Rio de Janeiro, o que representava uma viagem de perto de 24 horas naquele tempo. Quando o avião desceu no Rio, eu estava ansioso por notícias da propaganda da R-CR. Encontro Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra, Dr. Sérgio Brotero Lefevre e Dr. Adolpho Lindenberg, que tinham vindo de São Paulo para me esperar no aeroporto do Rio. Primeiros cumprimentos, primeira pergunta: “Que notícias têm da R-CR”? Dr. Paulo manteve silêncio, Dr. Sérgio tomou uma atitude vacilante. Dr. Adolpho, com muito tato, com muita gentileza, disse o seguinte: — “Foi um êxito relativo, muito poucos agradecimentos à sua dedicatória e todo mundo tirando o corpo”. Chego a São Paulo e por outra via me informam que os jornais todos não publicaram nenhuma notícia: boicotaram. Algumas livrarias recusaram de colocá-lo à venda. Outras, aparentemente aceitaram, mas empurraram o livro para um canto. A um ou outro amigo que passava pela livraria pedindo a R-CR, eles diziam que não tinham. Resultado: pilhas de R-CR acumuladas: era a implosão, quando eu esperava uma explosão. A nossa primeira campanha pós-catacumba não poderia terminar mais melancólica. A série de reveses que acompanhou esta nossa primeira tentativa publicitária foi verdadeiramente trágica 1579.

2. Por fim, “Revolução e Contra-Revolução” levanta voo Algum tempo depois, fizemos uma edição em francês com prefácio 1578 Chá 15/2/95. 1579 SD 24/11/73.


445 de Dom Pedro Henrique 1580. Aí começaram a vir do Exterior pedidos de pessoas querendo comprar a R-CR, e então fizemos edições da R-CR em alguns países 1581. E o livro começou a levantar voo. Atualmente é um de nossos livros de maior divulgação 1582. Nosso grupo seria incompreensível sem a R-CR. E o que hoje é a vida da TFP, começou com um fracasso monumental. Nossa Senhora pode fazer conosco coisas incompreensíveis dessas ao longo do caminho* 1583. * O livro Revolução e Contra-Revolução teve ampla expansão, inspirando a fundação de TFPs e entidades afins em diversos países. A obra teve quatro edições no Brasil e numerosas outras no mundo hispânico. Foi publicada também na França, Alemanha, Itália, Estados Unidos, Canadá, Polônia, Romênia. Foi igualmente difundida na Austrália, África do Sul e Filipinas. As mais recentes edições foram em japonês, estoniano, lituano e a última em bielo-russo, esta divulgada a partir de fevereiro de 2014.

1580 Palestra 1/8/92. 1581 Chá 15/2/95. 1582 Chá 30/4/93. 1583 Palestra 1/8/92.


446

Parte IX Fundação da TFP — Livros, Atividades e Campanhas de grande repercussão na década de 1960 Capítulo I “Tradição, Família, Propriedade” 1. Como nasceu a ideia do nome Seria interessante explicar como surgiu a expressão “Tradição, Família e Propriedade”. Pelo ano de 1960, realizávamos uma reunião 1584 na sede da rua Aureliano Coutinho 1585, quando em certo momento eu disse que a trilogia adequada para designar o nosso grupo seriam as palavras “Tradição, Família e Propriedade”. Eu intuía que a negação desses três valores era o ponto terminal da civilização cristã do Ocidente e o início de uma ordem de coisas baseada no contrário. E que, portanto, a Tradição, a Família, a Propriedade deveriam ser o nosso título 1586. Lembro-me de ter dito também: “O nome perfeito de nosso Grupo deveria ser Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. É o modo de nós fazermos uma ação anticomunista não meramente negativista, mas afirmando três valores que, por uma erosão lenta, o comunismo quer derrubar para depois vencer” 1587. Os que estavam presentes aceitaram a sugestão com toda a naturalidade, com toda a alegria 1588. O nome foi portanto objeto de uma cuidadosa reflexão, de uma 1584 SD 7/11/75. 1585 RR 6/3/ 85. 1586 SD 7/11/75. 1587 SD 14/7/73. 1588 SD 7/11/75.


447 meticulosa atenção, para corresponder exatamente aos nossos ideais 1589. Três outras palavras que resolvêssemos colocar juntas não formariam necessariamente uma trilogia. Já Tradição, Família, Propriedade é uma trilogia de liames profundos, que constituem uma sequência* 1590. * Percebeu-o perfeitamente, mais de uma década depois, o conhecido autor belga de orientação francamente progressista, Max Delespesse, em livro com o significativo título Tradition, Famille, Propriété: Jésus et la triple contestation. Pondera ele com acerto e precisão: “Observadores superficiais poderiam surpreender-se diante da trilogia ‘tradição-família-propriedade’ como se se tratasse de um amálgama artificial. Na realidade, a junção destes três termos não se deveu ao acaso. [...] ‘Tradição-família-propriedade’ é um bloco coerente que se aceita ou se rejeita, mas cujos elementos não podem ser separados” (Max Delespesse, Tradition, Famille, Propriété. Jésus et la triple contestation, Fleurus, Paris, 1972, pp. 7, 8).

2. Constituição da TFP em 1960 e quais os sócios-fundadores Com base nessa trilogia, resolvemos fundar uma sociedade civil1591 e registrá-la1592 como organização juridicamente constituída1593, e que tivesse como corpo societário o núcleo de amigos que se tinha reunido em torno do Legionário*1594. * A data oficial de fundação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) é 26 de julho de 1960.

Tive a iniciativa de fundar a TFP, e fui eu quem lhe deu o nome e reuni os amigos que constituíram seu primeiro núcleo 1595. E os estatutos foram redigidos por mim com muito cuidado, com muita seriedade, portanto com muita autenticidade1596. O autor dos estatutos fui eu. Quis o título de “Presidente do Conselho Nacional” e não “Presidente da TFP”. E tinha “n” razões para querer isto e para o querer ainda hoje assim1597. A TFP é a única associação que eu conheça que tem duas diretorias: o Conselho Nacional e a DAFN (Diretoria Administrativa e Financeira 1589 SD 26/7/69. 1590 CM 3/3/85. 1591 SD 26/7/69. 1592 SD 14/7/73. 1593 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1594 SD 26/7/69. 1595 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 1596 SD 7/2/87. 1597 Palavrinha 4/1/81.


448 Nacional). São duas diretorias completas. O Conselho Nacional é presidido por mim, e cuida de toda a parte intelectual, de formação e de todas as atividades da TFP, exceto as econômicas. As econômicas são atribuição da Diretoria Administrativa e Financeira Nacional, a DAFN 1598. Pelos estatutos da TFP, o Conselho Nacional é o órgão deliberativo. E a TFP tem como sócios a mim, os membros do Conselho Nacional, os da DAFN e alguns membros da Ordem Imediata1599. * Como se formou este corpo jurídico eu já o disse, e está na história da TFP. Até mais ou menos 1949, o grupo era constituído apenas pelos membros do posteriormente chamado grupo da Pará e por mim, que era o presidente por ser o segundo mais velho e por condescendência do Dr. José de Azeredo Santos, um ano mais velho do que eu. Também os rapazes da rua Martim Francisco, com o passar do tempo, tornaram-se elementos dirigentes. Ajudou nisto o fato de que a diferença de idade entre nós do grupo da Pará e os do grupo da Martim Francisco, como é natural, foi aos poucos se adelgaçando. E então convencionou-se favorecer uma espécie de fusão entre os membros do grupo da Martim Francisco e os membros do grupo da rua Pará, mantendo-se entretanto, para estes últimos, dentro da nossa vida cotidiana, uma ordem de precedência. Desta forma constituiu-se naturalmente a diretoria desse novo organismo. E quando a TFP foi fundada no ano de 1960, muito naturalmente os membros do grupo da Pará e da Martim passaram a ser os sócios fundadores e ao mesmo tempo a diretoria, com uma meia dúzia de mais novos que também foram indicados para sócios. E esta ficou sendo juridicamente a TFP. Os cooperadores, pelos estatutos, não pertencem à TFP*1600. * Esses cooperadores, inicialmente chamados de militantes, eram os membros dos grupos do Alcácer e da Aureliano, ademais de numerosos jovens de todo o Brasil que foram aderindo aos ideais da TFP, com dedicação integral.

1598 SD 7/4/79. 1599 — A chamada Ordem Imediata — expressão que foi utilizada até o falecimento de Dr. Plinio — era constituída, como o nome indica, de pessoas imediatamente abaixo dos sócios fundadores e diretores, mas que tinham a vários títulos um papel de especial destaque, e mesmo de direção de setores, dentro do grupo de Catolicismo. Algumas dessas pessoas eram sócias, outras não. 1600 SD 7/9/74.


449 Mais tarde formaram-se ainda os correspondentes e esclarecedores, constituídos por famílias que, atuando em seus meios sociais próprios, apoiavam a entidade em toda medida de suas possibilidades. Com o tempo, alargou-se também substancialmente o círculo de simpatizantes dos ideais da TFP por todo o País, o que favoreceu enormemente o êxito incomum das campanhas da entidade.

3. Uma utopia realizada Depois de fundada a TFP, só algum tempo depois que ela começou a atuar, porque o Grupo era ainda pequeno. Era uma sociedade que existia mais no papel do que na realidade. Falava-se muito mais do “grupo de Catolicismo” do que da TFP 1601. A luta pública e a luta de rua da TFP propriamente dita iniciou-se mais tarde1602. Se no tempo em que a TFP foi fundada alguém perguntasse: “É possível fundar uma sociedade com as características da TFP?”, a quase totalidade das pessoas responderia que seria impossível, que isso não nasce mais nos dias de hoje. Aquilo que parecia uma utopia se realizou. E quando uma utopia se realiza isto se chama milagre 1603.

Capítulo II Expansão dos ideais da TFP na América espanhola 1. Argentina Foi nesse período que começaram as viagens por outros países à procura de pessoas afins com o nosso ideário, sobretudo na América Latina, porque nós queríamos formar uma confederação mundial, queríamos agir no mundo inteiro 1604. Organizamos então uma ida de várias pessoas nossas à Argentina e fomos assim tomando contato com grupos católicos de lá1605. A Argentina para mim foi uma revelação 1606. Era uma nação muito 1601 SD 26/7/69. 1602 SD 16/6/73. 1603 RR 15/8/92. 1604 CCEE 8/11/92. 1605 SD 21/7/73. 1606 SD 17/6/89.


450 mais preservada, do ponto de vista religioso e do ponto de vista da prática dos Mandamentos, do que a nação brasileira 1607. Havia na Argentina daquele tempo, e deve ainda haver em alguma medida, um bloco de população seriamente católica, de alto a baixo nas várias classes sociais, compreendendo pessoas tanto da alta sociedade, quanto da média e das classes menos favorecidas. Sobretudo as senhoras eram assim, mas os homens também, e constituíam uma força enorme1608. Vimos lá grande número de pessoas rezando nas igrejas, muito mais do que no Brasil. Igrejas lindas, sérias, imagens com fisionomias combativas, com uma dignidade, um espírito de cavalaria e de audácia que me agradaram1609. O número de senhoras e de homens entrando e saindo para visitas rápidas ao Santíssimo era impressionante. Era gente que estava fazendo negócios, que tinha o tempo tomado, mas que entrava um instante para saudar o Santíssimo. Outros demoravam mais. Homens de posição, de destaque, não tinham a menor dúvida de se afirmar publicamente católicos, sem respeito humano: passavam diante de uma igreja, tiravam o chapéu. Coisa que fazia gosto de ver 1610. Dei-me conta, então, de que a Argentina herdara da Espanha um teor de catolicidade único. E deduzi daí que provavelmente esta deveria ser também a herança da atuação da Espanha em todas as suas antigas colônias — hoje nações independentes na América Latina — numa dosagem de Fé católica muito maior do que eu poderia imaginar à primeira vista. O resultado é que o nosso futuro em matéria de relações exteriores, durante muitos anos, se voltou para a América do Sul 1611. * Conhecemos na Argentina uma direita, em cuja sombra viviam pessoas com uma vocação idêntica à nossa1612. Foi numa dessas viagens à Argentina que encontramos um grupo que imprimia a revista Cruzada, extraordinariamente afim conosco, composto todo ele de jovens, filhos de pais pertencentes a essa direita1613. Indo à Argentina, tomei contato com esses rapazes, e fiquei uma 1607 SD 21/7/73. 1608 CM 21/5/89. 1609 SD 21/7/73. 1610 Jantar 16/1/92. 1611 SD 21/7/73. 1612 SD 17/6/89. 1613 SD 21/7/73.


451 longa temporada lá. Esses contatos frutificaram e em certa ocasião, no ano de 1965, fiz um simpósio com esse grupo de jovens de Buenos Aires. Eles vieram a São Paulo para resolver algumas “de las mil y mil cuestiones” entre os dois grupos. Este simpósio correspondeu a esclarecer o seguinte problema: o que somos nós? Nossa Senhora favoreceu esse simpósio, e no final das contas eles resolveram aderir integralmente aos nossos ideais e formar naquele país uma TFP autônoma mas irmã da nossa. Nasceu assim a TFP Argentina.

2. Chile Também em viagem ao Chile conhecemos o grupo de Fiducia, pessoas jovens que publicavam uma revista do mesmo nome. Com eles a aproximação foi muito mais fácil. Já nos primeiros contatos nos entendemos bem. Logo depois, vieram alguns deles ao Brasil, seguidos depois de outros. E assim começaram a vir em roldana, e nos entendíamos perfeitamente. Eles se transformarem em TFP chilena foi a coisa mais fácil, mais simples, mais desembaraçada que houve.

3. Uruguai A partir do momento em que pudemos dizer que tínhamos grupos com os mesmos ideais na Argentina e no Chile, abriram-se as portas de outros lugares. Na Argentina informaram-me da existência de pessoas com ideias semelhantes às nossas em Montevidéu, onde de fato encontrei um grupo de homens de boa situação social, aproximadamente da minha idade, e alguns até bem mais velhos do que eu. O mais moço desse grupo convidou-me para almoçar em casa dele, onde vi brincar pelo salão alguns meninos, dois dos quais, mais tarde, formaram um grupo em Montevidéu.

4. Viagens por outros países latino-americanos Concomitantemente, membros dos grupos da Pará e da Martim realizaram uma série de viagens apostólicas pelos outros países da América hispânica: Dr. Fernando Furquim de Almeida, Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra, Dr. Sérgio Brotero Lefèvre, Dr. Fábio Xavier da Silveira, Dr. Paulo Corrêa de Brito Filho. Eles percorreram a América do Sul em todos os sentidos 1614. 1614 SD 24/11/73.


452 De cá, de lá e de acolá, em cada país, alguns punhados de jovens respondiam positivamente1615. De maneira que o circuito interbrasileiro de expansão dos ideais da pré-TFP se enriqueceu com o bandeirismo dos componentes do grupo de Catolicismo, bandeirismo esse que passou a ser, além de nacional, também hispano-americano. Foram dois circuitos de viagens, igualmente épicas, igualmente trabalhosas, igualmente dispendiosas, algumas delas frustradas. Mas daí veio todo o surto de grupos afins da América do Sul. No início, como disse, eram os meus amigos da Pará e da Martim que palmilhavam de alto a baixo toda essa zona. Mais tarde também os do grupo do Alcácer e da Aureliano empreenderam viagens semelhantes 1616.

Capítulo III O enorme papel do livro “Reforma Agrária— Questão de Consciência” 1. Anti-agro-reformista desde a adolescência Quando ainda menino, eu ia todos os dias de bonde do bairro dos Campos Elíseos para o Colégio São Luís, localizado na Avenida Paulista. O bonde atravessava a rua da Consolação, e certo dia vi uma faixa: “Ligas Agrárias”. Chegando em casa, perguntei o que eram essas Ligas Agrárias. — Ah! isso é um movimento comunista, feito para dividir as terras dos proprietários. Eu pensei com os meus botões: “É preciso fechar o passo a essa gente, porque por aí vai começar o comunismo”. Em fins de 1959, já com os meus 50 anos, ao ver as primeiras notícias sobre a Reforma Agrária, pensei: “Aqui está o comunismo entrando”1617.

1615 CCEE 8/11/92. 1616 SD 21/7/73. 1617 SD 1/12/73.


453

2. Vislumbre da grande luta numa pequena notícia No ano de 1959, nosso grupo programou uma ida a Poços de Caldas para um pequeno simpósio, do qual participaram cerca de vinte pessoas*. * Este simpósio foi realizado em setembro de 1959, durante o feriado da Semana da Pátria.

Eu me lembro que fazíamos as reuniões no terraço de um bonito hotel que dava para um jardim também muito bonito, tudo contrastando com a situação triste em que nos encontrávamos. Estando ali, certa manhã li uma noticiazinha1618, talvez de 5 ou 10 linhas1619, dizendo que estava a pique de ser lançada no País uma Reforma Agrária 1620. Desci para o café da manhã e disse aos rapazes: — Li no Estado de S. Paulo a notícia de que estão querendo fazer uma Reforma Agrária no Brasil. E se fizerem Reforma Agrária, eu lhes garanto que o nosso grupo intervém. Eles ficaram meio espantados. Eu disse: “Eu lhes garanto. É uma campanha que o nosso adversário lança prematuramente, pois a opinião nacional não está preparada para recebê-la. E essa Reforma Agrária que está sendo planejada é contrária à doutrina católica. Quando a propaganda agroreformista estiver bem estufada, nós lançamos um golpe contra ela”. Vi que eles ficaram esperançados, mas com certa dúvida: “Como pode um grupo tão pequeno dar uma tacada desse tamanho”?1621

3. A Revisão Agrária de Carvalho Pinto São Paulo era na época governado por Carvalho Pinto 1622, muito 1618 SD 14/7/73. 1619 CCEE 8/11/92. 1620 — Apesar do esforço de pesquisa, não conseguimos localizar essa notícia lida por Dr. Plinio. Constatamos apenas que, durante a Semana da Pátria de 1959, saíram diversas notícias batendo na tecla da Reforma Agrária. 1621 SD 14/7/73. 1622 — Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto (1910-1987) foi professor universitário, advogado, político e técnico em assuntos administrativos e econômicos. Sobrinho-neto do antigo Presidente da República Rodrigues Alves, tornou-se governador de São Paulo a 31 de janeiro de 1959. Em julho desse ano, certamente por encomenda do governo paulista, a revista Manchete publicou bombástica matéria de capa cujo título era: “Carvalho Pinto já faz em São Paulo Reforma Agrária”. Nesse mesmo mês, pelo decreto 35.090, ele criou uma comissão incumbida do “estudo de medidas visando a melhor utilização das terras inaproveitadas públicas ou particulares do Estado” (cfr. Célia Aparecida Ferreira Tolentino, in O Farmer contra o Jeca, Cultura Acadêmica Editora, São Paulo, 2011). Comissão esta que seria propulsionada pelo seu secretário da Agricultura, José Bonifácio Coutinho Nogueira, tendo como assessor José Gomes da Silva, futuro presidente do INCRA no governo do Presidente José Sarney.


454 conhecido meu. Ele fora meu colega na Faculdade de Direito. Era pessoa de um trato agradável, simpático. Mas, enquanto governador, lançou de repente uma grande propaganda de Reforma Agrária 1623. Logo nos primeiros meses do ano seguinte, 1960, ele enviou um projeto de Revisão Agrária à Assembleia Legislativa paulista1624, apoiado desde logo por parte da imprensa e rádio, e por quase todo o Episcopado paulista, bem como pela CNBB1625. No próprio texto do governo estadual, tal projeto era apresentado como “um primeiro passo, na verdade pioneiro” de outras Reformas Agrárias1626. E se transformou na lei básica que deveria ser adaptada às diversas regiões da Nação, servindo como modelo para uma lei nacional de Reforma Agrária em futuro próximo. * Esse projeto obedecia a uma doutrina, a uma “filosofia”, a uma “mentalidade”, conforme asseverou o Secretário da Agricultura, Sr. José Bonifácio Coutinho Nogueira, em discurso na Assembleia Legislativa de São Paulo. A consequência dessa Reforma Agrária seria, portanto, a constituição de um imenso poder do Estado sobre os pequenos “proprietários”, reduzidos à escravidão. A “propriedade”, em vez de darlhes a liberdade, os obrigaria a vestir uma camisa de força. A perspectiva era portanto entrar em um estado de coisas socialista, preâmbulo do dirigismo estatal do comunismo 1627.

4. Escrevendo o livro Tendo essa propaganda agro-reformista subido de tom, fui a Santos para escrever a parte doutrinária do livro que depois tomou como título Reforma Agrária—Questão de Consciência. A parte econômica ficou a cargo do economista Luiz Mendonça de Freitas, que pertencia ao grupo da Martim. Lembro-me de que passei de 15 a 20 dias naquela cidade. Era um livro difícil de escrever, pois para produzir todo o efeito que eu queria provocar supunha muita atenção. 1623 Conversa 20/1/93. 1624 — O projeto de lei 154/60, apresentado em 1° de abril de 1960 e aprovado a 28 de dezembro do mesmo ano, foi sancionado por Carvalho Pinto no dia 30, passando a constituir a Lei n° 5.994 (cfr. site da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo - http://www.al.sp.gov.br e também Célia Aparecida Ferreira Tolentino, in O Farmer contra o Jeca, op. cit.). Mas não conseguiu sair do papel. 1625 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1986. 1626 SD 1/12/73. 1627 Relatório analítico sobre a Revisão Agrária paulista enviado a Roma em 1962.


455 * Nessa estada em Santos, durante os vaivéns da elaboração do livro, tivemos uma provação muito dolorosa: o falecimento, no dia 25 de junho de 1960, do meu querido e inesquecível Dr. Antonio Ablas Filho. Ele havia se interessado muito pelo assunto. Quanto mais avançava a redação do livro, mais eu me certificava de que, com a propaganda da Reforma Agrária solta como estava, o livro iria provocar uma enorme repercussão. E se confirmou em meu espírito que, com essa campanha, iríamos passar, de um mero grupo que apenas os especializados em assuntos religiosos conheciam, para um grupo que teria o seu raio de ação expandido a todo o ambiente brasileiro 1628.

5. Mídia, Clero e cúpulas rurais coniventes: cerco a furar A situação do lado político era a seguinte. Tudo quanto era jornal, jornalão e jornalzinho fazia propaganda clara ou velada a favor da Reforma Agrária. Esses órgãos apontavam os fazendeiros como uma classe de sanguessugas que dominavam a lavoura e que a mantinham em regime de atraso. Consequentemente, diziam eles, a lavoura no Brasil não produzia o suficiente para manter a população, por causa do espírito tacanho e atrasado desses fazendeiros e, sobretudo, pela manutenção do regime de grandes e médias propriedades, que eles consideravam, sem base nenhuma na realidade, um regime pouco produtivo. Então, para o Brasil progredir, seria preciso acabar com a grande e a média propriedades, e passar a um sistema de apenas propriedades pequenas. * Desde o primeiro momento, a esquerda católica meteu-se por inteiro na campanha a favor dessa Reforma Agrária 1629. E esta era uma das mais fortes razões para se escrever o livro*. * Dos 187 Bispos que constituíam naquela época a Hierarquia no Brasil, 49 haviam se pronunciado a favor de uma Reforma Agrária socialista e confiscatória. Eles tinham como carro-chefe o então secretário geral da CNBB, Dom Helder Câmara.

1628 SD 14/7/73. 1629 SD 17/7/73.


456 Poucos Bispos se pronunciaram contra. E a grande maioria conservava-se muda. A seguinte poesia comunista de Vinicius de Morais, acolhida e posta em realce no semanário católico-esquerdista Brasil Urgente, dirigido pelo tristemente famoso dominicano Frei Carlos Josaphat, mostra bem a virulência da propaganda agro-reformista levada a cabo pela esquerda católica: “Senhores barões da terra / Preparai vossa mortalha / Porque desfrutais da terra / E a terra é de quem trabalha / Bem como os frutos que encerra [...] Chegado é o tempo da guerra / Não há santo que vos valha. / [...] Queremos que a terra possa / Ser tão nossa quanto vossa / Porque a terra não tem dono / Senhores donos da terra. / [...] Não a foice contra a espada / Não o fogo contra a pedra / Não o fuzil contra a enxada: / Granada contra granada! / — Metralha contra metralha! E a nossa guerra é sagrada! / A nossa guerra não falha!” (Cfr. A escalada da ameaça comunista—Apelo aos Bispos Silenciosos, 4ª edição, 1977, Editora Vera Cruz, São Paulo).

Tal era o apoio que a agitação agro-reformista vinha recebendo dos meios religiosos, que em várias partes do Brasil os fazendeiros começaram a sentir escrúpulos de consciência de possuírem terras herdadas de seus maiores, ou legitimamente adquiridas pelo trabalho. Uns eram assim induzidos a uma atitude entreguista, e outros começavam a revoltar-se contra a Igreja1630. Tudo isto se deu antes do Concílio Vaticano II, quando o prestígio do Episcopado no Brasil era muito maior do que hoje. Uma palavra do Episcopado poderia ser decisiva para encaminhar o País para certo rumo. E se o Episcopado em peso desse apoio à Reforma Agrária, esta seria feita, porque os fazendeiros não tinham ninguém que levantasse a voz a favor deles, nem mesmo as associações de Agricultura. Boa parte delas eram dirigidas por cúpulas coniventes e concessivas, as quais não estavam fazendo nada de prático contra a Reforma Agrária. Somava-se a isto o fato de que a parte da intelligentsia nacional que se ocupava do assunto manifestava-se em geral a favor do agroreformismo*. * Começou simultaneamente a haver agitações agrárias em alguns pontos do País: invasões de terras em Pernambuco e em São Paulo; atuação das Ligas Camponesas do deputado comunista Francisco Julião; tentativa de sindicalização comunista de trabalhadores rurais no Norte do Paraná e outras. Tinham esses protagonistas meios de propaganda possantes, apoio dos comunistas e de certa burguesia comunistoide.

1630 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit., p. 60.


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6. Estratégia e elaboração de RA-QC: importância da coautoria de dois Bispos Para nós punha-se o problema de levantar a defesa da propriedade privada, inclusive dando aos fazendeiros dois recursos que eles não tinham para se defenderem. O primeiro recurso era mostrar que havia um livro que defendia a legítima causa deles. E o segundo era mostrar à opinião pública que, junto com dois leigos católicos, dois Bispos também lutavam contra a Reforma Agrária: Dom Mayer e Dom Sigaud. O público precisava ver que esses dois Bispos tachavam a Reforma Agrária de comunistizante, num período em que ainda havia horror ao comunismo. E perceber que os católicos não eram unânimes em favor da Reforma Agrária, ao contrário do que dava a entender a propaganda. Com esses dois recursos na mão, seria possível mostrar aos fazendeiros que, enquanto católicos, eles não eram obrigados em consciência a estar de acordo com a Reforma Agrária. * Era indispensável a revisão do texto e a assinatura dos dois Bispos — Dom Mayer e Dom Sigaud. Levei a minuta do livro para eles, pedi-lhes que o revissem e perguntei se estavam de acordo. E convidei-os a darem seus nomes como coautores. Essas tratativas foram realizadas durante um Congresso Eucarístico em Curitiba 1631, ao qual deveriam comparecer todos os Bispos brasileiros, portanto Dom Mayer e Dom Sigaud também*. * Era o VII Congresso Eucarístico Nacional, realizado entre os dias 5 e 8 de maio de 1960.

Eles ali, nos tempos vagos, entre um ato e outro do Congresso, foram revendo a minuta1632. Reuníamo-nos na saleta de meu quarto no hotel. E, finda a revisão, eles concordaram em dar o nome como coautores. Tanto Dom Mayer como Dom Sigaud fizeram várias observações. Dom Sigaud até acrescentou páginas bem interessantes. Dr. Plinio Xavier também foi de muita valia nessa ocasião, ajudando a examinar a parte econômica escrita pelo Dr. Luiz Mendonça de Freitas1633. 1631 SD 14/7/73. 1632 SD 1/12/73. 1633 SD 14/7/73.


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7. A revisão de Dr. Castilho Afinal, depois de tudo acertado, confiei ao saudoso e querido Dr. José Carlos Castilho de Andrade a tarefa de fazer a revisão final do texto. Ele me pediu um número “x” de dias. Dr. Castilho era um revisor muito competente, meticulosíssimo e implacável: não deixava passar nada. Por isso era um bom revisor. Um revisor indolente não me serviria para nada. O revisor verdadeiramente amigo é o que se coloca diante de mim como se fosse um inimigo. O modo de ser dele era singular. Quando se encontrava diante de uma situação perplexitante, ele apertava e estalava os quatro dedos da mão e dizia: “Bem...” Feita a revisão, ele sentou-se e me disse: — Bem, Dr. Plinio, eu não sei o que seria melhor: o senhor escrever outro livro, ou fazermos a revisão deste mesmo, porque tenho 400 objeções a levantar. Diante da ideia de escrever de novo o livro, tive um sobressalto. Mas corrigir quatrocentos defeitos apontados pelo Dr. Castilho equivalia mais ou menos a corrigir seiscentos. Porque eu apontaria quatrocentas soluções, das quais duzentas ele acharia defeituosas. Então eu disse: — Não, Castilho, prefiro rever as suas objeções. E fomos vendo ponto por ponto, sempre para a frente. Em várias observações eu não concordava com ele, e saía discussão. Mas tomei a deliberação de, sempre que não conseguisse convencê-lo, eu optaria pela opinião dele, para não haver perigo de "torcer" por mim mesmo. Pode-se imaginar com que plenitude de alegria vi Dr. Castilho chegar à última folha com a mesma calma com que ele havia começado a primeira, e me dizer: — Bem... então agora ... está tudo terminado, tudo revisto 1634.

8. Receio de vazar a notícia do livro antes da hora Terminada afinal a revisão do livro, tínhamos que entregá-lo a uma tipografia. A que tipografia entregar? A questão era delicada: se o Clero esquerdista soubesse antes da hora do lançamento desse livro, poderia vir uma carta do Núncio obrigando 1634 Chá 30/4/93.


459 Dom Mayer e Dom Sigaud a retirarem os seus nomes. E tirados os nomes dos Bispos, grande parte do impacto do livro cessaria*. * Este receio não era vão. O Núncio na época era Dom Armando Lombardi, o qual, segundo o ex-deputado Márcio Moreira Alves, costumava almoçar semanalmente com Dom Helder Câmara, cujo grupo procurava sempre apoiar (cfr. Márcio Moreira Alves, O despertar da Revolução Brasileira, Empresa de Publicidade Seara Nova, Lisboa, 1974, p. 220). E pouco depois ele iria tentar fazer calar Dom Mayer e Dom Sigaud, como será dito adiante.

Batemos então de tipografia em tipografia, até chegar à que editava a Revista dos Tribunais em São Paulo. Contratamos o serviço e entregamos o texto. Tratava-se de fazer a impressão a toda pressa, mas a tipografia estava cheia de encomendas. E a impressão se arrastava. Afinal, ela ficou pronta. Não sabemos que proteções de Nossa Senhora houve, mas a Cúria não teve notícia prévia do livro.

9. Estoura a “bomba”: best-seller nacional Isto resolvido, apareceu mais um problema: a quem confiar o lançamento? Havia uma grande empresa de distribuição de livros, chamada O Palácio do Livro, localizada na Praça da República, em São Paulo. Os Xavieres foram tratar com o diretor e este manifestou muito boa vontade. E ficou combinado que ele se incumbiria da distribuição nas 50 livrarias com que tinha contrato. Grande número delas em São Paulo, algumas eram no Rio de Janeiro e outras do interior do Estado. Ele nos sugeriu utilizarmos também, na propaganda, os serviços de uma organização chamada Clube do Livro, que possuía um fichário de milhares de leitores. E aí começou, a partir de 10 de novembro de 1960, a grande difusão de RA-QC*1635. * O primeiro anúncio foi publicado em página inteira na edição de setembro de 1960 de Catolicismo. No número do mês seguinte, ou seja, em outubro, saiu um artigo de Dr. Plinio contendo um largo resumo das teses centrais da obra. E em 10 de novembro O Estado de S. Paulo publicou, pegando todo o rodapé da primeira página, o seguinte anúncio: “Em todas as livrarias do País: Reforma Agrária—Questão de Consciência — Um livro de grande atualidade que aponta os aspectos socialistas e anticristãos da Reforma Agrária” (v. O Estado de S. Paulo, 10/11/60).

Foi uma superbomba! 1636 O livro se espalhou pelo Brasil inteiro1637 e 1635 SD 1/12/73. 1636 SD 16/7/88.


460 a certa altura foi reconhecido como best-seller nacional pela seção bibliográfica do jornal O Globo (30/6/61)1638. Num relance, o Brasil ficou sabendo do livro. A primeira edição, com 5.000 exemplares, esgotou-se em três semanas. A seguinte foi de 7.000 exemplares. A terceira foi de 10.000 exemplares e esgotou-se em 2 ou 3 meses. No começo do ano seguinte, publicamos a 4ª edição, de 8.000 exemplares* 1639. * Entre as medidas socialistas denunciadas no livro, figuravam a eliminação das grandes e médias propriedades pela partilha compulsória de terras, a desapropriação por preço muito inferior ao real e a instituição do regime de propriedades comunais. De outro lado, RA-QC analisava alguns aspectos sociais e religiosos do problema: se podia existir socialismo cristão; se era justo haver desigualdades econômicas e sociais; se o fazendeiro era um parasita ou um benemérito do País; se a Reforma Agrária viria abalar a instituição da família; e ainda outros. Na parte econômica, Dr. Luiz Mendonça de Freitas mostrava que a Reforma Agrária pretendia eliminar não só as grandes, mas também as médias propriedades. E provava com dados estatísticos que a agricultura brasileira vinha cumprindo o seu dever. Além disso, fazia a defesa de nossa estrutura rural e apontava os males do excessivo intervencionismo estatal, do confisco cambial e outras medidas do gênero.

11. Assembleia Legislativa paulista: convite para debate O impacto causado pelo livro, como previsto, foi enorme. Tanto é que, seis dias após o lançamento, a Comissão de Economia da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo nos convidou para falar sobre a Revisão Agrária no âmbito da Comissão* 1640. * A sessão realizou-se no dia 16 de novembro de 1960. O tema era a Revisão Agrária proposta pelo governador Carvalho Pinto.

Para isto, Dom Sigaud e Dom Mayer vieram para São Paulo, e nos preparamos para a discussão do assunto perante os membros da Comissão. Qual não foi a nossa surpresa quando verificamos que, dado o interesse suscitado pelo assunto, a Comissão de Economia iria fazer a sessão no próprio plenário da Assembleia. Havia grande número de

1637 CCEE 8/11/92. 1638 Conversa 20/1/93. 1639 SD 1/12/73 — Reforma Agrária—Questão de Consciência teve doze edições: no Brasil, cinco edições, a mais recente delas no primeiro trimestre de 2011, comemorativa dos 50 anos de lançamento; na Argentina (1963), Espanha (1969) e Colômbia (5 edições), num total de mais de 43 mil exemplares. 1640 Simpósio 26/2/66 (I).


461 deputados, inclusive alguns esquerdistas, e a galeria ficou toda tomada. Os autores do livro abordaram os vários aspectos do projeto de Revisão Agrária, ressaltando notadamente o caráter igualitário e anticristão de seus dispositivos. Fui o primeiro a falar, e em seguida os dois Bispos, Dom Sigaud e Dom Mayer. Por fim, o economista Mendonça de Freitas falou sobre os aspectos econômicos do projeto. Enfrentamos depois um acalorado debate. Várias perguntas foram dirigidas a Dom Sigaud, a Dom Mayer e a mim. Dom Sigaud e Dom Mayer responderam muito bem. E Dr. Luiz Mendonça de Freitas expôs com sobranceria extraordinária os assuntos atinentes à sua especialidade1641. Esse nosso pronunciamento teve em São Paulo uma repercussão enorme. Foi um belo lance da campanha anti-agro-reformista1642.

12. Na TV Tupi, polêmica com Paulo de Tarso Realizei também um debate público em São Paulo, no programa O Grande Júri, com o deputado Paulo de Tarso, ex-prefeito de Brasília, não propriamente sobre a Reforma Agrária, mas sobre se o socialismo e o catolicismo eram compatíveis* 1643. * Neste momentoso debate, travado no dia 24/10/61 ante as câmaras da TV Tupi de São Paulo, o deputado pedecista Paulo de Tarso (ele fora prefeito de Brasília no governo Jânio Quadros e era um expoente da esquerda católica brasileira) defendia a posição de que o socialismo era compatível com a doutrina da Igreja, e o capitalismo condenado por Ela. Com base nas encíclicas papais que tratavam do assunto, Dr. Plinio demonstrou o contrário: que o capitalismo, em si, não era condenado pela Igreja, mas tão somente em seus abusos; e o socialismo, este sim, estava condenado até mesmo nas suas formas mitigadas. Ainda neste debate, Dr. Plinio foi colocando problemas que levaram o deputado pedecista a revelar convicções sócio-econômicas que o público não lhe conhecia. Isto contribuíu na época para desvendar, em seus reais matizes, as tendências ideológicas do chamado esquerdismo católico (cfr. Meio século de epopeia anticomunista, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 1980).

1641 SD 14/7/73 — Ver reportagem em Catolicismo n° 121, de janeiro de 1961. 1642 Simpósio 26/2/66 (I) — Um registro escrito por um membro do grupo de Catolicismo, não assinado, fornece alguns dados interessantes: “Os debates havidos produziram um grande efeito, a ponto de que deputados agro-revisionistas tentaram organizar um trabalho junto à imprensa especializada visando evitar a publicação de qualquer notícia a respeito. Mas isto foi inútil. Em pouco tempo a notícia se espalhou, vários jornais a comentaram, a visita foi filmada e apresentada na televisão e mais tarde exibida em noticiário cinematográfico nos principais cinemas de São Paulo, devendo a seguir ser passada em todo o Brasil”. 1643 Conferência em Belo Horizonte sobre a Reforma Agrária, 29/10/61.


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Capítulo IV Patenteia-se a divisão no Episcopado e no laicato 1. Dom Armando Lombardi exige silêncio dos dois Bispos e tenta amarrar as suas mãos Dias depois, Dom Sigaud e Dom Mayer receberam uma carta do Sr. Núncio Apostólico, Dom Armando Lombardi, em que este pedia aos dois Bispos para explicar as razões das críticas que faziam à Revisão Agrária, ordenando-lhes ao mesmo tempo que “evitassem manifestações públicas sobre a matéria”*. * Os dois Bispos responderam, em carta conjunta ao Sr. Núncio, que “tendo recebido só no dia 27 de novembro a carta de V. Excia. do dia 15 do corrente”, estavam preparando "com a devida urgência o parecer que V. Excia. pedia". Mas aproveitavam para significar a Dom Armando Lombardi a perplexidade deles diante de fatos que, "segundo supomos, não se enquadram nas perspectivas que as cartas que V. Excia. nos escreveu no dia 15 sugerem. Com efeito, desejando conhecer nossas objeções sobre o projeto de revisão agrária [...], e pedindo-nos que silenciássemos por algum tempo sobre a matéria [...], um conjunto de fatos parece prenunciar uma ofensiva pública de vários Senhores Bispos contra a atitude por nós assumida”. Depois de se referirem a notícias confirmando esses rumores — o anunciado pronunciamento do Episcopado paulista que seria uma réplica ao livro RAQC, o discurso de Dom Helder em Brasilia, e as declarações do Sr. Cardeal de São Paulo favoráveis à Revisão Agrária — concluíam: “A um diplomata da alta categoria de V. Excia. não escaparão desapercebidas as consequências a que podem conduzir os fatos aqui narrados. Embora não tenhamos recebido convite para essa reunião de Senhores Bispos, que se realizará antes mesmo de terem chegado às mãos de V. Excia. as [nossas] razões [...], não receiamos para nossas pessoas qualquer refutação. Estamos certos de estar com a verdade, e, forçados a voltar à liça por um dever de honra, e segundo os princípios da justiça natural, saberemos com a graça de Deus fazer triunfar a boa doutrina. Contudo, desejamos que todas as consequências que dessa reunião se seguirem pesem apenas sobre os que a promovem” (cfr. carta de Dom Sigaud e Dom Mayer ao Sr. Núncio Dom Armando Lombardi, de 1°/12/60).

2. Pronunciamento dos Bispos paulistas contra o livro Silenciados os dois Bispos, menos de um mês após o lançamento de RA-QC, Dom Helder Câmara, enquanto secretário geral da CNBB, começou a organizar um pronunciamento coletivo do Episcopado paulista


463 contra o nosso livro e de apoio à Revisão Agrária*1644. * Um dos sintomas dessa campanha episcopal foi o aviso que de repente começou a aparecer nos principais jornais de São Paulo, anunciando com insistência e de modo enigmático: “Reforma Agrária—Questão de Consciência: assista dia 5, às 21,30 horas, nos Canais 4, 5 e 7”.

Nesse momento, eu estava no Rio passando alguns dias 1645. * Afinal, no dia 5 de dezembro reúnem-se os Bispos das Províncias Eclesiásticas de São Paulo, com a presença de Dom Helder Câmara, e apoiam a Revisão Agrária promovida pelo Governo do Estado. E em sensacional programa de TV, sete Bispos divulgaram largamente o pensamento da Assembleia sobre o assunto* 1646. Todos eles fizeram declarações, não diretas, mas implicitamente contra o livro. * Vale a pena registrar o nome desses Bispos: Dom Helder Câmara, enquanto relator e Secretário da CNBB; Dom João Batista da Motta e Albuquerque, Arcebispo de Vitória; Dom Antonio Macedo, Bispo Auxiliar de São Paulo; Dom Aniger Melilo, Bispo de Piracicaba; Dom David Picão, Bispo de São João da Boa Vista; Dom Jorge Marcos de Oliveira, Bispo de Santo André; e Dom Vicente Zioni, Bispo Auxiliar de São Paulo. Dom Helder, durante a entrevista, havia afirmado estar “expressamente autorizado por todos os Arcebispos e Bispos de São Paulo”. Perante a História cumpre assinalar que Dom Henrique Gelain, então Bispo de Lins, não compareceu à reunião do Episcopado paulista, e não consta que se tenha solidarizado com suas conclusões. Dom José Maurício da Rocha, Bispo de Bragança Paulista, e Dom Germano Vega Campón, Bispo titular de Oreo e residente no Estado de São Paulo, além de não comparecerem, solidarizaram-se publicamente com RA-QC. O pronunciamento do Episcopado paulista deixava no ar uma perplexidade sobre que atitude devia tomar o simples fiel quando os Pastores divergem entre si. Assim, por ordem de Dom Mayer, o Secretário do Bispado de Campos, Padre João Bloes Netto, publicou um Esclarecimento, em que recordava os ensinamentos da Sagrada Teologia sobre o Magistério dos Bispos. Frisava esse Esclarecimento que, embora cada Bispo fale com autoridade própria a ele conferida pelo mesmo Cristo, seu ensinamento não tem o privilégio da infalibilidade, o qual assiste apenas ao Soberano Pontífice. Quando há divergências de doutrina entre Bispos, o fiel deve procurar conhecer o ensinamento pontifício para se conformar com ele (cfr. Um homem, uma obra, uma gesta, Edições Brasil de Amanhã, Artpress, São Paulo, 1988, pp. 69 e ss.).

Nós estávamos no nosso auditório da rua Vieira de Carvalho, com a televisão colocada na mesa de conferências e assistindo a transmissão. 1644 Relatório para o Cardeal Ottaviani, 20/12/60. 1645 SD 8/12/73. 1646 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit., p. 60.


464 Não se sabe por que, as figuras dos Bispos saíam deformadas no vídeo, uma coisa espantosa. Dom Helder, então, parecia uma obra prima de arte moderna! Quer pelo desfiguramento das pessoas, quer porque já tínhamos difundido muito o livro, o fato concreto é que a cena não produziu nenhum efeito sobre o público e desagradou profundamente a classe dos proprietários rurais 1647. * Um comentário muito de passagem sobre o Núncio Dom Armando Lombardi. Ele e Dom Helder Câmara tinham almoços dominicais na Nunciatura Apostólica, que ainda funcionava no Rio de Janeiro. E nesses almoços eram “cozinhadas” as nomeações de Bispos inovadores* 1648. * Dom Mayer e Dom Sigaud decidiram submeter “ao alto julgamento da Suprema Sagrada Congregação do Santo Ofício, a declaração de 5 de Dezembro do Venerando Episcopado Paulista”, em ofício dirigido ao seu secretário Cardeal Alfredo Ottaviani (cfr. Ofício de Dom Mayer e Dom Sigaud ao Cardeal Ottavini, de 20/12/60). Poucos meses depois, escreviam nova carta ao mesmo Cardeal Ottaviani, em que faziam notar “a gravidade da situação criada pela atuação perniciosa de S. Excia. Revma. Dom Helder Câmara como Secretário da C.N.B.B. Aos poucos S. Excia., fortemente apoiado pela Nunciatura Apostólica, vai levando o Episcopado das várias províncias a posições francamente socialistas. [...] A desorientação do Secretário e dos Arcebispos que dirigem a C.N.B.B. é tão grande, seus conceitos e suas teses a respeito do direito de propriedade são tão eivados de socialismo que, em uma mensagem de solidariedade que a Comissão Central da Conferência dos Bispos do Brasil enviou aos Bispos da atormentada Ilha de Cuba se leem surpreendentes afirmações. [...] Escrevendo a Cuba, onde os católicos devem ser sustentados com firmeza em sua luta contra o comunismo e em favor do instituto da propriedade, os membros da Comissão [Central] da C.N.B.B. põem tais restrições ao direito de propriedade que no fim, quem tem razão é Fidel Castro. [...] O Episcopado Nacional está sendo tangido para um conceito socialista da propriedade pelos membros da Comissão Central, com o Sr. Dom Helder Câmara à frente. Infelizmente esta penetração de ideias vai progredindo rapidamente e vai se traduzindo em atitudes igualitárias, em fomento escandaloso de greves, em apoio a legisladores de tendências esquerdistas [...]. Sabemos que em vários Senhores Bispos estas atitudes provêm da confiança que depositam nos elementos que dirigem a C.N.B.B., que veem bafejada pelo apoio da Nunciatura. Mas com isso se vai quebrando a resistência dos católicos, suas ideias vão se corrompendo, os Bispos que se opõem a essas ideias são apresentados como cismáticos, separatistas, sua atitude vai sendo destruída, e os espíritos vão sendo levados a abraçar ideias e soluções socialistas, sob o pretexto de que tais princípios e soluções correspondem à doutrina da Santa Igreja. Sabemos 1647 SD 14/7/73. 1648 RR 7/5/77.


465 que a maioria dos Srs. Bispos tem uma grande docilidade diante dos ensinamentos da Santa Sé. Esta docilidade é de grande vantagem, pois permite à Santa Sé guiá-los com facilidade. Mas como esta docilidade não vem acompanhada de bastante ciência, discernimento, prudência e energia, facilmente acontece que a presença da Sagrada Púrpura e o nome da colenda Nunciatura façam com que a boa fé de um Bispo não dê o fruto que deveria dar” (Carta de Dom Mayer e Dom Sigaud ao Cardeal Ottavini, de 4/2/61).

3. Dom Sigaud elevado a Arcebispo de Diamantina Estávamos no meio de toda essa polêmica quando ocorreu um episódio que iria marcar a nossa história. Eu tinha ido passar alguns dias no Rio. Ainda no hotel, logo que acordei, lembro-me de ter feito mentalmente um balanço de nossa situação. Desci em seguida para o hall, onde já me esperavam Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra e Dr. Fábio Xavier da Silveira, que haviam me acompanhado nessa viagem. Nisto me telefona de São Paulo o Dr. José Fernando de Camargo. Eu disse ao Fábio: — Você me faz um favor? Atenda o telefone e veja o que quer o José Fernando. Volta o Fábio do telefonema dando risada. Ele era muito engraçado, muito humorista: — O senhor não imagina o que aconteceu. — Diga o que é. — O Dr. José Fernando deu a notícia de que o Papa elevou Dom Sigaud a Arcebispo de Diamantina. A nomeação de Dom Sigaud para Arcebispo de Diamantina figurou como uma aprovação indireta da Santa Sé ao livro RA-QC, e alterou em alguma medida o panorama que ia se delineando turvo*. * Essa nomeação havia se dado a 20 de dezembro de 1960, mas a notícia só foi dada a público no dia 31 do mesmo mês. Ele tomou posse de sua Arquidiocese no dia 16 de abril de 1961. O n° 126 de Catolicismo, de junho de 1961, fez uma cobertura do evento.

Eu me lembro de que fizemos festa a respeito da passagem de Dom Sigaud para Diamantina, mandamos notícias para os jornais e realçamos que era um dos autores de RA-QC. Os proprietários rurais, com o livro na mão, entenderam o seguinte: “Esses Bispos de São Paulo pensam tal coisa. Mas esse outro, que acaba de ser promovido pelo Papa a Arcebispo de Diamantina, pensa de outra


466 maneira. Logo, pomos em dúvida o que dizem os Bispos paulistas, e não vamos ligar para eles”. E assim a classe rural se firmou em sua posição contra a Reforma Agrária.

4. Difusão pública em feiras e exposições rurais Para aumentar a venda do livro, lançamos pela primeira vez as campanhas de difusão em feiras, exposições rurais e outros eventos públicos. E isto marcou uma mudança de fase na história da TFP, recentemente fundada. Nosso pessoal ainda não usava as características insígnias de campanha, ou seja, a capa vermelha e o estandarte. Tínhamos só o antigo distintivo de congregado mariano. Os rapazes começaram também a viajar pelo Brasil inteiro, numa espécie de prenúncio das caravanas itinerantes 1649. * Quando a campanha começou, a pré-TFP era muito pequena. Com essas sucessivas atitudes públicas, ela foi ganhando prestígio. E a grande alta da TFP veio depois com as campanhas de rua. Aí é que ela tocou o zênite 1650. Pode-se dizer que essa pré-TFP mudou de estatuto, porque ela passou a ser um grupo já então conhecido no País inteiro, com projeção nacional.

5. Classe rural aliviada: quebra-se o mito da unanimidade em torno da esquerda católica Premido pelas circunstâncias, na época um líder rural veio visitarnos para agradecer o livro em nome da associação dele, e disse nessa ocasião que os fazendeiros, antes do livro, tinham a sensação de estar num incêndio sem socorro. Quando apareceu o nosso livro, eles tiveram a impressão de quem vê chegar o corpo de bombeiros jogando água e apagando o incêndio. Esta era a situação em que eles estavam 1651. Outro efeito. Dom Helder Câmara, que teve o maior apoio publicitário jamais obtido na história do Brasil por nenhum brasileiro (nem mesmo o falecido Presidente Getulio Vargas conseguira tal apoio

1649 SD 14/7/73. 1650 SD 8/12/73. 1651 SD 14/7/73.


467 publicitário), ameaçava o Brasil com o seu movimento de "pressão moral libertadora" de sentido fortemente agro-reformista1652. Pois bem, com a nossa campanha, o público em geral começou a ver que aquele Prelado não era o porta-voz indiscutível da Igreja, nem levava atrás de si a massa dos católicos 1653.

6. Críticas esperadas, críticas não esperadas Estávamos certos, de antemão, de que o livro sofreria muitas críticas, e como pressupúnhamos que, dentre elas, algumas pelo menos seriam substanciosas, destras, corteses, prelibávamos os prazeres intelectuais rijos, inerentes às lutas ideológicas travadas segundo as nobres normas do cavalheirismo e da lógica. A reação prevista veio de fato, mas quão diferente do que esperávamos! Nenhum grande artigo apareceu contra nosso livro, opondo tese a tese e argumento a argumento, com a lealdade e o vigor do torneio intelectual de boa lei. Pelo contrário, pulularam as pequenas notas de imprensa, carregadas de invectivas pessoais ou afirmações gratuitas, que por sua inteira inconsistência não mereciam, e em rigor nem sequer comportavam, qualquer réplica*. * Uma dessas declarações contrafeitas foi a do então Secretário da Agricultura de São Paulo, o Sr. José Bonifácio Coutinho Nogueira, o qual considerava a difusão do livro neste Estado “inoportuna, desde que poderá causar trauma ideológico no espírito dos católicos”. Dizia ele que “somente Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta está autorizado a falar em nome da Igreja em São Paulo e a ele cabe a última palavra sobre o assunto [sic!]. Sabemos que a opinião de Sua Eminência é favorável ao projeto de Revisão Agrária, conforme manifestação anteriormente feita, bem assim como de outro príncipe da Igreja, Dom Helder Câmara, do Rio de Janeiro. Os autores do referido livro [...] pertencem a uma parcela de reacionários apegados a sistemas superados” (Última Hora, São Paulo, 25/11/60). Na época, essa declaração causou estranheza. Pois, para defender a Reforma Agrária, o Secretário da Agricultura paulista não alegou razões técnicas de sua competência, mas se erigiu em zeloso campeão do que lhe pareceu ser a boa ordem na Igreja!

Em uma tentativa de criar condições para um debate de alto nível, escrevi um artigo (Julio Verne, Homero e o agro-revisionismo, Diário de São Paulo, 11/1/61) convidando os opositores de Reforma Agrária−Questão de Consciência a modificarem o tom de suas investidas, despindo-as de seu cunho pessoal e dando-lhes mais conteúdo intelectual.

1652 Conferência na Casa de Portugal 12/9/68. 1653 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.


468 Nada consegui, pois embora a obra continuasse a figurar entre as mais procuradas nas livrarias, as críticas, que já vinham sendo menos frequentes, tanto quanto pude apurar, cessaram inteiramente. * Entretanto, não dava eu por frustrada a esperança de um verdadeiro e sério debate sobre a matéria. É que, antes mesmo de ser publicado meu apelo no Diário de São Paulo, ouvira dizer que o Sr. Gustavo Corção estava preparando uma série de artigos "de arrasar", contra Reforma Agrária−Questão de Consciência. Jornalista de relevo, polemista lúcido e eficiente, dotado de sólida inteligência e boa cultura, elevaria ele, sem duvida, o debate ao nível esperado. Aguardava eu, pois, com vivo interesse, a temível investida. Os artigos saíram, por fim, em numero de três. Não os li desde logo, pois as semanas em que eles vieram a lume coincidiram com o período da enfermidade e morte de meu velho e querido pai*. * Coincidiram também com a realização do I Congresso Latino-americano de Catolicismo (25-1 a 1º-2-1961). Os artigos de Gustavo Corção tinham como título Reforma Agrária: Questão de Consciência; Reforma agrária e direito de propriedade; e Harmoniosa desigualdade, publicados em O Estado de S. Paulo de 22/1/61, 29/1/61 e 5/2/61 respectivamente.

Assim que pude, entretanto, tratei de me inteirar deles. E confesso que tive uma decepção a mais, acompanhada de um vivo sentimento de perplexidade. A decepção veio da nota panfletária do ataque. Esperei que ela não estivesse presente nos artigos, ou que pelo menos estes espelhassem algo do talento do autor, isto é, que fossem concisos, brilhantes, inteligentes. Pelo contrário, vieram opacos, prolixos e pesadamente injuriosos, sem conseguir vulnerar de fato a parte adversa. Mas o pior da desilusão me veio da circunstância de que, logo no primeiro relance, os três artigos do Sr. Gustavo Corção me deixaram ver que o fogoso crítico não lera seriamente Reforma Agrária−Questão de Consciência. Ora, doía-me a perspectiva de ter de afirmar isto de público, a propósito de um intelectual com quem muitas vezes não tenho estado de acordo, mas que merece, não a fúria destemperada com a qual tratou nossa obra e de algum modo nossas pessoas, mas uma real consideração*. * Dr. Plinio respondeu a esses ataques em uma série de três artigos publicados em O Jornal, Rio de Janeiro, 17, 18 e 19/3/61 e Diário de S. Paulo, 18, 21 e 23/3/61. Catolicismo transcreveu o primeiro dos três artigos sob o título: Reforma Agrária−Questão de Consciência: livro odioso como a


469 invasão da Hungria? (Catolicismo nº 124, abril de 1961); e depois os outros dois artigos, sob o título Reforma Agrária−Questão de Consciência − livro que o Sr. Gustavo Corção não leu (Catolicismo nº 125, maio de 1961). Nesses artigos ficava provado que o ilustre jornalista havia formulado suas críticas sem antes estudar o livro com a devida atenção. O jornal O Estado de S. Paulo, que havia publicado os artigos de Corção, não publicou as respostas.

7. Repercussão na França: polêmica com o Cardeal Motta Outro episódio interessante dessa polêmica. Nós não tínhamos adversário mais impetuoso contra a causa que sustentávamos do que o Cardeal Motta1654. Ele tomou desde logo uma posição francamente favorável à Revisão Agrária. Mais tarde ele se poria decididamente ao lado de Jango Goulart1655. Enquanto Cardeal de São Paulo, deu uma entrevista para uma revista francesa, dizendo que o Episcopado Nacional era favorável à Reforma Agrária, com exceção da voz dissonante de dois Bispos*. * A entrevista foi concedida à revista católico-esquerdista francesa Informations Catholiques Internacionales de 15/12/61. O Purpurado afirmava que “os Cardeais, Arcebispos e Bispos do Brasil” estavam concordes “sobre a oportunidade e a urgência de uma reforma agrária digna desse nome”, não obstante “a opinião dissonante de dois Bispos, coautores de um livro largamente difundido e, mais bem, favorável ao ‘statu quo’“.

Dom Sigaud e Dom Mayer escreveram então uma carta a Dom Motta impugnando suas declarações à imprensa francesa. Mas a cortesia do Sr. Cardeal não se aplicava nas relações para conosco, de forma que não deu a menor resposta. Para ele, a política era a do fato consumado: ou se aceitava sem discutir o que ele queria, ou ficava-se acusado de cindir o Episcopado... Dom Sigaud e Dom Mayer mandaram ainda, se não me engano, mais duas cartas no mesmo teor. Na última delas, anunciavam que se veriam obrigados a sair a público. E o Cardeal novamente nada respondeu. Eles então publicaram nos jornais uma declaração, mostrando que o Cardeal havia desfigurado a realidade e que boa parte do Episcopado não havia se manifestado a favor da Reforma Agrária*. * Nesse comunicado de Dom Sigaud e Dom Mayer, publicado como seção livre na grande imprensa do Rio e de São Paulo, os dois Prelados faziam notar que, dos 187 Bispos brasileiros, apenas 49 haviam feito declarações que, ora mais claramente, ora menos, divergiam de RA-QC. E que os outros 138, entre eles dois Cardeais (o do Rio e o de Salvador) não se haviam

1654 SD 14/7/73. 1655 SD 16/7/88.


470 pronunciado sobre a matéria. Ademais, o livro de que eram coautores propugnava uma reforma agrária sadia, de onde não se poder afirmar que seus autores fossem pura e simplesmente “favoráveis ao ‘statu quo’“ (cfr. Catolismo n° 136, abril de 1962).

* Pouco depois desse comunicado, fui a uma festa de aniversário onde encontrei uma pessoa que tinha certas relações de família comigo e também com o Cardeal. E a interpelei: — Como está a questão do Cardeal? Ela disse: — Naquela questão do Cardeal vocês ganharam. E o Cardeal não vai lhes dar resposta nenhuma. Mas vai sair uma reparação do governo a ele, uma coisa extraordinária. De fato, o governo estadual promoveu atos de reparação a ele nas escadarias da Catedral, com rojões e fogos de artifício, mas sem dizer a propósito do quê era a reparação. E aquilo morreu. O público paulista não deu a menor atenção. Esses embates, naqueles tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, eram uma coisa nunca vista. Mas, grosso modo, graças a Deus, nesse episódio a Reforma Agrária perdeu mais uma batalha1656.

Capítulo V Reflexos políticos de uma campanha ideológica 1. Viagem a Brasília: 27 mil agricultores contra a Reforma Agrária Nós resolvemos, a essa altura, lançar um abaixo-assinado de fazendeiros, dirigido ao Congresso Nacional, local onde estava sendo votada uma lei de Reforma Agrária, pedindo para que essa lei não fosse aprovada: aderiram 27 mil fazendeiros do Brasil inteiro. Encerrado esse abaixo-assinado, Dom Sigaud, Dom Mayer, Dr. Luiz Mendonça e eu, acompanhados de Dr. Plinio Xavier, fomos a Brasília para entregá-lo ao Congresso Nacional. Isto no mês de julho de 1963. 1656 SD 14/7/73.


471 Fomos muito felizes, porque já no avião encontrei o então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli 1657. Apresentei Dom Mayer e Dom Sigaud a ele e fui falando a respeito da questão. Eu tinha conhecido Ranieri Mazzilli em Paris, na Chapelaria Gelot da Place Vendôme. Fui encomendar um chapéu e ele estava lá também. Ele se aproximou e me disse: “O senhor não é brasileiro?” — “Sou sim, e o senhor também?” — “Também”. Trocamos os nomes e vimos que éramos do mesmo Estado; ele é paulista da cidade de Caconde. Daí as nossas relações. Chegando a Brasília, no dia seguinte fomos em comissão à Câmara dos Deputados e ao Senado. Tínhamos revisto o abaixo-assinado com todo o cuidado, verificando se as assinaturas estavam em ordem. E tínhamos noticiado pelos jornais que íamos entregá-lo. Chegamos à sala de Ranieri Mazzilli, ele nos recebeu logo. Ele é um homem de um trato muito agradável, muito gentil. Fiz um discursinho e entreguei o abaixo-assinado, na presença de representantes da imprensa. Conversamos um pouco e eu disse: — Bem, Dr. Mazzilli, o senhor vai me dar licença, Dom Mayer, Dom Sigaud, Dr. Mendonça e eu vamos agora visitar o presidente do Senado e mostrar a ele o abaixo-assinado. Depois trago-o de volta para o senhor. Ele, com toda amabilidade, me disse: — Não, Dr. Plinio, o abaixo-assinado está entregue. Ele agora vai para os técnicos da Câmara examinarem. Ou seja, os técnicos da Câmara iriam examinar se as assinaturas eram autênticas, que fazendeiros haviam assinado e que influência política tinham esses fazendeiros. Graças a Deus estávamos com a consciência tranquila1658. Descemos em seguida e passamos pelo café onde havia vários deputados. E vejo Dom Sigaud parar e falar com um homem que eu não conhecia pessoalmente, mas que reconheci por ter visto as fotografias no 1657 — Pascoal Ranieri Mazzilli (1910-1975), político brasileiro, chegou a exercer interinamente a Presidência da República em duas ocasiões. Primeiramente, de 25/8 a 8/9/61, após a renúncia de Jânio Quadros, estando ausente o vice-presidente João Goulart, em visita à China comunista. A segunda vez foi de 2 a 15/4/64, logo depois do golpe militar, até a posse do Marechal Castelo Branco, eleito pelo Congresso Nacional. 1658 SD 14/7/73.


472 jornal: Milton Campos 1659. Dali fomos ao gabinete do presidente do Senado, senador Nogueira da Gama. Ele também foi muito amável. Convocou certo número de senadores para nos receber. E depois convidou-nos para assistirmos da tribuna de honra a uma sessão do Senado, onde demoramos muito pouco. Ao sairmos, ele nos acompanhou até o limite externo do Senado. Foi uma viagem coroada de todo êxito 1660.

2. Era janguista: à beira do comunismo pelo impulso da esquerda católica. Interpelação à Ação Catolica de Belo Horizonte Ao aproximar-se a conturbada era janguista, em que o País esteve a ponto de soçobrar na subversão 1661, o esquerdismo católico que apoiou Goulart quase deitou o Brasil por terra1662. A dramática controvérsia referente às reformas de base chegava ao auge justamente nas vésperas da queda de João Goulart. Nessa ocasião, católicos belo-horizontinos, sob a inspiração da TFP, promoveram um grande e vitorioso movimento contra a realização na capital do Estado, de um congresso da CUTAL, organismo de orientação claramente comunista. Logo depois, com o apoio da TFP, 210 mil brasileiros subscreveram uma interpelação à Ação Católica de Belo Horizonte. Esta se pronunciara de modo violento contra os católicos mineiros que corajosamente haviam impedido a realização de um comício de Brizola favorável às Reformas de Base, e negara, ao mesmo tempo, que tais reformas envolvessem uma questão de consciência* 1663. * Esse documento da Ação Católica afirmava que os católicos, enquanto católicos, nenhuma oposição tinham a fazer às Reformas de Base. E nele ficava claro que, ao negar a questão de consciência, tinha como alvo o livro RA-QC. Ainda mais: trazia o alto placet de Dom João Rezende Costa, Arcebispo Coadjutor (depois titular) de Belo Horizonte, que apôs a ele as seguintes palavras: “De boa vontade autorizo esta publicação” (cfr. O Diário de Belo Horizonte, edição de 29/2/64).

1659 RR 24/10/87. 1660 SD 14/7/73. 1661 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit. 1662 Sobre um cão imaginário, cit. 1663 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.


473 Em face desse pronunciamento, a nossa interpelação pedia à Ação Católica que definisse claramente sua posição ideológica, e que fundamentasse a estranha afirmação de que não havia questão de consciência em matéria de reformas de base (v. texto na íntegra em Catolicismo n° 160, abril de 1964).

3. Revolução de 64: Goulart passa recibo Todos temos na memória com quanta vitalidade, com que ardor se dividiram as correntes de pensamento, os partidos políticos, as organizações de classe, no debater os prós e os contras da Reforma Agrária proposta pelo então Presidente João Goulart. Chegou-se mesmo a afirmar na imprensa que os marcos divisórios entre os partidos políticos haviam desaparecido, só restando dois campos, o dos adeptos e o dos opositores da Reforma Agrária 1664. Um irresistível movimento de inconformidade com a orientação fortemente esquerdista do Governo João Goulart desfechara na Revolução de 64*. * João Goulart chegou mesmo a encaminhar ao Congresso Nacional um pedido para governar em estado de sítio, mas encontrou a oposição da maioria dos parlamentares, sendo então retirado.

Entre os gravames então formulados pela imensa maioria dos brasileiros contra o presidente deposto, tinha acentuado realce a inconformidade de todo o País com as intenções agro-reformistas que aquele governo acalentava1665. * O que aconteceu depois faz parte da história recente e é do conhecimento de todos1666: um movimento militar, apoiado em larga medida pela população civil, esta por sua vez inspirada na sua orientação anti-agro-reformista pelo livro RA-QC, acabou depondo o governo Jango Goulart. Não que a TFP tivesse trabalhado para depor o governo 1667. Ela não participou do golpe de 64 1668, não participou de nenhum conciliábulo, de nenhuma reunião preparatória. Não integrou nenhuma das comissões que promoveram as célebres "Marchas"*1669. * Essas marchas ficaram conhecidas como “Marcha da Família com Deus pela Liberdade". 1664 Manifesto ao povo brasileiro sobre a Reforma Agrária, Catolicismo n° 169, janeiro de 1965. 1665 A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 1985. 1666 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit. 1667 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1668 SD 14/7/73. 1669 Entrevista a Última Hora, Rio de Janeiro, 3/2/83.


474 O que a TFP fez foi criar um estado de espírito anti-agro-reformista, sem outras intenções. Esse estado de espírito levou a que muitos brasileiros se coligassem para a derrubada de Jango Goulart, que eles julgavam irremediavelmente comprometido com a esquerda e com as Reformas de Base, sobretudo com a Reforma Agrária* 1670. * O próprio João Goulart disto assinou recibo. No último discurso que antecedeu de um dia a sua queda, referiu-se indiretamente à ação ideológicoreligiosa da TFP, ao dizer, com voz incendiada: “O veto desta minoria reacionária ao meu governo [...] fortaleceu-se quando afirmei que as Reformas de Base são um imperativo da hora em que vivemos. [...] Passaram a acusar de anticatólicos não apenas o Presidente da República, mas o próprio Cardeal de São Paulo. Na hora em que ainda ressoam as Encíclicas Sociais de João XXIII, é demasiada audácia a desses aventureiros se atreverem a falar em nome da Igreja. Não me cabe, porém, combater essa usurpação, pois a Ação Católica de Minas e de São Paulo já tomou essa iniciativa” (O Globo, 31/3/64).

4. Cardeal Motta removido pela Santa Sé Antes do Concílio Vaticano II, a Santa Sé tinha muito senso diplomático. Menos de um mês depois do golpe de 31 de março de 1964, mais precisamente no dia 16 de abril, o Cardeal Motta foi transferido de São Paulo e enviado como Arcebispo para a Diocese de Aparecida 1671. Em boa parte, ele fora afastado por causa das medidas por ele tomadas. Anteriormente, tinha havido todo o episódio do Em Defesa e a carta por mim escrita ao Episcopado pedindo o julgamento do livro, o que o deixavam muito mal. Mais proximamente, o que provavelmente liquidou sua carreira foi a questão da Reforma Agrária. Naquela época, os proprietários rurais se tornaram muito mais reativos contra a Reforma Agrária do que hoje. E vendo, com surpresa, que uma parte ponderável do Clero tinha passado para a esquerda influenciada pelo Cardeal, isto produziu uma impopularidade em torno dele verdadeiramente enorme, o que pode ter movido o Vaticano a afastá-lo1672.

5. Declaração do Morro Alto No meio dessas batalhas todas, começou a circular um zum-zum de que a TFP era muito negativista, pois só fazia campanhas contrárias à Reforma Agrária, mas não apresentava um projeto favorável à agricultura. 1670 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1671 SD 14/7/73. 1672 CSN 24/9/94.


475 Não era verdade, porque RA-QC tratava disso. Mas, para acabar com este zum-zum, Dr. Fábio Xavier da Silveira aglutinou um grupo de fazendeiros da região de Amparo e formamos com eles uma comissão que elaborou a chamada Declaração do Morro Alto, a qual foi transformada em um fascículo contendo a nossa política positiva em matéria de agricultura. Esse livro foi também largamente espalhado pelo Brasil* 1673. * Lançado em outubro de 1964, teve duas edições em português, num total de 22.500 exemplares, além de sua transcrição integral em Catolicismo n° 167, de novembro de 1964. Foi igualmente traduzido para o castelhano e incluído na edição espanhola de Reforma Agrária—Questão de Consciência.

Capítulo VI “Janguismo sem Jango” no pós-64. A Reforma Agrária no Estatuto da Terra 1. O “janguismo sem Jango” Nesse ínterim, a Nação brasileira tomou conhecimento de que a Câmara dos Deputados acabara de aprovar, num enigmático congraçamento de bancadas janguistas e antijanguistas, o projeto de lei de Reforma Agrária de autoria do pedecista Aniz Badra, emendado pelo integralista Ivã Luz. A grande maioria dos brasileiros — e mesmo dos agricultores — não conhecia senão muito vagamente o conteúdo do projeto Aniz Badra. Entre os próprios Srs. Deputados, provavelmente muitos não conheciam o substituto Ivã Luz que festivamente aprovaram. Convinha esclarecer urgentemente a opinião brasileira sobre essa nova lei que, numa hora de magnífica e sadia reação nacional contra o comunismo, consolava de seus dissabores o Sr. Luiz Carlos Prestes, pois ela dava um grande passo no sentido de reduzir a lavoura brasileira a escrava do Estado, tal qual acontece na URSS, em Cuba etc. * O projeto Aniz Badra continha dispositivos autorizando uma desapropriação confiscatória dos imóveis rurais. O substitutivo Ivã Luz não continha essas disposições confiscatórias. Entretanto, continha em todos os seus elementos essenciais 1673 SD 17/7/73.


476 a parte talvez mais despótica e reprovável do projeto Aniz Badra. No artigo 16, fulminava com verdadeira pena de confisco sem indenização todo o "imóvel rural susceptível de aproveitamento econômico, mantido totalmente inexplorado e sem benfeitorias por mais de dez anos". Desta duríssima penalidade não eram sequer excetuados os bens de órfãos, viúvas ou inválidos. Ele instaurava no Brasil uma ditadura agrária cem vezes mais férrea do que todos os regimes autoritários por que tem passado o País. Ele conferia ao Presidente da República um poder discricionário sobre todos os fazendeiros, reduzidos a párias. Ele aumentava de tal maneira o poder da União que destruía na prática o regime federativo. E, supremo paradoxo, era para pôr nas mãos do Chefe de Estado tal soma de poderes, que, aprovando tal projeto, confluíram os partidos políticos que acabavam de derrubar o Sr. João Goulart. Eles criaram uma ditadura econômico-social de sentido totalitário e janguista. Jango teria caído, e o janguismo teria triunfado. Numa atitude respeitosa e cordial apelamos para os detentores do Poder Legislativo, na Câmara e no Senado, para que depois de madura reflexão, e no exercício de suas altas atribuições constitucionais, detivessem o passo à Reforma Agrária socialista e confiscatória que parecia na iminência de ser aprovada também no Senado*1674. * Esse apelo foi publicado na íntegra no Diário de S. Paulo de 8 de abril de 1964 e no Estado de Minas de 11 de abril de 1964. Numerosos outros jornais publicaram resumos. O comunicado denunciava a aprovação do projeto pela Câmara dos Deputados e tinha como título “Reforma agrária Aniz BadraIvã Luz significa janguismo sem Jango”. O estudo foi entregue em mãos, com uma mensagem, a cada senador e a cada deputado, e largamente difundido pela imprensa e contribuiu para sensibilizar de algum modo os congressistas. A propositura, já aprovada na Câmara na sessão do dia 7 de abril, foi sustada no Senado.

2. O Estatuto da Terra Meses depois de empossado, o novo chefe de Estado apresentou ao Congresso o projeto de lei do Estatuto da Terra, o qual abria as portas do País para uma drástica Reforma Agrária. A popularidade do Marechal Castelo Branco e o otimismo desavisado dos vencedores fizeram com que ninguém tomasse a sério a possibilidade da aplicação de tal Estatuto. Para explicar sua promulgação, se lhe atribuíam as mais variadas

1674 Reforma Agrária Aniz Badra-Ivã Luz significa janguismo sem Jango, Estado de Minas, 11/4/64.


477 causas, menos a explicação normal e lógica de que o Governo tinha pura e simplesmente propósitos agro-reformistas 1675. Tratava-se de um arrefecimento geral, que atingiu todos os setores da opinião pública sem discriminação e se manifestou de modo flagrante, não só no marasmo dos adversários do agro-reformismo, como na tibieza dos aplausos convencionais de quase todos os que, sendo agro-reformistas, tinham diante de si a tarefa sempre grata e atraente de bater palmas a uma medida desejada com todo o afinco pelo alto. Acessos como este, de súbita apatia, não são muito raros na História. Eles exprimem um estado de euforia confiante, e ao mesmo tempo de extenuação e de enfastiamento de uma opinião pública que acaba apenas de sair de um período de grandes convulsões. A Nação se encontrara, de um momento para outro, às portas do comunismo. Reagindo contra o perigo, mobilizou ela suas forças vivas para uma luta que ameaçava ser titânica. O desfecho inesperado da crise, poupando ao País a carnificina iminente, varrendo o regime comuno-corruptor, e alçando ao poder a figura por todos acatada do ilustre Marechal Castelo Branco, teve como consequência uma distensão brusca e profunda. Esta atitude, de gregos e troianos, foi um erro. Ela teve por efeito que as notícias sucintas divulgadas de quando em quando pela imprensa sobre uma Reforma Agrária de iniciativa governamental, a quase ninguém alarmaram. Essa causa psicológica, genérica e profunda, fez com que larguissimos setores da opinião pública assistissem "dopados" pela despreocupação eufórica do período de pós-revolução a aprovação do Estatuto da Terra. O debate no Legislativo seria a ocasião normal para que o público se esclarecesse sobre o conteúdo do projeto. Mas a urgência imposta pelo governo para a tramitação dele estrangulou os debates, e constituiu obstáculo a que fosse esclarecida a opinião nacional*. * Antes de se consumar essa aprovação, os autores de RA-QC enviaram a todos os deputados e senadores o documento O direito de propriedade e a livre iniciativa no projeto de emenda constitucional nº 5/64 e no projeto de Estatuto da Terra, no qual analisavam os fortes traços confiscatórios e socialistas da emenda constitucional proposta e do projeto de lei em questão. O documento vinha datado de 4 de novembro de 1964.

1675 A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, cit.


478 Em 22 dias de debates e votação, a propositura teve de ser aprovada. Com o apoio das bancadas janguistas, os representantes das correntes que depuseram Jango fizeram através da aprovação do Estatuto da Terra a "reforma" que Jango queria. Consumou-se assim às carreiras um dos mais importantes fatos da vida nacional desde a Independência 1676. * Após a açodada aprovação, pelo Congresso, do Estatuto da Terra e sua promulgação pelo governo federal, a TFP quis consignar ante a História seu respeitoso mas formal desacordo 1677. Sem recear as punições do regime ditatorial, publicamos em seção livre de página inteira de O Estado de S. Paulo um manifesto de minha autoria, que mostrava ser uma espécie de novo janguismo sem Jango essa lei do Estatuto da Terra* 1678. * O documento intitulado Manifesto ao povo brasileiro sobre a Reforma Agrária foi publicado, a partir do dia 25 de dezembro de 1964, em 22 jornais de todo o País (cfr. Catolicismo n° 431-432, novembro/dezembro de 1986, pp. 11 a 20).

Fizemos um manifesto categórico, dizendo tudo o que tinha de ser dito. Não houve a menor réplica, o menor revide: nada! 1679 E foi a voz da TFP a única que teve a coragem de conclamar o País a uma posição de previdência e alerta contra esse janguismo sem Jango que acabava de penetrar assim na vida do campo 1680. Quando, posteriormente, o regime militar começou a fazer expropriações usando a lei assinada por Castelo Branco, fê-las de maneira tão discreta e tão na surdina, que a maior parte da população não se deu conta1681. * Em toda essa refrega agro-reformista, um fato era positivo: a TFP germinara, e de dentro das trincheiras do anonimato, dera tiros muito bem acertados. No final das contas, a Reforma Agrária estava impedida e a TFP

1676 Manifesto ao povo brasileiro sobre a Reforma Agrária, cit. 1677 A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, cit. 1678 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1679 SD 14/7/73. 1680 A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, cit. 1681 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90.


479 conhecida no Brasil inteiro 1682.

Capítulo VII Morte de Pio XII e eleição de João XXIII: a perspectiva do Concílio 1. Eleição de João XXIII: como recebi a notícia Lembro-me perfeitamente do dia em que recebi a notícia da eleição de João XXIII. Estávamos na sede da rua Vieira de Carvalho acompanhando pelo rádio as notícias sobre a morte de Pio XII e a eleição de seu sucessor* 1683. * Pio XII morreu no dia 9 de outubro de 1958. No dia 28 de outubro foi eleito o Cardeal Angelo Roncalli, que tomou o nome de João XXIII.

Eu tinha uma tênue esperança de que elegessem outro Pio XII, que mantivesse os assuntos da Igreja mais ou menos de pé 1684. Em certo momento ouvimos a música da Guarda Suíça do Vaticano, precedendo o anúncio urbi et orbi da eleição do novo Papa. Veio ao microfone um Cardeal e disse: “Eu vos anuncio uma grande alegria: habemus Papam, na pessoa do Cardeal Angelo Roncalli, que tomou o nome de João XXIII”. Em seguida a Guarda Suíça tocou nova música. Eu então pressenti a derrocada de todas as tradições que viria1685. Eu sabia perfeitamente quem era o Cardeal Roncalli 1686. Vi tudo de uma vez, e bebi toda a amargura naquele momento. O que se seguiu foi uma tristeza muito grande. A questão era aceitar essa tristeza, mas ela potencialmente já tinha sido aceita1687.

2. A convocação do Concílio é anunciada pelo novo Papa Três meses depois de sua eleição, João XXIII anuncia, em 25 de janeiro de 1959, sua intenção de convocar um Concílio a reunir-se em São Pedro de Roma. Seria o mais numeroso da História. 1682 SD 14/7/73. 1683 Reunião com os mais antigos do movimento 4/12/77. 1684 CSN 10/7/82. 1685 Reunião com os mais antigos do movimento 4/12/77. 1686 RR 4/4/92. 1687 Reunião com os mais antigos do movimento 4/12/77.


480 Pode-se imaginar o meu desgosto quando soube, mais tarde, que João XXIII convidara para ele observadores de todos os cultos, entre os quais os da I.O. (igreja “ortodoxa” russa) pró-comunista1688. * O anúncio da convocação do Concílio chegou-me durante uma das sessões da 7ª Semana de Estudos de Catolicismo, que se realizava em uma casa apalaciada, hoje demolida1689, chamada a Imperial Camargo, localizada na esquina da Avenida Angélica com a Alameda Barros, em São Paulo1690. Dom Sigaud e eu estávamos presidindo a uma reunião 1691, quando alguém, por detrás da mesa, deu-me um jornal, indicando-me a notícia do decreto de convocação. Eu li essa notícia e depois, por debaixo da mesa, passei o jornal a Dom Sigaud. Ele leu-o também, leu-o até detidamente. Ele depois me contou o pensamento que teve naquele momento: “Está tudo resolvido: o Santo Padre agora vai pôr em ordem todas as cabecinhas dos Bispos e o caso da Igreja estará resolvido”. O Papa era João XXIII. Eu pensei o contrário: “São os Estados Gerais da Igreja, o começo

1688 A I.O. no “water shoot”, Folha de S. Paulo, 3/10/71 — Numa série de artigos que escreveu para a Folha de S. Paulo a partir de 25 de julho de 1971, Dr. Plinio denominou pela abreviatura "I.O." a igreja greco-"ortodoxa" russa. E explicou porque usava a palavra "ortodoxa" entre aspas e porque lhe aplicava o adjetivo cremliniana: “Algum leitor estranhará que eu escreva sempre ‘ortodoxo’ entre aspas. Não o faço nem de longe com o intuito de espicaçar ou agredir. É que, como católico, não posso, em rigor de lógica, reconhecer como ortodoxa (já que ortodoxo quer dizer, em grego, opinião reta) senão a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. “É bem verdade que o uso tem levado incontáveis católicos a dispensar as aspas como inúteis, por se entender como óbvio que um católico não pode aceitar como verdadeiramente ortodoxa uma igreja separada de Roma. Mas nestes tempos de ecumenismo delirante, parece-me perfeitamente legítimo que tanto os católicos leais à fé como os ‘ortodoxos’ coerentes queiram evitar qualquer confusão. E que para isto usem medidas excepcionais. “— E ‘cremliniana’? Por que uso este neologismo? — Muito simplesmente porque a realidade dos fatos manda que se diga e com quanta alegria o digo — que uma boa fração dos ‘ortodoxos’ russos e não russos recusa qualquer comunhão com os lacaios mitrados que o Kremlin pôs à testa do arremedo de Igreja e de Hierarquia, que em Moscou funciona sob os auspícios do Estado ateu. “Esses ‘ortodoxos’ anticremlinianos — hierarcas e leigos sofrendo perseguições e pressões de toda ordem — se conservam irredutíveis em considerar os ‘cremlinianos’ como sinistros farsantes. A nobre firmeza desses ‘ortodoxos’ merece um aplauso caloroso, que todo católico verdadeiro lhes dá com gosto” (v. artigo Lições no jardim do vizinho, Folha de S. Paulo, 25/7/71). 1689 RR 20/4/85. 1690 RR 11/5/85. 1691 RR 20/4/85.


481 da Revolução na Igreja”1692. Eu quis dizer isto a ele, mas notei que não encontraria a menor ressonância1693. Eu via a Revolução Francesa, ele via o Reino de Maria1694. * Não muito tempo depois, percebi que Dom Mayer e Dom Sigaud não estavam se preparando nem estudando para os debates do Concílio. E, em separado, manifestei minha preocupação aos dois. A Dom Sigaud eu disse: “Esta é uma oportunidade incomparável para exercermos nosso apostolado. Agora, se Vossa Excia. não estudar a fundo... A Dom Mayer, lembro-me que disse isto a meia voz, atravessando a Praça da República de taxi. Passávamos nessa hora bem em frente à Escola Caetano de Campos. Quando chegaram a Roma, eles estavam “verdes” para o Concílio e se deixaram subjugar completamente por aquele ambiente 1695.

Capítulo VIII Nosso secretariado em Roma 1. Dissabores em série Minha presença em Roma 1696 durante o Concílio não foi uma 1692 RR 9/9/89. 1693 RR 20/4/85. 1694 RR 25/6/88. 1695 Reunião com os mais antigos do movimento 2/3/87 — Em entrevista concedida a Catolicismo (março de 2011), o professor Roberto De Mattei, vice-presidente do Centro Nacional de Pesquisas da Itália, catedrático da Universidade Europeia de Roma e autor do momentoso livro O Vaticano II: uma história jamais escrita, discorrendo sobre “a rede de relações desse setor progressista, que preexistia ao Concílio”, afirmou que ela era “forte, ramificada, e incluía, além das cúpulas das conferências episcopais, algumas ordens religiosas de ‘vanguarda’ e grupos linguísticos. Incluía sobretudo laboratórios ideológicos, como os de Cuernavaca, no México, de Bolonha, na Itália, e de Louvain, na Bélgica”. Perguntado pelo repórter se do lado conservador não havia algo parecido, foi taxativo: “Nem um pouco! Os Bispos e teólogos fiéis a Roma reagiram muito tardiamente e sem a habilidade estratégica de seus adversários. Segundo uma pesquisadora americana, Melissa Wilde, a minoria progressista prevaleceu graças à sua melhor estratégia e organização” (destaques nossos). 1696 — Dr. Plínio chegou a Roma no dia 10 de outubro de 1962, abertura do Concílio. Vinha em companhia de Dom Sigaud, Dom Mayer, Frei Jerônimo Van Hinten, Dom Bertrand de Orleans e Bragança, Dr. Fernando Furquim de Almeida, Dr. Paulo Corrêa de Brito, Dr. Luís Nazareno Teixeira de Assumpção Filho, Dr. Sérgio Brotero Lefevbre, Dr. Fábio Vidigal Xavier da Silveira, Dr. Murilo Maranhão Galliez, Dr. João Sampaio Neto, Dr. Otto de Alencar de Sá Pereira e dos srs. Domimique Pierre Faga, Umberto Braccesi, Emílio Scherer, Carlos Alberto Soares Correia e Pedro Paulo Figueiredo.


482 justaposição de prazeres e contentamentos de um lado, e de severos pesares de outro lado 1697. Eu estava carregado de aborrecimentos1698. Essa estadia de tal maneira constituiu um sofrimento para mim que, quando voltei para São Paulo e pisei o chão, tive uma sensação de alívio: “Afinal acabou!” Por que razão? Porque durante todo esse tempo, dentro do Concílio, e portanto dentro da Igreja, tudo se moveu mal e erradamente.

2. Chocante modo de ser de boa parte dos Bispos Minha intenção primeira era ir sempre assistir às sessões do Concílio, porque significava ver a Igreja na sua maior pompa, instalada com dois mil Bispos naquele edifício colossal da Basílica de São Pedro, todos de mitra, báculo. Eu poderia ficar ali quatro a cinco horas simplesmente olhando aquele protocolo e esplendor 1699. Mas fui apenas uma vez. E depois não pus mais os pés na Basílica, a não ser quando, no encerramento da primeira fase do Concílio, fui assistir a uma Missa celebrada por Dom Mayer no altar de São Pio X. Íamos sair todos de Roma e a Missa encerrava aquela fase de atividades. Fora disso, NÃO, de tal maneira eu estava entristecido, para não dizer mais, com o desenrolar do Concílio 1700. * Uma coisa que me causou especial desagrado foi ver os Bispos chegarem de coletivos, e não de automóvel para as sessões. Vinham às vezes em ônibus com nome de colégios de meninas: Collegio delle Bambine, Collegio del Sacro Cuore. Os Bispos orientais desciam desses ônibus e na própria praça vestiam seus hábitos. Era uma coisa que não se compreendia que fizessem. Na saída das sessões, a mesma coisa: no átrio da igreja, tiravam aqueles hábitos com pressa, pois era preciso chegar a tempo para o almoço no colégio. Então faziam tudo correndo, e no meio de brincadeiras.

3. Presença desagradável de bispos greco-cismáticos Desagrado maior, como já expliquei, foi causado pela presença de bispos greco-cismáticos numa tribuna do Vaticano. 1697 Chá 21/2/95. 1698 Palestra 26/8/70. 1699 Chá 21/2/95. 1700 SD 5/5/73.


483 Eram sete ou oito popes com aqueles chapéus pretos, bigodes em forma de um fiozinho, olhos negros reluzentes e malévolos. Não diziam nada, prestavam atenção em tudo 1701. Em uma palavra, eram representantes do Kremlin, escravos do ateísmo comunista e entretanto estavam ali, junto a todo o episcopado da Terra1702.

4. Dom Sigaud, Dom Mayer e o “Coetus” Havíamos alugado uma sede em um bairro muito bom de Roma, chamado Parioli. Neste bairro tínhamos uma ampla casa, e vários do nosso grupo nela se alojaram. Dom Mayer vinha toda tarde a esta sede e participava de uma reunião diária que fazíamos, a qual constava de duas partes. A primeira parte versava sobre o que se tinha passado no plenário do Concílio, e outra parte sobre o trabalho de bastidores do Coetus 1703 da direita: que planos tinham, como havia corrido a execução dos planos nesse dia e quais eram os planos para o dia seguinte. De si, uma coisa muito interessante e para a qual estávamos lá. sessão.

Mas ele contava também coisas jocosas acontecidas durante a

Por exemplo, ele dizia que, dentro da Basílica, montaram vários pequenos bares para os Bispos comerem ou beberem alguma coisa: um cafezinho, um chá, um refrigerante, um pequeno lanche. Como “bar”, em hebraico, significa “filho de”, os Bispos começaram a designar esses bares: Bar Jonas, filho de Jonas, Barrabás... Ali brincavam uns com os outros, caçoavam, de um modo que absolutamente não correspondia à responsabilidade que eles tinham em um Concílio Universal. Afinal, cansavam-se e voltavam para o plenário para tomar parte nas discussões... Essas discussões, naturalmente, eram completamente controladas pelo Vaticano. Quem fizesse alguma coisa fora das diretrizes, expunha-se a ser severamente repreendido. Os Bispos então andavam na linha. 1701 Chá 21/2/95. 1702 SD 10/8/83. 1703 — O Coetus a que Dr. Plinio se refere, também chamado “Petit Comité” — “Pequeno Comitê”, foi um grupo de estudos/trabalho que reunia participantes do Concílio Vaticano II em desacordo com os rumos progressistas que se delineavam no mesmo. Mais tarde aumentou o número de participantes dando origem, em outubro de 1963, ao Coetus Internationalis Patrum.


484 O Coetus dos Prelados da direita fazia planos e depois se deixava embair de modo absurdo*. * Um exemplo disso foi o que aconteceu com a petição de condenação do comunismo assinada por centenas de Bispos, como veremos mais adiante.

Fatos desses se deram em série. Nós sugeríamos a Dom Sigaud e a Dom Mayer tomar tal e tal atitude, mas eles não davam importância. Um funcionário de portaria de hotel tinha tanta influência no Concílio quanto nós. Isso depois de termos feito um gasto enorme — mas enorme! — para estarmos presentes e de alguma forma atuarmos no Concílio.

5. Sabotado em conferência de imprensa: conservador demais! Os leigos da direita e os da esquerda eram convidados a promover conferências de imprensa para jornalistas e políticos sobre pontos em que estes desejassem ser informados. Tais reuniões estavam programadas para se realizar no convento dos Padres do Verbo Divino, congregação religiosa a que pertencia Dom Sigaud. Eu também fui convocado para essas reuniões. E me dirigi para lá. Um padre alemão do Verbo Divino, que tinha muita simpatia por nós, me acolheu muito bem: era um grande amigo de Dom Sigaud. Chamava-se Padre Ralph Wiltgen1704. Este sacerdote me disse: — Pela escalação, o senhor tem uma conferência agora. Vamos até a sala, pois já há pessoas esperando. Íamos entrando e nisto aparece um padre que diz: — Quem é esse senhor? — É o professor Plinio Corrêa de Oliveira, de São Paulo. — Não precisava falar. Por que ele precisa falar? Disse assim, com essa brutalidade! O padre nosso amigo respondeu cortês: — Ele consta da lista de pessoas convidadas. Não há razão para ele não falar. 1704 — Padre Ralph Wiltgen (1921-2007), sacerdote norte-americano da Sociedade do Verbo Divino. Presente ao Concílio Vaticano II, e notando as lacunas das informações distribuídas pelo Vaticano, montou seu próprio escritório Divine Word News Service, com 3.100 assinantes em 108 países. Ele colocou em realce as conferências de imprensa de vários Bispos que eram boicotados pela mídia. Recebeu por isso pressões para cessar os seus trabalhos, mas outros Bispos o encorajaram a continuar.


485 — Não! Não! Ele é muito antiquado, muito conservador. Não há jeito de cortar? O Padre Ralph Wiltgen disse: — Não, não há jeito! Professor, por favor, suba na cátedra que já estão à sua espera. Dei então uma conferência de imprensa* para homens que eu nem sabia bem quem eram. Estava tudo mal arranjado. * Essa conferência de imprensa realizou-se no dia 16 de outubro de 1962 e versou sobre o tema Reforma Agrária.

Terminada a conferência, um daqueles padres me disse: — O senhor está dispensado das outras conferências. Houve um engano e o seu nome não figura na lista*. * Boicote semelhante foi narrado pelo Príncipe Dom Bertrand em reunião plenária da TFP de 30 de junho de 1984: “Monsenhor Zanini, redator do Osservatore Romano, teve vários contatos com o prof. Fernando Furquim de Almeida e depois entrevistou Dr. Plinio no Hotel Excelsior sobre a crise na América do Sul. Dr. Plinio desenvolveu o que há de mais ortodoxo sobre a crise moral e religiosa, dizendo que se os 97% de católicos no Brasil cumprissem os dez Mandamentos, não haveria crise nenhuma no País. Foi uma entrevista absolutamente ‘hors série’. Monsenhor Zanini, muito contente com essa entrevista, levou-a para o Osservatore Romano. Mas caiu sobre ela um veto absoluto. [...] Não havia nenhum ataque ao progressismo; mesmo assim não podia sair nem o nome de Dr. Plinio nem a tese da crise religiosa”.

* O Padre Ralph Wiltgen escreveu depois um célebre livro, cujo título parece à primeira vista extravagante, mas tem sua plena razão de ser: O Reno deságua no Tibre. Sendo rios que geograficamente não se encontram, era um modo de dizer que as ideias teológicas e filosóficas dos piores modernistas alemães estavam amplamente representadas entre os teólogos e filósofos do Concílio, e que, portanto, essas ideias tiveram uma grande entrada e uma grande influência*. * O livro recebeu o nihil obstat e imprimatur do futuro Cardeal Terence Cooke, Arcebispo de Nova York. O Padre Wiltgen sofreu muitas pressões para cessar a divulgação desse livro1705.

1705 Chá 21/2/95.


486

Capítulo IX Duas históricas petições não atendidas: consagração da Rússia e condenação do comunismo 1. Gênese da petição para consagrar a Rússia ao Imaculado Coração de Maria Houve duas iniciativas de alcance histórico em que estivemos empenhados a fundo, também boicotadas durante o Concílio. A primeira foi o pedido de consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria e a segunda de condenação do comunismo pelo Concílio. Quanto à primeira, a ideia nasceu de uma conversa, que deve ficar registrada nos anais de nossa história, mantida com Dom Sigaud e Dom Mayer numa sala de estar da Fazenda Morro Alto, em Amparo. Ali tive ocasião de expor aos dois Bispos a alta conveniência de promover aquela súplica, pedindo a consagração da Rússia de acordo com a mensagem de Fátima. Irmã Lucia havia dito que essa consagração era uma das condições colocadas pela Virgem para afastar a ameaça do castigo que pairava sobre o mundo. E Nossa Senhora havia estabelecido certos quesitos para que essa consagração fosse válida*. * Na terceira aparição na Cova da Iria, a 13 de julho de 1917, a Virgem Santíssima havia dito: "Virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz". E em aparição à Ir. Lúcia em 1929, Nossa Senhora veio, conforme prometido, formular o seu pedido: “É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os Bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio” (cfr. Memórias e Cartas da Irmã Lúcia, apud Antonio Augusto Borelli Machado, As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã Lúcia, Artpress, São Paulo, 1997, 46ª ed.).

As consagrações que Pio XII fizera do mundo em 1942 e "dos povos da Rússia" em 1952 ao Imaculado Coração de Maria não correspondiam a essas circunstâncias pedidas por Nossa Senhora.


487 Isto eu li em livros publicados a respeito. E também ouvi pessoalmente do Arcebispo de Coimbra, Dom Ernesto Sena de Oliveira, encarregado da guarda da Irmã Lúcia. Este afirmou que, segundo a Irmã Lúcia, essas consagrações não tinham atendido ao que fora pedido. Vê-se esta afirmação ainda em uma carta da própria irmã Lúcia ao seu confessor jesuíta, Padre José Aparício, o qual emprestou-me a carta: nela estava declarado que o pedido não havia sido atendido*. * Nossa Senhora fora explícita: tinha de ser uma consagração feita: 1) pelo Papa; 2) em união com os Bispos do mundo; 3) da Rússia; 4) e ao Imaculado Coração de Maria. Pio XI recebeu a mensagem, mas, por razões não divulgadas, não realizou a consagração. A consagração feita por Pio XII, não foi “em união com os Bispos do mundo”. E tampouco foi feita “a consagração da Rússia”. Não atendeu portanto duas das quatro condições pedidas por Nossa Senhora. Tanto é que, quando em 31/10/42 Pio XII consagrou a Igreja e o gênero humano ao Imaculado Coração de Maria, a Irmã Lúcia escreveu ao Pontífice comunicando, da parte de Nosso Senhor, que, como o ato “foi incompleto, fica a conversão da Rússia para mais adiante” (cfr. Antonio Augusto Borelli Machado, As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã Lúcia, Artpress, São Paulo, 1997, 46ª ed., p. 41). Em 21/11/64, Paulo VI ”confiou” (não consagrou) “o gênero humano” (e não explicitamente a Rússia) ao Imaculado Coração de Maria. Portanto, a petição dos Padres conciliares tinha todo o propósito. Deixamos de lado o complexo problema do atendimento ou não da vontade de Nossa Senhora nas consagrações que se seguiram depois do Concílio. Apenas assinalamos que João Paulo II, em 13/5/82 e 25/3/84, consagrou o mundo (e não a Rússia) ao Imaculado Coração de Maria. O mesmo fez o Papa Francisco a 13 de outubro de 2013.

Tendo os dois Bispos aceito a nossa sugestão, Dr. Castilho estudou com cuidado toda a temática, para indicar como a consagração deveria ser feita, de modo a atender, na petição, todos os requisitos necessários para que a vontade de Nossa Senhora fosse satisfeita. E assim Dom Mayer e Dom Sigaud foram os promotores entre os Padres conciliares da famosa petição solicitando ao Santo Padre a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Houve então na história de Fátima este fato importantíssimo: dois Bispos da Igreja Católica se levantaram, e esses dois Bispos conseguiram a assinatura de 510 outros Bispos, pedindo essa consagração 1706. O pedido não foi atendido, a vontade de Nossa Senhora não foi cumprida. 1706 — No dia 3 de fevereiro de 1964, Dom Sigaud entregou pessoalmente a Paulo VI essa petição subscrita por 510 Prelados de 78 países.


488 Mas ficou assinalado perante a História que um movimento, o de Catolicismo, foi sensível à voz de Fátima. E esse movimento, através de dois Bispos, fez o possível e o impossível para que, de um modo oficial e altamente prestigioso, essa voz de Nossa Senhora fosse ouvida e reboasse dentro do Concilio1707.

2. Petição de intensamente

condenação

do

comunismo

repercute

Também na Fazenda Morro Alto estabelecemos — Dom Sigaud, Dom Mayer e eu — a temática da petição de condenação ao comunismo, que recebeu a adesão de 213 Padres conciliares de 54 países*. * A imprensa italiana e a internacional noticiaram com todo o relevo a entrega dessa petição por Dom Mayer, no dia 3 de dezembro de 1963, à Secretaria de Estado da Santa Sé, na pessoa de seu titular, o Sr. Cardeal Amleto Giovanni Cicognani. Na divulgação desse documento, foi valiosa a cooperação do Divine Word News Service, que era a agência noticiosa dirigida pelo mencionado Padre Ralph Wiltgen SVD. Ela distribuíu em primeira mão a notícia da entrega dessa petição a 650 jornalistas presentes na sede do Comitê de Coordenação das Comunicações sobre o Concílio, incluídos os representantes das agências internacionais, que a divulgaram para o mundo inteiro. Simultâneo à petição, por seu íntimo nexo com os termos do documento, foi amplamente distribuído a esses jornalistas, pelo secretariado do grupo de Catolicismo em Roma, o livro A liberdade da Igreja no Estado comunista, traduzido para o inglês, francês, espanhol e italiano. Essa distribuição também foi feita aos 2200 Padres conciliares. Il Tempo, o maior matutino romano, noticiando no dia seguinte a entrega da petição, considerou-a, "na atmosfera conciliar", um episódio "importantíssimo para todos os católicos italianos". Já o diário Roma, de Nápoles, abriu um título em que dizia: "Uma notícia-bomba do Vaticano", considerando a petição "una pompa vera e propria" — "Uma própria e verdadeira bomba" (cfr. Catolicismo n° 157, janeiro de 1964).

Esta petição continha uma série de teses do livro Revolução e Contra-Revolução que era pouco comum ouvir-se de lábios de Bispos. Várias dessas teses entraram como fundamentação do pedido de condenação do comunismo 1708.

3. Condenar o comunismo atrapalharia o ecumenismo com os comunistas Qual era a meta da petição? O Concílio Vaticano II foi numericamente o maior Concílio da 1707 SD 22/3/65. 1708 Palestra 20/8/64.


489 História. Nunca houve tantos Bispos reunidos em um Concílio. Seria importantíssimo que nele se fizesse uma condenação do comunismo. Até aquela data1709, a posição da Igreja se manifestava na condenação total da doutrina comunista, na proibição a todos os católicos de lerem (sem as devidas licenças) livros comunistas, de se filiarem a um partido comunista, ou de prestarem à conservação ou à expansão de órgãos comunistas qualquer forma de apoio. Talvez a límpida rigidez dessa atitude nunca se tenha manifestado com maior coerência e força do que no famoso decreto de 1° de julho de 1949, aprovado por Pio XII, em que o Santo Ofício declarava excomungados e apóstatas da fé católica todos aqueles que professassem, defendessem ou divulgassem a doutrina comunista*1710. * Este decreto continha as seguintes perguntas e respostas: “I. — É lícito aos católicos dar seu nome e prestar sua ajuda aos partidos comunistas? Resposta: Não é lícito, o comunismo é materialista e anticristão; com efeito, os chefes comunistas, inclusive quando dizem por palavras que não combatem a religião, na realidade, contudo, tanto pela doutrina como pela ação, mostram-se inimigos de Deus, da verdadeira Religião e da Igreja de Cristo. II. — É lícito editar, difundir ou ler livros, revistas, jornais e folhetos que defendem a doutrina ou atividades comunistas, ou neles escrever? Resposta: Não é lícito; está proibido ipso jure (cânon 1399 do Código de Direito Canônico). III. — Os fiéis que, consciente e livremente, tenham incorrido nos atos de que tratam os números I e II, podem ser admitidos aos Sacramentos? Resposta: Não podem ser admitidos, em conformidade com o princípio geral de que se deve negar os Sacramentos àqueles que não estão nas devidas disposições para recebê-los. IV. — Os fiéis que professam a doutrina materialista e anticristã dos comunistas e principalmente aqueles que a defendem e divulgam, incorrem, ipso facto, na excomunhão reservada de modo especial à Sé Apostólica, como apóstatas da Fé católica? Resposta: Sim, incorrem” (AAS., vol. XLI, p. 334. — Colocamos as respostas em seguida a cada pergunta, para facilidade de leitura. No original elas veem depois de todas as perguntas).

Nas novas circunstâncias, uma condenação formal da doutrina comunista pelo Concílio teria sido um imenso entrave às relações ecumênicas que evidentemente estavam se preparando com os países comunistas 1711.

4. O pacto de silêncio da Santa Sé sobre o comunismo João XXIII convidara para o Concílio observadores de todos os cultos, entre os quais os da I.O. pró-comunista. Segundo constou largamente naquela ocasião, a condição imposta 1709 RR 24/8/91. 1710 Inquebrantabilidade vence astúcia, Folha de S. Paulo, 9/7/84. 1711 RR 26/8/89.


490 por esta I.O. para que se dignasse aceitar o convite, era que na Sala Conciliar fosse proibido qualquer ataque ao comunismo, e que o Concílio Vaticano II se abstivesse de dizer contra este qualquer palavra1712. E este fora o compromisso assumido pela Santa Sé para obter que observadores russos viessem ao Concílio 1713. A não condenação do comunismo abria caminho para possíveis negociações entre o Estado soviético e o Vaticano, e também entre a Igreja “Ortodoxa” russa e Roma* 1714. * Esse compromisso nascera das reuniões realizadas em 18 de agosto de 1962 na cidade francesa de Metz, envolvendo o Cardeal Eugène Tisserant, representante da Santa Sé, e o metropolita Nikodim, então arcebispo cismático de Yaroslavl, representando a Igreja Ortodoxa Russa. A imprensa comunista foi a primeira a revelar esse compromisso, através do semanário France Nouvelle, boletim central do Partido comunista francês (edição de 16-22/1/63): "Como o sistema socialista mundial manifesta superioridade de modo incontestável e goza da aprovação de centenas e centenas de milhares de homens, a Igreja não pode satisfazer-se com um anticomunismo grosseiro. Ela adotou o compromisso, por ocasião de suas negociações com a Igreja Ortodoxa russa, de que no Concílio não haveria um ataque direto contra o regime comunista". Dessas reuniões nasceu o Pacto de Metz, detalhado pelo jornalista e escritor Jean Madiran em seu livro L’Accord de Metz ou pourquoi notre Mère fut muette (O Acordo de Metz ou por que nossa Mãe permaneceu muda), publicado em 2006. Ele havia denunciado esse pacto, seis meses após as reuniões de Metz, na revista Itinéraires de que era diretor. Do Pacto resultou a aceitação, por parte dos ortodoxos russos, de enviar observadores ao Concílio Vaticano II, segundo informou o jornal católicoprogressista La Croix, o qual em sua edição de 16/2/63, revelava: “em consequência desse encontro, Mons Nikodim aceitou que alguém fosse a Moscou para levar o convite, sob a condição de que sejam dadas garantias no que concerne à atitude apolítica do Concílio". Vale recordar que o metropolita russo Nikodin, com quem o Cardeal Tisserant firmou esse acordo, era um espião pago pela KGB para infiltrar o Conselho Mundial das Igrejas, da qual chegou a ser presidente (cfr. Gerhard Besier, Armin Boyens, Gerhard Lindemann, Nationaler Protestantismus und Ökumenische Bewegung. Kirchliches Handeln im kalten Krieg (1945-1990), Duncker und Humblot, Berlino 1999, apud José Antonio Ureta, apud Catolicismo n° 742, outubro de 2012). Mais tarde vieram à tona outros detalhes desse compromisso "quase secreto", revelados pelo Professor Romano Amerio em seu momentoso livro Iota Uno (in Studio delle variazioni della Chiesa Cattolica nel secolo XX, Milão-Nápoles, R. Ricciardi, 1985).

Corria então uma palavra de ordem imperiosa entre os Padres 1712 A I.O. no “water shoot”, cit. 1713 RR 23/4/73. 1714 RR 13/1/90.


491 Conciliares e também entre os leigos mais chegados ao Concílio: podiam escrever os artigos que quisessem nos jornais, porém jamais falar contra o comunismo e não estimular ninguém a falar contra1715. Não era uma proibição oficial, mas apenas extraoficial, porque Paulo VI não queria tornar público que tinha assumido esse compromisso 1716. Ou seja, a Igreja, naquela ocasião máxima, havia optado por não falar contra a maior heresia dos tempos atuais. E isto jogou a Igreja nessa posição verdadeiramente sem sentido: reúne-se um Concílio, há uma heresia que ameaça deglutir a Igreja e esta assume o compromisso de não falar contra esta heresia* 1717. * O que significou este silêncio, Dr. Plinio delineou com precisão na 4ª edição em português de Revolução e Contra-Revolução: “Dentro da perspectiva de Revolução e Contra-Revolução, o êxito dos êxitos alcançado pelo comunismo pós-staliniano sorridente foi o silêncio enigmático, desconcertante, espantoso e apocalipticamente trágico do Concílio Vaticano II a respeito do comunismo. “Este Concílio se quis pastoral e não dogmático. Alcance dogmático ele realmente não o teve. Além disto, sua omissão sobre o comunismo pode fazê-lo passar para a História como o Concílio a-pastoral. [...] “Em outros termos, atuaram como verdadeiros Pastores aqueles que, no Concílio Vaticano II, quiseram espantar os adversários ‘minores’, e impuseram livre curso − pelo silêncio − a favor do adversário ‘maior’? “Com táticas ‘aggiornate’ − das quais, aliás, o mínimo que se pode dizer é que são contestáveis no plano teórico e se vêm mostrando ruinosas na prática − o Concílio Vaticano II tentou afugentar, digamos, abelhas, vespas e aves de rapina. Seu silêncio sobre o comunismo deixou aos lobos toda a liberdade. “A obra desse Concílio não pode estar inscrita, enquanto efetivamente pastoral, nem na História, nem no Livro da Vida. É penoso dizê-lo. Mas a evidência dos fatos aponta, neste sentido, o Concílio Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a maior, da História da Igreja. “A partir dele penetrou na Igreja, em proporções impensáveis, a ‘fumaça de Satanás’, que se vai dilatando dia a dia mais, com a terrível força de expansão dos gases. Para escândalo de incontáveis almas, o Corpo Místico de Cristo entrou no sinistro processo da como que autodemolição” (Revolução e Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 4ª edição em português, 1998, pp.166 a 168).

1715 RR 16/12/89. 1716 RR 26/8/89. 1717 RR 16/12/89.


492

5. Petição, única estratégia possível para tentar quebrar esse acordo Uma vez aceito pela Santa Sé o compromisso de não discutir a questão do comunismo, o único modo de contornar essa palavra de ordem seria organizar, com base na série de razões doutrinárias e históricas contidas em nossa petição, um abaixo-assinado solicitando fosse posto em votação no plenário um pedido de condenação do comunismo. Os representantes da igreja ortodoxa russa certamente advertiriam antes a Santa Sé: — Soubemos dessa petição da bancada de Bispos conservadores. Se eles a levarem adiante, nós nos retiraremos. A Santa Sé teria como saída dizer a esses Bispos conservadores: — Foi feita essa combinação e, portanto, o Santo Padre quer que os senhores retirem essa petição. Se isto se desse, e se os membros da bancada conservadora estivessem dispostos a chegar até as últimas consequências, deveriam afirmar: — Nossa consciência não nos permite fazer isso. Vossa Santidade, se quiser, exclua-nos do Concílio, mas suplicamos que declare a razão. Se assim se fizesse, a História do Concílio, da Igreja e do mundo hoje seria outra. Não adianta alegar que não havia o número suficiente de membros para isso. No Concílio, o Coetus conservador era constituído por cerca de 30 Arcebispos e Bispos (entre os quais Dom Sigaud, Dom Mayer, Monsenhor Marcel Lefebvre), dentro de um total de aproximadamente dois mil e quinhentos Arcebispos e Bispos*. * Na sessão seguinte do Concílio (1964) o Coetus Internationalis Patrum chegou a ter mais de 250 participantes entre os Padres Conciliares.

E não seriam necessários trinta: apenas dois que fizessem isto (Dom Sigaud e Dom Mayer por exemplo), teriam virado o leme da História para o outro lado.

6. Um procedimento totalmente encaminhamento da petição

irregular

obstruiu

o

Em vista de tudo isto, dei a sugestão de uma petição de condenação ao comunismo a Dom Sigaud e a Dom Mayer. Eles pediram-me então que lhes redigisse extra-oficialmente uma moção nesse sentido. E eu redigi essa


493 moção. Essa petição foi assinada por 213 Cardeais, Arcebispos e Bispos de 46 nações. E foi apresentada em tempo hábil para os trâmites necessários*1718. * O essencial do pedido era que fosse posta em votação no Concílio, “em sua próxima sessão, uma nova condenação do marxismo, do socialismo e do comunismo, em seus aspectos filosófico, sociológico e econômico, expondo ao mesmo tempo, a doutrina social católica, e profligando os erros e a mentalidade que preparam o espírito dos católicos para a aceitação daqueles sistemas falsos”. A Secretaria de Estado enviou a petição a Monsenhor Felici, secretário do Concílio, para que a fizesse chegar à Comissão Mista encarregada da redação do esquema sobre a Igreja no mundo contemporâneo, o assim chamado Esquema XIII que desembocou na constituição pastoral Gaudium et Spes.

Mas o tempo foi passando sem que houvesse resposta 1719.

7. Nova petição contra o comunismo é sabotada Na quarta e última sessão (iniciada a 14 de setembro de 1965), o Coetus levantou um novo abaixo-assinado — desta vez com 435 assinaturas de Padres conciliares de 86 países*. * Essa nova petição, que era uma emenda à constituição Gaudium et Spes, foi entregue no dia 9 de outubro de 1965 por Dom Geraldo de Proença Sigaud e por Monsenhor Marcel Lefebvre na Secretaria Geral do Concílio. Nela se requeria que, “depois do parágrafo n° 19 do esquema ‘A Igreja no mundo contemporâneo’, que trata do problema do ateísmo, se acrescente um novo e apropriado parágrafo que trate expressamente do problema do comunismo” (Acta Synodalia, vol. IV, pars II, pp. 898900, apud Roberto De Mattei, Il crociato del secolo XX, Piemme, Milão, 1996).

O novo documento teve que caminhar, por causa da burocracia interna do Concílio, até à mesa de Monsenhor Glorieux. Era um monsenhor, como os havia tantos no Vaticano. Tenho quase certeza de que, naquela altura, não era Bispo. Depois, talvez tenha sido feito, já que prestou um tão grande “serviço” à ala inovadora 1720. Ele é quem devia dar despacho ao documento 1721. Mas Monsenhor Glorieux não lhe deu andamento algum. Dom Sigaud e Monsenhor Lefebvre foram então conversar com ele. E lhe perguntaram como estava o andamento da petição. 1718 RR 26/8/89. 1719 RR 13/1/90. 1720 — Monsenhor Achille Marie Joseph Glorieux (1910-1999) foi, de fato, posteriormente galardoado com cargos de importância, sendo escolhido em 1966 como secretário do Pontifício Conselho para os Leigos. Em 1969, tornou-se Bispo Titular de Beverlacum e Pró-Núncio Apostólico junto à Síria e em 1973, foi escolhido como Pró-Núncio junto ao Egito. 1721 RR 26/8/89.


494 * Monsenhor Glorieux de início alegou que não a havia transmitido às comissões que estavam trabalhando na redação final do esquema, para não dificultar os trabalhos... Dom Luigi Maria Carli, Bispo de Segni, dirigiu então à Presidência do Concílio uma carta denunciando o caráter arbitrário da Comissão Mista que havia ignorado um documento de tamanha importância. Monsenhor Glorieux defendeu-se afirmando falsamente que a petição tinha chegado fora do tempo, mas foi desmentido pelo próprio Monsenhor Pericle Felici, secretário do Concílio.

Depois de várias démarches evasivas, este monsenhor disse que tinha perdido a documentação. Equivalia a dizer que a documentação não teria andamento*. * No dia 23/11/65, a já citada agência de notícias Divine Word Service, próxima dos prelados conservadores difundiu um longo comunicado sobre o escândalo do desaparecimento das propostas de nada menos que 435 Padres conciliares. E assim, ao mesmo tempo que o escândalo explodiu na imprensa, Paulo VI convocou uma reunião restrita de colaboradores, na qual ficou decidido que não era oportuno condenar o comunismo (cfr. José Antonio Ureta, O enigmático silêncio do Vaticano II sobre o Comunismo, Catolicismo n° 742, outubro de 2012). A Divine Word divulgou o seguinte comentário do Padre Wiltgen: “O fato de um único homem ter tido a possibilidade de impedir que um documento tão significativo chegasse às mãos da comissão conciliar à qual era oficialmente dirigido é uma das grandes tragédias do Concílio Vaticano II e poderá passar à história como o maior escândalo a vir a prejudicar as graves deliberações desta sacra assembleia” (cfr. Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II — Uma História Nunca Escrita, Editora Caminhos Romanos, Porto (Portugal), 2012).

Desse modo, o Concílio Vaticano II deixou de condenar o maior erro de nossos dias: o comunismo 1722. Não poderia deixar de figurar — absolutamente não poderia! — a atitude da Igreja face ao seu maior adversário naqueles dias. Adversário tão poderoso, tão brutal, tão ardiloso como outro igual a Igreja não encontrara na sua História então já quase bimilenar. Tratar dos problemas contemporâneos da religião sem tratar do comunismo, seria algo de tão falho quanto reunir hoje em dia um congresso mundial de médicos para estudar as principais doenças da época, e omitir do programa qualquer referência à AIDS... * 1723 * Alegou-se na época que a Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, em nota de rodapé, havia se referido ao problema do ateísmo e até citado a encíclica Divini Redemptoris, de Pio XI, e outros documentos do Magistério Pontifício que condenavam, entre outros erros, também o comunismo. Daí se procurava deduzir que o Concílio não havia sido inteiramente omisso em matéria de condenação do comunismo. Mas tal

1722 RR 13/1/90. 1723 Comunismo e anticomunismo na orla do milênio, Folha de S. Paulo, 14/2/90.


495 alegação é frágil: por que omitir toda e qualquer referência explícita ao comunismo, e só falar de ateísmo? Por que colocar essa referência às encíclicas apenas em uma nota de rodapé?

8. Dom Mayer e Dom Sigaud: otimismo sem causa Infelizmente Dom Sigaud e Dom Mayer entraram para o Concílio imbuídos de certa mentalidade otimista. Eles parecem não ter medido até que ponto a Revolução havia penetrado nas entranhas mentais, ideológicas e psicológicas de incontáveis Bispos. E, sobretudo, não mediram até que ponto muitos desses Bispos estavam empenhados em implantar esses erros, face aos quais era preciso tomar uma atitude e enfrentá-los. Ora, não terem percebido isso foi uma das razões da debilidade da atuação deles. Era uma obrigação dos dois se prepararem seriamente, de maneira a entrarem no Concílio armados de pied en cap, dos pés à cabeça, contra os erros que poderiam encontrar, e de desenvolverem uma ação enérgica nos debates1724. O resultado foi que Dom Sigaud e Dom Mayer acabaram por assinar sem restrições o Concílio* 1725. * Foi o que levou o professor Roberto De Mattei a comentar, com muita adequação, em seu já citado livro Il crociato del secolo XX: “Bem se pode imaginar a preocupação de Plinio Corrêa de Oliveira perante as conclusões do Concilio e, talvez, a sua perplexidade com o fato de que os dois Prelados brasileiros que lhe eram chegados, e o próprio Monsenhor Lefebvre, tivessem assinado o conjunto dos Atos Conciliares, até mesmo os documentos que tinham combatido na aula conciliar. O certo é que Plinio Corrêa de Oliveira assumiu uma postura de respeitoso silêncio, à espera de que os fatos confirmassem tudo quanto ele já previra”.

Lembro-me que, quando se delineou o rumo que o Concílio Vaticano II adotaria, fiz todas as insistências junto a eles para que tomassem uma atitude pública para deter esse rumo. Eles recusaram terminantemente. Dom Sigaud teve esta fórmula: “Plinio! Há uma diferença entre o que Dom Mayer e eu queremos, e o que você quer. Nós queremos salvar o Concílio”. Eu queria salvar a Igreja! Eles salvaram o progressismo. Se uma atitude pública tivesse sido tomada no momento oportuno, com a energia necessária, a história da Igreja teria mudado 1726. Mas não fizeram o que lhes aconselhei. Por quê? 1724 RR 25/6/88. 1725 RR 15/5/85. 1726 Reunião com os mais antigos do movimento 28/9/86.


496 Há várias hipóteses. Mas a hipótese psicológica e tática mais admissível é a de que, levados por esse confessado otimismo, presente também em Monsenhor Lefebvre, eles julgavam que tudo o que estava acontecendo acabaria se arranjando, de um jeito ou de outro, e que portanto não valia a pena fazer esse combate frontal. É sempre o ingênuo otimismo dos bons, que lembra a seu modo o estado de espírito de Luís XVI diante dos avanços da Revolução Francesa1727. Dom Mayer pretendia que ele assinou o Concílio porque o assinar não queria dizer nada! Não representava nenhuma adesão ao Concílio. Era assim um ato notarial. Ora, não há ato notarial que não queira dizer algo!1728

9. O processo de autodemolição no pós-Concílio A História narra os inúmeros dramas que a Igreja vem sofrendo nos vinte séculos de sua existência. Oposições que germinaram fora dela, e de fora mesmo tentaram destruí-la. Tumores formados dentro dela, por ela cortados, e que já então de fora para dentro tentaram destruí-la com ferocidade. Quando, porém, viu a História, antes de nossos dias, uma tentativa de demolição da Igreja, já não mais feita por um adversário, mas qualificada de “autodemolição” em altíssimo pronunciamento de repercussão mundial? (cfr. Alocução de Paulo VI ao Seminário Lombardo, em 7/12/68) Daí resultou para a Igreja e para o que ainda resta de civilização cristã, uma imensa derrocada1729. O fato concreto é que há hoje uma ponderável corrente de católicos, ou antes de “católicos” entre aspas, que já não aceitam a religião como ela era. E lutam por um catolicismo aggiornato e comunista. Este é o fato dominante em matéria de comunismo. Foi mais ou menos o que declarou o comunista Allende, sobre a Igreja pré e pós-conciliar, pouco depois de eleito. Ele afirmou que lera a Declaração dos Bispos em Medellin, e a linguagem que usavam era a mesma deles, marxistas. E que a Igreja já não era mais um fator de oposição ao partido dele, mas um elemento a favor* 1730. 1727 RR 25/6/88. 1728 RR 15/5/85. 1729 Revolução e Contra-Revolução, cit. 1730 Religião a serviço da irreligião, Folha de S. Paulo, 11/7/71.


497 * Foram as seguintes as suas palavras: “A Igreja Católica sofreu mudanças fundamentais. Durante séculos, a Igreja Católica defendeu os interesses dos poderosos. Hoje, depois de João XXIII, ela se orientou para transformar o Evangelho de Cristo em realidade, pelo menos em alguns lugares. Tive ocasião de ler a Declaração dos Bispos em Medellin, e a linguagem que usam é a mesma que usamos desde nossa iniciação na vida política, há 30 anos. Naquela época, éramos condenados por tal linguagem que hoje é empregada pelos Bispos católicos. Acredito que a Igreja não será fator de oposição ao governo da Unidade Popular. Ao contrário, será um elemento a nosso favor, porque estaremos tentando converter em realidade o pensamento cristão” (entrevista ao New York Times, reproduzida por O Estado de S. Paulo de 4/10/70).

Capítulo X A liberdade da Igreja no Estado comunista (1963): algumas observações prévias 1. Observações de minha época de congregado mariano Foi durante o período do Concílio que escrevi o livro A liberdade da Igreja no Estado comunista. Este livro tem uma velha história. Por volta de 1930, havia em São Paulo grupos anticomunistas muito efervescentes que importavam impressos contra o comunismo de uma organização internacional suíça. Eu era ainda um congregado mariano relativamente novo, e um sacerdote deu-me um desses impressos e me disse: “Veja, aqui é a última palavra em matéria de propaganda anticomunista, leia”. Eu de fato li. E chamou-me logo a atenção o fato de os argumentos que eles exploravam era que o comunismo queimava igrejas, matava padres e freiras, profanava o Santíssimo Sacramento, quebrava imagens e proibia o ensino religioso. Ora, eu tinha lido pouco antes o Tratado de Direito Natural de Taparelli D’Azeglio1731, e havia estudado as encíclicas de Leão XIII a 1731 — Luigi Taparelli d'Azeglio (1793-1862) foi um sacerdote jesuíta que aprofundou o papel do princípio de subsidiariedade na organização social. Sua vocação religiosa foi despertada pelos exercícios espirituais de que participou, pregados pelo Venerável Pio de Bruno Lanteri, fundador da Congregação dos Oblatos de Maria Virgem. Cofundador em 1850 da Civiltà Cattolica, seus ensinamentos sobre matéria social inspiraram o Papa Leão XIII na redação da encíclica Rerum Novarum. Escreveu o famoso Saggio teoretico di dritto naturale appoggiato sul fatto, em 5 volumes publicados pela primeira vez em Palermo, na Stamperia d'Antonio Muratori, 1840-1843. Dr. Plinio o leu em sua tradução francesa.


498 respeito de matéria social. E essas fontes muito sólidas, muito seguras, apontavam outros pontos muito mais importantes sobre a incompatibilidade entre comunismo e doutrina católica. Por exemplo, mostravam que o comunismo queria eliminar a propriedade privada. E afirmavam a legitimidade dela em termos tais, que não se podia conceber uma sociedade organizada segundo o espírito da Igreja sem a propriedade privada. Procurei mais tarde por esse padre e perguntei: — Monsenhor, aqueles impressos falam da incompatibilidade entre o comunismo e a doutrina católica, mas apenas no que diz respeito a questões de ataques dos comunistas contra o culto. Não, porém, no que diz respeito à propriedade privada. Como é que fica isto? E acrescentei: — Se algum dia aparecer um regime comunista que diga à Igreja: “Eu organizo a sociedade sem propriedade privada, mas darei liberdade religiosa”, a Igreja vai aprovar esse regime? Desaparece com isso a razão de conflito com o comunismo? Esse bom padre, tido como um dos mais conspícuos de São Paulo, patinou em cima da questão e não deu resposta. Ele era um homem de muita personalidade, mas não de grande inteligência. E eu pensei: “Ele, em temas doutrinários, não navega com facilidade. Provavelmente não está a par desse ponto”. De vez em quando, para algum padre eminente, alguma pessoa de maior categoria, eu fazia essa mesma pergunta. E a resposta era a mesma patinação, quando nos documentos pontifícios a matéria está tratada de maneira meridianamente clara.

2. Observações de minha época de deputado Minha interrogação chegou ao auge no meu tempo de deputado. Apresentaram de repente, para ser incluído na Constituição brasileira de 1934, um artigo que dizia: “Pertencem ao Estado todas as riquezas do subsolo do país”. Até então, pelo Código Civil, todas as riquezas, inclusive as do subsolo, pertenciam ao proprietário do imóvel. Quem tinha o solo, tinha o subsolo. Nesse artigo vinha a disposição de que, para explorar as riquezas do subsolo, era preciso licença do governo. Na Liga Eleitoral Católica éramos muitos deputados. Tenho má memória, mas penso que 70 ou 80 deputados, liderados pelo Tristão de


499 Athayde, que não era deputado, mas preposto de Dom Sebastião Leme junto a nós. Procuro o Tristão, procuro um ou outro e digo: — Vocês não percebem? Se o Estado hoje toma conta do subsolo, amanhã toma conta do solo. Votando esse artigo de lei, vocês acabam admitindo um princípio comunista. Vejam os documentos pontifícios a respeito. — É, mas Dom Leme não está no Rio. Está em Petrópolis. — Telefonem para Dom Leme, vão até lá, para isso existe estrada. — Fim de semana, ele não gosta de ser perturbado. * Então tomei um automóvel e fui ao Colégio Santo Inácio, onde havia o maior intelectual católico do Brasil: Padre Leonel Franca. Eu me dava muito com ele. Ainda me lembro do jeito dele: baiano, de meia altura, calvo, mas com uma calvície inteligentíssima, dela saíam cintilações. Sentado, quieto e com um olhar... ele tinha uns olhos oblongos e cheios de pensamento. Entrei no seu escritório, cheio de livros, de notas, de fichas. Ele, sentado: — Como vai? — Padre Leonel, vim falar com o senhor sobre tal e tal coisa. — Não se preocupe, não tem importância nenhuma. — Mas, Padre Leonel, isso é um ponto de doutrina. — Não, mas essas coisas não são levadas tanto a sério, assim. Não se preocupe. — Não, eu me preocupo. E vou votar contra. Ele: — É um direito seu, como é um direito votar a favor. Faça como quiser . 1732

* Procurei ainda vários outros Padres e colocava a questão: “Padre, comunismo só é ruim quando é ateu? E quando ele não é ateu, ele não é ruim? Se viesse um regime comunista que não perseguisse o Clero, os senhores seriam contra esse regime?” 1732 SD 5/5/73.


500 Não saía explicação. E eu fiquei percebendo que havia da parte deles uma vontade de amolecer a doutrina católica a esse respeito na primeira ocasião. O fato concreto é que, a partir de aproximadamente 1935, nos meios católicos só se ouvia falar contra o "comunismo ateu". Não se falava mais contra o comunismo enquanto supressão da propriedade privada 1733.

3. Observações na minha ida a Roma durante o Concílio Passaram-se os anos. E viajei a Roma para a primeira fase do Concílio. Dom Sigaud pediu-me então que eu o acompanhasse nos contatos com os Bispos da direita. E assim compareci a certo número de reuniões. Nesses contatos, percebi da parte desses Bispos também uma vontade enorme de fazer uma conciliação entre a Igreja e o comunismo, precisamente na base clássica: a Rússia cessa as perseguições religiosas e a Igreja deixa de lutar pela propriedade privada. E achei isso uma coisa esquisita. * Lembro-me de uma dessas reuniões, realizada na sede da Congregação do Verbo Divino, com Dom Sigaud presente. Era um velho prédio junto a um parque, de pé direito alto. Anoitecia, mas a luz ainda não havia sido acesa. Estava uma reunião bonita: uma série de prelados vestidos à antiga, com corrente e cruz de ouro, alguns com expressão fisionômica muito inteligente. Sentávamos em cadeiras que haviam sido cômodas no tempo da juventude deles, mas nas quais já podiam ser percebidas algumas molas protuberantes que cutucavam de vários lados. Era preciso certa política para sentar, como era preciso certa política para falar: duas políticas concomitantes. A reunião caminhava para acabar em ambiente algo crepuscular1734. Éramos talvez umas vinte pessoas na sala, falávamos a respeito de uma coisa e outra, e chegou a se comentar de raspão, qualquer coisa sobre a política do Concílio em face do comunismo 1735. Aí eu interpelei Monsenhor Roberto Ronca, o mesmo que havia 1733 Reunião Normal 1/3/65. 1734 SD 5/5/73. 1735 SD 10/8/83.


501 publicado a Carta Pastoral de Dom Mayer na Itália. Ele participava dessa reunião. Monsenhor Ronca era um homem bem inteligente. Alto, gordo, corado, quinquagenário, com restos de cabelo louro de cá ou de acolá pela fronte, mas com um olhar de homem que sabia fazer as contas e espírito positivo. Um varão, realmente. Eu disse a ele: — Monsenhor, eu queria fazer a seguinte pergunta: se os russos, amanhã, descerem na Itália e oferecerem a liberdade religiosa em troca da renúncia da Igreja em ensinar o princípio da propriedade privada, a Igreja pode aceitar esse oferecimento? Se ela aceitar, completei, acabou o regime de propriedade privada na Itália e está implantado o comunismo. E então, pobre Itália! Como eu tinha falado isso em voz alta, e num momento em que a conversa ia morrendo, essa minha pergunta determinou um silêncio geral. Tanto mais que era um “xeque”. Não foi um “xeque ao rei” mas um “xeque ao Arcebispo”1736. Silêncio geral! Por fim, um deles acabou dizendo: “É certo que o Papa, nesse caso, não sairá do Vaticano”, como que me respondendo. Eu amavelmente disse que isso respondia a um ponto dentro de um círculo. Mas o que seria preciso saber é o que fariam todos os Bispos do mundo numa hipótese dessas, que diretrizes teriam: só a diretriz de não saírem de suas dioceses? E, nesse caso, a atitude seria ficar e falar, ou ficar e calar? Esta era a questão1737. Aí o Arcebispo de Pompeia (Monsenhor Ronca) olhou para mim e disse: “Não sei, não sei... É um problema importantíssimo. Mas o que o senhor quer, professor: nós, aqui na Itália, vivemos tão ocupados com tantos problemas, que não temos tempo de estudar esses assuntos que os senhores, na América do Sul, numa vida muito mais tranquila do que a nossa, têm. Eu pensei com meus botões: “Está bem, então vou publicar um estudo a esse respeito, que mandarei para eles e para todos os semelhantes a eles. Porque estou notando um vácuo dentro disso que não disfarça convenientemente a falta de coragem de tratar do assunto, e de tomar, caso o problema se ponha, a atitude valente que é preciso ter. Vou entrar dentro dessa questão”.

1736 SD 5/5/73. 1737 SD 10/8/83.


502

4. Conversas com Monsenhor Ivan Bucko e Monsenhor Józef Gawlina Ainda em Roma, procurei conhecer nessa ocasião outros escaninhos eclesiásticos, os mais diversos. Por exemplo, Monsenhor Ivan Bucko 1738, posteriormente elevado pela Santa Sé à dignidade de Visitador Apostólico dos ucranianos da Europa ocidental. Tive ocasião de o conhecer em Roma, em 1962 1739, num seminário ucraniano situado em local muito bonito e com um nome muito pitoresco: Passegiata del Gianicolo. O Gianicolo é um monte com todas as recordações da história romana. Passegiata é passeio, mas um passeio alegre, despreocupado. E nesse lugar eu arranjei um jeito de saber como estava o mundo pelos lados da Ucrânia e de notícias de detrás da Cortina de Ferro. Colocando o mesmo problema para ele, ele me disse: — Professor, eu gostaria de saber resolver, mas é uma questão muito embrulhada. Eu perguntei: — Então não seria útil que alguém fizesse um estudo sobre ela? — Seria utilíssimo. Seria um grande serviço à causa da Igreja. Eu disse: “Está bom”, mas não falei com ele sobre o meu desígnio de o fazer. * Conheci também nessa ocasião outro Monsenhor que tinha sido diretor geral das Congregações Marianas e que inclusive havia estado no Brasil. Eu não o conhecia. Era um polonês, Monsenhor Gawlina1740. Ele tinha sido general no exército polonês durante a I Guerra. Posteriormente tornou-se sacerdote. Foi nomeado Bispo por Pio XII e morava na igreja polonesa de Roma. Conversei com ele, levantei o mesmo problema, e ele deu a mesma resposta: é preciso que alguém faça esse estudo.

1738 SD 5/5/73 — Monsenhor Ivan Bucko (1891-1974) sacerdote ucraniano, foi Bispo Auxiliar de Lviv, Ucrânia, depois Bispo Auxiliar da colônia ucraniana nos Estados Unidos, e por fim Bispo Titular de Leucas, quando foi incorporado ao serviço da Cúria Romana, aí permanecendo até sua morte. 1739 Não, não e não, Folha de S. Paulo, 26/3/72. 1740 — Monsenhor Józef Felix Gawlina (1892-1964), Arcebispo Titular de Madito.


503 Então eu me decidi: “Eu vou fazer”1741.

Capítulo XI A liberdade da Igreja no Estado comunista (1963): os soviéticos necessitavam da coexistência pacífica 1. A tática velha e a tática nova do comunismo Que problemas eu tive de enfrentar para escrever esse opúsculo? A maioria das pessoas não tinha a ideia clara de que o Partido Comunista não era uma agremiação de caráter político como as outras agremiações partidárias. E este era um erro que importava fortemente desmentir. O comunismo não é sobretudo um partido político. Ele é um conjunto de pessoas que tem uma filosofia própria, a qual envolve uma visão do universo 1742, da vida e do homem 1743. E esta filosofia quer configurar toda a cultura, toda a civilização todas as instituições — políticas, sociais e econômicas — segundo essa visão1744. Os comunistas não querem simplesmente tomar o poder, como um partido político comum. Eles querem mudar completamente todo o estilo da vida humana e executar seu projeto em todos os países do mundo, sem nenhuma exceção 1745. Acontece que, desde 1917 até 1963, ano em que escrevi o livro, o comunismo havia fracassado, quer no Ocidente e no Oriente, no seu esforço de tentar persuadir. Tanto é que não tinham conseguido, até aquele momento, vencer nenhuma eleição livre. Esse fracasso, entretanto, não era total. Ele tinha alcançado dois resultados muito importantes. O primeiro deles fora o triunfo da conjuração modernista dentro da Igreja. O segundo, a criação de certa insensibilidade da burguesia em 1741 SD 5/5/73. 1742 Conferência em Belo Horizonte 15/8/65. 1743 SEFAC 25/1/65. 1744 Conferência em Belo Horizonte 15/8/65 e SEFAC 25/1/65. 1745 SEFAC 25/1/65.


504 relação às reformas de base socializantes, o que amoleceu os obstáculos que ele encontraria na mentalidade ocidental. Razão pela qual convinha aos comunistas conservar a velha tática de uma doutrinação explícita e marcada com um fundo de ameaça de violência, e ao mesmo tempo lançar mão de uma tática completamente nova, que foi a da coexistência pacífica.

2. Motivos russos para a política de distensão face à religião Essa tática nova acentuou-se especialmente logo depois do Tratado de Yalta*. * Realizada em fevereiro de 1945 na cidade de Yalta, na Crimeia, a desastrosa Conferência de Yalta reuniu os chefes de Estado aliados da II Guerra, Roosevelt (Estados Unidos), Churchill (Inglaterra) e Stalin (URSS), na qual se estabeleceu a divisão do mundo do pós-guerra. O resultado mais catastrófico desse tratado foi a entrega vergonhosa, por parte dos países ocidentais, de várias nações da Europa oriental ao império soviético.

Quando Stalin voltou do encontro de Yalta, a primeira preocupação dele foi constituir uma igreja "ortodoxa" dirigida por eclesiásticos cismáticos que tinham se tornado comunistas pelo medo de morrer. Foi com representantes dessa igreja cismática que a Igreja Católica tratou por ocasião do Concílio Vaticano II. Por que razão a Rússia adotou de repente essa atitude de distensão com os cismáticos? Pelo tratado de Yalta, completado depois pelos acordos de Potsdam, estabeleceu-se tácita ou expressamente (ninguém o sabe com precisão) que povos europeus — que gemeram depois sob a dominação comunista — seriam entregues à Rússia. Mas Stalin percebeu que esse jugo iria criar para a Rússia um grande obstáculo estratégico. Uma coisa é dominar um povo habituado há séculos ao domínio dos czares, o qual era um domínio absoluto, feroz. Outra, bem diferente, seria dominar povos civilizados hostis à Rússia, como o polonês, o alemão, o tchecoslovaco, o húngaro. Se a Rússia não operasse certa distensão, não fizesse algumas tantas concessões no terreno religioso, estaria ameaçada por distúrbios para ela perigosos, porque no próprio território russo o comunismo não contava com muito apoio. E essas foram as duas grandes razões que deram origem a essa manobra de distensão, dentro da Rússia em relação aos cismáticos, e fora da Rússia em relação aos católicos e cristãos em geral.


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3. Polônia católica, país-chave na aplicação da coexistência pacífica O ponto mais sensível para a nova política russa de distensão era a Polônia1746. Além da Cortina de Ferro, o bloco católico mais compacto e influente era constituído pela Polônia, com seus trinta milhões de católicos. Para se tornar efetiva, a dominação soviética encontrava dois obstáculos: a secular alergia dos poloneses ao colonialismo russo e, principalmente, a incompatibilidade entre a catolicíssima população polonesa e o regime marxista, o qual é, por definição, ateu, amoral e igualitário. Tais obstáculos impunham para os comunistas de Moscou uma alternativa: colonizar mais uma vez a Polônia, sujeitando-a brutalmente a procônsules russos, e ao mesmo tempo desencadear no país uma perseguição religiosa neroniana; ou então conceder à nação um minimum de autonomia, governá-la por meio de comunistas poloneses e não russos, e ao mesmo tempo reconhecer à Igreja um minimum de liberdade, em condições tão precárias que, com o curso dos tempos, o comunismo conseguisse extinguir tanto a Fé quanto o sentimento nacional. Do contrário, a concessão desse minimum seria, para os soviéticos, uma capitulação1747. No campo civil, o agente dessa nova política da Rússia foi o líder comunista polonês Gomulka. Assumindo o governo polonês, Gomulka deu à Polônia um pouco de independência do ponto de vista de impostos, de organização política, e um pequeno tanto de liberdade à Religião. Ele apresentava aos católicos poloneses a seguinte tese: “Para não perderem o pouquinho que têm, apoiem-me em vez de me combater. Se eu cair, entram os russos para governar”1748. Vendo a situação exatamente com os mesmos olhos do que seus opositores comunistas, Monsenhor Wyszynski teria optado por aceitar esse minimum 1749. Ele simplificadamente sustentava a seguinte posição: “Na situação infeliz em que a Polônia caiu, nós não podemos querer o bem maior, só podemos pensar no mal menor. O mal absoluto é a extinção da liberdade. 1746 Reunião Normal 1/3/65. 1747 O Cunctator: um maximalista?, Folha de S. Paulo, 24/8/78. 1748 Reunião Normal 1/3/65. 1749 O Cunctator: um maximalista?, cit.


506 O mal menor é Gomulka”. E foi assim que uma grande parte do Episcopado polonês se incumbiu de desmoralizar e de reprimir severamente os católicos antiGomulka e anticomunistas que aparecessem. * Havia ainda outro argumento alegado para sustentar essa política: “Se fizermos um levante contra a Rússia, os povos do Ocidente obrigarão os respectivos governos a entrarem de nosso lado. Isto cria o perigo de uma guerra termonuclear. É melhor, portanto, a Polônia abaixar a cabeça e aceitar a servidão para evitar para o mundo essa guerra termonuclear”. O resultado que veio desse cálculo foi a efetiva política de coexistência que se estabeleceu na Polônia: o governo polonês não dava mostras de querer extinguir a Igreja, a não ser muito remotamente. E a Igreja não tentava libertar-se do comunismo, a não ser muito remotamente também. E com isto cada um permanecia ao lado do outro, colaborando. Esses argumentos eram válidos não só para a Polônia: com pequenas alterações valiam para o mundo inteiro. Criou-se então no Ocidente a ideia de que um arranjo com os comunistas era uma coisa possível. Nos países onde eles dominassem, mais valia a pena não lutar, para salvar o pouco que se pudesse salvar. E assim a problemática polonesa acabou tendo uma repercussão no mundo inteiro.

4. Silêncio da Igreja, compromisso moralmente inaceitável O que Gomulka pedia como troca aos católicos? Ele afirmava que se suicidaria politicamente se permitisse aos católicos desenvolver uma pregação normal e sistemática a favor da propriedade privada. Então ele pedia aos católicos poloneses em matéria de propriedade privada, o mesmo que o Estado liberal pediu à Igreja em matéria de separação da Igreja e do Estado. Nos seminários católicos do Estado liberal ensinava-se que, em tese, melhor seria a união entre a Igreja e o Estado; mas que, na prática, hoje em dia era melhor a separação. E ai do leigo ou do padre que fosse fazer o elogio da união Igreja-Estado! Era preciso não ter nem saudades, porque as autoridades eclesiásticas liquidariam quem trabalhasse por sustentar essa tese. A mesma coisa se deu na Polônia em matéria de propriedade privada. De acordo com os Mandamentos, em tese seria melhor que houvesse propriedade privada. Mas, na prática — diziam os partidários da coexistência — houve tantos abusos do capitalismo que acabou sendo


507 preferível estabelecer a comunidade de bens. Em termos simplificados, tudo o que em tese é bom, na prática é ruim; e tudo quanto na prática é bom, em tese é ruim. Ficava-se assim com uma Religião em tese, e uma prática comunista completamente diferente da tese que a pessoa defendia. O resultado era que os católicos, ouvindo isto passivamente durante vinte anos, começariam a tomar como normal a existência da comunidade de bens e eliminariam de seu horizonte mental a propriedade privada. Esta era, em suma, a fórmula polonesa de coexistência pacífica. Foram estas as considerações que me levaram a escrever A liberdade da Igreja no Estado comunista, apontando o que nisso havia de errado 1750.

Capítulo XII A liberdade da Igreja no Estado comunista (1963): teses, difusão e polêmicas 1. Principais teses do livro Em meu ensaio, procurei frustrar essa manobra já em 1963, mostrando que é intrínseco ao regime comunista eliminar ou mutilar muito gravemente o instituto da propriedade privada, o que, por sua vez, é contrário à doutrina da Igreja1751. Nenhum Cardeal, nenhum Bispo, nenhum sacerdote, nenhum fiel que queira manter a sua alma isenta de pecado, pode aceitar esse acordo, porque ele é imoral.1752. Para ser fiel à sua missão, a Igreja não poderia deixar de combater tal regime, ainda que este lhe reconhecesse inteira liberdade de culto. Tal combate criaria um inevitável conflito entre os católicos e qualquer Estado comunista1753. O opúsculo lançava, pois, uma divisão intencional no meio católico, entre os que queriam dobrar o joelho diante da Besta, e os que diziam: “Jamais aceitaremos tal acordo, sejam quais forem as consequências”.

1750 Reunião Normal 1/3/65. 1751 Auto-retrato filosófico, cit. 1752 Reunião Normal 1/3/65. 1753 Auto-retrato filosófico, cit.


508 Isto criava uma grande dificuldade no meio dos teólogos, dos moralistas, do Episcopado e em toda a opinião pública. Se houvesse uma estirpe de católicos devotos de Nossa Senhora e resolvidos a aceitar a tese de A liberdade da Igreja no Estado comunista, esses iriam para a clandestinidade, para as catacumbas, iriam morrer mártires, mas assegurariam a aurora da Igreja e do Reino de Maria no dia de amanhã.

2. Uma noite para redigir o livro Eu estava ainda em Roma quando escrevi, numa só noite, a maior parte desse ensaio. Amanheci com o ensaio essencialmente pronto. Vim com ele para o Brasil, e cheguei à conclusão de que ainda não era o momento de o publicar. Ele passou seis ou oito meses engavetado. Depois pareceu-me chegado o momento. E então publiquei-o cerca de um mês antes da segunda sessão do Concílio*. * Estampado inicialmente em Catolicismo n° 152, de agosto de 1963, foi depois reproduzido no jornal italiano Il Tempo (4/1/64) e teve edições em português, espanhol, francês, inglês, alemão, italiano, húngaro e polonês. Essas sucessivas edições atingiram mais de 163.500 exemplares. Mais tarde foi ampliado e tomou o novo título de Acordo com o regime comunista: para a Igreja, esperança ou autodemolição? Foi ainda transcrito na íntegra em 40 jornais ou revistas da França, Alemanha, Itália, Estados Unidos, Espanha, Portugal Argentina, Chile, México, Colômbia, Bolívia e Angola, além do Brasil.

3. Os 2.500 Padres conciliares recebem a obra Pedi ao nosso secretariado de Roma espalhar esse estudo a todos os 2.500 Prelados presentes a essa segunda sessão do Concílio. Em resposta, recebi cartas elogiosas de alguns Bispos, mas pouco numerosas*. * Entre essas, as dos Cardeais Eugenio Tisserant e Alfredo Ottaviani, então secretário da Sagrada Congregação do Santo Ofício; Norman Thomas Gilroy, Arcebispo resignatário de Sidney (Austrália); Sua Beatitude Paul II Cheicko, Patriarca de Babilônia dos Caldeus e alguns outros Prelados.

Lembro-me, por exemplo, de um Bispo do rito caldeu, de uma nação dominada pelos comunistas na Ásia Menor. Era uma carta excelente, pedindo-me para mandar o ensaio a todo o seu Clero, para eles aprenderem qual era o seu dever sob a ocupação comunista. De Bispos brasileiros, não recebi praticamente nenhuma carta. Enviamos depois o estudo a um número enorme de revistas. Um comentário excelente saiu na revista teológica de grande porte Divus Thomas, de Piacenza (Itália), que se solidarizou com as nossa teses*.


509 * Tal publicação se deu na edição de abril-setembro de 1964 da revista. O estudo foi também reproduzido na íntegra em mais de trinta jornais e revistas de onze países diferentes. Bastante sintomático foi o fato de a revista Informations Catholiques Internationales, de orientação caracteristicamente progressista, sentir a necessidade de publicar uma resenha do trabalho.

4. Inesperada Carta de louvor da Santa Sé Dom Mayer, a pedido nosso, havia oferecido o livro a todas as Congregações Romanas. E veio, de um modo totalmente inesperado, uma excelente carta da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades da Santa Sé 1754. A carta era dirigida a Dom Mayer. Lembro-me até hoje que estávamos fazendo uma reunião na sede da rua Pará, quando me disseram que Dom Mayer me chamava ao telefone. Fui atender, ele conversou um pouco comigo, contou vários casos e no fim me disse: respeito.

— Veja, tenho aqui comigo uma carta do Cardeal Pizzardo que lhe diz — Mas como uma carta do Cardeal Pizzardo, Dom Mayer? — Eu vou ler.

E leu então a carta do Cardeal Giuseppe Pizzardo, Prefeito da referida Congregação, a qual também vinha assinada pelo secretário, futuro Cardeal Dino Staffa, aprovando o meu livro 1755. Eu fiquei satisfeitíssimo! Porque eu esperava tudo, menos aquela carta 1756. Pedi a Dom Mayer que ditasse o texto pelo telefone e comuniquei ao plenário. Depois ele mandou um emissário de Campos para São Paulo, especialmente para trazêla 1757.

Essa carta da Santa Sé furava de fato o paredão, e pareceu-nos intencionalmente calculada para isto. Ela declarava, em nome de um alto órgão da Santa Sé, que a nossa tese era inteiramente ortodoxa*. * A carta, datada de 2 de dezembro de 1964, afirmava que o autor era “merecidamente célebre pela sua ciência filosófica, histórica e sociológica”, e cumprimentava-o pelo “denso opúsculo, que é um eco fidelíssimo dos Documentos do supremo Magistério da Igreja, inclusive as luminosas Encíclicas ‘Mater et Magistra’ de João XXIII e ‘Ecclesiam suam’ de Paulo VI, felizmente reinante”. Para um católico que ama a Igreja, este é o maior elogio que pode receber de uma alta autoridade eclesiástica. Muito significativamente, essa carta dizia ainda no seu final: “Queira o Senhor conceder a todos os católicos que compreendam a necessidade de estarem unidos ‘in uno sensu eademque sententia’ a fim de evitar as ilusões, os enganos e os perigos que hoje ameaçam internamente a sua Igreja!”

1754 Reunião Normal 1/3/65. 1755 SD 5/5/73. 1756 Palavrinha 26/8/83. 1757 SD 5/5/73.


510 Ou seja, quem escreveu a carta conhecia muito bem “as ilusões, os enganos e os perigos” da política de concessão ao comunismo que serpeavam internamente na Igreja. E apoiava o autor por denunciá-los.

A importância dessa carta para as nossas consciências e para angariar o apoio de pessoas a favor de nossas teses foi simplesmente incalculável 1758. Era de fato uma carta de alto e irrestrito apoio e aprovação 1759. Era um impacto para nossos adversários ver que TFP, soi disant mal vista pela autoridade eclesiástica, recebia uma segunda carta de elogio da Santa Sé (a primeira tinha sido a relativa ao livro Em defesa da Ação Católica)* 1760. * Ainda com relação às campanhas de difusão do livro A Liberdade da Igreja no Estado Comunista, cumpre registrar um fato altamente simbólico. Foi durante a divulgação da 3ª edição desse livro, que pela primeira vez tremularam em público os estandartes da TFP, rubros e marcados com o leão dourado, em campanha em pleno Viaduto do Chá, no centro de São Paulo. Era o dia 30 de março de 1965.

5. Kierunki: polêmica atrás da Cortina de Ferro Nesse ínterim, emergiu a nossa polêmica com o semanário católicoesquerdista Kierunki, deixando patente que o estudo havia repercutido atrás da Cortina de Ferro. Este semanário Kierunki, bem como o mensário Zycie i Mysl, ambos poloneses, atacaram violentamente A liberdade da Igreja no Estado comunista. A polêmica começou quando o Sr. Zbigniew Czajkowski, colaborador destes dois periódicos, publicou extensos artigos contra meu ensaio. Respondi através das páginas de Catolicismo 1761. Daí se seguiu uma polêmica, na qual interveio em apoio à minha obra o periódico L’Homme Nouveau, de Paris, pela pena de seu colaborador Henri Carton, enquanto Témoignage Chrétien — turbulento órgão comuno-progressista francês — se colocava ao lado de Czajkowski 1762.

Por sua vez, o Sr. Tadeusz Mazowiecki 1763, redator-chefe do mensário Wiez e deputado do grupo católico Znak à Dieta polonesa, publicou em sua revista (n° 11-12 de novembro/dezembro de 1963), em 1758 Reunião Normal 1/3/65. 1759 SEFAC 25/1/65. 1760 Reunião Normal 1/3/65. 1761 — O primeiro artigo de Kierunki foi publicado no seu nº 8, de 1º/3/64, sob o título Carta aberta ao Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Dr. Plinio respondeu com o artigo Carta aberta para além Cortina de Ferro publicado em Catolicismo n° 162, de junho de 1964. Outras peças da polêmica se seguiram e podem ser acompanhadas pela leitura dos Catolicismos n°s 162, 164, 165, 166 e 170, respectivamente de junho, agosto, setembro, outubro de 1964 e fevereiro de 1965. 1762 Auto-retrato filosófico, cit. 1763 — Tadeusz Mazowiecki foi membro do movimento Pax, do sindicato Solidariedade e primeiroministro da Polônia entre 1989 e 1991.


511 colaboração com o Sr. A. Wielowieyski, um artigo que procurava ser uma réplica ao estudo 1764. * Até hoje não sabemos o que motivou essa polêmica 1765. Devido à Cortina de Ferro, nosso estudo não pode ter penetrado torrencialmente na Polônia. E para que um jornal tivesse que refutá-lo, pode-se presumir que ele entrou levado por alguém que fez dele uma edição clandestina em polonês e que lá essa edição tenha causado perturbação nos meios católicos colaboracionistas. Daí a necessidade de o jornal Kierunki tratar da questão 1766. O fato concreto é que nosso ensaio difundiu-se enormemente. Foram preparadas edições e traduções em diversas línguas. E a TFP as espalhou por toda parte. Cumprimos a nossa missão, dissemos a verdade que tinha de ser dita e a disseminamos amplamente. Cabia agora a outros darem conta perante Deus do que puderam ler e não tiraram proveito 1767. * Vinte anos depois de publicado nosso ensaio, surgiram minorias dentro do Episcopado de várias partes do mundo que, antevendo o problema da coexistência com o comunismo, propuseram-se resolvê-lo do pior modo. Houve eclesiásticos que pregaram o desarmamento nuclear unilateral das nações do Ocidente utilizando como lema: “Melhor vermelho do que morto”. O que significava: “É melhor ficar comunista do que ser morto”. Melhor portanto nos entregarmos. Nos Estados Unidos, representantes dessa minoria episcopal sustentavam a seguinte tese: "A Rússia não se desarmará. Se nós não nos desarmarmos, será a guerra atômica. Ora, guerra atômica é um mal tão grande, que é melhor que a Rússia tome conta dos Estados Unidos. De maneira que nós vamos trabalhar pelo desarmamento unilateral dos Estados Unidos do ponto de vista atômico”*1768. * Outro fato clamoroso nessa linha: perante o Sínodo Mundial dos Bispos reunido em Roma em 1977, o Arcebispo de Saigon, Monsenhor Nguyen Van Binh, explicou aos Bispos presentes que, sendo “impossível esconder dessas crianças vietnamitas as diferenças entre o marxismo e o cristianismo”, é

1764 A liberdade da Igreja no Estado Comunista — Reedição ampliada, Catolicismo n° 161, maio de 1965. 1765 Reunião Normal 1/3/65. 1766 RR 1/3/74. 1767 SD 5/5/73. 1768 SD 10/8/83.


512 preciso “explicar essas diferenças ‘não com uma atitude de oposição’ ao marxismo, mas num sentido de justiça”. E acrescentou que aos dominadores comunistas do Vietnã, “devemos mostrar uma nova face, a verdadeira face da Igreja” e “cooperar ativamente” com o governo (cfr. artigo O Arcebispo de Ho Chi Min, Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 1977). E o mais surpreendente é que essa atitude subserviente da tal Igreja colaboracionista vietnamita não despertou nenhum protesto entre os 204 Prelados presentes ao Sínodo. Pelo contrário, aqui no Brasil, a Regional Sul II da CNBB fez um pronunciamento em que procurava mostrar que o Episcopado e os fiéis brasileiros se devem inspirar na conduta colaboracionista da Igreja vietnamita, caso o comunismo tome conta do Brasil. Dizia: “A disposição da Igreja vietnamita leva a crer que ela não está apenas fazendo uma ‘tentativa’ de coexistência com o regime comunista. [...] Nesse momento, quem sabe, essa Igreja dos confins da Ásia nos dará o primeiro exemplo de como a Igreja pode existir e agir eficazmente na sua missão salvadora, sob um regime de ‘ditadura do proletariado’“ (cfr. “Voz do Paraná”, hebdomadário católico de Curitiba, semana de 25 de abril a 1° de maio de 1976. Dr. Plinio transcreveu essa declaração em seu livro A Igreja ante a escalada da ameaça comunista — Apelo aos Bispos Silenciosos, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 4ª edição, 1977).

Capítulo XIII “Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo” (1965): conteúdo e repercussões 1. O que me levou a escrever este ensaio: torção da palavra “diálogo” Dois anos depois de sair a público A liberdade da Igreja no Estado comunista, escrevi outro livro que de certo modo tinha relação com o primeiro. A ele dei o título de Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo. A ideia de escrever este ensaio nasceu de uma pequena circunstância. De há muito soavam falso a nossos ouvidos os múltiplos empregos que em certos meios vinham sendo dados à palavra diálogo. Sentíamos a necessidade, veemente como se fora um imperativo de consciência, de protestar contra essa transgressão das regras da boa linguagem. Aos poucos, impressões, observações, notas colhidas aqui e acolá, iam criando em nossa mente a sensação de que essa multiforme torção da palavra diálogo tinha uma lógica interna que deixava ver algo de


513 intencional, de planejado e de metódico. E que esse algo abrangia não só essa, mas outras palavras usuais nas elucubrações dos progressistas, socialistas e comunistas, como sejam pacifismo, coexistência, ecumenismo, democracia-cristã, terceira-força etc. Essa torção, segundo se nos tornava claro pela observação, se fazia sempre num mesmo sentido: o de debilitar nos não comunistas a resistência ao comunismo, inspirando-lhes um ânimo propenso à condescendência, à simpatia, à não-resistência e até ao entreguismo. Em casos extremos, a torção chegava até o ponto de transformar não comunistas em comunistas.

2. Denúncia da tática da baldeação ideológica inadvertida Este meu ensaio procurava demostrar que o deslizar da sociedade ocidental e cristã, de uma posição esquerdista para outra com rumo final para o marxismo, era um fenômeno antigo e profundo. Constituía ele, por sua própria essência, uma baldeação ideológica mais ou menos inadvertida, que essa sociedade cristã vinha lamentavelmente realizando, ao longo de séculos, em direção do comunismo. Nesta perspectiva, pois, o fenômeno não era novo. Novo entretanto era o aspecto que ele assumia em razão do empenho todo especial que aqui e acolá certos círculos desenvolviam para imprimir a esse processo, por meio de artifícios diversos, uma velocidade sem precedentes. Por outro lado, tratava-se não mais de obter que esse deslizar se operasse por etapas, do centro para a esquerda, ou de uma esquerda moderada para outra um pouco mais ousada, mas do centro ou da esquerda moderada para uma ordem de coisas que, em seu conteúdo, era categoricamente comunista. Não só, pois, pelos já referidos artifícios modernos com que era provocado, mas também enquanto drástica, próxima e até imediatamente tendente ao marxismo, e enquanto marcado por uma celeridade e uma afoiteza sem precedentes, em proveito direto do comunismo, é que tal processo apresentava uma nota nova, um tom de um rubro intenso que outrora nele mal se entrevia. Nova, sobretudo, era a baldeação ideológica inadvertida enquanto, de colateral que era, se tornou preponderante na tática usada pelo comunismo com vistas à conquista ideológica do mundo 1769. O livro mostrava também por que forma os comunistas se valiam 1769 Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo, Editora Vera Cruz, São Paulo, 5ª ed., 1974.


514 do diálogo para debilitar sub-repticiamente a resistência ideológica de seus adversários, e especialmente a dos católicos. O assunto aí versado é por demais sutil e extenso para sequer ser resumido aqui. Uma das observações mais importantes − de ordem prática − contidas nesse estudo era que, por meio do falso diálogo, os comunistas não visavam tanto alcançar dos católicos que renunciassem explicitamente à Fé, mas que aceitassem uma interpretação relativista e evolucionista da doutrina católica. Assim, corrompia-se a Fé, que por sua natureza exige uma certeza incompatível com o estado de dúvida inerente ao relativismo e ao evolucionismo. E, alcançado esse resultado, não era difícil à propaganda comunista induzir os católicos a esperar do diálogo com o comunismo o encontro de uma síntese... a qual bem poderia ser, em último termo, o mesmo comunismo com outra roupagem1770.

3. Chile: apreensão do livro pela polícia democristã de Frei Falo agora de uma repercussão sobre o livro, acontecida quatro anos depois. Em agosto de 1969, dois telegramas publicados na imprensa diária relatavam uma estranha atitude do governo chileno de Eduardo Frei face ao meu ensaio Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo. Eu tinha publicado esse estudo primeiramente no Brasil. E por toda a parte circulou ele, criticado por uns, aplaudido por outros, sem qualquer impedimento de autoridades de qualquer natureza. Nada mais normal na vida de um livro, especialmente quando da natureza deste*. * O livro teve uma expressiva divulgação: quatorze edições, sendo cinco em português, seis em espanhol, uma em italiano, uma em alemão e uma em inglês. Ao todo, 132,5 mil exemplares. O trabalho foi transcrito integralmente em sete jornais ou revistas de cinco países (cfr. Um homem, uma obra, uma gesta, cit.).

Acontece que a editora argentina Cruzada tinha enviado pouco antes, para serem colocados no Chile, cerca de duzentos exemplares desse meu estudo. E ficou surpresa ao saber que a alfândega chilena apreendera os volumes 1771. Passei então ao presidente Eduardo Frei um telegrama de protesto contra a arbitrariedade dos prepostos aduaneiros de seu governo. E ele, com uma grandeur à De Gaulle (só permissível aliás aos pouquíssimos mortais 1770 Auto-retrato filosófico, cit. 1771 — Cfr. El Diario Ilustrado, Santiago, 7/8/69.


515 que têm o passado do discutido ex-presidente francês) não se dignou responder-me... Publiquei então o meu telegrama na imprensa brasileira. Dias depois, um porta-voz do governo chileno declarou à Associated Press quais as razões da medida. Ao lê-las na imprensa brasileira, não pude deixar de sorrir, tais eram as suspicácias demonstradas pela Gestapo alfandegária montada pelo regime pedecista chileno. Eu tinha — afirmava o porta-voz — "ostensivo e estreito contato" com o Sr. Fábio Vidigal Xavier da Silveira, autor do livro Frei, o Kerensky chileno. Ora, este livro fora considerado "insultante" a Frei e à democracia cristã chilena pelo governo daquele país. Logo, meu livro, creio que por osmose, poderia também ser "insultante" contra o melindroso Chefe de Estado e sua grei. Ver injúrias onde não existem, desconfiar de um livro só porque seu autor é amigo do autor de outro livro do qual não se gosta: não cheiravam a Gestapo esta susceptibilidade, esta desconfiança superexcitada, esta prontidão em adotar medidas policialescas? Acrescentava o referido funcionário do governo do Chile: a TFP andina movia "violenta" oposição ao governo desse país. E, em consequência, a alfândega chilena se julgava no direito de apreender meu livro. Pouco depois veio do Chile outro telegrama anunciando, gravemente, que meu livro fora analisado pelos poderes chilenos, e, comprovado seu caráter meramente ideológico, se lhe permitia circular... 1772. * Vinte anos depois de lançado, esse livro teve ainda uma repercussão muito significativa. A revista semanal chilena Hoy certo dia publicou 1773 uma fotografia da mesa de reunião de Pinochet com os ministros dele. E diante de cada ministro havia uma pasta. Em cima de cada pasta, accessível a todas as fotografias, aparecia um exemplar de Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo. Não havia outros papéis. Era o único tema a estudar. E via-se que era a Presidência da República que mandava distribuir1774.

1772 A clareza, essa polidez, Folha de S. Paulo, 13/8/69 — Publicado também em El Diario Ilustrado, El Mercurio e La Tercera, todos de Santiago, 8/8/69. 1773 — Edição de 2 de setembro de 1985. 1774 Jantar EANS 12/10/91.


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4. Também este livro transpôs a Cortina de Ferro Tal como o livro A liberdade da Igreja no Estado Comunista, Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo transpôs a Cortina de Ferro. No mesmo semanário Kierunki que havia se ocupado do livro A liberdade da Igreja no Estado comunista, o Sr. Z. Czajkowski escreveu artigo com um título bastante singular: No círculo de uma mistificação psicológica, ou seja, de uma polêmica com o Professor Plinio Corrêa de Oliveira — continuação*. * Esse artigo foi publicado em Kierunki nos números 51-52 e 53 do ano de 1967.

Anteriormente, ao tomar posição contra A liberdade da Igreja no Estado comunista, o Sr. Z. Czajkowski fizera questão de enviar-me seus argumentos contra o livro que pretendia refutar. Desta feita, entretanto, só tomei conhecimento de sua nova investida através de uma notícia publicada em uma revista polonesa editada em Varsóvia pela Associação Pax*. * Esta revista chanava-se La Vie Catholique en Pologne - Revue de la Presse Polonaise, de janeiro de 1968.

Tal revista, destinada a informar (ou desinformar?…) o público ocidental sobre a vida religiosa naquele país e, particularmente, sobre as atividades do grupo Pax, só por acaso chegou às minhas mãos, e assim mesmo com um atraso enorme. O Sr. Z. Czajkowski desta vez não havia tomado providências para que sua argumentação chegasse à parte contrária. Ele tinha lá suas razões para isso: a fim de melhor rebater este meu ensaio, adulterou pura e simplesmente, com a maior desfaçatez, diversos trechos que quis refutar! 1775

Capítulo XIV A batalha contra o divórcio e a derrocada da família 1. A indissolubilidade do vínculo conjugal na Constituição de 1934 O preceito constitucional da indissolubilidade do vínculo conjugal 1775 — Cfr. Catolicismo n.° 244, de abril de 1971.


517 havia sido introduzido na Constituição de 1934. E tive a alegria e a honra de ser, como deputado da Liga Eleitoral Católica, na Chapa Única por São Paulo Unido, um dos batalhadores mais entusiásticos em prol dessa grande vitória católica. Por ela batalhou com sagacidade e empenho o Cardeal Sebastião Leme. Dispunha este do apoio dos muito numerosos deputados sufragados pela LEC no Brasil inteiro. Foi coordenando-os e estimulando-os que ele nos conduziu todos ao êxito. Foi isto em 1934. À testa do Episcopado nacional havia um Dom Leme. E no Brasil havia uma LEC estuante de vitalidade 1776.

2. O divórcio no projeto de Código Civil de 1966 gerava uma questão de consciência Em 1966, houve uma tentativa de abalo dessa inviolabilidade do matrimônio. E a TFP iria entrar em uma batalha vitoriosa em defesa da instituição da família, contra o divórcio. O governo federal apresentou um projeto de novo Código Civil, por achar que o antigo, de 1917, era velho. Não era nada velho. Era uma lei de 1917 que estava inteiramente em vigor. O Código era menos velho do que o Presidente da República que estava governando o País*. * O presidente Castelo Branco havia nascido em 1897...

Constituí então, dentro da TFP, uma Comissão de Estudos composta por advogados do nosso grupo para estudar esse projeto. E eles chegaram à conclusão de que este era péssimo, inclusive na parte referente à propriedade privada. O projeto era, portanto, socialista. Mas o que nele havia de pior era o divórcio, introduzido de maneira sorrateira em um dos seus artigos. Nós considerávamos que a liberação do divórcio traria um mal imenso ao Brasil. Em primeiro lugar, porque em si é uma violação da Lei da Igreja . 1777

Segundo a doutrina católica tradicional, o casamento e a família se fundam em princípios inerentes à natureza humana. Dado que Deus é o autor do universo e do homem, tais princípios são a expressão da vontade divina. Por isto mesmo se consubstanciam eles em três Mandamentos da súmula perfeita do direito natural, que é o Decálogo: IV — Honrar pai e 1776 34-75-77, Folha de S. Paulo, 25/7/77. 1777 SD 19/1/74.


518 mãe; VI — Não pecar contra a castidade; IX — Não desejar a mulher do próximo. É nestes preceitos, imutáveis como tudo quanto constitui ordenação fundamental da natureza humana, que se baseiam a família, o casamento, a unidade e a indissolubilidade do vínculo conjugal, o pátrio poder. Da lei feita por Deus, só Deus pode dispensar. Nenhuma lei humana — ainda que ela seja eclesiástica — pode mandar validamente o contrário do que Deus preceituou. Nosso Senhor Jesus Cristo elevou à dignidade de Sacramento o contrato matrimonial, conferindo-lhe assim um título de indissolubilidade ainda mais augusto e vigoroso. De onde, até a consumação dos séculos, o casamento cristão será indissolúvel1778. Em segundo lugar, seria um escândalo um país de imensa maioria católica ter uma lei divorcista. Por causa do número incalculável de pecados a que a aprovação do divórcio daria lugar, esses pecados ofenderiam a glória de Deus, de um lado, e do outro teriam como efeito nocivo um castigo sobre a nação brasileira, um castigo de ordem religiosa e moral. Era, portanto, para mim e para a TFP, uma questão de honra e uma questão de consciência fazer todo o possível para evitar que o divórcio entrasse.

3. Ideia da Pastoral coletiva contra o divórcio: frieza dos Bispos Antes de sair à luta nas ruas, tentamos nos bastidores impedir a campanha divorcista. Em abril de 1966, a pedido meu, Dom Mayer e Dom Sigaud fizeram sondagens junto aos Bispos para ver se eles estariam de acordo em publicar uma Pastoral coletiva desaconselhando o divórcio. Como a força eleitoral da Igreja no Brasil era enorme, se o Episcopado todo tomasse uma atitude antidivorcista, seria fácil os deputados se darem conta do risco da não-reeleição caso aprovassem o Código Civil divorcista. Isto tornaria a aprovação do divórcio muito difícil. Infelizmente chegaram à conclusão de que o Episcopado não estava disposto a lançar essa Pastoral, a qual entretanto poderia salvar o Brasil do divórcio. Diante dessa inação do Episcopado, só tínhamos uma coisa a fazer: lançarmo-nos na campanha contra o divórcio. 1778 Projeto de Constituição angustia o País, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1987.


519 A TFP era pequena naquele tempo. E tínhamos que tentar evitar um mal enorme, em circunstâncias particularmente difíceis. Pois, a favor do Código Civil divorcista, consciente ou inconscientemente estavam engajados os elementos mais influentes da nação brasileira: o presidente de república, Marechal Castelo Branco, que gozava naquele momento de um enorme prestígio; grande parte da imprensa, dos meios intelectuais e dos meios políticos; e até, a seu modo, a cúpula do Episcopado nacional. Todas essas forças estavam engajadas de um modo ou de outro em fazer aprovar o Código Civil, no qual encontrava-se embutido o divórcio. A situação para nós era crítica, mas tínhamos de ser fiéis ao nosso lema que é Tradição, Família e Propriedade. Não podíamos cruzar os braços.

4. Pródromos da campanha O primeiro marco da campanha foi uma entrevista que eu dei ao Jornal do Brasil* * Essa entrevista, publicada naquele matutino carioca na data de 24 de abril de 1966, sob o título O novo Código é dissolvente, foi posteriormente transcrita por bom número de jornais brasileiros.

Como os promotores do divórcio estavam querendo um debate rápido, sem dar tempo à opinião antidivorcista de se organizar, enviei um telegrama ao presidente da Câmara dos Deputados solicitando o adiamento da votação do projeto por um ano, para permitir debates sobre a matéria*. * O telegrama era datado de 29 de maio de 1966.

E divulguei esse telegrama pelos jornais, argumentando que o Código Civil anterior havia levado anos para ser aprovado, e que era um absurdo querer aprovar de afogadilho um projeto tão importante.

5. O “Apelo aos altos poderes civis e eclesiásticos em prol da família brasileira” — A TFP nas ruas Simultaneamente começamos uma campanha de rua consistente em colher assinaturas para um abaixo-assinado pedindo ao governo não introduzir o divórcio no Brasil*. * Esse abaixo-assinado, que se iniciou no dia 2 de junho de 1966, constituiu um “Apelo aos altos Poderes civis e eclesiásticos em prol da família brasileira” e solicitava dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados a retirada do projeto da pauta de votação; e do Presidente da República que designasse uma comissão para elaborar um texto de espírito diametralmente oposto, colocando-o em debate público. Apelava também ao Venerando Episcopado Nacional “que faça ouvir sua grande e poderosa voz” para barrar o divórcio no Brasil.

Pareceu-me conveniente começar a campanha no ponto mais


520 movimentado de São Paulo, que era naquela época o Viaduto do Chá, no qual desembocava a rua Barão de Itapetininga, funil por onde passava São Paulo inteiro na hora das compras. Naquele tempo, era a parte mais trepidante da vida da cidade e um centro de mundanismo intenso. Assim, com pranchetas, mesinhas e cartazes nos quatro cantos do Viaduto, levantando grandes estandartes com o leão rompante, e usando flâmulas com este símbolo na lapela, 80 sócios e cooperadores da TFP abordavam as pessoas nesse trajeto. Mandei também colocar uma banca perto da Faculdade de Direito, um centro universitário tido como divorcista, para começar a campanha com audácia. A campanha foi lançada ao mesmo tempo no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. O resultado excedeu largamente o que nós imaginávamos. A meta era de 200 mil assinaturas para toda a campanha. No primeiro dia, nessas três cidades, tínhamos alcançado 60 mil! Desta forma, com pasmo para muitos, as pessoas das ruas que poderiam numa primeira impressão parecer tão divorcistas, acorriam em quantidade para assinar as listas. Os cooperadores não tinham pranchetas suficientes para dar aos que queriam assinar. Nesse dia, à noite, em reunião na nossa sede da rua Pará fizemos um balanço da campanha. O clima era de euforia geral, e todo mundo não cabia em si de surpresa e de alegria diante do trabalho que estava sendo executado. Preveni então os nossos participantes de que certamente a imprensa iria fazer campanha de silêncio, e os jornais não noticiariam a campanha. No dia seguinte foi tal e qual. A única notícia sobre o divórcio que saiu nos jornais falava de um grupo chamado Liga das Senhoras Divorcistas, que saiu às ruas para coletar assinaturas a favor do divórcio. Foi uma notícia tão chocha que, já no dia seguinte, não apareceram mais referências a elas. E essa Liga sumiu da história, volatilizou-se pelos ares. Da campanha da TFP, nenhuma notícia! Campanha triunfal, com dezenas de bancas no centro da cidade, estandartes. São Paulo inteiro viu. Mas os jornais não disseram uma palavra!

6. Conferências antidivorcistas em São Paulo e Minas Ainda em plena campanha, iniciamos uma série de conferências


521 contra o divórcio. Convidamos como conferencistas desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo. O encerramento desse ciclo foi feito pelo ministro Pedro Chaves, do Supremo Tribunal Federal. Foi um acontecimento de grande repercussão nos meios forenses*. * Foram seis dias de conferências (de 16 de junho e 4 de julho de 1966), todas realizadas no auditório da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. A sessão inaugural teve como presidente de honra o desembargador Raphael de Barros Monteiro, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os conferencistas foram, em dias alternados, os desembargadores Joaquim de Sylos Cintra, Alceu Cordeiro Fernandes, Raul da Rocha Medeiros Junior, Italo Galli, todos de São Paulo, e o ministro Pedro Chaves, do Supremo Tribunal Federal. A Dr. Plinio coube a conferência sobre a continuidade familiar e a tradição no Código Civil brasileiro, ocasião em que dissertou brilhantemente sobre o sentido da “asseitas” para o ser humano. Falou também de improviso o desembargador Marcio Martins Ferreira, vice-presidente do TJ de São Paulo.

A sala estava repleta. Quando o presidente do Supremo Tribunal Federal entrou conosco para fazer a sua conferência, ele e muitos magistrados manifestaram surpresa diante da quantidade e da qualidade das pessoas presentes. notícia.

As conferências foram um verdadeiro êxito. Aí a imprensa deu

O vice-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Marcio Martins Ferreira, falando em nome do TJ, solidarizou-se oficialmente com a campanha. Oferecemos posteriormente um banquete aos conferencistas. Então, discurso, saudação, imprensa de novo.

7. Adesão de personalidades eclesiásticas Tudo isto fez chover assinaturas nas ruas e a campanha foi aumentando de vulto. Ela se estendeu por todo o Brasil, e começaram a chegar notícias de assinaturas de personagens eclesiásticas e civis importantes. Um cooperador da TFP, passando pelo fundo da Catedral, viu sair o Cardeal Agnelo Rossi, que era o Arcebispo de São Paulo e presidente da Comissão Central da CNBB. Esse nosso cooperador chegou com toda a candura para o Cardeal e disse: “Vossa Eminência é contra o divórcio? Quer assinar a nossa lista?” No dia seguinte, nos jornais: “Cardeal Rossi assina lista da


522 TFP”* 1779. * Assinaram também nossas listas alguns altos prelados: Dom Delfim Ribeiro Guedes, Bispo de São João del Rei, Dom Epaminondas José de Araújo, Bispo de Rui Barbosa, Dom Jerônimo Mazzarotto, Bispo Auxiliar de Curitiba e Dom Rodolpho das Mercês de Oliveira Pena, Bispo titular de Apollonis. Além desses, deram declarações de público apoio o Cardeal Arcebispo do Rio, Dom Jaime de Barros Câmara, Dom Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina, Dom Oscar de Oliveira, Arcebispo de Mariana, Dom José Angelo Neto, Arcebispo de Pouso Alegre, Dom Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos e Dom José Mauricio da Rocha, Bispo de Bragança Paulista.

A TFP divulgou depois os nomes de ilustres personalidades do mundo político, do Clero e das Forças Armadas que assinaram o apelo. Entre esses subscritores de nosso apelo havia dezenove desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo 1780. Quem também assinou nossas listas foi Pelé. E o fato serviu para mais propaganda. Então, notícia nos jornais: “Pelé: eu chuto o divórcio”.

8. Diante da pressão, governo retira o projeto No dia 14 de junho de 1966, quando a campanha já caminhava para as 600 mil assinaturas, os jornais deram a inesperada notícia de que o governo mandara retirar o projeto de Código Civil 1781. No mesmo dia, os deputados Nelson Carneiro e Jose Maria Ribeiro apresentaram como projeto de sua própria iniciativa o texto que o Presidente da República retirara. E, na fundamentação de seu requerimento reapresentando o projeto, Nelson Carneiro declarou em expressos termos ter influído a fundo, para a retirada da propositura governamental, o abaixo-assinado da TFP 1782. Passei então telegrama a todos os grupos do Brasil dizendo que não interrompessem a campanha. E que deveríamos agora ir até um milhão de assinaturas, e antes do um milhão não deveríamos nos dar por contentes*1783. * No dia 26 de junho, foi publicado na Folha de S. Paulo o manifesto A TFP e a investida divorcista no Brasil, assinado por Dr. Plinio e todo o Conselho Nacional em que eram brevemente historiados esses últimos episódios e enfatizada a necessidade de continuar a campanha.

1779 SD 19/1/74. 1780 A TFP e a investida divorcista no Brasil, Folha de S. Paulo, 26/6/66. 1781 SD 19/1/74. 1782 A TFP e a investida divorcista no Brasil, cit. 1783 SD 19/1/74.


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9. CNBB ataca: “reverente e filial” resposta da TFP Nesse meio tempo, uma surpresa bastante inesperada. A Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reunida no Rio de Janeiro, publicou no dia 17 de junho três comunicados simultâneos. Um dos comunicados visava, de maneira severa e taxativa, a TFP. Em doloroso contraste, os outros dois se referiam de modo ameno e benigno ao projeto de Código que sub-repticiamente introduzia o divórcio em nossa legislação, e ao MEB (Movimento de Educação de Base), por muitos havido como comunistizante. Ora, era indubitável que a Comissão Central teve grande empenho em que o documento contra a TFP saísse no momento em que saiu, isto é, enquanto ia caminhando para o zênite a campanha antidivorcista. Com efeito, segundo os estatutos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, as deliberações desta só podem ser tomadas por dois terços dos votos presentes na assembleia geral. Só em casos muito urgentes é que a Comissão Central pode manifestar-se em nome da assembleia geral sem a consultar1784 Era um fato paradoxal: sermos censurados pela Comissão Central da CNBB durante uma campanha que desenvolvíamos contra o divórcio! E esta dava em seu documento razões confusas que ninguém entendia bem1785. Inexplicável, também, é que, no dia 17 de junho, em seu conhecido e popular programa radiofônico A Voz do Pastor, tenha o ilustre CardealArcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, declarado a respeito da mesma campanha: "Chegou-nos às mãos, um ‘Apelo’ formulado pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. Perguntaram-nos: Podemos assinar esse apelo? — Pois não! Damo-lhe inteira cobertura nesta Arquidiocese. É preciso que as Autoridades Federais saibam que o povo da Guanabara, cariocas de nascimento ou aqui residentes, repudiam o divórcio e o aviltamento da família brasileira, desejando-a respeitadora da Lei de Deus" (Diário de Notícias, Rio, 18/6/66). * Escrevi, em data de 24 de junho, ao Sr. Cardeal Dom Agnelo Rossi, 1784 Respeitosa defesa em face de um comunicado da Veneranda Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Catolicismo n° 188, agosto de 1966. 1785 SD 19/1/74.


524 então presidente da Comissão Central da CNBB, uma carta, entregue por portador no Palácio Pio XII, na qual externava toda a surpresa e toda a dor que nos ia na alma em razão do ocorrido. Esta mesma missiva acrescentava achar-se o Conselho Nacional da TFP na ignorância dos fatos em que se teria baseado a Comissão Central para publicar o comunicado contra a Sociedade. Mas adiantava que, comprovados eventualmente tais fatos, o Conselho não teria dúvida em por eles pedir desculpas à Comissão Central, bem como em tomar todas as providências para que eles não se repetissem. Ao mesmo tempo, o signatário da carta afirmava, em nome do Conselho Nacional e no seu próprio, não estar resolvido a defender através da imprensa a TFP, e considerava ainda a hipótese de que um esclarecimento privado pudesse evitar tal extremo. Essa missiva não obteve resposta da parte de seu ilustre destinatário. * Diante de uma campanha contra esta Sociedade que se foi agravando mais e mais do alto de certos púlpitos e nos tapaventos de certas igrejas, órgãos católicos iam reproduzindo, com crescente insistência, comentários injustos e rancorosos para com a TFP, a respeito do comunicado da Comissão Central. Notadamente, O São Paulo, órgão oficial da Arquidiocese paulopolitana, publicado sob a direção do Sr. Bispo Auxiliar Dom José Lafayette Ferreira Álvares1786, estampou, na sua edição de 26 de junho, uma notícia insinuando caluniosamente que a medida da Comissão Central contra a TFP se devia ao fato de haver esta última lançado um comunicado contrário ao Sagrado Concílio Ecumênico Vaticano II, tachando de esquerdistas suas últimas decisões. Tratava-se de uma calúnia, no sentido mais estrito da palavra. O comunicado aludido não existia, nem a TFP jamais cogitou de publicar qualquer documento neste sentido. Desde logo inteirado da informação caluniosa o Emmo. Sr. Cardeal Arcebispo de São Paulo, não foi ela retificada. Todos esses fatos, somando-se gradualmente uns aos outros, e esgotados os recursos para evitar de publicar a sua defesa1787, redigi um 1786 — Dom José Lafayette Ferreira Álvares (1903-1997) foi Bispo Auxiliar de São Paulo de 1965 a 1971, e Bispo Diocesano de Bragança Paulista de 1971 até 1976, quando resignou. Antes de sagrado Bispo, foi secretário particular de Dom José Gaspar e depois do Cardeal Dom Carlos Carmelo, e em várias ocasiões mostrou-se hostil às Congregações Marianas e ao grupo do Legionário. 1787 Respeitosa defesa em face de um comunicado..., cit.


525 documento que ficou conhecido entre nós como a “Filial Mensagem” 1788. Este documento, que tomava uma página inteira de O Estado de S. Paulo (edição de 26/7/66), representou a primeira atitude oficial da TFP enquanto tal mostrando que a autoridade eclesiástica estava caminhando resvaladeiro abaixo. De maneira que teve um caráter simbólico em nossa história1789. Punha os pingos nos “is”, pois mostrava todas as incongruências do Episcopado 1790 na atitude que havia tomado. Se todos os antidivorcistas do Brasil combatessem o divórcio segundo o diapasão do comunicado da Comissão Central, era de se temer que a indissolubilidade do vínculo conjugal estaria vivendo seus últimos dias no Brasil. No momento em que o comunicado saiu, a TFP já estava escolhida, àquela altura, por meio milhão de brasileiros como porta-bandeira da causa antidivorcista. Era impossível querer jogar por terra o porta-bandeira sem que ao mesmo tempo por terra caísse a própria bandeira1791. A CNBB, diante desse comunicado, ficou quieta1792. Lembro-me de que no dia da publicação desse comunicado, mandamos colocar gente nossa nos quatro cantos do Viaduto do Chá, fazendo um inquérito junto ao público. Quase todo mundo que passava tinha lido e era favorável. Foi um resultado estrondoso 1793. * Que eu me lembre, foi um dos documentos mais difíceis que eu tive de redigir, pois era uma tomada de posição ante a autoridade eclesiástica. E a coisa mais difícil do mundo é polemizar de joelhos! A Igreja é nossa mãe, e nós não podemos, não devemos e não queremos dizer aos representantes dela a não ser o estritamente indispensável, e usando a linguagem respeitosa e digna com que um filho fala à sua mãe, mesmo quando se está profundamente decepcionado, triste e portanto arredio em relação a seus representantes, por se sentir não querido e exilado do afeto deles1794. 1788 — “Filial Mensagem" era a forma simplificada de referir-se, dentro da TFP, ao manifesto cujo título era mais longo: “Respeitosa defesa em face de um comunicado da Veneranda Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — Filial convite ao Diálogo”. Esse comunicado foi publicado no dia 26 de julho de 1966, página 7, como matéria paga, em O Estado de S. Paulo e em vários outros jornais do País. Catolicismo n° 188, de agosto de 1966, também o publicou na íntegra. 1789 SD 26/7/69. 1790 SD 19/1/74. 1791 Respeitosa defesa em face de um comunicado..., cit. 1792 SD 14/8/76. 1793 SD 26/7/69. 1794 SD 18/8/73.


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10. Viaduto do Chá e monumento do Ipiranga: comemorações da vitória Não obstante esse comunicado da Comissão Central da CNBB, a campanha continuou triunfante. No dia 25 de julho atingimos um milhão de assinaturas e a campanha chegara a um auge. vitória.

No dia 12 de agosto de 1966 a TFP realizou enfim a passeata da

O trajeto foi pequeno: atravessou o Viaduto do Chá em plena hora de trabalho. Saímos do Teatro Municipal e caminhamos em direção à Praça do Patriarca, na outra extremidade do Viaduto, ocupando boa parte da faixa central. Um carro com alto-falante tocava a marcha Pompa e circunstância1795 e toda a TFP em filas, num desfile solene. O ato encerrouse na Praça do Patriarca, onde cantamos o Hino Nacional. No dia 14, fizemos nova manifestação diante do Monumento do Ipiranga, lugar onde foi proclamada a independência do Brasil. Um longo cortejo de automóveis partindo de nossa sede da rua Pará seguiu até o local. Ali assinamos uma prece a Nossa Senhora Aparecida, pedindo a Ela que não permitisse que o divórcio entrasse no Brasil*. * Esta prece terminava assim: “Neste local em que o Brasil, logo ao nascer como nação, recebeu de Vós, ó Mãe de Deus, o primeiro sorriso e a primeira bênção, nós Vos apresentamos uma súplica humilde e filial. "Preservai e incrementai, Senhora, a Tradição santa que recebemos de nossos maiores. Mantende pujante o instituto da propriedade, no exercício largo e ufano de sua função social. Livrai dos totalitarismos o Brasil. E sobretudo, ó Rainha onipotente, o que hoje especialmente Vos pedimos é que jamais o divórcio se implante — explícita ou sorrateiramente — na Pátria brasileira”.

No dia 28 de agosto, dei uma entrevista enfatizando que o milhão de assinaturas coletadas pela TFP representava um verdadeiro plebiscito não escrito. Foi uma campanha de todo em todo vitoriosa*. * Foram feitas campanhas em 142 cidades, com a mobilização de 450 sócios e cooperadores da TFP atuando como coletores. Foi atingido o total de 1.042.359 assinaturas, devidamente excluídas da contagem as assinaturas duvidosas. Formava uma pilha de papéis que ia, na sede da rua Pará, do chão até o teto!

1795 — Pompa e Circunstância designa um conjunto de cinco marchas para orquestra, cujo nome é inspirado no terceiro ato de Otelo de Shakespeare. O autor é o compositor inglês Edward Elgar (18571934). Na passeata da TFP foi tocada a de nº 1. Nessa ocasião, Dr. Plinio, os membros do Conselho Nacional e os cooperadores da TFP, todos usavam na lapela uma flâmula vermelha na qual estava estampado em dourado o leão rompante, símbolo da entidade.


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11. Castelo Branco recebe o Conselho Nacional da TFP Compraz-me ressaltar a grandeza de alma de que mais tarde deu provas o então Presidente Castelo Branco. O projeto de Código Civil fora apresentado ao Congresso por ele. Era compreensível que se sentisse magoado com a vitoriosa atuação da TFP1796. Depois dessa campanha, eu havia escrito a ele uma carta muito amável, mas protestando contra uma medida dele que não tinha nada a ver com o divórcio: o projeto de Lei de Imprensa. O fato é que, estando ele em visita a São Paulo, convocou para uma audiência o Conselho Nacional da TFP, a fim de exprimir o agrado com que recebera essa nossa carta com reparos ao projeto* * Esta visita do Chefe de Estado deu-se no dia 25 de janeiro de 1967. A carta ao Presidente fora enviada no dia 13 do mesmo mês. Nela Dr. Plinio e o Conselho Nacional da TFP pediam ao Presidente que a Lei de Imprensa naquele momento em debate na Câmara passasse “por substanciais modificações de sorte que, reprimindo embora a licença, proporcione aos órgãos de difusão escrita e falada a liberdade necessária para sua atuação”, acrescentando que "cumpre pois não coarctar a legítima expressão dela, mas antes tutelá-la zelosamente” (cfr. Catolicismo n° 196197, abril/maio de 1967).

Lembro-me até hoje do dia em que me chegou esse convite de Castelo Branco. Eu estava jantando em casa com Mamãe1797 e veio minha empregada Olga, uma lituana, aliás muito dedicada — ela tinha um tom de voz muito característico — dizendo: “Chefe da Casa Militar da Presidência quer falar”. De início pensei que fosse uma brincadeira. Fui ao telefone e era realmente o Chefe da Casa Militar dizendo que o Presidente Castelo Branco queria falar comigo e com a diretoria da TFP. Fomos então alguns do Conselho Nacional e eu. A audiência deu-se no Palácio Campos Elíseos1798. Chegamos à hora marcada, não tardamos em ser introduzidos. Ele foi muito amável e disse que1799 ao vir a São Paulo se lembrara de ter recebido da TFP uma carta muito “fidalga e amável” (expressão

1796 Um diálogo que se tornou impossível, Catolicismo n° 196-197, abril/maio de 1967. 1797 SD 19/1/74. 1798 SD 21/7/73. 1799 SD 19/1/74.


528 textual dele), que o levou a ter1800 vontade de nos conhecer pessoalmente. Daí ter-nos convidado para aquele encontro a fim de nos cumprimentar. Fomos também muito amáveis, conversamos um pouco, depois cumprimentos e pronto. Era um modo de indicar o respeito e a consideração dele para com nossa campanha, como quem diz: “Não me queiram mal, aquilo já está enterrado, vamos continuar bons amigos”. Tiramos fotografia com ele, espalhada depois por nosso serviço de imprensa por todos os jornais1801.

Capítulo XV “Frei, o Kerensky chileno” (1967) 1. Governo democrata cristão expulsa Dr. Fábio do Chile Voltemos para o fio de nossa narrativa. Depois de nossa campanha contra o divórcio de 1966, estivemos às voltas com a divulgação do momentoso livro de nosso querido e saudoso Dr. Fabio Xavier da Silveira, Frei, o Kerensky chileno. Fábio, membro jovem e dinâmico do Conselho Nacional da TFP, interessou-se a fundo pela luta contra a Reforma Agrária socialista e confiscatória, e participou da comissão de peritos que Dom Sigaud, Dom Mayer, Mendonça de Freitas e eu consultamos para a elaboração da Declaração do Morro Alto, isto é, do programa positivo de Reforma Agrária (e, pois, antissocialista e anticonfiscatória) que a TFP adotou por seu. Levado pelo interesse da matéria, Fábio Xavier da Silveira foi ao Chile estudar a Reforma Agrária. Estava ele em meio a suas indagações quando o governo de Frei, de modo arbitrário, deu a nosso patrício 48 horas para abandonar o país. Nada dissera ou fizera o diretor da TFP, que merecesse a medida brutal*. * O que se passou ali foi o seguinte: a convite de agricultores chilenos de Temuco, Dr. Fábio pronunciou, no dia 29 de agosto de 1966, uma palestra sobre a Reforma Agrária no Brasil do tempo de João Goulart, conferência esta rigorosamente circunscrita à realidade brasileira.

1800 SD 21/7/73. 1801 SD 19/1/74.


529 Entretanto, o governo democristão chileno considerou que falar no Chile, em 1966, sobre os tempos que antecederam a 1964 no Brasil, era uma intervenção indireta nos problemas internos da nação andina. Antes de se retirar do Chile, Dr. Fábio pediu uma audiência ao Ministro Bernardo Leighton, do Interior, a quem apresentou o mais enérgico protesto contra a medida violenta e arbitrária de que estava sendo vítima (cfr. Catolicismo n° 190, outubro de 1966).

2. Observações acumuladas por Dr. Fábio Mas dir-se-ia que a polícia de Frei usava a telepatia. Pois é bem certo que no íntimo da alma o visitante acumulava observações e reflexões contrárias à política social e econômica de Frei. Chegado ao Brasil, confiou ele ao papel suas impressões. E daí se originou um livro. Frei, o Kerensky chileno foi o título da obra. O autor sustentava que Frei estava realizando uma obra análoga à de Kerensky na Rússia 1802. Não é o caso de provar aqui o inteiro acerto da tese sustentada por Fábio em seu best-seller. Aliás, a prova foi feita pelos fatos, a tal ponto que quando Allende substituiu a Frei na suprema magistratura, não faltou quem chamasse − e merecidamente − de profética a clarividência do jovem autor brasileiro1803. Frei passou por isto para a História como o Kerensky chileno. Serviu de ferrete para assim lhe marcar merecidamente a fronte o livro de Fábio*1804. * Atestou-o de modo insuspeito Carlos Altamirano, secretário geral do Partido Socialista chileno e um dos maiores suportes de Allende no governo. Em entrevista à jornalista P. Politzer, referindo-se às relações entre Frei e Allende, declarou ele: “Penso que a Frei o impactou muito brutalmente o livro que lançaram no Brasil: ‘Frei, o Kerensky chileno’. Foi a gota que fez transbordar o copo. Nesta época quebrou-se de forma definitiva uma larga e boa relação entre ambos [entre Frei e Allende]” (Patricia Politzer, Altamirano, p. 59-60, apud Juan Gonzalo Larrain Campbell, Catolicismo, agosto de 1997). No mesmo sentido comentava, com fino senso psicológico e espírito francês, a revista Paris Match (edição de 22/9/73): “Puseram-lhe uma etiqueta terrível: Kerensky. Ela lhe causa uma cólera sombria, pois se pergunta no fundo de si mesmo se não é verdadeira”. 1802 Sucesso internacional de um brasileiro, Folha de S. Paulo, 8/1/69 — Alexander Fyódorovich Kérensky (1881-1970), líder revolucionário russo, desempenhou papel primordial na queda do regime czarista e, no governo provisório que então se estabeleceu, foi primeiro ministro durante menos de quatro meses, período em que preparou a ascensão do comunismo ao poder por meio dos bolcheviques de Lenine. 1803 Fabio Vidigal Xavier da Silveira, Folha de S. Paulo, 2/1/72. 1804 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.


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3. Elaboração do livro e ideia do título Assisti de perto à elaboração do brilhante trabalho. Profundo admirador e conhecedor de todos os povos iberoamericanos, o jovem diretor da TFP tinha, no mais alto grau, a consciência de que todos os povos latinos deste continente formam uma só família, unida pela Fé, pela tradição, pela raça e pela comunidade de uma mesma missão histórica. As divergências entre as nações nascidas da gloriosa Ibéria, ele as via como secundárias em face desta majestosa unidade fundamental. E a sobrevivência de tais divergências no século XX lhe parecia um verdadeiro anacronismo. Isto o levava a considerar, com verdadeiro amor, as perspectivas de ascensão e os problemas de cada país irmão. E o persuadia de que nenhum problema grave poderia ameaçar a qualquer deles sem afetar todos os demais 1805. Eu não fui o autor do livro, e sim Fábio, que morreu tragicamente, alguns anos depois, de um doloroso câncer. E lhe dei uma certa colaboração e orientação. Mas a colheita dos dados no Chile, fê-la ele, e muito inteligentemente1806. Eu evidentemente o ajudei, propus o esquema. O Fábio o encheu com aquela verve só dele e fez um livro de atualidade muito bom 1807. Foi, isto sim, mediante uma sugestão minha que o livro ficou se chamando Frei, o Kerensky chileno 1808. Antes de fazer essa sugestão de título, hesitei muito. Eu queria deixar a escolha do título a critério dele, é claro. E em determinado momento ele quase optou pela rejeição do título sugerido. Eu tive um aperto de alma com isto e pensei: “Se for rejeitado, é uma pena, mas eu não posso impor ao livro dele um título que ele não sinta adequado”. Mas depois eu o vi lentamente refazer o caminho e optar pelo título Kerensky. E tive uma alegria por causa disso 1809.

1805 Fabio Vidigal Xavier da Silveira, cit. 1806 Entrevista à revista Cosas, 19/7/91, apud Tradición Familia Propiedad, Santiago (Chile) n° 87, 1991. 1807 Despacho Argentina 9/8/91. 1808 RR 2/10/93. 1809 RR 31/1/76.


531 O fato é que Frei ficou com esse carimbo na fronte1810. Até morrer era apontado como sendo o Kerensky chileno, em todas as rodas políticas e na opinião pública do Chile, em geral* 1811. * Neste sentido, é expressivo o comentário do escritor mexicano esquerdista José Rodriguez Elizondo: “Por conhecer em profundidade a personalidade de Frei, a direita chilena ia obter melhores dividendos de seus ataques. Um só toque lhe bastaria para afetá-lo a fundo [...] [a direita] fazia publicar e distribuía por todo o continente um livro-denúncia intitulado ‘Frei, o Kerensky chileno’. “No livro se lhe acusava, desde o título, de se ter convertido no aprendiz de feiticeiro que havia desatado as forças da revolução bolchevista numa posição chave da América Latina. “Tocava, com isso, o ponto mais sensível de quem se havia apresentado — juntamente com seu partido — como a verdadeira alternativa frente à revolução socialista, que deveria servir de exemplo para o conjunto das nações do chamado terceiro mundo” (José Rodriguez Elizondo, Introducción al facismo Chileno, Editorial Ayuso S.A., México, 1976, 1ª ed., p. 62, apud Juan Gonzalo Larrain Campbell, Catolicismo, agosto de 1997).

* O modo de ser de Fábio contribuiu largamente para o êxito de sua atuação. Para isto, era admiravelmente apta a sua personalidade. Quem não o conheceu pessoalmente, dificilmente terá uma ideia do que era seu dom de atrair. Inteligente, culto, dinâmico, sagaz e cheio de tato, Fábio acrescentava a essas qualidades um certo charme pessoal indefinível, a que era difícil resistir. Sua vivacidade extraordinária, a amenidade de seu trato, seu espírito incessantemente jovial, sua verve originalíssima faziam de sua conversa uma verdadeira caixa de surpresas, da qual saíam, quando menos se esperava, observações penetrantes, chistes brilhantes, lances de alma generosos e golpes polêmicos dos mais rijos 1812. É impossível não sentir saudades dele, quando a gente trata disto. Eu quis dele que o Dr. Castilho revisse “Frei, o Kerensky chileno”. Ele disse que teve a impressão de que Dr. Castilho cortou a pele dele. Foram para a Fazenda do Morro Alto, em Amparo, para um simpósio lixando o Frei, o Kerensky chileno. Depois Dr. Fabio reconheceu que foi de uma enorme vantagem essa revisão 1813.

1810 SD 23/1/76. 1811 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1812 Fabio Vidigal Xavier da Silveira, cit. 1813 EXT 31/7/73.


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4. Governo Frei sente-se “ameaçado”: livro é proibido no Chile O livro repercutiu intensamente no Chile, onde foi lido e comentado em todos os ambientes culturais e políticos 1814. O jornal oficioso democristão La Nación, o jornal comunista El Siglo, os jornais socialistas Clarín, Ultima Hora e La Tarde, todos se uniram para defender o regime “ameaçado”. O próprio governo Frei sentiu em tal grau o alcance do livro, que lhe proibiu a circulação. Foi inútil. Pelo correio, os exemplares chegavam de Buenos Aires aos milhares. O governo confiscou então os exemplares que entravam*. * A notícia dessa proibição foi bombasticamente divulgada pela imprensa de São Paulo e do Rio no dia 27 de outubro de 1967. No dia seguinte, 28 de outubro, o Serviço de Imprensa da TFP distribui despacho em que noticia o protesto da TFP contra essa medida ditatorial (cfr. Catolicismo n° 203, novembro de 1967).

A curiosidade dos chilenos a respeito de Frei, o Kerensky chileno era tal, que o livro circulava largamente de mão em mão, solicitado com sofreguidão e lido com delícias por um extenso público 1815. Organizou-se então, naquele país, um verdadeiro "câmbio negro" para a compra da obra aos numerosos turistas chilenos que, vindos de Buenos Aires, traziam em suas bagagens a edição castelhana promovida pela TFP argentina*1816. * A revista chilena 7 Dias, por exemplo, publicou um clichê em três quartos de página, em que figura uma pessoa lendo uma edição argentina da obra, cobrindo o rosto como quem não quer ser identificado. E seu colunista, Andrés Cruz Arjona, cita o comentário de um amigo que lhe havia conseguido o livro: "Não entendo a razão pela qual o governo pôs esta edição no 'Index', proibindo sua leitura aos chilenos. Tal medida, como não podia deixar de acontecer, transformou-se na mais eficaz propaganda para a referida publicação, que hoje circula clandestina mas profusamente. Os possuidores de cada um dos exemplares que lograram escapar ao confisco tiveram que fazer lista de precedência entre seus parentes e amigos para propiciar-lhes a leitura do livro em rigorosa ordem de inscrição" (cfr. Catolicismo n° 204, de dezembro de 1967; e n° 205, de janeiro de 1968).

* No aeroporto de Buenos Aires, o sr. Krauss, subsecretário do Ministério do Interior do Chile, perdeu a cabeça e exigiu da polícia a prisão de jovens da TFP local, que vendiam o livro. É claro que não foi atendido! 1814 Fabio Vidigal Xavier da Silveira, cit. 1815 Sucesso internacional de um brasileiro, Folha de S. Paulo, 8/1/69. 1816 Fabio Vidigal Xavier da Silveira, cit.


533 A imprensa situacionista chegou a falar em incidente diplomático. Em suma, a polêmica ferveu, envolvendo grandes órgãos e altos personagens 1817. Ao pé da letra, o livro abalara o Chile. Não foi só. Posto à venda em campanha de rua por sócios e militantes das TFPs ou entidades congêneres em quase todos os outros países sul-americanos, alcançou Frei, o Kerensky chileno rápido e fulgurante sucesso*. * A obra foi publicada no Brasil (quatro edições), na Argentina (seis edições), na Venezuela (três edições, das quais uma no jornal La Verdad), na Colômbia, no Equador e por fim na Itália, num total de dezesseis edições, 128,8 mil exemplares.

O livro de Dr. Fábio, desfazendo o mito pedecista, concorreu notavelmente para que o rumo histórico do continente passasse a demandar outros horizontes 1818.

5. Itamaraty sofre pressões: governo proíbe campanha também no Brasil Um fato muito significativo se deu quando lançamos e começamos a difundir Frei, o Kerensky chileno no Brasil. A certa altura da campanha, recebi um telefonema do Itamaraty dizendo que, da parte do Ministro do Exterior e com o aval do Presidente da República, havia ordem de nós cessarmos a nossa campanha. Eu disse que queria saber qual era a razão dessa proibição. Ele disse: “É uma deliberação do senhor Presidente da República”. Eu disse: “Mas eu posso saber qual é o fundamento da opinião do senhor Presidente da República?” Disse ele: “Nós estamos em regime de ditadura militar e portanto o senhor Presidente da República não tem que dar ao Sr. satisfações”. Eu disse: “Mas faço notar ao senhor Presidente da República, por seu intermédio, que essa ditadura foi implantada no Brasil para combater o comunismo; nós saímos às ruas para combater o comunismo; nós recebemos uma repreensão, uma limitação de nossa atitude porque somos anticomunistas. Haverá uma contradição mais forte do que um regime ditatorial anticomunista que proíbe a propaganda anticomunista? Eu não 1817 Sucesso internacional de um brasileiro, cit. 1818 Fabio Vidigal Xavier da Silveira, cit.


534 compreendo isto”. Ele respondeu: “Se o Sr. não compreende, eu lamento, mas isto é assim. O Sr. deve cessar a propaganda sob as penas da lei”. Eu desliguei o telefone mas não pude fazer nada1819. A TFP acatou, não sem protesto, a insólita decisão de nossas autoridades, que assim aceitavam uma injunção descabida do governo chileno demo-cristão*. * Essa pressão diplomática do governo chileno “democrata-cristão” havia sido exercida através de seu embaixador no Brasil, Héctor Correa Letelier. Em Catolicismo n° 201, de setembro de 1967, é publicada na íntegra — e cabalmente refutada — uma carta sua à Redação do jornal, datada de 7/8/67. Tais pressões deixavam a nu o mal-estar causado pelas denúncias contidas no livro Frei, o Kerensky chileno sobre o papel de Eduardo Frei na preparação do Chile para a ascensão do comunismo, o que se deu três anos depois, com a ascensão do marxista Allende.

Essa proibição veio quando já se haviam escoado vinte e cinco mil exemplares da obra aqui no Brasil.

6. Tentativas de proibição por toda a América do Sul Em outras nações latino-americanas, a diplomacia chilena tentou igualmente, sem êxito, criar obstáculos à campanha*. * Na Argentina, o embaixador chileno Hernán Videla Lira compareceu à chancelaria para manifestar a “inquietude do governo” chileno pela venda do livro em Buenos Aires (cfr. La Prensa, Buenos Aires, 7/3/68 e La Tarde, Santiago, 8/3/68). No Peru, o embaixador Horacio Walker Larrain polemizou com um colunista de La Prensa, de Lima (23/11/67), que havia elogiado a obra. Em Caracas, o encarregado de Negócios do Chile enviou cartas a La Verdad (10 e 17/11/67) para protestar contra o artigo O Index da Revolução em Liberdade, assinado por seu diretor.

Sobre a repercussão do livro quando da subida do marxista Allende ao Poder, tratarei adiante 1820.

1819 SD 20/9/91. 1820 Um homem, uma obra, uma gesta, cit.


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Capítulo XVI Os artigos para a “Folha de S. Paulo” (19681990) 1. Inesperado convite de diretor da “Folha” Durante mais de 20 anos, fui colaborador da Folha de S. Paulo, que é o cotidiano de maior circulação em São Paulo. Os textos dos numerosíssimos artigos que escrevi para esse jornal são os mais arrojadamente católicos, mais arrojadamente contrarevolucionários que se possa imaginar* 1821. * Tal colaboração teve início em 7 de agosto de 1968, com o artigo 6 lições dos 600 mil e encerrou-se em 9 de fevereiro de 1990, com o artigo Um comentário atual, uma antiga previsão.

Esses artigos na Folha nasceram de um modo totalmente inesperado. Em certo dia de 1967, antes de eu adoecer com a crise de diabetes que me acometeu no final desse ano, Dr. Plinio Xavier foi falar com Otávio Frias 1822, que era o diretor da Folha. No meio da conversa, Frias disse: “Vocês têm uma voz que merece ser ouvida, e portanto vou abrir o meu jornal para vocês. Você pode pedir ao Dr. Plinio para ele publicar um artigo semanal aqui?” Para nós foi um espanto enorme, porque até aquela ocasião era dificílimo conseguir qualquer publicação em qualquer meio de comunicação social. Todas as publicações eram a peso de ouro. E de repente, o diretor de um jornal da importância da Folha oferecia-nos uma coluna1823. E notem que foi oferecida, não foi pedida 1824. Pouco depois, em dezembro de 1967, fui acometido de violenta

1821 CCEE 9/10/94. 1822 — Otávio Frias de Oliveira (1912-2007), carioca de nascimento, foi um jornalista, editor e empresário brasileiro. Pertencia a uma família tradicional do Rio de Janeiro: seu bisavô fora o barão de Itambi, político influente no Segundo Reinado. Tendo a família se mudado para São Paulo, Frias estudou no Colégio São Luís, da Companhia de Jesus. Notabilizou-se por transformar a Folha de S. Paulo em um dos mais influentes veículos de comunicação do País. A Folha, sob sua direção, endossou a ideia da abertura política do regime militar, abriu suas páginas para todas as tendências de opinião e aumentou o teor crítico de suas edições. A partir de 1986, tornou-se o matutino de maior circulação nacional. 1823 SD 18/8/73. 1824 RR 11/8/73.


536 crise de diabetes 1825. Adoeci gravemente e passei mais ou menos seis meses fora de combate. Quando me curei, achei que era tão improvável aquele oferecimento, que nem pensei mais no caso. Alguns meses depois, Dr. Plinio Xavier teve de ir de novo à Folha. E o Frias disse: “Eu ofereci uma coluna ao Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Ele displicentemente deixou essa coluna rolar. Ele que escreva, que eu a todo momento estou com a coluna aberta”. Como eu ainda estava com a saúde mais ou menos fraca, tive receio de assumir o compromisso. Então, tentei colocar outro membro da TFP escrevendo em meu lugar. O Frias, estando com Dr. Plinio Xavier, foi taxativo: “Eu quero a colaboração do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira e não de outro. Portanto, ou sai o artigo dele ou não sai nada”. Eu nunca tinha visto uma coisa dessas na vida. E então comecei a escrever eu mesmo.

2. Estilo polêmico, à maneira de espadachim Eu tinha dois caminhos a seguir em matéria de artigos na Folha. Um caminho seria fazer colaborações muito prudentes, que não desagradassem a ninguém, para evitar reclamações. Não seria melhor publicar artigos “laranja”? Do ponto de vista puramente humano, terreno, prudencial, teria sido melhor. Mas o homem não é feito apenas de raciocínios práticos. Há uma porção de coisas que se movem na alma dele, às quais se deve dar atenção. Se eu optasse por escrever artigo que não fosse categórico, lutador e peremptório em nossa doutrina, eu teria uma sensação indefinível de estar me traindo a mim mesmo. Coisa muito pior, eu teria a sensação de estar traindo a nossa causa e a nossa doutrina, de estar praticando uma ação grave e categoricamente ilícita. Eu teria uma impressão, difícil de definir, de que eu estaria agindo contra os desígnios da Providência, que, de forma indefinida — como às vezes é a voz da Providência — age no interior de uma pessoa e que me recomendava coragem e o estilo espadachim, custasse o que custasse. De maneira que eu me joguei em artigos polêmicos. E escrevi de tudo e fiz de tudo. Nossa Senhora abençoou essa estratégia antiestratégica e nos 1825 Declaração de Dr. Plinio à revista Madre del Buon Consiglio, editada pelos padres Agostinianos de Genazzano (Itália), julho-agosto de 1985, p. 28.


537 proporcionou anos de batalhas contínuas em que, a bem dizer, não houve um artigo que não fosse feito direta e rotundamente contra o adversário ideológico, e pisando-lhe gravemente os pontos mais doloridos.

3. Clareza, lógica, profundidade e probidade O que eu pretendia que o leitor de um artigo da Folha pensasse? Queria que ele visse a TFP antes de tudo muito clara no que dizia. E que, tendo um mínimo de cultura proporcionada ao artigo, o entendesse. Quer dizer, o primeiro objetivo foi a clareza. Clareza em dois sentidos da palavra: não só facilidade de entender, mas em expressar claramente o que eu penso. Eu queria que nos artigos ficasse patente tudo quanto eu penso. Em segundo lugar, lógica, de maneira que os leitores compreendessem que naquilo que eu escrevia havia um nexo, um fio lógico que era coerente. Não era um pensamento divagando a esmo, mas concatenado. Em terceiro lugar, profundidade: o tema abordado, embora nos limites de um artigo de jornal, ia até o fundo da questão e não era tratado superficialmente. E em quarto lugar, probidade: nunca afirmar algo que não fosse inteiramente real; nunca dar um argumento que forçasse qualquer coisa; nunca lançar uma acusação que fosse além do estritamente demonstrável. Dessa forma, procurar comunicar a ideia de uma honestidade rutilante, de alguém que defende uma causa bastante santa para não necessitar de nenhum truque, de nenhum ardil para persuadir e para arrastar.

4. Vivacidade unida à elevação de linguagem Quais as coisas que eu procurava evitar nos artigos? Como os artigos representavam a Tradição, eu tinha o cuidado de não parecerem velheiras, e tratava continuamente de temas atuais. Além disso, por fidelidade a nossos princípios, o artigo tinha que ter uma linguagem elevada, mas ao mesmo tempo não pernóstica. Pernosticismo seria, por exemplo, o caso de um pregador que, ao falar de um pão produzido debaixo das cinzas, citado no Antigo Testamento, tivesse empregado a expressão pão subcinerício. Cinere é cinza. Pão subcinerício seria o que está por debaixo das cinzas. Subcinerício é uma palavra correta, mas não faz parte da linguagem comum. Isto eu chamo de pernosticismo. E isto eu devia evitar. O jeito de dar atualidade era expor os temas como quem conversa.


538 Quer dizer, era preciso evitar aquele ar glacial que tem um artigo que convida o sujeito a sair da vida para entrar no museu gélido das ideias. Eu procurava portanto apresentar um modo de pensar lógico, o mais tradicional possível, e um modo de expor correspondente à vitalidade e ao desejo de vivacidade modernas.

5. Com os olhos postos na “intelligentsia” Os artigos tomavam em consideração aquilo que se chama a “intelligentsia”, quer dizer, a classe de pessoas que se dedicam mais especialmente ao estudo, à vida intelectual, e cuja principal ocupação não é a de exercer uma profissão para ganhar dinheiro, mas de estudar e adquirir um alto grau de cultura, pelo menos em relação à sociedade na qual eles vivem. A que categorias profissionais correspondia isso na sociedade brasileira em que vivíamos? A um bom número de professores universitários, a certo número de colaboradores de jornal, a certo número de pessoas muito cultas das profissões liberais: advogados, médicos, engenheiros, economistas e outros. Também a elementos do Clero, das Forças Armadas e certos artistas. A intelligentsia era portanto a classe especialmente letrada de um país, mas que diretamente não tinha muita repercussão junto ao público, mas sim junto aos homens influentes. Quais eram esses homens influentes? Eram os homens que alcançavam grande êxito na respectiva carreira. Estes ouviam os letrados. E através deles os letrados influenciavam a marcha do País1826.

6. “Vocês remexem a opinião” Quando, mais tarde, Dr. Plinio Xavier foi à Folha levar o manifesto da Resistência à Ostpolitik do Vaticano para ser publicado, o diretor da Folha que o atendeu disse: “A TFP morde muito o público. Os artigos de Dr. Plinio na Folha têm uma repercussão de uma média de 20 cartas por semana. Dessas 20, habitualmente 17 são contra e 3 a favor”. Depois acrescentou: “Vocês são uma minoria, mas uma minoria que tem muitos simpatizantes. Vocês remexem a opinião. De maneira que eu tenho contentamento em publicar as coisas de vocês” 1827.

1826 SD 18/8/73. 1827 RR 10/4/74.


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Capítulo XVII Infiltração comunista na Igreja: 2.025.201 assinaturas a Paulo VI (1968) 1. O documento subversivo do Padre Comblin Por uma feliz coincidência, os artigos na Folha começaram quando estávamos fazendo, em 1968, uma campanha de grande repercussão: o abaixo-assinado a Paulo VI pedindo medidas contra a infiltração comunista na Igreja. Do ponto de vista puramente estratégico da luta contra a Revolução, a campanha contra essa infiltração comunista na Igreja e contra o documento subversivo do padre belga Joseph Comblin era a mais importante que nós tínhamos feito até então*. * Este documento ficou conhecido como o Documento Comblin. Seu título era: Notas sobre o documento básico para a II Conferência Geral da CELAM. Ele foi dado a público em primeira mão por O Estado de S. Paulo, em sua edição de 14 de junho de 1968. E sua publicação causou um enorme escândalo no Brasil. O sacerdote belga Joseph Comblin (1923-2011) havia sido ordenado sacerdote em 1947. Veio para o Brasil em 1958. Em São Paulo, foi professor da Escola Teológica dos Dominicanos no bairro das Perdizes, onde teve como alunos Frei Betto e Frei Tito. A convite de Dom Helder Câmara, assumiu o cargo de professor do Instituto Teológico do Recife, onde escreveu seu tristemente famoso documento, o qual vazou na imprensa e causou estupor no Brasil, por preconizar, como meios válidos para fazer cair as estruturas sociais vigentes, a revolução na Igreja, a subversão no País, a derrubada do governo, a dissolução das Forças Armadas, a instituição de uma ditadura socialista férrea esteada em tribunais de exceção e aparelhada para reduzir ao silêncio — pelo terror — os descontentes. Dom Helder Câmara, questionado pela imprensa, declarou que "o documento enviado pelo Padre Comblin, do Instituto de Teologia do Recife, é perfeitamente válido dentro de um contexto dum estudo pessoal sobre o documento-base do CELAM", fazendo a ressalva de não concordar "com todas as declarações nele contidas" (cfr. O Estado de S. Paulo, 13/6/68, p. 4). Ora, quem não concordava "com todas", concordava com algumas. E o documento em seu todo era inteiramente inaceitável. A título de exemplo, eis alguns pontos desse programa subversivo: - “Não basta fazer leis. É preciso impô-las pela força. Para a arrancada, o poder será autoritário e ditatorial. Não se pode fazer reformas radicais


540 consultando a maioria: que a maioria prefere ‘sombra e água fresca’, prefere evitar os problemas”. - “O poder deve contar com a força. Qual será essa força? Às vezes poderá contar com as forças armadas, outras vezes é necessário dissolvê-las. Às vezes será necessário distribuir armas ao povo. Outras vezes bastará apelar ao plebiscito em circunstâncias bem preparadas. Outras vezes o centro dos meios de propaganda será suficiente. Em todo caso será necessário montar um sistema repressivo: tribunais novos de exceção contra quem se opõe às reformas. Os procedimentos ordinários da justiça são lentos demais. O poder legislativo também não pode depender de assembleias deliberativas.” - “O poder deve neutralizar as forças de resistência: neutralização das forças armadas se forem conservadoras; controle da imprensa, TV, rádio e outros meios de difusão, censura das críticas destrutivas e reacionárias.” - “... será necessário fazer alianças, entrar em compromissos, ‘sujar as mãos pelas alianças sujas‘, para os progressistas derrubarem o governo e conquistarem o poder” (cfr. artigo O incólume, Folha de S. Paulo, 7 de dezembro de 1969). Este sacerdote, cujo pensamento merecia as mais enérgicas censuras de seus superiores eclesiásticos, recebeu, pelo contrário, calorosos elogios do Arcebispo da Arquidiocese em que trabalhava, Dom Helder Câmara, bem como de seu Bispo Auxiliar, Dom José Lamartine Soares (cfr. REB — Revista Eclesiástica Brasileira, setembro de 1972, p. 697).

2. Um pouco de história: de início, a esquerda católica camuflou sua posição pró-comunista É preciso relembrar que os precedentes históricos dessa campanha vinham dos tempos de nossa batalha em torno do liturgicismo e da Ação Católica. Desde 1940, anos antes, portanto, da saída do meu livro Em Defesa da Ação Católica, aquela corrente esquerdista, da qual faziam parte padres, freiras, leigos e leigas, mas que era bafejada ou pela simpatia ou pela ingenuidade de grande número de Bispos e padres que não se diziam claramente da corrente, começaram a receber destes as posições de mando no Movimento Católico. Enquanto isto, esses Bispos e padres perseguiam asperamente o grupo do Legionário. Nós sabíamos que essa corrente era esquerdista, e analisando as tendências dela percebíamos que iam acabar dando numa espécie de comunismo. Sabíamos disso por conversas com eles e tirando conclusões de coisas que estavam nas entrelinhas dos jornais e revistas que eles publicavam. Eles diziam o que pensavam nas entrelinhas, porque percebiam que o Brasil era muito anticomunista e perderiam muitas bases se tomassem uma atitude claramente simpática ao comunismo. A posição que então assumiam de público era apenas vagamente


541 esquerdista. Eles insistiam muito na ideia de apoio aos pobres, o que de si é uma coisa excelente. Mas ao tratar do tema, usavam termos demagógicos, atacando de forma destemperada e de uma maneira ambígua os maus ricos. * A figura que mais se destacou nesse período, fundando obras de caridade e fazendo discursos demagógicos foi um padre cearense que havia sido muito integralista: Dom Helder Pessoa Câmara. Dizem mesmo que ele foi ordenado trazendo por debaixo da batina a camisa verde. Homem muito labioso, muito amável no contato com as pessoas, tornou-se rapidamente o símbolo da esquerda católica no Brasil. Era idolatrado por muitos da classe alta do Rio de Janeiro, mas também, em alguma medida, por muitos da classe alta de São Paulo e de outros lugares do Brasil. Nós sabíamos que essas pessoas eram comunistizantes, mas não tínhamos prova. E assim as coisas foram se arrastando: eles falando, e nós de boca mais ou menos calada, fazendo apenas umas insinuações contra, tão veladas quanto era a propaganda deles; só poucos percebiam.

3. Na década de 1960, o arrancar de máscara Em 1960, essa gente começou a fazer abertamente propaganda comunista. Aí os burgueses conservadores (que nesse tempo eram muito mais anticomunistas) começaram a tomar atitudes contra o Clero esquerdista, mas em pequenas rodas. De cá, de lá e de acolá se conversava a respeito, mas com certa reserva, com certa consideração. O Clero tinha até então uma vida moral ilibada, observava as regras do Direito Canônico, pregava a doutrina ortodoxa, de maneira que se fazia respeitar. Era talvez a maior potência do Brasil. Todos os políticos tremiam diante de um dito do Episcopado e a opinião pública acatava esse dito como indiscutível. Uma palavra do Episcopado fechava a questão. Mais ainda, nos meios católicos, a palavra de um simples vigário resolvia a questão. Essa, de fato, devia ser a ordem normal das coisas. As organizações têm suas autoridades, as autoridades têm um profundo prestígio, e quando falam elas devem dirimir as questões. Acontece que a ordem normal já não existia na Igreja. Mas as autoridades tinham uma aparência de prestígio que lhes vinha do tempo da ordem normal.


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4. Momento ótimo para a denúncia do Clero esquerdista Como quebrar esse tabu e mostrar a toda a opinião pública brasileira que a situação havia mudado, e que havia autoridades eclesiásticas pactuando com a propaganda criptocomunista ou comunista, de um lado; e que, de outro lado, os outros de modo geral ficavam vegetando na cadeira de balanço, de olhos fechados, sem tomar nenhuma posição? Num Episcopado, naquele tempo de duzentos Bispos, vinte Bispos, quando muito, tomavam atitude contra o perigo que se vinha delineando. Ou a TFP escolheria o caminho de jamais denunciar esse perigo, ou deveria aproveitar alguma ocasião em que o perigo pusesse a cabeça fora da toca para dar-lhe um golpe. Nós não poderíamos fazer nada de sério, em nenhum sentido da palavra, sem lutar contra o Clero esquerdista. E precisávamos surpreender esse Clero esquerdista na hora em que ele estivesse com a mão no bolso do vizinho, quer dizer, em flagrante delito. Essa ocasião boa veio quando O Estado de S. Paulo publicou o famoso Documento Comblin já referido. E então resolvemos lançar a campanha.

5. A Paulo VI: coíba a infiltração comunista dentro da Igreja A campanha consistiu em um abaixo-assinado pedindo ao Papa Paulo VI que interviesse coibindo a infiltração comunista dentro da Igreja, dando como exemplo dessa infiltração o Documento Comblin1828. Nossa ideia inicial era conseguir duzentas a trezentas mil assinaturas, de maneira que ficasse provado que esse número de brasileiros tinha percebido que havia comunismo no Clero, e por esta forma arrancar a máscara do criptocomunismo católico, esse enorme poderio diante do qual todos os políticos tremiam. Então, a campanha foi gizada com a ideia de expandir esse abaixoassinado pelo Brasil inteiro, já sabendo que viria um contravapor tremendo. E, portanto, nós teríamos que aguentar firmemente esse contravapor.

6. Calendário de fatos significativos Para se compreender como a campanha se desenvolveu, primeiramente escrevi uma carta a Dom Helder, mostrando a ele o perigo 1828 SD 26/1/74 — Esse abaixo-assinado tinha como título Reverente e Filial Mensagem ao Papa Paulo VI. Seu texto integral, bem como ampla cobertura dos lances dessa campanha, podem ser encontrados em Catolicismo, nos números 211, de julho de 1968; 212/214, de agosto-outubro de 1968; 216, de dezembro de 1968; e 218, de fevereiro de 1969.


543 do Documento Comblin e pedindo o afastamento desse sacerdote da Arquidiocese de Recife 1829. Se Dom Helder afastasse o padre, ele reconheceria que havia nomeado um sacerdote subversivo para professor do Seminário. Como ele não tinha por onde sair, três dias depois da minha carta ser publicada, ele deu uma entrevista dizendo que ele não ia responder à TFP. E ficou quieto. Portanto, ele sabia da carta e sentiu-se apertado. E quando lançamos a campanha, Dom Helder já estava meio comprometido. No dia 25 de junho de 1968, o deputado Cunha Bueno, de São Paulo, sem nos dizer, toma o nosso documento e o lê em discurso na Câmara dos Deputados, fazendo ao mesmo tempo um elogio de nosso pronunciamento. Isto fez o documento repercutir em todo o ambiente político brasileiro. Pouco antes, dia 23 de junho, Dom Mayer e Dom Sigaud haviam escrito uma carta ao Cardeal Rossi, com cópia para todos os Bispos, pedindo que as ideias do Padre Comblin fossem expurgadas dos meios católicos. Essa carta foi publicada no dia 30 de junho. Era uma pressão feita pelos dois Bispos, um modo de apoiar a nossa atitude. O Cardeal Rossi, no dia 9 de julho, replicou pela imprensa, declarando que o Documento Comblin não era documento oficial da Igreja e portanto não havia razão para a Hierarquia se pronunciar sobre tais ideias. Ainda no dia 23 de junho inicia-se a distribuição da minha carta a Dom Helder nas saídas de igrejas de São Paulo, bem como de outras capitais e cidades onde havia núcleos da TFP. As repercussões colhidas foram todas muito boas*. * Um dos slogans dessa distribuição era: “Veneramos o Clero, mas não queremos padres subversivos”. Tal slogan virou refrão na imprensa brasileira da época, e foi repetido, por exemplo, por Ibraim Sued, conhecido colunista social do jornal O Globo, do Rio.

No dia 7 de julho, o Padre Comblin fez afinal um pronunciamento. A saída que encontrou foi dizer que o documento não era escrito para o público, mas só para especialistas. Enquanto íamos respondendo pelos jornais aos ataques dos esquerdistas, organizávamo-nos internamente para sair às ruas, estudando a distribuição de bancas em grupos, dando instruções. No dia 17 de julho de 1968, fomos todos para a Praça do Patriarca, 1829 — Esta carta, datada de 21 de junho de 1968, foi dada a público em jornais de São Paulo e Recife no dia 23 de junho de 1968.


544 onde foi deflagrada a campanha de abaixo-assinado na qual ninguém pensava. Já no primeiro dia, foram coletadas 80 mil assinaturas, a tal ponto era grande a solidariedade popular com a nossa posição. No dia seguinte, 18 de julho, os jornais publicaram o texto da nossa mensagem a Paulo VI. * No dia 20 de julho, Dom Helder lança, numa reunião da CNBB, um movimento chamado Pressão Moral Libertadora, tentando fazer-se reeleger secretário geral daquele organismo episcopal *. Mas ele estava tão desprestigiado que conseguiu apenas 7 votos. Foi assim derrotado na própria reunião do Episcopado, devido ao susto que o Episcopado tivera com as atitudes pró-comunistas dele, agravadas pelo escândalo dessa campanha pública. E resolveram não reelegê-lo. * Dom Helder havia sido secretário geral da CNBB desde sua fundação, em 1952, até 1964. Foi substituído nesta data por Dom José Gonçalves Costa, então Bispo Auxiliar do Cardeal Dom Jaime Câmara, que exerceu o cargo até a eleição de 1968, na qual foi eleito Dom Aloisio Lorscheider, então Bispo de Santo Ângelo (RS).

Dom Helder perdeu, portanto, uma posição chave: ele, que era o verdadeiro chefe da CNBB, nessa ocasião ficou confinado a ser apenas Arcebispo de Olinda e Recife e não mais o mentor de todo o Episcopado brasileiro. * Nesse mesmo dia, Dª Yolanda Costa e Silva, primeira dama do País, assinou o nosso documento. Nós publicamos naturalmente a notícia nos jornais. Todos os dias apareciam notícias de personagens importantes que em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza e outras cidades tinham também assinado. * No dia 21 de julho, a campanha se estende para o Chile. No dia 22, era a vez da Argentina. * No dia 23 de julho, por moção de Dom Mayer e Dom Sigaud, 19 Arcebispos e Bispos escrevem uma carta ao presidente Costa e Silva dizendo que estavam em desacordo com a atitude dos católicos esquerdistas existentes no Brasil, o que era um apoio enorme para nós*. * Três dias depois (26 de julho de 1968), Dom Sigaud participou de um debate de televisão no Rio, no qual revelou a interpelação que fizera a Dom Helder Câmara sobre o tipo de estrutura social que este preconizava para o Brasil. A revista O Cruzeiro, em sua edição de 24 de agosto, publicou entrevista de Dom Sigaud sobre o episódio.


545 Perguntado nessa entrevista sobre o que achava do Movimento de Pressão Moral Libertadora de Dom Helder, Dom Sigaud respondeu: "Considero este Movimento uma organização metódica de agitação nacional esquerdista. No dia 18 de julho o Sr. Dom Helder realizou uma reunião informal [...] onde se realizava uma reunião da CNBB. [...] Terminada a exposição, houve várias interpelações. Por fim, fiz a Dom Helder as seguintes perguntas: 1 — V. Excia. admite a iniciativa privada? 2 — V. Excia. considera lícita a posse de meios de produção por particulares? 3 — V. Excia. admite a propriedade particular? 4 — Em questões sociais e econômicas, qual é o papel do Estado: é supletivo ou ele é dono do campo? 5 — V. Excia. em sua sociedade 'evangélica', permite o mercado livre? “Dom Helder não pôde, não soube ou não quis me responder. Então pedi que respondesse só a uma pergunta: na sociedade com que ele sonha, será permitido a um particular possuir meios de produção? Por exemplo, um particular poderá ser dono de uma fábrica, de uma oficina, ou o Estado será dono de tudo? “Dom Helder respondeu que esta questão ele confiaria às Universidades para estudo. Repliquei então que os Papas já tinham falado sobre esta questão, desde Leão XIII, e dado a resposta da sociologia verdadeira. A isto Dom Helder retrucou que era melhor que eu nomeasse uma comissão de peritos e ele outra, e um dia nós discutíssemos o assunto. Então lhe respondi que há quinze anos ele agita o Brasil falando de reformas de estruturas, mas nunca disse quais as estruturas que devem ser mudadas, onde e por que. Que ele por fim nos dissesse como é a sociedade que ele quer criar. “Dom Helder não soube, não pôde ou não quis responder. A um amigo que me perguntou se eu não entraria para o Movimento de Pressão Moral Libertadora, eu disse: — Meu amigo, não tomo um bonde se não sei para onde vai. Peço a Dom Helder, Dom Padim, Dom Jorge Marcos, Dom Fragoso: Ponhamos as cartas na mesa! Digam afinal: — aonde querem levar o Brasil? Eu e meus amigos não temos segredos. Por que S. Excias. os têm e querem levar a Nação aonde nós não sabemos? Ou a receita está no trabalho do Padre Comblin?" (cfr. Catolicismo n° 212-214, agosto-outubro de 1968).

Pouco depois, por ocasião da IX Assembleia Geral da CNBB, houve a publicação de outro documento, em que 40 Arcebispos e Bispos dirigiam-se a Dom Agnelo Rossi, então Arcebispo de São Paulo e presidente da CNBB, e denunciavam os graves erros que estavam circulando entre os católicos. Era também um documento que Dom Mayer e Dom Sigaud haviam conseguido. Quer dizer, estava claro que uma parte dos Arcebispos e Bispos brasileiros nos apoiava1830. * Dia 1° de agosto de 1968, a TFP elogia e apoia a encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, proibindo as pílulas anticoncepcionais. * No dia 28 de agosto, a Checoslováquia é invadida pelos russos. A 1830 — Esses documentos podem ser encontrados no n° 212-214 de Catolicismo.


546 TFP protesta contra essa invasão e no dia seguinte manda celebrar uma Missa no Rio de Janeiro pelos tchecos mortos. Eu telegrafo ao Ministro do Exterior exprimindo indignação. * Envio também um telegrama a Paulo VI, que nessa ocasião estava presente no Congresso Eucarístico em Medellin, Colômbia. Apresentava ao Pontífice as minhas homenagens, as minhas reverências filiais, e lhe comunicava que estava em curso a nossa campanha de abaixo-assinado, desculpando-me de não lhe entregar logo tal abaixo-assinado, pois a nossa campanha ainda continuava. Ele não respondeu. * Em setembro de 1968, começam a sair calúnias contra a TFP. TFP”.

Dia 6: “A polícia de segurança vê técnica nazista na organização

Dia 7: “Governo ordena investigação na TFP”. Nunca nos constou nada nesse sentido. Dia 9: “Talvez seja a TFP que colocou o bomba no Colégio Brasil”. Nem me lembro que Colégio Brasil era este. Mas essas notícias, de tão inverossímeis, caíram no vazio. * No dia 11 de setembro de 1968, anunciamos um milhão e quinhentas mil assinaturas. As revistas Veja e Realidade, que tinham grande tiragem, publicaram reportagens a respeito*1831. O abaixo-assinado havia se espraiado largamente pela América do Sul, tendo alcançado na Argentina, 266.512 assinaturas, no Chile, 121.210 mil e no Uruguai, 37.111. Na contagem final, somando-se as 1.600.368 assinaturas do Brasil, foram 2.025.201 assinaturas no total (cfr. Um homem, uma obra, uma gesta, cit.).

No dia 12 de setembro houve o encerramento oficial da campanha, ainda com a cifra de pouco mais de 1.500.000.

7. Brilhante sessão de encerramento em São Paulo A sessão de encerramento foi brilhantíssima. Realizou-se na Casa de Portugal, em São Paulo. Com um auditório superlotado, no qual cabiam duas mil pessoas, o ato contou com a presença de muitas figuras da alta sociedade1832. 1831 SD 26/1/74. 1832 — Catolicismo n° 212-214, de agosto-outubro de 1968, publicou em número triplo uma reportagem


547 Na sessão falamos Dom Mayer, Dom Sigaud e eu. Em certo momento da sessão, interrompi minha exposição para dizer que recebera uma comunicação de que os jovens caravanistas que tinham levado o abaixo-assinado a todo o Brasil, acabavam de chegar de viagem e estavam entrando para participar da sessão. E que era tal o heroísmo deles, que eu propunha que todos os recebessem de pé. Foi uma explosão de aplausos: todo mundo se levantou e entraram as caravanas com os estandartes e se posicionaram nas laterais do auditório. Mais adiante, outro ato muito bonito foi quando dois soldados da Polícia Militar tocaram em clarim o dobre de silêncio por todas as vítimas do comunismo. Então, todo mundo ficou de pé. Uma coisa muito bonita! Quando terminou a sessão, o auditório todo estava aplaudindo longamente, longamente de pé. Foi a sessão mais brilhante da TFP até aquela data. Foi também a mais brilhante que até então eu tenha visto em recinto fechado, na minha vida inteira. A campanha de fato empolgou o Brasil. No fim, declaramos encerrada a campanha, com mais de um milhão e quinhentos mil brasileiros aderindo. Não adiantava à esquerda católica ou não católica protestar, porque a campanha estava ganha. Um milhão e quinhentos mil quiseram. E a campanha atingiu todo o seu êxito*. * O significado profundo desse êxito foi captado pela revista norteamericana Time, que em sua edição de 23/8/68 comentava: “A facilidade com que a TFP coletou as assinaturas reflete o fato de que a maioria dos latino-americanos aprova ou pelo menos tolera [sic] o conservadorismo católico”.

Quando terminou a campanha, ficou patente aos olhos do Brasil inteiro que um milhão e quinhentos mil brasileiros de todo o País, das mais diversas camadas sociais e até pessoas da maior importância como Bispos, ministros de Estado, almirantes, generais, brigadeiros, professores universitários, jornalistas, deputados, senadores, homens ricos, homens médios, homens pobres, todos tinham tido notícia de que havia comunismo infiltrado na Igreja. Quer dizer, a máscara da esquerda católica estava arrancada.

de 25 páginas sobre esta campanha contra a infiltração comunista na Igreja, sendo um dos tópicos o Solene encerramento da campanha, à p. 18.


548 Foi este um trabalho de dois meses de campanha que uma organização pequena, à força de aproveitar as ocasiões, moveu-se com agilidade e foi favorecida por Nossa Senhora, conseguindo levá-la a cabo 1833.

8. Entrega do abaixo-assinado: silêncio de Paulo VI Um problema que se nos apresentou foi como fazer chegar ao Vaticano as incontáveis folhas do abaixo-assinado. Formavam elas — colocadas umas sobre as outras — uma pilha com cerca de 10 metros de altura*. * Eram, repetimos, um total de 2.025.201.

Não convinha confiá-las aos meios comuns de transporte postal. Restava pedir que a remessa se efetuasse em mala diplomática do Vaticano. Não seriam as listas por demais volumosas para transporte na mala diplomática da Nunciatura? Pareceu, assim, necessário microfilmar todas as listas. rolos*.

Começou então a microfilmagem. Esta resultou na elaboração de 85 * Esses rolos foram acondicionados em uma caixa medindo 80 x 50, x 20 centímetros.

Em 20 de junho de 1969, escrevi uma carta a Dom Umberto Mozzoni, Núncio Apostólico no Brasil, rogando a S. Excia. a gentileza de incluir na mala diplomática o envio de histórica importância. Imaginava eu que abaixo-assinados — importantíssimos pelo número de signatários, pela alta qualidade de muitos deles (Arcebispos, Bispos, ministros de Estado, governadores e secretários de Estado, altas patentes das Forças Armadas, parlamentares, professores universitários etc.), pelo tema que versavam — houvessem de encontrar a maior facilidade em ser transportados na mala diplomática. O ilustre representante da Santa Sé respondeu-me, em carta de 2 de julho, que “por disposição dos superiores”, o correio diplomático da Nunciatura estava estritamente reservado às comunicações oficiais. Os subsequentes meses se passaram na espera de um portador de confiança. Obtivemo-lo em outubro* 1834. *A entrega, feita pessoalmente por um amigo da TFP, realizou-se no dia 7 de novembro de 1969. A importante documentação foi confiada a um minutante, na Secretaria de Estado da Santa Sé.

1833 SD 26/1/74. 1834 SOS de milhões — A mala pequena — “Tudo normal”, Folha de S. Paulo, 30/11/69.


549 Esta mensagem, imponente pela gravidade do assunto, pela categoria de muitos signatários, e pelo número dos que a subscreveram ficou sem resposta 1835. O silêncio mais frio e completo seguiu-se à súplica, entretanto filial, respeitosa, submissa, angustiada, ardente. Nada se fez que pusesse cobro à onda. A História registrará que essa omissão teve trágica importância no drama que estava prestes a começar1836.

Capítulo XVIII O Arcebispo Vermelho abre as portas da América e do Mundo para o comunismo 1. Dom Helder no CICOP: política de entrega ao comunismo Ainda estava quente na memória de todos nosso abaixo-assinado a Paulo VI, quando no fim de 1969 Dom Helder Câmara resolveu fazer uma tournée pelo Velho e Novo Mundo. Como de hábito, não perdeu ocasião alguma para promover sua costumeira política1837. Sobretudo nas afirmações extremamente graves, pronunciadas em Nova York, em discurso de encerramento da sexta Conferência Anual do Programa Católico de Cooperação Interamericana (CICOP)*. * Este pronunciamento foi feito no dia 25 de janeiro de 1969.

De princípio ao fim, essas declarações delineavam toda uma política de entrega do mundo, e mais particularmente da América, ao comunismo. Dom Helder pedia que a China comunista fosse admitida nas Nações Unidas. Como a China ocupava um dos cinco lugares permanentes e com direito de veto no órgão supremo da ONU, isto é, no Conselho de Segurança, a admissão do governo de Pequim importaria forçosamente em que ao representante de Chiang Kai-Shek nesse órgão se substituísse o de Mao Tsé-Tung.

1835 Religião a serviço da irreligião, cit. 1836 Toda a verdade sobre as eleições no Chile, Folha de S. Paulo, 10/9/70 e Catolicismo n° 238, outubro de 1970. 1837 Dom Helder cria problema — Comunistas aplaudem, Folha de S. Paulo, 1°/2/70.


550 Dom Helder pedia também "a reintegração de Cuba na comunidade latino-americana [...], com o devido respeito às suas opiniões políticas". Entre outras coisas, asseverou Dom Helder que "o primeiro problema da humanidade não é o choque entre o Oriente e o Ocidente, mas sim entre o Norte e o Sul — ou seja, entre o mundo desenvolvido e o mundo sub-desenvolvido". Esta afirmação sibilina era de molde a adormecer a vigilância dos anticomunistas, ao mesmo tempo que relegava para um nível secundário a grande controvérsia religiosa, filosófica e cultural entre o mundo cristão e o mundo ateu, para pôr em primeira plana o problema econômico do subdesenvolvimento. Inversão de valores inteiramente conforme à doutrina de Marx. A TFP esperou que Dom Helder Câmara desmentisse as afirmações que a imprensa nacional lhe atribuiu. Tal desmentido não veio. E, à vista dos antecedentes, era muito de duvidar que ele viesse, pelo menos com a precisão e a franqueza indispensáveis. Dada a extrema gravidade das declarações do referido Prelado, a TFP julgou cumprir um dever para com a Pátria, exprimindo seu inteiro desacordo com as sugestões desconcertantes a ele atribuídas* 1838. * Ao comunicado Dr. Plinio deu o título de O Arcebispo vermelho abre as portas da América e do mundo para o comunismo, pois esse era o efeito do que Dom Helder dissera. Nele demonstrou que a política internacional preconizada por Dom Helder era inteiramente afim com a política nacional proposta pelo agitador belga Padre Comblin, a seu tempo denunciado pela TFP em vitoriosa campanha contra a infiltração comunista em meios católicos. Dr. Plinio fazia também um apelo à Hierarquia Eclesiástica, ao Poder Público e à própria opinião nacional para que, de concerto, pusessem paradeiro a um perigo cujo alcance seria pueril ignorar. − Este comunicado pode ser encontrado em Catolicismo n° 218, de fevereiro de 1969.

2. Dom Helder Câmara reconfortado por Paulo VI Era triste, muito triste, isto sim1839, ver um Bispo da Santa Igreja Católica Apostólica Romana empenhando o seu prestígio, que lhe vinha da 1838 O manifesto O Arcebispo vermelho abre as portas da América e do mundo para o comunismo foi publicado nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo no dia 1°/2/69, e em dias subsequentes em 26 jornais da imprensa brasileira. 1839 Dom Helder cria problema — Comunistas aplaudem, cit.


551 excelsa dignidade de sucessor dos Apóstolos, para tentar a demolição de bastiões dos mais preciosos da defesa militar e política do mundo livre contra o comunismo 1840. Tudo isto não seria tão importante, pois não ia além da importância de dom Helder. Importante, realmente importante foi o que se passou com Dom Helder em Roma. A importância, no caso, não vinha de Dom Helder mas do Papa. Pois Dom Helder — bem no meio de sua tournée lança-chamas — esteve com Sua Santidade, e depois deu uma versão própria do que ocorreu entre ambos. O fato de essa versão ter sido espalhada aos quatro ventos, no Brasil e no Exterior, isto sim, era importante, na medida em que insinuava uma atitude do chefe da Cristandade diante das proezas de Dom Helder. Lembremos antes de tudo que — segundo uma "fonte oficial" do Vaticano — o encontro teria sido "muito cordial". Dom Helder falou com o Santo Padre sobre suas "experiências passadas" e seus "projetos". A julgar pelo que deixou entrever o Arcebispo, não recebeu ele a menor censura. Pelo contrário, saiu da audiência confiante e com "sua alma de Bispo reconfortada". Mais adiante disse que, a seu ver, o Brasil "deve pensar em modelos socialistas proporcionais às nossas necessidades particulares". E depois de dizer que — segundo pensava — esse socialismo brasileiro não coincidia com o que se praticava nos países socialistas, acrescentou: "Sonho com uma socialização que seja realmente capaz de criar condições de desenvolvimento integral do homem, como define a encíclica ‘Populorum Progressio’". Essas declarações de Dom Helder, embora cheias das habituais sinuosidades, reticências e escapatórias, em sua linha geral não só induziam os leitores a formar a impressão de que recebeu um placet de Paulo VI, bem como a aceitar a ideia de que havia possibilidade de se construir, para o Brasil, um socialismo católico. Acerca deste último ponto, o que sustentávamos era exatamente o contrário. Se católicos transviados, e até um Arcebispo "sonhador", quiserem construir um regime autenticamente socialista, este regime seria intrinsecamente atentatório aos dois Mandamentos da lei de Deus: "Não 1840 O Arcebispo vermelho abre as portas da América e do mundo para o comunismo, Folha de S. Paulo, 1°/2/69.


552 roubarás" e "Não cobiçarás os bens do próximo". O fato de uma violação da Lei de Deus ser praticada, não por materialistas mas por católicos ou até por clérigos, absolutamente não a batizava nem a tornava lícita. Ora, fazendo esta apologia do socialismo, logo à saída de uma audiência papal tão "cordial" e que tanto o "reconfortou", Dom Helder fazia crer que nada do que declarou era contrário às diretrizes que — presumivelmente — acabara de receber de Sua Santidade 1841. Daí eu ter sentido a necessidade absoluta de a TFP publicar o seu comunicado, que teve enorme repercussão.

Capítulo XIX IDO-C e “grupos proféticos”: trama secreta para revolucionar a Igreja (1969) 1. Uma campanha ousada: grupos ocultos tramam a subversão na Igreja Em 1969, Catolicismo publicou um número duplo correspondente aos meses de abril e maio, no qual dava conhecimento de dois autênticos documentos-bomba sobre a presente crise na Santa Igreja. O primeiro deles, estampado no boletim católico Approaches, de Londres (no 10-11, de janeiro de 1968), era intitulado Dossier a respeito do IDO-C. O segundo veio a lume sob o título Os pequenos grupos e a corrente profética, no no 1423, de 11 de janeiro de 1969, da revista Ecclesia, de Madri. Para melhor compreensão dos leitores, cada um desses documentos vinha precedido de um estudo de apresentação contendo um substancioso resumo do texto, elaborado pela redação da folha*1842. * Esse número duplo trazia em sua primeira página a figura de um belo crucifixo barroco venerado na sede do Conselho Nacional da TFP e seu título já constituía uma categórica denúncia: Grupos ocultos tramam a subversão na Igreja. Este título era seguido de um texto em destaque que resumia o conteúdo da edição: "No alto da Cruz, Nosso Senhor Jesus Cristo não sofreu apenas em

1841 Dom Helder cria problema — Comunistas aplaudem, cit. 1842 Grupos ocultos tramam a subversão na Igreja, Catolicismo n° 220-221, abril-maio de 1969.


553 razão dos ultrajes morais e físicos que Lhe foram infligidos por seus algozes. Padeceu também na previsão de todos os pecados que se cometeriam até a consumação dos tempos. Entre eles a trama secreta feita em poderosos meios católicos para 'reformar' a Igreja — transformando-A em uma Igreja-Nova panteísta, desmitificada, dessacralizada, desalienada, igualitária e posta a serviço do comunismo — constituíu por certo um dos mais atrozes tormentos de nosso Divino Redentor. Sim, dEle que ensinou por sua Vida, Paixão e Morte o contrário de todos esses erros clamorosos".

E com base nesse número de Catolicismo fizemos nossa campanha contra o IDO-C e os “grupos proféticos”, isto no ano de 1969 1843, a qual foi de enorme alcance* 1844. * Esse número de Catolicismo denunciava a conjuração de organismos semisecretos cujas infiltrações, de origens remotas, já podiam ser encontradas no Brasil desde os tempos do Em Defesa da Ação Católica, em que Dr. Plinio as descrevia em termos que impressionam pela frisante analogia com as informações publicadas por Ecclesia sobre os grupos proféticos.

Tais organismos eram servidos por uma superpotência publicitária, que trabalhava de acordo com áreas progressistas, e mesmo com pessoas alheias e inimigas da Igreja, para estabelecer 1845 uma Igreja Nova panteísta, desmitificada, dessacralizada, desalienada, igualitária, e posta a serviço do comunismo 1846. Nunca havíamos feito uma acusação tão grave, nunca havíamos dado um passo tão ousado, nunca de um modo tão completo havíamos desmascarado tanto a audácia do adversário 1847. Não faltou quem dissesse a nossos jovens, aqui e acolá ao longo de sua imensa e vitoriosa jornada, que Catolicismo, denunciando a trama sinistra, deixava em má postura muitos sacerdotes e leigos progressistas, e produzia ipso facto um trauma perigoso nas fileiras católicas. A objeção era fácil de responder. O ateísmo é, pela natureza das coisas, o inimigo máximo da Igreja. Se esse inimigo encontrou meios eficazes de se esgueirar nela, era preciso alertar para o fato os católicos. Omitir o alerta por medo de traumatizar a opinião católica seria como não bradar contra o ladrão que se vê entrar em uma casa, por medo de assustar a família... Não partilharam dessa frívola objeção vários Bispos brasileiros, que por escrito se solidarizaram com nossos ataques aos dois já citados organismos de infiltração ateia: Dom Orlando Chaves, Arcebispo de Cuiabá, Dom Antonio de Almeida Moraes Júnior, Arcebispo de Niterói, e 1843 RR 25/8/73. 1844 Reunião Extra com sócios e cooperadores 13/6/69. 1845 RR 14/8/71. 1846 Grupos ocultos tramam a subversão na Igreja, cit. 1847 Palavras na saída das caravanas 23/6/69.


554 Dom Antonio Mazzaroto, Bispo de Ponta Grossa. A essas vozes autorizadas veio juntar-se depois a do CardealArcebispo de Caracas, Dom José Humberto Quintero Parra, que em sua Carta Pastoral de 30 de julho de 1969 (quando nossa campanha já ia a meio), não temeu traumatizar toda a Venezuela, mas, pelo contrário, julgou fazer-lhe um grande bem, alertando os católicos contra os "grupos proféticos"1848.

2. IDO-C: uma máquina de propaganda progressista O IDO-C apresentava-se a si mesmo como “um grupo internacional, com quartel-general em Roma e com uma crescente rede de ramificações que abarcam o mundo inteiro”. Sua função específica, segundo ele mesmo a definia, “consiste em coligir e distribuir” aos especialistas interessados “documentação acerca dos efeitos estruturais e teológicos da continuada aplicação dos decretos e do espírito do Concílio Vaticano II”. O IDO-C informava ter nascido em dezembro de 1965, da fusão do DO-C, centro de informações que servia o Episcopado Holandês durante o Concílio, com o Centro de Coordenação de Comunicações Conciliares (CCCC), que na mesma oportunidade promovia o intercâmbio de notícias entre jornalistas progressistas. Cumpre destacar que o IDO-C controlava as seções religiosas de jornais de repercussão mundial como Le Monde e Le Figaro, em Paris, e o New York Times, nos Estados Unidos. Era muito significativo que o funcionamento do IDO-C fosse aceito sem a menor preocupação em países dominados por governos comunistas, tais como a Hungria, a Polônia, a Checoslováquia e a Iugoslávia. Essa máquina era destinada a inocular nos meios católicos mais ou menos veladamente, através da imprensa, do rádio, da televisão, e de conferências em auditórios públicos, uma doutrina que é o oposto da Religião Católica 1849. Tudo se unia: propaganda das mais ousadas, novidades religiosas e esquerdismo escancarado, tudo propagado em nome do “espírito conciliar” por uma central discreta1850.

3. Grupos proféticos, rede semiclandestina para operar a 1848 Para não assustar a família, Folha de S. Paulo, 1°/10/69. 1849 Grupos ocultos tramam a subversão na Igreja, cit. 1850 A propaganda progressista: um dinossauro discreto, Folha de S. Paulo, 26/3/69.


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revolução na Igreja Já o artigo publicado em Ecclesia nos punha ao corrente do esforço sistemático de um movimento que se generalizara cada vez mais nos meios católicos de numerosos países, o dos “grupos proféticos”. Formado de miríades de pequenos grupos esparsos, a unidade desses organismos ressaltava, logo à primeira vista, da ideologia, das metas e dos métodos de ação que todos tinham em comum, bem como da notável colaboração que mutuamente se prestavam estes corpúsculos sem direção central aparente. Constituíam eles células vivas de ativistas que se incrustavam nos mais variados organismos católicos — seminários, universidades, colégios, obras sociais etc. — e ali faziam a propaganda, mais ou menos velada, de um sistema ideológico que, como no caso do IDO-C, representava o contrário da Religião Católica. Não só por seu grande número, mas pelas sutilíssimas técnicas de iniciação de membros, pressão sobre a opinião pública e agitação que usavam, os “grupos proféticos” eram uma verdadeira potência. Eles formavam dentro da Igreja uma imensa rede semi-secreta de propaganda anticatólica, feita sobretudo verbalmente de pessoa a pessoa. Tanto nos “grupos proféticos” quanto no IDO-C se tinha, perante o comunismo, a mesma atitude simpática. Quanto aos instrumentos de ação, o IDO-C e os “grupos proféticos” eram profundamente diversos. E nisto se completavam. Pois o IDO-C visava as massas católicas, sobre as quais agia pelos meios mais adequados, isto é, como dissemos, livros, revistas, jornais, televisão, rádio, conferências etc. Os “grupos proféticos”, pelo contrário, visavam os mil ambienteschave que dirigiam o movimento católico. E para tanto esses grupos usavam principalmente a propaganda oral discreta, a cargo, como é óbvio, de agitadores perfeitamente destros e bem colocados 1851. * E podemos mais ou menos dizer que tudo o que se passou na Igreja de lá para cá foi a aplicação do programa do IDO-C e dos “grupos proféticos”1852.

1851 Grupos ocultos tramam a subversão na Igreja, cit. 1852 RR 16/6/73.


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4. Novidade marcou a fisionomia das TFPs nas ruas: a capa Nessa ocasião, dezenove caravanas de jovens propagandistas percorreram, em 70 dias, 514 cidades (em vinte Estados) de nosso território. Foram então vendidos 165 mil exemplares de Catolicismo. Foi nessa campanha que, pela primeira vez, por iniciativa minha, a TFP lançou, para uso dos seus cooperadores, a capa rubra ostentando o leão áureo1853. A ideia nasceu de uma preocupação de propaganda de rua. Dada a importância dessa denúncia, pareceu-me que deveríamos inaugurar um processo de campanha que chamasse vivamente a atenção e marcasse a TFP aos olhos do público. Vieram-me então à memória bustos do tempo dos romanos, com capas vagamente parecidas com a nossa.* * Por exemplo, o busto do imperador romano Caracalla, no Museu do Louvre; ou o do imperador Marco Aurélio, nos jardins de Versalhes.

Mas eu não tinha nenhuma vontade de imitar os antigos romanos. E imaginava essa capa marcada por uma nota de heroísmo medieval. Como comunicar essa nota? Então me lembrei de que havia visto, em certa figura medieval, uma vestimenta em forma de farpa. Dr. Eduardo Brotero, com aquele zelo que lhe é característico, fez os modelos de farpa, baseados em um traje do Arquiduque Maximiliano, da Áustria (1459-1519), depois Imperador do Sacro Império (de 1508 até sua morte), revestido com o hábito da Ordem do Tosão de Ouro. E fomos a uma costureira, que executou a ideia. E assim surgiu a nossa capa. Quando fomos medir os resultados da campanha, a capa tinha sido um sucesso1854. Mais tarde, comentando depois num auditório da TFP a imagem de Nossa Senhora defendendo o monge Teófilo contra o demônio, representada no detalhe de um tímpano da Catedral de Notre Dame, em Paris, eu disse que me comprazia num determinado pormenor. Pedi então aos presentes que observassem as dobras do manto de Nossa Senhora, e perguntei: os senhores conhecem essas dobras? É a capa da TFP! Oxalá aqueles que a usam saibam enfrentar a Revolução gnóstica e igualitária como Nossa Senhora fez com o demônio 1855. 1853 Auto-retrato filosófico, cit. 1854 SD 21/7/73. 1855 SD 23/9/69.


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5. Estranhos contratempos com duas autoridades civis Desejo tratar aqui de dois contratempos que tivemos. Um sobre a oposição apaixonada do Sr. Secretário da Segurança Pública de Minas à realização de nossas atividades em praça pública. Pensava eu que ele fosse o único, pois, com exceção de Minas, vendemos os jornais em todo o território nacional, recebendo, da parte das autoridades, as garantias necessárias para o exercício das liberdades que a Constituição nos assegura. Minha ilusão de que só em Minas o Poder Público nos coarctara a ação, se desfez à última hora, pois na Bahia, na querida, gloriosa e tradicional cidade do Salvador, o Secretário da Segurança Pública nos opôs os mesmos óbices que seu fogoso colega mineiro. E isto apesar da magnífica acolhida popular que vínhamos obtendo na linda capital dos Vice-Reis. À guisa de argumento, aquela autoridade só declarou o seguinte: a) a TFP representava, no panorama brasileiro, o extremo oposto do comunismo; logo a TFP era tão autenticamente extremista como este; b) em consequência, não devia ter inteira liberdade de ação, pois que não a tinham os comunistas. Assim, em Salvador como em Minas, fomos proibidos de usar estandartes e capas, bem como de atuar em praça pública. Só o que se nos "concedeu" foi irmos de porta em porta vender os jornais, com evidente diminuição de nossa capacidade de ação*. * Na época correu à boca pequena, em contatos de pessoas da TFP com altos funcionários do governo de Minas e da Bahia, que a proibição dos respectivos secretários se devera às pressões, em Belo Horizonte, do Arcebispo Dom João Resende Costa e, em Salvador, do Cardeal-Arcebispo Dom Eugenio de Araújo Sales. A controvérsia com os dois secretários está noticiada nas edições de Catolicismo n° 223, de julho de 1969 e n° 225-226, de setembro-outubro do mesmo ano.

6. Oposição violenta de padres progressistas Oposição violenta, só a tivemos fora da esfera do Poder Civil. Procedeu ela, quase sempre, de curas progressistas, a capitanear magotes de arruaceiros fanatizados1856. Toca-me dizer uma palavra sobre declarações feitas à imprensa, a propósito de nossa campanha contra o IDO-C e os "grupos proféticos", pelo Emmo. Cardeal Rossi: “Tradição, Família e Propriedade fala por ela própria e não tem correspondência com a palavra e a ação da Igreja". 1856 Aspectos sui generis de uma campanha gloriosa, Folha de S. Paulo, 3/9/69.


558 Outro tópico contido na entrevista de S. Emcia. era este: "Rememorou-nos (o Cardeal) o nobre lema da Igreja de Cristo: ‘Unidade nas coisas essenciais; liberdade nas acidentais e caridade em todas as coisas’. Possivelmente haja comunistas no grande e espalhado mundo do Clero brasileiro. Mas à Igreja não cabe o papel (frisou o Cardeal Rossi) de apontar com o dedo a ovelha negra, numa denúncia. Ela é a primeira a condenar e a censurar, mas condena e censura como a Mãe e como a Mestra". Queríamos crer que o repórter tivesse ouvido mal. Não nos pareceu crível que S. Emcia. considerasse descaridoso "apontar com o dedo" clérigos comunistas − e ipso facto apóstatas − no mesmo momento em que "aponta com o dedo" a TFP, por motivos que, a serem fundados na realidade, seriam bem menos graves 1857. * Somando e subtraindo, tenho certeza de que a onda que nós levantamos contra o IDO-C e os “grupos proféticos” serviu muito para obrigá-los a uma linha de prudência, que retardou a ação deles no Brasil. Quer dizer, foi uma ação preventiva 1858.

Capítulo XX O tumor do envolvimento de clérigos com o terrorismo (1969) 1. O caso dos dominicanos terroristas: “affaire” Marighela Poucos meses depois dessa nossa campanha, ou seja, em novembro de 1969, explodiu o tumor da infiltração terrorista no Clero. Isto é, da infiltração do comunismo de pior tipo, o que não se limitava a defender o ateísmo, o materialismo, o desprezo à família e a negação da propriedade, mas ia além, e apoiava a matança, o sequestro e o saque organizados*. * O caso veio a furo quando, no dia 4 de novembro de 1969, em São Paulo, o chefe terrorista Carlos Marighela, que se achava foragido, foi morto pela polícia ao reagir à prisão. O fato se deu na Alameda Casa Branca, Jardim Paulista, quando Marighela se aproximava de dois religiosos do Convento de São Domingos das Perdizes, com os quais marcara entrevista através de um telefonema para a Livraria Duas Cidades, dirigida pelos Dominicanos. Os

1857 Basear-se em um autor não é falar em nome dele, Folha de S. Paulo, 16/7/69. 1858 RR 25/8/73.


559 dois religiosos eram cúmplices da rede terrorista montada por Marighela e serviram de isca para atraí-lo.

De norte a sul, os jornais, as rádios e as televisões se pronunciaram sobre o escândalo. Em todas as rodas foi este o tema obrigatório das conversas. O Brasil inteiro estava persuadido de que o grosso dos fatos narrados era verídico. E este grosso era tão grosso − tão grossíssimo, se assim se pudesse dizer − que horrorizou a opinião pública. * É claro que a Nação esperava encontrar na atitude das mais altas organizações e das mais categorizadas personalidades eclesiásticas um eco do que ela sentia diante das linhas gerais irrecusavelmente verídicas e protuberantemente terríveis do que fora apurado. Entretanto, o que a Nação viu nas mais altas esferas religiosas nacionais foi o contrário: fechamento, reserva, protelação, espera circunspecta de novas informações. Tudo na atitude dos ilustres prelados era como se eles não se tivessem refeito da surpresa enorme que presumivelmente os aturdiu. A surpreendente surpresa tinha sido tão grande, que parecia ter imobilizado a alta direção da CNBB. Algum tempo antes meu Arcebispo, o Emmo. Cardeal Rossi, havia declarado à imprensa que desconhecia a existência de sacerdotes comunistas no Brasil. Pouco depois, ao chegar de Roma, o Sr. Arcebispo do Rio, Cardeal Câmara, declarara haver informado ao Santo Padre Paulo VI que era inteiramente normal a situação do Clero brasileiro. Vinha agora o caso policial. Reação das mesmas esferas: surpresa*. * No dia 5 de novembro de 1969, deu-se o estouro do caso na imprensa. Logo no dia seguinte, Dr. Plinio fez publicar um comunicado da TFP sobre o assunto. Esse comunicado foi estampado na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo de 6 de novembro de 1969, e em mais outros 11 jornais brasileiros, sob o título A TFP e os terroristas dominicanos. Foram distribuídas 80 mil cópias dele nas ruas centrais da cidade. Nele Dr. Plinio manifestava “a consternação da entidade ante a notícia de que sacerdotes dominicanos participaram ativamente da conspiração terrorista”. Afirmava ser difícil imaginar “uma mais completa conspurcação da excelsa dignidade do Sacerdócio e da glória ilibada do hábito dominicano”. E lembrava a necessidade “imperiosa e inadiável de negociações oficiais do Itamarati com a Santa Sé para que, pelos meios adequados, as autoridades eclesiásticas, e na falta destas as autoridades civis, possam pôr cobro à fermentação comunista que lavra escandalosamente em meios católicos”.


560 A segurança interna da Igreja clamava por que a CNBB abrisse uma vasta investigação, de natureza inteiramente eclesiástica, para averiguar toda a extensão do tumor que explodira. Mas não vi que algo disso tivesse sido feito. E, contudo, isto era, para a CNBB, o único caminho que parecia coerente com a situação catastrófica a que se havia chegado. A Igreja, assim, estaria em condições ideais para — em colaboração com o Estado — acautelar-se a si própria e ao Brasil contra o perigo imenso. Mas, ao que parece, a surpresa, a surpresa surpreendente, criou tropeços para as providências mais necessárias... 1859

2. Chegou a hora de fazer “o jogo da verdade” Pouco antes, fora publicada no Diário de Justiça de Belo Horizonte larga documentação sobre a famigerada Ação Popular, que tanta agitação levantou em nosso País*. * A AP havia se embrenhado na via da tomada do poder pelo emprego da luta armada. E toda a geração de militantes havia se formado nas fileiras da Ação Católica.

Assim, vinha uma vez mais à tona a infiltração comunista nos meios católicos brasileiros. Já que "chegou a hora de fazermos o jogo da verdade", devíamos ser claros: dos vários setores da subversão, aquele no qual menos se interveio foi precisamente o da esquerda católica*. * Dr. Plinio havia escrito na época um artigo para a Folha de S. Paulo, aproveitando-se de um dito do Presidente Garrastazu Médici de que havia chegado a hora de fazer o “jogo da verdade”. O artigo foi publicado em 15 de outubro de 1969, e intitulava-se “O jogo da verdade” e a crise religiosa.

Esta rarefação da verdade se foi acentuando em nossa vida pública com a cooperação de quase todo o mundo. O desejo generalizado de contemporizar, de ladear questões, de evitar desentendimentos, levou a isto. Mas, enfim, há limite para tudo. Bastava ver o caso do Padre Comblin. Apesar de denunciado por uma petição com mais de 1.500.000 assinaturas, andava livre pelo Brasil o comunista belga. Os jovens que, persuadidos por ele, se punham a conspirar, poderiam ser punidos. Ele, o grande responsável, continuava incólume. O que tornava o Padre Comblin quase inatingível pela lei era um 1859 Surpresa surpreendente, Folha de S. Paulo, 16/11/69.


561 anteparo muito e muito difícil de remover. Era a batina que, aliás, ele já não usava... A complexidade do assunto estava no seguinte: pelas leis multisseculares da Igreja, o sacerdote − em princípio − só pela Igreja pode ser julgado. É este um privilégio deduzido do cunho sacral do sacerdócio. Não posso afirmar se este privilégio ainda existe na mais recente legislação canônica. Mas o certo é que, vigente durante séculos, ele modelou a fundo a sensibilidade religiosa do povo cristão. A esquerda católica, muito sabidamente, sempre que as autoridades civis tomavam ou ameaçavam tomar medidas contra eclesiásticos, começava a apontar o Poder civil como violador dos direitos da Igreja. Daí resultava, concretamente, a impunidade de Comblins de toda a casta*... * O recurso ao poder civil para processar eclesiásticos que afrontam a ordem pública já vai entrando nos costumes. Assim, a respeito de um sacerdote que teria desviado dinheiro de uma paróquia na cidade de Cascavel (PR), o Arcebispo local, Dom Mauro Aparecido dos Santos, declarou: “Se um membro que está ali [na paróquia] se sentir prejudicado e quiser ir na Justiça Civil é direito deles” (cfr. Rede SBC Brasil, 14 de outubro de 2014). Também a conhecida Agência de Notícias progressista ADITAL (Agência de Informação Frei Tito para a América Latina) informa, em despacho de 14 de outubro de 2014, que “Coletivos mexicanos, redes cristãs e entidades como o Observatório Eclesial estão divulgando uma carta aberta ao Papa Francisco”, na qual fazem “um apelo para que o Papa colabore para que a justiça civil seja aplicada aos padres que cometem crimes sexuais contra crianças e adolescentes”.

3. O remédio que o Poder Público não aplicou Dita assim, com coragem, qual era a situação, cumpria sugerir para ela um remédio. Ora, tal remédio só podia ser um. O Poder civil expusesse ao País, em toda a extensão, qual era a magnitude da infiltração comunista em meios católicos, de forma que mesmo nos últimos rincões não pairasse dúvida a este respeito. Pari passu, pedisse à Autoridade Eclesiástica que remediasse a situação. Pedisse-o à CNBB, sempre tão disposta a recomendar soluções para problemas da esfera temporal. Pedisse-o ao Santo Padre, a quem já haviam se dirigido neste sentido, por iniciativa da TFP, 1.600.368 brasileiros. Feitos estes pedidos com publicidade, com decisão, com respeito, motivos não haveria para que a Hierarquia deixasse de atender, com providências imediatas e inteiramente eficazes, os anseios do Brasil. Não havia outro caminho adequado. A contemporização de nada


562 adiantou. As tratativas de bastidor − era absurdo supor que não as tenha havido − deram no que se via. O bolsão esquerdista na Igreja continuava bojudo e pronto a derramar sua peçonha sobre o País na primeira ocasião. Na "hora da verdade", só atuações públicas e diretas eram oportunas 1860. E, como só se elimina um perigo quando se fazem cessar as suas causas, eu queria eliminar a influência da esquerda católica. A esquerda católica não exprimia o pensamento da Igreja. E como tal não merecia o apoio nem da Hierarquia, nem do povo católico. Notem que não falo em privar da liberdade os elementos que constituem essa esquerda. Nem em expulsar do País os seus componentes estrangeiros. Essas medidas poderiam ser ou não ser justas e úteis, conforme cada caso concreto. Elas poderiam atenuar o perigo. Não porém eliminá-lo. Acrescento que, em alguns casos, elas poderiam ser contraproducentes. A esquerda católica vive da influência que lhe vem do rótulo católico. Essa influência não se lhe tira só com medidas legais e judiciárias. Mais do que tudo, era preciso tirar-lhe o rótulo 1861. Nisto estava a solução. O que nos grandes centros de todo o Brasil se sabia, isto é, que havia um ativo bolsão comunista ou comunistizante em meios católicos brasileiros, era apenas vislumbrado em muitos centros médios e pequenos. Que se organizasse − com base nos documentos apreendidos pela polícia − um documentário farto que provasse esta triste realidade; e que providenciasse uma larga distribuição dele por todos os recantos do Brasil. O ministro do Exterior, apoiado pelo clamor da imensa maioria do País, pedisse à Santa Sé medidas aptas a desautorar, em nome da Igreja, os Comblins de toda a casta que da Igreja se serviam para demolir o Brasil 1862. Diria algum cético que as providências da Hierarquia não viriam... Este pessimismo sombrio não nos eximiria de recorrer a elas. Imaginemos que pouco ou nada se conseguisse. Creio que, então, o direito do Brasil à legítima defesa − direito inalienável e decorrente do mais fundo da ordem natural − inspiraria aos detentores do Poder Público outros meios de ação: prudentes e respeitosos sempre, mas também inteiramente decisivos. E então essas medidas não feririam mais a opinião católica. Pois a 1860 O jogo da verdade e a crise religiosa, Folha de S. Paulo, 15/10/69. 1861 — Grupos que promovem causas perniciosas e mesmo antinaturais sabem perfeitamente que, se usarem o rótulo de “católicos”, conseguirão maior penetração na opinião pública e se sentirão mais resguardados. Caso característico é a ONG pró-aborto que se autodenomina “Católicas pelo direito de decidir”. 1862 Carta a Ministros ignotos, Folha de S. Paulo, 26/10/69.


563 doutrina católica não justifica que, à míngua de medidas, se deixasse arder indefeso um país inteiro. O direito à legítima defesa — falo em tese — tem bastante amplitude para isto, segundo a moral cristã. É o que qualquer moralista sério sabe 1863.

1863 O jogo da verdade e a crise religiosa, cit.


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ADVERTÊNCIA Desta Parte X em diante, os fatos narrados são mais próximos a nossos dias. E de alguma forma se tornaram menos frequentes, nas palestras de Plinio Corrêa de Oliveira para os sócios, cooperadores e correspondentes da TFP, as narrações autobiográficas, pelo menos com a frequência com que ele as fazia nas décadas anteriores. Assim, o leitor notará que o tom autobiográfico muitas vezes dará lugar a simples narrativas de lances de atualidade, sempre feitas por ele.

Parte X Livros e Campanhas de grande repercussão na década de 1970 Capítulo I Ascensão de Allende: confirma-se o livro “profético” 1. Livro consagrado pelos acontecimentos Em 1970, deu-se a ascensão do marxista Allende no Chile. E vimos o grande triunfo do livro de Fábio Xavier da Silveira, Frei, o Kerensky chileno, que não se deu quando o livro foi publicado, mas quando Frei saiu do poder no Chile1864. A previsão, feita em 1967, se confirmou tragicamente aos olhos da América e do mundo1865. E viu-se então o que tinha sido profetizado 1866.

1864 RR 15/12/74. 1865 Carta aberta da TFP ao Cardeal Dom Eugênio Sales, Folha de S. Paulo, 9/10/70 e 10/10/70; e Catolicismo n° 239, novembro de 1970. 1866 RR 15/12/74.


565 Aí se começou a reconhecer que o livro era profético 1867 e todos disseram: “Este livro já o previra”*1868. * O jornalista Lenildo Tabosa Pessoa, em artigo no Jornal da Tarde de 8 de setembro de 1970, dizia que a justeza das previsões do livro era tamanha, que mais parecia escrito post factum. Igualmente o jornalista Mario Bush, colaborador de O Estado de S. Paulo, afirmou em artigo de 13 de setembro do mesmo ano, que a análise do livro, que a muitos parecia um exagero 'direitista' inspirado num macarthismo 'crioulo', fora plenamente comprovada pelos fatos (cfr. Catolicismo n° 238, outubro de 1970).

Não era, portanto, um livro para amanhã, mas um livro para depoisde-amanhã1869. Antes disso, na aparência, tinha sido um livro fracassado, porque não impediu que Frei fizesse o trabalho de Kerensky 1870. No término do mandato de Frei, as coisas já se apresentavam sensivelmente mudadas em favor do comunismo. Não porque o Partido Comunista tivesse aumentado seu contingente, mas porque o número de burgueses prontos a cooperar — por ingenuidade ou simpatia — com o comunismo, crescera singularmente no país, graças à atmosfera criada pela Democracia Cristã chilena.

2. Escandaloso apoio do Cardeal Silva Henriquez a Allende Essa erosão, em meios não-comunistas, ainda foi mais rápida e profunda nos ambientes especificamente católicos, sacudidos com suma violência pelo tufão progressista. Assim é que o Cardeal Silva Henríquez chegou ao extremo de afirmar, antes das eleições, que é moralmente lícito a um católico votar num marxista (cfr. jornais Última Hora e Clarín, Santiago do Chile, 24/12/69). Essa declaração rumorosa, difundida em toda a imprensa falada do Chile e em inúmeros órgãos de publicidade do Exterior, não foi desmentida pelo Purpurado. Uma carta enviada a este pela Sociedad Chilena de Defesa da Tradição, Familia e Propriedade, pedindo-lhe expressamente tal desmentido, ficou sem resposta. Assim, numerosos votos de católicos se encaminharam para o candidato marxista Salvador Allende (cfr. El Mercurio, 24/1/70 e El Diario Ilustrado, 25/1/70, ambos de Santiago). 1867 Reunião Normal 12/3/76. 1868 Relatos 19/12/70. 1869 RR 15/12/74. 1870 RR 21/2/76.


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3. No segundo turno, a DC vota no candidato marxista Apresentemos os fatos tais como se passaram. Pari passu, a DC se cindia, votando uma parte de seus membros em Allende. E também o velho Partido Radical, caracteristicamente burguês, votou por este1871. Na realidade, os seus líderes dentro e fora do Parlamento, postos na alternativa de optar entre o candidato marxista e o que não o era, declararam que em caso algum dariam preferência a este último: modo mal velado de afirmar que, seja como for, levariam à suprema magistratura o marxista. Eles se colocaram assim, de antemão, em uma posição entreguista ante o marxismo vitorioso 1872. A propaganda esquerdista pôde alardear no mundo inteiro que, pela primeira vez na História, um marxista havia ganho uma eleição1873. Certos jornalistas falavam em "triunfo" de Allende. "Triunfo" de 1% era triunfo?1874 Era bem verdade. Porém, os contingentes marxistas não haviam crescido. A causa da vitória estava na erosão dos meios não-comunistas, ou até anticomunistas 1875.

4. “Te Deum” no Chile e saudação de Paulo VI O Chile iniciou assim sua "via dolorosa" rumo ao comunismo. O Cardeal Silva Henriquez foi dos primeiros a visitar o futuro presidente, assegurando-lhe o apoio da Hierarquia, e lhe transmitindo, da parte do Papa Paulo VI, saudações especiais bem como votos de êxito. 1871 Introdução à segunda edição italiana do livro Revolução e Contra-Revolução, 1971 — A Unidade Popular, coligação comunista-marxista-democristã-radical que apoiou Allende, obteve 36,63% dos votos. O candidato preferido pelos anticomunistas, Alessandri, alcançou 35,29% dos votos. E o candidato pedecista Radomiro Tomic obteve 28,08% dos votos. Por causa dessa diferença muito pequena de votação entre um candidato e outro, havia um gargalo para garantir a vitória de Allende. A Constituição chilena dispunha de um modo sábio que, em casos de um resultado eleitoral muito apertado como este, em que nenhum candidato obtivesse a maioria de 50% dos votos mais um, cabia ao Congresso, em reunião bicameral, escolher o Presidente da República entre os dois candidatos mais votados. Ora, a Democracia Cristã chilena tinha nessa hora a decisão nas mãos, por ser majoritária no Congresso. E os votos dos deputados da DC decidiriam se o Presidente seria Allende ou Alessandri. A pergunta que cabia era se a DC levaria a triste coerência de sua posição de Terceira Força até o extremo de optar por entregar o Chile nas mãos do comunismo. E ficou criado um suspense não só no Chile e na América, mas no mundo. Todos se perguntaram até onde iria, neste episódio, a DC (cfr. Toda a verdade sobre as eleições no Chile, Folha de S. Paulo, 10/9/70). 1872 Carta aberta da TFP ao Cardeal Dom Eugênio Sales, cit. 1873 Introdução à segunda edição italiana do livro Revolução e Contra-Revolução, 1971. 1874 Os “sapos”, a epopeia e a opereta, Folha de S. Paulo, 20/9/70. 1875 Introdução à segunda edição italiana do livro Revolução e Contra-Revolução, 1971.


567 Paulo VI terá visto, desde o começo, sem apreensão nem repulsa, a vitória de Allende? Quanto se passou leva a responder que, efetivamente, ele a anteviu, sem contudo dar mostras de apreensão e repulsa. De sua parte, o purpurado chileno declarou à imprensa que o dever dos cristãos neste momento é fazer o que estiver ao seu alcance para que o novo governo tenha êxito 1876. No dia da posse de Allende, o Cardeal Silva Henriquez celebrou o Santo Sacrifício da Missa e cantou um Te Deum em ação de graças pela ascensão do novo governo. O presidente ateu e uma farta coleção de pastores protestantes assistiam à augusta cerimônia católica.

5. Direito de refletir e de discordar Se há um direito que tenho, como homem e como católico, tão essencial ou mais ainda do que o de viver, é o direito de refletir sobre esses fatos, e dizer de público o que sobre eles penso 1877. Católico apostólico romano, eu o fui durante toda a minha vida. Sou-o, hoje, com maior convicção, energia e entusiasmo do que nunca. E, espero, pela graça de Deus e pela intercessão de Nossa Senhora, que o serei mais e mais até o último alento. Por isto, tributo do fundo de minha alma, ao Sumo Pontífice e à Santa Sé, toda a veneração, todo o afeto e toda a obediência que lhes devo segundo a doutrina e as leis da Igreja. Mas sei que, posto diante de fatos claríssimos, não os posso negar, nem deixar de perceber suas consequências. E sei também que, ainda quando admitidos os fatos irrecusáveis que acabo de enumerar e analisar, tudo quanto a Igreja ensina sobre a infalibilidade e a suprema autoridade dos Sumos Pontífices continua inteiramente intato. Assim, estou com a consciência à vontade ao tratar, como católico, do triste e delicado assunto. Desejaria Paulo VI, para a América Latina, um “modus vivendi” com o comunismo? Ficava a pensar...1878 − O que pensava? Antes de tudo, que isto formava uma sequela de imensos escândalos. 1876 Entre lobos e ovelhas: novo estilo de relações, Folha de S. Paulo, 1/11/70. 1877 O Cardeal festivo, Folha de S. Paulo, 8/11/70. 1878 Entre lobos e ovelhas: novo estilo de relações, cit.


568 O que era feito de todas as condenações dos Papas, de Pio IX a Pio XII, contra o comunismo? Como, de um momento para outro, e sem mais explicações, foram postos de lado esses atos solenes, graves, repetidos? E como o Purpurado chileno podia oferecer o Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo para agradecer, como fato lícito e auspicioso, a vitória de uma corrente por tantos Papas qualificada de satânica, imoral e subversiva? Não era isto um sacrilégio? Não era também um sacrilégio cantar Te Deum para agradecer a Deus essa vitória do ateísmo? Se em nome de uma aliás mal entendida disciplina, eu devesse admitir que tais atos não eram sacrílegos, teria a sensação de que todas as leis da lógica nada mais valiam. E que o absurdo passou a ser a única realidade. Felizmente, a tal ato de disciplina não me obrigava nenhuma lei da Santa Igreja* 1879. * Somavam-se a essas atitudes de Paulo VI outras igualmente perplexitantes, cujo conjunto apontava para um verdadeiro sistema de governo: portas abertas para o comunismo e o progressismo, e portas fechadas para toda e qualquer pessoa ou movimento que se lhes opusessem. Em artigo da Folha de 12 de julho de 1970, Dr. Plinio pôs na boca de um objetante, Geroboão Cândido Guerreiro, um elenco exemplificativo de algumas dessas atitudes, que transcrevemos abaixo: “Mil e quinhentos católicos de vários países desfilam em Roma para exprimir a Paulo VI seu desagrado ante a reforma que ele está fazendo na Igreja. Entre outras coisas, querem eles que o Bispo de Roma em nossos dias tenha o mesmo poder absoluto dos seus antecessores. Chegados à Praça de São Pedro, eles ali permanecem em submissa vigília de orações, a pedir que Deus ilumine o Papa Montini. Este, de seu lado, se mantém desdenhosamente de portas e janelas fechadas, durante todo o tempo em que ali permanecem essas ovelhas. [...] A pobre grei da superfidelidade supercatólica [...] se dispersa melancolicamente, sem ter ouvido do Pastor supremo, ao qual teimam em estar unidos, uma só palavra de afeto paterno. Mais. Pouco depois, Paulo VI, em uma alocução, os arrasou. [...] “Já dias antes, um ‘herege’ (adoto aqui a terminologia dos teólogos católicos), como o Patriarca armênio Vasken, fora recebido com pompas como se fosse um papa, por Paulo VI, na Capela Sixtina. Agora, Paulo VI vai receber [...] certamente para algum ‘diálogo’ seguido de concessões, o líder contestatário [...] que é o Cardeal Alfrink, de Utrecht. “Também poucos dias depois de dar com a porta na cara de seus infelizes superfiéis, Paulo VI recebeu, com distinção especial, três guerrilheiros afrolusos. Para agosto, está programada a visita de Tito ao Vaticano, onde será recebido com honras de Chefe de Estado. “O Sr., Dr. Plinio, não percebe que as portas do Vaticano e o coração do Papa estão abertos para todos os ventos e todas as vozes, exceto para os ventos ideológicos que sopram do quadrante onde o Sr. se situa, e para as vozes que dizem coisas semelhantes às que o Sr. diz? Não há no mundo quem seja mais rejeitado pelo Papado modernizado e pela Nova Igreja, do que o Sr. e seus congêneres. 1879 O Cardeal festivo, cit.


569 “Meça bem o contraste. Durante o último Sínodo de Bispos, reuniram-se em uma igreja protestante de Roma alguns padres católicos supercontestatários, que levaram a Paulo VI uma mensagem sulfúrica. As portas do Vaticano se abriram para eles. Chegaram até a antecâmara papal. Entregaram sua mensagem. Paulo VI não os recebeu em audiência. Mas prometeu muito afavelmente que iria estudar os pedidos dos contestatários. E para a mensagem da TFP, implorando providências de Paulo VI contra o que o Sr. chama ‘a infiltração comunista na Igreja’, assinada entretanto por 1.600.368 católicos? Nem uma resposta sequer teve Paulo VI! Pergunto: pode haver mais clara prova de rejeição?”.

6. O caos que veio depois Com o supremo poder em mãos, o governo Allende resolveu aplicar ao Chile — custasse o que custasse — uma série de leis socialistas e confiscatórias, sem atender ao descontentamento que isso ia gerando na maioria da opinião pública. A pobreza foi se estendendo por toda a nação como uma gangrena. As crises política e econômica somaram seus efeitos e produziram um caos 1880.

Capítulo II Atuação das TFPs durante o governo Allende — Atitudes inesperadas de dois Prelados 1. TFP chilena no exílio. Outras TFPs promovem campanhas A TFP chilena percebeu muito bem que, se ela ficasse em território chileno, cairia nas mãos de Allende e entraria debaixo das perseguições policialescas*. * Essa perspectiva era tanto mais verossímil quanto corria na Justiça um processo aberto pela Fiscalia (Promotoria) do Estado contra os dirigentes da TFP chilena por supostas injúrias ao ex-Presidente Eduardo Frei, no fim do seu mandato.

Então, a maior parte dos seus membros passou para o exterior e começou a promover, a partir do exílio, uma campanha sistemática de esclarecimento sobre o que estava sendo o governo Allende 1881. *

1880 Magnificat pelo Chile, Folha de S. Paulo, 16/9/73. 1881 Entrevista para a Associated Press (gravação), 15/3/82.


570 Nós também organizamos no Brasil, e as outras TFPs em toda a América do Sul, manifestações de rua vigorosas denunciando Allende, denunciando o papel de Kerensky de Eduardo Frei. Em nossos desfiles de ruas eram distribuídos folhetos, e bradávamos o slogan: Pelo Chile país irmão: luto, luta e oração 1882. Do livro de Fábio Xavier da Silveira, reeditado, foram vendidos em 8 dias, 4.319 exemplares. Do artigo que publiquei na Folha de S. Paulo, intitulado Toda a verdade sobre as eleições no Chile, em igual período foram distribuídos, em avulso, cerca de 325 mil exemplares. A oposição esteve ativa nas ruas: comunistoides e jovens fanatizados pelo Clero progressista, com mil perguntinhas, objeçõezinhas e debiques, tentavam interromper nosso trabalho. Um ou outro, agrediu até com violência. Assim, um tipo, em Porto Alegre − eu melhor diria, um assassino em germe − atirou contra os nossos um paralelepípedo de rua. Naturalmente, esse "valente" ficou covardemente anônimo 1883.

2. Surpreendente ataque de Dom Eugenio Sales Quando estávamos em plena luta por demolir os maus efeitos da vitória de Allende, desencadeou-se contra nossa entidade um verdadeiro tufão. Esquerdistas, "sapos", jornalismo sensacionalista, tudo − numa orquestração perfeita − se moveu contra nós. De repente, novo tiro. Era S. Emcia. o Cardeal Eugênio Sales que fazia contra a TFP um pronunciamento visando demoli-la no conceito dos brasileiros. Os historiadores que de futuro tratarem do episódio se perguntarão por que S. Emcia. escolheu precisamente aquele momento, não só para atacar rudemente a TFP, como para disparar numa fogosa apologia de Dom Helder. Em seu documento, o Sr. Cardeal Sales, depois de rasgados elogios ao Arcebispo Vermelho, chegava a dizer que a onda de desconfiança do País a respeito de Dom Helder importava em um movimento de ataque à própria Igreja. O que constituía da parte do Purpurado uma clara tentativa de deter toda a reação do País contra os desmandos de pensamento e de

1882 RR 2/10/93. 1883 Os “sapos”, a epopeia e a opereta, cit.


571 linguagem do Arcebispo de Olinda e Recife 1884. Na parte que continha um formal ataque à TFP, declarava Sua Eminência que os católicos deviam estar "alertas [...] com o movimento denominado Tradição, Família e Propriedade". A razão alegada explicitamente era só esta: porque tal movimento "não conta com a aprovação e qualquer apoio desta Arquidiocese". A explicação não poderia ser mais sibilina. Pois de um lado ela fazia entender que a Sociedade não pediu licença a Sua Eminência para se instalar na Bahia. Mas omitia dizer que, entidade cívica que era, falando sempre em nome próprio e jamais no da Hierarquia, a TFP — segundo a lei canônica — não precisava de tal licença. E que, assim, o simples fato de não termos a licença de Sua Eminência, não era razão para que alguém se alertasse contra nós. Sua Eminência alegava que não tínhamos sua licença. E sabia entretanto que as leis da Igreja nos davam o direito de existir sem ela1885. Daí nossa respeitosa mas firme mensagem ao Cardeal Sales*. * Nesta mensagem, Dr. Plinio entre outras coisas dizia que era fácil perceber tudo quanto unia o Cardeal-Primaz ao pensamento e à obra de Dom Helder, e impossível discernir o que realmente o separava dele. Não obteve resposta. O documento, datado de 5 de outubro de 1970, tomou o título: Carta aberta da TFP ao Cardeal Dom Eugênio Sales - Análise, defesa e pedido de diálogo. Foi publicado em primeira mão na Folha de S. Paulo de 9 de outubro de 1970, e depois reproduzido em diversos órgãos de imprensa do País, inclusive em A Tarde, de Salvador-BA, em 22 de outubro de 1970 e Catolicismo n° 239, de novembro de 1970.

3. Declarações de Dom Sigaud, surpresa maior Maior ainda será o embaraço dos historiadores quando tiverem de explicar por que o Sr. Dom Geraldo Sigaud, Arcebispo de Diamantina − a quem o Brasil devia inegáveis serviços na luta contra o comunismo − escolheu o mesmíssimo momento para, por sua vez, atacar a TFP. Não poderia S. Excia. ter pelo menos esperado alguns dias, até que a campanha chegasse a seu final? E, se tivesse tanta urgência em nos atacar, por que pelo menos não disse palavra que significasse compreensão, apoio, aplauso à campanha que vínhamos desenvolvendo?* 1886

1884 Dentro e fora do Brasil, Folha de S. Paulo, 11/10/70 — Essas declarações foram feitas pelo Purpurado numa mensagem radiofônica da Rádio Cultura de Salvador, no dia 19 de setembro de 1970. 1885 Carta aberta da TFP ao Cardeal Dom Eugênio Sales, cit. 1886 Dentro e fora do Brasil, Folha de S. Paulo, 11/10/70.


572 * As notícias diziam que, após ser recebido em audiência pelo Presidente Médici, Dom Sigaud declarara que a TFP havia se afastado dele há mais de dois anos. A cisão, dizia, fora consequência de seu apoio à Reforma Agrária do governo, a qual ele considerava justa e cristã, e à reforma litúrgica determinada pela Santa Sé. A notícia concluía dizendo que, “embora lamentando a dissensão, asseverou que, por um problema de consciência, não podia deixar de ajudar o governo ou ser contra o Papa”. O distanciamento de um Prelado que, em épocas passadas, havia participado na luta cuja amplitude e mérito este relato deixa claro, foi um episódio doloroso na vida da TFP. O fato é que, a partir de certo momento, começou a se processar um distanciamento entre Dom Sigaud de um lado, e de outro lado Dom Antonio de Castro Mayer, Dr. Plinio e diretores e sócios da TFP. Esse distanciamento dizia respeito a questões doutrinárias referentes ao direito de propriedade e a matérias concernentes à disciplina da Igreja. No jornal Estado de Minas, de Belo Horizonte, de 27 de abril de 1969, foi publicada uma declaração de Dom Sigaud afirmando que “os métodos de desapropriação instituídos através do Ato Institucional número 9” criavam um “clima favorável à execução da reforma agrária”. Esta afirmação contrastava abertamente com toda a linha de pensamento em que, ao lado de Dom Mayer e dele, Dr. Plinio e a TFP se assinalaram, lutando contra a Reforma Agrária. Tal afirmação de Dom Sigaud causou estranheza na TFP, a qual entretanto preferiu atribuí-la a algum lapso de imprensa. Dois dias depois, outra declaração no mesmo sentido, publicada no Jornal do Brasil, tornou necessário um contato da TFP com o Prelado. Dessa missão foi encarregado um membro destacado da seção mineira da TFP. Portador de uma missiva respeitosa mas franca de Dr. Plinio sobre o assunto, foi ele a Diamantina, onde manteve largo colóquio com o Prelado. Desse colóquio resultou que Dom Geraldo Sigaud confirmou suas recentes declarações em favor da Reforma Agrária. E assim se configurou o desfazimento de tão antiga cooperação. Dada a longa e íntima colaboração com o Arcebispo de Diamantina, e a amizade e consideração que este lhes merecera, Dr. Plinio e a TFP evitaram, tanto quanto esteve em seus meios, dar a público esses fatos. Foi Dom Sigaud quem tomou a iniciativa de o fazer, e em termos contundentes, afirmando que os membros da TFP “já fizeram muito pelo Brasil, mas agora estão se tornando prejudiciais” (cfr. Jornal do Brasil, 3/10/70). O fato é que a notícia desses ataques foi publicada com alarido nos jornais diários de todo o País. Em resposta, Dr. Plinio redigiu o comunicado Dom Geraldo Sigaud e a TFP, que foi largamente distribuído no dia 7/10/70 à imprensa (cfr. Catolicismo n° 239, novembro de 1970). Nesse comunicado, a TFP frisava que nossa posição face ao problema da Reforma Agrária estava consubstanciada no livro Reforma Agrária—Questão de Consciência e Declaração do Morro Alto, dos quais Dom Sigaud era signatário. E deplorava que o ilustre Prelado tivesse mudado de opinião. Quanto à TFP, ela se conservava inabalavelmente fiel à posição assumida, o que não tinha qualquer sentido de oposição ao governo, mas vinha de um imperativo de consciência.


573 No que concerne às reformas litúrgicas, o comunicado dizia ser bem certo que algumas delas causaram perplexidade aos membros da TFP. E não só a eles, como a Bispos e teólogos de valor, que as estavam estudando, e sobre elas desejavam um diálogo esclarecedor. Entretanto, a TFP timbrava em afirmar que tal atitude não importa em qualquer transgressão das leis da Igreja no tocante à submissão devida pelos fiéis ao Sumo Pontífice. (Diga-se de passagem, aliás, que essa perplexidade era compartilhada por ponderáveis correntes de opinião católica com a reforma litúrgica, e foi em grande parte favoravelmente considerada e acolhida pelo Papa Bento XVI no Motu Próprio Summorum Pontificum, de 7 de julho de 2007). Quanto às causas desse distanciamento, ficava dito que Dom Geraldo Sigaud tinha razão ao afirmar que a Reforma Agrária e as reformas litúrgicas foram causas de distanciamento entre ele e a TFP. O Sr. Arcebispo de Diamantina poderia ter acrescentado a estas uma terceira causa. É que, a partir de 1969, S. Excia. começou a se manifestar favorável à abolição do celibato eclesiástico, pelo menos em certos casos. Essa mudança de opinião lhe valeu, segundo consta, um abraço de felicitação de Dom Helder. Pelo contrário, os membros da TFP se mantinham firmemente ao lado da legislação canônica atual, que estabelece a necessidade do celibato na Igreja latina para todos os clérigos. Dada a consideração que Dr. Plinio tinha em relação a Dom Geraldo de Proença Sigaud, bem como à longa e íntima cooperação que com ele manteve, a TFP evitou quanto esteve em seus meios dar a conhecimento público esses fatos. E fez isto pesarosa, obrigada pela necessidade de impedir que pairasse qualquer sombra de dúvida sobre a inteira correção de suas atitudes face às leis civis e eclesiásticas.

Capítulo III TFP andina ante o apoio de Paulo VI e do Episcopado a Allende (1973) 1. A miséria e o caos sobem ao poder junto com Allende, sob as bênçãos do Episcopado Enquanto isso, os acontecimentos no Chile iam alcançando uma dramaticidade inigualada, a par da infiltração comunista nos meios católicos. Para se compreender a atitude tomada pela TFP andina de que vamos falar, sou obrigado a descrever um pouco como estava a situação naquela nação amiga. Primeiramente, uma crise econômico-social expressa por grandes


574 greves. O Chile fica nos pródromos de uma guerra civil 1887. O justo descontentamento da população ameaçada de miséria e caos se avolumou ao longo do governo de Allende, sob as vistas glacialmente indiferentes e não raras vezes hostis dos Prelados que, em impressionante número, apoiavam o presidente marxista* 1888. * Aconteceu no Chile o que acontece em todos os países que caem sob o jugo comunista: as medidas persecutórias tomadas pelo governo Allende contra a propriedade privada e a livre iniciativa foram cobrindo com o manto da miséria toda a nação. E a esquerda católica, em vez de se dobrar ante a evidência do fracasso socialista, procurou sustentar o governo comunista custasse o que custasse. Um exemplo disso foi a proposta do secretário geral da agremiação Esquerda Cristã, Bosco Parra, que para resolver o problema da fome que batia à porta de todos os chilenos, propôs ao ministro da Agricultura de Allende, Jacques Chonchol, um “consumo igualitário básico para toda a população” (El Mercurio, 21/8/72). Os Cristãos para o Socialismo da cidade de Antofagasta fizeram, por seu turno, a apologia do jejum, afirmando: “O cristão não teme o jejum, está familiarizado com ele” (Folha de S. Paulo, 10/9/72). E a Federação Feminina do Partido Socialista chegou a recomendar que as mulheres socialistas se abstivessem de comer carne bovina durante um ano (cfr. O Jornal, RJ, 30/9/72, apud artigo A “canonização” cívica de Allende, Folha de S. Paulo, 21 de setembro de 1989).

* A perseguição aos proprietários se fez declarada. Assim, o sucessor de Chonchol no Ministério da Agricultura, Ronaldo Calderón, declarava: "Temos ódio de classe e essa classe (dos proprietários rurais) desaparecerá"1889.

2. Perseguição aos setores privados e amordaçamento da imprensa Patenteava-se, assim, com nitidez, a linha geral dos acontecimentos. O Governo de uma grande nação sul-americana caíra nas mãos de uma seita de fanáticos, isto é, do partido socialista-marxista. Essa seita resolvera aplicar ao Chile — custasse o que custasse — sua doutrina materialista, igualitária, dirigista e anticristã. A partir deste fato ideológico, desdobraram-se múltiplas consequências políticas e econômicas. Uma série de leis socialistas e confiscatórias se foram aplicando sucessivamente ao país, sem atender ao descontentamento da maioria da opinião pública. 1887 RR 25/8/73. 1888 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit. 1889 El Mercurio, 9/2/73 (apud A "canonização" cívica de Allende, Folha de S. Paulo, 21/9/89).


575 Em consequência, uma crise política começou a abalar os próprios fundamentos do Estado. Também a partir do fato ideológico se desenrolou, paralelamente à crise política, uma crise econômica1890. A lei de imprensa foi abusivamente utilisada por Allende contra seus adversários, movendo contínuas ações judiciais, prendendo jornalistas anticomunistas, suspendendo temporariamente órgãos de difusão. O abastecimento das companhias pesqueiras estatizadas foi entregue a grandes barcos russos. Em consequência, os russos começaram a construir um porto na baía de Colcura, ao sul de Valparaíso, que na realidade era uma base para abrigar navios de guerra. Cerca de 40% das empresas industriais e 80% do sistema bancário passaram para as mãos do Estado1891. O pior dos patrões é o Poder Público. Sentiram-no bem os operários das cidades e dos campos, que pouco depois de "beneficiados" pela socialização, começaram a revoltar-se contra a miséria que sobre eles ia baixando. As crises política e econômica somaram seus efeitos e produziram um caos. Greves imensas paralisaram o país. Ele estava à beira de uma aniquilação total 1892.

3. Anistia a bandidos e terroristas Os terroristas do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) foram libertados. Também o foram os presos por delitos comuns de assalto e assassinato, e foi dada ampla anistia para os detentos em geral. Exdetentos foram admitidos na Polícia Civil, enquanto a unidade móvel de Carabineiros, especializada na manutenção da ordem, foi desativada*. * É uma constante de todas as revoluções de esquerda proteger e utilizar bandidos da pior espécie como sua linha auxiliar. Foi assim na Revolução Francesa, foi assim na Revolução Comunista de 1917 e é assim que se promovem campanhas sistemáticas contra a Polícia em vários países da América Latina, muitas vezes sob pretexto de “direitos humanos”. Atribuindo única e exclusivamente a criminalidade a problemas sociais, esses revolucionários se sentem irmanados com os criminosos (cfr. Quatro Dedos Sujos e Feios, Folha de S. Paulo, 16/11/83).

O governo Allende foi cometendo cada vez mais ilegalidades ao

1890 Magnificat pelo Chile, cit. 1891 A “canonização” cívica de Allende, cit. 1892 Magnificat pelo Chile, cit.


576 impor suas medidas socialistas 1893.

4. “A autodemolição da Igreja, fator de demolição do Chile” Ante esse quadro, em 1973, acompanhei com muito interesse a publicação pela TFP do Chile de um manifesto em que esta dava a público 1894 o seu desacordo com a conduta da Hierarquia chilena e de Paulo VI face ao processo de comunistização do Chile*1895. * Aquela TFP dizia, com muita elevação e coragem, que o avanço do progressismo na Hierarquia, Clero e laicato daquele país tinha favorecido a implantação e consolidação do regime marxista. E que cabia a Paulo VI uma parte da responsabilidade por esse trabalho de demolição feito pelo Clero e pela Hierarquia. Como amostragem, eis um trecho especialmente pungente desse manifesto: "Filhos devotos da Santa Igreja, é com profunda dor que presenciamos o desenrolar deste processo, ao longo do qual os princípios doutrinários inspiradores da autodemolição da Igreja vão transbordando do âmbito propriamente religioso e penetrando sempre mais na vida pública do País, produzindo assim nela efeitos analogamente deletérios. [...] “Renovamos aqui a expressão de todo o nosso amor reverencial, de nossa adesão ao Sumo Pontífice e à Santa Sé, no momento em que, com dor entranhada, somos obrigados, pelo próprio curso de nosso pensamento, a abordar outra questão: “— Compreender-se-ia que as estruturas hierárquicas da Igreja no Chile agissem como estão agindo, caso não tivessem recebido uma aprovação inteira e direta de Paulo VI para fazê-lo? “Esta pergunta torna-se ainda mais inevitável quando se considera que Monsenhor Silva Henríquez, como Cardeal, mantém contato permanente com o Vaticano. E, por outro lado, está continuamente no Chile um Núncio Apostólico incumbido não só de representar o Vaticano junto ao Governo chileno, como também junto ao Episcopado. Núncio que dispõe de todas as facilidades possíveis para transmitir a Monsenhor Silva Henríquez, ao Episcopado e ao Clero em geral, as intenções de Paulo VI. “É inadmissível que essa aprovação não exista, seja pelos vínculos cardinalícios, seja pela estrutura hierárquica da Igreja em geral, ou ainda pela constância e amplitude dessa inusitada política do clero no Chile. “Por outro lado, durante esse período não transpareceu manifestação alguma — ainda que velada — de frieza ou mal-estar do Vaticano em relação às atitudes do Cardeal, do Episcopado e do Clero em benefício do regime marxista do Sr. Allende”.

1893 A “canonização” cívica de Allende, cit. 1894 Despacho 27/3/73. 1895 Resisti-lhe em face, Folha de S. Paulo, 11/3/73 — O manifesto intitulava-se A autodemolição da Igreja, fator de demolição do Chile e foi estampado nos seguintes órgãos de imprensa: La Nación, Buenos Aires, 2/3/73; Folha de S. Paulo, 2/3/73; El Pais, Montevidéu, 3/3/73; Fuerza Nueva, Espanha, n° 325, de março de 1973; Diario Las Americas, Miami, 29 e 30/3/73; Diario de Notícias, Rio de Janeiro, 15/4/73 (cfr. Onze padres valentes, Folha de S. Paulo, 15/4/73).


577 No seu manifesto, a TFP chilena chamava a si a exclusiva responsabilidade pelo que publicou. Assim, a TFP brasileira não estava comprometida com a atitude de seus valorosos irmãos andinos. Ela ficou aguardando o pronunciamento da Cúria de Santiago, bem como dos chilenos e brasileiros a quem o tema interessasse. Era possível que, em seguida, viesse a se pronunciar. O que faria com a prudência e a circunspeção que o delicado tema exigia.

5. O direito de resistir aos maus Pastores Houve quem ficasse indignado com aquele manifesto: “Mas então Paulo VI é um mau Papa, um Papa que está demolindo a Igreja”? 1896 Se as circunstâncias não me tivessem levado a debruçar-me especialmente sobre o assunto, confesso que também eu teria uma categórica prevenção contra a tese de que assiste ao católico o direito de fazer críticas públicas — se bem que respeitosamente expressas — a determinados atos da Sagrada Hierarquia. Adepto ardoroso do princípio de autoridade em todos os campos, sou especialmente cioso da integral aplicação dele no que diz respeito à Igreja e à Hierarquia. E muito particularmente no que toca ao Romano Pontífice. Assim fui sempre. Assim sou. Assim espero morrer 1897. Não se podia alegar que a TFP chilena havia negado implicitamente a infalibilidade papal, ou o acatamento devido ao Romano Pontífice, quando atribuiu a Paulo VI uma parcela de responsabilidade pelo que ocorria no Chile. Quem dissesse isto se exporia a ser demolido com um piparote. Com efeito, quem quer que conheça um pouco de Teologia ou de Direito Canônico sabe que o carisma da infalibilidade só ampara o Sumo Pontífice em certos atos do Magistério, praticados em condições muito definidas. E que a adesão devida aos seus ensinamentos doutrinários não infalíveis não importa em proibir os fiéis de discordar — com fundadas razões — de atos concretos praticados por um Papa*. * Esta doutrina foi sustentada em data relativamente recente por um abalizado teólogo que depois se tornou Papa: Joseph Aloisius Ratzinger, ou seja, Papa Bento XVI. Disse ele: “É possível e até necessário criticar os pronunciamentos do papa, se não estiverem suficientemente baseados na Escritura e no Credo, ou seja, na fé da Igreja universal. Onde não houver, nem a unanimidade da Igreja universal, nem o claro testemunho das fontes, não pode também haver uma definição que obrigue a crer. Faltando as condições, poder-se-á também suspeitar da legitimidade de um

1896 A um jovem enfurecido com a TFP chilena, Folha de S. Paulo, 4/3/73. 1897 Resisti-lhe em face, Folha de S. Paulo, 11/3/73.


578 pronunciamento papal” (Joseph Ratzinger, Das Neue Volk Gottes — Enwürfe zur Ekkleseologie, Düsseldorf: Patmos-Verlag, 1969, trad. br. por Clemente Raphael Mahl: O Novo Povo de Deus, Paulinas, São Paulo, 1974, p. 140). Quanto às condições para que um pronunciamento papal seja infalível, foram elas definidas pelo Primeiro Concílio do Vaticano, em 1870, na Constituição Dogmática Pastor Aeternus.

Bastaria ouvir o célebre Cardeal Cayetano, admitido como autoridade entre todos os teólogos sérios: “Deve-se resistir em face ao Papa que publicamente destrói a Igreja” (in “Obras de Francisco de Vitória”, BAC, Madri, p. 486). E o mesmo Francisco de Vitória, grande teólogo do séc. XVI, por sua vez ensinava: “Se [um Papa] desejasse entregar todo o tesouro da Igreja [...] a seus parentes, se desejasse destruir a Igreja, ou outras coisas semelhantes, não se lhe deveria permitir que agisse de tal forma, mas ter-se-ia a obrigação de opor-lhe resistência. A razão disso está em que ele não tem poder para destruir; logo, constando que o faz, é lícito resistir-lhe” (ibidem, p. 487). E mais adiante o mesmo Francisco de Vitória insistia com estas palavras claríssimas: “De tudo isto resulta que, se o Papa, com suas ordens e seus atos, destrói a Igreja, podese resistir-lhe e impedir a execução de seus mandados” (ibidem, p. 487). Se estes autores não bastassem, que se consultasse, entre os antigos, S. Tomás, S. Roberto Bellarmino, Suarez, Cornelio a Lápide, ou então os Padres orientais como S. João Crisóstomo, S. João Damasceno e Teodureto 1898. Wernz e Vidal, que são de nossos dias, em seu conhecido e abalizado Jus Canonicum (vol. II, p. 520) sustentam a mesma doutrina. A esse respeito pode-se ler também o abalizado Antonio Peinador Navarro (Curs. Brev. Theol. Mor. II. I. p. 277). Mais marcante ainda é a opinião de um conhecidíssimo teólogo suíço, que Paulo VI elevou às honras do cardinalato. Trata-se de Monsenhor Charles Journet, o qual, no seu tratado L’Eglise du Verbe Incarné, Essai de théologie spéculative (vol I, pp. 839 e ss.), chega a dar direito de cidadania à doutrina admitida por vários outros teólogos, de que um Papa pode até tornar-se cismático. Do que decorre, naturalmente, para os fiéis, o direito e até o dever de resistir-lhe.

6. Clamoroso silêncio da Cúria e recriminação a portas fechadas O manifesto chileno foi largamente divulgado por vários diários do Chile, por emissoras de rádio e televisão etc. 1898 A um jovem enfurecido com a TFP chilena, cit.


579 Pelo menos por deferência para com o imenso público que dele tomou conhecimento, o manifesto mereceria uma refutação 1899. Da parte da Hierarquia, o que se passou foi lamentável. Logo depois de publicado o manifesto, os seus signatários receberam dois telegramas, enviados com pequeno intervalo um do outro, convocando-os a comparecer na Cúria. Ali apresentou-se um deles. Recebeu-o o Bispo Monsenhor Carlos Oviedo Cavada, Secretário da Conferencia Episcopal do Chile. A discussão entre ambos se entabulou desde logo ácida da parte do Prelado, e respeitosa mas firme da parte do representante da TFP. Ela se encerrou com a declaração de Monsenhor Oviedo de que com a TFP era impossível dialogar, porque era muito intransigente. Como se não fossem intransigentes os líderes comunistas com os quais os Monsenhores Oviedos, que há por toda a face da terra, mantinham animado e ameno diálogo... E ficou apenas nesse encontro a portas fechadas a reação da Conferência Episcopal chilena (a CNBB de lá) diante de um manifesto de tão alto quilate e vasta repercussão! 1900 “Quem cala consente”, diz o velho adágio... Quem se cala diante de uma acusação revestida de todos os títulos para ser levada em conta, deixa-se ficar numa postura lamentável. Diria alguém: "Todo filho que aponta os erros de sua mãe falta-lhe com o respeito. E o zelo pela sua própria autoridade impede que ela, a Hierarquia, responda ao filho". Não creio que qualquer moralista consinta em fazer sua uma concepção de tal maneira despótica da autoridade materna. Está na natureza das coisas que a mãe que perde o afeto de seu filho, porque este lhe increpa uma atitude, deite o maior empenho em defender-se, para conservar a estima dele. Isto quando ela tem boas razões a alegar. Quando não as tem, é de seu dever reconhecer diante do filho que andou mal, e pedir-lhe perdão pela desedificação que deu. Da parte da mãe acusada, só o que não se compreende é o silêncio! Assim, uma autoridade eclesiástica que se julgasse injustamente acusada deveria considerar grave dever pastoral defender-se. E se reconhecesse justa a acusação, teria o dever quiçá ainda mais grave de

1899 São Pio X agradeceu a críticas, Folha de S. Paulo, 18/3/73. 1900 Onze padres valentes, Folha de S. Paulo, 15/4/73.


580 desculpar-se1901. E isto não houve da parte da Hierarquia chilena. Calou-se. Nada portanto havia a modificar na atitude da TFP brasileira: continuamos a afirmar que, a terem sido narrados os fatos com desapaixonada objetividade por nossa valorosa coirmã, tocava-lhe, segundo a doutrina e as leis da Igreja, o direito e até o dever de fazer as críticas que fez. Não formaríamos um juízo sobre os fatos alegados por aquela TFP, sem antes conhecermos o pronunciamento da outra parte, isto é, da Cúria de Santiago ou da Nunciatura no Chile 1902.

7. Sacerdotes chilenos apoiam de público a TFP Para honra do clero chileno e alegria de nossos corações de católicos, vários sacerdotes de valor e coragem manifestaram seu apoio à TFP chilena* 1903. * Por constituírem testemunhos veementes da insatisfação em relação às atitudes escandalosas de apoio ao governo comunista da parte de seus Hierarcas, transcrevemos aqui excertos dessas cartas, extraídos do artigo de Dr. Plinio para a Folha de S. Paulo de 15 de abril de 1973, “Onze padres valentes”: Padre Guilhermo Varas A., de Santiago (diários Tribuna e La Tercera de la Hora de 7/4/73): “É tristíssimo constatar e os Srs. o fazem com abundância de documentação, como da atitude tantas vezes débil, vacilante ou errada de certos sacerdotes, o marxismo soube tirar abundante proveito para consolidar sua dominação sobre nossa Pátria. O que os Srs. exprimiram (em seu manifesto) [...] apresenta uma luz de certeza para incontáveis chilenos que se debatem em meio ao erro e à confusão. Creio que muitos setores interessados em semear esta confusão preferirão guardar um prudente silêncio. Que outra atitude poderiam adotar, quando os fatos apresentados e as apreciações feitas, não apenas são de notoriedade pública, mas fiel expressão do que ensina nossa Santa Madre Igreja?” Padre Raymundo Arancibia S., de Santiago (Diário La Tercera de la Hora de 11/4/73): “Os cristãos, e em especial os sacerdotes, sofremos muito profundamente quando se tornam necessárias estas publicações, pela razão muito simples de que nelas sai mal colocada a Hierarquia, mãe comum de todos os fiéis. [...] Não sou, entretanto, daqueles que a priori rejeitam toda crítica, por considerá-las sempre uma irreverência ou um pecado. Existem sem dúvida, diversos tipos de críticas: a que se faz por ódio ou pelo simples afã de achar tudo errado; e a que analisa serenamente os fatos, tira conclusões adequadas, discerne responsabilidades, e procura remédios para curar o mal. A que os Srs. fazem pertence ao segundo tipo, uma vez que não criticam movidos pelo ódio, mas pelo amor que têm à Igreja. Com uma linguagem respeitosa, apontam os fatos ocorridos e, indicando as causas 1901 São Pio X agradeceu a críticas, cit. 1902 Resisti-lhe em face, cit. 1903 Onze padres valentes, cit.


581 que lhes deram origem, deduzem conclusões lógicas e propõem soluções construtivas. [...] é espantoso verificar que muitos sacerdotes interessados na sorte dos que trabalham tenham ido buscar precisamente numa doutrina condenada pela Igreja como intrinsecamente perversa a solução desses problemas (a questão social) como se nas Encíclicas não estivesse a melhor e mais cristã das soluções. Essa atitude débil e indecisa ante o avanço dos erros marxistas; a doutrina sustentada de forma descarada por muitos ministros de Deus, de que se pode ser bom cristão e marxista, ao mesmo tempo; a política de mão estendida que advoga uma franca colaboração com o comunismo o que, tudo, aconteceu sem que ninguém atalhasse tais transbordamentos — deram como fruto essa debilidade e indiferença dos católicos diante deste açoite, e criaram o “clima” propício para que se entronize no Chile o marxismo, que o está levando ao caos. Com toda a razão, os Srs. protestam por causa desses acontecimentos, e com perfeita lógica tiram a consequência que serviu ao seu folheto. [...] Deus continue ajudando-os nesta obra que empreendem com tanto zelo e sacrifício.” Padres Francisco Ramirez, pároco de Santo Agostinho, José Garcia, vigário cooperador, Benedito Guines e Luis Toledo Sch pároco do subúrbio Carlos Mahn da cidade de Tomé, todos da Arquidiocese de Concepción (diário El Sur de Concepción, de 10/4/73): “Sentimos o dever de fazer-lhes chegar nosso público apoio e nosso mais sincero aplauso à posição assumida por essa entidade no manifesto intitulado A autodemolição da Igreja, fator da demolição do Chile. Em face da atitude que adotou grande parte dos membros do Clero em relação ao processo de comunistização que se abate como uma ‘procella tenebrarum’ sobre nossa Pátria, somente nos cabe manifestar nosso repúdio ao silêncio e cumplicidade em que os mesmos incorreram. Pensamos como os Srs. que esta atitude corresponde à grave crise em que se encontra a Igreja Católica, crise essa que o próprio Paulo VI designou como um processo de autodemolição da Igreja; e que, portanto, cabe ao Clero uma grave responsabilidade por tal processo, no Chile. Não querendo nós incorrer na mesma omissão, apoiamos a declaração dos senhores, por estar ela em inteiro acordo com os mais genuínos ensinamentos de nossa Santa Madre Igreja”. Padres Arturo Fuentes T., capelão das Irmãzinhas dos Pobres, e Bernardo Lobos M., Professor do Liceu II de Homens, de Concepción (diário La Tercera de La Hora de 9/4/73): “Concordamos plenamente com toda a visualização que os Srs. dão da realidade chilena. Ao considerar o silêncio e, em alguns casos, a colaboração do Clero, como um dos fatores mais importantes do processo de comunistização em que se afunda nossa querida Pátria, os Srs. tratam do problema com toda a seriedade, mostrando fatos incontrovertíveis, expostos de uma maneira inteiramente respeitosa. É uma enorme alegria para nós, como sacerdotes, constatar que neste momento tão crítico da vida da Igreja e de nossa Pátria, haja leigos que assumam a defesa dos mais genuínos princípios de sua Religião, enquanto os que deveriam fazê-lo, se calam”. Padres Reinaldo Durán Ch., pároco de São Rosendo, Francisco J. Valenzuela, pároco de Lirquén e Francisco Veloso C. pároco de São João da Mata (diário Tribuna de Santiago, de 11/4/73): “Não podemos senão concordar e dar nosso caloroso apoio aos manifestantes (da TFP), que citam fatos de domínio público e, portanto, indiscutíveis. Esses fatos ou omissões vêm escandalizando e confundindo os fiéis. Com isso, o marxismo, inimigo do catolicismo, se viu fortalecido. Não queremos que nosso silêncio seja interpretado como uma aprovação do marxismo, formalmente


582 condenado por numerosas Encíclicas pontifícias. Por isto fazemos público esse voto de aplauso”.

Estava mais do que provado que a TFP chilena tinha o direito de fazer o que fez1904.

8. Lançado na miséria, o Chile reage. Cai o governo marxista O governo de Allende não poderia ter sido pior. Ele criou a fome, a miséria. Todas as circunstâncias de que padeciam os países por detrás da Cortina de Ferro, no Chile foram criadas de maneira não tão radical como em países como a Rússia. Mas Allende, que até o último momento de sua vida se manifestou marxista, ia levando o Chile para os horrores do marxismo 1905. Houve imensas manifestações anti-Allende, nas quais os elementos mais arrojados não foram os ricos, mas os operários das minas de cobre de El Teniente, os trabalhadores rurais que se levantaram de armas na mão em favor de seus patrões, os camioneros de todo o país* 1906. * O mal-estar popular já era incontenível. Mais de cem mil mulheres promoveram as famosas "marchas das panelas vazias" para protestar contra a escassez de alimentos (cfr. Autodemolição da Igreja acarreta a demolição do Chile - TFP chilena: Clero, a grande esperança de Allende, Folha de S. Paulo, 2/3/73).

Como resultado, a Corte Suprema de Justiça declarou em 25 de maio e em 25 de junho de 1973, que o Poder Executivo se havia afastado das leis e da Constituição. E a Câmara dos Deputados, em 22 de agosto de 1973, declarou “ilegal o governo Allende por violações conscientes e repetidas da Constituição”. Análoga opinião emitiram a Controladoria Geral da República e o Colégio de Advogados do Chile1907. Quando os militares derrubaram Allende, afirmaram fazê-lo por pressão da vontade popular. E ninguém duvidou disto*1908. * Veio então a revolução de 11 de Setembro de 1973 que se alçou contra Allende. E Allende foi derrubado, suicidando-se antes de ser preso.

9. Os culpados pelo sangue derramado: aqueles que prepararam a vitória do marxismo no Chile Os esquerdistas do mundo inteiro — que viviam a apregoar a 1904 São Pio X agradeceu a críticas, cit. 1905 Entrevista à Radio Capital, de Montevidéu (gravação), 20/7/90. 1906 Elogio aos silenciosos do Ocidente, Folha de S. Paulo, 7/10/73. 1907 A “canonização” cívica de Allende, Folha de S. Paulo, 21/9/89. 1908 Elogio aos silenciosos do Ocidente, cit.


583 supremacia total do bem comum — se transformaram bruscamente em defensores dos direitos individuais. E, fechando os olhos para a salvação pública, começaram a entoar pelo mundo inteiro seu De profundis laico e melado, a propósito do sangue que correu. Sangue dos esquerdistas é claro. Não dos soldados! Pergunto: a não ser isto, o que se deveria ter feito? Deixar o país ir à garra? — Esta pergunta só podia ter como resposta um "sim" ou um "não". Esse sangue vertido, também nós o deploramos. Em outros termos, quanto preferiríamos que a trajetória ideológico-política e ideológicoeconômica do Chile não tivesse conduzido o país à verdadeira catástrofe que foi a ascensão da seita marxista ao poder* 1909. * No artigo Magnificat pelo Chile (Folha de S. Paulo, 16/9/73), Dr. Plinio afirmava: “Mas, dir-se-á, deposto o governo marxista, era absolutamente indispensável atirar sobre os redutos comunistas que ainda resistiam de armas na mão? A resposta pressupõe o conhecimento de uma serie de pormenores que a imprensa não noticiou ainda, e de considerações morais que não há espaço para desenvolver aqui. Entretanto, o certo é que os militantes da resistência comunista se opõem criminosamente, e de armas na mão, à salvação do país. Seu fanatismo os leva a resistir à bala quando toda resistência já é inútil. Assim, os responsáveis principais pelo sangue ora vertido no Chile, são os que intoxicaram de doutrinas marxistas e fanatizaram os resistentes. Estes, sim, a História cristãmente imparcial os tachará sempre de criminosos. Se do lado dos restauradores da nação houve ou está havendo excessos, a História também o dirá. E com imparcialidade igualmente cristã os censurará. Aguardemos. Mas o fato é que a História cristãmente imparcial jamais considerará em igual plano o sangue dos fanáticos que morrem agredindo o país, e o dos heróis que tombaram na defesa deste”.

Obviamente, eu só podia aprovar que a Hierarquia chilena se opusesse aos abusos que ela afirmava estarem ocorrendo: prisões arbitrárias, interrogatórios acompanhados de torturas físicas e morais, limitação dos direitos de defesa, e desigualdade nas condenações. Havia-me chocado, quando da visita de Fidel Castro a Allende, o fato de que o Cardeal Silva Henriquez não se tenha pejado de dar mostras de evidente simpatia ao tiranete, quando era sabido que, em matéria de direitos humanos, este tinha ido muito além de todo e qualquer excesso praticado eventualmente por autoridades policiais do governo chileno. Por que dois pesos e duas medidas? Por que tão desempenada severidade com um governo anticomunista, e tantas vistas grossas em relação ao tirano comunista? 1910.

1909 Magnificat pelo Chile, Folha de S. Paulo, 16/9/73. 1910 Voz dos que se calam acabrunhados, Folha de S. Paulo, 28/4/74.


584

10. A TFP chilena tudo fez para evitar o processo de ruína e de morte Muito fez a TFP chilena para alertar os seus conterrâneos para o perigo do progressismo "católico" e do democristianismo, os quais iam empurrando sorrateiramente a nação para o precipício de onde ela se reerguia tinta de sangue. E as TFPs de todo o continente sul-americano atuaram para criar condições internacionais desfavoráveis a uma colaboração com esse processo de ruína e morte. Nada foi capaz de obstar a que a saparia chilena, conluiada com o clero esquerdista, entregasse o país a Allende. Junto haviam cantado, na Catedral de Santiago, com rabinos, pastores protestantes, comunistas e terroristas, o Te Deum da vitória. E em seguida a tragédia começou. Desde logo se podia prever que ela terminaria no sangue, ou liquidaria o Chile. De fato, ela terminou em sangue, com o Chile quase liquidado. Os primeiros culpados por isto foram os que cantaram o estranho Te Deum ecumênico. De minha parte, como católico, só posso censurar o suicídio do teimoso chefe comunista. E lamentar que lhe tenha sido de tão pouco socorro espiritual a Bíblia pressurosamente ofertada pelo cardeal Silva Henriquez. Em síntese, expulso do Chile o comunismo, ipso facto perdeu ele terreno no continente sul-americano. Como brasileiro e amigo do Chile, alegrei-me. E, sem prejulgar em minha alma pormenores que possivelmente Deus e a História não aprovem, entoei interiormente o Magnificat. Sim, o Magnificat que o Cardeal Silva Henriquez por certo não cantou . 1911

Esta era a nossa apreciação dos fatos. Mas também era a apreciação de um grande órgão de imprensa de Paris, Le Monde (13/9/93), que sustentou: “Allende era um símbolo do socialismo democrático. [...] Sua queda traumatizou as esquerdas europeias que se preparavam para seguir essa mesma via”1912. Quer dizer, espalhou-se por todos os países socialistas do mundo uma espécie de desânimo e de falta de coragem que está na raiz do declínio

1911 Magnificat pelo Chile, cit. 1912 RR 2/10/93.


585 geral do socialismo 1913. É muito frisante o reconhecimento disso por Le Monde, que é um jornal centrista francês de tendência esquerdista e insuspeito para dizer isso1914.

Capítulo IV Denúncia de infiltração nos Cursilhos de Cristandade (1972-1973) 1. Papel dos Cursilhos na rotação ideológica do “establishment” brasileiro Um outro gênero de infiltração estava também me preocupando: a que se notava nos Cursilhos de Cristandade. Os Cursilhos de Cristandade eram uma organização de origem espanhola. E realmente se difundiram muito pela América1915. Representavam, dentro da vida brasileira daquela época, o dispositivo do adversário mais perigoso e mais ágil que se possa imaginar 1916. Para compreender esse perigo, é preciso fazer certo recuo histórico. * Quando lançamos RA-QC em 1960, havia algumas cúpulas de dirigentes rurais que procuravam sabotar o livro, fazendo manobras para que este não se tornasse conhecido e não fosse divulgado 1917. E nós lutamos e abortamos a Reforma Agrária, malgrado alguns órgãos de classe aos quais pertenciam proprietários rurais que seriam confiscados, e que fizeram o que puderam para sabotar, embora fingindo simpatia1918. Mas esse era um fenômeno localizado. No geral da opinião pública, o livro foi, na época, aprovado pelo que poderíamos chamar de establishment. O que entendo por establishment?

1913 Despacho 30/9/93. 1914 RR 2/10/93. 1915 SEFAC 15/1/76. 1916 Palestra para as Caravanas 23/11/72. 1917 Reunião Normal 30/6/72. 1918 Despacho 20/2/80.


586 O establishment é a classe de pessoas constituída por certo número de famílias tradicionais de São Paulo e de outros Estados, que não haviam perdido a fortuna nem o prestígio, acrescida de uma série de agricultores nascidos do povo, mas que tinham amor à propriedade . Quando, por exemplo, Dom Helder Câmara, para enfrentar RA-QC, convocou aquela reunião da CNBB em São Paulo, à qual já nos referimos, e tomou posição oficial a favor da Revisão Agrária, das fileiras do establishment não saiu uma voz de apoio ao Episcopado. Mesmo pessoas ateias, diante de RA-QC prestavam a sua homenagem. Essa atitude do establishment em relação a nós durou até aproximadamente os anos 1969-1970. Aí eu fui notando que as coisas começavam a mudar1919. E em grandíssimos contingentes dessa burguesia, sobretudo da burguesia média e alta, percebi uma rotação1920. Componentes desse establishment passaram a considerar que o perigo comunista estava afinal afastado 1921. E eles que, na época do Jango, tomavam posição anticomunista e nos davam apoio, iam se tornando simpatizantes do comunismo ou de formas sociais e políticas que conduziam necessariamente ao comunismo 1922. Iniciou-se então um ataque surdo à TFP, o qual dizia que éramos "exagerados" em matéria político-social. E a TFP começou a parecer, então, inoportuna, pois levantava um problema que, para eles, era preciso resolver com jeito, sem lutar, sem discutir, sem criar caso. Surgiram também ataques à nossa rigidez em matéria de costumes e à nossa posição de intransigência religiosa em geral. Diziam que deveríamos ser religiosamente mais condescendentes, mais amáveis, tolerar mais as modas novas, os costumes novos. E assim foi-se espalhando um estado de espírito de antipatia indefinível em grandíssima parte da classe dirigente, especialmente na de São Paulo, em relação à TFP1923.

1919 Reunião Normal 30/6/72. 1920 SD 24/11/72. 1921 Reunião Normal 30/6/72. 1922 SD 24/11/72. 1923 Reunião Normal 30/6/72.


587

2. Cursilhos feitos sob medida para levar ao esquerdismo certo tipo de burguês Como é que se fez essa rotação? Na sua parte mais relevante, essa rotação se fez pela influência do Clero de esquerda. Mas junto a essa gente, a influência do Clero de esquerda na imensa maioria dos casos se deveu à atuação dos Cursilhos de Cristandade. Certo gênero de Cursilhos de Cristandade correspondia ao gosto de um indivíduo burguês com restos de tradições ou de reminiscências religiosas, ou de fé. Esse burguês não queria, portanto, abandonar completamente a Religião. Mas não queria praticá-la nem aceitá-la como ela é. Era uma religião amoldada segundo as paixões e os caprichos dele, e o levava aos poucos para a esquerda. A religião pregada por certos Cursilhos era brincalhona, folgazona, igualitária, admitindo piadas inconvenientes, recomendando uma intimidade descabelada com Deus e dando ideia de que a fé pode ser praticada de modo agradável, de modo fácil, sem exigir sacrifício. Era, portanto, uma religião feita sob medida para esse tipo de burguês. O corolário necessário de uma religião assim era o esquerdismo, e o burguês por essa via se abria ao esquerdismo. Os Cursilhos de Cristandade afetados por essa mentalidade afastaram de nós contingentes impensáveis. Não só afastaram, mas os voltaram contra nós. Os cursilhistas desse gênero eram os elementos mais propulsores do esquerdismo — não nos seminários, não nas universidades e nas obras especificamente católicas — mas nos setores até então infensos a esse esquerdismo, existentes nos meios não especificamente de sacristia1924. Os Cursilhos de Cristandade faziam, portanto, para os ambientes por assim dizer mundanos o que o IDO-C e os “grupos proféticos” faziam no interior dos meios especificamente religiosos (seminários, ordens religiosas, conventos, obras católicas). Mas o espírito era o mesmo. E a técnica era muito parecida1925. Neste sentido, a nossa luta no tempo da Ação Católica era contra uma forma ancestral dos Cursilhos1926. 1924 SD 24/11/72. 1925 Palestra para as Caravanas 23/11/72. 1926 Reunião Normal 23/9/69.


588 O aparecimento dessa contraofensiva rumo a uma posição semiesquerdista era capitaneada por homens da indústria e das empresas, mais do que por agricultores. No fundo, representava uma infiltração de gente esquerdista no comércio, na indústria, no banco e na classe alta.

3. Cursilhos: spray eficaz da mentalidade democristã A mentalidade democrata-cristã — enquanto influência, enquanto espírito, e não enquanto partido político — teve um papel não pequeno nesse fenômeno de esquerdização. O Partido Democrata Cristão, como partido, até já não existia como tal no Brasil. Mas políticos democristãos contaram com simpatia dessa gente, e isto exerceu sua influência nos acontecimentos exatamente por causa de mecanismos do tipo Cursilhos de Cristandade. Assim, essa postura democristã foi-se disseminando lentamente, da esfera do comércio e da indústria, para as famílias de classe social alta, tanto urbanas como rurais. Cabe lembrar que, durante esse período, a parte conservadora do Clero foi desaparecendo. E o Clero começou a agir mais ou menos em massa contra a TFP. Todas essas influências juntas deram origem a que a maioria das fortunas grandes, e uma boa parte das fortunas médias de São Paulo e de outros Estados, naqueles idos de 1970, estavam em mãos de pessoas ora mais ora menos esquerdistas, mas muito tomadas pelas modas novas e pela agressão sexual. Foi nessa quadra que apareceu o fenômeno que passamos a chamar de sapo*. * A expressão foi usada pela primeira vez no artigo de Dr. Plinio para a Folha (25/6/69), sob o título A bomba, a estrela e o sapo. Estava então a TFP em plena campanha de rua contra o IDO-C e os “grupos proféticos”. Qualificava ele como sapos os burgueses esquerdizantes que passavam pela campanha de automóvel, às vezes de luxo, gritando (coaxando) insultos de inspiração comunista. Já estávamos francamente na chamada era pósconciliar.

O sapo era portanto o homem do establishment que já não cultivava nenhuma tradição, em quem havia desaparecido o espírito tradicional e que se servia de sua fortuna unicamente para gozá-la e para atacar os que queriam defender a propriedade privada, a família e a tradição católica. Esse era o conceito de sapo 1927.

1927 Reunião Normal 30/6/72.


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4. A ideia da Pastoral sobre os Cursilhos Numa conversa na qual estavam Dom Mayer, dois membros mais velhos do nosso grupo e eu, isto em minha sala na sede da rua Maranhão, falei sobre os Cursilhos de Cristandade e manifestei a minha preocupação com1928 o desenvolvimento que estava tendo essa organização substancialmente progressista1929. Sugeri então a Dom Mayer — e ele aceitou com o aplauso dos outros dois presentes — a ideia de lançar uma Pastoral a respeito desse movimento, na qual fosse dito, documentadamente, com base em livros e publicações dos próprios Cursilhos, o que eles eram. Inclusive mostrando 1930 as estranhas e perigosas tendências que se faziam sentir em importantes publicações cursilhistas 1931. Foi portanto nessa conversa que nasceu a ideia da Carta Pastoral sobre os Cursilhos de Cristandade1932.

5. Coleta de documentos e estudos Anos antes já vínhamos procurando material e documentação sobre os Cursilhos. E não conseguíamos, porque os Cursilhos eram muito fechados. Em certo momento, uma pessoa da TFP de Madri conseguiu coletar dados muito interessantes que ela obteve na Espanha. E assim, no momento certo, na hora certa nos chegou a documentação certa para fazermos a denúncia certa1933. * Em reunião com Dom Mayer, estudamos os vários documentos a respeito dos Cursilhos. E ficou decidido que a Pastoral se limitaria a dizer que havia más influências nos Cursilhos, o que tornava os Cursilhos uma associação merecedora de cautela, de reserva1934. Não sustentávamos, portanto, a tese de que todos os Cursilhos eram ruins: eles estavam infiltrados por influências más, algumas das quais se irradiavam a partir do centro dos Cursilhos em Madri 1935.

1928 SD 24/11/72. 1929 SEFAC 15/1/76. 1930 SD 24/11/72. 1931 A Pastoral sobre os Cursilhos, Folha de S. Paulo, 3/12/72. 1932 SD 24/11/72. 1933 Palestra para as Caravanas 23/11/72. 1934 SD 24/11/72. 1935 Palestra para as Caravanas 23/11/72.


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6. “É preciso coragem para enfrentar inimigo tão poderoso” Quando a Pastoral sobre os Cursilhos de Cristandade ficou pronta, um dos diretores da TFP, Dr. Plinio Xavier da Silveira, foi à Folha de S. Paulo para pedir que publicassem notícias a respeito e entrevistassem Dom Mayer1936. Um dos diretores do jornal folheou a Pastoral e disse1937: — Sabem que é muita coragem da parte de vocês enfrentar um inimigo poderoso como os Cursilhos de Cristandade? Dr. Plinio Xavier respondeu com naturalidade: — Sim1938. — O senhor sabe que vem uma reação terrível por causa disso? — Sei. — Bem, vou publicar essa matéria sem cobrar nada. Até se o senhor quisesse cobrar, eu pagaria para publicar, com a condição de ser meu jornal o primeiro a dar a notícia em São Paulo. Depois acrescentou: "Agora, eu lhe aviso: meu jornal não toma posição. Quando vier a réplica, publico-a com o mesmo espalhafato, porque pretendo fazer espalhafato na publicação disso. Quando os senhores fizerem a tréplica, eu também publico. Logo depois, Dr. Adolpho Lindenberg e Dr. Paulo Corrêa de Brito estiveram com o proprietário de uma ou duas cadeias de televisão muito importantes. Apresentaram a matéria e o empresário comentou: “Divulgo sem cobrar”. Quer dizer, considerou uma matéria interessantíssima e candentíssima* 1939. * De fato, o assunto ferveu quando, no sábado do dia 25 de novembro de 1972, a Folha de S. Paulo foi posta nas bancas. A primeira página trazia o seguinte título: “Nos Cursilhos, uma tendência esquerdizante?” E logo abaixo uma chamada: “‘Há nos Cursilhos uma singular mistura de erro e de verdade, de bem e de mal’, entende Dom Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos (Estado do Rio), que acaba de publicar uma Carta Pastoral sobre os Cursilhos de Cristandade, na qual analisa aspectos desse movimento. Em entrevista a este jornal — que publicaremos na edição de amanhã — aquele prelado afirma que se notam nos Cursilhos ‘perigosas tendências e, mesmo em algumas de suas publicações, erros, quer no campo doutrinário, quer no moral e econômico-social. É forçoso reconhecer uma 1936 SEFAC 15/1/76. 1937 EE 24/11/72. 1938 SEFAC 15/1/76. 1939 EE 24/11/72.


591 tendência esquerdizante em meios cursilhistas’, diz o Bispo de Campos. Abrem-se assim as discussões a respeito de um movimento que tem hoje ampla penetração nos meios católicos brasileiros. A entrevista de Dom Antonio de Castro Mayer, destinada certamente a alcançar grande repercussão, representa naturalmente um ponto de vista pessoal, que suscitará contestações e controvérsias”.

7. Campanha se alastra: 120 propagandistas em 1238 cidades Assim foi iniciada essa grande campanha. E a Carta Pastoral foi difundida no Brasil inteiro. Pusemos participantes da TFP brasileira nas ruas do Brasil inteiro, vendendo o livro. Fizemos essa propaganda por cerca de quatro meses, se minha memória não me falha* 1940. * A campanha mobilizou 120 sócios e cooperadores que, agrupados em treze caravanas, percorreram, de dezembro de 1972 a março de 1973, 1.238 cidades dos mais diversos pontos do País. Em todo o Brasil, foram divulgadas 93 mil exemplares da Pastoral.

8. Reações contrárias, sem fôlego mas superficiais A maior parte dos que se pronunciaram a favor dos Cursilhos, faziam-no como quem estivesse perdendo o fôlego. Tinha-se a impressão de que não encontraram palavras suficientes para exprimir sua sofreguidão, seu pânico, sua indignação. Dir-se-ia que os conceitos, os argumentos e as palavras se lhes atropelavam na garganta, tal a pressa com que procuravam saltar sobre a Carta Pastoral... e sobre os que a difundiam1941. De fato, o Brasil cursilhista estremeceu com essa estocada1942. * Quase todos os Bispos que se pronunciaram eram favoráveis aos Cursilhos. De modo geral, diziam as mesmas coisas e evitavam igualmente dizer outras. Não poucos deles alegavam que difundir nas suas Dioceses a Pastoral de Dom Mayer importava num acinte contra eles. Pois a Pastoral atacava o que eles proclamavam ser ótimo!* * Dom Mayer, em entrevista, qualificou essas críticas de “evasivas e superficiais”, lamentando não haver chegado ao conhecimento dele nenhuma que refutasse os documentos e a argumentação que ele apresentava (cfr. Catolicismo n° 266, fevereiro de 1973).

De outro lado, evitavam com a maior cautela afirmar ou negar se eram falsos os mais de 50 documentos cursilhistas utilizados por Dom 1940 SEFAC 15/1/76. 1941 Ferve o cursilhismo, Folha de S. Paulo, 28/1/73. 1942 EANS 10/12/72.


592 Mayer em suas críticas1943. * Logo que começou a campanha, o Jornal da Tarde telefonou a Dr. Paulo Corrêa de Brito, a Dr. Plinio Xavier da Silveira e a mim, pedindo uma entrevista, não a respeito da campanha, mas da TFP. E eu percebi logo que se tratava de um jogo para começar a atacar a TFP e, então, haver simultaneamente uma polêmica sobre a TFP e outra sobre os Cursilhos. Mandei dizer que, estando a TFP em campanha para alertar o público sobre certas orientações malsãs existentes nos Cursilhos, não era conveniente de momento dar entrevista a nosso respeito. Quando terminasse a campanha, aí estaríamos à disposição. Pouco depois este vespertino publicou uma série de reportagens tendenciosas e facciosas, em que ficava evidente virem em socorro dos Cursilhos. Essas reportagens se baseavam em depoimentos de egressos da TFP. Essas reportagens do Jornal da Tarde não foram senão um episódio da luta nossa com os Cursilhos, e devem ser vistas como tais. Como afirmei há pouco, eram uma interferência deles para ver se desviavam a discussão sobre os Cursilhos para uma discussão sobre a TFP. Naquele momento, os Cursilhos estavam sendo discutidos. Como não conseguiam responder às afirmações da pastoral de Dom Mayer, eles fizeram uma manobra para começar a falar mal de nós, para ver se assim nós, ao menos, ficamos sentados no banco dos réus. Esse era o objetivo das reportagens 1944.

9. Ameaça frustra de condenação pela CNBB A Assembleia Geral dos Bispos se realizou num clima de expectativa geral*. * Esta Assembleia deu-se em fevereiro de 1973.

Corriam boatos de que a CNBB iria publicar um estrondoso elogio do movimento cursilhista, juntamente com uma ainda mais estrondosa condenação da TFP1945. Com efeito, Dom José Freire Falcão, Arcebispo de Teresina, designado pelos seus pares para falar à imprensa, afirmara logo no início 1943 Ferve o cursilhismo, cit. 1944 SD 9/2/73 — Em artigo para a Folha Dr. Plinio já havia previsto que, se os adversários não tivessem como responder, recorreriam "ao diz-que-diz, a invectivas pessoais contra o grande prelado, ou a detrações contra a TFP, que lhe está difundindo a obra. Longe de mim dizer que cheguem até lá. Aliás, tal tática nem lhes seria útil. Pois não poderia deixar de ser vista como uma tentativa de fugir aos incômodos do diálogo doutrinário sereno, a que a natureza do tema convida” (Folha de S. Paulo, de 3/12/72). 1945 No clima de pós-Assembleia, Folha de S. Paulo, 25/2/73.


593 dos trabalhos que “provavelmente a TFP terá uma repreensão”1946. Vários órgãos de imprensa divulgaram até a notícia de que a Assembleia constituíra uma comissão integrada por Dom Gilberto Pereira Lopes, Bispo de Ipameri (Goiás); Dom Serafim Fernandes de Araújo, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte (depois Cardeal Arcebispo desta cidade), e Dom Antonio Afonso de Miranda, Bispo de Lorena para estudar especialmente a TFP. Outros senhores Bispos, antes mesmo que a Comissão iniciasse seus estudos, se puseram a prejulgar o assunto fazendo declarações à imprensa contra a TFP 1947. A torcida dos setores esquerdistas dos Cursilhos exultava. As coisas não lhes podiam correr melhor. Um vasto, gordo e bombástico elogio dos Cursilhos, e sobretudo uma condenação da TFP, que achado! Com a consciência tranquila, a TFP deixou transcorrer a Assembleia sem pedir uma informação sequer, nem implorar uma simpatia ou um voto. Aguardávamos o resultado serenamente, dispostos a explicar eventualmente ao público nossa posição, como já o fizéramos quando do comunicado com que nos atingira em 1966 a Comissão Central da CNBB. * A essas notícias seguiram-se telefonemas anônimos para nossas sedes, com injúrias e pesados palavrões. Automóveis passavam diante do oratório de Nossa Senhora que mantínhamos na rua Martim Francisco e bradavam obscenidades. Foram até jogados ovos contra rapazes da TFP que, de costas para a rua, e voltados para a imagem de Nossa Senhora da Conceição, ali rezavam. Tudo isso cessou de repente, quando o Cardeal Arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, declarou à imprensa que, provavelmente a TFP não seria objeto de nenhuma condenação. Asseverou Sua Eminência que a TFP constituía assunto que "não estava em pauta" na reunião1948. Noto apenas que, segundo certos jornais garantiram, a discussão andou acesa entre os Srs. Bispos no que tocava à censura à TFP, a ponto de retardar de uma hora a publicação do comunicado. No final, este nada continha sobre a TFP1949. Afinal, publicado o comunicado da Assembleia, verificou-se que, no tocante aos Cursilhos, os prognósticos ativamente postos em circulação 1946 Abertura para o diálogo, Folha de S. Paulo, 18/2/73. 1947 No clima de pós-Assembleia, cit. 1948 — Esta notícia pode ser vista em O Estado de S. Paulo, 20/2/73. 1949 Abertura para o diálogo, cit.


594 pela propaganda cursilhista eram quase inteiramente sem fundamento. Os Srs. Bispos inseriram em seu comunicado final tão somente uma referência simpática aos Cursilhos. Era isto bem diferente do estrondoso elogio tão esperado. Quanto à TFP, nenhuma palavra. A intenção manifesta da Assembleia dos Bispos foi de ser comedida e discreta. Dom Serafim Fernandes de Araújo, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte, foi entretanto muito além. Ao Diário de Minas de 17 de fevereiro de 1973, Dom Serafim teria afirmado que todos os Bispos presentes à XIII Assembleia condenaram a TFP. Essa afirmação lembrava um passe de mágica: todos os Srs. Bispos estariam cheios do propósito de condenar a TFP. Mas o comunicado final, com a palavra oficial deles, não continha essa condenação! Logo em seguida a essa estranha assertiva, vinha entre aspas a seguinte declaração de Dom Serafim: "Houve algumas divergências quanto a esta organização. Uns Bispos acham que se deve dialogar com a TFP. Outros acham que devemos esquecê-la, pois seus membros não admitem diálogo". Nesse sentido, era de estranhar especialmente a entrevista dada à imprensa por Dom Ivo Lorscheiter, Secretário Geral da CNBB. Dom Lorscheiter disse aos jornalistas que a Assembleia não condenara a TFP porque, se nos condenasse, causaria a impressão de que temos uma importância maior do que a real. Aqueles Srs. Bispos que, depois da reunião, tiveram ácidas palavras de antipatia contra a TFP, agiram em sentimento oposto ao espírito e às intenções da Assembleia. Ora, a intenção manifesta da Assembleia dos Bispos fora de pôr água na fervura1950.

10. Atitude virulenta de Dom Clemente Isnard contra a TFP Poucos meses depois, teve tal ou qual repercussão em nossa imprensa a publicação de um decreto em que Dom Clemente Isnard, Bispo de Nova Friburgo1951, proibia a seu clero que desse a Comunhão a membros 1950 No clima de pós-Assembleia, cit. 1951 — Dom Clemente José Carlos de Gouvea Isnard, OSB (1917-2011) foi, a partir de 1942, o primeiro Bispo da Diocese de Nova Friburgo. Enquanto aluno de Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, conheceu e começou a participar da Ação Católica e do Centro Dom Vital. Em


595 da TFP, quando se apresentassem incorporados ou com insígnias. Para fundamentar sua atitude, aquele Prelado alegava contra a TFP três razões: difamação dos Cursilhos de Cristandade, desacato à autoridade e pessoa dele, e o apoio a um livro "cismático" sobre o novo Ordo Missae de Paulo VI. * Era bem verdade que um dos então diretores da TFP, Sr. Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, havia escrito em 1970 um estudo baseado em sólida documentação a respeito do novo Ordo Missae. E que com ele se solidarizara a TFP. Tal estudo, por certas implicações doutrinárias do delicado tema, era de molde a suscitar uma série de questões teológicas e canônicas com as quais não estava familiarizado o público brasileiro. A publicação do livro poderia introduzir graves fatores de divisão e perturbação no já tão conturbado e dividido horizonte religioso do País. Se gostássemos que se falasse de nós a todo custo, e para polemizar a qualquer propósito como imaginava Dom Lorscheiter, desde logo teríamos atirado o livro a público. Preferimos não fazer assim. E por isto distribuímos apenas certa quantidade de exemplares do trabalho a um número limitado de personalidades de escol, pedindo-lhes reservadamente a opinião. Um dos destinatários — altíssima personalidade eclesiástica que mais de uma vez tinha divergido de nós — de tal maneira se impressionou com os possíveis reflexos do livro na opinião pública, que escreveu a um amigo comum pedindo "de joelhos, se necessário fosse" que a TFP não publicasse o trabalho. E por tudo isto mantivemos o mais escrupuloso silêncio sobre o mesmo. Enquanto isto, em grande número de igrejas, sacerdotes que provavelmente ignoravam todos esses fatos, não se cansavam de sujeitar nossos sócios e cooperadores a invectivas e humilhações públicas de toda ordem, a propósito de nossa atitude face ao novo Ordo Missae. E ninguém das nossas fileiras abriu a boca para defender-se alegando os argumentos contidos no livro. Agora vinha Dom Isnard e, num documento eclesiástico oficial, fulminava penas canônicas contra a TFP, pela adesão que esta dera ao livro

1937 entrou para a Ordem de São Bento. Teve larga participação no Concílio Vaticano II, exercendo depois cargos importantes na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e no CELAM. Foi, dentro da CNBB, peça-chave para a implantação da reforma litúrgica no Brasil.


596 que ele acusava de "cismático". Dir-se-ia que era muito mais do que a gota de água que faz transbordar o copo. Pois bem, ainda neste passo não saímos com a matéria do livro a público. Só mudaríamos de rumo se outros fatos se produzissem, que nos forçassem absolutamente a falar. A responsabilidade seria então inteiramente — note-se bem — de quem nos tivesse forçado a tal. * No seu livro, o autor afirmava expressamente sua fidelidade inquebrantável à doutrina e disciplina da Igreja. E se levantava certos problemas delicados de Teologia ou Direito Canônico, fazia-o declarando de antemão que acatava em toda a medida preceituada pelo Direito Canônico o que a própria Igreja decidisse. Era precisamente esta a posição da TFP. Tínhamos pois a consciência inteiramente tranquila no que diz respeito à nossa perfeita união com a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Na Igreja e pela Igreja, tínhamos vivido toda a nossa existência. Nela pretendíamos morrer. E, por ela, se assim aprouvesse à Providência. * Quanto às outras duas alegações — difamação da TFP aos Cursilhos e desacato à autoridade dele 1952— se Dom Isnard discordava da Pastoral de Dom Mayer, teria sido nobre de sua parte que saísse a público de viseira erguida, defendendo diretamente contra ela os Cursilhos. Seria um direito seu. O Sr. Dom Isnard teria aberto, assim, um diálogo elevado e oportuno com seu egrégio irmão e vizinho de Campos. Não. O Sr. Dom Isnard achou mais cômodo atirar contra ele um ataque oblíquo, atingindo os moços da TFP. Era lamentável. 1953

1952 Sobre o decreto anti-TFP de Dom Isnard, Folha de S. Paulo, 27/5/73. 1953 Ainda o decreto anti TFP de Dom Isnard, Folha de S. Paulo, 3/5/73 — Dr. Plinio comentou e refutou esse decreto em três artigos sucessivos, publicados na Folha de S. Paulo: Sobre o decreto antiTFP de D. Isnard (27/5/73), Ainda o decreto anti-TFP de D. Isnard (3/6/73) e D. Isnard: fim (10/6/73).


597

Capítulo V Face à Ostpolitik vaticana: omitir-se ou resistir? (1974) Atualíssimo manifesto de Resistência 1. Distensão vaticana com os regimes comunistas Sinto-me na contingência de tratar agora da Resistência católica à Ostpolitik de S. Santidade o Papa Paulo VI. Em princípio, está na augusta missão do Vaticano entabular negociações diplomáticas com os regimes comunistas, no intuito de suavizar a situação dos católicos perseguidos. De minha parte, sempre sustentei a legitimidade dessa conduta. Não se pode, porém, sustentar que a chamada Ostpolitik do Vaticano consistia simplesmente nisto. Era patente que ela incluía dois aspectos. Um era o diplomático, de chancelaria a chancelaria. Mas havia outro. Paralelamente com a détente diplomática do Vaticano com o Leste, houve, em larguíssimos meios católicos, uma sensível mudança de posição em relação aos partidos marxistas do Oeste. A atitude militantemente anticomunista, que caracterizava tais meios desde os primórdios do marxismo até a morte de Pio XII, se abrandou rapidamente com a eleição de João XXIII, e rareou a tal ponto no pontificado de S.S. Paulo VI, que se tornou quase uma exceção à regra. As censuras de autoridades eclesiásticas e organizações católicas contra o comunismo baixaram muitíssimo em número, e mais ainda em tom. De sorte que, não raras vezes, tinham muito mais o aspecto de uma queixa de amigo a amigo, do que de crítica a um adversário irreconciliável. Era absolutamente notório que, não raras vezes, autoridades eclesiásticas e organizações católicas haviam chegado, nesta linha, até a franca colaboração com correntes comunistas1954. Ora, os católicos que tomavam a sério as encíclicas de Leão XIII, Pio XI e Pio XII, sabiam que estes Papas ensinaram que o regime comunista era o oposto da ordem natural das coisas, e a subversão da 1954 Não conseguimos compreender, Folha de S. Paulo, 7/7/74.


598 ordem natural — na economia como em qualquer outro campo — só podia trazer frutos catastróficos 1955. A linguagem nova de muitas das reivindicações sociais eclesiásticas por vezes era tal que, sem ser definidamente marxista, parecia inspirada no vocabulário e no estilo usado pelos comunistas. Somam-se a essa massa de fatos os contatos secretos da Santa Sé com chefes de Estado vermelhos, de viagens diplomáticas que Monsenhor Casaroli — o Kissinger Vaticano — fazia a toda hora aos países comunistas. Obviamente, a distensão vaticana tinha por efeito uma desmobilização psicológica dos 500 milhões de católicos em relação ao perigo comunista. Estes eram fatos absolutamente impossíveis de serem contestados 1956.

2. Viagem de Monsenhor Casaroli a Cuba, a gota d’água que entornou o copo O povo paulista tomou conhecimento, no dia 7 de abril de 1974, dos resultados da viagem a Cuba de Monsenhor Casaroli, secretário do Conselho para os Assuntos Públicos do Vaticano. Esses resultados, enunciou-os o próprio dignitário, em uma entrevista (cfr. O Estado de São Paulo de 7 de abril de 1974)*. * Esta viagem havia se realizado entre os dias 27 de março e 5 de abril de 1974.

Asseverou S. Excia. que "os católicos que vivem em Cuba são felizes dentro do regime socialista". Não seria preciso dizer de que espécie de regime socialista se tratava aí, pois era conhecido que o regime vigente em Cuba era o comunista. Sempre falando do regime Fidel Castro, S. Excia. continuou: "os católicos e, de um modo geral, o povo cubano, não têm o menor problema com o governo socialista". Desejando talvez dar a estas declarações estarrecedoras certo ar de imparcialidade, Monsenhor Casaroli lamentou entretanto que o número de sacerdotes fosse insuficiente em Cuba: apenas duzentos. Acrescentou ter pedido a Castro maiores possibilidades de praticar cultos públicos. E terminou asseverando muito inesperadamente que "os católicos da ilha são 1955 A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas—Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, Folha de S. Paulo, 14/4/74. 1956 A indispensável resistência, Folha de S. Paulo, 14/4/74.


599 respeitados em suas crenças como quaisquer outros cidadãos". Monsenhor Casaroli asseverava ainda que "a Igreja Católica cubana e seu guia espiritual procuram sempre não criar nenhum problema para o regime socialista que governa a ilha"*. * Nessa mesma estadia em Cuba, Monsenhor Casaroli fez afirmações pasmosas no dia 4 de abril de 1974, em homilia na Catedral de Havana, a qual foi publicada por Vida Cristiana (edição de 18/5/74), única publicação católica autorizada em Cuba. Nessa homilia, o Prelado elogia a Igreja de Cuba por estar "vitalmente incorporada no atual contexto cubano", ou seja, no regime comunista. E por atuar "não como elemento de divisões daninhas, mas como benéfico fermento de fraternidade". Ou seja, elogia-a por não lutar contra o comunismo (cfr. artigo Casaroli: incorporação no contexto, Folha de S. Paulo, 30/6/74) .

Dói dizê-lo, mas a verdade óbvia era esta: a viagem de Monsenhor Casaroli a Cuba desfechou numa propaganda da Cuba fidelcastrista1957. Ao ler estas notícias, percebi não só que Monsenhor Casaroli havia passado da conta, mas que no ambiente geral da opinião pública mundial o fato havia despertado uma indignação contrária1958.

3. Ainda estava quente o caso do Cardeal Mindszenty Ainda estava quente o caso relativamente recente de Monsenhor Mindszenty 1959. Ele era um florão de glória da Igreja aos olhos até dos que nela não criam. Este florão foi quebrado: foi destituído da Arquidiocese de Esztergom, para facilitar a aproximação com o governo comunista húngaro* 1960. * Sua destituição se deu no dia 2 de fevereiro de 1974.

Comemorava-se o 25º aniversário de sua encarceração pelos comunistas. Ficou célebre a fotografia que o mostrava no banco dos réus com olhar aterrado, mas inquebrantável na resolução de cumprir até o fim seu dever. Veio depois o rápido intermezzo da sublevação anticomunista*. 1957 A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas—Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, cit. 1958 RR 10/4/74. 1959 — József Mindszenty (1892-1975) Cardeal húngaro que se opôs tenazmente ao comunismo na Hungria, tornando-se homem-símbolo da resistência a esse regime. Foi preso durante a revolução comunista de Bela Kun em 1919. Eleito Bispo de Veszprém em 1944, caiu prisioneiro do regime nazista de 1944 a 1945, do qual se mostrou adversário. Nomeado Arcebispo Primaz de Esztergom em 2 de outubro de 1945, foi elevado ao cardinalato em 18 de fevereiro de 1946 pelo papa Pio XII. 1960 A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas—Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, cit.


600 * Ele fora novamente preso pelos comunistas em 1949. Nesta sublevação anticomunista, que durou de 23 de outubro a 10 de novembro de 1956, o Cardeal Mindszenty foi libertado. Com a derrota dessa sublevação, ele pediu asilo na embaixada dos Estados Unidos em Budapeste.

Começou então para Monsenhor Mindszenty o longo cativeiro na embaixada norte-americana. Cativeiro no qual — oh mistério! — lhe era vedado o contato até com os habitantes do edifício. Mas, como coluna solitária no meio das ruínas de sua pátria, Monsenhor Mindszenty permanecia de pé1961. A jogada do Vaticano para retirá-lo de Budapeste, conta-a o próprio Cardeal em suas memórias, começou em 1971. Tinha-se iniciado, então, o terrível drama da détente com o comunismo, acionada a quatro mãos, do lado do Ocidente, por Nixon e Paulo VI. Um dos efeitos quase imediatos desse processo de autodemolição da Cristandade — pois objetivamente outra coisa não foi a détente — foi que o Vigário de Jesus Cristo e o então Presidente dos Estados Unidos começaram a pressionar o Cardeal húngaro, por manifesta imposição do governo de Budapeste. Este governo comunista nada desejava mais ardentemente do que ver Monsenhor Mindszenty fora do território húngaro. E o Purpurado começou a sentir que já não era persona grata na embaixada norteamericana, onde se refugiara. Ao mesmo tempo Paulo VI delegou junto ao Cardeal um Prelado para incitá-lo a sair da Hungria 1962. Então tínhamos diante de nós este quadro. Como a simples presença do Cardeal Mindszenty na Hungria perturbava o sono dos governantes húngaros, estes conseguiram de Paulo VI que utilizasse a obediência — única força diante da qual o grande Cardeal anticomunista se inclinou — para removê-lo da Hungria1963. Monsenhor Mindszenty chegou, por fim, e muito a contragosto, a uma combinação que lhe pareceu ser o máximo do que poderia aceitar sem ferir sua consciência. Deixou então a embaixada norte-americana a 29 de setembro de 1971. Ao sair do edifício, abençoou, num grande gesto paternal e trágico, sua Arquidiocese e sua Pátria. E acompanhado do Núncio Apostólico de Viena, transpôs a fronteira com a Áustria. De passagem por Viena, recebeu as homenagens de Monsenhor 1961 A glória, a alegria, a honra, Folha de S. Paulo, 10/2/74. 1962 Ternuras que arrancariam lágrimas, Folha de S. Paulo, 13/10/74. 1963 Irridebit, Folha de S. Paulo, 16/1/78.


601 Casaroli. Este o acolheu com o mesmo sorriso que mais tarde traria nos lábios ao tratar com Fidel Castro. A alegria do Kissinger vaticano se explicava: estava cumprido o primeiro ponto do programa do governo de Budapeste. O Cardeal-Primaz já não molestava os chefes ateus e igualitários da Hungria comunista. A boa acolhida de Monsenhor Casaroli não foi senão um prenúncio de melhor acolhida ainda da parte de Paulo VI. Os jornais do tempo publicaram largamente todas as honrarias e atenções do Sumo Pontífice para com o crucificado Cardeal. Mas, ainda mesmo antes disto, começaram as surpresas. Chegando a Roma, Monsenhor Midszenty tomou conhecimento de que o Osservatore Romano de 28 de setembro de 1971, dia em que deixou a embaixada norteamericana na Hungria, se referia à saída dele como a remoção de um estorvo para as boas relações entre a Igreja e o governo húngaro. "Para mim — comenta o Cardeal — foi a primeira experiência amarga, pois compreendi que o Vaticano não estava dando nenhuma atenção aos termos específicos que eu havia formulado em Budapeste". Fatos posteriores vieram confirmar a estranheza de Monsenhor Mindszenty. Havia sido combinado que, depois de uma estadia em Roma, o Cardeal residiria no Seminário húngaro de Viena. O corolário dessa obrigação assumida pela Santa Sé era que esta última obtivesse o agreement prévio do governo austríaco. Comenta o Cardeal que, segundo parece, o Vaticano não tomou essa providência. Pois quando, após três semanas de estada em Roma, ele quis partir para Viena, o embaixador austríaco junto à Santa Sé se pôs a levantar dificuldades. O indômito Cardeal aplainou as barreiras e a partida foi decidida. * O ato em que Monsenhor Mindszenty se despediu de Paulo VI ficará para sempre na História da Igreja, quer pelo que então sucedeu, quer pelo que veio depois. O Papa da détente teve para com o herói do anticomunismo ternuras que arrancariam lágrimas 1964. Quis Paulo VI que Monsenhor Mindszenty, antes de seguir para Viena, concelebrasse com ele a Missa. Ao fim desta, deu-lhe, "como símbolo de amor e respeito", a capa cardinalícia que usava antes de ser Papa. Prometeu-lhe apoio, dizendo em latim: "És e continuas a ser 1964 Ternuras que arrancariam lágrimas, cit.


602 Arcebispo de Esztergom e Primaz da Hungria. Prossegue trabalhando, e se tens dificuldade, volta-te sempre confiantemente para nós". Depois... Depois tudo correu em rumo oposto. Monsenhor Mindszenty pediu que lhe fosse devolvida a faculdade de indicar padres para as comunidades húngaras no estrangeiro. Amarga decepção: o pedido foi recusado pelo Vaticano — comenta o cardeal — para não "incomodar o regime de Budapeste". Com o mesmo fim de não "incomodar o regime de Budapeste", a Santa Sé foi avante, e estatuiu que todas as declarações públicas do grande prelado fossem submetidas a um conselheiro indicado por Roma. Monsenhor Mindszenty retrucou que as submeteria "só ao Santo Padre, quando ele explicitamente o pedisse". Logo depois, a Nunciatura em Viena informou a Monsenhor Mindszenty que a Santa Sé dera garantias ao governo húngaro, durante as tratativas de 1971, de que uma vez posto em liberdade, o Purpurado nada diria que pudesse contrariar as conveniências de Budapeste. Esta garantia, dada às ocultas do Cardeal, violava o mais essencial do acordo que estava sendo negociado entre este e o Vaticano. Assim, mediante tal concessão ao governo húngaro, Paulo VI empregou a autoridade conferida por Nosso Senhor Jesus Cristo a São Pedro, a fim de forçar o Cardeal a não contrariar os planos do imperialismo comunista. As chaves de Pedro funcionando segundo os desejos de ateus perseguidores implacáveis da Religião: o que era isto, senão uma bomba, provavelmente a maior bomba na História da Igreja, de Pentecostes até hoje? Logo depois, as diretrizes do governo húngaro começaram a se fazer sentir através do Vaticano. Estava sendo impresso em Portugal um discurso para o Cardeal ler em Fátima. Emissários da Nunciatura de Lisboa intervieram na tipografia para — a não sabendas do Purpurado — suprimir um trecho em que este alertava os católicos do mundo contra a política de sorrisos dos comunistas. Mas o pior estava por vir. Algum tempo depois, Paulo VI escreveu a Monsenhor Mindszenty pedindo que renunciasse à Arquidiocese de Esztergom. O Cardeal recusou. Paulo VI destituiu-o então. Travo particularmente amargo: a carta foi entregue ao Cardeal precisamente na data em que se comemorava o 25º aniversário de seu glorioso encarceramento pelos comunistas. Estava terminado o drama. Ao longo dele, de começo a fim, a


603 conduta do Vigário de Cristo foi a que desejava o imperialismo comunista, isto é, o Anticristo 1965.

4. Cessar a luta ou explicar a nossa posição Somados ao caso Casaroli, todos esses fatos tomavam um vulto extraordinário1966. A posição fundamentalmente anticomunista da TFP resultava das convicções católicas dos que a compunham. Era porque católicos, era em nome dos princípios católicos que os diretores, sócios e cooperadores da TFP eram anticomunistas. A diplomacia de distensão do Vaticano com os governos comunistas criava, entretanto, para os católicos anticomunistas, uma situação que os afetava a fundo, muito menos enquanto anticomunistas do que enquanto católicos. Pois a todo momento se lhes podia fazer uma objeção supremamente embaraçosa: a ação anticomunista que efetuam não conduz a um resultado precisamente oposto ao desejado pelo Vigário de Jesus Cristo? E como se pode compreender um católico coerente, cuja atuação ruma em direção oposta à do Pastor dos Pastores? Tal pergunta trazia como consequência, para todos os católicos anticomunistas, uma alternativa: cessar a luta, ou explicar sua posição. Cessar a luta, não podíamos. E era por imperativo de nossa consciência de católicos que não o podíamos. Pois se era dever de todo católico promover o bem e combater o mal, nossa consciência nos impunha que defendêssemos a doutrina tradicional da Igreja, e combatêssemos a doutrina comunista. Sentir-nos-íamos mais agrilhoados na Igreja do que o era Soljenitsin na Rússia soviética, se não pudéssemos agir em consonância com os documentos dos grandes Pontífices que ilustraram a Cristandade com sua doutrina.1967.

5. Preito de amor ao Papado Depois das declarações de Monsenhor Casaroli, passei o domingo de 7 de abril de 1974 pensando no assunto. Na Missa, rezei tão afincadamente quanto estava em mim rezar, para que Nossa Senhora me

1965 Conforme quer Budapeste, Folha de S. Paulo, 20/10/74. 1966 RR 13/4/74. 1967 A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas—Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, cit.


604 ajudasse a ver qual o caminho a seguir1968. Lembrei-me das aulas de catecismo em que me explicaram o Papado, sua instituição divina, seus poderes, sua missão. Meu coração de menino (eu tinha então 9 anos) se enchia de admiração, de enlevo, de entusiasmo: eu encontrara o ideal a que me dedicaria por toda a vida. De lá para cá, o amor a esse ideal não tem senão crescido. E sempre peço a Nossa Senhora que o faça crescer mais e mais em mim, até o meu último alento. Quero que o derradeiro ato de meu intelecto seja um ato de Fé no Papado. Que meu último ato de amor seja um ato de amor ao Papado. Pois assim morrerei na paz dos eleitos, bem unido a Maria minha Mãe, e por Ela a Jesus, meu Deus, meu Rei e meu Redentor boníssimo. Queria portanto dar a cada ensinamento deste Papa, como de seus antecessores e sucessores, toda aquela medida de adesão que a doutrina da Igreja me prescrevia, tendo por infalível o que Ela mandava ter por infalível, e por falível o que Ela ensinava que era falível. Queria obedecer às ordens desse ou de qualquer outro Papa em toda a medida em que a Igreja mandava que fossem obedecidas. Isto é, não lhes sobrepondo jamais minha vontade pessoal, nem a força de qualquer poder terreno, e só, absolutamente só recusando obediência à ordem do Papa que importasse eventualmente em pecado. Pois neste caso extremo, como ensinam − repetindo o Apóstolo São Paulo − todos os moralistas católicos, era preciso colocar acima de tudo a vontade de Deus. Foi o que me ensinaram nas aulas de Catecismo. Foi o que li nos tratados que estudei. Assim penso, assim sinto, assim sou. E de coração inteiro1969. E se não fosse estar em jogo o que estava em jogo — algo que dizia respeito ao Sumo Pontífice —, há muito tempo que, com quaisquer prejuízos ou inconvenientes, o problema já se teria resolvido 1970. Eu, portanto, protelei minha atitude o quanto pude.

6. Redação do manifesto de Resistência Na segunda-feira, dia 8 de abril, tive um dia muito fatigante. Deitei num sofá depois do jantar, para um pequeno repouso antes de ir para a 1968 RR 7/4/74. 1969 A perfeita alegria, Folha de S. Paulo, 12/7/70. 1970 RR 7/4/74.


605 reunião que comumente havia na TFP às segundas-feiras. Quando despertei, eu estava resolvido: chamei o meu secretário e de 22:30 até 1:00 hora da madrugada, ininterruptamente, ditei o manifesto1971. Ele se intitulava A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas — para a TFP: Omitir-se? Ou resistir? Sua linguagem era respeitosa, mas ao mesmo tempo muito franca . E afirmava o propósito de lutar desassombradamente, nos limites das leis canônica e civil, contra a Ostpolitik vaticana1973. 1972

Esta explicação se impunha. Ela tinha o caráter de uma legítima defesa de nossas consciências de católicos, ante um sistema diplomático que lhes tornava irrespirável o ar, e que aos católicos anticomunistas colocava na mais penosa das situações, que era a de se tornarem inexplicáveis perante a opinião pública 1974. Depois que terminei de ditar, fui depressa da rua Alagoas nº 350, onde eu morava, para o prédio da rua Martinico Prado, onde Dom Mayer se hospedava, no 7° andar. Lá ainda estavam em conversa com Dom Mayer, Dr. Paulo Brito e outro membro do Grupo de que não me lembro. Eu não poderia publicar esse manifesto sem antes dar conhecimento dele a Dom Mayer. A minha pressa se explicava. Dom Mayer tinha necessidade absoluta, por causa das cerimônias de Semana Santa, de partir para Campos no dia seguinte. E tinha de descansar. Eu, portanto, não quis retardar nada. Li diretamente o texto para recolher as impressões dele. Dom Mayer recebeu-o muito bem. Notei até, pela fisionomia que fez, uma certa impressão de que o manifesto lhe parecia no fundo supermoderado. O documento, uma vez datilografado, foi levado no dia seguinte por Dr. Plínio Xavier ao Otávio Frias, diretor da Folha.

7. Por amor à Igreja, resistência a uma política autodemolidora O passo era colossal 1975. E a principal característica desse nosso manifesto era, a meu ver, que alvejava o ponto certo, com a linguagem

1971 RR 10/4/74. 1972 A mangueira, o desejo e o dever, Folha de S. Paulo, 10/12/84. 1973 Letras em Marcha, novembro de 1976. 1974 A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas—Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, cit. 1975 RR 10/4/74.


606 certa, no momento certo. Eram o tema, a tese, a linguagem e o momento adequados 1976. O ponto central não estava no fato de a TFP denunciar a política esquerdista que o Vaticano ia incrementando, mas na declaração de nosso estado de resistência a essa política1977, enquanto católicos, apostólicos, romanos. A meta era esta 1978. Nesse ato de resistência à política de Paulo VI não havia outros componentes psicológicos senão o amor, a fidelidade e a dedicação. Dado que o Papa é o monarca da Santa Igreja, meu gesto importava em defender o reino em benefício do Rei, ainda quando, para tanto, devesse incorrer no desagrado deste. Mais longe, segundo me parece, não seria dado ao homem levar sua dedicação 1979. Seu tópico culminante, e que resumiu o espírito com que foi escrito, é o seguinte: “Neste ato filial, dizemos ao Pastor dos pastores: Nossa alma é vossa, nossa vida é vossa. Mandai-nos o que quiserdes. Só não nos mandeis que cruzemos os braços diante do lobo vermelho que investe. A isto nossa consciência se opõe”1980. * Bem entendido, não presumo que o pronunciamento da TFP tenha mudado a orientação da diplomacia de Paulo VI. As razões que alegávamos eram por demais evidentes, para que já não as tivessem ponderado, de há muito, o Sumo Pontífice e seus imediatos conselheiros. Do ponto de vista tático, não havia comparação possível entre as vantagens que o Vaticano imaginava capitalizar com o apoio do moloch que era o mundo comunista, e os inconvenientes que lhe poderiam resultar da resistência de filhos espirituais que tinha na TFP, disseminados por quase toda a América e em algumas nações da Europa. Nós estávamos cheios de fé, é verdade, mas desprovidos do poderio que sobrava do lado comunista1981. Em síntese, nossa declaração manifestava respeitoso, mas profundo desacordo em relação a essa política de aproximação, e afirmava o propósito de resistir a essa política1982.

1976 ESM 25/4/74. 1977 SD 10/4/74. 1978 RR 2/6/74. 1979 Resistindo, Folha de S. Paulo, 21/4/74. 1980 A mangueira, o desejo e o dever, cit. 1981 A indispensável resistência, cit. 1982 Monsenhor Casaroli deu novo fundamento à declaração da TFP, Catolicismo n° 282, junho de 1974.


607

8. “Resistência” no espírito em que São Paulo resistiu a São Pedro "Resistência" foi a palavra que escolhemos de propósito, pois ela é empregada nos Atos dos Apóstolos pelo próprio Espírito Santo, para caracterizar a atitude de São Paulo. Tendo o primeiro Papa, São Pedro, tomado medidas disciplinares referentes à permanência no culto católico de práticas remanescentes da antiga Sinagoga, São Paulo viu nisto um grave fator de confusão doutrinária e de prejuízo para os fiéis. Levantou-se então e "resistiu em face" a São Pedro (Gal. II, 11). Este não viu, no lance fogoso e inesperado do Apóstolo das Gentes, um ato de rebeldia, mas de união e amor fraterno. E, sabendo bem no que era infalível e no que não era, cedeu ante os argumentos de São Paulo. No sentido em que São Paulo resistiu, nosso estado era de resistência. E nisto encontrava paz nossa consciência1983. No dia 10 de abril de 1974 foi lançada em Seção Livre da Folha de S. Paulo a nossa declaração de resistência à política de aproximação do Vaticano com os governos comunistas.

9. Algumas fracas reações Lançamos também com grande publicidade esse manifesto em toda a América Latina e na Espanha. Fizemos uma tal ou qual publicidade na França, na Alemanha e em Portugal, e nos Estados Unidos uma publicidade média. Nas ruas de Madri e de outras cidades da católica Espanha, distribuímos mais de cem mil volantes com a declaração 1984. 1983 A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas—Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, cit. — A resistência de São Paulo a São Pedro está descrita em Gal. 2, 11. O ponto chave para o qual Dr. Plinio assestou a resistência, assim está enunciado no manifesto: “Sim, Santo Padre, São Pedro nos ensina que é necessário ‘obedecer a Deus antes que aos homens’ (At. V, 29). Sois assistido pelo Espírito Santo e até confortado — nas condições definidas pelo Vaticano I — pelo privilégio da infalibilidade. O que não impede que em certas matérias ou circunstâncias a fraqueza a que estão sujeitos todos os homens possa influenciar e até determinar Vossa atuação. Uma dessas é — talvez por excelência — a diplomacia. E aqui se situa a Vossa política de distensão com os governos comunistas”. 1984 RR 5/1/75 — O documento foi publicado em 57 diários de onze países: no Brasil, em 36 jornais; na Argentina em La Nación, de Buenos Aires, e La Voz del Interior, de Córdoba; no Chile em La Tercera, de Santiago, El Sur, de Concepción, El Diario Austral, de Temuco, La Prensa, de Osorno; no Uruguai em El País, de Montevidéu; na Bolívia em El Diario, de La Paz; no Equador em El Comercio, de Quito; na Colômbia em El Tiempo e El Espectador, de Bogotá; na Venezuela em El Universal, El Nacional, Ultimas Noticias, El Mundo e 2001, de Caracas; nos Estados Unidos em The National Educator, de Fullerton, California; no Canadá em Speek Up, de Toronto; na Espanha em Hoja del Lunes e Fuerza Nueva, de Madri e Región, de Oviedo. Divulgaram-no, também, além de Catolicismo, no Brasil, os


608 O Cardeal Tarancón, Arcebispo de Madri, publicou um pronunciamento no Boletim da Arquidiocese de Madri (dia 24 de novembro de 1974) contra a nossa declaração, reconhecendo entretanto assistir a um bom católico o direito de discordar da política de Paulo VI. Porém considerava que o exercício desse direito importa em deslealdade para com a Santa Sé. O direito de ser desleal... Tem graça! Monsenhor Casaroli também fez uma superficial e fugidia refutação da declaração de resistência1985, através do porta-voz Federico Alessandrini, diretor da Sala de Imprensa do Vaticano*. * Nessa declaração, Alessandrini procurava desmentir em parte as palavras atribuídas pela imprensa a Monsenhor Casaroli, de que os católicos cubanos eram "felizes" sob regime socialista, e que não tinham nenhum problema com o governo cubano. Esse desmentido, que pedia ter sido feito imediatamente após a divulgação das palavras de efeito devastador atribuídas a Monsenhor Casaroli, só veio a público vinte dias depois, e num momento em que o manifesto de resistência das TFPs ia despertando reações salutares em todo o mundo. Em vista desse "desmentido", Dr. Plinio pediu ao Serviço de Imprensa da TFP distribuir um comunicado no qual afirmava que Monsenhor Casaroli só havia desmentido duas das afirmações que fez relativamente a Cuba, o que deixava de pé as outras. Além do mais, era um desmentido que dava novo fundamento à declaração das TFPs, uma vez que, para não desagradar a Castro, S. Excia. havia praticado uma política de silêncios e recuos, deixando entregues à sua sorte as desditosas ovelhas cubanas do Bom Pastor. Este comunicado da TFP foi entregue à imprensa no dia 18/5/74.

Depois calou-se por largo tempo. O desenvolvimento internacional da Resistência induziu, por fim, o ilustre Prelado — tão merecidamente intitulado o Kissinger vaticano — a romper, mais uma vez, o silêncio. Suas palavras foram um confuso amálgama de subentendidos e evasivas* 1986. * Vejamos essas suas declarações, difundidas pela agência Europa Press: “A Santa Sé coopera com todos os homens que tenham opções úteis para a paz [...]. Embora alguns acusem a Santa Sé de desequilíbrio nesta busca, o Vaticano jamais esqueceu o sentido da justiça social ou internacional. Por isto, a Santa Sé não se limita ao ensino, mas também se empenha em ações concretas, em casos de injustiça, ainda que em alguns momentos, esses tenham sido esquecidos”.

jornais e revistas das diversas TFPs e entidades afins: Tradición, Familia, Propiedad, da Argentina; Fiducia, do Chile; Cristiandad, da Bolívia; Reconquista, do Equador; Cruzada, da Colômbia; Covadonga, da Venezuela e Crusade for a Christian Civilization, dos Estados Unidos. 1985 — Ver a este propósito notícia de O Estado de S. Paulo de 17/5/74. 1986 Resistência, Tarancón e Casaroli, Folha de S. Paulo, 1/12/74.


609 Em seguida o despacho da Europa Press acrescentava: “Pelo que se refere à Ostpolitik vaticana, Monsenhor Casaroli fez ver que este ponto de vista não é seu, mas de Paulo VI”. Monsenhor Casaroli declarou ainda que era “doloroso para o Santo Padre ser atacado e não poder defender-se publicamente, ao ver algumas de suas ações criticadas por uma parte ou por outra” (cfr. Artigo “Resistência, Tarancón e Casaroli”, Folha de S. Paulo, 1°/12/74).

10. Tornou patente o fracasso da Ostpolitik É raro eu dizer que num acontecimento internacional a TFP teve alguma influência. Sou muito cuidadoso em não exagerar o papel da TFP. Entretanto, uma coisa salta aos olhos. Em todos os lugares em que difundimos esse manifesto, a boa acolhida, ou então a atonia simpática da grande maioria levou-nos a concluir que havia um clima de antipatia átona — mas real e generalizada — dos meios católicos contra a détente de Paulo VI. E este fato transmitia a imagem de um prodigioso isolamento de Paulo VI na sua política rumo à détente. A détente estava tendo êxito se considerada do ângulo das relações diplomáticas, de chancelaria a chancelaria, entre o Vaticano e Moscou. Mas não na sua verdadeira finalidade, que era a de preparar o mundo católico para receber favoravelmente um acordo e colaboração com o comunismo. Ora, os dirigentes comunistas não estavam dispostos a negociar de potência a potência com determinada pessoa, a não ser que essa pessoa representasse toda a coletividade à testa da qual juridicamente ela estava colocada. Esse cálculo eles não terão tido com Paulo VI? E não terão tomado o resultado do manifesto de resistência como um inquérito? E não terão percebido de um modo iniludível que Paulo VI não levava atrás de si a opinião pública católica? A mais banal das objetividades nos impõe que reconheçamos que houve um fracasso dessa política de Paulo VI, fracasso esse que o manifesto de resistência não causou, mas tornou patente. E, tornando patente, tornou catastrófico para a política de deténte. Isto a TFP fez. Ela arrancou o véu, ela mostrou a trampa, ela criou o caso. E se a atitude de 500 milhões de católicos pesa no mundo, a carta foi jogada, e essa carta se chamou manifesto de resistência. Posso afirmar que foi, até aquele momento, a jogada mais importante que a TFP havia feito na sua história1987. 1987 RR 5/1/75.


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Capítulo VI Pastoral de Dom Mayer contra o divórcio, seguida de estrondo publicitário sem precedentes (1975) 1. “Pelo casamento indissolúvel” 1975.

Falo agora de outra campanha contra o divórcio que fizemos em Nesse ano, a ofensiva divorcista era clara, buliçosa, espumejante*. * Essa ofensiva deu-se em torno de dois projetos divorcistas, um no Senado (do senador Nelson Carneiro) e outro na Câmara (dos deputados Rubens Dourado e Airon Rios).

Embora claramente ameaçador o risco do divórcio, a CNBB portouse com uma discrição — digamos assim — vizinha da abulia. Nos arraiais antidivorcistas sem liderança, Dom Antonio de Castro Mayer lançou sua famosa Pastoral Pelo casamento indissolúvel, avidamente recebida pelo público. Dela, os sócios e cooperadores da TFP venderam, durante dois meses, em praça pública, cem mil exemplares. Foi um raio. Um raio de vida, e não de morte, que eletrizou e reergueu a opinião antidivorcista desalentada. E à emenda divorcista faltou o número de votos exigido pela Constituição1988.

2. Conheceu o Brasil estrondo publicitário maior? À medida que o êxito de nossa ação antidivorcista se afirmava, foise delineando contra a TFP, e ganhando proporções, um estrondo publicitário que cobriu aos poucos, de modo sistemático e cadenciado, todo o território nacional*. * Nascido na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul de uma ação coordenada de alguns deputados estaduais da esquerda, de modo suspeito esse estrondo logo se espraiou por todo o País, fazendo “ferver” diversas Assembleias Legislativas de outros Estados da Federação, políticos de esquerda e sobretudo a imprensa, o rádio e a televisão.

Esse estrondo fazia lembrar os extremos de ardor polêmico, característicos de tantas controvérsias políticas do século XIX. 1988 34-75-77, Folha de S. Paulo, 25/7/77.


611 A TFP se viu agredida de súbito, através da imprensa ou do alto da tribuna, pelas mais variadas acusações. Ditas acusações, dogmaticamente afirmativas e formuladas em tom de invectiva, foram desde logo aproveitadas por certa imprensa, como instrumentos de escol do estrondo publicitário.

3. Boatos, difamações, calúnias A par desse apaixonado modo de proceder, as acusações feitas pelos referidos parlamentares se caracterizaram por uma desembaraçada falta de provas. E sobretudo por uma carência de conteúdo. Consideradas em conjunto, causava estranheza ver que, em vez de analisar nossas doutrinas e citar nossas obras, eles se restringiram a acusações vagas e imprecisas. A difamação procurava ganhar consistência não por argumentos, mas pela generalização vitoriosa do boato. Limitavam-se a invectivas os discursos e declarações à imprensa dos parlamentares que nos atacavam. Era obstinada a ausência de serenidade e objetividade na apreciação dos fatos que alegavam. S. Excias. levantavam, por exemplo, o espectro, aliás tão digno de execração, dos totalitarismos ditos de direita. E, considerando na TFP este ou aquele aspecto fugaz e secundário, forçavam a nota e procuraram ver no referido aspecto uma analogia com o espectro. Afirmada gratuitamente essa analogia, partiam desde logo para a conclusão apavorante: a TFP é nazista! O pânico, conjugado com a ânsia de nos denegrir, levava assim a conclusões totalmente alheias à realidade e que não resistiam a uma análise crítica feita com seriedade, frieza e objetividade. Com este método, qualquer pessoa ou qualquer entidade podia ser acusada mais ou menos de qualquer coisa. Era bem evidente que, com tais características, as acusações de S. Excias., devidamente analisadas por qualquer leitor mediano, ficavam suspensas no ar, à míngua de fundamentos. As acusações de que éramos nazistas ou nazifascistas eram veiculadas com uma completa carência de provas. A este propósito caberia perguntar se nossos opositores parlamentares conheciam algo da pregação cívica e da atuação pública da TFP e de seus dirigentes contra o totalitarismo de direita. Tratava-se, no entanto, de uma fonte informativa abundante, quase diríamos torrencial.


612 Preferíamos admitir que S. Excias. ignorassem esse material. Nesse caso, porém, não compreendíamos como se sentiam no direito de discorrer e levantar acusações sobre o assunto. Eram críticas indicativas, pois, de um estado de espírito efervescente, no qual o boato calunioso, misteriosamente posto em circulação, facilmente se propagava e chegava a convencer pessoas dignas de respeito. E isto a tal ponto que, aparentemente sem maior análise, tais pessoas as levavam, oralmente ou por escrito, ao conhecimento do grande público* 1989. * O estrondo se caracterizou pela falsa imputação à entidade de tendências nazifascistas, de atividades subversivas com caráter monárquico, do aliciamento e adestramento de jovens para a prática da violência, de ser paramilitar, partido político clandestino etc. Houve dias em que mais de cinquenta notícias ou comentários hostis foram difundidos pelos jornais, rádios ou emissoras de televisão do País. Tivemos de enfrentar assim o primeiro estrondo publicitário de envergadura nacional contra a TFP (cfr. Um homem, uma obra, uma gesta, cit.).

4. Estrondo de molde a derrubar um governo Foi tal a virulência desse ataque, que um jornalista comentou que esse estrondo daria para derrubar um governo 1990. Uma investigação de âmbito federal era o que o estrondo

publicitário uivava por abrir contra a TFP.

Desenvolvendo-se num clima psicológico influenciado por esse processo de preparação da opinião pública, seria tal investigação acompanhada passo a passo pelo crescer do estrondo, cada vez mais apto a obliterar os critérios de julgamento da opinião pública* 1991. * Na impossibilidade de desfazer tantas acusações, Dr. Plinio esperou serenamente que elas tomassem amplitude. Então as respondeu, uma por uma, no extenso manifesto A TFP em legítima defesa, publicado em Seção Livre primeiramente na Folha de S. Paulo de 21, 25 e 30 de maio de 1975, e depois na imprensa diária de nossas principais cidades. Catolicismo n° 294, de junho de 1975, transcreveu as três partes do manifesto numa publicação só. De tal modo as acusações contra a TFP eram vazias de conteúdo, que a CPI da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, origem de todo esse estrondo, evitou de elaborar um relatório final, deixando tudo no ar. Explicando — dez anos depois — por que isso se deu, o deputado Rubi Diehl, encarregado do relatório, declarou ao jornal Zero Hora, de Porto 1989 A TFP em legítima defesa, Folha de S. Paulo, 21, 25 e 30/5/75. 1990 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 1991 A TFP em legítima defesa, Folha de S. Paulo, 21, 25 e 30/5/75.


613 Alegre: “Não foi feito relatório, porque a conclusão seria pelo arquivamento. E se concluíssemos pelo arquivamento, marcaríamos um tento para eles, para a TFP” (Zero Hora, 21/7/85). Segundo a mesma notícia de Zero Hora, o deputado Rubi Diehl ponderou ainda que, após as investigações, a CPI não teria como “indiciar os membros da TFP por delitos”. E, assim, sem se “apurar nada”, tudo ficaria limitado ao mundo da fantasia. Zero Hora concluiu a informação com o seguinte comentário: “O estarrecedor é que essa CPI tão badalada seja a única, até hoje, na Assembleia Legislativa, que não teve um relatório final” (idem). E o mesmo deputado Rubi Diehl voltou a afirmar, em abril de 1986, que, concluída a CPI, “não ficou provada qualquer atividade criminal exercida pela TFP” (Zero Hora, 9/4/86).

* Todos os raios caíram sobre nós, mas todas as nuvens se desfizeram sobre nossas cabeças. Nós rezamos e nos defendemos. Tudo passou e continuamos a progredir. E a trombeta de nossos adversários, que era imensa, naquela ocasião perdeu a sonoridade1992.

Capítulo VII “Não se iluda, Eminência”: mensagem ao Cardeal Arns (1975) 1. CNBB contra qualquer tipo de repressão ao comunismo Se no âmbito internacional ia a velas soltas a Ostpolitik vaticana, no âmbito brasileiro tivemos de enfrentar uma certa política de direitos humanos também incrementada por elementos do Episcopado, numa linha em geral favorecedora do comunismo. Proclamando-se a justo título defensora da dignidade e dos direitos humanos, e denunciando abusos que, admitindo-se que tenham sido como os descrevia aquele órgão eclesiástico, realmente mereciam categórico repúdio e urgente remédio, a CNBB adotava entretanto uma inexplicável atitude de hostilidade para com a repressão em si mesma, e contra os órgãos que a executavam. Esse procedimento, aliás, se conjugava com o fato de que a 1992 SEFAC 15/1/76.


614 repressão interna ao comunismo nos meios católicos, estabelecida pelo inesquecível Pio XII no Decreto da Sagrada Congregação do Santo Ofício de 1º de julho de 1949, estava em inteiro desuso no Brasil. Nessas condições, não espanta que no fundo da alma simpatizasse com a inteira imobilização da repressão civil quem, como a CNBB, assumia a responsabilidade, no âmbito eclesiástico, pela inteiríssima imobilidade da repressão canônica 1993.

2. Nossa posição diante da política de repressão no regime militar O regime militar havia seguido uma política anticomunista que nós não teríamos adotado. Cheguei mesmo a escrever, nos primeiros anos do governo militar, uma carta ao Presidente Castelo Branco a respeito desse ponto*. * Essa carta, datada de 13 de janeiro de 1967, criticava a lei de imprensa enviada pelo governo para debate no Congresso (cfr. Catolicismo n° 194, fevereiro de 1967).

Eu considerava que não era de boa tática anticomunista arrochar a imprensa, e proibi-la de fazer propaganda pró-comunista. Nem de proibir os comunistas de fazer a sua propaganda. Isto porque, assim, o perigo deixava de se mostrar. E deixando de se mostrar, anestesiava o anticomunismo. O anticomunismo deixava de tomar um caráter doutrinário elevado, para ser apenas uma repressão policial. E, como todas as repressões policiais, propensas frequentemente a abusos. Nós achávamos que era melhor dar liberdade a eles em tudo aquilo que não fosse recurso às armas para subverter, pela força, a ordem existente. Castelo Branco até recebeu bem essa carta, convocou-nos para uma audiência, disse que estava de acordo, mas tudo ficou no ar. Depois saíram as leis de repressão ao comunismo. Essas leis nunca as elogiamos. Não podíamos criticar, porque a imprensa não publicava críticas ao regime. Mas a vários militares graduados que eram amigos meus, eu disse o que estou dizendo*. * Quando saiu a Lei de Segurança Nacional (decreto-lei nº 314, de 13 de março de 1967), em pleno regime militar, Dr. Plinio se manifestou contrário. E pediu sua refusão ou revogação. Seu pronunciamento teve grande repercussão e foi publicado pela Folha de S. Paulo de 22/3/67: “Nada mais eficaz para persuadir a quem quer que seja da necessidade de tal refusão, do que a análise — ainda que sucinta — de alguns dos dispositivos do referido diploma. Por exemplo, reza o seu art. 48: ‘A prisão 1993 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.


615 em flagrante delito ou o recebimento da denúncia, em qualquer dos casos previstos neste decreto-lei, importará, simultaneamente, na suspensão do exercício da profissão, emprego em entidade privada, assim como de cargo ou função na administração pública, autarquia, em empresa pública ou sociedade de economia mista, até a sentença absolutória’. “Assim, basta que seja recebida pelo Juiz a denúncia (o que de nenhum modo quer dizer que o crime e sua autoria estejam cabalmente provados) e já uma sanção severa se descarrega sobre o acusado. Essa sanção poderá durar por tempo indeterminado, pois, quando uma ação se inicia, é quase impossível prever quanto tempo levará para percorrer todos os seus trâmites, tantas vezes tumultuados por imprevistos de toda ordem. Sujeitar assim uma pessoa possivelmente inocente a uma punição gravíssima, é contrário aos mais fundamentais princípios da Moral e do Direito, os quais preceituam a iliceidade de qualquer castigo aplicado ao inocente. “Outros reparos, também graves, poderiam ser feitos a mais de um dispositivo do decreto-lei n° 314. “Diante de tanta severidade, oposta à nossa formação jurídica e à índole de nosso povo, fica-se a perguntar qual o interesse público que a justifique. “A Lei de Segurança nacional figurará provavelmente, aos olhos dos que a apoiam, como um remédio heroico e amargo, a ser imposto na presente conjuntura do País. “Precisamente aí está, a meu ver, a incógnita. O único mal que me parece proporcionado com a gravidade do remédio, isto é, com o caráter draconiano da lei, é o comunismo. E ainda assim haveria que expungir dela algumas disposições manifestamente injustas. “No Brasil, ninguém há que se oponha ao comunismo com intransigência tão constante e meticulosa quanto a TFP. Somos, pois, inteiramente insuspeitos para dizer que aqui o perigo comunista — considerado enquanto consistente na implantação direta de um regime marxista — é remoto. O Partido Comunista se arrasta entre nós, desprestigiado e impopular, porque não têm faltado vozes que contra ele vêm alertando a opinião nacional, fundamentalmente cristã. “O verdadeiro perigo comunista no Brasil não resulta diretamente da atuação do Partido Comunista, porém da expansão contínua, rápida, e o mais das vezes velada, de certas formas de progressismo, rotulado de socialista ou cristão, de demo-cristianismo esquerdista etc. Ele tende a derruir o instituto da família por leis e costumes que lhe arruínem a estabilidade, e desprestigiem a autoridade paterna ou materna. Ele vai minando e mutilando gradualmente a propriedade privada por uma série de leis de índole socialista e confiscatória. “Assim, sem o perceber, por um processo semelhante ao da erosão, o País vai perdendo seu húmus cristão, e nossa civilização cristã vai-se transformando em uma civilização socialista. Por sua vez, à medida que o socialismo for-se requintando e extremando, iremos nos aproximando do comunismo. “Ora, não me parece que a lei em apreço tenha sido feita contra esse processo lento e gradual de ‘socialistização’ (que não confundo com ‘socialização’). E nem creio que ela fosse apta para deter tal processo. “Se, pois, assim é, a Lei de Segurança nacional, proporcionada quiçá a um perigo que entre nós não é próximo, põe o Brasil numa camisa de força.


616 “Desse modo parece-me que sua refusão pelas vias legais competentes, ou sua inteira revogação, corresponde ao verdadeiro interesse nacional” (cfr. Folha de S. Paulo, 22/3/67 e Catolicismo n° 196, abril de 1967).

3. Livro branco sobre a infiltração comunista: sugestão nunca acatada Por outro lado, o regime militar teve em mãos um mundo de provas da existência da propaganda comunista nos meios de comunicação social, nos seminários, e de um modo geral na classe intelectual do País. Ele poderia ter publicado isto para alertar o País sobre a atividade dessa propaganda. Cheguei a propor a pessoas chegadas ao governo que publicassem livros brancos com esse material. Isso eles nunca fizeram. Preferiram não ter uma doutrina positiva, mas apelar só para a força. O resultado é que em certo momento isso cansou, e o regime militar vergou. * Dentro desse regime militar, havia bons amigos da TFP. E havia também adversários, pessoas esquerdistas. Esses adversários em diversas ocasiões perseguiram a TFP e procuraram até fechá-la sob vários pretextos. São fatos remotos que não interessa estar lembrando aqui. Mas foram fatos que tivemos que enfrentar várias vezes 1994.

4. Postura diante da desconcertante “Declaração de Itaici” do Episcopado paulista Nesse contexto de direitos humanos, foi distribuído nas igrejas do Estado de São Paulo, no domingo de 9 de novembro de 1975, um documento subscrito em Itaici por todos os Srs. Bispos das Dioceses paulistas, intitulado Não oprimas teu irmão*. * O documento era de responsabilidade da Regional Sul I da CNBB, a qual tinha à frente o Sr. Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e faziam parte todos os Srs. Arcebispos e Bispos do Estado de São Paulo. Essa declaração foi distribuída no domingo, dia 9 de novembro, nas igrejas do Estado de São Paulo, com grande estardalhaço na imprensa.

O estudo daquele texto episcopal produziu em nosso espírito um profundo desconcerto 1995. Em 14 de novembro, a TFP divulgou pelos jornais uma mensagem ao Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns sob o título Não se iluda,

1994 Entrevista ao Professor Marcelo Lucio Ottoni de Castro (gravação), 8/3/90. 1995 Não se iluda, Eminência, O Estado de S. Paulo, 14/11/75, p. 2.


617 Eminência* 1996. * Este manifesto foi publicado em 14 de novembro de 1975 simultaneamente nos principais órgãos de imprensa de São Paulo e depois sucessivamente em outros jornais de expressão do País, chegando ao total de 31 publicações (cfr. Catolicismo n° 299-300, de novembro-dezembro de 1975).

Começamos por ressaltar que no documento havia aspectos bons. Pecaríamos contra a justiça se nos omitíssemos de os louvar, e nos cingíssemos à crítica. Por certo, os Pastores deste Estado de São Paulo cumpriam a missão sobrenatural que lhes incumbia, ao manifestarem todo o seu zelo por que fossem integralmente respeitados, entre nós, os direitos naturais da criatura humana, definidos nos Dez Mandamentos da Lei de Deus. Convinha que tal elogio ficasse inscrito logo no início da nossa mensagem, para a omissão dele não ser tida como sintoma de paixão, unilateralidade e injustiça. E tanto mais convinha quanto era precisamente uma omissão desse gênero o grande defeito que deixava perplexa a TFP, no tocante ao documento episcopal de Itaici. Todo o povo brasileiro estava consciente de que a Rússia e a China empreendiam, naqueles dias, um esforço gigantesco de conquista ideológica, política e, por fim, militar, de todas as nações. A violência, a corrupção e a miséria que infelicitaram ontem o Chile, e o exemplo de Portugal, bem à vista de nossos olhos, impediam, mesmo aos brasileiros mais desatentos, que esquecessem essa verdade*. * A Revolução dos Cravos, que a 25 de abril de 1974 derrubou o regime salazarista, levou ao poder próceres marxistas. A Reforma Agrária então aplicada provocou o colapso da produção: 1,5 milhão de hectares de terras são expropriadas, e mais de 700 mil ocupadas ilegalmente, só voltando às mãos de seus proprietários a partir de 1978. O divórcio civil foi franqueado e o aborto aprovado.

Além disso, recentes declarações das mais altas autoridades do País haviam denunciado a presença desse perigo dentro de nossas próprias fronteiras. Em seu discurso de 1º de agosto do mesmo ano, o Presidente da República, General Ernesto Geisel, havia aludido à infiltração do comunismo nos partidos políticos. Em face da subversão, o que fizeram o Cardeal Arns e os Srs. Bispos reunidos em Itaici? Deram a público o referido documento, talvez o mais enérgico da história eclesiástica brasileira (preferiríamos antes dizer o único documento 1996 Sobre o raio e o vaga-lume: final, Folha de S. Paulo, 6/1/80.


618 violento da história eclesiástica brasileira), para, de começo a fim, criticar as Forças Armadas e a repressão que estas faziam ao fascismo vermelho. Se o Episcopado paulista se tivesse mantido em posição imparcial, encareceria sobretudo o sentido profundamente cristão e patriótico da repressão ao comunismo, a necessidade e a urgência dela. Apontaria depois as falhas que em tal repressão encontrasse. Os signatários do documento de Itaici pareciam não ver isso, e seu zelo se voltou todo, não para a Pátria ameaçada, mas para a defesa dos direitos humanos de agentes da subversão, ou de pessoas suspeitas de tal. Era desconcertante tão espantosa omissão em Pastores de almas. A estes cabia certamente serem ciosos dos direitos individuais de suas ovelhas, ainda que se tratasse de subversivos ou suspeitos de subversão. Porém, muito mais lhes cabia o desvelo por todo o rebanho, isto é, a população ordeira e laboriosa que os subversivos queriam atirar na desgraça. O que era fundamental, em matéria de comunismo, é que agentes subversivos estrangeiros articulavam brasileiros transviados, para impor ao País o regime marxista, negador de todos os direitos humanos. Estávamos perplexos. Por que tais atitudes?

5. Um alerta: vai se abrindo um fosso entre o Episcopado e o povo Tínhamos razão para recear que esta pergunta, que não era apenas nossa, mas de milhões de paulistas, ficasse sem resposta. Não se iludisse, porém, S. Eminência − frisávamos em nossos comunicado. Nosso povo continuava a encher as igrejas e a frequentar os Sacramentos. Mas as atitudes como a dos signatários do documento de Itaici iriam abrindo um fosso cada vez maior, não entre a Religião e o povo, mas entre o Episcopado paulista e o povo. A Hierarquia Eclesiástica, na própria medida em que se omitia no combate à subversão comunista, ia se isolando no contexto nacional. E nos parecia indispensável que alguém dissesse ao Sr. Cardeal que a subversão era profunda e inalteravelmente impopular entre nós, e que a Hierarquia paulista tanto menos venerada e querida ia ficando, quanto mais bafejava a subversão. Preferíamos que Sua Eminência dela se inteirasse por intermédio de filhos cristãmente francos e profundamente respeitosos, a que a conhecesse


619 amanhã através da evidência dos fatos, ou da gargalhada satânica dos subversivos. E como poderiam não rir os agentes do demônio, vendo que conseguiram transformar em instrumentos da expansão comunista precisamente Pastores instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo para esmagar o poder das trevas? Como católicos, desejávamos ardentemente que tal não sucedesse. E este desejo, respeitoso e filial até mesmo na expressão franca de nossas perplexidades e nossas apreensões, motivou a nossa mensagem1997. * Em síntese, o avanço comunista em nosso País nada teve que temer da CNBB e dos que a seguem. Nestas condições, era praticamente impossível evitar que muitos católicos engajados nas melhorias sociais passassem a ver nos comunistas bons companheiros de luta, e em boa medida até companheiros de ideal. E isso os tornava vítimas naturais da propaganda comunista. Começavam por sentir-se “companheiros de viagem”, formavam uma esquerda “católica” impregnada de espírito de revolta e sedenta de reivindicações sociais. E daí chegavam a todos os desacertos do socialismo “católico”, quando não do comunismo. E assim, através do esquerdismo “católico”, eram sugados para o comunismo, arrastando consigo, como cauda, toda a área da opinião que conseguiam sensibilizar1998.

Capítulo VIII A Igreja do Silêncio no Chile: a TFP andina proclama a verdade inteira (1976) 1. Bispos resguardam marxistas dispersados Como ficara notório, o Cardeal Silva Henriquez havia deitado o peso de toda a influência da autoridade inerente a seu cargo para auxiliar a ascensão de Allende ao poder, sua posse festiva nele, e sua manutenção na primeira magistratura até o momento trágico em que o líder ateu se suicidou.

1997 Não se iluda, Eminência, O Estado de S. Paulo, 14/11/75, p. 2. 1998 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.


620 Com uma flexibilidade que não concorria para dar boa ideia dele, procurou ajustar-se, por meio de algumas declarações públicas, à ordem de coisas que sucedeu ao regime Allende. Porém, as manifestações de sua constante simpatia para com os marxistas chilenos nem por isso cessaram. Pouco antes, S. Emcia. havia celebrado a Missa de réquiem na capela de seu Palácio Cardinalício por alma de outro comunista, o "camarada" Tohá, ex-ministro de Allende, também ele um infeliz suicida. Ao ato compareceram familiares e amigos do morto (cfr. Jornal do Brasil, 18/3/74) 1999. Grande parte da Hierarquia veio resguardando de todos os modos os restos da situação derrocada. E propiciaram quanto puderam a reaglutinação destes restos, obviamente com vistas a uma nova investida vermelha2000.

2. Paulo VI e Episcopado pregam a “reconciliação” com os comunistas chilenos Neste sentido, reputei altamente poluidora a declaração da Conferência Episcopal Chilena (CEC), divulgada pelo Cardeal Silva Henriquez. Entregando à imprensa essa lamentável declaração, o Cardeal chileno informou ter recebido do Vaticano um longo telegrama exortando o Episcopado a trabalhar pela reconciliação entre os chilenos. O que importava em afirmar que essa infeliz atitude da CEC era efeito das instruções da Santa Sé 2001. A aceitação de tal meta e tal estilo acarretaria assim, na ordem concreta dos fatos, uma catástrofe para os católicos e uma vitória para os comunistas chilenos. Ora, a imprensa havia publicado um resumo da alocução de Paulo VI ao novo embaixador chileno Hector Riesle, que lhe apresentava suas credenciais. A ocasião dessa entrega de credenciais era propícia para, se o quisesse Sua Santidade, remediar tal situação. Bastava-lhe exprimir ao diplomata sua alegria por ver a nação chilena libertada do jugo de um governo que a levava a uma dupla ruína: 1) espiritual, em virtude da 1999 A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas—Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, cit. 2000 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit. 2001 Voz dos que se calam acabrunhados, cit.


621 inspiração ateia e marxista do presidente Allende; 2) material, em consequência da derrubada de dois pilares da normalidade econômica, ou seja, a livre iniciativa e a propriedade privada. Essas palavras do Santo Padre teriam, ao mesmo tempo, dessolidarizado sua sagrada e suprema autoridade da conduta pró-marxista do Cardeal Silva Henriquez, Arcebispo de Santiago. Entretanto, a alocução do Soberano Pontífice nada conteve de análogo a essas palavras, que seriam tão naturais nos lábios de um Papa*. * Nessa alocução, pronunciada em 6 de abril de 1974, o Santo Padre augurava “uma fraternidade que, superando as animosidades e os ressentimentos, e excluindo as vinganças, envolva o restabelecimento de uma autêntica e recíproca compreensão através de uma reconciliação efetiva e sincera”.

Num país dividido a fundo entre dois imensos blocos, comunista e anticomunista, o Augusto Pontífice parecia achar possível o despontar de uma era de concórdia em que, continuando uns e outros nas respectivas convicções, cessassem as "animosidades", os "ressentimentos" e as "vinganças". As palavras do Santo Padre equivaliam a indicar aos católicos chilenos uma meta e um estilo de ação que os desmobilizariam psicologicamente ante um adversário implacável, o qual havia lançado o Chile na miséria e no comunismo, e que, de seu lado, de nenhum modo se desmobilizara. E não era difícil ver que essas palavras tendiam a reproduzir, no campo interno da política chilena, uma conciliação entre católicos e comunistas análoga à que a Santa Sé vinha tentando obter, no campo diplomático, com as nações comunistas. A aceitação de tal meta e tal estilo acarretaria assim, na ordem concreta dos fatos, uma catástrofe para os católicos e uma vitória para os comunistas chilenos2002.

3. A TFP chilena proclama a verdade inteira Foram estes e outros fatos, quase incríveis de tão aberrantes, que levaram a TFP chilena a lançar o seu livro-denúncia A Igreja do Silêncio no Chile — A TFP proclama a verdade inteira*. * Sobre essas escandalosas atitudes assumidas pela grande maioria dos Bispos e do Clero andino em geral, o livro dizia a certa altura: "É impossível analisar estes fatos à luz da Doutrina Católica sem pensar nas figuras canônicas de cisma, favorecimento de heresia e suspeita de heresia: quando

2002 Resistindo, cit.


622 não, de heresia propriamente dita" (cfr. La Iglesia del Silencio en Chile - La TFP proclama la verdad entera, p. 389).

Com este livro foi dado o maior lance de resistência de uma TFP que se poderia imaginar: foi um incêndio de resistência. O livro era propriamente uma ação de resistência2003. Na Bíblia há uma expressão que, ao menos a mim, desde pequeno, me chamava a atenção, quando falava de Abel. Deus disse a Caim que o sangue de Abel, derramado por Caim, bradava aos céus clamando por vingança. É claro que o sangue não clama. Mas isto queria dizer que a cólera de Deus, vendo aquele sangue derramado que saía aos borbotões do corpo do filho honesto e fiel, bradava por vingança. Havia no Chile algo pior do que isto. Não era o crime de Caim contra Abel, mas seria semelhante a um crime de Adão contra Abel, porque era o pai que matava o filho. Era o Hierarca, o Pastor que matava as ovelhas, aproximando-as do comunismo. Esse sangue, no sentido espiritual, das ovelhas derramado bradava por vingança. Esse brado descarregou-se na voz da TFP2004.

4. Situação canônica de Pastores divorciados de sua sagrada missão Verdadeiro estudo histórico e doutrinário baseado em mais de 200 documentos, o livro da TFP chilena nos mostrava que a quase totalidade do Episcopado e uma impressionante parte do Clero daquele país coadjuvaram de modo decisivo, nas vitórias como na adversidade, a política do líder marxista Salvador Allende. Em seus últimos capítulos, estudava a situação canônica na qual se puseram esses Pastores de tal maneira divorciados de sua sagrada missão* 2005. * O livro dizia em sua conclusão que, à luz da Sagrada Teologia e da legislação canônica, não havia para os católicos o dever de seguir a orientação errônea do Episcopado: "Os católicos [...] objetivamente têm o direito e, de acordo com as circunstâncias também o dever — ainda quando sejam simples fiéis — de resistir a tais Pastores e ao Clero que os secunda [...] Entendemos por resistir: Declarar e proclamar ante o Chile e o mundo, por todos os meios lícitos a que nos autorizam o Direito Natural e a Lei Positiva, seja canônica, seja civil, em que consiste a conduta dos Hierarcas e Sacerdotes demolidores, e esclarecer qual sua gravidade, em vista do dano que ela causa à Igreja e à civilização em nossa Pátria. E opor-nos em toda a 2003 SD 10/4/76. 2004 SD 27/3/76. 2005 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.


623 medida que nos seja permitida pela Moral e pelo Direito, a que tais Hierarcas e Sacerdotes usem de seu prestígio para fazer o mal que os fatos relatados [refere-se aos numerosos fatos citados e comprovados no livro] indicam — prestígio que se torna, assim, um fruto usurpado aos sagrados cargos que ainda ocupam. [...] Sendo assim, e salvo melhor juízo, afirmamos que cessar a convivência eclesiástica com tais Bispos e Sacerdotes [demolidores] é um direito de consciência dos católicos que a julguem insuportável. Isto é, daninha para a própria Fé e vida de piedade, e escandalosa para o povo fiel" (Cfr. A Igreja ante a ameaçada da escalada comunista, Editora Vera Cruz, São Paulo, 4ª edição, julho de 1977, pp. 213 ss.). E fazia um apelo aos Eclesiásticos e teólogos andinos para que não aplaudissem esse processo demolidor da Igreja e da nação chilena, e que saissem do relativo silêncio em que estavam e se pronunciassem publicamente sobre os aspectos morais e canônicos do delicado assunto.

5. Governo Pinochet não autoriza difusão do livro nas ruas. Sucesso de livraria Eu teria gostado que a TFP chilena fizesse a difusão do livro por meio de campanha pública. Mas infelizmente eles não obtiveram autorização do governo — governo anticomunista! — para fazê-la*. * A TFP chilena foi assim coarctada em seu legítimo direito de difundir o livro em vias públicas por uma decisão governamental que evidentemente agradou muito ao Episcopado. O livro passou então a ser vendido apenas nas livrarias. Em menos de um mês foram lançadas três edições (10 mil exemplares). No gênero, constituiu um dos maiores sucessos da história editorial chilena. A imprensa deu ampla cobertura à difusão, que logo se constituiu em “tema obrigatório de comentário”, segundo a revista ¿Que Pasa? (26/2/76). As agências de notícias enviaram despachos ao exterior, que foram publicados por jornais da América Latina, Estados Unidos e Europa, transpondo inclusive a Cortina de Ferro (Cfr. Tygodnik Powszechny de Cracóvia, 28/3/76; Slowo Powszechne, 2, 3 e 4/4/76 e Kierunki, 2/5/76, ambos de Varsóvia, apud Um homem, uma obra, uma gesta, cit., pp. 271 e 272).

Mesmo assim, a repercussão de livraria foi além do que se poderia imaginar: uma saída em média de 100 livros por dia. Quer dizer, uma campanha perfeita e de grande porte2006.

6. Reações contrárias: Rádio Moscou, Arcebispado de Santiago, Nunciatura — 32 sacerdotes chilenos e mil espanhois apoiam o livro A Rádio de Moscou manifestou-se evidentemente contra o livro, e contentíssima com o Episcopado. O estilo de narrar que empregou era o estilo faccioso de quem estava encantado com as declarações que o 2006 SD 27/3/76.


624 Episcopado fizera contra a TFP*. * No total foram quatro transmissões em que, durante o mês de fevereiro de 1976, a Rádio Moscou, no programa Escucha Chile, atacava a TFP chilena a propósito do livro.

* Tiveram também início as reações dos Bispos e as correspondentes respostas da TFP chilena*. * Primeiramente, foi publicada uma nota do Departamento de Opinião Pública do Arcebispado de Santiago, em que este lamentava que o país tivesse de se ocupar com o tema de A Igreja do Silêncio (El Mercurio, Santiago, 27/2/76). Pouco depois sai outra nota do Comitê Permanente do Episcopado, acusando os autores e difusores de A Igreja do Silêncio no Chile de se terem afastado automaticamente da Igreja Católica (El Mercurio, 11/3/76). Em resposta a ambas as notas, a TFP andina afirmou que a declaração do Arcebispado insistia em ignorar o profundo conflito interior que afligia a nação pela atitude de seus Prelados, ademais de não apresentar absolutamente nenhuma refutação da obra, nem provar que fossem falsas quaisquer das suas imputações (El Mercurio, 4/3/76). E solicitava ao Comitê Permanente do Episcopado que saísse a público para dizer se os fatos expostos no livro eram ou não verídicos, se estavam ou não bem documentados, e se a análise correspondia ou não à objetividade. E concluía: "Se se responde afirmativamente a essas perguntas, a conclusão forçosa é que tais Prelados e Sacerdotes encontram-se em estado de cisma e suspeita de heresia, conforme o Direito Canônico (El Mercurio, 12/3/76).

El Mercurio publicou, com título de primeira página, uma chamada a essa resposta da TFP à Comissão Episcopal, e dentro da edição, o texto integral dela, com bastante destaque. * A declaração da Nunciatura a nosso respeito apareceu no mesmo dia naquele diário, mas com menor destaque* 2007. * O Núncio no Chile, Dom Sotero Sanz Villalba, naqueles dias acabara de franquear asilo na Nunciatura para dirigentes terroristas do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria). O que não o inibiu de sair a público com uma declaração em que rechaçava “com energia” as acusações do livro. Afirmava ele que a versão dos documentos citados era parcial. A se crer na informação de L’Unità (21/3/76), órgão do Partido Comunista italiano, que fez eco a essa atitude do Núncio, Dom Sotero teria afirmado que fazia essa declaração “depois de ter consultado a Santa Sé” (cfr. El Mercurio, Santiago, 12/3/76). Em resposta, a TFP chilena reafirmou a sua inteira e amorosa obediência ao Soberano Pontífice e a quem o representava no Chile, e ao mesmo tempo lamentava o fato de o Núncio não ter tido, antes, a preocupação de pelo menos ouvi-la ou admoestá-la, concluindo penalizada: “As portas da

2007 RR 13/3/76.


625 Nunciatura Apostólica, que recentemente se abriram com tanto desvelo e cordialidade para asilar elementos miristas do Movimiento de Izquierda Revolucionaria, terrorista, estiveram fechadas para nós” (La Tercera, Santiago, 14/3/76). Três meses depois, ainda em junho de 1976, a Conferência Episcopal difundiu nos jornais chilenos a carta a ela enviada pelo Cardeal Villot, Prefeito do Conselho para Assuntos Públicos da Santa Sé, na qual declarava que o livro A Igreja do Silencio no Chile havia causado profundo desagrado a Paulo VI, que teria visto nele “graves e inadmissíveis acusações” (La Tercera, Santiago, 3/6/76). A TFP andina, em comunicado de imprensa, reconheceu que, de fato, as acusações do livro eram “graves”. Mas, que fossem “inadmissíveis”, era o que devia ser provado (La Tercera, 8/6/76). Em contrapartida, neste mesmo mês, a TFP lançou o comunicado 32 sacerdotes declaram: “la TFP tiene razón”, noticiando o apoio recebido de 32 sacerdotes chilenos que, enfrentando prováveis sanções, tiveram a coragem de se solidarizar por escrito com o livro (La Tercera, 9/6/76). No final do ano de 1976, a TFP chilena anunciou ao público a manifestação de solidariedade de 1.000 sacerdotes espanhóis às teses do livro (El Mercurio, 22/12/76; ABC, Madri, 12/12/76; e mais 27 jornais espanhóis).

Capítulo IX O anticomunismo-surpresa de altos Prelados (1976) 1. Um anticomunismo confuso e genérico Após correr a notícia de que o livro da TFP andina estava ateando fogo no Chile, vimos aqui no Brasil uma série de Cardeais (praticamente todos, menos Dom Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, que fez declarações numa linha claramente favorável à esquerda), e Bispos começarem a se pronunciar a respeito do problema comunista, com frases confusas e genéricas contra este, não indo porém além do palavreado 2008. Essas numerosas declarações de importantes prelados vindas a público simultaneamente e com grande destaque surgiam juntas e de súbito, não se sabe por que naquele momento, depois de tantos anos de expansão do mal, impune de sanção eclesiástica. E o público católico, por isto, não sabia explicá-las2009. Há quanto tempo viam eles o comunismo se espalhando sem dizer 2008 RR 13/3/76. 2009 Sobre o anticomunismo-surpresa de altos Prelados, O Estado de S. Paulo, 7/3/76.


626 uma palavra? Por que mudaram? Que dado novo tinha havido? E por que estavam agindo agora do mesmo jeito, com exceção de Dom Arns, e aparecendo de público dizendo mais ou menos as mesmas coisas? De repente aparecem como atores que entram em um palco de teatro segurando-se pela mão e dizendo coisas de um vago perfume anticomunista2010. Esses Bispos brasileiros evidentemente ficaram sabendo da acusação que pesava sobre o Episcopado chileno. E, sobretudo, os Bispos brasileiros certamente perceberam que a denúncia chilena era a primeira de uma série análoga que poderia sair em outros países. Então, a atitude dos Cardeais brasileiros em parte se explicava: antes de sair um livro brasileiro mostrando a conivência deles com o comunismo, por antecipação colocavam-se em uma posição que tornasse um pouco mais difícil a transposição do caso chileno para o caso brasileiro. Eles poderiam retrucar: “Nós já tomamos uma atitude contra o comunismo”... 2011

2. Pronunciamentos dúbios, mas favorecedores de certo comunismo Mas os pronunciamentos episcopais tinham sido extremamente dúbios, ambíguos ou até mesmo simpáticos ao comunismo. Alguns falavam do “comunismo ateu”. Ora, dos tempos de Pio XI para cá, as coisas haviam mudado muito, e o new look era o comunismo procurar em vários lugares tomar ares de “católico”. Falar contra o “comunismo ateu” significava atacá-lo apenas debaixo de um de seus aspectos, deixando certa escapatória para ele. Outra coisa que chamava a atenção: eles davam a entender que o comunismo nascia da fome e da miséria, o que não condiz com a verdade. O comunismo pode ser agravado pela fome e pela miséria, mas ele nasce da corrupção dos costumes, nasce da maldade dos homens, nasce da irreligião. O Cardeal Dom Eugênio Sales, em sua declaração, tinha ido além, afirmando claramente que não ia se engajar numa campanha anticomunista “insana”. O que era uma campanha anticomunista insana? Numa campanha sã, ele também não se engajaria? Por que ele não fazia anticomunismo? A posição do Pastor não é ser antilobo? Se o comunismo é o lobo, por que ele 2010 SD 6/3/76. 2011 RR 6/3/76.


627 não era antilobo? Era portanto uma forma de declarar um anticomunismo que dava oportunidade, em última análise, para uma meia penetração comunista.

3. O pronunciamento da TFP Um velho provérbio ensina: “Quando se vê a barba do vizinho pegar fogo, põe-se a sua de molho”. Todas essas declarações acentuavam em mim a impressão de que eles estavam pondo a barba de molho, tomando preventivamente umas atitudes por onde a TFP não poderia dizer que eles eram uns Silva Henriques brasileiros. Diante dessa manobra, nossa tomada de atitude teria de provar ao público que não poderíamos levar a sério esse anticomunismo deles. Uma publicação nos jornais seria o meio adequado para essa atitude.. Lembro-me até do lugar em que ditei o manifesto, ao qual dei o título de Anticomunismo-surpresa de altos Prelados. Saindo de casa, quando cheguei próximo ao Estádio do Pacaembu, pedi que conduzissem o automóvel a um ponto calmo daquele bairro. Mandei parar e ali ditei essa declaração que depois saiu em nome da TFP. Essa declaração eu a limei quanto pude e a entreguei a Dr. Castilho, que possuía limas e lixas superespecializadas. No dia seguinte, comecei a ler o jornal e deparei-me com um mundo de novas declarações no mesmo sentido. Então adaptei um pouco o que eu já havia escrito. Telefonei em seguida para Dom Mayer, porque eu nunca tomava uma atitude pública desse gênero sem antes ouvi-lo. Li o documento para ele e ele o aceitou com toda a facilidade. Esse documento foi levado por Dr. Plinio Xavier e Dr. Borelli Machado a O Estado de S. Paulo e foi publicado na edição de 7 de março de 1976, na 5ª página, o que, para uma edição de domingo, era uma página muito boa*2012. * Esta declaração foi depois reproduzida em 53 jornais das principais capitais do País e também do interior. Nesse manifesto Dr. Plinio dizia: “O ambiente que, de 1960 até hoje, os comunistas mais têm procurado infiltrar, no Brasil, é o ambiente católico: Seminários, noviciados, Universidades e colégios católicos, associações religiosas, meios de

2012 SD 6/3/76.


628 comunicação social etc. [...] Isto não teria chegado a ser assim se não fosse a colaboração pública e ativa de bom número de eclesiásticos, a colaboração discreta e sabiamente dosada de um número maior deles, e a abstenção comodista da maioria. “Estas considerações levam a TFP a tomar atitude diante de numerosas declarações de importantes Prelados vindas a público simultaneamente e com grande destaque, nos últimos dias. [...] Carece de seriedade que esses pronunciamentos, reconhecendo a periculosidade do comunismo, fiquem em generalidades. [...] Não, Eminências. Não, Excelências. Isso não basta. Os católicos só tomarão a sério pronunciamentos anticomunistas de fonte eclesiástica que deem especialíssimo relevo à denúncia do perigo que avulta de modo escandaloso no campo imediatamente confiado à vigilância e à ação defensiva dos Bispos, isto é, no campo católico. [...] Tranquilizem o público anunciando-lhe um plano amplo e eficaz de erradicação do mal. E sobretudo anunciem que já teve início a execução desse plano. Então, e só então, o rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo reconhecerá no que digam tais pronunciamentos, a autêntica voz do Pastor”.

4. Desconfiança do público Pelo efeito de nossa declaração e dos pronunciamentos que se lhe seguiram, abriu-se no público uma desconfiança, e uma desconfiança particularmente dura, porque criava uma atitude de expectativa. Se os Bispos quisessem esmagar a nossa declaração, bastava serem sinceros, tomando uma série de providências contra o Clero esquerdista2013. Como podia a CNBB ignorar que havia uma séria e perigosa infiltração comunista não só no laicato católico como ainda no Clero?2014 Então, diante de nosso manifesto, o público ficou a perguntar: “São sinceros? Querem realmente combater o comunismo? Há vários clérigos esquerdistas que estão debaixo da autoridade deles. E eles não fazem nada? Eles mesmos estão se denunciando”. E ficou criada essa perplexidade.

2013 SD 27/3/76. 2014 Desconcerto desconcertante, Folha de S. Paulo, 26/4/77.


629

Capítulo X “A Igreja ante a escalada da ameaça comunista — Apelo aos Bispos silenciosos” (1976) 1. Semelhanças da ação do progressismo no Chile e no Brasil Todos esses fatos prepararam caminho para se abordar no Brasil, sob outros prismas, a denúncia que estava pegando fogo no Chile 2015. Em 1976 publiquei o livro A Igreja ante a escalada da ameaça comunista — Apelo aos Bispos silenciosos. Esse trabalho eu o quis publicar como estudo introdutório a uma condensação de La Iglesia del Silencio en Chile − La TFP proclama la verdad entera. Existia entre ambos os trabalhos íntima afinidade. Tal afinidade resultava da semelhança de situações entre o Brasil e o Chile no que concerne à atuação da Hierarquia eclesiástica. Lá, ainda mais claramente do que aqui, a maior parte do Episcopado (e não apenas setores dele, como no Brasil) trabalhou pela comunistização do país, como provava com abundância de documentos o referido livro chileno 2016.

2. Dom Casáldaliga e a Regional Sul II da CNBB O meu objetivo era fazer com que o perigo comunista, enquanto imbricado dentro da Igreja Católica, aparecesse com clareza maior do que nunca para a população. Eu notava que os católicos brasileiros tinham a noção de que essa infiltração existia. Mas faltava a eles uma explanação sistematizada que mostrasse como essa infiltração havia nascido, como estava estruturada e que possibilidades de desenvolvimento ainda possuía. Era também necessário demonstrar que ela não constituía apenas um fato isolado, mas era um perigo em marcha. Sobre tudo isto as pessoas possuíam uma ideia muito confusa 2017.

2015 SD 27/3/76. 2016 Auto-retrato filosófico, cit. 2017 SD 16/7/76.


630 * Dei a esse meu trabalho um caráter de análise marcadamente doutrinária das posições então assumidas pela Hierarquia eclesiástica no Brasil, em favor do comunismo. Por exemplo, a pregação claramente prócomunista de Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia* 2018. * Dr. Plinio focalizava de modo especial as poesias de Dom Casaldáliga. Nessas poesias, o trêfego Prelado de São Félix do Araguaia lançava maldições e imprecações contra a propriedade e os proprietários: “Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas”; chamava os proprietários de “mal-nascidos”, “prostitutos presunçosos da Mãe comum”, “gordos [...] como porcos cevados” (cfr. “Tierra Nuestra, Libertad”, Editorial Guadalupe, Buenos Aires, novembro de 1974). Em outro livro de poemas, ele se vangloriava: “Monsenhor ‘martelo e foice’? Chamar-me-ão subversivo. E lhes direi: eu o sou. [...] Tenho fé de guerrilheiro e amor de Revolução . [...] Incito à subversão, contra o Poder e o Dinheiro . [...] Creio na Internacional [...] E chamo à Ordem de mal, e ao Progresso de mentira. Tenho menos paz que ira” (cfr. “Canción de la hoz y el haz”, págs. 117 e 118). Em sua autobiografia, Dom Casaldáliga afirma: “Quanto a mim, a vida diária à luz da Fé, o cotidiano e crescente contato com os pobres e oprimidos — pelo imperativo da Caridade — me levaram à compreensão da dialética marxista e a uma metanóia política total”. Diz ainda em outro trecho: "O povo-povo — não os mandarins, não os reverendos, nem as damas, nem as famílias de posição, nem os donos — ganhou com Fidel ou com Allende ou com Mao", completando logo depois: "Procurando ser cristão, sei que posso e devo ir mais longe que o comunismo" (“Yo creo en la justicia y en la esperanza!”, Editorial Española Desclée de Brouwer, Bilbao, 1976, p. 188 — o destaque é nosso).

A pergunta que eu levantava era: como pôde um clérigo portador de tais opiniões e capaz de tais atitudes chegar a Bispo da Igreja de Deus? Ainda mais que o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, ao chegar de Roma, declarou ter ouvido de Paulo VI, a propósito de fatos do Araguaia, a seguinte frase: “Mexer com Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de S. Félix, seria mexer com o próprio Papa” (cfr. O São Paulo, 10 a 16/1/76). Ademais, como reagia a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil diante desta escandalosa explosão do espírito subversivo na pena de um Bispo católico? Vendo-se tão claramente infiltrada pela subversão, como se defendia a Hierarquia eclesiástica brasileira? Resposta incômoda de dar... 2019 * Aliás, não só Dom Casaldáliga era posto em xeque por meu 2018 Auto-retrato filosófico, cit. 2019 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.


631 livro 2020. O mesmo livro transcrevia o documento em que a Regional Sul II da CNBB, constituída por Bispos paranaenses, já antevia a tomada do Brasil pelos comunistas, e recomendava a seus colegas a capitulação e até a colaboração com o invasor* 2021. * Este pronunciamento da Regional Sul II da CNBB, composta por dois Arcebispos e dezessete Bispos do Estado do Paraná, publicada no semanário católico Voz do Paraná, de Curitiba (n° de 25 de abril a 1° de maio de 1976) sob o título A Igreja do Vietnã está disposta a sobreviver, trazia um longo histórico da implantação do comunismo no Vietnã, apresentando-a sob o prisma simpático de “libertação” do povo vietnamita. A matéria citava elogiosamente um comunicado do “Arcebispo de Ho Chi Minh” de sentido totalmente colaboracionista em relação ao comunismo (artigo O Arcebispo de Ho Chi Minh, Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 1977).

Paralelamente a essa triste evolução do Episcopado, o livro mostrava também a luta travada pelo grupo de católicos fiéis que se reuniu inicialmente em torno do Legionário, depois de Catolicismo 2022. Era o histórico da grande crise religiosa em que se debatia o Brasil, e constituía de algum modo o histórico da TFP brasileira 2023. E, embora teoricamente falando o elemento mais importante fosse o chileno (era, aliás, o que ocupava maior número de páginas), a parte que se referia ao Brasil naturalmente interessava mais ao leitor brasileiro 2024.

3. Aos Bispos silenciosos: falai! Ademais de doutrinário, debaixo de certo ponto de vista era um estudo mais histórico do que de outra natureza2025. E nele formulei um apelo veemente aos “Bispos silenciosos”2026. Por que os Bispos silenciosos? O quadro da situação eclesiástica no Brasil se apresentava da seguinte maneira. Havia, de um lado, Bispos declaradamente simpáticos ao socialismo e ao comunismo. De outro lado, notávamos um grande número dos outros Bispos, quietos, olhando para essa realidade com olhar de vidro, como que

2020 Esquerda católica: expansões e silêncios, Folha de S. Paulo, 26/12/76. 2021 Imensa orfandade sobre o Brasil, Folha de S. Paulo, 27/11/76. 2022 Auto-retrato filosófico, cit. 2023 Dedicatória colocada no livro A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, oferecido a uma personalidade de Brasília 2/6/78. 2024 SD 16/7/76. 2025 RR 9/10/76. 2026 Auto-retrato filosófico, cit.


632 não vendo nada2027. Constituíam estes últimos a “maioria silenciosa” do Episcopado, que parecia habitualmente conservadora, mas julgava que podia dispensar um estudo próprio para emitir seu julgamento. Nas Assembleias da CNBB votava ela com a minoria esquerdista, aceitando uma argumentação que não se deu o trabalho de examinar a fundo. Tal atitude, interpretada pelo grande público como expressão de alheamento às coisas temporais, ia desconcertando sempre mais 2028. Que falassem! Eram eles numerosos e dispunham de prestígio suficiente para salvar o Brasil, se simplesmente dessem ampla difusão entre os fiéis aos numerosos documentos pontifícios sobre o assunto 2029. Fiz portanto a esses Srs. Bispos uma apóstrofe: — Vede, há uma escalada do comunismo. O vosso silêncio favorece essa escalada. Neutros não podeis ficar2030. Se há “tempus tacendi”, há também “tempus loquendi”: há tempos em que convém calar, mas há tempos em que convém falar (Ecle. 3, 7). Atuem. Nós lho imploramos. Falem, ensinem, lutem. O anjo protetor de nossa Pátria os espera para os confortar ao longo dos prélios2031. * Eu mandei o nosso livro a todos os “Bispos silenciosos", e alguns até me responderam favoravelmente. Mas julguei de especial interesse a carta que Dom José Newton de Almeida 2032, Arcebispo de Brasília me escreveu. Lembro-me de que, nessa carta, uma das coisas que ele me dizia era: "Dr. Plinio, seu livro é terrível!"* * O Prelado demonstrava na missiva acentuado mal-estar: "Recebi seu livro 'A Igreja ante a escalada da ameaça comunista', acompanhado de carta, ao mesmo tempo oferecimento e indisfarçável desafio. É convite para que eu entre de público numa porfia de imensa gravidade, que deve levar mais bem à oração e a uma atitude de prudência de absoluta fidelidade aos princípios. Há calar e calar. Não tenho sido um silencioso em meio à atual agitação de

2027 SD 15/2/91. 2028 Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?, Editora Vera Cruz, São Paulo, 4ª edição,1982. 2029 Auto-retrato filosófico, cit. 2030 SD 15/2/91. 2031 A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit. 2032 — Dom José Newton de Almeida Baptista (1904-2001): Natural de Niterói-RJ, foi Bispo de Uruguaiana entre 1944-1954, Arcebispo de Diamantina entre 1954-1960 e por fim Arcebispo de Brasília entre 1960-1984. Foi também Arcebispo castrense do Brasil 1963-1990. Está sepultado na cripta da Catedral de Brasília.


633 que resultam fatos por demais dolorosos, como o caso Lefebvre de um lado, e o de Dom Adriano Hipólito, de outro. O que me preocupa é realmente calar, a menos que a fala venha a ser melhor que o silêncio". Em seguida ele afirma que lhe causou dor, não os fatos que ele já conhecia, mas a denúncia desses fatos de público, por lançar a dúvida a respeito da conduta dos Bispos que não combatiam: "Li o livro. Confesso que me impressionou e me causou dor e tristeza, não porque me trouxesse novidades, mas pelo mal que está a causar difundido largamente entre uma maioria que não sabe discernir. Longe de produzir efeito contra o que combate ─ a gente fica sem saber se o ataque é contra o comunismo, ou contra a Igreja ─ leva a dúvida, a incerteza, a uma reação lógica dos contrários, mesmo porque os extremos se tocam". E, sem levar em conta o clamoroso da denúncia feita, de um Episcopado inteiro como o do Chile se empenhar a fundo na manutenção do regime comunista em seu país, e de uma infiltração comunista no Brasil cujos paroxismos encontrava em Dom Casaldáliga o seu polo mais radical, comenta: "Ao combater o comunismo desse jeito cai-se no extremo oposto do liberalismo, e condena-se o que na intenção se quisera exaltar. Seu livro coloca 'propter intentionem', assim quero crer, a Igreja, o Papa, os Bispos, no banco dos réus e julga sem cerimônia". Dom José Newton foi assim desenvolvendo o seu pensamento, até aquela afirmação algo patética: "Dr. Plinio, seu livro é terrível! Contribui para que nossa gente, nosso bom povo, perca o amor e a confiança na Igreja. O livro perturba e divide" (carta de outubro de 1976 − cfr. SD 19/10/76).

Dom José Newton representava bem, dentro do Episcopado, a parte direitista do centro. E neste sentido, a carta dele tinha certo interesse, pois, além de ele reconhecer a importância do tema levantado por meu livro, mostrava até que ponto certas áreas silenciosas ficaram incomodadas com ele2033.

4. Das ruas de São Paulo até às “mesas do Vaticano” O livro produziu muito impacto, circulando no país inteiro 2034. Teve uma difusão realmente esplêndida2035. Tamanho foi o impacto, que o Sr. Rocco Morabito, correspondente de O Estado de S. Paulo em Roma, testemunhou que o livro podia ser visto nas mesas de trabalho do Vaticano* 2036. * Este jornalista relatou: “Em várias épocas era possível encontrar, em mesas de trabalho do Vaticano, algumas cópias do livro de Plinio Corrêa de Oliveira — A Igreja ante a escalada da ameaça comunista —, editado em São Paulo, e que contém justamente longas citações de escritos e poesias de dom Pedro” (O Estado de S. Paulo, 8/4/77).

2033 SD 19/10/76. 2034 SD 2/3/77. 2035 RR 7/5/77. 2036 Relato 8/4/77.


634 Do livro, escoaram-se quatro edições, num total de 51 mil exemplares, vendidos em 1700 cidades de 24 Unidades da Federação.

Não tenho dúvida nenhuma de que o livro se tornou um espinho atravessado na garganta da esquerda* 2037. * A contraprova disso foi a particular repercussão provocada nos meios eclesiásticos, a ponto de dar ocasião a vários comunicados de protesto (não de refutação, note-se bem). O primeiro deles (de 29/7/76) foi do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, junto com seus oito Bispos Auxiliares. O Osservatore Romano, edição em português, reproduziu esse comunicado. O segundo vinha assinado por todos os demais Bispos da Província Eclesiástica de São Paulo (de 30/9/76). Análogos pronunciamentos foram os de Dom Ivo Lorscheiter, Bispo de Santa Maria (em 11/8/76), em nome próprio. Depois como secretário geral da CNBB (em 13/8/76). Aquelas autoridades eclesiásticas não apresentaram qualquer refutação, nem no terreno dos fatos nem no da doutrina. Limitavam-se a manifestar seu desacordo em termos vagos, não raras vezes amargurados. O que contrastava com o relacionamento descontraído e "ecumênico" por elas entabulado com as mais variadas seitas religiosas e correntes sócio-econômicas (cfr. A TFP, perseguidora de Prelados católicos?, Catolicismo n° 338, fevereiro de 1979). − Toda esta controvérsia pode ser consultada em Catolicismo n° 309, setembro de 1976, e no site www.pliniocorreadeoliveira.info.

* Em Recife, segundo foi noticiado pela imprensa diária, a Cúria Metropolitana publicou no Boletim Arquidiocesano uma nota sobre a campanha que a TFP então fazia em vias públicas daquela capital. Em síntese, a nota acusava a TFP ou sua campanha: 1) De estar assumindo “atitude contestadora da atual renovação da Igreja”; 2) De haverem sido as “posições e atitudes” da TFP “suficientemente desautorizadas pela CNBB”, bem como “reprovadas e condenadas por bom número de membros do Episcopado brasileiro, como aconteceu, recentemente, em pronunciamento do Episcopado paulista”; 3) De falar a TFP “em nome da Igreja” sem ter direito para tal 2038. Em vista dessas acusações, ditei um comunicado redarguindo a nota da Cúria de Recife*.

2037 RR 7/5/77. 2038 A clareza do sim e do não, 14/8/76, apud Catolicismo nº 309, setembro de 1976.


635 * Este comunicado foi publicado no Diário de Pernambuco e no Jornal do Commercio, ambos de Recife, no dia 17/8/76. Transcrevemos aqui seus principais tópicos: “A nota da Cúria Metropolitana de Recife, vazada aliás em lamentável português, é absolutamente esquiva quanto ao ponto essencial da matéria por ela tratada. [Pois] esquiva-se cautelosamente de emitir qualquer juízo sobre o livro, e faz apenas ataques vagos à campanha. Essa omissão tira à nota qualquer seriedade. E confere à TFP o direito de pedir à Cúria Metropolitana que declare, do modo mais explícito, se no livro encontra algo de reprovável. Caso encontre, por que não o diz? Caso não encontre, por que ataca a campanha? “Muito especialmente, esta Sociedade pergunta à Cúria Metropolitana se considera conforme ao ensinamento da Igreja e à ‘atual renovação’ desta, a doutrina contida tanto no livro ‘Yo creo en la justicia y en la esperanza!’, quanto nas poesias do Bispo Dom Pedro Casaldáliga, qualificada de subversiva no livro difundido pela TFP. “A mesma pergunta faz a TFP com relação ao documento da Regional Sul II da CNBB [...], documento esse igualmente qualificado de subversivo por aquele livro. “Quanto a atitudes da CNBB desautorando a TFP, queira a Cúria Metropolitana declarar quais foram e quando ocorreram. A TFP dirá em seguida o que tem a informar sobre o assunto. “Sobre o ‘pronunciamento do Episcopado paulista’, [...] versou este sobre o mesmo livro ora difundido no Recife pela TFP. Em resposta, esta Sociedade perguntou pela imprensa ao Emmo. Cardeal-Arcebispo e aos Srs. BisposAuxiliares paulistanos se consideram irrepreensíveis do ponto de vista da doutrina católica as poesias e as reflexões de Dom Pedro Casaldáliga [e] os textos do pronunciamento da Regional Sul II da CNBB, citados no mesmo livro. “As incômodas perguntas [...] ficaram sem resposta. Sabia disto a Cúria Metropolitana de Olinda e Recife? Se o sabia, por que não o mencionou em seu comunicado? Se não o sabia, aqui está a informação. Faça a Cúria Metropolitana uso dela, explicando ao público recifense por que motivo ficaram em silêncio os Prelado paulistanos. “‘Falar em nome da Igreja’ é falar como autoridade investida por Nosso Senhor Jesus Cristo ou pelo Direito Canônico, dos poderes necessários para tal. Queira a Cúria Metropolitana informar em que página do mencionado livro a TFP se arroga indebitamente de assim proceder. Se nada encontrar no livro que justifique tal acusação, queira a Cúria Metropolitana retratála, cumprindo assim um elementar dever de justiça. “A TFP se permite dirigir, por cima da Cúria Metropolitana, essas reflexões e perguntas ao Sr. Arcebispo Dom Helder Câmara. Com efeito, o envolvimento do Prelado em problemas como os tratados em nosso livro tem sido tão frequente, que a própria temática deste comunicado está a pedir um pronunciamento pessoal dele. “A TFP redigiu o presente texto, inspirada pelo preceito do Evangelho: ‘Seja a vossa linguagem: sim, sim; não, não’ (S. Mateus 5, 37). E não pede em resposta senão a clareza do sim e do não”.


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Capítulo XI Dom Sigaud e Dom José Pedro Costa acusam Dom Pedro Casaldáliga e Dom Tomás Balduino: a reação da CNBB 1. Relatório de Dom Sigaud à Nunciatura: grande estardalhaço Entre fevereiro e maio de 1977, Dom Geraldo Sigaud, Arcebispo de Diamantina, e Dom José Pedro Costa, então Arcebispo-Coadjutor de Uberaba, denunciaram a expansão do comunismo entre os católicos brasileiros. Burburinho!2039 Convivi com Dom Sigaud longos anos, em tempos que ainda não iam tão longe. E tive ocasião de lhe apreciar de perto a inteligência e a cultura. Isto era o bastante para aquilatar quanto ele terá posto de força concludente, quer na seleção dos documentos que apresentou à Nunciatura Apostólica, quer na argumentação em que se terá esteado 2040. Um cotidiano dos de maior circulação no País, o Jornal do Brasil, publicou três páginas inteiras do relatório (em São Paulo, transcrito de ponta a ponta por O Estado de S. Paulo) em que Dom Sigaud argumentava em apoio da acusação de comunistas que dirigiu aos Bispos de São Félix do Araguaia e Goiás Velho 2041.

Pena é que em São Paulo não tenha tido igual divulgação o texto lúcido e inteligentemente matizado, preciso e episcopalmente corajoso do Sr. Arcebispo Coadjutor de Uberaba. Qualquer brasileiro que acompanhasse com olhar e coração católicos a tragédia da Igreja contemporânea no Brasil só podia sentir admiração e reconhecimento pela intervenção franca e oportuna de S. Excia.2042. A Santa Sé instaurou então um inquérito do qual incumbiu Dom José Freire Falcão, Arcebispo de Teresina. O inquérito, ao que parece, morreu no silêncio 2043.

2. Desconcerto da CNBB Outra entretanto foi a reação da CNBB. 2039 Sobre o raio e o vaga-lume: final, cit. 2040 Desconcerto desconcertante, cit. 2041 Não é, não é, não é, Folha de S. Paulo, 28/5/77. 2042 Desconcerto desconcertante, cit. 2043 Sobre o raio e o vaga-lume: final, cit.


637 Toda a atmosfera emanada do organismo episcopal a propósito da valente atitude de Dom Sigaud fazia sentir uma surpresa que tocava às raias do desconcerto. "Como, então há Bispos comunistas? E como um Bispo ousa dizer isto de dois colegas?" Era o que me parecia sentir em todas as declarações da CNBB 2044. O Cardeal Dom Vicente Scherer, Arcebispo de Porto Alegre, e Dom Afonso Niehues, Arcebispo de Florianópolis, por exemplo, deram como argumento que Dom Casaldáliga e Dom Tomás Balduino não eram comunistas... porque é inacreditável que um Bispo possa ser comunista Só isto! Quando qualquer aluno de Catecismo sabe que, individualmente, um Bispo pode cair em heresia. E, portanto, pode ser comunista. Ademais, qualquer homem medianamente informado sobre a História da Igreja conhece numerosos casos — insisto: numerosos! — de Bispos que ao longo dos séculos caíram em heresia. Por que não poderia acontecer o mesmo nos anos 70, a algum Sr. Bispo do Brasil? Esperavam realmente os dois autores dessas “refutações” a Dom Sigaud que alguém se deixasse convencer por elas? Outros Srs. Bispos reagiram de modo diferente: limitaram-se a dizer que Dom Casaldáliga e Dom Tomás Balduino não eram comunistas, simplesmente... porque não eram*. * A lista dos Prelados que assim reagiram é considerável: Cardeal Dom Aloisio Lorscheider, Arcebispo de Fortaleza e presidente da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter, Bispo de Santa Maria e secretário geral da CNBB, Dom José Maria Pires, Arcebispo de João Pessoa, Dom João Batista da Motta e Albuquerque, Arcebispo de Vitória, Dom José Brandão de Castro, Bispo de Propriá, Dom Quirino Adolfo Schmitz, Bispo de Teófilo Otoni, Dom Jaime Luís Coelho, Bispo de Maringá, Dom Frederico Didonet, Bispo de Rio Grande, Dom Moacir Grechi, Bispo do Acre-Purus, Dom Alano Pena, Bispo Auxiliar de Marabá, Dom Lelis Lara, Bispo Auxiliar de Itabira.

Dom Aloisio Lorscheider, Dom José Maria Pires e Dom Frederico Didonet acrescentaram uma pequena variante: os dois Bispos incriminados não devem ser tidos por comunistas porque eles, Dom Aloisio, Dom Pires e Dom Didonet, os conhecem pessoalmente e sabem que não o são. O que Dom Tomás Balduino e Dom Casaldáliga teriam dito em conversas privadas com Dom Aloisio, Dom Pires e Dom Didonet bastaria, portanto, para derrubar toda a argumentação séria e até impressionante de Dom Sigaud 2045. * A respeito da posição doutrinária do Sr. Bispo Dom Pedro Casaldáliga, o que eu teria que dizer estava dito de sobejo no meu estudo A 2044 Desconcerto desconcertante, cit. 2045 Não é, não é, não é, cit.


638 Igreja ante a escalada da ameaça comunista. Fui o primeiro a dar divulgação em nosso País às rimas do irrequieto Prelado. Mas Dom Sigaud, ao abordar em várias ocasiões o tema Dom Casaldáliga-Dom Balduino, omitiu qualquer referência à minha publicação. Ponho de lado a ideia de que nisto tenha entrado uma mesquinharia que em tantos anos de convívio não lhe conheci. Há de ter tido outras razões. Respeitando-as, não quis intervir no debate até o extremo limite em que meu silêncio fosse ficando inexplicável aos olhos de nem sei quantos amigos que me distinguiam com sua confiança por esse Brasil afora. Assim premido, e só depois de muito premido, acabei por falar*2046. * Dr. Plinio abordou o tema nos artigos Desconcerto desconcertante (Folha de S. Paulo, 26/4/77) e Não é, não é, não é (Folha de S. Paulo, 28/5/77). E também na entrevista concedida ao Jornal do Brasil de 8/5/77.

* Em agosto de 1977, no Correio Braziliense, Dom Antonio de Castro Mayer propõe a publicação de uma Pastoral coletiva do Episcopado brasileiro contra o comunismo. A sugestão esbarra em um muro de silêncio, e rola para o olvido 2047.

3. “Mexer com Dom Casaldáliga é mexer com o Papa” Não era crível que, sem a interferência de Paulo VI, males como esses pudessem encontrar remédio. E não se via que ele tivesse o ânimo voltado para intervir* 2048. * Lembremos mais uma vez que o Cardeal-Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, ao chegar de Roma, declarara ter ouvido do próprio Paulo VI que “mexer com Dom Pedro Casaldáliga seria mexer com o próprio Papa” (cfr. A Igreja ante a escalada da ameaça comunista, cit.).

* De então até esta data, a influência comunista nos meios católicos não deixou de crescer. Mas foi tomando facetas novas sumamente preocupantes. Uma dessas facetas era o ideal indigenista comunomissionário que despontava. Tratarei mais abaixo do tema.

2046 Desconcerto desconcertante, cit. 2047 Sobre o raio e o vaga-lume: final, cit. 2048 Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI, Editora Vera Cruz, São Paulo, 4ª ed., 1977.


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Capítulo XII Em 1977, atuação fraca da CNBB e vitória do divórcio 1. Não se poderia dizer menos nem pior Na segunda metade da década de 70, uma derradeira investida divorcista redundou na aprovação do divórcio. Em 1977, a CNBB entrou no assunto. Entrou de meio corpo na liça, melhor diríamos2049. Os pronunciamentos feitos sobre o divórcio pela CNBB como um todo, e por alguns outros Prelados a título individual, me pareceram de uma pobreza lastimável. Ou pelo menos foi de uma lastimável pobreza o que sobre eles publicaram os jornais 2050. Naturalmente, a mentalidade dos católicos era levada a confiar na iniciativa dos seus Pastores, para enfrentar as crises religiosas. E essa iniciativa se mostrou exígua em inteligência, em know-how e plena vontade de vencer. Através de tais porta-vozes − falo descontando as honrosas exceções de estilo − a voz do Brasil antidivorcista ecoou no recinto do Congresso pouco persuasiva, pouco empenhada. O know-how mandaria que, nessa emergência, o Episcopado nacional publicasse, logo quando dos primeiríssimos rumores de perigo divorcista, uma grande Pastoral coletiva, assinada pela totalidade dos Srs. Cardeais, Arcebispos e Bispos do Brasil. Uma grande Pastoral não é necessariamente uma Pastoral grande. Com concisão, o Episcopado poderia ter dado aos fiéis, nessa ocasião, uma síntese inteligente da doutrina católica contra o divórcio. Argumentação fartamente baseada na Escritura, na Tradição, no Magistério da Igreja. Linguagem simples, direta, viva. Exposição franca do pecado que comete quem vota a favor de candidatos divorcistas, ou de quem, sendo legislador, vota a favor do divórcio. Do pecado, também, cometido pelos casados que intitulam de "novo casamento" a união adulterina constituída sobre as ruínas do lar autêntico. As penas canônicas. O juízo particular e o juízo público post-mortem. Esta Pastoral deveria ser lida em partes, por ocasião de todas as 2049 34-75-77, Folha de S. Paulo, 25/7/77. 2050 Silêncio, a grande lição, Folha de S. Paulo, 25/7/77.


640 Missas em todas as igrejas, capelas, oratórios do Brasil. E seguida da comunicação de que, em consciência, no pleito, nenhum católico poderia votar em qualquer dos congressistas que se pronunciassem pró-divórcio. A lista destes seria lida de público em todas as Missas, logo depois da votação pró ou contra o divórcio, e repetida várias vezes da mesma maneira ao longo da seguinte campanha eleitoral. Soando assim na Casa de Deus todas as tubas sagradas do alarme, o povo católico seria ademais convidado a inundar o Congresso de mensagens pedindo a rejeição da reforma constitucional divorcista. Poder-se-ia alegar que seria difícil redigir com urgência a Pastoral que imagino. Mas o caso é que essa Pastoral já existia há dois anos. E circulou com brilhante êxito quando da batalha pró e contra o divórcio em 1975. Foi ela a chave que trancou as portas do Brasil ao divórcio naquela ocasião. Dom Antonio de Castro Mayer publicou-a sob o titulo Pelo casamento indissolúvel, com 64 páginas. A TFP vendeu-a em todo o Brasil, alcançando a tiragem de cem mil exemplares. Este incomparável instrumento de defesa, de já testada popularidade, o Episcopado poderia tê-lo endossado por simples decreto coletivo. Muito mais modestamente, um claro e corajoso comunicado da CNBB já poderia ter surtido pleno efeito. Teria sido um tiro. E vitorioso. Ora, desse texto, o que fez a CNBB? O que fez o Episcopado? Deixaram-no mofar na gaveta. E seguiram outras vias. O Brasil tinha ao todo 267 Bispos. Destes, apenas 104 se pronunciaram contra o divórcio. De outra parte, a quase totalidade dos que falaram − e alguns falaram muitas vezes − pouco disseram. Em lugar de substanciosas e retumbantes Pastorais doutrinárias, deixaram cair sobre o público o chuvisco ralo e desconexo de meras entrevistas de imprensa ou breves comunicados, repetindo com uma desconcertante pobreza de argumentos que eram contra o divórcio2051. Já a Assembleia da CNBB em Itaici, de fevereiro de 1977, se referiu de modo sumário e incolor a uma nota publicada em 1975, algum tanto mais dinâmica. De sorte que, para receber os salutares eflúvios desse dinamismo, o leitor de 1977 teria que ir buscar nos jornais de 1975 o que disse a CNBB... 2051 Foguetório e não bombarda, Folha de S. Paulo, 25/6/77.


641 Na nota não aparecia uma só citação do Antigo nem do Novo Testamento. Nem de Padres ou doutores da Igreja, nem de Papas ou de santos. Apenas a de "um dos nossos grandes jornais", que censurou a "pressa indecorosa" de setores do Congresso Nacional no sentido de fazer andar o divórcio. Com a devida vênia, digo que sobre o assunto não se poderia dizer menos nem pior.

2. A CNBB não quis seguir a sugestão de Dom Mayer Alta expressão da tendência diversa foi o Sr. Bispo de Campos, Dom Antonio de Castro Mayer. No dia 28 de abril de 1977, este Prelado enviou um telegrama ao presidente da CNBB com sugestões sobre o projeto de divórcio em curso na Câmara. Um confronto entre as aspirações do Prelado de Campos e o pronunciamento da CNBB mostra bem quanto divergiam as vias e as cogitações. Transcrevo da Folha da Tarde de 30 de abril daquele ano o telegrama de Dom Mayer à CNBB. O telegrama cujos sábios conselhos o alto órgão episcopal deixou de lado, para fazer precisamente o contrário. "Sendo os ilustres componentes do Senado e da Câmara Federal cônscios de que pela natureza de seu mandato, devem exprimir no Poder Legislativo os desejos e aspirações do eleitorado, estou persuadido de que não aprovarão o divórcio caso sintam que a maioria do povo brasileiro não o deseja. "A repulsa dessa notória maioria se avivará e se tornará patente caso o órgão supremo da CNBB publique largamente, e com toda a urgência, um documento mostrando que a aprovação do divórcio viola gravemente a Lei de Deus, perturba a ordem natural, prejudica a fundo a moralidade pública e privada, abala a família e arruina a nação. "Exprimo, portanto, a V. Emcia, meu desejo seja tal pronunciamento publicado pela CNBB em comunicado especial, consagrado só a essa matéria e desvinculado de considerações sobre quaisquer outros temas." Se a CNBB tivesse atendido ao pedido, teria sido para ela um dia de glória, e para o divorcismo um dia de derrota na longa batalha.


642 Mas a CNBB não quis...* 2052 * Anos depois, o Cardeal Eugênio Sales, então Arcebispo do Rio de Janeiro, viria a reconhecer publicamente que o divórcio passou porque a CNBB não lutou para impedi-lo. Disse o Purpurado: "Se a Igreja no Brasil tivesse lutado como o cardeal Motta, o divórcio não teria sido aprovado" (O Globo, 21/9/82).

3. Aprovado de modo sorrateiro, o divórcio abriu caminho para o amor livre no Brasil O andamento do projeto de divórcio se processou, em quase todas as suas fases, numa quietude que fazia esperar a derrota dele 2053. Em comunicado da TFP publicado em seção livre da Folha, bem como na imprensa diária de todo o Brasil, eu exortava os Srs. congressistas favoráveis ao divórcio a evitarem para o nosso País o trauma de uma tão grande transformação* 2054. * Esse comunicado tomou o título de Na iminência das votações divorcistas, e foi publicado na Folha de S. Paulo do dia 14 de junho de 1977, e depois na imprensa diária de todo o País. Nele Dr. Plinio, falando em nome do Conselho Nacional da TFP, alertava os antidivorcistas para algum imprevisto que pudesse saltar para dentro da liça e dar vitória ao divórcio.

Recebi de alguns parlamentares antidivorcistas pronunciamentos substanciosos. É possível que o senador Nelson Carneiro e outros divorcistas tenham feito pronunciamentos igualmente substanciosos. Mas o que deles li nos jornais também era pobre2055. O quorum parlamentar era de sóbrias proporções à vista das férias de meio do ano que se aproximavam. Parecia provável que, por falta de número, o projeto caísse. Mas subitamente, e quase à ultima hora, afluíram dos quatro pontos cardeais congressistas inesperados. Os divorcistas em maioria. E a certeza que muitos tinham, de que o divórcio não passaria, se transformou numa cruel desilusão2056. O resultado: num delírio de entusiasmo de galerias artificialmente superlotadas, o Legislativo aprovou o divórcio, enquanto a Nação continuava a cochilar junto ao quitute quente e envenenado que o Congresso lhe servira2057. 2052 Mas a CNBB não quis..., Folha de S. Paulo, 16/5/77. 2053 34-75-77, Folha de S. Paulo, 25/7/77. 2054 34-75-77, Folha de S. Paulo, 25/7/77. 2055 Silêncio, a grande lição, Folha de S. Paulo, 25/7/77. 2056 34-75-77, Folha de S. Paulo, 25/7/77. 2057 Silêncio, a grande lição, Folha de S. Paulo, 25/7/77.


643 Desta forma, a gloriosa conquista da indissolubilidade na Constituição de 1934 rolava por terra, como um anel que se solta de um dedo que definhou. No lugar do anel, abriu-se uma chaga. Foi o divórcio 2058. A partir da abolição da indissolubilidade do casamento, o matrimônio pôs-se a deslizar processivamente rumo ao amor livre no Brasil.

Capítulo XIII “Tribalismo indígena, ideal comunomissionário para o Brasil no século XXI” (1977) 1. Campanha contra os santos e missionários que catequizaram o Brasil Eu vinha notando, em livros didáticos brasileiros, uma tendência a "reescrever" a História do Brasil, reinterpretando-a no sentido de criticar a obra colonizadora portuguesa, bem como a influência civilizadora dos Missionários 2059. Tais ideologias vinham se manifestando há anos, por exemplo, nas poesias e escritos de Dom Pedro Casaldáliga, nos quais ele renegava a obra evangelizadora de santos e missionários. Não lhe escapava nem o Bemaventurado José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil 2060. Pior do que isso: certos teólogos da libertação chegaram a sustentar não só que foi um mal substituir as religiões indígenas pela católica, mas que os missionários deveriam ter-se deixado "catequizar" pelo paganismo ameríndio, o qual teria uma visão mais autêntica de certos aspectos da divindade e das relações do homem com o cosmos... Vão nesse sentido, as declarações do antigo frade franciscano Leonardo Boff, feitas para quem quiser ler (cfr. Jornal do Brasil, Caderno Ideias e Ensaios, 6/10/91). Alegações de tal gênero, as quais até há pouco teriam parecido um delírio, iam tomando tal vulto na Europa que, na cidade de Puerto Real — o porto dos Reis Católicos, perto de Cádiz (Espanha) —, a prefeitura 2058 34-75-77, Folha de S. Paulo, 25/7/77. 2059 Projeto de Constituição angustia o País, cit. 2060 — O Bem-aventurado José de Anchieta foi canonizado em 2014.


644 decidiu construir um monumento (esculpido pelo amigo de Fidel Castro, o artista equatoriano Guayasamín) de desagravo às "vítimas" do Descobrimento, e de desdouro a Isabel a Católica, a grande rainha que apoiou a expedição de Cristóvão Colombo. Monumento este que não foi executado devido a uma sadia reação da opinião pública espanhola, decorrente, em larga medida, da vigorosa campanha de repúdio promovida por "TFP-Covadonga".

2. Visão romântica da sociedade “comunista” dos índios primitivos Tendo as coisas chegado a esse ponto, já em 1977, quando tal movimento estava no início, denunciei as mencionadas ideologias no livro Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI. Nessa obra, solidamente documentada, havia uma previsão do que, precisamente, está acontecendo hoje2061. Ensina a Igreja que a via normal para o homem se salvar consiste em ser batizado, crer e professar a doutrina e a lei de Jesus Cristo. Trazer os homens para a Igreja é, pois, abrir-lhes as portas do Céu. É salvá-los. É este o fim da Missão. Ser missionário, no Brasil, é principalmente levar o Evangelho aos índios. É levar-lhes também os meios sobrenaturais para que, pela prática dos dez Mandamentos da Lei de Deus, alcancem seu fim celeste. É persuadi-los de que se libertem das superstições e dos costumes bárbaros que os escravizam em sua milenar e infeliz estagnação. Em consequência, é civilizá-los. O que pensavam os missionários “atualizados”? — Catequizar? Semear o Evangelho? Para quê? — perguntava-se a si mesma a missiologia aggiornata. O Evangelho é o antiegoísmo. E já impregnava tão completamente a esfera tribal, que não era necessário anunciá-lo às coletividades indígenas. O índio, em suma, seria muito mais um modelo para nós, do que o somos nós para ele. Razão? — As analogias entre a vida em tribo e a vida da sonhada sociedade comunista: a comunidade de bens da tribo, a ausência completa de lucro, de capital, de salários, de patrões, de empregados e de instituições de qualquer espécie. Só a tribo, a absorver todas as liberdades individuais 2061 América: esperança do século XXI, boletim da Agência Boa Imprensa, 1ª quinzena de outubro de 1992.


645 desse pequeno grupo humano não fruitivo, por isso mesmo fracamente produtivo, nem um pouco competitivo, e no qual os homens vivem satisfeitos e sem problemas, porque se despojaram de seu “eu”, de seu “egoísmo”. A comunidade sexual seria um corolário da comunidade de bens 2062. Não cabia entretanto a menor dúvida. Era bem uma sociedade de tipo comunista que transparecia nessa visão idílica do índio selvático, apresentada pela neomissiologia como ideal para o homem do século XXI 2063.

3. Inspirados no estruturalismo de Lévi- Strauss Nossos índios podiam ser qualificados de comunistas? A pergunta só podia despertar o sorriso. Do comunista, o índio nada tem. Nem a doutrina, nem a mentalidade, nem os desígnios. O estado em que ele se encontra apresenta apenas traços de analogia com o regime comunista. Por um desses jogos de coincidências que aparecem, frequentes quando se faz a comparação entre os estágios primitivos e os de decadência. Entre a infância e a velhice, por exemplo. Não é porque seja doutrinariamente contrário à propriedade privada que o primitivo tem (ou quase só tem) a propriedade comum. Pela mesma razão por que o homem da era da pedra lascada, se não usava a pedra polida, não era de modo algum porque pensasse que não a devia usar. Mas simplesmente porque não a tinha inventado. Nessa perspectiva, o índio não podia ser equiparado ao “civilizado”, que conhece a propriedade privada, a família monogâmica e indissolúvel, e tudo quanto dessas fecundas instituições nasceu e floresceu, mas tem aversão a esses troncos e a seus frutos. Este “civilizado” lhes quer pôr o machado na raiz. Em suma, uma nação indígena podia ser comparada a uma planta que não cresceu, mas ainda poderia crescer. O adversário da família e da propriedade, nostálgico do comunitarismo ou do comunismo tribal, era um demolidor... * Na realidade, porém, uma questão muito maior emergia por detrás 2062 Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI, Editora Vera Cruz, São Paulo, 4ª ed., 1977. 2063 Auto-retrato filosófico, cit.


646 do que se poderia chamar a questão neomissionária. O pensamento que os missionários brasileiros (e os estrangeiros que aqui atuavam) tinham pronunciadas afinidades, pelo menos em suas linhas gerais, com uma corrente de pensamento de profundas repercussões no campo sócio-econômico, como é o estruturalismo 2064 — com o celebérrimo Lévi-Strauss à frente2065. Para Lévi-Strauss, a sociedade indígena, por ter “resistido à História” e haver fixado a forma de viver do período pré-neolítico, era a que mais se aproximava do ideal humano. E era para esse tipo de sociedade que devíamos retornar.

4. Como foi possível introduzir-se essa filosofia na Igreja? Muitos missionários, vários deles ainda jovens, penetravam nas selvas do Brasil imbuídos, em grau maior ou menor, de progressismo e esquerdismo difusos. Não espantava, pois, que — sob a influência de tais tendências e opiniões — esses missionários tivessem formado uma noção absolutamente surpreendente acerca das condições de vida dos indígenas, marcada entre outros traços pela crueldade, pelo mais elementar primitivismo, pela mais melancólica estagnação: o índio lhes parecia um sábio, sua organização tribal uma obra-prima de sabedoria antropológica, em suma, o modelo a ser seguido pelos civilizados de nosso mundo O maior problema suscitado por esses delírios não estava nos próprios missionários, nem nos índios. Estava em saber como, na Santa Igreja Católica, pôde esgueirar-se impunemente essa filosofia, intoxicando seminários, deformando missionários, desnaturando missões. E tudo com tão forte apoio eclesiástico de retaguarda. Bastaria que tal câncer se manifestasse no setor missionário da Igreja para justificar ou até impor outra pergunta: não seria esse câncer mera metástase de outro tumor localizado em pontos mais decisivos, dentro dos organismos não missionários da Santa Igreja?2066 Estas eram perguntas que ficavam no ar, sem resposta*. * Este livro sobre o tribalismo foi um sucesso de venda. Publicado em primeira mão em Catolicismo n° 323/324, de novembro-dezembro de 1977, dele foram tiradas 9 edições, o que dá um total de 82 mil exemplares. Em janeiro de 1978, sócios e cooperadores da TFP saíram em caravanas de 2064 Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI, cit. 2065 América: esperança do século XXI, Folha de S. Paulo, 3/2/74. 2066 Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI, cit.


647 propaganda do livro, tendo percorrido, para essa divulgação, 2.963 cidades em todos os quadrantes do Brasil. Nas duas últimas edições, de 2008, comemorativas do 30° aniversário de seu lançamento, foi acrescentada uma segunda parte, na qual os jornalistas Nelson Ramos Barretto e Paulo Henrique Chaves contam o que viram em Roraima, na reserva Raposa-Serra do Sol e o que pesquisaram em Mato Grosso e em Santa Catarina. Transcrevem eles importantes entrevistas com várias personalidades e confirmam em tudo as teses do Professor Plinio Corrêa de Oliveira. Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI foi ainda proclamado como "profético" pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio de Mello, em sua declaração de voto durante o julgamento da polêmica demarcação das terras indígenas da reserva RaposaSerra do Sol em Roraima. Afirmou ele: “Também vale registrar que, em 1987, o professor Plinio Corrêa de Oliveira, autor de ‘Tribalismo Indígena — Ideal Comuno-Missionário para o Brasil no Século XXI’, diante dos trabalhos de elaboração da Carta de 1988, advertiu: ‘O Projeto de Constituição, a adotar-se em uma concepção tão hipertrofiada dos direitos dos índios, abre caminho a que se venha a reconhecer aos vários agrupamentos indígenas uma como que soberania diminutae rationis. Uma autodeterminação, segundo a expressão consagrada (Projeto de Constituição angustia o País, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1987, p. 182; e p. 119 da obra citada). “Proféticas palavras tendo em conta, até mesmo, o fato de o Brasil, em setembro de 2007, haver concorrido, no âmbito da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, para a aprovação da Declaração Universal dos Direitos dos Indígenas” (cfr. Catolicismo n° 700, abril de 2009).

Capítulo XIV Face à política de “direitos humanos” de Carter e Paulo VI (1977-1978) 1. A política de mão única de Carter: “direitos humanos” só a favor da esquerda Quando Carter subiu à presidência dos Estados Unidos, em 1977, ele procurou realizar no mundo uma espécie de Santa Aliança que julgasse da legitimidade de todos os governos contemporâneos. Seria legítimo o governo que respeitasse os direitos humanos; e ilegítimo o governo que não os respeitasse. Quando não respeitasse, mereceria ser deposto; quando respeitasse, mereceria ser mantido. Era uma questão de legitimidade que estava em cena, de uma


648 legitimidade democrática 2067. Como o esquerdismo era o grande beneficiário da onda mundial "carteriana" pró-subversivos e terroristas, era perfeitamente banal que toda a esquerda fosse simpática a ela*2068. * Em artigo que escreveu para a Folha, Dr. Plinio fazia notar que, a certo gênero de esquerdistas só lhes interessavam os “direitos humanos” dos que lutavam pela subversão, pelo comunismo, pelo caos. Quanto aos das vítimas dessas três formas ou graus de revolução, eram frios, para não dizer hostis (cfr. Psico-tornassois para o leitor usar, Folha de S. Paulo, 28/2/78).

A política em extremo concessiva do presidente Carter em relação à Rússia e satélites devia ser qualificada de esquerdismo 2069. Ele ia favorecendo todos os inimigos da América do Norte, por exemplo iniciando uma “abertura” superconcessiva em direção a Cuba2070. Mas nada fez para desmanchar a ditadura do extremismo cubano, que era, de longe, a mais terrível até então conhecida nas três Américas2071. Carter ocupava o tempo em pressionar, inspirado por não sei que propagandas 2072, todas as nações ibero-americanas do Continente, no sentido de respeitarem integralmente os “direitos humanos”, dos quais ele se arvorara em campeão mundial2073. E em torno de sua pressão, se fez uma pressão publicitária imensa . 2074

Bem entendido, os beneficiários diretos de sua ação eram os comunistas, ou suspeitos de tal, processados ou condenados nessas várias nações. Deitando os olhos naquela ocasião sobre a Ibero-América, o Sr. Carter tinha em mente os direitos humanos que, como todo ser racional, também os comunistas e congêneres sem dúvida têm. E que tinham principalmente aqueles que, em uma ou outra nação, fossem suspeitados sem fundamento. Mas o Sr. Carter não deveria perder de vista que, na sua maciça maioria, esses comunistas eram agressores da soberania das nações iberoamericanas, tenazmente atacadas, nas décadas anteriores, pela guerra

2067 RR 18/6/77. 2068 Psico-tornassol, Folha de S. Paulo, 6/2/78. 2069 O descontentamento da direita e do centro, Folha de S. Paulo, 21/7/78. 2070 Lantejoulas, farândolas, farandoleiros, Folha de S. Paulo, 21/5/78. 2071 Acesso às embaixadas, o teste decisivo, Folha de S. Paulo, 27/4/80. 2072 Enquanto Carter faz sua barulheira..., Folha de S. Paulo, 24/3/77. 2073 A Casa Branca responde, Folha de S. Paulo, 25/11/77. 2074 Enquanto Carter faz sua barulheira..., Folha de S. Paulo, 24/3/77.


649 psicológica revolucionária e pelos cometimentos cruentos de Moscou 2075. Que "direitos humanos" eram esses, então? Afinal, o que é ser homem? É só ser esquerdista? E é por isso que só os esquerdistas têm “direitos humanos”?2076 Quando tanto furor pró “direitos humanos” investia sobre governos anticomunistas, e tanto silêncio se fazia sobre governos comunistas, patenteava-se um favorecimento do comunismo. Neste caso, era realmente só em favor dos “direitos humanos” que este furor soprava?2077

2. Manifesto da TFP norte-americana Sobre isto, tive ocasião de conversar com os diretores da TFP norteamericana e repassar a eles algumas notas a respeito dessas manobras de Carter. Nessas notas eu comentava que Carter se colocava, com sua postura, mais ou menos como um pontífice de uma moral nova (quem fala em direitos humanos fala numa moral) e se arvorava em intérprete dessa moral internacional. Ele é que sabia qual era a extensão dos “direitos humanos”. Ele é que conhecia o catálogo completo desses direitos. Ele é que devia decretar a deposição ou a manutenção dos governos em função desses direitos, como Presidente dos Estados Unidos. Era portanto uma espécie de onipotência que ele exercia sob o pretexto de democracia. E nesse auge de realização de forma democrática, encontrávamos então uma espécie de autocracia eletiva. Enquanto ele estivesse no cargo, muito mais do que o presidente de uma superpotência, ele seria o legislador de uma certa moral e o juiz que verifica a infração e decreta a pena. Nós ficávamos portanto em presença do oposto dos próprios princípios dos direitos humanos, segundo os quais cada nação é soberana etc. etc. Era um raciocínio que a mim me parecia irretorquível. * Mandei isso à TFP norte-americana, que redigiu um documento cujo título diz tudo: “Direitos humanos na América Latina — o utopismo democrático de Carter favorece a expansão comunista”. 2075 A Casa Branca responde, Folha de S. Paulo, 25/11/77. 2076 Psico-tornassois para o leitor usar, Folha de S. Paulo, 28/2/78. 2077 Imparcialidade faceira ante tema macabro, Folha de S. Paulo, 9/4/77.


650 O estudo da TFP norte-americana observava que a administração Carter se outorgara o direito de definir, dogmaticamente, como se fosse uma espécie de Vaticano infalível e com validade absoluta para todos os povos, grande número de pontos controvertidos, determinando a natureza das liberdades civis que todas as nações deviam aceitar”. Aconselhei-os a que entregassem tal estudo aos membros de ambas as Casas do Congresso norte-americano, como também ao Departamento de Estado e a personalidades influentes da vida pública dos Estados Unidos. * No escritório de Direitos Humanos que funciona no Departamento de Estado, o manifesto foi entregue pessoalmente. Era o nitrato de prata posto no ponto dolorido. No ato da entrega, o chefe do escritório recebeu o documento displicentemente, sem maior interesse. Quando leu as primeiras linhas, mudou de atitude. Gritou para um funcionário e disse: "Fulano, venha ver isto aqui". E pediu a esse funcionário para tirar três cópias, sendo uma para ele. Perguntou em seguida o que era a TFP e tomou notas. Ou seja, de tal maneira percebeu que esse era o ponto dolorido, que ao ler as folhas acendeu os holofotes. Foi portanto um serviço insigne da TFP norte-americana. A partir de maio de 1977, nós, aqui no Brasil, e as demais TFPs do continente americano fizemos evidentemente larga divulgação desse documento*2078. * Chancelarias latino-americanas, que se encontravam pressionadas por Carter, começaram a lhe opor vários dos argumentos contidos no estudo da TFP norte-americana. O que deixou em má postura a tal política caolha de “direitos humanos” do presidente norte-americano.

3. Surpreendente intervenção de Paulo VI Nesse contexto, ocorreu no dia 4 de julho de 1977 a audiência para a entrega das credenciais do embaixador brasileiro, Sr. Expedito de Freitas Resende, a Paulo VI, no decurso da qual o Pontífice respondeu às palavras de saudação do diplomata mediante uma muito comentada alocução. No dia 5, a imprensa brasileira publicava o texto de Paulo VI, e as primeiras repercussões à alocução de S.S. começaram a se esboçar com 2078 RR 18/6/77.


651 respeitosa e prudente lentidão em nosso ambiente*. * A alocução do Pontífice causou mal-estar em largos setores da opinião nacional. A edição de 5 de julho do jornal O Estado de S. Paulo publicava a notícia na primeira página. O texto dizia: “O Papa Paulo VI [...] advertiu veladamente o governo brasileiro contra arbitrariedades ou violações dos direitos humanos ocorridas no País. [...] Paulo VI lembrou que ‘a busca da eficácia (na condução da política econômica) e a preocupação de garantir a necessária ordem pública’ não devem criar ‘situações arbitrárias ou a violação dos direitos imprescritíveis da pessoa humana’. “Em Brasília, a advertência de Paulo VI foi recebida com estranheza. [...] O governo não imaginava que o Papa Paulo VI tomaria a decisão de dar início, em nome da Igreja, a essa nova fase da polêmica com o regime brasileiro”. [...] “As informações oficiais são de que [...] a reação mínima, no entanto, seria considerar ‘inoportunos e incabíveis’ os comentários de Paulo VI sobre o problema dos direitos humanos no Brasil”.

Entretanto, o diário romano L’Unità, órgão do Partido Comunista Italiano − que evidentemente não tem respeitosas lentidões a não ser no tocante a Moscou − já no dia 6 publicava uma notícia-comentário sobre as palavras do Pontífice. Muito sintomático é que elas foram de franco aplauso... Resumo quanto possível a notícia-comentário, dando maior extensão à interpretação das palavras de Paulo VI. O órgão comunista começava por pintar a seu modo a situação do Brasil. As "dificuldades no terreno político e econômico" se multiplicavam. A inflação galopava sem cessar. Diante dos descontentamentos, o governo reage pelo "método duro". A perspectiva da sucessão presidencial agrava o panorama. O governo, temeroso ante a oposição, cassa o deputado Alencar Furtado. O diálogo entre o MDB, "único partido de oposição admitido por lei" e a ARENA está paralisado. Esse panorama brasileiro descrito por L’Unità tinha não pouco de unilateral, simplista e tendencioso. Marcava-o sobretudo certo geometrismo de espírito, muito explicável em comunistas hiper-teóricos, e em estrangeiros que não conheciam o Brasil, nem nosso famoso "jeitinho". Depois de enunciado o quadro crítico, capciosamente apresentado como dramático, L’Unità afirmava, esfregando as mãos de contente: "Numa situação atravessada por tantos motivos de tensão, as palavras pronunciadas por Paulo VI [...] se tornaram facilmente um elemento do debate interno nos ambientes da ditadura e entre aqueles que se opõem a ela". Neste ponto, L’Unità viu claro. As palavras do Pontífice eram de


652 molde a só aumentar as tensões existentes entre nós. Se elas tivessem sido pronunciadas por um Pio XII ou um Pio XI, talvez lograssem até − sem que o "jeitinho" o pudesse então impedir − pôr o Brasil em convulsão. L’Unità prosseguia citando como exemplo da força tensiva da alocução de Paulo VI o seguinte tópico: "A busca da eficiência e a preocupação de garantir a necessária ordem pública não devem criar situações de arbítrio ou de violação dos direitos imprescritíveis da pessoa humana". Como poderia não ser criadora de tensão, num país católico e por isso mesmo sensível a toda palavra procedente da Cátedra de Pedro, tal chamada à ordem, dirigida ao nosso governo na pessoa de seu embaixador? Se a Santa Sé possuía provas de violação dos chamados "direitos humanos" (direitos naturais do homem como criatura de Deus, e direitos do cristão, diriam Pio XII, Pio XI e todos os seus antecessores, evitando qualquer concessão ao linguajar laico), como seria santo e adequado que as fizesse chegar confidencialmente a nosso governo. Se este não desse atenção a essas provas, a Santa Sé então as pusesse em mãos do Episcopado brasileiro, para que este, por sua vez, as fizesse valer junto ao governo, e se necessário junto à opinião pública. Nada mais justo. Se, por fim, nenhuma dessas medidas surtisse efeito, e a Santa Sé se visse reduzida a um grande protesto público, que o fizesse. Mas — sempre postas as provas indispensáveis — esse protesto só poderia ser aceito como um nobre, imparcial e paterno gesto de solicitude pastoral, se antes o Pontífice condenasse com ênfase proporcionalmente muito maior as inomináveis atrocidades cometidas por outros governos, especificamente os governos comunistas2079. Destas atrocidades eram exemplos as repressões exercidas naqueles dias contra os dissidentes russos. Bem como a chacina que o governo comunista da Etiópia cometera matando trinta mil oposicionistas* 2080. * Dessa chacina, o jornal O Estado de S. Paulo informava, no mesmo dia (5/7/77) em que noticiou a alocução de Paulo VI ao embaixador brasileiro: “Cerca de 30 mil civis — na maioria estudantes, professores e camponeses, contrários à orientação marxista do novo governo — foram mortos na Etiópia desde a tomado do poder pelos militares”. A Anistia Internacional dava um detalhe lúgubre: os corpos de mil estudantes massacrados em Adis Abeba haviam sido abandonados pelo governo comunista nas calçadas da cidade e serviam de pasto às hienas. 2079 Diário comunista romano aplaude Paulo VI, Folha de S. Paulo, 16/7/77. 2080 O Papa analisa a situação no Brasil - Telegrama da TFP a Paulo VI, Folha de S. Paulo, 12/7/77.


653 Sobre isto Paulo VI não havia dito uma palavra: nem contra a repressão dos dissidentes russos nem contra o massacre na Etiópia.

Como as mais clamorosas barbaridades continuavam sendo praticadas por regimes comunistas, com cujos dirigentes a Santa Sé estava em franca détente, a pergunta que saltava ao espírito era: por que escolheu ele o Brasil para essa repreensão? Por quê? E ainda uma vez, por quê? O órgão comunista italiano não precisava de dons proféticos para prever que as perplexidades nascidas desta grave interrogação haveriam de aumentar as tensões entre nós. Mas, o que o órgão comunista previu, não o previu também Paulo VI, de velha data adestrado numa das mais altas e ilustres escolas de diplomacia, que é precisamente a escola vaticana? Compreende-se a perplexidade que esta pergunta causava a qualquer católico, ou mesmo a qualquer brasileiro que possuísse no grau mais elementar o entendimento das coisas. A perplexidade aumentava quando L’Unità, estendendo para toda a América do Sul seus comentários, chegava às últimas fímbrias de suas perspectivas: "No caso dessa declaração do Papa, bem como de outras de análogo teor de Carter e de seu secretário de Estado, nota-se como as ditaduras sul-americanas, que são órfãs ideologicamente, vêem, dia após dia, secar-se a fonte de sua razão de ser ideológica e cultural. Para os países católicos e americanos [...] o presidente dos EUA e o Papa são os símbolos nos quais o poder dominante sempre quis identificar-se. Que tais símbolos falem contra as ditaduras [...] provoca nas classes dominantes efeitos de instabilidade". Daí, sempre segundo L’Unità, golpes e contra golpes entre governo e oposição. E como desfecho, a prazo médio, uma situação propícia ao comunismo. Então, diz gostosamente o jornal, fazendo suas as palavras de um político esquerdista uruguaio que cita, "tudo dependerá de nossos amigos do mundo inteiro". Pelo contexto se via que um destes, que já ia abalando o País, era Paulo VI...

4. Telegrama a Paulo VI: perplexidade ante a lamentável omissão Daí o telegrama que, na qualidade de presidente do Conselho Nacional da TFP, enviei a Paulo VI. Telegrama que foi publicado por vários diários da capital paulista e, em seção livre, pela Folha de S.


654 Paulo2081. Eu dizia neste telegrama: "Beatíssimo Padre Paulo VI Movida por sua profunda e filial veneração à infalível Cátedra de São Pedro, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), está persuadida de cumprir um dever tornando presente a Vossa Santidade suas reflexões e sentimentos acerca de pronunciamentos e atitudes de Vossa Santidade concernentes à efetivação de sagrados princípios do Direito Natural e da moral cristã no Brasil e no mundo contemporâneo. “Esta Sociedade se sente perplexa, Santíssimo Padre, ao notar que a alocução dirigida dia 4 por V. S. ao Embaixador do Brasil deixa ver sua paternal solicitude ante violações de direitos humanos que a V. S. consta haverem ocorrido por ocasião de atos de repressão contra agitadores comunistas. Mas não contém qualquer censura à violação de direitos humanos sistemática e astuciosa, que o comunismo internacional, com sede na Rússia, vem cometendo há décadas em nosso território ao instigar continuamente a luta de classes e a revolução social, com patente violação de nossa soberania. Instigação esta favorecida — como nos dói dizê-lo — pela atitude de simpatia, quando não de cumplicidade, de eclesiásticos e leigos da chamada esquerdacatólica com os manejos soviéticos. Exemplo disto são certas poesias e afirmações doutrinárias de Dom Pedro Casaldáliga, Bispo Prelado de São Félix do Araguaia. “As relações cordiais do Vaticano com o governo russo nos levam a esperar que um protesto de V. S. poderia influenciar os soviéticos no sentido de cessarem a pressão subversiva que exercem no Brasil e em toda a América Latina, a qual é sentida como um verdadeiro pesadelo pelas famílias brasileiras e dos países irmãos. Contribuindo para eliminar tal pressão, Vossa Santidade daria o seu mais valioso concurso para diminuir o perigo comunista, e tirar assim a ocasião para os excessos da repressão anticomunista aludidos por V. S. “Pedimos também vênia para dizer que se a solicitude de V. 2081 Diário comunista romano aplaude Paulo VI, Folha de S. Paulo, 16/7/77 — Esse telegrama teve repercussão internacional. Publicado em sessão livre da Folha de S. Paulo de 12/7/77, foi reproduzido em 36 órgãos de imprensa no Brasil. Nos Estados Unidos, a TFP norte-americana telegrafou ao Núncio Apostólico em Washington, expressando também a sua perplexidade. Na Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Estados Unidos, Uruguai e Venezuela, as nossas entidades coirmãs o reproduziram em jornais diários de seus respectivos países. Na Espanha, Covadonga difundiu 125 mil exemplares desse texto.


655 S., transpondo o Oceano e as fronteiras de nossa Pátria, se alarma em público pronunciamento com os já referidos excessos, esperamos que com a maior urgência V. S. manifeste de público aos governos comunistas o horror que a V. S. causam as atrocidades cometidas continuamente sobre os povos que eles dominam. Destas atrocidades são exemplos as repressões exercidas ainda nestes últimos dias contra os dissidentes russos. Bem como a chacina que o governo comunista da Etiópia cometeu matando trinta mil oposicionistas. “Sobretudo nos parecem dignos de uma alta e paterna manifestação de apoio e proteção de V. S. as infelizes famílias vietnamitas fugitivas do comunismo que vogam pelos mares do Extremo Oriente em frágeis embarcações, na maior miséria e desassistidas pelos governos não comunistas circunvizinhos, presumivelmente coarctados por alguma pressão comunista. Suplicamos, pois, um gesto de repercussão mundial de V. S. que lhes possa aliviar a triste sorte! “Rogamos respeitosamente a Vossa Santidade que nos releve se acrescentamos que o público silêncio de V. S. sobre fatos como estes nos causa a mais dolorosa perplexidade. “Levando a V. S. a expressão destes sentimentos, que estamos certos não serem só nossos, mas de incontáveis católicos do Brasil, da América Latina e do mundo inteiro, contribuímos para evitar que no seio da Santa Igreja Universal tome volume um bolsão de filhos indefectivelmente fiéis, desolados mas até o momento cronicamente silenciosos, que vai crescendo dia a dia, e que vai formando na Cristandade uma zona dolorida e relegada a uma como que catacumba, à maneira da Igreja do Silêncio por trás da Cortina de Ferro. “Pedindo as bênçãos de V. S., nos subscrevemos com toda a veneração etc.”2082. Cerca de dois meses depois, dirigi-me por telex a Paulo VI e ao Presidente Carter, pedindo-lhes que desenvolvessem, em benefício daqueles gloriosos e desafortunados navegantes vietnamitas, a poderosa atuação correspondente às altas funções que exerciam 2083. Pois o estado de desamparo em que até aqui se encontravam essas gloriosas e infelizes famílias ameaçava pôr em questão a própria

2082 O Papa analisa a situação no Brasil - Telegrama da TFP a Paulo VI, Folha de S. Paulo, 12/7/77. 2083 A Casa Branca responde, Folha de S. Paulo, 25/11/77 — O telex foi expedido no dia 20 de setembro de 1977, e em seguida publicado ou noticiado em 28 órgãos de imprensa brasileiros (cfr. Catolicismo n° 321, setembro de 1977).


656 autenticidade da campanha mundial pelos direitos humanos 2084. Com efeito, calculava-se em cerca de dois mil o número de sulvietnamitas que vagueavam pelo alto mar, amontoados em embarcações impróprias para navegar naquelas águas. E um após outro, os portos do sudoeste asiático costumavam rejeitá-los 2085. Informou a revista escocesa Approaches, de outubro de 1977, ter o Dailly Telegraph de Corpus Christi (Texas) noticiado que vietnamitas anticomunistas ali refugiados se queixaram de que 51 navios de várias nacionalidades passaram por eles sem lhes dar abrigo. O mesmo fez um porta-aviões americano da frota do Pacífico. Salvou-os afinal o naviotanque inglês Cavendish2086. Protestar em favor dos direitos humanos até mesmo de terroristas, quando autenticamente lesados: perfeito. Mas cabia uma pergunta: por que não reconhecer direitos humanos aos nobres inconformados do Vietnã? Que noção de dignidade humana era esta?2087 Bastaria a trágica e imerecida situação em que se encontravam esses verdadeiros heróis para documentar que o terror de desagradar os governos comunistas avassalava aquela extensa área, e coibia a liberdade de movimentos de nações e empresas privadas de navegação que, em condições normais, obviamente agiriam de modo oposto. Sendo o Trono de São Pedro o mais alto e possante foco de justiça e de caridade entre os homens, que Paulo VI apelasse para todos os poderes da terra ainda capazes de se condoer com essa situação, e lhes pedisse que tudo fizessem em favor daqueles desditosos filhos de S. S. Assim, a TFP dirigiu respeitosamente ao Papa seu apelo nesse sentido, certa de estar interpretando os anseios de todos aqueles para quem as palavras direitos humanos tinham um elevado conteúdo cristão*2088. * Esse veemente e respeitoso apelo foi acolhido com a maior frieza. Nada foi feito daquilo que se pedia. Só quando João Paulo II ascendeu ao Trono Pontifício é que ele fez vários apelos públicos em favor daqueles povos. Dr. Plinio enviou então um telegrama ao Núncio Dom Carmine Rocco, pedindo a ele fazer chegar a Sua Santidade a expressão de nosso comovido apoio a tais gestos (cfr. Catolicismo n° 350, fevereiro 1980).

2084 Catolicismo n° 321, setembro de 1977, p. 3. 2085 A epopeia de nobres inconformados, Folha de S. Paulo, 7/3/77. 2086 Psico-tornassois para o leitor usar, Folha de S. Paulo, 28/2/78. 2087 A epopeia de nobres inconformados, Folha de S. Paulo, 7/3/77. 2088 Catolicismo n° 321, setembro de 1977.


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Capítulo XV Brasil no clima de abertura (1979) 1. Política de larga confiança e perdão Logo depois, generalizou-se no País a convicção de que uma política de larga confiança e de perdão, visando a libertação tanto dos suspeitos como até dos culpados de subversão, abrandaria as tensões, pacificaria os espíritos e restabeleceria a paz no Brasil. Veio, então, a Abertura 2089, que teve seus inícios em 1978, ainda em plena vigência do regime militar2090. Essa “abertura” estava sendo apoiada e prestigiada pela grande maioria, se não pela totalidade do Episcopado nacional. E não foi combatida, que eu saiba, por nenhum dos Bispos residenciais brasileiros 2091. Dos trunfos que o esquerdismo trazia na mão quando cessado o regime militar, nenhum tinha, de longe, importância igual à dos avanços alcançados no período de 64 a 85, pelo esquerdismo nos meios católicos. A reação anticomunista do regime militar, excessiva em mais de um lance de repressão policial, foi ao mesmo tempo de um liberalismo ideológico quase absoluto, que permitiu aos esquerdistas se infiltrarem largamente no ensino e no mass media2092. O traço mais saliente dessa abertura política consistiu em restituir a liberdade política aos esquerdistas de todos os matizes, coibida até pouco antes em consequência do golpe de 1964. Nestes benefícios foram incluídos os que haviam sido objeto de medidas repressivas em razão de atividades subversivas e até terroristas 2093.

2. Aceitei a “abertura” política: não a pedi nem a combati A TFP não pediu a abertura política, nem tampouco a combateu. Assim que, pelo curso dos acontecimentos, tal abertura se tornou um fato, a TFP a aceitou. Em vários pronunciamentos públicos, feitos aliás em nome 2089 O desmentido categórico da TFP, Correio do Povo, Porto Alegre, 4/10/80. 2090 Projeto de Constituição angustia o País, cit. 2091 Concordo-Discordo, Folha de S. Paulo, 8/1/83. 2092 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2093 Concordo-Discordo, Folha de S. Paulo, 8/1/83.


658 individual, e não no da TFP (mas com geral consenso nas fileiras desta), empenhei-me em colaborar com a nova ordem de coisas, apresentando sugestões à vista dos riscos que − como tudo em matéria de vida pública − a abertura trazia, e a vantagem que dela poderia auferir o País 2094. Para muitos, a "abertura" era uma operação que se reduzia a seu sentido material. Isto é, ao ato de abrir as portas das prisões aos presos políticos, as fronteiras do País aos exilados. Postos todos estes em livre circulação, e ademais mimados e aplaudidos pelos meios de comunicação social, a abertura estaria completa. Segundo esta concepção rudimentar, a abertura não constituiria um benefício para o País, mas tão-só para os que, em determinado momento, atentaram contra este — ou, pelo menos, procederam de maneira que se fizessem suspeitar por tal. Alguém com vistas menos acanhadas podia objetar, com razão, que os promotores da abertura visavam muito mais do que isso. Encarada a democracia como a participação de todo o povo no governo do País, a integral reimplantação dela importaria, para cada cidadão, na efetiva abertura da parcela de poder decisório que os princípios democráticos lhe atribuíam. Democratizar era abrir. Corolário disto era que cada cidadão tinha o direito de dizer, de escrever e de fazer o que bem entendesse 2095. Liberdade em contínua expansão, e, pois, de contornos indefinidos. A muitos pareceu que, instaurada essa liberdade, estava tudo a caminho de resolver-se no País. Esqueciam-se de que as liberalizações de contornos indefinidos não criam nem consolidam nenhuma liberdade verdadeira. À medida que tendem a facultar a todos que façam quanto quiserem, essas liberalizações iriam caminhando de fato para a anarquia, e daí para uma mais terrível ditadura 2096. Dessas liberdades assim obtidas, a força de impacto esquerdista procurou tirar todas as vantagens 2097, como veremos mais adiante.

2094 TFP: bombas e abertura transviada, Catolicismo n° 358, outubro de 1980. 2095 PDQNCP, Folha de S. Paulo, 8/5/80. 2096 Código: ditadura na abertura?, Folha de S. Paulo, 16/5/84. 2097 Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?, cit.


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Capítulo XVI Teologia da Libertação: análise do documento de Puebla em artigos da “Folha” (1979) 1. Expectativa em face do novo Papa No meio desses vaivéns políticos, veio a notícia da morte de Paulo VI a 6 de agosto de 1978. Ele havia anunciado que a Igreja estava sendo vítima de um misterioso "processo de autodemolição" e que nela penetrara a "fumaça de Satanás"2098. O falecido Pontífice — ante cujos restos mortais me inclinei com a devida veneração — partia pois para a eternidade com a autodemolição em curso, e a fumaça de Satanás em expansão. O que pensaria seu sucessor sobre a autodemolição e a fumaça?2099 Em 1974 as TFPs então existentes publicaram a declaração concernente à Ostpolitik vaticana e ao conjunto da atuação de Paulo VI face ao comunismo, tão diversa da de seu antecessor Pio XII. Até então eu não conhecia, de fonte vaticana, um só pronunciamento sobre o comunismo próprio a compensar o que se poderia chamar pelo menos de unilateralidade dessa Ostpolitik2100. Os Papas até João XXIII ensinaram e agiram de tal forma que todos os católicos sabiam ser impossível tal saída (de colaboração com o comunismo), pois fundamentalmente contraditória com a doutrina e a missão da Igreja. Era fato notório que, no decurso dos Pontificados de João XXIII e Paulo VI, esta convicção se foi apagando no espírito de muitos e muitos católicos. E que não poucos chegaram a afirmar, impunemente, a conciliação entre a Religião católica e o comunismo. Qual seria, nesta matéria, a atuação de João Paulo II?2101.

2098 — Alocuções respectivamente de 7/2/68 e de 29/6/72. 2099 Clareza, Folha de S. Paulo, 16/8/78. 2100 A mangueira, o desejo e o dever, cit. 2101 E João Paulo II?, Folha de S. Paulo, 28/10/78.


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2. Em Puebla, gravíssima advertência sobre a Teologia da Libertação Foi aí que João Paulo II esteve em Puebla, México, em janeiro de 1979, para a 3ª Conferência do CELAM 2102. Ele se encontrou com os representantes dos Episcopados das 22 nações latino-americanas, e em meio a palavras de saudação e carinho, lhes fez gravíssima advertência: a Teologia da Libertação era um câncer instalado nas entranhas da catolicidade ibero-americana. E, como todo câncer, ia deitando gradualmente metástases 2103. João Paulo II mostrava que os propugnadores de uma Igreja meramente terrena tinham uma peculiar noção sobre Jesus Cristo, "não o verdadeiro Filho de Deus", mas um "profeta", um "anunciador do Reino e do amor de Deus", e mais precisamente um profeta e anunciador de um reino que por sua vez tinha peculiaridades: era um líder político em revolta contra a dominação romana, um "revolucionário" envolvido na "luta de classes", era, em suma, o "subversivo de Nazaré" 2104. Propagada inclusive por clérigos, ela inculcava quanto podia uma pastoral tendente a laicizar a ação da Igreja e a projetar para segundo plano o que deveria estar no primeiro, isto é, a catequese, a formação moral do povo cristão, a distribuição dos sacramentos, enfim, a salvação das almas. Em primeiro plano ficava a luta de classes desejada pelo marxismo. O Pontífice recomendava aos Bispos que tomassem medidas2105. A grande esperança da Igreja para o século XXI era a América Latina — tudo aqui é católico, pelo menos de nome e de intenção2106. Assim, a conferência de Puebla brilhou como uma luz nascente aos olhos de muitos. Se ela confirmasse as esperanças que ia despertando aqui ou acolá, poderia minguar o perigo do comunismo em uma das frentes que com maior eficácia tinha este utilizado: o ambiente católico. E seria possível conter essa apresentação deformada que hoje se faz da Religião para justificar o ateísmo e o coletivismo 2107.

3. Uma folha da porta é fechada, a outra permanece aberta Estudei a alocução do Pontífice em Puebla, e expus na Folha de S. 2102 RR 15/12/79. 2103 Raio, vaga-lume, silêncio, Folha de S. Paulo, 29/12/79. 2104 A mensagem de Puebla: notas e comentários — II, Folha de S. Paulo, 7/4/79. 2105 Raio, vaga-lume, silêncio, cit. 2106 Enigmas da CNBB, Catolicismo n° 350, fevereiro de 1980. 2107 Desde que se case com José, Folha de S. Paulo, 27/1/79.


661 Paulo as interrogações, e também as alegrias e esperanças que a propósito experimentei 2108. Evidentemente, essa posição de João Paulo II era de grande alcance, uma vez que os meios católicos estavam largamente infiltrados por "apóstolos" da dupla tese de que a Igreja existe somente a serviço do homem e de que só Marx aprendeu e ensinou acertadamente o que é o homem, e como servi-lo. Contudo, quem, com as noções atualizadas sobre esta matéria, lia a mensagem de João Paulo II, não podia deixar de se perguntar se nesse documento, em que era tão certa a posição antimarxista, havia também uma condenação ao regime comunista enquanto tal, abstração feita da filosofia de Marx. Pois o mais moderno sopro do comunismo consistia em admitir que um não marxista pudesse propugnar, com fundamento filosófico não marxista, o regime sócio-econômico do comunismo. Mas era livre de procurar em qualquer sistema religioso ou ateu a fundamentação filosófica que mais lhe parecesse adequada para justificar as respectivas preferências sócio-econômicas. Não havia na mensagem tal condenação. Ou seja, para o coletivismo marxista a mensagem fechava uma folha da porta. Para o coletivismo não estritamente marxista deixava a outra folha aberta2109.

4. Bispos do Brasil em face da mensagem de Puebla Em última análise, o que mais importava no caso era saber qual seria, ante a mensagem, a reação quase unânime que teriam os Bispos reunidos em Puebla 2110. Neste sentido, no Brasil a alocução de João Paulo II em Puebla fora até certa época de uma ineficácia absoluta. Podem atestá-lo todos os que presenciaram consternados o apoio dado por Bispos e padres às variadas formas de agitação e contestação, de que o País foi teatro em 1979 2111, e nos anos subsequentes, como veremos a seguir.

2108 Dizei uma só palavra, Folha de S. Paulo, 1°/7/80 — Foram cinco artigos sucessivos sobre o tema para a Folha de S. Paulo (26/3/79; 7, 14 e 26/4/79; 19/5/79). 2109 A mensagem de Puebla: notas e comentários — IV, Folha de S. Paulo, 26/4/79. 2110 A mensagem de Puebla: notas e comentários — V (final), Folha de S. Paulo, 19/5/79. 2111 Sobre o raio e o vaga-lume: final, cit.


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Parte XI Livros e Campanhas de grande repercussão na década de 1980 Capítulo I Noite Sandinista, um evento da Teologia da Libertação (1980) 1. Evento público na PUC e reuniões sigilosas em Taboão da Serra No início de 1980, já em pleno clima da “abertura” do regime militar, presenciamos em São Paulo as jornadas realizadas pela Teologia da Libertação no Teatro da Pontifícia Universidade Católica (TUCA). Portanto, na Arquidiocese do Cardeal Arns, e sob o patrocínio deste. Chegou-me a informação de que reuniões mais reservadas se realizariam em Taboão da Serra 2112, cidade próxima a São Paulo, numa antiga fazenda que pertence à Cúria, e na qual foram construídos prédios de tamanhos muito consideráveis 2113. Ali funcionava o Instituto Paulo VI (Centro de Treinamento de Líderes da Arquidiocese de São Paulo). O Congresso — cuja programação interna foi cercada de grande sigilo — contou com a participação de mais de 160 Bispos, Padres, freiras, leigos de ambos os sexos (sociólogos, economistas, agentes de pastoral, membros das Comunidades de Base) e pastores protestantes de 42 países*. * Este IV Congresso Internacional Ecumênico de Teologia foi promovido pela Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo, organização integrada por protestantes e católicos de esquerda. O tema geral do Congresso era Eclesiologia das comunidades eclesiais de base. Realizou-se de 20/2 a 2/3/80. Guardas de uma segurança privada evitavam a aproximação de estranhos.

Enquanto presumivelmente se procedia em Taboão da Serra a secretas elaborações doutrinárias e articulações táticas, realizava-se no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — TUCA (rua 2112 SD 29/2/80. 2113 Mensagem gravada a Dom Mayer, 2/3/80.


663 Monte Alegre, 1024), uma Semana de Teologia subordinada ao título A Igreja na América Latina, promovida pelo Departamento de Teologia do Instituto de Estudos Especiais da mesma Universidade. A Semana de Teologia se estendeu de 21 de fevereiro a 1º de março, com sessões públicas e diárias. Conforme declaração do Cardeal Arns, no discurso de abertura, a Semana de Teologia resultou de um pedido da Associação Ecumênica de Teólogos, que desejava “entrar em contato” com os membros das Comunidades Eclesiais de Base e movimentos populares da periferia de São Paulo. As sessões noturnas do TUCA constituíam um desdobramento do Congresso, pois os temas tratados em Taboão da Serra eram em alguma medida transmitidos aos militantes das Comunidades de Base, os quais representavam a maioria dos assistentes 2114.

2. Incitamento à violência e à guerrilha em nome da doutrina católica Nessa parte pública, mandei pessoas da TFP assistirem e colherem algumas observações. Contaram-me eles que essa sessão foi muito além de tudo quanto se podia imaginar, e tinha o calor de uma verdadeira conclamação à guerra civil2115. Aquilo foi, do começo ao fim, um incitamento à violência e à guerrilha, em nome da doutrina católica e de uma nova interpretação do Evangelho2116.

3. Dom Arns: ir para a Nicarágua, “para aprender” Escandalosa foi a sessão de 28 de fevereiro realizada no teatro da PUC, que ficou conhecida como Noite Sandinista 2117. O ponto alto da noite consistiu na entrega a Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia, de um uniforme de guerrilheiro sandinista, cuja jaqueta o Prelado vestiu no mesmo instante. Os oradores da sessão — todos personagens com participação intensa na Revolução Sandinista, ou no governo nicaraguense de então — constituíam uma equipe coesa e bem articulada. Seus discursos consistiam em apelos, ora mais ora menos explícitos, a que os espectadores — quase todos filiados a movimentos ou correntes católicas de esquerda — 2114 Na “Noite Sandinista”, o incitamento à guerrilha, Catolicismo, julho/agosto de 1980. 2115 SD 29/2/80. 2116 Mensagem gravada a Dom Mayer, 2/3/80. 2117 Acesso às embaixadas, o teste decisivo, cit.


664 redobrassem de esforços para empurrar o Brasil pelas vias a que eles conseguiram arrastar a Nicarágua. Coube ao Cardeal-Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns encerrar o ciclo de conferências no TUCA, a 1º de março. Eis suas significativas palavras, na ocasião: − “Como concluir? Não há uma conclusão. A coisa apenas começou. [...]

“Vejam esta pergunta — chega de teologia e vamos à prática: onde estão os grupos que vão para a Nicarágua, para aprender? Eu respondo: sei que, em São Paulo, há grupos se preparando e de malas prontas para partir. Até com a permissão do Arcebispo de São Paulo...” (cfr. O São Paulo, 7 a 13 de março de 1980) 2118.

Os nossos observadores gravaram todas as partes do evento, porque, como eram sessões públicas, se adotava o sistema de simplesmente pôr o gravador na mesa, até sem pedir licença do conferencista. E depois pegar o gravador e levar embora. Portanto, todo o material que temos foi obtido do modo mais honesto e correto possível.

4. Sandinismo, fruto da Teologia da Libertação e das CEBs. Larga difusão Estudando esse material, pudemos perceber que 2119 o caráter radicalmente igualitário da ideologia sandinista não deixava dúvidas de que o sandinismo, ou se identificava com o comunismo, ou se situava nos subúrbios deste. Portanto, o sandinismo era uma frente única de várias forças, nas quais ocupavam posição de destaque os “cristãos revolucionários”. Estes últimos se agrupavam, por sua vez, em uma só frente constituída por Comunidades Eclesiais de Base e movimentos análogos. Vários sacerdotes atuaram como verdadeiros pregadores e capelães da Revolução. E essa revolução eclesiástica era de índole teológica. E identificava-se com a Teologia da Libertação, que tinha por mestre o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez, participante do IV Congresso Internacional de Teologia, e um dos oradores da sessão de abertura da Semana de Teologia, presente, aliás, à “Noite Sandinista”. Em suma, estávamos postos assim em presença de uma IgrejaNova, com uma estrutura nova, com uma moral social nova, inspiradora de uma luta de classes sócio-econômica, a qual não era possível distinguir da que Marx ensinava. Essa luta, a ser travada, quando necessário, até de armas na mão. O que, tudo, a identificava assim com a subversão 2120.

2118 Na “Noite Sandinista”, o incitamento à guerrilha, cit. 2119 Mensagem gravada a Dom Mayer, 2/3/80. 2120 Na “Noite Sandinista”, o incitamento à guerrilha, cit.


665 Catolicismo ficou com a gravação da sessão (facultada, como já disse, a qualquer pessoa presente) e a publicou, com comentários meus, no número de julho-agosto de 1980. As caravanas de propagandistas da TFP divulgaram essa reportagem por todo o território nacional (36.500 exemplares). As TFPs da Argentina, Colômbia, Equador, Uruguai e Espanha reproduziram meu estudo sobre a Noite Sandinista em seus respectivos países, totalizando, com a edição do Brasil, 80.500 exemplares 2121.

5. Perguntas incômodas a Dom Pelé: resposta evasiva Durante uma dessas sessões públicas no teatro da PUC, a mesa era dirigida por Dom José Maria Pires, então Arcebispo de João Pessoa, mais conhecido no Brasil como “Dom Pelé”. A ele foi encaminhado, por um dos nossos, um conjunto de 7 perguntas que eu havia redigido. Dom José Maria Pires recebeu as perguntas, leu-as em silêncio, fez cara de muita preocupação e, na hora de responder, disse mais ou menos o seguinte: “Este é um questionário muito bem feito, mas são muitas perguntas e já é tarde. Vou tentar responder dando uma ideia geral”. Apresentou em seguida uma resposta confusa à primeira pergunta e depois não respondeu mais nada. E o público ficou ignorando as outras seis questões* 2122. * As perguntas encaminhadas a Dom José Maria Pires foram as seguintes: “1. Em Puebla João Paulo II fez expressas censuras à Teologia da Libertação. O congresso admite essas censuras como doutrinariamente coerentes com a Revelação e o Magistério da Igreja? 2. O congresso admite que os abusos denunciados por João Paulo II existiram? 3. Respondidas afirmativamente ambas as perguntas, o que o congresso faz ou pretende fazer para consertar a Teologia da Libertação e as comunidades de base? 4. O congresso pretende agradecer a João Paulo II o corretivo e exprimir a sua submissão? 5. Respondidas pela negativa as perguntas 1 e 2, o congresso pretende defender-se ante João Paulo II, ou manter-se em silêncio? 6. Em que forma seria feita essa defesa? Seria ela dada a público? 7. A defesa seria mandada a João Paulo II antes da vinda dele ao Brasil, ou os líderes brasileiros da Teologia da Libertação esperariam a vinda dele ao Brasil para uma mensagem pública, ou para pedir uma audiência com ele?”

Essas perguntas, se fossem lidas, teriam sido uma “bomba” dentro do congresso. Sem violar a lei do Estado e obedecendo às leis da Igreja, essa bomba da TFP foi posta lá dentro 2123.

2121 Auto-retrato filosófico, cit. 2122 Mensagem gravada a Dom Mayer, 2/3/80. 2123 SD 29/2/80.


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Capítulo II “Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?” (1981) 1. “Igreja e Problemas da Terra (IPT)”, uma bomba de nêutron agro-reformista Um pouco antes dessa reunião de Taboão da Serra, havia sido lançada uma verdadeira bomba de nêutron: a CNBB publicou o documento Igreja e problemas da terra (IPT), que bafejava a divisão compulsória das grandes e médias propriedades. Cento e setenta e dois Bispos aprovaram o documento 2124, o qual ecoou como um ribombo publicitário em todo o País*2125. * Esta reunião do Episcopado nacional ocorreu em Itaici de 5 a 14 de fevereiro de 1980.

Os termos do documento foram tão categóricos que facilmente poderiam dar a leitores desavisados a impressão de que ser favorável à Reforma Agrária preconizada por Igreja e problemas da terra era condição de fidelidade de todo católico à Santa Igreja* 2126. * Essa visão deturpada do dever de fidelidade às opiniões errôneas dos Bispos agro-reformistas estava bastante disseminada entre conhecidos membros do Episcopado nacional. Basta ver a seguinte declaração de Dom Moacir Grechi, então Bispo-Prelado do Acre Purus: “O empresário cristão que investe contra a reforma agrária se coloca em confronto direto com a Igreja e está em contradição absoluta com a sua fé” (Folha de S. Paulo, 29/8/85).

2. Fatos não comprovados; doutrina sem fundamento nos ensinamentos da Igreja Analisando acuradamente o documento Igreja e Problemas da Terra (IPT), como também os numerosos pronunciamentos episcopais sobre o problema fundiário no Brasil, eu me perguntei se toda essa massa de documentos estava em conformidade com os ensinamentos emanados de Roma. Pergunta legítima, pois a autoridade magisterial suprema pertence ao sucessor de Pedro. E ela se exerce diretamente sobre cada fiel. Ora, procedendo a tal confrontação, cheguei a conclusões 2124 A guerra do hissope, Folha de S. Paulo, 5/10/81. 2125 Começa a rajada, Folha de S. Paulo, 20/7/81. 2126 Guerreiros da Virgem: a réplica da autenticidade, cit.


667 preocupantes. Antes de tudo, em vários de seus tópicos, o documento Igreja e problemas da terra favorecia conclusões agro-reformistas que não encontravam fundamento nos ensinamentos tradicionais do Magistério supremo. Ou seja, nas definições impostas a todos os católicos pelo Supremo Magistério, bem como no ensinamento uniforme de seu Magistério ordinário e universal no decurso dos séculos (cfr. Henricus Denzinger, Enchiridion Symbolorum, Herder, Friburgi Brisgoviae, Editio 21-23, 1937, n°s 1683 e 1792). Ademais, verifiquei discrepâncias da posição agro-reformista da CNBB e de numerosos Bispos brasileiros com relação aos ensinamentos dos documentos pontifícios. Por fim, na apreciação das situações de fato, o documento se contentava com afirmações genéricas, apoiadas por vezes em documentação escassa, e o mais das vezes destituídas de documentação 2127. O documento fazia notória sua má disposição para com as propriedades de tamanho médio ou grande. E proclamava sua veemente opção em favor da pequena propriedade: isto é, da que pode ser integralmente aproveitada pelo trabalho de uma só família, sem a cooperação de qualquer assalariado.

3. Reformas de base Indo além, o IPT anunciava para 1981 outro documento da CNBB reivindicando uma reforma urbana, a qual seria a aplicação dos princípios fundiários agro-reformistas — por analogia — ao solo urbano. Para data posterior entrevia-se que ficava uma reforma — também análoga — das empresas industriais e comerciais, a qual figuras altamente representativas da CNBB não têm deixado de preconizar2128. Muito de passagem, notei que no documento, do ponto de vista doutrinário, havia vários traços de influência marxista. E implicitamente de desinformação (para dizer só isso) da doutrina católica 2129.

4. Direito dos católicos de opor-se à Reforma Agrária Entrementes, vinha eu elaborando, no silêncio de meu gabinete, o livro Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária? Pensado e escrito nas minhas parcas horas de lazer, ao longo de 2127 Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?, cit. 2128 Começa a rajada, cit. 2129 O cavalo, a bruxa e o filhinho, Folha de S. Paulo, 22/5/80.


668 vários meses de reflexão e de estudo, o trabalho se destinou a reivindicar, em face do IPT, meu direito de católico e de brasileiro de me opor à Reforma Agrária. Não só meu direito, mas o de analogamente discordes do IPT. Mais proprietários rurais ou urbanos, grandes tanto quanto os pequenos — na santa legítimas propriedades.

todos os intelectuais católicos ainda, o direito de todos os ou médios, de conservarem — paz de suas consciências, suas

Paralelamente comigo, trabalhou, na confecção de uma análise econômica do IPT, para ser publicada no mesmo livro, meu jovem amigo, o brilhante economista Carlos Patricio del Campo*. * Engenheiro agrônomo pela Universidade Católica do Chile e formado em Economia Agrária (Master of Science) pela Universidade de Berkeley, Califórnia (EUA).

5. Em Itaici-81, uma rotação vertiginosa: saem de pauta as reformas Ao contrário do que esperávamos de início, a elaboração de nossos estudos foi longa e complexa. Planejado para antes de Itaici-81, só saiu a lume em princípios de março de 1981*. * A 19ª Assembleia Geral da CNBB havia se realizado em Itaici (IndaiatubaSP) de 17 a 26 de fevereiro de 1981.

Quando deitamos mão à faina, supúnhamos que muito naturalmente ele levantasse — quando publicado — uma celeuma proporcionada ao categórico de suas teses, bem como, e principalmente, à amplitude de sua difusão* 2130. * Dr. Plinio havia anunciado com antecedência, em artigo para a Folha, que sobre o documento Igreja e Problemas da Terra estava acabando de “limar um estudo”. Esse artigo tinha como título O cavalo, a bruxa e o filhinho, e foi publicado pela Folha de S. Paulo em 22 de maio de 1980. Ele adiantou nesse artigo que, do ponto de vista doutrinário, havia notado vários traços de influência marxista no IPT. E que a desinformação sobre a realidade brasileira estava presente no documento de ponta a ponta. As parcas fontes mencionadas não cobriam a larga faixa das afirmações feitas e que o documento aprovado em Itaici fugia da realidade concreta e regurgitava de pressupostos gratuitos, como de generalizações vagas ou ambíguas.

* Entretanto, impetuosa e açodadamente agro-reformista em seu 2130 Começa a rajada, cit.


669 comunicado de Itaici-80, a CNBB parecia recuar surpreendentemente no comunicado de Itaici-81 2131. O grande tema abordado em 1981 foi o das vocações sacerdotais... Nada mais próprio do que este último tema, para uma reunião de tão alto órgão eclesiástico. Contudo, sendo de notoriedade pública que os Srs. Bispos agro-reformistas continuavam exatamente nas mesmas posições doutrinárias de 1980, era impossível não sentir algum desconcerto à vista de que em 1981 tenham julgado sem importância nem urgência a cascata de reformas, as quais haviam proclamado indispensáveis e urgentes doze meses atrás. Como explicar essa contradição? Que poder, que circunstância, que acontecimento sobreveio, bastante forte para determinar, de um ano para outro, tal diversificação de rumos? Não sei.

6. Grande difusão do livro “Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?” Sou Católico teve de Norte a Sul do País difusão digna de nota, graças ao zelo desinteressado e admirável dos jovens cooperadores da TFP. Honro-me em notar, de passagem, que foi na qualidade de presidente do Conselho Nacional da entidade que escrevi meu trabalho 2132 Escoaram-se vinte e nove mil exemplares, em 4 edições. Excelente acolhida, portanto 2133. E aqui entra um ponto estranho: diante dessa grande difusão, não houve nos arraiais dos agro-reformistas católicos quem opusesse ao meu livro qualquer réplica. E assim continuou, escoando-se placidamente março, abril, maio e junho.

7. Nova reviravolta no Episcopado: Bispos incitando até à luta armada De repente, a partir de julho de 1981 (isto é, cinco meses depois de Itaici-81 e quatro meses depois do Sou Católico), começou a se fazer ouvir uma rajada de declarações reformistas de procedência episcopal* 2134. * Transcrevemos três delas, a título de exemplo: Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia: “O ideal cristão equivale ao ideal do socialismo”. “Não canonizo o socialismo soviético ou cubano, mas existem aspectos positivos: Cuba deu lições de saúde e

2131 Ziguezague, Folha de S. Paulo, 21/7/81. 2132 Começa a rajada, cit. 2133 A guerra do hissope, cit. 2134 Começa a rajada, cit.


670 educação para todo seu povo [...]. O socialismo da Nicarágua é um bom caminho” (cfr. Jornal do Brasil, 17/6/81). Dom Quirino Schmitz, Bispo de Teófilo Otoni: “Quando as famílias pobres estão cada vez mais pobres e os ricos afirmam [...] que está tudo bom, o povo deve utilizar meios agressivos de reivindicar seus direitos”. Pouco antes, o prelado havia sublinhado que “São Tomás de Aquino [...] fala nas perspectivas de conflitos civis armados, como estratégia para o restabelecimento da justiça e liberdade” (cfr. Jornal do Brasil, 6/7/81). Dom Ivo Lorscheiter, Bispo de Santa Maria e presidente da CNBB: “Em casos extremos, a única solução para a conquista de mudanças sociais [...] é a luta armada, e a Igreja deve aceitar esta situação como inevitável.” Disse ele também que o Clero “não pode ficar de braços cruzados [...] à espera de que as coisas aconteçam. Precisa ser combativo” (cfr. Jornal do Brasil, 5/7/81).

Quer dizer, a revolução comunista estava sendo impulsionada no Brasil pelos Bispos. E ficava mais do que claro o alcance do livro e a oportunidade em que ele havia sido lançado. Pois, se na época de Jango, a CNBB era um apoio da esquerda, agora ela se tinha transformado na cabeça da esquerda. Essa revolução era muito menos uma revolução violenta, do que uma revolução psy, quer dizer, uma operação de guerra psicológica revolucionária. E se dava através da chamada Teologia da Libertação, que João Paulo II havia condenado, mas que ia se acentuando apesar da condenação de Puebla. Nada diminuiu de intensidade, nada diminuiu de carga. A perspectiva na qual nos encontrávamos era a de que, se o comunismo entrasse no Brasil, entraria pela mão da CNBB e pela porta da Reforma Agrária.

8. “Somos católicos, o IPT não é” golpe.

Em esgrima, quando o adversário puxa a espada, o outro apara o

No nosso caso concreto, o esforço para aparar o golpe agroreformista foi representado por este nosso novo livro, Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária? Ele deixava muito claro que o documento de Itaici era socialista, e que a doutrina sustentada pelo IPT não era compatível com a doutrina católica. Na realidade, o sentido de nosso livro era: “Somos católicos, vosso documento não é”. Este era o fundo do livro, embora isto não estivesse dito


671 formalmente2135. E a nossa condição de católicos era tão notória, tão fora de qualquer dúvida, que foi a nossa melhor arma para avançar 2136. Em suma, era a Reforma Agrária que começava a erguer a cabeça de novo, depois das pancadas que recebera da TFP. Imediatamente depois iniciou-se a nossa reação. Era o primeiro livro em que tocávamos na questão álgica, ou no ponto dolorido. A CNBB dava a entender que o católico não poderia ser contra a Reforma Agrária. Então, o título do livro levantava a questão: pode ou não pode? Resposta: o católico não só pode, mas deve ser contra a Reforma Agrária! Nenhuma réplica2137. Não foi refutado por ninguém nem condenado por ninguém2138.

Capítulo III Denúncia mundial do socialismo autogestionário francês muda a História do Ocidente (1981) 1. Caráter universal do Projet socialista: as TFPs entram na liça com a Mensagem Em dezembro de 1981, nosso raio de ação se ampliou enormemente, em uma campanha de grande repercussão internacional que envolveu treze TFPs e atingiu os cinco continentes. Foi o lançamento da Mensagem O socialismo autogestionário: em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte? à opinião pública ocidental 2139. Constituiu ela ampla exposição e análise crítica do programa autogestionário de Mitterrand, então recém-eleito Presidente da República Francesa. Esse trabalho, redigido por mim, foi endossado e divulgado em nome próprio pelas treze TFPs então existentes. 2135 SD 22/1/81. 2136 Reunião com osr mais antigos do movimento 18/1/81. 2137 SD 15/2/91. 2138 Despachinho 30/6/86. 2139 Entrevista a IstoÉ (gravação), 10/12/81.


672 Para aquilatar o alcance do mencionado estudo, é preciso ter em conta que, no período que precedeu à primeira eleição do Presidente François Mitterrand, a expressão socialismo autogestionário correspondia a uma espécie de primavera propagandística mundial, de maneira a tornar-se moda nos ambientes da esquerda. Todo intelectual que se quisesse mostrar “aggiornato”, isto é, “em dia”, dizia-se socialista autogestionário*. * Também no Brasil, a onda autogestionária vinha chegando com força. Nesse sentido é curioso, por exemplo, o depoimento do conhecido jornalista de esquerda Paul Singer: “Militantes exilados na Europa trouxeram de lá, depois que a anistia permitiu que voltassem ao Brasil, as experiências de socialismo autogestionário que floresceram na França” (cfr. Em dez anos de governo, nada é acaso, in Democracia Socialista, 13/3/2013).

Tal se devia ao fato de que as palavras “socialismo” e “socialista” estavam em franco processo de envelhecimento, o qual se tratava de sustar mediante um disfarce qualquer. Algo à maneira de uma senhora cujos cabelos estão branqueando, e que por isso procura tingi-los. Assim, o socialismo, velho de tantas e tantas décadas, e já com o prateado de sua velhice estampado nos cabelos, refazia seu semblante chamando-se “autogestionário”. Era o modo de revitalizar-se e rejuvenescer 2140. O Projet Socialiste pour la France des années 80 — com base no qual o PS concorreu àquelas eleições — se inseria explícita e até ufanamente neste movimento geral. * Poder-se-ia estranhar que treze associações, sendo doze de outros países que não a França, se julgassem no caso de dar a público em todo o Ocidente uma Mensagem cujo tema essencial era um comentário das então recentes eleições francesas. Mas tal objeção só seria concebível da parte de quem ignorasse o inteiro alcance do Projet socialiste de Mitterrand, a natureza do PS francês, bem como a inevitável e ampla repercussão da vitória socialista na vida política e cultural dos vários povos do Ocidente. O gênio francês, ágil em conscientizar, lúcido no pensar, brilhante no exprimir, sabe debater esses problemas numa clave que os relaciona, em numerosas conjunturas históricas, com as cogitações universais da mente humana. Ademais, o Projet afirmava ter como uma de suas metas a 2140 Auto-retrato filosófico, cit.


673 interferência na política interna, e mais especialmente na luta de classes dos demais países. Portanto, uma vez que o socialismo havia se assenhoriado do Poder, era de temer que utilizasse os recursos do Estado francês, e da irradiação internacional da França, para levar a cabo tal propósito Assim, tratando da situação na França, as sociedades que subscreviam esta Mensagem se davam claramente conta de que muitas questões, naquela época em fermentação mais ou menos latente em seus respectivos países, poderiam ter seu curso apressado e quiçá arrastado ao ponto crítico, em função da repercussão mundial do que na França viesse a se passar2141. Era uma Mensagem de alerta sobre a incompatibilidade entre os princípios perenes da civilização cristã, de um lado, e, de outro lado, a reforma autogestionária, na qual o PS prometera engajar a França, quando das eleições de 1981. Reforma esta gradual, mas também total, demolidora do direito de propriedade sobre o solo, a empresa, a escola privada, invadindo a família para organizar os filhos contra os pais, e não poupando sequer, em seu termo final, os lazeres, o aménagement doméstico (isto é, o arranjo interior da casa) e a própria pessoa de cada francês2142.

2. Oportunidade única: o socialismo mostra sua verdadeira face A que título se ocupavam as TFPs de uma problemática à primeira vista toda ela francesa, e ante a qual, por conseguinte, só competiria à TFP francesa tomar posição?2143 Há 50 anos, pela graça de Nossa Senhora, eu estava na luta contrarevolucionária2144. Ao longo desse tempo, eu nunca tinha visto o socialismo apresentar-se com tanta clareza e tanta precisão como nos documentos do Partido Socialista francês 2145. Nunca tinha visto os revolucionários dizerem tão claramente e tão cruamente tudo aquilo que, segundo as conveniências do jogo deles, não deveriam dizer. E nunca vira um documento em que esse adversário se comprometesse tanto, quanto no conjunto de documentos que serviram de estaqueamento à nossa Mensagem. Sem essa documentação, nossa denúncia não teria valido nada 2146. Tudo aquilo que o socialismo viveu de não dizer com clareza, viveu de manter na ambiguidade, o Partido Socialista francês, por razões que 2141 O socialismo autogestionário: em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte?, Artpress, São Paulo, 1983. 2142 Na França: o punho estrangulando a rosa, Catolicismo n° 376, abril de 1982. 2143 Autogestão, dedo e fuxico, Folha de S. Paulo, 11/12/81. 2144 CSN 21/11/81. 2145 Entrevista a supporters da TFP norte-americana, 1/6/92. 2146 CSN 21/11/81.


674 ignoro, declarou com uma precisão, com uma força de coerência extraordinárias, em vários congressos sucessivos, em vários manifestos, em vários documentos. De maneira que o fundo radical não apenas comunista, mas transcomunista da meta autogestionária foi confessado e proclamado como próprio pelo socialismo francês. Pela primeira vez em minha vida, eu via o socialismo inteiramente desmascarado por si próprio. E com a grande vantagem de ser desmascarado, não pelo livro de um intelectual qualquer, a respeito do qual o partido pudesse dizer que não representava o seu pensamento, mas por resoluções públicas e oficiais do próprio Partido Socialista autogestionário vencedor. Apresentava-se diante de mim, portanto, uma oportunidade única de arrancar a máscara do socialismo internacional. Então me atirei à denúncia desse socialismo, bem certo de que os meus leitores saberiam ver que, entre socialismo e socialismo, poderia haver diferenças de matizes, mas havia sobretudo identidade de corpo doutrinário, de metas e de ação. E que, portanto, o que de um deles se dissesse, do outro também se poderia dizer. dado

Tudo isso nos convidava a dar o grande lance, que de fato foi .

2147

3. Estupor: seis páginas, 52 países, 33,5 milhões de exemplares Comecei o trabalho de redação algum tempo depois de Mitterrand ter sido eleito presidente em maio de 1981. Uma das minhas preocupações era surpreender a autogestão em seu nascedouro. O mito da autogestão começava a nascer e o mérito estaria em denunciar o mito enquanto ele ainda fosse pequenino 2148. Um trabalho desses não se faz da noite para o dia. Foi um documento trabalhosíssimo. Demorei, no meio de minhas ocupações, uns três ou quatro meses para acabá-lo. Às vezes eu viajava para uma cidade do interior e ali redigia algumas partes. Outras vezes trabalhava em São Paulo mesmo. E em São Paulo era um trabalho quase diário 2149. A Mensagem ficou pronta, e no dia 9 de dezembro de 1981 ela foi

2147 Entrevista a supporters da TFP norte-americana, 1/6/92. 2148 CM 28/4/85. 2149 Entrevista a IstoÉ (gravação), 10/12/81.


675 publicada simultaneamente nos Estados Unidos, no Washington Post; e na Alemanha, no Frankfurter Allgemeine Zeitung; e posteriormente reproduzida em 45 diários de maior circulação de 19 países da Europa, América e Oceania. Um resumo foi publicado depois em diversos países dos cinco continentes. No total, a Mensagem saiu em catorze idiomas, atingindo uma tiragem total de 33,5 milhões de exemplares, em 155 publicações de 69 países, alcançando repercussões em 114 nações 2150. Esse grande lance foi dado pelas treze TFPs então existentes, dirigindo-se solidariamente à opinião universal e utilizando para isto um meio de propaganda especial: publicando em seis páginas de jornal a matéria de um pequeno livro de condensação. Não me consta que se tenha feito algo com tanta audácia de publicidade. E, de uma vez, nos principais jornais dos principais países do mundo2151. Até então, em escala internacional, o socialismo autogestionário ainda não fora questionado em seus últimos fundamentos filosóficos. Inegavelmente a Mensagem das treze TFPs abriu uma brecha no silêncio geral a tal respeito. Pondo em evidência a incompatibilidade do programa do PS francês com a doutrina tradicional do Supremo Magistério Eclesiástico, e questionando gravemente o sistema autogestionário, a Mensagem concorria para dissipar a “lua-de-mel” com a opinião pública, na qual se expandia tão favoravelmente o prestígio da autogestão. * No Brasil, a Mensagem só foi publicada um mês depois. É que a crise polonesa de fins de 1981 concorreu fortemente para desviar a atenção mundial do êxito eleitoral do Partido Socialista francês* 2152. * Essa crise de 1981 quase envolveu o risco de uma terceira guerra mundial, pela reação causada no Ocidente por uma ameaça soviética de intervenção na Polônia, a pretexto do crescimento das greves e reivindicações sindicais de fins de 1980. E galvanizou de tal forma as atenções que, nessas circunstâncias, o esforço publicitário da Mensagem seria inútil. Passada a crise, e cessada a atmosfera de superexcitação por ela causada, a Mensagem foi por fim publicada na Folha de S. Paulo do dia 8 de janeiro de 1982.

4. Grande parte da mídia se mostra incomodada; houve 2150 Autogestão, dedo e fuxico, cit. 2151 Entrevista a supporters da TFP norte-americana 1/6/82 e Um homem, uma obra, uma gesta, cit. 2152 As CEBs... das quais muito se fala, pouco se conhece — A TFP as descreve como são, Vera Cruz, S. Paulo, 1982.


676

exceções Antes dessa publicação, era de esperar que os órgãos da mídia brasileira se mantivessem em atitude de simpática expectativa. Pois não seria outro o sentimento que lhes seria natural, vendo um compatriota atuar como porta-voz de tantas entidades de vários países, em um esforço publicitário de escala mundial. Pelo contrário, em lugar de nos pedir que antecipássemos algo sobre o conteúdo da Mensagem, sobre a sua essência, sobre o seu pensamento, o que se viu foi, na maioria dos casos, investirem raivosamente como quem se sentisse mordido na carne viva. Esses meios apresentaram sobre o fato um noticiário carregado de insinuações, as quais fugiam inteiramente ao tema tratado, num empenho em arrastar a discussão para o campo do mero fuxico 2153. Foi só sair a notícia de que as TFPs iniciaram essa campanha, que se levantou a zoeira: “De onde vem o dinheiro”? Interessante notar que não se procurava saber de onde vinha o dinheiro do Partido Comunista Brasileiro. Nem de onde vinham os recursos, incomparavelmente maiores, que serviram para a campanha de Mitterrand na França e que propiciaram a vitória dele. Aos jornalistas que me perguntavam sobre isto, eu respondia que as TFPs eram treze, e todas administrativa, jurídica e economicamente autônomas. Cada uma tinha as suas próprias finanças. Para saber de onde vinha o dinheiro, era preciso perguntar a cada uma delas no respectivo país. Eu só podia, portanto, falar da TFP brasileira: os recursos para a difusão da Mensagem provinham de sócios e amigos da nossa entidade. E nenhuma entidade fornece a terceiros a nominata de seus doadores. Se, no tocante à TFP brasileira, um órgão do Poder Público, com competência jurídica para se informar, nos pedisse esses nomes, responderíamos no mesmo instante e com a maior facilidade. Tal órgão, de sua parte, ficaria obrigado ao sigilo próprio a uma repartição oficial. Eu ainda interpelava esses jornalistas: a Mensagem das TFPs versava sobre um alto tema, que era a situação da França, a filha primogênita da Igreja, uma das nações mais ilustres da Terra. A partir dessa nação, começava a soprar sobre o mundo uma ideologia que, por uma série de razões, tinha todas as condições para prosperar. Assim, era todo o mundo ocidental que estava no risco de ser posto em jogo, como resultado da vitória socialista na França. Sobre esse tema, a mídia não tinha nada a perguntar? Ela não se alarmava com essa 2153 Autogestão, dedo e fuxico, cit.


677 perspectiva? Não a preocupava? O grande problema do mundo para a mídia era saber onde as TFPs tinham arranjado dinheiro para essa publicação? Quando alguém levanta a questão do dinheiro antes mesmo de ter levantado a questão do mérito de um documento, dá mostras de que tal documento o está incomodando. Por que não o refutavam? Por que silenciavam sobre o seu mérito?2154 Houve exceções nessa reação de certa mídia, como por exemplo um repórter da Folha que me entrevistou. Ele de fato fez perguntas sérias sobre o mérito do documento. Mas, fora dele, muito poucos.

5. Publicada no mundo inteiro, proibida na França Em nenhum dos países encontraram as TFPs obstáculos para publicar, como matéria paga, sua Mensagem. De par em par, abriram-se para elas os órgãos de imprensa2155. Não na França, onde a imprensa inteira se fechou, eriçada como um porco-espinho que levou um toque de lança 2156. Abstração feita dos órgãos declaradamente socialistas ou comunistas, foi oferecida sucessivamente a seis diários franceses de grande porte, de tiragem superior a cem mil exemplares, a publicação do texto. Dois desses jornais chegaram até a se comprometer formalmente a publicar a Mensagem. Tão firme era esse compromisso que, na perspectiva de tal publicação, e de acordo com ambas as partes, uma agência publicitária chegara, no dia 11 de dezembro, a receber integralmente o preço estipulado. Tudo isto não obstante, no dia 6 de janeiro de 1982 essa agência prevenia às TFPs que os dois cotidianos em questão acabavam de se recusar a cumprir o compromisso assumido. Motivo alegado: nenhum.

6. Governo francês e esquerdas: reações furibundas mas esquivas Mas a Mensagem foi abrindo seu caminho largamente pelo mundo afora . 2157

Em 12 de dezembro de 1981 (ou seja, três dias após a publicação do mencionado documento), o International Herald Tribune assim descreveu a reação do governo socialista francês face à aludida análise do Projeto 2154 Mensagem telefônica, dezembro de 1981. 2155 Na França: o punho estrangulando a rosa, cit. 2156 CSN 16/1/82. 2157 Na França: o punho estrangulando a rosa, cit.


678 Socialista para a França dos anos 80: “Em Paris, fontes governamentais autorizadas disseram que não estavam preparadas para reagir a esta publicação, mas que a estavam estudando. ‘Absolutamente não há pânico, e estamos bem mais interessados em saber quem ou o que se encontra por detrás desta publicação’, declarou [...] um porta-voz do Eliseu, acrescentando que ‘mais tarde’ poderia haver alguma reação”. Reação esta que em vão se esperaria, pois que não houve 2158. No dia anterior, eu havia lido a correspondência de Paris, enviada para a Folha pelo Sr. J. B. Natali. Nos círculos que o sr. J. B. Natali quis ouvir, isto é, no Quai D'Orsay (Ministério do Exterior) e o PS (Partido Socialista), as reações foram intensas. Surpreendentemente intensas. No Quai D'Orsay, um porta-voz disse que "as críticas da TFP ao governo francês são abusivas e excessivas". Mas acrescentava que “contra elas a França não levantará sequer um dedo por respeitar a liberdade de expressão”*. * Esse “respeito” pela liberdade de expressão por parte do governo Mitterrand recebeu um desmentido pelos fatos, face à negativa maciça dos jornais franceses de publicar a Mensagem. Ficou patente que a máquina governamental francesa levantou não apenas um dedo, mas exerceu uma pressão de bastidores que teceu uma pesada cortina de silêncio publicitário para impedir o estudo das TFPs de circular na França.

Nessa linha, ainda foi mais longe o sr. Philippe Parrentir, do Partido Socialista: “os senhores da TFP são loucos delirantes”. E uma das fontes latino-americanas do serviço de Relações Exteriores do primeiro-ministro disse: “uma organização com essa sigla (TFP) já evoca algo que provoca nos franceses uma enorme repulsa porque lembra ‘Trabalho, Família, Pátria’, slogan de Pétain”. O Sr. J. B. Natali abordava ainda outros assuntos: preço pago pela campanha, o enorme “mistério” mantido por meu inteligente e valoroso amigo Caio Xavier da Silveira, diretor da TFP brasileira presente em Paris, acerca das demais cidades onde seria publicada a Mensagem etc. Evidentemente, temas colaterais, feitos para acirrar a polêmica, desviandoa ao mesmo tempo do ponto essencial, isto é, da análise das teses e dos argumentos contidos na Mensagem *2159. * Houve outras reações dignas de nota, registradas no livro Um homem, uma obra, uma gesta; Um resumo dessas reações pode dar alguma ideia delas:

2158 Auto-retrato filosófico, cit. 2159 A propósito da Mensagem das TFPs, coluna A palavra do leitor, Folha de S. Paulo, 15/12/81.


679 “A imprensa esquerdista desatou-se em fúria contra ‘as seis páginas de divagações anti-Mitterrand’ (Le Canard Enchainé, Paris, 16/12/81), verberando o ‘pavé indigesto’ ofertado pelo ‘professor brasileiro’ (Le Matin, Paris, 11/12/81), bem como a ‘publicidade de ditadores’ proveniente desse movimento de ‘iluminados integristas’ (Libération, Paris, 19/12/81), e outros insultos do gênero. “L’Humanité (11/12/81), órgão do Partido Comunista francês, saltando de cólera, se perguntava: ‘Quem permite a não se sabe que associação, mais ou menos brasileira, espalhar, a golpes de bilhões, idiotices destinadas a dar uma imagem repugnante do governo da República francesa? [...] É preciso não dramatizar esta barulhenta campanha internacional’. “De fontes do Governo e do PS, a linha de conduta foi, de um lado, se esquivar sistematicamente da análise do cerne doutrinário da Mensagem. Uma das fontes do Ministério das Relações Exteriores chegou mesmo a declarar que ‘neste gênero de situações [...] sempre é mais conveniente não dizer nada’ (Jeune Afrique, Paris, 3/3/82). “O primeiro-ministro Pierre Mauroy, em debate na Assembleia Nacional, referindo-se indiretamente à Mensagem, disse que, “quando a direita quer parecer nova, ela escava o arsenal das doutrinas anti-igualitárias e anticristãs [sic], que produziram ao longo da primeira metade deste século os resultados que todos conhecemos. Tornar-se-ia grave que, por simples hostilidade para com o governo, democratas se deixassem assim enganar por falsas ideias novas” (Le Monde, Paris, 18/12/81). “Em Buenos Aires, a embaixada da França acusou a TFP, em nota oficial publicada em La Nación (20/1/82), de ter ‘insultado’ o programa do governo francês e a divisa ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’, que — segundo o comunicado da representação diplomática — estaria ‘inscrita’ na bandeira de seu país. (Onde? Na bandeira tricolor francesa não há qualquer inscrição...). A TFP argentina respondeu em nota publicada no mesmo La Nación (24/1/82), pedindo a dita Embaixada que exibisse onde, na Mensagem, se encontrava o tal ‘insulto’. A embaixada manteve-se em explicável silêncio”.

* Eu não estava disposto absolutamente a cooperar, de minha parte, para que a contenda descambasse para esse nível. Escrevi então um artigo para a Folha de S. Paulo em que adiantei para o público as teses essenciais que a Mensagem das TFPs continha*2160. * Este artigo tinha como título Autogestão, dedo e fuxico, e foi estampado na Folha de S. Paulo do dia 11 de dezembro de 1981.

* A certa altura me chegou ao conhecimento que o diretor do Ufficio Stampa do Vaticano, em contato com um representante do Ufficio da TFP na Cidade Eterna, afirmara que a Mensagem havia causado em Roma uma

2160 Autogestão, dedo e fuxico, cit.


680 impressão profunda, e pedira um exemplar2161.

7. Exorcizando o socialismo enquanto filho da Revolução Francesa O socialismo autogestionário francês se proclamava inteiramente coerente com a trilogia da Revolução de 1789: Liberdade-IgualdadeFraternidade. Para ele, a abolição do patronato na empresa era a consequência lógica da instauração da República. Ele apontava no patrão um pequeno rei que remanesce no interior da empresa, e no rei o grande patrão que a república democrática eliminou. Por isso, o PS francês traçava, entre a vitória final do socialismo autogestionário e a Revolução Francesa, toda uma genealogia de revoluções: 1848, 1871 e a Sorbonne-1968 2162. E o que estava dito na Mensagem era precisamente isto: que o socialismo autogestionário se dizia, ele próprio, a continuação da Revolução Francesa. E, no proclamar este fato, ele denunciava a Revolução sua mãe. Também denunciava a si mesmo, e com argumentos tão bons, que foi com as próprias palavras do socialismo autogestionário que fizemos, como que num exorcismo, o monstro da Revolução bradar para o mundo: “O socialismo é filho da Revolução Francesa”! De fato, há qualquer coisa na Revolução Francesa que faz dela a tradução, para a ordem temporal, de todos os erros do Protestantismo na ordem espiritual (cfr. Revolução e Contra-Revolução, cit.). E como o que se passa na ordem temporal abala muito mais a mentalidade das pessoas de nossa época do que aquilo que se dá na ordem espiritual, uma bombarda jogada na Revolução Francesa seria muito mais nociva ao dinamismo geral da Revolução do que a bombarda jogada na própria fronte já envelhecida, já empergaminhada e sem expressão do velho Protestantismo. Portanto, era ali que a Revolução tinha que ser ferida. E era o que estava dito na Mensagem. Com isso fizemos uma Mensagem que tocava no essencial do espírito da TFP, que é o espírito católico enquanto denunciante da Revolução. Nós fizemos disso algo que de fato atingiu todas as extremidades da Terra 2163.

2161 CSN 16/1/82. 2162 Autogestão, dedo e fuxico, Folha de S. Paulo, 11/12/81. 2163 SD 30/7/82.


681

8. “Laborem Exercens”, autogestionário?

um

endosso

ao

socialismo

A Mensagem estava acabando de ser redigida quando saiu a lume, em 14 de setembro, a encíclica Laborem Exercens, de João Paulo II. Os mais importantes meios de comunicação social do Ocidente a acolheram com ampla e simpática publicidade. Sem dúvida, a Encíclica apresentava ensinamentos novos, nem todos desenrolados até suas últimas consequências, doutrinárias e práticas. Isto propiciou que, o mais das vezes, a publicidade dada ao documento difundisse a impressão de que, conforme João Paulo II, o regime socializado, propugnado pelo PS francês, encontraria na Laborem Exercens importante respaldo 2164. Seria ela uma versão católica do socialismo autogestionário francês? Compreende-se o alcance da pergunta, especialmente na perspectiva católica, que era a das TFPs e da Mensagem lançada por estas*. * Esta pergunta foi abordada de frente na Nota 29 da Mensagem. Ela apresenta um resumo da doutrina tradicional da Igreja que fundamenta o direito de propriedade a partir da apropriação daquilo que não tem dono, ou da remuneração do seu trabalho, ou ainda da herança adquirida por sucessão hereditária. Traz então textos pontifícios que trataram do assunto, como a Rerum Novarum, de Leão XIII, a Quadragesimo Anno, de Pio XI, e a Radiomensagem de Pio XII, de 14 de setembro de 1952, ao Katholikentag de Viena. Depois explica que o Estado, sem exorbitar de sua função específica, pode também, de modo restrito e em circunstâncias especiais, possuir e administrar bens por razões de interesse comum. Entretanto ele deve deixar os demais bens nas mãos do domínio privado. E esta é a ordem natural das coisas. Já o Projet do PS francês hipertrofiava a propriedade coletiva dos grupos sociais, transformando cada um destes, em relação a seus componentes, em um mini-Estado totalitário. E o Projet qualificava de privada a propriedade autogestionária, se bem que esta fosse instituída — em larga medida imposta — e até regulada discricionariamente pelo Estado. Ora, a publicidade que se tinha feito em torno da encíclica Laborem Exercens comunicava a impressão de que João Paulo II afirmara já não ser um imperativo da ordem natural que a propriedade privada (portanto a nãoestatal) fosse habitualmente individual. E que, em princípio, era legítimo e até preferível ser um direito, o de propriedade, normalmente exercido, não por proprietários individuais, mas por grupos de pessoas, para melhor

2164 O socialismo autogestionário: em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte?, cit.


682 atender à sua finalidade social. Nisto consistiria a socialização da propriedade. A ser aceita essa intelecção do documento de João Paulo II, seria preciso concluir que tal socialização estaria em forte contraste com os princípios do Magistério Pontifício tradicional, e que a encíclica dava importante respaldo ao regime socializado propugnado pelo PS francês. Ao católico zeloso, seria penoso carregar nos ombros a responsabilidade de fazer sobre a encíclica de João Paulo II essas afirmações. Pois teriam um alcance incalculável no plano religioso e socioeconômico. Com efeito, a se admitir semelhante oposição entre o referido documento pontifício e os documentos tradicionais do Supremo Magistério da Igreja, daí se desdobrariam consequências teológicas, morais e canônicas sem conta. O PS francês afirmava a conexão lógica entre a reforma autogestionária da empresa, por ele preconizada, e a da economia em geral, a do ensino, a da família e a do próprio homem. Essas múltiplas reformas não eram, para os socialistas franceses, senão aspectos de uma só reforma global. E tinham razão: “Abyssus abyssum invocat” − “Um abismo atrai outro abismo” (Ps. 41, 8). Portanto, não se via a possibilidade de que um Pontífice Romano, abrindo as comportas à autogestão pleiteada pelo socialismo francês, apoiasse implícita ou explicitamente essa reforma global.

* A Mensagem punha muito em realce o imperialismo doutrinário que marcava a política exterior do PS, e portanto também do governo socialista francês. Ela mostrava que a expansão internacional do socialismo autogestionário era meta relevante da diplomacia do Sr. François Mitterrand2165. O Presidente francês já havia dado os primeiros passos nesse sentido, manifestando o seu apoio ao governo da Nicarágua e à guerrilha em El Salvador 2166.

9. A Mensagem quebra a “aura” da autogestão. Consequências em cadeia O fato inegável é que o socialismo autogestionário francês foi a seu tempo a ponta de lança da Revolução e o mito lançado para se impor como uma mentirosa terceira solução entre o capitalismo e o comunismo 2167. E a autogestão socialista era a meta internacional a serviço da qual o PS francês prometera instrumentalizar o governo, as riquezas, o prestígio,

2165 Autogestão, dedo e fuxico, cit. 2166 Mensagem telefônica, dezembro de 1981. 2167 Auto-retrato filosófico, cit.


683 o rayonnement (ou seja, a irradiação) mundial da França2168. Era, portanto, a ave de rapina mais recente saída dos antros do comunismo. E era também a tentativa de conquista mais falaciosa, mais soez, mais ágil, mais reluzente que a propaganda comunista havia imaginado. Aí veio a campanha da Mensagem2169. Sem camuflagem, o imperialismo comunista não conseguiria caminhar no mundo. A opinião pública francesa, fortemente alertada, percebeu que a autogestão não era senão camuflagem e a rejeitou nas eleições cantonais de março de 1982. Por sua vez, a rejeição da camuflagem autogestionária na própria terra que lhe servia de foco de irradiação enregelou e pôs de sobreaviso todas as áreas da opinião mundial que, logo depois dos êxitos socialocomunistas de 81, vinham se deixando contaminar por ela. Essa contaminação caminhava despreocupada. O primeiro documento com publicidade internacional que contra ela se ergueu — a Mensagem das TFPs — saiu a lume quando ainda os tenores e as primadonas de esquerda entoavam, por toda parte, a ária da autogestão. Eles — e elas — diminuíram um tanto o volume de voz porque, mais sutis do que Mitterrand e sua equipe, sentiram que no público havia gente que não os ia acompanhando. Com o insucesso e o brado de alerta na França, a autogestão ficou congelada no mundo* 2170. * Ressentindo-se fortemente dos efeitos da Mensagem, a autogestão não pôde evitar um processo de decadência. Onze anos depois (1992), a ministra socialista da Habitação, Marie-Noèlle Lienemann, declarava: “O Partido Socialista acabou. Nós temos que criar uma nova estrutura, um novo partido” (Folha de S. Paulo, 22/10/92). Essas declarações equivaliam a um verdadeiro atestado de óbito do sonho autogestionário dos socialistas franceses, confirmado pela substituição do radical programa de 1981 pelo anódino Novos Horizontes, adotado pelo Congresso do PS francês de 15/12/91.. Neste último se lia: “Já não se trata, como ocorria no que concerne à antiquada autogestão [sic!], de eliminar os empresários para substituí-los por dirigentes designados pelo Estado ou eleitos pela base [...] Os representantes dos assalariados não devem substituir os chefes na direção da empresa” (cfr. Michel Charzat, Un Nouvel Horizon, pp. 94, 96 e 97). Era o socialismo autogestionário se declarando decrépito pelos seus próprios dirigentes e partidários.

2168 O socialismo autogestionário: em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte?, cit. 2169 SD 30/7/82. 2170 Jeito, trejeito ou estertor, Folha de S. Paulo, 15/4/82.


684 Chegamos a 2014 e vemos Manuel Valls, primeiro-ministro socialista do governo Hollande, defender uma mudança de nome do partido, para retirar o termo “socialista” (cfr. Clóvis Rossi, in Folha de S. Paulo, 3/4/2014). É preciso ter em vista que, em face da anterior decadência do Partido Comunista francês, que se tornou um pequeno partido de quinta categoria, a grande esperança das esquerdas francesas era o PS. Manuel Valls posteriormente foi ainda mais longe, e lamentou o estado terminal da esquerda francesa, da qual o PS era o grande representante. Em pronunciamento feito na reunião do Conselho Nacional do Partido Socialista, em 14 de junho de 2014, afirmou ele que, diante das preferências que vêm sendo manifestadas pelos eleitores, nós poderíamos chegar “a uma era na qual a esquerda pode também desaparecer [...] sim, a esquerda pode morrer [...] Nós sentimos que chegamos ao fim de algo, ao fim talvez mesmo de um ciclo histórico para o nosso Partido [...] A esquerda nunca esteve tão fraca” (cfr. Journal du Dimanche, 14/6/2014; La Croix, 23/6/2014). O golpe dado pela Mensagem de Dr. Plinio no socialismo autogestionário, no momento em que o PS se encontrava no auge de seu prestígio político, teve um papel chave na derrocada da influência socialista e das esquerdas em geral.

Capítulo IV “As CEBs ... das quais muito se fala, pouco se conhece — A TFP as descreve como são” (1982) 1. CEBs: “longa manus” da CNBB para a socialização do Brasil Enquanto o mito da autogestão fenecia no mundo, eu via o Brasil evoluir para uma situação em que a CNBB ia se afirmando como a única força a ter condições de dar andamento às reformas de base na ordem temporal*. * A expressão “reformas de base” ficou como moeda cunhada da era janguista. Referia-se fundamentalmente às Reformas Agrária, Urbana e Empresarial de cunho marxista, que João Goulart queria impingir ao Brasil.

Eu estava convicto de que ela era a única força capaz de levar para uma socialização avançadíssima, para não dizer a comunistização, o nosso querido Brasil. Pois o programa da CNBB equivalia a colocar o Brasil, por iniciativa eclesiástica, a um passo da negação de toda a ordem natural criada por Deus. Ora, nessa derrubada da ordem natural havia implícita uma negação da ordem sobrenatural e de toda a Religião*.


685 * A ordem natural criada por Deus é o fundamento da sociedade e da civilização retamente entendidas, e está ademais intimamente ligada à prática da verdadeira religião, e portanto à salvação das almas. Por isso Deus Nosso Senhor a resumiu e defendeu ao promulgar os Dez Mandamentos, entre os quais, por exemplo, há dois que protegem a propriedade privada — o 7º Não roubarás, e o 10º Não cobiçarás as coisas alheias — contra os quais se atiraram as CEBs. O Apóstolo São Paulo deixa claro que os próprios pagãos têm a lei natural impressa nos seus corações e disso lhes dá testemunho sua consciência, e por ela seus atos serão julgados (cfr. Romanos, 2, 14-16).

Mas a CNBB sairia por demais de seu papel se ela agisse diretamente nesse sentido. Então passou a promover um tipo de organizações que não eram propriamente associações religiosas, mas associações com certo ar leigo, certo ar civil. E que encontravam seu fermento em quase todas as sacristias, arregimentando seus propagandistas entre os elementos do Clero e das ordens religiosas masculinas e femininas. Essas organizações eram as chamadas CEBs, ou seja, as Comunidades Eclesiais de Base, as quais constituíam a grande arma e ao mesmo tempo o grande paravento da CNBB para fazer isso 2171.

2. Uma espécie de partido comunista disfarçado com fundamentação religiosa As CEBs foram a realização, em nível popular, do que os Cursilhos eram em nível burguês. Elas trabalhavam em geral com operários, e formavam grupinhos de famílias 2172. Tudo isso muito provavelmente com vistas a instituir no Brasil um regime socialista autogestionário mais ou menos análogo ao de Mitterrand2173. Em vários lugares elas estavam inclusive levando a efeito a experiência das chamadas “chácaras autogestionárias”2174. As CEBs eram no fundo um partido comunista déguisé (disfarçado), e pelo fato de serem déguisés, ficavam invulneráveis à repressão 2175. O dirigente, militante ou recruta das CEBs deduzia da Religião (reinterpretada pela Teologia da Libertação) as conclusões socioeconômicas que o Partido Comunista e o Partido Socialista deduziam da irreligião. Entretanto, esta fundamentação religiosa da revolução conferia às 2171 SD 27/8/82. 2172 SD 29/2/80. 2173 Suspeita estapafúrdia e juízo temerário, Folha de S. Paulo, 15/9/82. 2174 Entrevista a IstoÉ (gravação), 10/12/81. 2175 Despacho CEBs 14/3/80.


686 CEBs, naquela época, características próprias e vantagens específicas, que a revolução ateia não possuía. A motivação religiosa da subversão das CEBs lhes dava uma possibilidade de êxito, pelo menos a longo prazo, que Lenin não teve*. * Essa motivação religiosa foi enfatizada por um importante artigo de Valentina Andrónova, especialista do Kremlin encarregada de acompanhar a atuação da esquerda católica latino-americana. A autora, embora colocada no ângulo oposto ao da TFP, apresentava uma visão das Comunidades Eclesiais de Base que pouco diferia da apresentada por Dr. Plinio. O título desse artigo era “As comunidades eclesiais de base: nova forma de protesto social dos crentes” (revista América Latina, Editorial Progresso, Moscou, abril de 1985, apud Catolismo n° 421, de janeiro de 1986). Ela dizia: “A renovação da Igreja católica, iniciada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), está tomando formas radicais na América Latina. [...] No marco das mudanças no catolicismo latino­americano, o aparecimento das comunidades eclesiais de base (CEBs) constitui o fenômeno de maior relevância” (p. 4). “As CEBs trazem ao movimento revolucionário seus conceitos religiosos. [...] Elas dispõem de uma religiosidade nova, repleta de conteúdo democrático e revolucionário” (p. 16). “Ali se expressa o desejo de uma participação mais ampla dos leigos nas atividades do Episcopado e maior representação destes nos conselhos pastorais e nas paróquias, da observância da igualdade entre leigos, religiosos e sacerdotes. Exigem-se também ações conjuntas dirigidas para a libertação dos pobres em lugar de ‘justificação daqueles que se contrapõem aos interesses da classe oprimida’” (p. 8). “Juntam-se para a construção de estradas e escolas ou fornecimento de água. Unindo suas forças, procuram defender suas terras contra as pretensões dos latifundiários ou lutam pela reforma agrária, exigem melhores condições de trabalho, pagamento justo, transportes para ir e vir do trabalho. Vão-se compenetrando de um sentido de coletivismo e de ajuda mútua. A velha religião, baseada na submissão e na obediência, é relegada a segundo plano. Os fiéis a substituem por uma religião ligada à sua [...] luta pela libertação” (p. 8). “Os religiosos progressistas que escolheram as comunidades de base para aplicar seus esforços foram mais longe, extraindo do ideário de [Paulo] Freire o principal: a necessidade de desenvolver a consciência política dos crentes” (p. 6). “A nova interpretação da Bíblia deu impulso ao desenvolvimento da consciência social dos crentes, para as ações dirigidas à criação de uma sociedade de irmãos e irmãs, ou seja, de uma sociedade sem classes, conforme entendem” (p. 10). “No processo de estudo do sistema capitalista, muitos ideólogos do movimento das comunidades de base chegaram à conclusão de que as categorias marxistas as ajudam a compreendê-lo melhor. [...] Entende-se assim a declaração do teólogo brasileiro L. Boff de que ‘os membros das comunidades cristãs de base começaram a apropriar-se do marxismo para utilizá-lo como arma de autodefesa na luta para libertar-se do sistema capitalista’ “(p. 10).


687 “A conferência episcopal nacional [CNBB] segue resolutamente um rumo de renovação” (p. 15). “O maior deslizamento para a esquerda ocorre em comunidades de base do Brasil e da América Central” (p. 10). “Nos territórios libertados pelos guerrilheiros [de El Salvador e da Nicarágua], as CEBs atuam como uma Igreja nova totalmente solidária com o povo em armas” (p. 13).

3. CEBs como potência eleitoral: “infalibilidade” até do sacristão Houve tempo em que as CEBs eram apresentadas pela mídia como uma verdadeira potência eleitoral emergente 2176. Isto vinha do fato de os católicos em grande número se sentirem, de modo errado, obrigados a seguir a orientação eleitoral do padre. A ideia desses católicos era de que, sendo o Papa infalível, toda e qualquer opinião dele era também infalível. Ora, pensavam eles, o Bispo interpreta a opinião do Papa, de onde se conclui que o Bispo deve ser infalível também. E isto é também com o padre, o qual interpreta perfeitamente bem a opinião do Bispo. Logo, também o padre deve ser infalível.

Isto ia tão longe, que certa vez, numa discussão — aliás quente — que tive com um senhor a respeito desse assunto, ele me disse em outras palavras o seguinte: “Dr. Plinio, o senhor quer saber de uma coisa? Eu penso até como o meu sacristão. Porque como o sacristão interpreta o pensamento do padre, eu estarei com o Papa estando com o sacristão”. O que era levar a ingenuidade e falta de senso ao último ponto! Mas, enfim, até lá chegava o homem. Era com base nessa visão deturpada da fidelidade à Igreja que a CNBB tinha meios de empurrar os eleitores para votar a favor das reformas de base. Por quais meios? Exatamente por meio das CEBs. Porque estas eram organizações através das quais a CNBB e os clérigos da Teologia da Libertação poderiam agir sem aparecer demais 2177.

4. Como nasceu a ideia de um livro denúncia Nesta conjuntura, o único meio de atalhar esse processo seria denunciar essas Comunidades Eclesiais de Base. Denunciar só a elas? Não. Era preciso mostrar o seu poder, mostrar como elas se ligam à estrutura eclesiástica de esquerda, mostrar qual é o propósito dessa estrutura eclesiástica criando-as. 2176As CEBs... das quais muito se fala, pouco se conhece — A TFP as descreve como são, cit. 2177 Palestra para as Caravanas 26/8/82.


688 E também mostrar o papel da falta de reação da parte daqueles que poderiam fazer alguma coisa e mantinham-se na inação. E não só os elementos da estrutura eclesiástica, mas da burguesia, das classes intelectuais, enfim, de todos aqueles que ainda podiam agir de alguma forma. Seria portanto necessário mostrar-lhes a gravidade de sua inércia e apontar o perigo: no Brasil as coisas vão se passando como se houvesse aqui um quarto poder além do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Um 4° poder que em muitas circunstâncias pesa mais nos acontecimentos do que esses três poderes. E esse poder era a Imprensa. Este 4º poder está todo ele, por sua vez, a serviço de um outro poder paralelo, maior do que todos os outros, e que traça programas para o governo, traça programas para a sociedade, intervém em tudo com voz decisiva e que não esconde ser um 5º poder. Esse poder era a CNBB. livro.

Para fazer essa denúncia, nada melhor do que o lançamento de um * Em que circunstâncias nasceu a ideia desse livro?

O livro nasceu de uma preparação silenciosa, discreta, lenta, de alguns estudos feitos dentro da TFP, que aparentemente não tinham entre si maior conexão. Dentro da nau da TFP, dois membros dela, os irmãos Gustavo Antonio Solimeo e Luiz Sérgio Solimeo, sem um nexo mais próximo, mais imediato, mais frisante com essas minhas preocupações, e sem que isto lhes tenha sido encomendado ou pedido, começaram, por iniciativa própria, a estudar essas comunidades de base. Durante anos, eles foram coletando documentos, e de vez em quando me diziam alguma coisa a respeito dos seus estudos. Eu prestava atenção, via que eram raciocínios inteligentes, bem apresentados, lúcidos, que rumavam para um determinado fim. Mas de início eu não deitei uma especial atenção ao trabalho deles. Eles trabalharam incansavelmente durante cinco anos. E eu sabia que eles estavam reunindo uma mole enorme, uma massa monumental de documentação. Quando chegou a um certo ponto, eles me propuseram a confecção de um livro, e eu concordei enfaticamente. Recomendei-lhes que o texto fosse revisto por vários dentro do nosso grupo, que fosse ajustado às várias circunstâncias políticas, objetivos e metas, antes mesmo que o trabalho chegasse às minhas mãos.


689 Quando li o estudo, notei a coincidência providencial, magnífica, entre esse trabalho e as minhas preocupações 2178.

5. A amplitude da campanha de difusão: 1.510 cidades Foi assim que os irmãos Gustavo Antonio Solimeo e Luiz Sérgio Solimeo, e eu, escrevemos o livro As CEBs... das quais muito se fala, pouco se conhece − A TFP as descreve como são*. * O livro teve seis edições, num total de 72 mil exemplares, além dos 180 mil exemplares de uma versão popular que condensava as denúncias em forma de revista em quadrinhos.

Na primeira parte, mostro como as CEBs são o instrumento da esquerda católica para semear o descontentamento na população (especialmente entre os trabalhadores manuais), transformar em seguida o descontentamento em agitação e, através dessa agitação, impor aos Poderes Públicos a tríplice Reforma: Agrária, Urbana e Empresarial. A Parte II da obra informa o público brasileiro sobre a realidade das CEBs: a doutrina disseminada por estas, sua organização, seus métodos para recrutamento de aderentes e para a ação dos mesmos aderentes sobre o conjunto do corpo social. Para este efeito, os autores dessa parte da obra, os irmãos Gustavo e Luiz, foram colher os dados, por assim dizer, dos próprios lábios daquelas organizações, isto é, dos escritos em que elas se autodefinem para seus aderentes e para o público. Completam as informações assim coligidas, outras notícias de jornais e revistas inteiramente insuspeitos de distorcer os fatos em detrimento das CEBs. A partir de agosto de 1982, sócios e cooperadores da TFP encarregaram-se da difusão da obra por todo o Brasil: 1.510 cidades foram visitadas pelas caravanas de propagandistas da TFP2179.

6. Golpe profundo nas CEBs: Teologia da Libertação fica impopular Denunciadas as CEBs, houve uma erosão qualquer por onde elas2180 ficaram como uma bolha que havia vazado e diminuíra de volume 2181. É fora de dúvida que o livro, para quem sabe ver a profundidade das coisas (porque na superfície nada disso é dito assim), marcou uma situação 2178 SD 27/8/82. 2179 Auto-retrato filosófico, cit. 2180 Simpósio 4/7/84. 2181 ENSDP, maio de 1985.


690 em que a expansão das CEBs — que já era difícil — se tornou muito mais difícil em certos ambientes. E toda organização que encontra dificuldades na sua expansão, por causa disso mesmo fica exposta a uma crise interna de desânimo. A crise de desânimo traz consigo a dúvida. E a dúvida provoca a deserção. Com isto, a própria Teologia da Libertação ficou abalada e muito ameaçada no Brasil2182. Muita gente ficou vendo, na ocasião, que mais uma vez a TFP havia atacado o que ninguém ousava atacar. Havia dito o que ninguém ousava dizer. E deteve o passo de um movimento que, sem isso, continuaria devastando aquilo que o Brasil tinha de mais substancial, de mais precioso, o por onde nosso País é ele mesmo, que é seu caráter católico, apostólico, romano 2183. Não há o que baste para encarecer o papel decisivo do livro sobre as CEBs, que imunizou largos setores da população contra esse movimento. O livro fez com as CEBs o que a pastoral de Dom Mayer havia feito em relação aos desvios dos Cursilhos, e o Em Defesa em relação à Ação Católica: alfinete no balão de borracha* 2184. * Depois disso, a esquerda católica ainda tentou reanimar as CEBs, realizando encontros periódicos, à base de empolgamentos artificiais. Mas nada pegou. O balão estava furado. O mais recente encontro de que tenhamos notícia foi realizado em Juazeiro do Norte (de 7 a 11 de janeiro de 2014), com grande aparato midiático. Falava-se em ressurreição das CEBs. No dia 7, a CNBB anunciava exultante em seu site: “Pela primeira vez em sua história, um Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) recebe uma mensagem de um papa. No dia 17 de dezembro, o papa Francisco enviou uma carta aos participantes do 13º Intereclesial das CEBs, que tem início hoje à noite, em Juazeiro do Norte”. Terminado o Encontro, parece que os ressurrectos voltaram para o túmulo. Não se ouviu mais falar das CEBs. O tema é analisado em artigo publicado em Catolicismo (abril/2014) e em: http://ipco.org.br/ipco/noticias/umfestival-de-marxismo-o-congresso-das-cebs#.VEWp55UtDDc (site do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira).

Eles haviam feito das CEBs o cavalo de corrida deles. E nós furamos um dos olhos desse cavalo de corrida...2185

7. Contragolpe: o caso da falsificação de “O São Paulo” Em vista do sucesso da denúncia, não era de espantar que viesse por cima de nós um contragolpe. E este veio através de um bombástico noticiário publicado na imprensa paulista e carioca sobre o suposto envolvimento da TFP na 2182 RR 31/3/84. 2183 SD 27/8/82. 2184 RR 5/5/84. 2185 Simpósio 4/7/84.


691 impressão de um número falso do semanário oficial arquidiocesano O São Paulo. Tal envolvimento absolutamente não existia. E era até inverossímil, segundo teve o bom senso de declarar, interrogado pela imprensa sobre a matéria, o Emmo. Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns: “Não quero culpar ninguém sem provas. A TFP sempre teve a coragem de apresentar seus documentos assinados e, por isso, eu sempre respeitei essa organização” (Folha de S. Paulo, 25/8/82). Diante dessa declaração, tudo parecia se dissipar.

8. O ex-presidente da Comissão Justiça e Paz e o juízo temerário voar...

Mas a malevolência, como as vespas, melhor do que andar, sabe

2186

Imaginem meu pasmo lendo em dois números da Folha as desinibidas declarações em que o Sr. José Carlos Dias (ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz arquidiocesana de São Paulo) afirmava ter pistas que bem poderiam conduzir à demonstração de que as falsificações de O São Paulo e de outros textos emanados da esquerda católica poderiam vir da TFP!* * Essas declarações temerárias do ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo saíram na Folha de S. Paulo dos dias 8 e 9 do setembro de 1982.

Era preciso estar inteiramente alheio ao que significa, ao que tem de si como peso natural na vida das ideias, das correntes de pensamento e de ação que imprimem rumo a um país, uma impugnação, uma documentação, um livro, para imaginar que uma organização, a qual vinha fazendo à esquerda católica uma oposição alta, compacta e extensa como uma serrania, lucrasse o quer que seja em esborrifar contra essa mesma esquerda algumas gotas de água suja ou, em outros termos, um jornalzinho e uns folhetos falsificados. Para quem possuísse uma noção lúcida e serena da importância cultural do livro, como da importância real da cultura nas esferas pensantes de um povo, a hipótese cairia por terra a priori. O Sr. José Carlos Dias não entendia as coisas assim. E ei-lo a fazer tábula rasa dessa impossibilidade absoluta, e a acompanhar sequioso as investigações policiais na Artpress, gráfica pertencente ao Sr. Fausto Borsato, sócio da TFP que havia feito a impressão do livro sobre as CEBs. Segundo os próprios jornais, verificou-se que a Artpress não tinha máquinas capazes de imprimir O São Paulo autêntico, nem o falsificado. 2186 A TFP lança novo livro: esvoaçam as vespas da malevolência, Folha de S. Paulo, 3/9/82.


692 Insensível a tudo isso, o Sr. José Carlos Dias persistia nas suas suspeitas. E foi esse mesmo número falsificado que ele e o Sr. Bispo Dom Luciano Mendes foram levar — prestigiados por aparatosa repercussão publicitária — ao Sr. ministro da Justiça, Dr. Abi Ackel, e por meio deste, ao Sr. Presidente da República, general João Batista Figueiredo*. * Dias depois, os jornais estampam a notícia de que as investigações acabaram por levar à descoberta, em Belo Horizonte, da gráfica onde havia sido impresso o número falso de O São Paulo. A declaração prestada à Folha (de 18/9/82) pelo Delegado de Polícia, Dr. Carlos Antonio Sequeira, de que nada havia sido apurado contra a TFP, no tocante a esta encerrava definitivamente o caso, e punha termo às especulações malévolas. E os veiculadores das suspeitas injuriosas e estapafúrdias caíram no mais completo descrédito junto à opinião pública.

* Mas esta minha conversa não era com o Sr. José Carlos Dias. Era com o público que ele assim procurava intoxicar contra a TFP, no momento preciso em que esta lançava, acerca das Comunidades Eclesiais de Base, um verdadeiro livro-bomba. Então escrevi um artigo para a Folha de S. Paulo, refutando essas acusações. Nesse artigo, a que dei o título de Suspeita estapafúrdia e juízo temerário (15/9/82), eu perguntava se o Sr. José Carlos Dias saberia o que era o pecado de juízo temerário. E afirmei a ele que esse pecado tinha uma agravante enorme quando o juízo temerário era divulgado por duas vezes no jornal de maior circulação de São Paulo, isto é, precisamente na cidade de maior população do Brasil. Era o que eu, como presidente do Conselho Nacional da TFP, precisava dizer2187.

Capítulo V Guerra das Malvinas (1982) 1. Presença naval soviética nas cercanias das Malvinas: até onde a Rússia poderia chegar Paralelamente à agitação das CEBs, um acontecimento sul2187 Suspeita estapafúrdia e juízo temerário, Folha de S. Paulo, 15/9/82.


693 americano que me encheu de preocupação foi a guerra das Malvinas*. * Esta guerra iniciou-se no dia 2 de abril de 1982, quando a Argentina, em operação militar de surpresa, invadiu o Arquipélago das Malvinas, de lá expulsando a guarnição inglesa. A Inglaterra reagiu, mobilizando a Real Armada, iniciando-se assim o conflito nos mares do Sul.

Enquanto pendência estritamente argentino-inglesa, não nos tocava absolutamente intervir. Mas em determinado momento ficou claro para mim que a Rússia comunista havia posto a mão, apoiando um dos lados. Então me senti obrigado a tomar posição, pois ficava patente que a Rússia tinha um plano, um proveito a tirar. E nós não queríamos que ela tirasse esse proveito 2188. A presença de uma força naval da Rússia no Atlântico Sul − tão distante de seus mares árticos − e precisamente naquela hora crítica, punha em xeque aqueles dois países (a Argentina e a Inglaterra), e não só eles como também a toda a América do Sul. Essa força naval soviética seria provavelmente solicitada pela Argentina a prestar ajuda contra os ingleses*. * Dr. Plinio, na época, ficou especialmente preocupado diante de notícias como esta, publicada nos jornais El Día, de Montevidéu e El Universal, de Caracas do dia 6/4/82: “A superioridade militar inglesa pode, eventualmente, obrigar os argentinos a solicitar ajuda à URSS. Ou, melhor dito, a aceitá-la, pois esta já foi oferecida através da embaixada russa, enquanto submarinos soviéticos se mantêm à espera no limite das águas argentinas, pondo em evidência a rapidez com que essa ajuda possa chegar”.

Se tal ocorresse, os soviéticos formulariam inevitavelmente suas condições: por exemplo, um condomínio russo com a Argentina nas Malvinas e a participação das esquerdas argentinas no poder central da nação2189. * Essa simbólica presença naval russa, a despertar a esperança de um apoio pelo menos diplomático e econômico de Moscou e de seus satélites à Argentina, o consenso geral não teve dúvida em a relacionar com as sucessivas visitas de embaixadores da Rússia e da China à chancelaria argentina, e uma ostensiva aproximação, diretamente em virtude da ocupação das Ilhas, entre o governo até então militantemente anticomunista do general Galtieri e as esquerdas argentinas de toda sorte2190. 2188 SD 6/4/82. 2189 Entrevista a Letras em Marcha n.° 127, maio de 1982. 2190 Brasil, Argentina e Inglaterra face a um inimigo comum: o poderio soviético, Folha de S. Paulo, 7/5/82.


694 De qualquer um se poderia esperar que aceitasse esse apoio, menos precisamente do general Galtieri, o qual, desde empossado, começara uma ativa repressão anticomunista. Mas ei-lo que agora aparecia de braços dados com o embaixador comunista e das nações-satélites, em visitas de cordialidade. Ao mesmo tempo recebia afagos e acenos do governo de Pequim. E reabria para os terroristas montoneros exilados o caminho de volta, além de se pôr a cooperar com tudo quanto era peronista e esquerdista na Argentina2191. Esses grupelhos de extrema esquerda argentinos, até então perseguidos e contidos, começaram a se mostrar em conchavos na Casa Rosada e em missões exteriores de relevo* 2192. * Muitos anos depois, matéria publicada em O Estado de S. Paulo de 1° de abril de 2012, do correspondente em Buenos Aires, Ariel Palacios, revelou que era plano da junta militar argentina afundar navios ingleses em Gibraltar, sem reivindicar o ataque. Batizada de “Operação Algeciras” (Algeciras é uma cidade espanhola próxima a Gibraltar), ela seria realizada por um grupo de ex-guerrilheiros montoneros e por militares argentinos, que viajaram à Espanha para este fim. Os explosivos foram até Madri via mala diplomática, sendo depois transportados de carro pelo grupo argentino até aquela cidade do sul da Espanha. Mas a polícia espanhola desconfiou das pessoas, descobriu os explosivos, arrestou-os, e a missão fracassou.

Tudo isso reforçava a minha ideia de que aquela história das Malvinas era um jogo para facilitar a entrada de tropas comunistas russas no continente* 2193. * Onze anos mais tarde, o próprio Fidel Castro viria confirmar que até Cuba tinha oferecido tropas ao governo argentino. Em entrevista ao jornal Ambito Financiero, de Buenos Aires (26/7/93), ele disse “que seu país ofereceu enviar tropas em apoio à Argentina durante a guerra das Malvinas, em 1982, e sugeriu então que todos os países que quisessem ajudar, que formassem um batalhão, ‘uma coalizão de latino-americanos’. Explicou que ‘nós lhes sugerimos que não se rendessem, que fizessem uma coalizão latino-americana, que mantivessem a guerra’” (apud Catolicismo n° 520, abril de 1994). Também o presidente Kadafi — que capitaneava e apoiava o terrorismo mundial — prestou substancial ajuda na ocasião, embarcando secretamente para a Argentina, durante o conflito, armas num valor superior a 70 milhões de libras esterlinas, incluindo 120 mísseis soviéticos SAM-7. A informação é do jornal The Sunday Times (13/5/84), que ouviu o embaixador líbio em Buenos Aires. Segundo aquele embaixador, “o coronel Kadafi ofereceu ajuda incondicional e ilimitada à Argentina”, acrescentando que “estávamos nos preparando para abastecer com armas a Argentina enquanto durasse o conflito” (jornal cit.). 2191 Hipóteses, hipóteses..., Folha de S. Paulo, 22/5/82. 2192 Só por Essequibo?, Folha de S. Paulo, 1°/7/82. 2193 Despacho argentinos 3/2/92.


695 O jornal O Estado de S. Paulo publicou, em sua edição de 12/11/2006, documentos secretos liberados pelo governo brasileiro e relativos à Guerra das Malvinas. Neles revela-se que ”o governo brasileiro monitorou com preocupação a ajuda militar soviética prestada à Argentina em 1982”. Os referidos documentos falavam de abastecimento de armas e de urânio enriquecido à Argentina e assinalavam a ”intranquilidade das autoridades brasileiras com a aproximação da Argentina com os países de regime comunista ou próximos politicamente da União Soviética, especialmente por causa do abastecimento de armas, disponibilidade de bases aéreas e entrega de urânio enriquecido”. O periódico paulista informou ainda que os russos tentavam disfarçar a origem das armas soviéticas por meio do fornecimento através de outros países como a Líbia (cfr. Catolicismo n° 523, julho de 2007). E o número dois da KGB, general Nikolai Sergeievitch Leonov, em entrevista ao repórter Igor Gielow, da Folha de S. Paulo, embora procurando camuflar o vulto total da participação soviética no apoio aos movimentos insurrecionais comunistas latino-americanos, a certa altura afirmou: “estávamos dispostos a ir muito longe, muito mais do que se pensa” (cfr. FolhaOnline, 13/1/2008).

2. Por cima de direitos nacionais, prevalece o direito de Nosso Senhor Jesus Cristo Se as tropas russas desembarcassem na Argentina, sob pretexto de colaborar em sua defesa, quem obteria que a abandonassem? Para efetivar agora seus direitos às Malvinas, valia a pena a Argentina pagar tão imenso preço político? Como católico, como brasileiro, como sul-americano, eu só podia responder: não valia a pena2194. O que nós, da TFP, desejávamos era a expulsão dos russos do cenário sul-americano. E o ponto de nossa luta foi este. Não tínhamos o direito de ignorar que, perto de nós, estavam os navios de guerra dessa neta maldita de todas as Revoluções, que era a seita comunista instalada na Rússia. E este foi o pensamento central do comunicado que combinamos com a TFP argentina, bem como de toda a nossa conduta ao longo desses acontecimentos. Essa conduta consistiu em, por cima de direitos nacionais legítimos, fazer prevalecer o direito de Nosso Senhor Jesus Cristo de ser Rei do mundo inteiro, e que os inimigos de Deus fossem derrotados. Não havia discussão possível sobre este ponto 2195.

2194 Entrevista a Letras em Marcha n.° 127, maio de 1982. 2195 SD 28/4/82.


696

3. O valente e lúcido pronunciamento da TFP argentina Em conversa com os dirigentes da TFP argentina, ficou acertado que era indispensável que ela tomasse uma posição 2196 nessa disputa diplomática entre Buenos Aires e Londres acerca da soberania sobre as Ilhas Malvinas 2197. E ela a tomou através do documento que La Nación publicou com um belo destaque no dia 13 de abril daquele ano 2198. Esse documento teve uma repercussão excelente na Argentina. E mostrava muito acertadamente qual era o jogo que estava sendo feito 2199. E deixava claro que, se a Argentina viesse a se aliar à Rússia, ou a aceitar o apoio militar dela, ela iria perder muito mais do que ganhar2200, pois a sua independência no território continental seria posta em risco, em troca de uma reconquista de alguns territórios insulares. Notem bem que a TFP platina afirmava que a soberania era um direito da Argentina. Mas em seu manifesto ela ressaltava que o pior inimigo não era o que estava ocupando as Malvinas, mas o que poderia ocupar o país inteiro, ou seja, a Rússia2201. E que se a Rússia interviesse do lado argentino, era quase certo que os Estados Unidos interviriam do lado inglês, desencadeando-se assim o jogo de todas as alianças. A III Guerra Mundial ter-se-ia desatado por causa das Ilhas Malvinas. E a Argentina formando parte do bloco soviético!2202

4. Erisipela de conflitos: risco da vietnamização da América do Sul A leitura dos jornais tornava claro que o agravamento crescente da crise anglo-argentina poderia colocar nosso governo em circunstâncias de

2196 SD 14/4/82. 2197 Hipóteses, hipóteses..., cit. 2198 — O manifesto argentino foi depois publicado em importantes jornais de Buenos Aires, sob o título La independencia de la Argentina católica ante la efectividad de la soberanía en un territorio insular. E teve repercussão internacional, ao ser reproduzido em Washington, Nova York, Londres, Bogotá, Quito, Guayaquil, Caracas e Santiago do Chile. Eis a relação dessas publicações: Buenos Aires: La Nación, 13/4/82; Clarín, 15/4/82. Estados Unidos: The Washington Post, 30/4/82; The New York Times, 30/4/82; The Wanderer, 6/5/82; Human Events, 8/5/83. Colômbia: El Tiempo, Bogotá, 20/4/82 e Diario de la Costa, Cartagena, 24/4/82. Equador, El Comercio, Quito, 21/4/82 e Expreso, Guayaquil, 25/4/82. Chile: El Mercurio, Santiago, 15/4/82. Foi também publicado na Venezuela e em jornais de Londres, bem como levado ao ar pela BBC de Londres. Na Espanha, a Sociedad Cultural Covadonga distribuiu o manifesto nas ruas (cfr. Covadonga Informa, n° 55-56, março-abril de 1982). 2199 SD 14/4/82. 2200 Russos poderão aproveitar tensão nas Malivinas, Letras em Marcha nº 127, maio de 1982. 2201 SD 14/4/8. 2202 SD 14/4/82.


697 tomar atitudes mais e mais próximas de um envolvimento 2203. Havia o empenho da Rússia soviética em promover várias guerras simultâneas, que lançassem no caos o bloco populacional católico maior do mundo2204. O que por sua vez traria o grave risco de um reacender do terrorismo, de guerrilhas, agitações e convulsões em todos os lugares do continente sul-americano em que havia comunistas 2205. Além disso, eu havia recebido um telefonema de pessoas de nosso Bureau em Washington, dizendo-me que haviam conversado com personalidades norte-americanas de importância e estas achavam que os Estados Unidos iriam apoiar a Inglaterra, e que uma ação bélica era inadiável. * Outra série de dados também acabava de me chegar de nossos irmãos da Venezuela, que apresentavam uma situação com a qual absolutamente eu não estava familiarizado. Eles me diziam que a Guiana britânica era independente, mas fazia parte da Commonwealth. E há nessa Guiana um pedaço de território que a Venezuela reclama para si. O Presidente da Venezuela na época, Herrera Campins, se declarara peremptoriamente favorável à Argentina e contrário à Inglaterra, deixando entrever que ele queria invadir a Guiana inglesa logo que pudesse. De outro lado, a Colômbia tinha uma questão territorial com a Venezuela, a respeito de uma faixa petrolífera muito rica. E a Colômbia sempre se considerou dona dessa faixa, sustentando que a Venezuela a teria ocupado indevidamente. E a Colômbia havia se declarado, por sua vez, muito contrária à Argentina e favorável à Inglaterra. Quer dizer, na eventualidade de a Inglaterra vacilar nas Malvinas, a Venezuela poderia querer atacar a Guiana. Mas a Venezuela tinha o problema de que ela poderia ser atacada pela Colômbia. Obviamente a Inglaterra conhecia todas essas reclamações da Venezuela contra a Guiana, e sabia bem que, se ela cedesse nos mares do Sul, enfrentaria outro obstáculo no Norte. E ela corria o risco de não sofrer apenas isso, porque tinha Gibraltar que é reclamada pelos espanhóis. As Malvinas eram então, para a Inglaterra, a chave que abriria ou 2203 Brasil, Argentina e Inglaterra face a um inimigo comum: o poderio soviético, cit. 2204 Garantia notarial, tabelioa, Folha de S. Paulo, 24/7/82. 2205 Hipóteses, hipóteses..., Folha de S. Paulo, 22/5/82.


698 fecharia a possibilidade de todos esses outros ataques. E devia estar fazendo insistências junto aos Estados Unidos para ser sustentada. Havia ainda uma roldana contínua de reivindicações entre nações hispano-americanas: o Equador reivindicava terras que o Peru ocupa. A Bolívia tinha uma questão com o Chile. Na Argentina havia uma disputa das Ilhas Beagle também com o Chile. De proche en proche todas essas reivindicações podiam pegar fogo . Uma erisipela de guerras poderia se alastrar pela América do Sul, com as corolárias crises econômicas e revoluções sociais 2207. 2206

No fundo ficava aberta a já referida possibilidade de uma vietnamização da América do Sul. Vendo tudo isso, compreendia-se o caráter mundial dessa jogada que se resolvia nos mares da Argentina. Era a política mundial transplantando seu centro para a América do Sul.

5. Telex ao Presidente Figueiredo Eu via também que o Brasil, com tantas fronteiras a sustentar de tantos lados, dificilmente ficaria à margem desse conflito. Ainda que ficasse diplomaticamente à margem, todos os esquerdistas brasileiros iam começar a torcer pelo lado comunista dos outros países, e todos os anti-esquerdistas iriam torcer pelo lado anticomunista. E o Brasil ficaria dividido. Eu percebia bem que uma palavra da TFP, jogada no momento certo e do modo certo, poderia decidir um futuro enorme 2208. Foi então que enviei uma carta ao Presidente Figueiredo, discorrendo sobre todas essas razões. Assim, pouco tempo depois que saiu o pronunciamento argentino, passei um telex ao presidente Figueiredo e mandei texto análogo ao Ministro das Relações Exteriores, que era então o Sr. Saraiva Guerreiro, pedindo a ambos que, no balizamento de nossa atuação política, tomassem em consideração as preocupações da TFP argentina com a entrada da Rússia no conflito2209. Nessa carta, eu dizia que uma experiência dolorosa mostra que quem quisesse resistir à agressão do superpoder soviético teria de recorrer ao superpoder norte-americano. E seria a vietnamização do Brasil e da 2206 SD 28/4/82. 2207 Hipóteses, hipóteses..., cit. 2208 SD 28/4/82. 2209 SD 14/4/82.


699 América espanhola que teria começado2210.

6. Publicação da carta e campanha de rua A carta a Figueiredo foi publicada na Folha em primeira mão, e depois em mais 13 jornais das principais capitais de Estado*. * Na Folha de S. Paulo, essa carta saiu no dia 7/5/82. Poucos dias depois (dia 11), o presidente Figueiredo viajou para os Estados Unidos, mantendo contato com o Presidente Reagan e com o secretário de Estado Alexander Haig. Segundo um documento secreto do Conselho de Segurança Nacional da época, a que o matutino O Estado de S. Paulo teve acesso anos depois, Haig e Figueiredo falaram abertamente sobre o risco de a União Soviética aproveitar-se do conflito para aumentar sua margem de influência em relação aos argentinos. E o Presidente Figueiredo afirmou, num desses encontros, que existia o risco de que o acirramento do conflito fizesse com que a Argentina pudesse virar o “Vietnã da América Latina” (cfr. matéria de Marcelo de Moraes / Brasília, in OESP, edição de 3/4/2012).

A TFP lançou em seguida uma campanha de rua distribuindo um volante que divulgava para o Brasil inteiro essa carta. E assim os grossos carrilhões da TFP começaram a tocar 2211. Estive pessoalmente em alguns lugares dessa campanha em São Paulo. E pude notar a atitude das pessoas em relação ao nosso pronunciamento. A impressão que me ficou é que estava tendo um êxito espetacular. Sintoma disso foi que, em São Paulo, a tiragem da Folha de S. Paulo com o nosso manifesto se esgotou rapidamente, até a hora do almoço, em todas as bancas de jornais. O que significava que a publicação havia impressionado muita gente 2212.

7. Balanço de uma campanha providencial Na tensão a propósito das Malvinas, o que a mim mais me afetava como católico, como brasileiro e como homem de tradição, não era a disputa entre a Inglaterra e a Argentina. Mas a constatação da lamentável fragilidade de todo o Ocidente face ao imperialismo soviético. Pois a simples presença de uma força naval da Rússia no Atlântico Sul, naquele momento crítico, punha em xeque, simultaneamente, a grande e querida potência sul-americana que é a Argentina, quanto a ilustre e provecta potência europeia e mundial que é a Inglaterra. Isto a prazo imediato. 2210 Brasil, Argentina e Inglaterra face a um inimigo comum: o poderio soviético, cit. 2211 SD 28/4/82. 2212 SD 12/5/82.


700 A prazo mediato, poderia ter convulsionado toda a América do Sul, inclusive meu Brasil, e lançado à guerra as superpotências norte-americana e russa. Era a esse estado de debilidade que havia chegado o Ocidente, por obra do calamitoso governo Carter e da dupla détente norte-americana e vaticana em relação a Moscou. O verdadeiro conteúdo dessas duas détentes, da Casa Branca e do Vaticano, foi o afrouxamento. E os soviéticos não se “distenderam”. Ora, um afrouxamento unilateral só podia redundar na derrocada dos afrouxados. E este nos conduziu ao que se passou a propósito da força naval russa perto das Malvinas. Minhas simpatias não se deviam voltar, pois, para a Inglaterra ou para a Argentina, mas simultaneamente rumo à Inglaterra e à Argentina contra a Rússia soviética. Paradoxo? De nenhum modo. De um lado, não se podia pedir à Argentina que renunciasse às suas tradicionais reivindicações. De outro, pense-se o que se pensar do valor das alegações inglesas em favor dos direitos da Commonwealth a essa e outras possessões, uma coisa não se podia pedir ao governo inglês: era que naquele momento recuasse ante tais reivindicações. Também não se podia pedir à Argentina, à Venezuela ou à Espanha que renunciassem a suas tradicionais reivindicações. Mas era impossível não discutir a oportunidade da ocupação militar argentina naquele momento. Porque uma força naval soviética se encontrava na zona. E isto punha em risco grave a própria soberania da Argentina no seu território continental 2213. A Rússia evidentemente teria fornecido tropas para desembarcar na Argentina. E teria tomado comodamente as ilhas Malvinas, tanto mais que contaria com o apoio logístico das Forças Armadas argentinas à vontade. Mas os russos não sairiam mais. Eles imporiam à Argentina um governo comunistoide. E isso teria agravado prodigiosamente a situação da América do Sul inteira 2214. Se a opinião pública argentina, esclarecida por dois lúcidos e ágeis comunicados da TFP platina, não tivesse rejeitado bravamente a

2213 Já, já e já, Folha de S. Paulo, 29/4/82. 2214 Palavrinha 2/12/82.


701 colaboração comunista, o módico cupinzeiro comunista existente em terras platinas teria intumescido desmedidamente, tentando transformar num gigantesco cupim toda a nação 2215. Os comunicados tiveram portanto a intenção de cortar o caminho2216 e torpedear a possibilidade de uma ajuda russa* 2217. * Na já citada entrevista do alto-funcionário da KGB, general Nikolai Sergeievitch Leonov à Folha Online, este afirma: “Eles, os argentinos, precisavam de mísseis terra-ar, ar-mar e mar-mar, mas não se atreveram a comprar armamento soviético. Então tentamos fornecer imagens de satélite da movimentação da Força Expedicionária Britânica no Atlântico, mas acho que eles desconfiaram dos dados que nós enviamos e os contatos morreram”. E acrecentou: “Havia um fator ideológico, eles eram uma ditadura anticomunista, não poderiam introduzir armas soviéticas no cenário de guerra”. E o repórter da Folha acrescentou o seguinte comentário: “Efetivamente, à época da guerra os britânicos localizaram barcos e submarinos soviéticos perto das águas do conflito, e bastou essa insinuação de apoio, que nada teve a ver com as negociações secretas em Buenos Aires, para que grupos como a Tradição, Família e Propriedade argentinos fossem às ruas para criticar o até então popular governo em guerra” (cfr. Folha Online, 13/1/2008, cit.).

* Se isso parou ou não pela voz da TFP argentina, se encontrou ou não obstáculos no pronunciamento e na publicidade feita pela TFP brasileira e pelas outras TFPs, pelo menos sofreu grave dano. Não se pode negar2218. A Rússia saiu do episódio na postura de um batedor de carteira apanhado com a mão no bolso da vítima. Isto é, em pleno ato de intervir, por meio de pressões internas e externas, e movida por seu expansionismo ideológico, em uma nação sul-americana. Assim se evitou que os “cupinzeiros” comunistas se intumescessem perigosamente em toda a América do Sul2219.

Capítulo VI Nova República: luta contra o tufão agro2215 Só por Essequibo?, cit. 2216 Palavrinha 2/12/82. 2217 SD 23/6/82. 2218 SD 16/4/82. 2219 Só por Essequibo?, cit.


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reformista (1985) 1. Com a Nova República, a velha Reforma Agrária Caiu em 15 de março de 1985 o regime militar. A Abertura esteve prestes a levar ao poder o Presidente eleito, Tancredo Neves. A morte deste franqueou a suprema magistratura ao seu companheiro de chapa, o VicePresidente José Sarney*. * Este tomou posse no dia 15 de março de 1985.

Naqueles dias, a tempestade agro-reformista irrompia e se estendia por todo o País 2220. * Já em maio, o Presidente Sarney apresentou para debate o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária, que ficou conhecido como o PNRA. Era baseado no Estatuto da Terra. Ninguém duvidava de que iríamos intervir. Nossa posição estava mais do que definida nessa matéria. Não éramos oposicionistas do Governo, pois não tínhamos nada contra ele. Mas na medida em que o Governo se mostrava a favor da Reforma Agrária de cunho socialista e confiscatório, neste ponto tínhamos que estar num desacordo radical com ele. Aliás, o Governo estava farto de saber disso 2221. A CNBB hipotecou público apoio ao PNRA. Os jornais disseram largamente que o Presidente Sarney estava em íntima conexão com a CNBB2222. O pacto reformista entre o governo e a CNBB, selou-o a nomeação para o recém-criado Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD), de uma figura presumivelmente conhecida nos meios agroreformistas, chegada às CPTs e às CEBs, mas perfeitamente desconhecida do grande público, o Sr. Nelson Ribeiro. A este não faltaram operosidade, agilidade e garra. Febrilmente desejoso de efetuar o quanto antes a aplicação integral do Estatuto da Terra e do PNRA, o novo titular desenvolveu contra a estrutura agrária vigente, toda a força de impacto de que dispunha. Arrojou-se a uma série de empreendimentos que chocaram a tal ponto a classe rural e a opinião pública em geral que, quando sobreveio em 2 de julho de 1985 o decreto declarando prioritária, para fins de reforma 2220 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2221 Chá 5/4/85. 2222 Entrevista à TV Capital (Brasília), programa Mensagem ao Presidente, 10/9/85.


703 agrária, toda a área do município de Londrina, capital agrícola próspera do Estado do Paraná, o Presidente Sarney não só sentiu a necessidade política de revogar imediatamente o decreto delirante, como ainda se viu na contingência de voar a Londrina com um séquito luzidio, do qual faziam parte nada menos que quatro ministros — entre eles o Sr. Nelson Ribeiro — tudo para recitar o “mea culpa” do governo ante o mundo agrícola desnorteado e alarmado.

2. Um livro para denunciar o caráter confiscatório e socialista do PNRA Mais uma vez estávamos diante do desconcerto geral do País, e especialmente de tantos lavradores que não sabiam para onde voltar-se2223. Então, clamorosamente reclamado pelas circunstâncias em que vinha afundando o País, tive de redigir, com o Master of Science em Economia Agrária pela Universidade de Berckeley (Califórnia), Carlos Patrício del Campo, o livro A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista 2224, que fazia uma análise pormenorizada do PNRA, e apontava o seu caráter socialista e confiscatório, bem como do Estatuto da Terra2225. A argumentação usada no livro demonstrava que a eventual aplicação da Reforma Agrária nos termos do Estatuto da Terra e do Plano Nacional de Reforma Agrária constituiria para o Brasil impressionante passo no caminho do socialismo. O novo livro demonstrava também a grave inoportunidade dessa aplicação, em razão do natural nexo do agro-reformismo com aspectos da Teologia da Libertação, e portanto com a crise religiosa que assolava então o Brasil. Havia arrebentado aqui o caso Boff. E quando Frei Boff foi objeto de medidas da Santa Sé, Bispos brasileiros assinaram um documento oficial, declarando-se inconformes com as resoluções tomadas pela Santa Sé*2226. * Com efeito, no dia 11 de março de 1985 saía a público a “Notificação” da Congregação da Doutrina da Fé, aprovada pelo Papa João Paulo II, sobre o livro Igreja, Carisma e Poder, do então Frei Leonardo Boff, dizendo que “as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza, que põem em perigo a sã doutrina da fé” (cfr. site do Vaticano). No mesmo ano, ele foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso”. 17 Arcebispos e Bispos brasileiros se declararam então expressamente "inconformes" com a medida.

2223 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2224 Guerreiros da Virgem: a réplica da autenticidade, cit. 2225 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2226 Nos planos espiritual e temporal, desestabilização que tende para o caos, Catolicismo n° 417, setembro de 1985.


704 Mais tarde, Boff abandonou o sacerdócio e oficializou sua união com uma mulher divorciada, mãe de seis filhos.

O livro estava praticamente pronto, mas ainda não publicado, quando um fato marcante favoreceu a publicação. Desse fato vamos falar agora.

3. Retumbante intervenção de diretor da TFP A divulgação do PNRA desencadeou uma chuva de críticas dos líderes mais em evidência das associações de produtores rurais, críticas essas que se mantiveram acesas mais ou menos por uma quinzena. Porém se notou que, em seguida, elas amainavam, tendendo a pleitear que o governo pusesse de lado o PNRA, ou pelo menos o mitigasse, de forma a ajustá-lo ao Estatuto da Terra. Este, sim, deveria ser aplicado, pois se considerava que a Reforma Agrária nele estabelecida era justa e boa. Se esta era a posição dos líderes das associações patronais, tal não era a dos proprietários em geral, conforme se manifestou no Congresso que reuniu em Brasília, nos dias 27 e 28 de junho, cerca de 4 mil agricultores e pecuaristas. Uma oportuna intervenção do Eng.º Plinio Vidigal Xavier da Silveira mudou o rumo dos debates, e deu ocasião a que subisse à tona o descontentamento latente dos fazendeiros, não apenas com o PNRA, mas em relação ao próprio Estatuto da Terra* 2227. * O congresso fora convocado pela Confederação Nacional da Agricultura para os dias 27 e 28 de junho de 1985. Os cerca de 4 mil fazendeiros presentes estavam certos de que ali seriam defendidos os seus direitos ameaçados pelo PNRA. Mas os discursos tocavam só de leve sobre esses pontos, e a sessão ia transcorrendo numa atmosfera mortiça e apagada. Por fim, a mesa passou a ler o documento final em que ela, embora rejeitando o PNRA, pleiteava absurdamente a aplicação do Estatuto da Terra, que era a substância do PNRA. Nesse momento, Dr. Plinio Xavier tomou o microfone e disse: “Peço a palavra!” E então manifestou de modo veemente a sua oposição ao documento, dizendo com toda a firmeza que os fazendeiros estavam ali, não para aprovar o Estatuto da Terra, mas para lutar contra ele e o PNRA. Aí o auditório pegou fogo! E explodiu em aclamações e aplausos entusiásticos, que cobriram inteiramente a voz da mesa, a qual se sentiu paralisada e surpresa diante de uma reação com a qual não contava. A inconformidade latente dos agricultores tornou-se manifesta, patente e categórica: vários oradores tomaram a palavra, endossando Dr. Plinio Xavier da Silveira e declarando de modo veemente o seu repúdio ao agro2227 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit.


705 reformismo tanto do PNRA como do Estatuto da Terra. Nessas intervenções foram frequentes as críticas à posição da CNBB, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e das CEBs, bem como à posição concessiva de certos proprietários. No dia seguinte, a mesa apresentou outro documento que, embora não elogiasse mais o Estatuto da Terra, omitia de criticá-lo, em dissonância com o sentir da imensa maioria dos proprietários rurais presentes. Mas a reação despertada pela intervenção de Dr. Plinio Xavier da Silveira sinalizou ao governo a profunda impopularidade da Reforma Agrária que a Nova República e a CNBB queriam levar a ferro e a fogo para a frente.

Tenho como certo que, se essa posição dos dirigentes rurais tivesse prevalecido, os proprietários iriam sentir no seu bolso a mão confiscadora do Estado. E aí seria tarde para a classe rural cobrar isso dos seus líderes, porque todos já teriam ido por água abaixo 2228. * Na ocasião, sócios e cooperadores da TFP distribuíram aos assistentes um prospecto anunciando o próximo lançamento de A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, o novo livro da entidade em preparação.

4. Pontos importantes do livro De um lado e de outro, as posições estavam tomadas e a polêmica engajada, o que favoreceu a publicação do nosso livro 2229. Com frequência, o PNRA alegava princípios de justiça para fundamentar o que, de sua parte, a TFP — em uníssono com milhões de brasileiros — não hesitava em qualificar de confisco agrário. E os mesmos princípios de justiça, ele os invocava também para denunciar como radicalmente inaceitável o regime fundiário constituído de grandes, médias e pequenas propriedades. Ora, pelo contrário, milhões de brasileiros estavam persuadidos de que, em si mesmo, nada havia de injusto em tal forma de distribuição da terra, contanto que a propriedade privada — quaisquer que fossem as dimensões — cumpria dedicadamente sua função social. Havia, instalado no Brasil, um desacordo fundamental e amplamente difundido sobre o conceito de justiça. Exatamente o conceito de justiça, e suas aplicações práticas, que 2228 Chá ENSDP 12/8/85. 2229 — Do livro foram publicadas duas edições, num total de 16 mil exemplares, além de 34 mil da edição especial de Catolicismo contendo excertos da obra. Sua difusão foi feita em campanhas nas vias públicas das principais capitais do País e, a partir do dia 23 de agosto, por 52 duplas de propagandistas, as quais visitaram 694 cidades em 19 Estados.


706 eram largamente empregados pela Teologia da Libertação. Os adeptos da Teologia da Libertação faziam girar sobre uma concepção radicalmente igualitária de justiça, a parte mais importante de sua argumentação agro-reformista. Essa justiça igualitária é oposta ao conceito cristão bimilenar, segundo o qual pensam os católicos tradicionais contrários à Reforma Agrária. Levantando precisamente naquele momento a questão agrária, o governo não conseguiria evitar uma conexão entre o debate agro-reformista e o debate teológico-filosófico instalado nos ambientes católicos. Envolvendo-se com uma questão de justiça, o governo laico se situaria assim no centro de uma controvérsia religiosa e filosófica candente. No horizonte se ia delineando uma eventual crise religiosa. A TFP alertava o governo para o fato básico de que o Brasil mediano, o Brasil sensato, o Brasil autêntico não queria nem o Estatuto da Terra, mero resíduo, em plena abertura, de um ato característico da era militar, promulgado às pressas e sob pressão, com o consenso de um Legislativo então inseguro e pouco influente. Uma abertura que impusesse por força de uma lei de um governo forte, a 130 milhões de brasileiros, uma imensa Reforma Agrária que a grande maioria deles não queria — e isto sem tempo suficiente para que eles se informassem, opinassem e debatessem — tal abertura atentaria contra si mesma, pois deixaria de ser abertura 2230.

5. Os agro-reformistas obrigados a mudar de tática A conduta do governo em matéria agro-reformista trazia para este a necessidade de mudar de estratégia. Tal necessidade, imposta pela atitude tanto dos proprietários como dos trabalhadores do campo, teria obviamente por meta a reconquista, pelo governo, da popularidade que seu agro-reformismo lhe fizera perder em largos setores rurais, lhe abalara seriamente em outros, e lhe valera a desconfiança generalizada em todos os setores do País, quer no tocante à eficácia da reforma planejada, quer no concernente aos pendores socialistas — na melhor das hipóteses — do ministro Nelson Ribeiro.

2230 A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, cit., Parte I, Capítulo 1.


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6. A nova tática: ordas de invasores, sob a batuta de eclesiásticos Segundo a imagem do País até então apresentada pelo IV e V Poderes conjugados [ou seja, a mídia e a CNBB], as cidades e os campos de nosso território-continente estavam sempre mais imersos na miséria, “os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”, segundo os princípios da crítica marxista. Em consequência, uma geral explosão de inconformidade estaria para estourar no País. Essa explosão traria derramamentos de sangue generalizados, cujas principais vítimas seriam os proprietários, menos numerosos que os proletários, e portanto necessariamente inferiores à força bruta da imensa massa dos trabalhadores manuais. Como exemplo, o “caso” característico da Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, invadida em outubro de 1985. Nos estandartes dos invasores soprava o vento de certa Teologia da Libertação, a que deviam o apoio de tão grande parcela da CNBB. Todos recomendavam aos fazendeiros uma política de concessões: “ceder para não perder”. Em outros termos, fossem os produtores rurais cedendo lentamente, e conservariam por mais algum tempo a posse — sempre mais reduzida — dos respectivos bens. Pois estariam matando, aos poucos, a fome da fera que seria o polvo deste fim de século. Se o primeiro avança sempre, e o segundo cede sempre, chegaria um dia em que o primeiro teria ganho tudo, e o segundo teria perdido tudo. Em outros termos, o proletariado terá destruído o patronato, e estará implantada no Brasil uma organização sócio-econômica sem classes: precisamente a meta comunista. Agitadores agro-reformistas reunidos por impulso de numerosos vigários, religiosas, e muitos núcleos de CEBs, há tempos vinham constituindo hordas de invasores, com o manifesto intuito de tornar a Reforma Agrária um fato consumado à margem da lei 2231. Eles procuravam justificar suas investidas tomando por base uma fundamentação doutrinária de aparência católica2232. Como se fossem planejadas por uma só máquina central, as invasões de terras costumavam desenvolver-se em zona afetada pela 2231 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2232 Auto-retrato filosófico, cit.


708 agitação de católicos de esquerda, em geral intimamente ligados ao pároco ou ao Bispo. Depois de algumas negociações (leia-se intimidações!) feitas com os proprietários, apoiadas, no mais das vezes, pelo vigário ou pelo Bispo, invadiam desinibidamente o bem alheio. As “negociações” prosseguiam então — já agora lideradas pelo padre ou pelo Bispo — e o proprietário, ou abandonava o local para salvar a própria vida e a dos seus, ou capitulava desde logo, aceitando ser desapropriado por preço vil. Não era tão raro o caso de que o proprietário fosse pura e simplesmente morto pelos “pobres” ocupantes. O que obrigaria a família a fugir sem compensações a breve prazo 2233. E já começavam a ecoar nas profundidades de nossos sertões os brados-slogans “pega fazendeiro”2234. * Nessas circunstâncias, jogavam um papel decisivo os homens de Igreja, que deveriam interferir criando uma questão de consciência para os agressores, que cometiam um enorme pecado ao apropriar-se dos bens alheios. Porque a propriedade privada está garantida pelos 7° e 10° Mandamentos da Lei de Deus: "Não roubarás" e "Não cobiçarás as coisas alheias". Entretanto, os fatos indicavam que as manifestações de eclesiásticos − inclusive Bispos − criavam uma questão de consciência, não no espírito dos agressores, mas no espírito dos agredidos, procurando convencê-los de que a justiça, o espírito do Evangelho − numa palavra, Nosso Senhor Jesus Cristo − está ao lado do agressor. O agressor estaria fazendo justiça, e os proprietários não teriam os direitos que pensam ter2235. Realizavam-se assim, em cerrada cadência, as invasões e as ocupações de terras, sob os acesos aplausos da CNBB, com o bafejo de quase todos os meios de comunicação social, e em presença dos sorrisos algum tanto embaraçados, mas visivelmente comprazidos, do Poder Executivo2236.

7. Pareceres jurídicos sobre a legitimidade da pronta reação 2233 Claro, forte e logo, Catolicismo n° 404, agosto de 1984. 2234 As CEBs... das quais muito se fala, pouco se conhece — A TFP as descreve como são, cit. 2235 Esquerda católica, conscientização, revolução - Alerta da TFP, modorra dos fazendeiros, Catolicismo n° 406-407, outubro/novembro de 1984. 2236 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit.


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contra os invasores Uma das coisas que me chamavam a atenção era que, muitas e muitas vezes, os proprietários de terra reagiam a essas invasões com uma indecisão e uma ineficácia notáveis, por não estarem certos de seus direitos sobre a terra, e nem do direito que tinham de reagir pessoalmente contra os invasores 2237. Lembro-me de ter comentado com Dr. Plinio Xavier que os fazendeiros estavam com muito receio de defender suas fazendas esbulhadas e de sofrer por causa disso uma vindita que poderia ser eventualmente o cárcere. O problema que provavelmente havia no espírito deles era: “Será que a lei penal não contém uma arapuca qualquer por onde, se nós reagirmos às invasões, vamos parar na cadeia?” Por causa disso, não havia reação da parte deles 2238. * Nesse quadro, o que a TFP propôs? Uma coisa que não era bem conhecida dos fazendeiros era o fato de que a lei lhes colocava nas mãos a possibilidade de se defenderem do esbulho de suas terras, sem derraparem para a ilegalidade. O que eu desejava era, primeiro, que os proprietários soubessem disso. Segundo, que o Governo soubesse que eles sabiam. Terceiro, que os mentores da agitação rural também o soubessem. Quarto, que o Brasil inteiro - que não via isso claro - ficasse sabendo que isto era assim, para tirar base às explorações que a CNBB, a imprensa esquerdista e outras instituições de esquerda faziam nessa linha. O instrumento para isso seria exatamente que juristas de renome nacional dessem pareceres que mostrassem que o fazendeiro, turbado ou esbulhado na posse de suas terras, tinha o direito de se defender até mesmo à mão armada, caso não fosse socorrido pelo Poder Público. O ideal seria publicar esses pareceres na imprensa, rádio e TV, bem como notícias deles serem espalhadas pelas agências internacionais. Dessa difusão a TFP poderia se encarregar 2239. * A TFP tomou então contato com alguns fazendeiros2240. Um dos 2237 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 2238 RR 18/10/86. 2239 Despacho 5/10/85. 2240 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90.


710 consulentes foi o Dr. Osmar Peres Caldeira, advogado e fazendeiro residente em Montes Claros (MG)2241. Eles se cotizaram para a publicação de Pareceres de dois eminentes jurisconsultos brasileiros a respeito deste ponto concreto: uma vez que às portas de uma fazenda se aproximasse uma coluna de aventureiros pseudotrabalhadores famintos que ali quisessem se instalar, qual era o direito que a lei conferia ao proprietário para reagir contra essas hordas? 2242 Aos jurisconsultos escolhidos sobravam saber e fama para responder com segurança às perguntas dos fazendeiros. Eram eles o Professor Silvio Rodrigues, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e o Professor Orlando Gomes, da Universidade Federal da Bahia. Seus Pareceres, verdadeiras obras-primas pelo valor jurídico, pela clareza e pela força de sua argumentação, bem como pelo cunho firme e cristalino das conclusões a que chegaram, foram datados respectivamente de São Paulo e Salvador em outubro e novembro de 1985, respectivamente. Demonstraram eles que, segundo o Código Civil (art. 502), o legítimo proprietário, desassistido da autoridade policial, tem o direito de defender-se, e às suas terras, contra o esbulho dos invasores e ocupantes agro-reformistas — o que pode fazer inclusive à mão armada quando necessário2243. A partir de janeiro de 1986, a TFP deu a mais ampla divulgação aos Pareceres, fazendo-os publicar em 87 jornais de 76 cidades de 21 Estados2244. A difusão desses Pareceres, acompanhada de exposições ou reuniões para fazendeiros e também para trabalhadores rurais manuais, realizadas por sócios ou cooperadores da TFP em 181 localidades, repercutiu amplamente no País. E avivou nos proprietários a determinação de resistirem, dentro da lei . Começaram a aparecer os casos em que proprietários inconformados, desassistidos pelas autoridades federais e estaduais, preparavam a resistência armada com seus próprios recursos 2246. 2245

2241 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2242 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 2243 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2244 Auto-retrato filosófico, cit. 2245 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2246 Claro, forte e logo, cit.


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8. Zoeira comuno-esquerdista contra os Pareceres Era de esperar que a publicação desses Pareceres fosse acolhida com aplauso geral. Pois outra não devia ser a atitude dos bons brasileiros diante de proprietários rurais que, postos em situação sumamente aflitiva, timbravam em defender seus direitos, mas só nos limites da lei. Entretanto, larga parcela dos meios de comunicação social se esmerou em fazer o contrário. Focalizando com luz desfavorável os fazendeiros que agissem segundo os Pareceres, puseram-se a clamar que a campanha da TFP propagava a violência nas vastidões do ager brasileiro. Comentário absolutamente tão descabido como o de quem alegasse que os guardas de proteção postados nos edifícios bancários para a defesa das pessoas e bens ali presentes, constituíssem foco de violência nas cidades. Violência! Obviamente há uma violência injusta: é a de quem ataca os direitos conferidos pela Lei de Deus e pelas dos homens. E há uma violência justa, a qual constitui um direito, e conforme o caso até um dever: é a dos que defendem seus próprios direitos, ou ajudam seu próximo a agir do mesmo modo quando atacado. Vociferando indiscriminadamente contra qualquer violência, em notícias acerca de fazendeiros dispostos a defenderem seus direitos, tais órgãos de comunicação social apenas tinham palavras de simpatia e de encômio para os esbulhadores, mesmo quando usavam de ameaça ou de violência efetiva contra o proprietário rural. Essa contradição só se explicava em função da máxima do comunista francês Proudhon: “A propriedade, eis o roubo”. Máxima esta que ecoa a seu modo em toda a literatura comunista, de Marx até nossos dias. Mas a opinião pública não se deixou arrastar por essas vozes enganosas. E não houve quem — fora dos ambientes da esquerda católica, do PCB e do PC do B — tomasse a sério essas acusações. E era fácil perceber que, uma vez difundidos os Pareceres, os fazendeiros que agissem segundo eles teriam a compreensão decidida do Brasil inteiro. E assim se evitou que hordas de agitadores dessem, por sua própria deliberação, como abolidos, dispositivos essenciais do Código Civil e do Código Penal. Pois se a estas hordas se reconhecesse esta exorbitante atribuição de revogar a lei, e de a substituir por outra estabelecendo precisamente o contrário, o Brasil teria soçobrado na pior das ditaduras, que é a do populacho criminoso, e dos enigmáticos revolucionários que o manipulavam detrás dos bastidores, nas grandes convulsões políticas e


712 sociais, das quais foram sinistros paradigmas a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução comunista de 1917. Como sempre, também essa propaganda, de tão ampla envergadura, foi levada a cabo pela TFP na maior ordem e na mais estrita conformidade com as leis humanas e divinas. O que valeu à entidade atestados de delegados, prefeitos e outras autoridades municipais, comprobatórios da conduta modelar dos sócios, cooperadores e correspondentes da TFP. Atestados estes que vieram juntar-se a outros análogos, gloriosos trunfos de anteriores campanhas, atingindo o total de 4.317 certificados do gênero.

9. Decrescem as invasões: CNBB baixa o tom Com expressiva simultaneidade, as invasões e ocupações foram caindo de número, a ponto de, em certo momento, parecerem cessadas! Mas o declínio das invasões e das ocupações parece ter feito ver a nosso Episcopado — agro-reformista fogoso, desconto feito de raras e nobres exceções — que o povo não o acompanhava. O fato é que gradualmente diminuíu o número das declarações e “façanhas” agro-reformistas aparatosas, e a CNBB pareceu calar-se quase por inteiro sobre o grande tema, até há pouco tão de sua predileção. Deu-se isto porque a proximidade das eleições de 15 de novembro teria sugerido à CNBB concentrar-se na orientação do eleitorado acerca da Constituinte?2247.

Capítulo VII Projeto de Constituição angustia o País (1987) 1. Uma cascata de inautenticidades contra o Brasil católico Pouco depois de amainadas as invasões, li a notícia de que o povo brasileiro fora convocado para escolher uma Assembleia Nacional Constituinte, que funcionaria concomitantemente como Congresso nacional (Câmara e Senado)2248. Uma vez chegado o período eleitoral, começou um estilo de propaganda, o mais lamentável possível 2249. A propaganda que os políticos 2247 A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, cit. 2248 Projeto de Constituição angustia o País, cit. 2249 Entrevista a Catolicismo n° 467, novembro de 1989.


713 faziam costumeiramente era da respectiva cara. Era uma cara com bigodinho, sorrindo, ou outra cara com olhar wagneriano, como quem prometesse ao Brasil um futuro gigantesco. E daí para fora. Eram caras, caras e caras; nomes, nomes e nomes... e só. Eles não apresentavam nenhum princípio, não davam nenhuma meta, não articulavam nenhum programa2250. Lembro-me de ter visto, na campanha para a Constituinte, um desses cartazes de propaganda com a cara enorme de um homem, e apenas os dizeres: "Fulano de tal é federal" 2251. Mais nada. A cara dele era o único argumento para ser eleito 2252. O mandato popular para fazer a nova Constituição foi conferido, na maior parte dos casos, a cidadãos brasileiros acerca dos quais o eleitorado ignorava o que pensavam no tocante aos grandes problemas nacionais 2253. E isto concorreu gravemente para a inautenticidade daquele pleito 2254. O alheamento entre o povo e os candidatos, daí decorrente, era tão grande que foi impressionante o número de votos em branco ou nulos 2255. A classe política não tinha o entusiasmo de ninguém no Brasil 2256. * A essa carência de representatividade congênita veio somar-se outra, decorrente do funcionamento tumultuado e anômalo da própria Constituinte, em que as inautenticidades se sucediam em cadeia. O plenário era menos conservador do que o eleitorado. As comissões temáticas eram mais esquerdistas que o plenário. E a Comissão de Sistematização (que coordenava o trabalho preparado pelas comissões temáticas) apresentava a maior dose de concentração esquerdista da Constituinte. E, assim, uma minoria esquerdista ativa, articulada, audaciosa ameaçava arrastar o País para rumos não desejados pela maioria da população 2257, numa atmosfera de caos marcada pelo pipocar dos insultos, pelo estalido das taponas, e pelas querelas decorrentes das insuficiências 2250 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 2251 Entrevista a Catolicismo n° 467, novembro de 1989. 2252 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 2253 Declarações a Catolicismo n° 443, novembro de 1987. 2254 Projeto de Constituição angustia o País, cit. 2255 Declarações a Catolicismo n° 443, novembro de 1987. 2256 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 2257 Auto-retrato filosófico, cit.


714 dos prazos regimentais. Os que me conhecem pessoalmente sabem que não sou “queixoeiro” nem pessimista. Mas não havia setor da vida nacional em que alguém não estremecesse na antevisão dessas reformas que abalavam tudo, desde a segurança e incolumidade do Poder Judiciário, que deveria ser intangível, até a integridade e a própria existência da família, ameaçada de deixar de vez de ser uma realidade, para ficar reduzida a mera ficção literária de mau gosto2258.

2. Necessidade urgente de intervir: “Projeto de Constituição angustia o País” Impunha-se fazer um estudo que versasse ao mesmo tempo sobre a representatividade da Constituinte então eleita e sobre o Projeto de Constituição que ela estava elaborando. O resultado desse estudo foi o livro Projeto de Constituição angustia o País, que concluí em outubro de 1987 2259, quando os trabalhos da Constituinte atingiam o seu clímax 2260. Após exaustivo trabalho de coleta e análise dos dados disponíveis, o estudo versava não só sobre a representatividade da Constituinte, como também sobre o Projeto de Constituição em elaboração, bem como o desfecho que se podia vislumbrar ante o eventual divórcio do novo texto constitucional em relação ao pensamento majoritário da Nação2261.

3. Algumas propostas fundamentais do livro Mostro no livro que esse projeto de Constituição estava dando um grande passo rumo à socialização integral do Brasil, sobretudo em relação à desagregação da família e ao minguamento da propriedade particular2262. E faço severas admoestações e observações, não contra o regime, mas contra o modo pelo qual este vem sendo vivido por nós. Porque, salvo as raríssimas exceções, a classe política é, entre nós, a-ideológica2263. Como resolver a complexa e espinhosa situação de inautenticidade constitucional assim criada? Que os Constituintes votassem uma Constituição dispondo sobre a organização política do País, segundo uma linha geral em que facilmente se 2258 O conselho, o farol e a maruja (I), Folha de S. Paulo, 30/6/87. 2259 Auto-retrato filosófico, cit. 2260 Aviso aos indolentes, Folha de S. Paulo, 8/5/89. 2261 Projeto de Constituição angustia o País, cit. 2262 Auto-retrato filosófico, cit. 2263 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91.


715 poderia conseguir o consenso notório de toda a população. A parte sócioeconômica seria deixada pela própria Constituição para outra Assembleia, a ser eleita com poderes constituintes especiais para dispor sobre tal. O que lhe evitaria de atirar o País num dédalo de complicações fatais para a boa ordem, o desenvolvimento, e quiçá a soberania dele. Era para evitar à nossa Pátria essa catástrofe por antonomásia que a TFP, em espírito de concórdia e de cooperação, dirigia esse brado de apelo e essa cordial proposta aos senhores Constituintes. Como tal não ocorreu, o divórcio entre o País legal e o País real foi inevitável. Criou-se então uma daquelas situações históricas dramáticas, nas quais a massa da Nação saiu de dentro do Estado, e o Estado viveu vazio de conteúdo autenticamente nacional. As correntes de esquerda conseguiram envolver a maioria conservadora, de forma a fazer prevalecer os pontos de vista delas e incluir na Constituição dispositivos que implantavam no País as Reformas Agrária e Urbana, ao mesmo tempo que abriam caminho para a Empresarial − as duas primeiras com o apoio oficial do Poder Executivo, e a terceira com claras simpatias em altas esferas políticas e publicitárias. O livro levantava reparos a outros tantos dispositivos de capital importância, como sejam a aniquilação do matrimônio e da família legítima; prejuízos causados à multiplicação da espécie, ao livre exercício da profissão médica, à organização do ensino etc.2264.

4. Um dos livros mais complicados que eu já tenha escrito Não se pode calcular o trabalho que me custou fazer este livro 2265. A dificuldade estava em encontrar a maneira de apresentar as coisas que levasse esse jogo a ser outro. Começava por aí: a democracia era um conceito político, mas os constituintes queriam entendê-la como uma atitude social. Democracia seria, por exemplo, uma postura contra a discriminação racial, contra isso, contra aquilo. Eu havia estudado Direito Constitucional e tinha sido uma das poucas matérias jurídicas que me interessaram. E eu sabia, daquela época em que estudei esse ramo do Direito, que essas matérias sociais, segundo os melhores juristas, não devem fazer parte de uma Constituição. Porque a Constituição diz respeito só à estrutura 2264 Projeto de Constituição angustia o País, cit., Parte IV, Cap. I. 2265 CA 3/11/87.


716 política de um país, mais nada. As outras matérias deviam ser tratadas na legislação ordinária. Então senti a necessidade de restaurar no livro o conceito de democracia, como também o de representatividade. Repito: nunca havia escrito um livro que me desse tanto trabalho como esse. Quem lê o livro não faz bem ideia disso. Pensa que estava tudo arranjadinho na minha cabeça, e que eu fui pensando e escrevendo. Não é verdade2266.

5. Campanha de alerta de Norte a Sul Sócios e cooperadores da TFP consagraram-se, durante cinco meses, a difundir a obra por mais de 240 cidades de 18 Unidades da Federação, fazendo escoar os 73 mil exemplares editados. Ressalte-se a média recorde de 1.083 exemplares diários vendidos durante os dezenove dias de difusão intensiva na Grande São Paulo. Finalmente, esboçou-se uma certa reação dos elementos mais conservadores no seio da Constituinte*. * Formou-se na Constituinte um bloco de deputados que se diziam inconformados com os rumos que a mesma estava tomando, e que recebeu o nome de “Centrão”. É esclarecedor, a esse respeito, o discurso em plenário do deputado Bezerra de Melo (PMDB-CE), em 3 de dezembro de 1987, no qual dizia: “Não concordávamos com os rumos tomados pela Comissão de Sistematização da Assembleia Constituinte Nacional. E para tanto formouse o Centrão, cuja missão dentro do Parlamento é salvar a nova Constituição das graves ameaças por que está passando” (cfr. Procurando o Centrão: Direita e Esquerda na Assembleia Nacional Constituinte 198788, tese de pós-graduação de Rafael Freitas, Samuel Moura e Danilo Medeiros, 2009).

Porém faltavam-lhes o ímpeto e a determinação necessários para reverter o processo descrito no livro. E o Brasil foi presenteado com uma Constituição que criaria em seguida toda a espécie de embaraços para a governabilidade do País 2267. O Brasil havia iniciado, bom grado, mau grado, uma nova etapa de sua História, na qual a caminhada para a esquerda se tornara compulsória, acelerada. Resultou gravemente golpeada a instituição cristã da família, bem como profundamente danificadas, em muitas de suas características mais

2266 CSN 31/10/87. 2267 Auto-retrato filosófico, cit.


717 essenciais, a propriedade privada e a livre iniciativa 2268. A alvissareira abertura de ontem nos conduziu à terrível “apertura” de hoje.

Capítulo VIII Disputa Collor x Lula: TFP toma posição (1989) 1. Numa primeira fase, candidatos chocantemente esquerdistas Na eleição presidencial seguinte, as três primeiras grandes candidaturas foram de políticos notória e até chocantemente esquerdistas*. * Apresentaram-se inicialmente como candidatos nessa eleição, entre outros, Luiz Inácio Lula da Silva, Leonel Brizola e Mário Covas. Foi também candidato Ronaldo Caiado. Só mais tarde apareceu a candidatura Collor.

Isto explica que incontáveis brasileiros tivessem feito grise mine ou até faccia feroce diante da perspectiva de os candidatos irem sendo escolhidos dentre líderes político-partidários, por equipes estritamente político-partidárias. Tudo sob o bafejo da esquerda2269. * Aí o Sr. Ronaldo Caiado teve sua candidatura lançada pelo presidente regional da UDR paraibana (cfr. Folha de S. Paulo, 11/5/88)2270. E foi, durante bom tempo, um "favorito", um campeão para o Grande Prêmio Presidência da República, senão de toda a mídia, pelo menos de grande parte dela. Houve depois considerável retrocesso de alguns candidatos. E o retrocesso mais considerável foi o do Sr. Ronaldo Caiado. Segundo as pesquisas de opinião, ele estava colocado nos últimos lugares. E as duplas de propagandistas da TFP que percorriam o interior do País confirmaram tal retrocesso, através dos contatos mantidos no próprio meio de onde se podia esperar que lhe viesse maior apoio, isto é, o ruralista.

2268 Projeto de Constituição angustia o País, cit. 2269 Aviso aos indolentes, cit. 2270 A Reforma Agrária socialista e confiscatória, uma guerra perdida pelos proprietários, pelos trabalhadores do campo, pela agricultura nacional... e pelo Brasil, Catolicismo n° 450, junho 1988.


718 O mito, a aura de invencibilidade jovem, jubilosa e irreversivelmente triunfante que se havia constituído em torno dele, encontrava-se dessa forma desfeita pelos fatos. A TFP está certa de que seus numerosos alertas (sem réplica da parte do Sr. Caiado), a respeito da política suicida do "ceder para não perder" adotada pelo então presidente da UDR, contribuiu em larga medida para o desestufamento desse mito, que ia conduzindo a classe rural, talvez irreversivelmente, e com ares de vitória, abismo abaixo 2271.

2. Perplexidade do eleitorado e perguntas à TFP No imbroglio político de então, o afã de conhecer a opinião da TFP se manifestou. Dos mais variados lados se nos perguntava, com confiança tocante, qual seria o candidato mais desejável. Ou, antes, qual o menos indesejável. Por vezes, a mesma pergunta se voltava contra nós, com certo cunho de intimação: que candidato potável a TFP tinha para propor? E, se não o tivesse, que solução ela encontrava para tirar o País da perigosa mixórdia em que parecia ir soçobrando? Que solução apresenta então a TFP? Que o país recorra às cúpulas das grandes associações de classe? Tal proposta, a TFP não a faria. Pois, ao longo dos debates da Constituinte, as cúpulas profissionais que falaram, o fizeram quase sempre no sentido de favorecer o esquerdismo do plenário constitucional que tanto já se ia extremando neste sentido. Ou, então, se assinalaram na prática da ruinosa política do "ceder para não perder", isto é, do ceder muito, diante das esquerdas, para tentar não perder tudo... E quando não agiram assim, foi porque se calaram completamente2272.

3. Collor: candidatura-surpresa muito bafejada pela mídia Nesse clima despontou uma nova figura, a de Fernando Collor de Mello , que se apresentou como se fosse um campeão de corrida que havia entrado no páreo eleitoral. 2273

Neto de Lindolfo Collor, político gaúcho muito saliente na era getuliana, ligado por vínculos familiares mais ou menos desfeitos, como por vínculos familiares atuais, ao grande capitalismo, ele próprio um capitalista de considerável fortuna, o nome de Fernando Collor começou a despertar em certos setores brasileiros a esperança de que viria a 2271 O que a TFP pensa do presente quadro eleitoral, Catolicismo n° 463, julho de 1989 — Uma análise da atuação do Sr. Ronaldo Caiado foi feita por Dr. Plinio na sua obra Projeto de Constituição angustia o País. 2272 Aviso aos indolentes, Folha de S. Paulo, 8/5/89. 2273 — Fernando Affonso Collor de Mello foi Presidente do Brasil entre os anos 1990 e 1992.


719 representar uma solução centrista, com alguma tendência à direita, para a solução da situação caótica que submergia o País. Começava entretanto a cercá-lo uma “aura” parecida com a que há pouco havia favorecido Caiado. E a mídia projetava dele a imagem de pessoa resplandecente de otimismo, de êxitos passados e de esperanças para o futuro. E de pessoa que trazia em si uma como que promessa “evidente” de vitória. * Não era minha intenção, nem da TFP, impugnar a atitude dos que consideravam a presença de Collor, na lista dos mais cotados presidenciáveis, como representando certa distensão e certo alívio quanto à pressão das esquerdas. Mas vi que era preciso tomar cuidado. Eu sustentava que era necessário acompanhar com atenção o que ele dizia, para ter ideia exata do voto que se iria dar. Collor me parecia, de fato, um candidato preferível aos outros. Mas, daí a depositar nele — como se fosse um candidato talismânico — a confiança cega, presente em certas formas de entusiasmo sugeridas por elementos das comunicações sociais, isso se me afigurava excessivo. Esse utopismo otimista poderia marcar a atmosfera do primeiro período de governo. E acabava beneficiando prematuramente um novo Presidente de República com uma carga de confiança que ele talvez merecesse... mas que talvez não merecesse. Meus comentários não eram anti-Collor. Eram comentários próBrasil. Comentários que convidavam portanto à vigilância e à atenção. Eles não desviavam votos de Collor. Apenas procuravam atenuar fanatismos que facilmente se poderiam tornar excessivos2274.

4. TFP toma posição e o debate se ideologiza Veio então o primeiro turno das eleições, com Fernando Collor obtendo vantagem considerável (por volta de 12%) sobre o segundo colocado, Luís Inácio Lula da Silva. Em quem votar no próximo turno da eleição, de dramática importância para o País? Eu não podia deixar sem resposta as numerosas perguntas que neste 2274 O que a TFP pensa do presente quadro eleitoral, cit.


720 sentido me chegavam, não só dos sócios, cooperadores e correspondentes da TFP, como de bom número de simpatizantes de todo o Brasil. Isto se tornou ainda mais premente à vista do fato de que Lula, interrogado pela Folha de S. Paulo (18/11/89) sobre se era verdade que tinha o apoio da corrente da Teologia da Libertação, respondeu que não havia nenhuma novidade nisso. E que todo mundo sabia que havia um setor progressista da Igreja que apoiava a campanha dele. Lula terminou por dizer que Collor deveria ficar com o pessoal da direita da Igreja, e que ele ficaria com o da esquerda. Essas declarações justificavam completamente uma tomada de posição nossa, não só entre as candidaturas Collor e Lula, como também ante a Teologia da Libertação e as CEBs. * Não era minha intenção dar à voz da TFP outro alcance senão o de um conselho fraternalmente oferecido por membros do laicato católico a membros do laicato católico, acerca do segundo turno da eleição presidencial. Redigi então um manifesto. Eu lembrava nesse manifesto que, enquanto a TFP defendia o princípio da propriedade privada e o sistema de livre iniciativa, as CEBs eram adeptas do sistema socialista de inspiração confessadamente marxista. E frisava que a anterior figura política de Lula, sempre marcada por uma nota esquerdista, havia se radicalizado ao longo da campanha. Resultava isto do fato de as CEBs terem tomado vulto preponderante nas fileiras do “lulismo” e do PT. CEBs nas quais o público via um caráter radicalmente esquerdista. Em vista de tudo isto eu recomendava no manifesto, a todos os eleitores com opiniões consonantes com as da TFP, que não dessem seu voto a Lula. E que a alternativa era votar no candidato Collor. Eu deixava bem claro que a meta da TFP não era oferecer votos a ninguém. E que ela não via na candidatura Collor senão uma contingência a ser aceita quase automaticamente pelo eleitor, quer centrista, quer direitista, pois decorria de modo inexorável da candidatura Lula. O fato é que, depois desse comunicado, o conflito ideologizou-se, ficando Lula de um lado, e de outro Collor. E um certo anticomunismo começou a novamente se definir no Brasil* 2275

2275 RR 25/11/89.


721 * Este manifesto foi publicado na Folha de S. Paulo, 29 de novembro de 1989, no caderno Exterior, p. A-7, sob o título Face à dramática situação do Brasil, a TFP toma atitude entre as candidaturas Collor de Mello e Lula, como também ante a Teologia da Libertação e as CEBs.

5. Processo contra a “Folha” e ameaça de processo contra Dr. Plinio Depois de publicado esse comunicado, li na imprensa que o Procurador Geral da República em Brasília moveu um processo criminal contra a Folha de S. Paulo, na pessoa de seu diretor, Otávio Frias de Oliveira, pelo fato de o jornal ter publicado um pronunciamento a favor do Collor e contra o Lula. Razão: a lei eleitoral considerava crime, passível de um a cinco anos de prisão, o responsável por uma entidade que não fosse um partido político, se pronunciar a favor de um candidato durante o período eleitoral. Percebi logo que queriam processar-me a mim também. Se processassem o Frias, o processo sairia contra mim também. Ele tinha publicado, e eu tinha escrito. Era o mesmo “crime” para quem escreveu e para quem publicou. Sem saber, eu tinha cometido esse “crime”2276. Passou-se mais ou menos um ano 2277 e no fim o tribunal criminal declarou absolvido o Sr. Frias e, com surpresa para mim, mandou-me um ofício muito gentil, comunicando-me essa absolvição e dizendo que a lei que proibia essas intervenções eleitorais já não tinha mais aplicação em vista da Nova Constituição 2278.

2276 CA 22/5/91. 2277 CM 20/2/94. 2278 Despachinho 7/6/94.


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Parte XII Livros e Campanhas de grande repercussão na década de 1990 Capítulo I Comunismo e anticomunismo na orla do terceiro milênio: por que 70 anos para se reconhecer o fracasso? (1990) 1. Regime de opressão e miséria: expliquem-se os responsáveis Pouco depois das eleições, ou seja, no início do ano de 1990, a TFP publicou um trabalho também de minha autoria, intitulado: Comunismo e anticomunismo na orla da última década deste milênio 2279. Por que razão lançamos esse manifesto e dele fizemos tão larga divulgação? Porque o senso de justiça, inerente a todos os espíritos retos e elevados, estava a clamar por uma punição adequada desses grandes crimes que o comunismo internacional praticou no mundo inteiro 2280. Esse manifesto tinha como finalidade mostrar aos bons, quanto os maus são maus, para deixar claro como os falsos chefes são cúmplices dos maus. Esta era a meta principal do manifesto 2281. Depois de 70 anos, se verificou o fracasso disso, e isto foi uma aventura imensa e trágica 2282. Na estrutura soviética, o PC tinha legalmente precedência sobre o Estado. Não era o Partido que existia para o Estado, mas este para aquele 2283 . Como podiam todos esses chefes comunistas justificar que tenham 2279 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 2280 Carta ao Presidente Vytautas Landsbergis, de 5/9/91. 2281 SD 21/2/90. 2282 Entrevista à CX 16 Rádio Carve, Uruguai (gravação), 3/4/90. 2283 RR 10/3/90.


723 submetido todos os povos a essa aventura, sem se darem conta de que isso era um crime? Por que razão teriam desejo de generalizar esse regime de tragédia, de opressão policialesca, de fome, para todos os outros países do mundo, por meio da propaganda comunista feita por partidos comunistas subvencionados por Moscou? 2284 Eles estavam nas fileiras do Partido Comunista, comendo, bebendo e dormindo, e não fizeram nada, durante todo esse tempo, para beneficiar efetivamente as respectivas populações? Pelo contrário, dirigiam autoridades intermediárias que prendiam, que matavam, massacravam, impunham a miséria, reprimiam a propriedade privada que alguém quisesse restaurar e a livre iniciativa que alguém quisesse ter. Essas eram atitudes de quem estava preparando o dia de hoje?! Não senhor! Aqui há crimes — muitos crimes! — pelos quais se deve responder 2285.

2. Interpelação também à Teologia da Libertação Eu estendia essa pergunta também aos eclesiásticos que apoiaram o comunismo. Por exemplo, ao ex-Frei Leonardo Boff, a Frei Betto — ambos escreveram livros elogiando a situação de Cuba, elogiando Fidel Castro — bem como aos outros expoentes da Teologia da Libertação nacional. E lhes perguntava como explicavam a situação da Rússia, sendo de notar que Fidel Castro, de quem são grandes entusiastas, estava exatamente do lado dos que desejavam a manutenção, na Rússia, da situação que causou essa miséria. Eles eram teólogos de que espécie de libertação? Reduzir este mundo à miséria era libertar? 2286 Tratava-se, portanto, de um clã. E todos deviam prestar satisfações. Levaram setenta, cinquenta, quarenta anos para perceberem isto? 2287 Na ocasião, essas razões que eu levantava estavam muito vivas e muito patentes aos olhos de todos, como a queda da Cortina de Ferro mostrava. E era necessário conscientizar as multidões sobre elas 2288.

2284 Entrevista à CX 16 Rádio Carve, Uruguai (gravação), 3/4/90. 2285 RR 10/3/90. 2286 Entrevista à TVE da Espanha (gravação), 3/2/90. 2287 RR 10/3/90. 2288 Entrevista à CX 16 Rádio Carve, Uruguai (gravação), 3/4/90.


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3. Numa Nuremberg contra o comunismo, as conclusões seriam perturbadoras Outra coisa que eu também indagava no manifesto era: os dirigentes comunistas dos outros países e dos diversos PCs do mundo estiveram várias vezes na Rússia e presenciaram a miséria evidente e o descontentamento enorme que lavrava no povo contra o regime 2289. Nada viram? Durante décadas a fio, esses líderes mantiveram constante e multiforme contato com Moscou, e ali estiveram, mais de uma vez, recebidos normalmente como comparsas e amigos. Nada contaram? Se conheciam o trágico fracasso do comunismo, por que o queriam para suas pátrias? Por que conspiravam para estender esse regime de miséria, escravidão e vergonha, a seus próprios países? Não pouparam dinheiro nem esforços com o fim de atrair, para a árdua faina de implantação do comunismo, as elites de todos os setores da população, a começar pela elite espiritual que é o clero. E a seguir as elites sociais, da alta e média burguesia, as elites culturais das Universidades e dos meios de comunicação social. As elites da vida pública, quer civil, quer militar, ademais dos sindicatos e organizações de classe de toda ordem. Isto para atingir por fim a juventude e a própria infância, nos cursos de primeiro grau 2290. Eles viram isto e não desistiram de sua posição comunista, cujos efeitos maléficos notavam claramente. Esta era a grave pergunta que ficava no ar 2291. E que equivalia a dizer: “Foram vocês que fizeram! Venham aqui e expliquem-se”. Era o esquema de uma eventual Nuremberg, que eu sabia que não seria convocada, mas que era necessário que ficasse dito para a História 2292 . Se se fizesse um tribunal de Nuremberg para verificar esses fatos, chegaríamos a conclusões extremamente surpreendentes e perturbadoras* 2293 . * Essa ideia de uma Nuremberg contra os comunistas do mundo inteiro foi até proposta, cerca de um ano depois, pelo Presidente da Lituânia, Vytautas Landsbergis, a quem Dr. Plinio enviou telegrama manifestando o intenso

2289 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 2290 Comunismo e anticomunismo na orla do milênio, Folha de S. Paulo, 14/2/90. 2291 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 2292 RR 24/3/90. 2293 RR 7/4/90.


725 gáudio das TFPs e Bureaux-TFP dos cinco continentes pelo gesto dele (Carta ao Presidente Vytautas Landsbergis, de 5/9/91).

4. Órgão do Departamento de Estado americano tenta rebater nosso manifesto Uma expressiva repercussão desse manifesto foi a carta endereçada à TFP norte-americana pelo Sr. J. F. Steft, vice-diretor do Escritório de Assuntos da União Soviética do Departamento de Estado da América do Norte. Da parte do Presidente Bush (pai), ele oferecia argumentos contra as teses sustentadas pela nossa mensagem. Isto na parte em que eu lançava uma interpelação às pessoas, instituições, partidos, personalidades governamentais, governos e organismos internacionais civis e religiosos do Ocidente que haviam colaborado para a manutenção do regime comunista. Esta argumentação do órgão do Departamento de Estado norteamericano era expressa de modo polido e manifestava alta consideração pelo trabalho. A TFP norte-americana respondeu em tom igualmente elevado e polido. Mas essa troca de correspondência não foi além disso 2294.

Capítulo II Campanha pela libertação da Lituânia:o colapso do império comunista no Leste europeu (1990/1991) 1. Glasnost e perestroika: vem a furo o fracasso do comunismo A espetacular queda do muro de Berlim em 9 de novembro de 1989 e da Cortina de Ferro, com as comoções políticas que as precederam e se lhe seguiram nos países do Leste europeu 2295, de tal maneira mudaram o jogo político no mundo que em toda a minha vida não vi um acontecimento político-chave, que desse numa mudança tão brusca à maneira de uma explosão, como se deu este. Reduzido ao nível do chão o muro de Berlim, como a Cortina de Ferro em geral, era impossível evitar que os entendimentos se fizessem 2294 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90. 2295 Atualidade da Mensagem de Fátima, 75 anos depois, Diário Las Américas, Miami, 14/5/92.


726 rápidos, frequentes, assíduos e fraternos entre um lado e outro da Alemanha. Tinha que sair um pensamento comum, uma atitude comum, uma tendência de ação comum. E, assim, ponto por ponto, o edifício da prevenção anticomunista montada na Europa, iria se desfazendo. Havia mais. Eu não cria que a Europa Ocidental desistisse do plano da federação paneuropeia. E temia que ficasse aberta a situação para fazer a famosa Europa dos Urais até o Atlântico, em que entrassem juntos a Rússia e todos aqueles povos esmagados, martirizados, trucidados que ela levava consigo, cada um com um voto num Conselho Federal da Europa. Com isso, seria constituído um super-governo, no qual todas as nações da Europa ficariam tão chumbadas e amarradas umas nas outras que, ou saía uma guerra, ou uma convergência* 2296. * Convergência esta entendida, evidentemente, como a fusão de todas as nações europeias − ou mundiais − num amálgama dos respectivos regimes político-sociais. Em outros termos, convergência tendente a conduzir à adoção de um só regime semicomunista e semicapitalista, em que o polo forte seria o comunismo e o polo débil o capitalismo. Ou seja, esta convergência seria, em seus planos, uma etapa última para a conquista comunista do mundo.

* Não obstante, era fato que a promessa gorbacheviana de instauração da perestroika na Rússia havia produzido, dentro e fora daquele país, talvez um dos maiores terremotos geopolíticos da História2297. Naturalmente, encarei com muita simpatia a queda do prestígio internacional do comunismo que daí resultou. A queda da Cortina de Ferro abriu completamente o Oriente a todo o mundo que quisesse visitá-lo. E as visitas revelaram uma situação tão infra-humana, que justificava inteiramente as palavras do então Cardeal Ratzinger a respeito dos países comunistas: “Não se pode desconhecer esta vergonha do nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem” (cfr. Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de agosto de 1984, n° XI, 10). A comissão inter-TFPs, que esteve por lá para levar uma mensagem ao Presidente Vytautas Landsbergis, hipotecando todo o apoio dos cinco milhões de signatários à causa da independência da Lituânia (adiante iremos tratar desse assunto), voltou trazendo notícias e informações 2296 RR 11/11/89. 2297 Atualidade da Mensagem de Fátima, 75 anos depois, cit.


727 simplesmente espantosas a esse respeito. O fato é que, com a glasnost (transparência), o mundo pôde ver um tal fracasso do regime comunista do ponto de vista de atender à necessidade dos pobres, que se deveria definir esse regime como aquele que, não apenas não atende a essa necessidade, mas reduz à extrema pobreza todos os que sob ele vivem2298. Com a perestroika (reestruturação), as nações mantidas sob o guante de ferro do comunismo soviético, e que não vislumbravam a menor esperança de libertação, subitamente sacudiram esse jugo e tomaram o próprio destino em mãos. A Alemanha, dilacerada de alto a baixo se unificou. Como não transformações? 2299

ver

com

ânimo

esperançoso

tão

alentadoras

2. Gorbachev, um embusteiro genial Confesso que Gorbachev — que tantos admiravam e choraram quando veio a cair — sempre me pareceu um embusteiro, aliás genial. Para obter dinheiro do Ocidente, ele criou a miragem de uma Rússia semi-exorcizada do perigo comunista. E com isto desmobilizou e desarmou os muitos que nele acreditaram. Ele foi, portanto, tragicamente nocivo 2300. Gorbachev representava, para mim, a ambiguidade suspeita de todas as más surpresas. Um repórter certa vez chegou a me perguntar: “Então, o Gorbachev não é confiável?”. Respondi: — Nada, nem um pouco. Ele é desconfiável. Vamos falar português claro: ele dependia das esmolas generosas e imprudentes que o capitalismo do Ocidente lhe estava dando, para a Rússia não se dissolver no caos e no magma completo da pobreza. Então fez essas promessas de liberalização para ganhar dinheiro. Um homem que faz uma promessa no ato de ganhar dinheiro, deve ser tido como discutível na sua promessa. Ora, foi isso o que ele fez com o Presidente Reagan e depois com Bush (pai). Depois continuou fazendo o mesmo com Helmut Kohl, primeiro-ministro da Alemanha Ocidental. Eu me perguntava o que o Gorbachev fez no sentido de restabelecer a propriedade privada na Rússia. Nada! O que ele fez no sentido de 2298 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 2299 Atualidade da Mensagem de Fátima, 75 anos depois, cit. 2300 Declarações sobre a queda de Gorbachev, 20/8/91.


728 estabelecer a liberdade de comércio. Nada! Ninguém contava o que ele fez. Eu só sabia que ele pedia dinheiro, recebia e embolsava. Fora disso não se sabia mais nada2301. Ele pedia dinheiro para fazer a reabertura do comércio, da propriedade privada, da liberdade de mercado. Recebia quantias fabulosas para isso e não executava nada. Como é que se podia confiar nele?2302. Entretanto, ele foi sendo transformado na coluna do mundo! Foi só tocar em Gorbachev durante a crise com Ieltsin em 1991, que as chancelarias das maiores potências e a mídia universal estremeceram. A sensação geral era de que, se ele fosse definitivamente derrubado, o mundo despencaria na guerra nuclear 2303.

3. Nossa posição é de expectativa e vigilância Então, qual era a posição da TFP diante dessas mudanças do Leste? A TFP apoiava ou não apoiava? As mudanças do Leste, ela apoiaria, uma vez que fossem 2301 — Alguém poderia objetar que a Cortina de Ferro afinal se rasgou e a Rússia não é mais comunista, não há mais erros da Rússia. Essa objeção é um pouco simplificada, para não dizer simplória, mas digamos que ela tenha algo de realidade. Continuam comunistas entretanto Cuba, China, Vietnã, Coreia do Norte, Laos. Mas isso também não é o mais significativo. Houve não uma morte, mas uma metamorfose do comunismo, e os erros da Rússia desaguaram no Ocidente. E é aqui principalmente que eles estão frutificando, por meio do igualitarismo, da imoralidade, do ateísmo prático, de um espírito ecológico exacerbado, das veleidades de autogestão etc. Já na terceira parte de seu livro Revolução e Contra-Revolução (edição 1976), Dr. Plinio aponta os erros do comunismo que se metamorfoseavam à medida que se expandiam, e que estão nos levando para uma espécie de comunismo tribal: “A derrocada das tradições indumentárias do Ocidente, corroídas cada vez mais pelo nudismo, tende obviamente para o aparecimento ou consolidação de hábitos nos quais se tolerará, quando muito, a cintura de penas de ave de certas tribos [...]. “O desaparecimento rápido das fórmulas de cortesia só pode ter como ponto final a simplicidade absoluta (para empregar só esse qualificativo) do trato tribal. “A crescente ojeriza a tudo quanto é raciocinado, estruturado e metodizado só pode conduzir, em seus últimos paroxismos, à perpétua e fantasiosa vagabundagem da vida das selvas, alternada, também ela, com o desempenho instintivo e quase mecânico de algumas atividades absolutamente indispensáveis à vida. “A aversão ao esforço intelectual, notadamente à abstração, à teorização, ao pensamento doutrinário, só pode induzir, em última análise, a uma hipertrofia dos sentidos e da imaginação, a essa ‘civilização da imagem’ para a qual Paulo VI julgou dever advertir a humanidade. “São sintomáticos também os idílicos elogios, sempre mais frequentes, a um tipo de ‘revolução cultural’ geradora de uma futura sociedade pós-industrial, ainda incompletamente esboçada, e da qual o comunismo chinês seria - conforme por vezes é apresentado - um primeiro espécimen.” E em posfácio, acrescentado em 1992, diz Dr. Plinio que a nova revolução, que se segue à queda do império soviético, “se bem que inclua também o aspecto político, é uma Revolução que a si mesma se qualifica de ‘cultural’, ou seja, que abarca grosso modo todos os aspectos do existir humano” (cfr. Revolução e Contra-Revolução, 4ª edição em português, Artpress, 1998). 2302 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 2303 Declarações sobre a volta de Gorbachev ao poder, 21/8/91.


729 encaminhadas para o restabelecimento de uma ordem na qual a propriedade privada fosse reconhecida e a liberdade de mercado também. Se não fossem reconhecidos esses dois fatores ou esses dois pilares de toda a ordem humana, a TFP não apoiaria. Nossa suspeita a respeito de Gorbachev era de que, como comunista (ele se afirmara comunista mesmo depois da aproximação com os Estados Unidos), tinha a intenção de realizar o artigo 1° da Constituição soviética. Este artigo afirma que a finalidade do capitalismo de estado comunista é preparar a autogestão. Para onde ele caminhava era para a preparação do comunismo autogestionário, a meu ver mais censurável do que o próprio capitalismo de estado 2304. Comunismo autogestionário este que todos os teóricos e líderes máximos do comunismo, desde Marx e Engels até Gorbachev, sempre apresentaram como a versão extrema e cabal do comunismo, a quintessência dele2305. * Neste contexto, estourou o caso da Lituânia. A Lituânia é uma nação pequena. Mas, posta diante da alternativa red or dead (ficar vermelho ou morto), preferiu enfrentar a perseguição e a morte, do que aceitar o prolongamento do ignóbil e insuportável cativeiro de cerca de 50 anos 2306. direito.

Contra essa nação foi feita uma gravíssima transgressão de um Qual transgressão?

O Pacto Ribbentrop-Molotov, assinado pouco antes da Segunda Guerra Mundial, foi um tratado cínico feito entre o governo russo comunista de então e o governo nazista alemão. Mediante esse tratado, em troca de vantagens várias para a Alemanha, esta consentiu que a Rússia invadisse os três países bálticos — a Lituânia, a Estônia e a Letônia — e transformasse aquela região praticamente em províncias russas. E assim entraram debaixo do jugo soviético. Tendo em consideração a política liberalizante de Gorbachev, e na esperança de que os países do Ocidente viessem em seu apoio, a Lituânia, seguida da Letônia e da Estônia, começou a pedir a sua própria

2304 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 2305 Atualidade da Mensagem de Fátima, 75 anos depois, cit. 2306 Entrevista à Rádio São Miguel de Uruguaiana, 21/6/90.


730 independência e, no dia 11 de março de 1990, chegou mesmo a proclamála. Como era uma nação que tinha sua língua, sua história, sua cultura, era natural que quisesse um espaço ao ar livre para respirar. Era um direito natural. Mas passou pelo grande desapontamento de ver Gorbachev, que parecia o aliado de todos os oprimidos, oprimir a Lituânia, e que o Ocidente todo, com medo de desagradar a Gorbachev, cruzava os braços*. * Em junho de 1990, Gorbachev, em represália pela declaração unilateral de independência, promoveu um bloqueio econômico contra o sofrido país: interditou seus portos e acessos terrestres e cortou-lhe os suprimentos de petróleo e de gás. Exigiu, como condição para levantar o bloqueio, que o Parlamento lituano “congelasse” a declaração de independência por dois anos. Depois de tensas negociações, em julho 1990 o Parlamento lituano foi obrigado a aceitar o “congelamento” da independência do país por 100 dias, para que uma comissão bipartite russo-lituana discutisse os termos de uma eventual independência definitiva. Mas, já de antemão, Moscou “sugeria” que a Lituânia permanecesse federada dentro da URSS. Nesse ínterim, em novembro 1990, um ato de brutalidade de Gorbachev e de espantoso abandono da Lituânia por parte de altos dignitários europeus. A pedido de Gorbachev, lituanos foram expulsos da reunião de Segurança Europeia, realizada em Paris. E isto quando há já três horas participavam da sessão como observadores! Isto produziu na Lituânia grande desânimo, desestimulando-os de reagir, por julgarem que ninguém no Ocidente jamais os iria apoiar (cfr. Catolicismo n° 601, janeiro de 2001).

Gorbachev fez então o que quis. O Presidente dos Estados Unidos e as grandes potências da Terra não disseram nada a favor da Lituânia. E a Lituânia ficou isolada 2307. Nosso governo, por exemplo, chegou a afirmar, na Noruega, a “nocividade” da independência das repúblicas bálticas, na medida em que atrapalhassem Gorbachev, tido como indispensável para a paz mundial 2308.

4. Pró Lituânia livre, o maior abaixo-assinado da História Na questão da Lituânia, a posição de Gorbachev era contraditória. E uma contradição na conduta de um homem dessa responsabilidade gerava uma suspeita2309 e tinha que ser desmascarada. Nessas condições, a TFP brasileira procurou a colônia lituana e lhe comunicou que iria lançar uma campanha pela libertação daquele país, e 2307 Entrevista à TV Manchete (gravação), 18/6/90. 2308 Declaração à Folha de S. Paulo, 6/6/91. 2309 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91.


731 que pretendia estender essa campanha por todo o nosso territóriocontinente, como de fato foi feito. Mais ainda: pela normal influência que exerço sobre as 20 TFPs coirmãs e autônomas, propus a todas que estendessem essa campanha a seus respectivos países, nos cinco continentes. O que foi atendido com suma diligência e contentamento 2310. Fizemos uma campanha colossal, de caráter internacional, abrangendo 26 nações, para uma mensagem ao Presidente Vytautas Landsbergis, hipotecando todo o apoio à causa da independência da Lituânia2311. Isto despertou um movimento também colossal de simpatia * 2312. * Em 130 dias de campanha, iniciada a 31 de maio de 1990, as TFPs e Bureaux-TFP reuniram em 26 países 5.218.520 assinaturas, que o Guiness Book of Records de 1993, anuário inglês mundialmente conceituado, afirmou ter sido o maior abaixo-assinado até então realizada no mundo.

Os microfilmes deste abaixo-assinado foram levados a Vilnius por uma Comissão inter-TFPs, constituída de onze membros e presidida pelo diretor do Bureau-TFP de Paris, o meu dileto amigo Dr. Caio Vidigal Xavier da Silveira. O ato de entrega ao Presidente Landsbergis foi efetuado no dia 4 de dezembro de 1990 em seu gabinete, localizado no Palácio do Parlamento 2313. * No dia 6 de dezembro, já em Moscou, a delegação se fez fotografar em plena Praça Vermelha, desfraldando um estandarte da entidade, com todos os seus integrantes portando a capa vermelha característica das TFPs. E no dia 11 do mesmo mês a comitiva entregou, nos próprios escritórios do Kremlin, uma carta coletiva dos presidentes de todas as TFPs a Mikhail Gorbachev, solicitando-lhe formalmente que, diante dessa categórica manifestação do mundo livre, removesse todos os obstáculos que impediam a Lituânia de alcançar sua plena independência* 2314. * No próprio dia da entrega da carta veio a reação de Vladimir Kriutchov, chefe da KGB, a temível polícia política soviética. Ele declarou na televisão de Moscou que não toleraria “qualquer ingerência nos nossos assuntos internos da URSS [...] desses organismos e grupúsculos que, no estrangeiro, 2310 Despachinho 7/3/91 e Balanço de uma campanha histórica, Catolicismo n° 482, fevereiro de 1991. 2311 Entrevista ao Correio Braziliense (gravação), 23/1/91. 2312 Despachinho 7/3/91. 2313 Prefácio à obra Bispo, Prisioneiro e Mártir do comunismo — D. Teófilo Matulionis, Padre Pranas Gaida, nov/91. 2314 Auto-retrato filosófico, cit.


732 [...] moveram durante décadas, e continuam a mover, uma guerra secreta contra o Estado soviético”. Soava como uma ameaça. A declaração foi reproduzida pelo Figaro, de Paris, de 13/12/90.

A comissão, voltando ao Brasil, manifestou-se muito contente com a acolhida que recebeu da parte do governo lituano e do Cardeal Arcebispo de Kaunas, Monsenhor Vincentas Sladkevicius. Tudo isso foi comunicado aos lituanos residentes no Brasil do modo mais cordial e afável2315.

5. Repressão à Lituânia: cai a máscara de Gorbachev Foi aí que se deu a brutal repressão de Gorbachev contra a declaração de independência da Lituânia *. * Essa repressão deu-se um mês depois da entrega do abaixo-assinado da TFP, precisamente na noite de 13 de janeiro de 1991, atitude essa que fez cair afinal a máscara sorridente de Gorbachev, deixando entrever sua carranca dura e implacável.

Frustrando as vãs esperanças que sua política da perestroika fizera nascer no Ocidente, Gorbachev violou a soberania dessa nação que acabava apenas de renascer. E, sob o pretexto de que os filhos dela se recusavam a servir no exército da União Soviética, mandou esmagar as reações na Lituânia. Tanques comunistas se atiraram então contra um povo inteiramente indefeso, alentado tão-só por suas armas espirituais que eram a Fé católica e a determinação inquebrantável de assegurar sua independência. Assim, entoando hinos de Fé e de patriotismo, as multidões lituanas desarmadas se ergueram como barreiras vivas ante os tanques soviéticos, e não recuaram quando — com assombro para os agressores a mando do Kremlin, como para o mundo inteiro — verificaram que as primeiras vítimas se deixavam trucidar barbaramente debaixo das esteiras dos tanques, porém não desertavam do campo da honra. O que fez o governo de Moscou? Compreendendo que o prosseguimento do ataque genocida levantaria contra Gorbachev a justa indignação de todos os povos livres, o Kremlin “desautorou” o ataque, atribuindo a responsabilidade pela agressão ao comandante das forças comunistas sediadas na Lituânia. E mandou retirar desse país parte dos paraquedistas que pouco antes enviara contra esse povo. Mal haviam sido divulgadas as medidas desautorando as recentes brutalidades soviéticas em Vilnius — com evidente vantagem publicitária para o Sr. Gorbachev no Ocidente — sobreveio a promoção ao generalato 2315 Despacho, 7/3/91.


733 de um dos “culpados”, o ministro do interior coronel Boris Pugo, apontado em comunicado da KGB como um dos mais destacados instigadores da ação feroz. Ficava assim patenteada a inconsistência da referida censura. À violência se somava a duplicidade* 2316. * A reação internacional face à brutalidade soviética — o emprego de tanques e metralhadoras contra jovens desarmados — atingiu um paroxismo de indignação. E Gorbachev viu-se afinal obrigado a ceder diante das pressões das potências ocidentais, aceitando como fato consumado a independência da Lituânia. Os soldados russos, porém, permaneceram ainda em solo lituano. Só abandonaram o país três anos mais tarde (cfr. Catolicismo n° 601, janeiro de 2001).

* No dia 14 de janeiro de 1991, organizamos uma passeata no centro de São Paulo que se estendeu em filas ininterruptas, com manifestações de protesto pelo cruel ataque promovido pelos russos contra populares indefesos e cheios de espírito de Fé e patriotismo. No dia 15 de março de 1992, credenciado por todas as TFPs, escrevi uma carta a João Paulo II e a todos os Chefes de Estado do mundo livre pedindo o reatamento das relações diplomáticas com a Lituânia2317. * Poucos dias após o Brasil ter reconhecido a independência gloriosamente conquistada pela nação lituana, enviei uma carta (5 de setembro de 1991) em que, na qualidade de Presidente da TFP brasileira, e no meu próprio, felicitava o Presidente Vytautas Landsbergis pela vitória inteira e definitiva da nação lituana sobre o sinistro moloch soviético. Alegrou-me muito o fato de que quinze TFPs, bem como cinco Bureaux-TFP de outros tantos países, prestaram a sua entusiasmada colaboração em favor da independência da Lituânia, chamada “Terra de Maria”. Convém ressaltar que tal colaboração se levantou num momento em que a causa dessa valorosa nação encontrava-se abandonada por todas as chancelarias do Ocidente. E era vista com frieza pelo imenso e poderoso conjunto dos meios de publicidade que constituem a mídia do mundo livre 2318 .* * Tudo o que aconteceu no Mar Báltico, pela declaração das próprias autoridades do governo lituano à Comissão que o foi visitar, se deveu em grande parte ao alento que tiveram graças a nossa campanha, naquele 2316 Carta ao Papa João Paulo II sobre a Lituânia, 15/3/91. 2317 Despacho, 7/3/91. 2318 Prefácio à obra Bispo, Prisioneiro e Mártir do comunismo, cit.


734 momento difícil. Estavam desalentados e tomaram alento com essa nossa presença. Por sua vez, a independência lituana teve uma importância crucial no desfazimento do bloco soviético. O editorial do The New York Times do dia 29/8/91 assim se expressa a respeito: “Na realidade, os países bálticos foram os catalizadores do levante soviético. A Lituânia foi a primeira república soviética a proclamar a sua independência, em março de 1991, dando coragem às demais”

Capítulo III No V Centenário dos Descobrimentos, uma opção crucial: Cristandade autêntica ou revolução comuno-tribalista (1992) 1. Como os homens de minha época viam os índios e o progresso Antes de tratar de nossa manifestação no centro de São Paulo a propósito do V Centenário dos Descobrimentos, comemorado em 1992, faço uma reminiscência histórica. Quando em minha remota infância eu ouvia falar de índios, a versão que deles me chegava era ambivalente. De um lado, eram eles mencionados como sendo uma raça digna de simpatia, pelo fato de terem sido os primeiros ocupantes do solo brasileiro. Portanto, se se quiser, seriam os nossos compatriotas mais antigos, a quem deveríamos votar um sentimento de solidariedade nacional. Desse ponto de vista, cumpria considerá-los com benevolência especial. De outro lado, porém, ao examinar a vida dos indígenas em seu estado primitivo, errando por nossos campos e nossas matas, e ao se tomar em conta seus costumes, sua moral, o sistema pelo qual obtinham o que precisavam para viver — produto mais bem de sua inação do que de seu trabalho, pois que eram avessos a toda atividade metódica — a generalidade das opiniões era rotundamente desfavorável. Tal quadro contrastava com outro, incondicionalmente elogioso, que certas máquinas de fabricar opinião difundiam acerca do progresso moderno. Esse progresso era o grande mito dominante da época hollywoodiana, que despontava em minha infância, quando o mundo ocidental, especialmente a Europa e a América do Norte, era apresentado


735 da maneira mais favorável e otimista, como gerador de um estado de ascensão contínua que haveria de melhorar indefinidamente a vida dos homens. E — vaticinavam alguns — esta se aperfeiçoaria de tal maneira que, com os progressos da medicina, antes do fim do século ou no decurso do século XXI, surgiria um meio de restituir a “saúde” — até lá chegava esse otimismo! — aos homens que tivessem morrido. E, consequentemente, ser “ressuscitados”. Desse modo ocorreram — sobretudo nos Estados Unidos — casos de milionários ou pessoas que levavam vida fácil e agradável e que, ao morrer, deixaram legados especiais para despesas com sua eventual "ressurreição". Tais legados incluíam cláusulas específicas sobre como deveriam ser guardados seus corpos em câmaras frigoríficas, por empresas constituídas ad hoc desde os anos 60, para que estivessem em condições de serem trazidos novamente à vida. Este exemplo extremo ilustra até que ponto chegou a euforia do progresso, e o desejo otimista de viver indefinidamente esta vida que, hollywoodianamente falando, era apresentada como deliciosa. Isso induzia incontáveis pessoas a se entusiasmarem com o progresso e a se esforçarem em levar adiante o sonho do crescimento científico e tecnológico indefinido. Para tal ótica, a situação dos índios, como também das tribos primitivas da África, Ásia e Oceania, que permaneciam em estado selvagem, representava o grau zero de progresso, em comparação com a situação dos homens que viviam segundo Hollywood, a qual seria, digamos, o grau mil. Assim, durante várias décadas, falava-se de vez em quando de massacres perpetrados pelos índios, de assassinatos, de canibalismo, de como sua vida errante era perigosa, do risco que haveria em encontrar-se com eles nas selvas etc.

2. Depois de uma fase de silêncio, uma reviravolta completa Sem embargo, em certo momento, o tema índios começou a sair da atenção geral, e gradualmente foi-se tratando cada vez menos dele. Ao cabo de um intervalo em que o assunto permaneceu submerso em um mar de silêncio e de olvido, ele começou a ressurgir, mas já então sob um prisma completamente diferente. Para as mesmas correntes ideológicas que, com o objetivo de demolir a civilização cristã, interessara em certo momento promover o mito neopagão de Hollywood, passou a convir a demolição do mesmo mito, e da civilização com base nele


736 edificada, a fim de dar um salto adiante no processo revolucionário, rumo à anarquia neotribal. Para este novo objetivo, era preciso então apresentar as condições de vida dos índios do modo mais favorável possível. Disso fui testemunha. Começaram a surgir menções a tal autor, que asseverava ser exagerada a versão de que todos os índios fossem canibais; ou a tal outro, que sustentava nunca ter havido canibalismo entre eles, e, pelo contrário, exaltava que possuíssem estas ou aquelas qualidades. Assim, elogios à arte, cultura e civilização dos índios foram se tornando cada vez mais frequentes, e caminhando para o hiperbólico. De fato, pode-se francamente falar de uma arte e de uma civilização indígenas, se consideramos, por exemplo, os incas e os astecas, que tiveram impérios organizados, uma verdadeira arte e elementos culturais dignos de menção. Sobretudo é verdade que, em toda a América, depois de convertidos à verdadeira Fé, os índios manifestaram um talento que os capacitou a produzir coisas boas e até relevantes. Era neles uma capacidade natural latente, que, como fruto do batismo e da civilização, e como resultado do contato com os eclesiásticos e com o elemento civil de Portugal e da Espanha, se transformou em qualidade patente. Falar-se porém de arte indígena pré-colombiana fora dos astecas e dos incas, e de alguma outra exceção, é extremamente questionável do ponto de vista historiográfico. Essa retomada do tema indígena culminou com a virtual glorificação do índio, e de suas condições de vida milenar, promovida pelas esquerdas. * A ECO’92, por exemplo, foi uma manifestação muito curiosa, muito aguda e muito sistemática dessa glorificação que, por sua vez, o movimento contrário à celebração dos 500 anos do Descobrimento da América estava levando até o paroxismo 2319.

3. Principais teses dos opositores ao Descobrimento e à Evangelização da América De fato, para surpresa de muitos, o ensejo dos 500 anos do Descobrimento da América não foi motivo indiscutido de festejos.

2319 Prefácio ao livro O V Centenário face ao século XXI, Comissão Inter-TFPs de Estudos HispanoAmericanos, Artpress, São Paulo, 1993.


737 Em certas publicações da esquerda católica, os conquistadores, de heróis, passaram a vilões. Punham elas em realce suas crueldades, não a sua coragem e sua obra civilizadora. E os abnegados e beneméritos missionários, que converteram índios à Fé católica, eram apontados pelos adeptos dessa mesma Teologia da Libertação como fautores de um empreendimento nefasto. Eu considerava que a corrente inspirada pela Teologia da Libertação errava na apreciação histórica a partir dos erros que ela cometia na apreciação teológica. Ou seja, era a partir dos seus erros teológicos que ela caía em erros históricos. * A Teologia da Libertação tem, a respeito da natureza humana e do rumo que deve seguir a História, um modo de ver inteiramente diverso daquele que tem o verdadeiro católico. Para este, o homem deve progredir continuamente, mas este progresso consiste em sujeitar a terra ao serviço do homem. E, por sua vez, o homem deve sujeitar-se ao serviço de Deus, de maneira que Deus reine sobre toda a Criação. Se o homem proceder virtuosamente, fa-lo-á com o equilíbrio adequado, que impedirá a destruição da natureza. Mais ainda, ele a aperfeiçoará para o seu próprio benefício. Já segundo a doutrina da Teologia da Libertação, muito vizinha, nesse ponto, do ecologismo exacerbado que se difundiu pelo mundo, o homem é quem deve estar a serviço da natureza. De maneira tal que, em vez de essa natureza ser vergada e domesticada pelo e para o homem, é o homem que deve viver para conservar incólume a natureza. Ele seria o guardião da natureza, tocando-a o mínimo, e vivendo modestamente, na maior medida possível, só do que a natureza lhe proporcionasse. E isto num estado verdadeiramente primitivo, selvagem. Segundo essa concepção ecoteológica, chega-se à conclusão de que o estado selvagem é o estado ideal para o homem. Enquanto, segundo a doutrina católica, o estado perfeito para ele é o de ser civilizado. Em tal concepção, é claro que os índios, por terem sido civilizados, foram prejudicados. A partir daí — concluem os ecoteólogos — é claro que a América não deveria ter sido descoberta, que ela nada lucrou em ter sido descoberta por europeus, e que estes erraram querendo adaptar àquela civilização as “maravilhas” do Novo Mundo. Tese esta que é uma verdadeira aberração. Para esses adeptos da Teologia da Libertação ou dessa “ecologia”, a


738 obra dos descobridores e colonizadores tinha sido funesta 2320. * O mais característico desses novos intérpretes foi, uma vez mais, o espanhol Dom Pedro Casaldáliga. Ele considerava que a vinda dos missionários brancos foi nociva para os índios, e chegou a dizer que o Deus branco não convinha para homens de pele-vermelha. Eu achava que o Deus de pele branca, Nosso Senhor Jesus Cristo, convinha a todos os homens. O problema não se punha nesses termos.

4. Papel heroico dos Descobridores e dos Evangelizadores na História do Brasil Diferentemente da Teologia da Libertação, eu via no V Centenário do Descobrimento da América um fato de uma importância transcendental para a História do mundo. Era de uma importância tão transcendental que, se fôssemos enumerar todas as consequências dele, seria literalmente impossível. Eu me concentro, com simpatia, em considerar os efeitos na História da Espanha. É preciso notar que a Espanha de 1492 acabava de consolidar a sua unidade com a expulsão dos últimos mouros de Granada e iniciava um outro grande ciclo de atividades que haveriam de consagrá-la como uma das primeiras nações da História do Ocidente. A Espanha havia se voltado para a luta contra os mouros no Oriente − ela que tinha feito a luta contra os mouros no Ocidente − e ganhava a notabilíssima vitória de Lepanto que firmou as barreiras ao poder muçulmano*. * Presenciamos hoje o ressurgimento ameaçador do poder muçulmano, representado em sua ponta mais extremada pelo Estado Islâmico. Tal ressurgimento foi previsto por Plinio Corrêa de Oliveira nas páginas do Legionário ainda na década de 1940, e depois em Catolicismo, no início da década de 1950. Dizia ele, no artigo A Questão Libanesa, estampado no Legionário de 5/12/43: “O perigo muçulmano é imenso. O Ocidente parece fechar-lhe os olhos, como os tem ainda semi-cerrados ao imenso perigo amarelo. [...] Nos dias de hoje, com homens, armas e dinheiro, tudo se faz. Dinheiro e homens, o mundo muçulmano os possui à vontade. “Adquirir armas, não será difícil... e, com isto, ficará uma potência imensa em todo o Oriente, ativa, aguerrida, cônscia de suas tradições, inimiga do Ocidente, tão armada quanto ele, que dentro de algum tempo poderá ser

2320 Entrevista a Catolicismo n° 503, novembro 1992.


739 absolutamente tão influente quanto o mundo amarelo, e colocada em situação geográfica e econômica incomparavelmente melhor!” A este propósito, ver a excelente obra de Juan Gonzalo Larrain Campbell, Plinio Corrêa de Oliveira: Previsões e denúncias em defesa da Igreja e da Civilização Cristã (Artpress, São Paulo, 2001), na qual é transcrito o seguinte e expressivo testemunho do Padre jesuíta João B. Libânio, um dos expoentes da Teologia da Libertação: “Plinio Corrêa de Oliveira (fundador da TFP — Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) fez uma palestra para os jesuítas em 1940, permeada de uma ideia toda messiânica [sic!], dizendo que o grande problema do cristianismo era o islamismo. Há 50 anos, foi profético, ou a História foi, por outras razões, caminhando nesse sentido. O fato é que se confirma o que ele intuiu”.

De outro lado, houve o ciclo de navegações, que não se resumiu apenas ao Descobrimento da América, e que levou até às Filipinas. Tinha sido também a Espanha que dera o apoio decisivo ao movimento de caráter religioso-cultural, no sentido mais amplo do termo: a Contra-Reforma. Esta também pôs diques à Reforma, que soava como uma verdadeira revolução. Tudo isso pôde fazê-lo com os recursos que recebia do Novo Mundo, e com grande vantagem para a civilização cristã e para a humanidade em geral. Por exemplo, José de Anchieta, grande missionário jesuíta nascido nas Ilhas Canárias, portanto espanhol, foi o maior apóstolo dos índios no Brasil. Homem que merecia ser mundialmente célebre, e que João Paulo II beatificou numa das visitas que fez ao Brasil*. * Como já ficou dito, foi canonizado pelo atual Pontífice.

Foi um jesuíta característico do século XVI − século áureo da Companhia de Jesus − no sentido mais pleno da palavra 2321.

5. A “Caminhada da Fidelidade” promovida pela TFP Diante dessas vozes que se levantavam para afirmar que o Descobrimento havia sido um desastre para as populações nativas da América, um desastre para a história do mundo, não poderia deixar de ser que a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade levantasse um protesto contra essa tendência que ia ao arrepio de todo o curso da História. E que afirmasse num ato solene, em que estivessem presentes representantes dos mais variados países da América e de diversos países da Europa, a sua solidariedade entusiasmada e convicta à obra missionária 2321 Entrevista à TVE da Espanha (gravação), 3/2/90.


740 realizada pela Igreja Católica no Brasil, como em todo território das Américas, ao longo desse tempo. E ao mesmo tempo proclamasse a segurança de que o futuro da América só tinha um sentido: o futuro da civilização cristã Com efeito, essa caminhada poderia chamar-se a Caminhada da Fidelidade*. * Aproveitando o afluxo a São Paulo de grande número de pessoas para o VIII Encontro de Correspondentes e Simpatizantes, a TFP organizou a que ficou conhecida como a Caminhada da Fidelidade ou Desfile da Fidelidade (cfr. Catolicismo n° 494, fevereiro de 1992). Esse desfile realizou-se numa tarde de sexta-feira, dia 3 de janeiro, para prestar a homenagem das TFPs de toda a América aos Papas, aos Monarcas, aos Descobridores e aos Missionários propulsores do esforço evangelizador e civilizador.

Foi a caminhada de uma fidelidade que teve início no Pátio do Colégio, naquela primeira célula-mater de São Paulo, quando a cidade era apenas uma aldeola, habitada por portugueses e por índios que os missionários acabavam de introduzir para luz do Evangelho. E esse roteiro, nós simbolicamente percorremos. Porque deixamos o Pátio do Colégio e seguimos através de várias vias do centro antigo de São Paulo, onde se encontravam prédios construídos em várias épocas da história paulista, e bem simbólicos de todos esses séculos que São Paulo tinha vivido de lá até aquele momento. Era, portanto, o caminho da fidelidade à tradição.

6. Passos que repercutem no Céu Ao planejar aquele desfile, eu estava bem certo de que os passos dos homens na terra repercutem no Céu. E portanto estava bem certo de que tudo quanto ali se fizesse repercutiria no Céu e ficaria inscrito no Livro da Vida. E foi nesta certeza que se abriu, no dia 3 de janeiro de 1992, o VIII Encontro de Correspondentes da TFP. Durante o desfile, eu vi com simpatia pessoas vindas do norte de nosso continente, das margens do rio Hudson que banha Nova York. Vi pessoas vindas das margens do Amazonas tão nosso, tão caracteristicamente brasileiro, tão distante pela geografia, mas tão próximo pelo afeto. E também os que vieram das margens do Rio da Prata, e de além dos Andes. Vi também os espanhóis, os quais vieram de junto do rio Manzanares, que banha a histórica e legendária Madri, para participar do nosso entusiasmo.


741 Sim, no Livro da Vida ficará inscrito que, na aurora desse ano de 1992, em que certo falso progressismo se prometia a si próprio tantas realizações no seu programa de renovações, que eram no fundo deteriorações, houve também passos que repercutiram firme na terra dizendo: “Nós também avançaremos! Nós também caminharemos!” 2322.

Capítulo IV Contra o Tratado de Maastricht: Europa cristã ou Europa laica e revolucionária? (1992) 1. Grandes blocos nacionais, caminho para uma ditadura burocrática universal De um modo geral, a TFP não vê com simpatia 2323 uma forte corrente de opinião que tende para a unificação de grandes blocos de nações 2324. Isto porque a formação de tais blocos e a extinção das pátrias locais caminham para uma ditadura burocrática universal. E eu sou contra isto 2325. A mesma razão que impele grupos de povos a se unificarem em um só bloco supranacional conduz, mais cedo ou mais tarde, a que formem uma só nação internacional, uma única nação mundial. Chegaremos, então, à abolição de todas as pátrias e de todas as nações, sob um conjunto que me parece absolutamente antinatural e indesejável. Esta era a razão pela qual eu me opus a agrupamentos do tipo do Tratado de Maastricht para a França e para os demais países da Europa, como também me opus a agrupamentos análogos para os países da América do Sul. Se se transformasse cada continente em um só bloco, nós teríamos chegado à formação de um governo mundial 2326. * 2322 Discurso durante o Desfile da Fidelidade, Catolicismo n° 494, fevereiro de 1992. 2323 Entrevista a Zero Hora (gravação), 21/1/93. 2324 Press-release para rádios francesas, novembro de 1992. 2325 Entrevista a Zero Hora (gravação), 21/1/93. 2326 Press-release para rádios francesas, novembro de 1992.


742 Na década de 1950, havia sido dado um primeiro passo neste sentido. Os representantes da Alemanha Ocidental, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo se reuniram em Roma e fizeram um primeiro tratado constitutivo da “Europa dos Seis”, em que os primeiros lineamentos, as primeiras concessões mútuas, os primeiros balbucios da futura União Europeia começaram a aparecer* 2327. * Foram os famosos Tratados de Roma. O primeiro instituiu a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e o segundo a Comunidade Europeia da Energia Atomica, mais conhecida sob a designação de Euratom. Ambos assinados em 25 de março de 1957, entraram em vigor em 1° de janeiro de 1958.

2. A importância do Tratado de Maastricht na construção da República Universal E mais recentemente em Maastricht eles chegaram a constituir um tratado geral, o qual tratado constitui de fato a “Europa dos Doze”*. * A União Europeia nasceu desse Tratado, assinado a 7 de fevereiro 1992 por doze países-membros: Alemanha Federal, França, Reino Unido, Itália, Espanha, Portugal, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo e Grécia. Daí a denominação “Europa dos Doze”. Sucederam-se uma série de outros tratados, e hoje a União Europeia é constituída por 28 Estadosmembros.

Esse Tratado foi introduzido muito velhacamente. Porque os representantes de todos os governos da “Europa dos Doze” − com exceção da Inglaterra que não aceitou entrar na zona do euro − perceberam que era um verdadeiro perigo consultar o povo sobre o que opinava de suas cláusulas. E que mais valia a pena utilizarem-se do apoio que contavam nos respectivos parlamentos, para fazer passar o Tratado depressa. Quando a Europa acordasse, as nações europeias teriam perdido o melhor de sua soberania em virtude das condições desse Tratado 2328. 2327 RR 12/9/92. 2328 — Repleto de imprecisões e complexidades em seu confuso texto, o Tratado invadia em pontos capitais a área específica das soberanias nacionais, e sob ele os países-membros, em boa medida, deixariam praticamente de existir como nações livres e soberanas, passando a ser governados por um supergoverno com sede em Bruxelas, impessoal, anônimo e tirânico. Sua aprovação levaria a França e os demais países da Europa a renunciar, entre outras coisas, à maneira de dispor de seu potencial militar e, de futuro, a uma política exterior independente. Teriam também de submeter suas contas e orçamentos ao supergoverno da União Europeia (UE). Essa estrutura política rígida, resultante da eventual aplicação do Tratado de Maastricht, poderia facilmente transformar-se numa nomenklatura de tecnocratas, tal como a que existiu na extinta URSS. Os franceses e os demais signatários do tratado estariam, então, sujeitos ao mesmo processo de massificação que arruinou as nações da ex-União Soviética. A forma velhaca de tentar fazer passar esse Tratado pode ser sentida nas declarações da ministra delegada dos negócios europeus, Elizabeth Guigou: "Por muito tempo construímos a Europa em surdina, às escondidas".


743 * Mas a Dinamarca quis fazer um plebiscito. Parece que a constituição dinamarquesa o exigia, Os meios oficiais daquele país resolveram antes publicar como seria a estrutura da Europa pelo Tratado de Maastricht. E os dinamarqueses puderam ler essas explicações antes de votar. Lendo-as, viram que, em primeiro lugar, era um texto ininteligível (falarei mais adiante sobre essa ininteligibilidade). Em segundo lugar, que era em todo o caso uma coleira passada no pescoço de todas as nações da Europa. Na hora de votar, ante a pergunta que no fundo era se queriam continuar independentes ou não, a resposta foi: "Queremos continuar independentes, não queremos saber desse Tratado". Uma derrota para Maastricht, portanto 2329. * Diante desse resultado na Dinamarca, em vários países os opositores de Maastricht começaram a dizer: "Nós queremos plebiscito". Isso provocou a epidemia de um pânico. Pois, para que essa Europa dos Doze não tivesse o ar de uma ditadura, era preciso que ela simulasse ter sido aprovada segundo os cânones do mais rigoroso democratismo. Onde isto se verificou mais energicamente foi na França*. * No dia 9 de abril 1992, o Conselho constitucional da França sinalizou que, sem uma revisão da Constituição, seria impossível a ratificação do Tratado de Maastricht. Para sair do impasse, o Parlamento francês reuniu-se em congresso a 23 de junho de 1992, introduzindo modificações na Constituição que viabilizavam tal ratificação..

O governo de Mitterrand resolveu então — com risco para todo

Também Jacques Delors, presidente do mais alto órgão executivo da Comissão Europeia, reconheceu: "A construção europeia não começou enunciando claramente o que deverá ser, no fim de seu processo de formação, a repartição dos poderes". E o socialista Jean-Pierre Chevènement constatou: "Longe de construir a Europa dos povos, construiremos a Europa sem o povo. Os super-altos funcionários, que formam a Comissão das Comunidades Europeias, promulgam textos sem se preocupar em obter o consentimento democrático” (cfr. A TFP diz NÃO a Maastricht, Catolicismo n° 503, novembro 1992). 2329 — Neste referendo de 1992, o Tratado foi rejeitado por 50,7% dos eleitores. Essa derrota levou as cúpulas europeias a costurarem o acordo de Edimburgo, que definiu exceções, para a Dinamarca, ao Tratado de Maastricht. Somente assim foi possível, no ano seguinte (1993), realizar um segundo referendo que permitiu a aceitação do Tratado e a entrada da Dinamarca na União Europeia.


744 esse castelo de cartas de baralho que era Maastricht — fazer um referendo, o qual foi marcado para o dia 20 de setembro de 1992. * Diante desse referendo, nasceu um imperativo para a TFP francesa: ela tinha que se pronunciar. Como se pronunciar? Só havia uma possibilidade: era denunciando. Ou seja, tomando o Tratado de Maastricht e mostrando, pela análise de artigos do Tratado, que ele liquidava com a independência da França. E perguntando aos franceses: "O Tratado é este: vocês o querem?" 2330.

3. Telefonema da TFP francesa e sugestão para intervir Em telefonema com os dirigentes da TFP francesa, eu disse a eles que, julgando as coisas de longe, no meu parecer, conviria entrar no debate. Pois, mesmo se os contra-Maastricht não obtivessem a maioria, e os próMaastricht tivessem uma maioria, mas muito pequena, ficaria para eles malaisé, ficaria embaraçoso aos propugnadores do tratado impor Maastricht. Uma vitória dos pró-Maastricht muito apertada, muito de raspão, equivaleria, no fundo, a uma derrota. Isto porque, impor à metade ou a um pouco menos da metade de uma nação a aceitação de uma espécie de renúncia à soberania, era uma coisa muito bruta e de resultados muito incertos. O assunto deveria ser visto, portanto, não apenas em termos de números, mas de números analisados politicamente 2331. E fazer um esforço, em toda a medida do possível, para que os franceses votassem pelo “não”. Uma pequena diferença poderia pesar no final das contas 2332. Além do mais, deixar passar esse Tratado sem uma palavra da TFP seria uma verdadeira tristeza 2333. Dever-se-ia fazer alguma coisa, ainda que fosse para depois ficar constando: “Nós avisamos” 2334.

4. Sorte da Europa e do mundo pendente do plebiscito francês Outra coisa que pesava muito era o seguinte: dado o papel da França na Europa e no mundo, se o plebiscito francês decidisse largamente pró-Maastricht, seria a vitória de Maastricht na Europa. E se decidisse contra Maastricht, seria a derrota de Maastricht na Europa. 2330 RR 12/9/92. 2331 Telefonema TFP francesa 26/8/92. 2332 Despacho França 17/7/92. 2333 Despacho França 28/7/92. 2334 Despacho França 22/7/92.


745 Era, portanto, o destino da Europa que se jogava ali. E, jogando-se o destino da Europa, jogava-se o destino daquilo que é a parte mais culturalizada e mais carregada de tradições do mundo: a parte onde existiu, como em nenhum outro lugar e numa como que plenitude, a civilização cristã. Aquele solo havia sido ensopado das bênçãos do precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo isto estava sendo jogado naquele instante. Ganhando o “não”, por muito tempo o plano da unificação da Europa, ou seja, o plano de um supergoverno mundial, estaria impedido 2335 . Aliás, os próprios jornais reconheciam: o destino do mundo estava sendo resolvido nesse plebiscito francês 2336. Consequentemente, era muito importante a TFP francesa tentar galvanizar ao menos uma parcela grande dos partidários do “não” 2337.

5. Um tratado confuso e quase ilegível. A campanha da TFP francesa Acontece que o texto do Tratado era a coisa a mais estúpida, a mais maluca, a mais anárquica, a mais confusa que se pudesse imaginar 2338. Vários franceses eminentes chegaram a declarar que o Tratado era de fato ininteligível. E isto foi reconhecido até por certos partidários do Tratado. Então resolvemos oferecer aos nossos amigos franceses uma sugestão de texto, que naturalmente eles depois verteram para o francês, e fizeram — como eu tive todo o empenho em que fizessem — várias modificações 2339. Tive de fazer um esforço intelectual muito grande para ordenar e compreender aquele emaranhado de peças que se metiam desordenadamente — em francês se diz enfouir — umas dentro das outras no Tratado de Maastricht 2340. Não se pode fazer uma ideia do quanto me cansou a elaboração dessa sugestão de texto 2341. Aquilo era uma confusão infernal. Tirar do ilegível peçazinhas de contornos definidos para constituir um manifesto claro, era um trabalho de Hércules. E me comprazo muito de que vários da TFP colaboraram 2335 RR 29/8/92. 2336 Jantar EANS 15/9/92. 2337 Almoço 26/8/92. 2338 CSN 1/8/92. 2339 RR 12/9/92. 2340 RR 29/8/92. 2341 RR 12/9/92.


746 expressivamente, na época, para a montagem desse manifesto, lendo muita coisa, resumindo. Depois, os membros da TFP francesa trabalharam sobre o texto sugerido, fizeram os retoques necessários 2342, dando-lhe a redação definitiva. E o manifesto foi afinal publicado em Le Quotidien de Paris*. * Tal publicação deu-se no 25 de agosto de 1992, vinte e seis dias antes da consulta popular. A TFP francesa iniciou, então, uma pujante campanha de distribuição do texto nas vias públicas de Paris e de várias cidades do interior da França. Promoveu também o envio em massa, por correio, do mesmo manifesto.

6. Episcopado: neutro antes, pró-Maastricht depois do manifesto No dia seguinte à publicação do manifesto, o Episcopado francês − que havia anteriormente emitido uma nota manifestando-se neutro, sob a alegação de ser o referendo uma questão toda temporal − publicou às pressas um manifesto a favor de Maastricht. Quer dizer, procurou arrastar a favor de Maastricht uma parte da opinião católica que eles tinham medo que passasse para o outro lado 2343. A Hierarquia francesa ajudava assim a iludir muitos entre os bons. Muitos dos que iriam votar pró-Maastricht não votariam nessa direção se não fosse a atuação da Hierarquia 2344.

7. Sinal amarelo: governo vence “avec un petit oui” No começo, as intenções de votos nas pesquisas davam muito mais pró-Maastricht do que contra Maastricht. Aos poucos foram subindo os contra Maastricht e se igualaram. Quando se aproximou o dia do referendo, a questão estava num tal pé que um, dois ou três por cento dos votos poderiam decidir a votação 2345. "sim".

Houve na mídia francesa uma inundação de propaganda a favor do

Afinal, no dia 20 de setembro, os pró-Maastricht venceram com apenas a pequena margem de 2,1%. Uma maioria de 2,1 por cento era um palito 2342 Jantar EANS 15/9/92. 2343 RR 12/9/92. 2344 Almoço 20/9/92. 2345 RR 12/9/92. 2346 RR 21/9/92.

2346

, uma vitória de


747 Pirro 2347. O número de jornais e de pessoas que declararam tratar-se de uma vitória pequena e de pouco alcance foi muito muito grande na França*. * “O governo vence ‘avec un petit OUI et un puissant NON’”, ou seja, “com um pequeno SIM e um possante NÃO”, comentou Jean Valleix, senador pelo RPR (cfr. Sénat — Première session extraordinaire de 1993-1994 — http://www.senat.fr/rap/1993-1994/i1993_1994_0222_01.pdf).

A opinião pública manifestou-se lúcida o bastante para resistir contra uma tentativa de embuste grosseiro, como o de apresentar a vitoriazinha de ninharia como uma vitória verdadeira do Tratado de Maastricht. O que significava um embaraço muito grande para o governo Mitterrand 2348. Se o governo sabia de antemão que 48,9% dos franceses não queriam esse resultado, ele não tinha o direito de entregar a soberania francesa ao estrangeiro com base numa tão exígua maioria. Também o mecanismo político francês não havia interpretado o país. A votação na Câmara a favor do Tratado de Maastricht não correspondia nem um pouco à votação da Nação. Não havia uma fração que, democraticamente falando, estivesse em condições de impor à outra, servindo-se de uma maioria tão exígua, a entrega da soberania nacional 2349. Um Ministro de Estado chegou a declarar: “Para o governo, não foi um sinal vermelho, mas também não foi um sinal verde: foi um sinal amarelo”. Com espírito francês, ele disse bem a coisa certa. Quer dizer, pare, não ande, não avance, não faça bobagem, porque a situação agora é delicada. Em vista da pressão dos meios de comunicação social em favor do “sim”, para quem tem um pouco de ideia do peso da propaganda sobre o espírito de qualquer povo, ficou posta a pergunta: de fato foram eles que ganharam? 2350 Pode-se bem dizer que os pró-Maastricht tiveram uma pequena vitória. E nós, os contra Maastricht, tivemos uma derrota gloriosa. O fato é que, neste lance, a irradiação da TFP francesa cresceu 2351. 2347 Almoço 20/9/92 — O “sim” obterve 13.165.475 (51,04 %). E o “não” 12.626.700 votos (48,96 %). A participação de 69,7 % dos eleitores (26.696.626 de votantes, num corpo eleitoral de 38.299.794) foi considerada particularmente alta para um referendo na França (cfr. http://www.interieur.gouv.fr). 2348 RR 21/9/92. 2349 Almoço 20/9/92. 2350 RR 21/9/92. 2351 Almoço 20/9/92.


748 E por muito tempo o plano da unificação da Europa, ou seja, o plano de um super-governo mundial, estava comprometido 2352. Na Espanha, a TFP espanhola fez uma brilhante campanha contra Maastricht. Em Portugal também2353. * Depois de Maastricht, e a propósito de Maastricht, houve novas combinações, novos tratados, tendo como ponto de apoio Bruxelas, que foi transformada gradualmente na capital burocrática da Europa*. * Bruxelas é realmente a capital de facto da União Europeia, apesar da inexistência de qualquer capital oficial declarada pela UE. A cidade acolhe a Comissão Europeia e o Conselho Europeu. Cerca de 75% do trabalho do Parlamento Europeu tem lugar nesta cidade, apesar de sua instituição oficial ser em Estrasburgo.

Depois de estabelecido o Parlamento Europeu, votaram-se algumas leis “imperativas”, embora não tivessem o direito de legislar, mas apenas de fazer recomendações. Aos poucos esse Parlamento começou a querer impor essa legislação, como era evidente que tenderia para isto, para todos os países da Europa pertencentes à União Europeia 2354.

Capítulo V Campanha contra a Reforma Agrária e a Reforma Urbana no governo Collor (1992) 1. Projeto de reformas stalinistas: mudança completa da fisionomia do País Enquanto eu trabalhava o manifesto contra o Tratado de Maastricht , estava tramitando no Brasil um projeto de lei de Reforma Agrária e outro de Reforma Urbana, ambos terrivelmente esquerdistas e que feriam a fundo dois princípios fundamentais da civilização cristã e dois princípios básicos da economia brasileira e da economia de todo o mundo ocidental: a propriedade privada e a livre iniciativa. 2355

Se esses projetos fossem aprovados, o Brasil teria entrado na maior

2352 RR 29/8/92. 2353 Entrevista a Zero Hora (gravação), 21/1/93. 2354 RR 12/9/92. 2355 Percurso 12/9/92.


749 crise que teve desde a Independência 2356. No governo Collor, parlamentares brasileiros não tiveram dúvidas em dar acelerado andamento aos projetos de lei 11D/91 e 71B/89, sobre Reforma Agrária, e ao projeto de lei 5.788/90, sobre Reforma Urbana, que, sob a alegação de regulamentar os dispositivos do Título VII, Capítulos II e III, da Constituição Federal, visavam instaurar no Brasil as duas mais gigantescas reformas até então propostas por legisladores não declaradamente comunistas 2357. Esses projetos, se aprovados, teriam feito passar nosso País do regime da livre iniciativa e da propriedade privada, para o de um capitalismo de Estado quase completo 2358. Dita reforma conferia atribuições com amplidão típica de uma ditadura stalinista − ou mais ou menos tanto − ao Estado, o qual ficaria com poderes absolutos para pôr e dispor segundo o arbítrio de seus mais altos órgãos, dos bens e da situação pessoal de todos os agricultores e pecuaristas do País 2359. Quanto à Reforma Urbana, os terrenos das cidades ficavam tão sujeitos à desapropriação quanto os do campo. E o direito do proprietário urbano se via reduzido a muito pouco. Basta um exemplo para se ver o alcance dessa lei: ninguém poderia construir uma casa sem que a prefeitura visse se essa casa oferecia condições para que nela habitasse o maior número possível de pessoas. Ou seja, o proprietário não teria direito de construir sua casa como quisesse, mas ficava obrigado a ajeitar-se dentro de uma casa que a prefeitura planejou para ele. Mais outra ocasião para perseguições políticas 2360. Tínhamos, portanto, que fechar essa porta também 2361.

2. Vigorosa campanha de brasileiros pedem plebiscito

abaixo-assinado:

1.133.932

Esses projetos de lei em questão − os da Reforma Agrária e da Reforma Urbana − se arrastaram por largo tempo, silenciosos e ignorados, pelos meandros da tramitação dos processos parlamentares. 2356 Programa radiofônico 17/8/92. 2357 O caminho estreito que não tem saída, Catolicismo n° 502, outubro de 1992. 2358 Os brasileiros não querem a Reforma Agrária nem a Reforma Urbana, Catolicismo n° 501, setembro de 1992. 2359 Ameaças para o Brasil: reformas socialistas, press release do Serviço de Imprensa, dezembro de 1992. 2360 Programa radiofônico 17/8/92. 2361 Despacho França 28/7/92.


750 Quando o período legislativo ordinário de 1992 já se encerrara, os srs. deputados foram convocados a prolongá-lo extraordinariamente, por motivos da crise política nacional que redundaria na renúncia do Presidente Collor de Melo. Coincidentemente, os projetos de regulamentação da Reforma Agrária foram tirados de sua morosidade, e foram apresentados de modo surpreendente ao Plenário em regime de urgência urgentíssima. A pressa foi tal que, na hora da votação, violentando as regras de praxe, o relator, deputado Odelmo Leão, leu um texto final do qual os parlamentares não tinham conhecimento prévio. O projeto acabou sendo aprovado pelo voto simbólico das lideranças, uma vez que não havia em plenário quorum suficiente para a votação 2362. Quanto ao projeto de lei da Reforma Urbana, por sua vez, foi posto na pauta das matérias 2363. Quer dizer, o povo não percebeu, o povo não foi informado, os jornais deram muito pouca notícia a respeito desse fato de um alcance tão enorme para os destinos da Nação. E, por mero voto de liderança, o assunto ia diretamente para o Senado. A TFP, inteirada disso por nosso representante em Brasília, imediatamente tomou posição. E mandou um telex para o Presidente Collor, bem como para o presidente da Câmara dos Deputados, o Sr. Ibsen Pinheiro, e para o Presidente do Senado, o Sr. Mauro Benevides, mostrando os erros que havia nessa maneira de conduzir o assunto e fazendo uma proposta. A essência da proposta da TFP era a seguinte. Já que se promoveu um plebiscito a respeito de questões como monarquia e república, ou parlamentarismo e presidencialismo, nós não compreendíamos que sobre uma reforma tão imensa, como a Reforma Agrária, também não se fizesse um plebiscito. E pedimos então que o Senado e a Câmara pedissem um plebiscito ou referendo, para que cada brasileiro fosse consultado sobre se queria ou não essa Reforma Agrária (eu tinha a vivíssima esperança de que, por maioria esmagadora, o plebiscito ou referendo indicaria a recusa do povo brasileiro à Reforma Agrária).

2362 CCEE 12/7/92. 2363 Os brasileiros não querem a Reforma Agrária nem a Reforma Urbana, Catolicismo n° 501, setembro de 1992.


751 Nós pedíamos portanto que o País fosse ouvido 2364. Simultaneamente, para pleitear a mencionada realização de um plebiscito, a TFP organizou, a partir do dia 11 de agosto de 1992, um abaixo-assinado nacional em que 344 coletores, atuando 7 horas por dia, em 15 Estados, num total de 98 Municípios − coadjuvados nessa ingente tarefa por 135 correspondentes da entidade, que a ela consagraram suas horas de lazer − conseguiram, em cerca de um mês de campanha, 1.133.932 assinaturas. O abaixo-assinado dirigia-se igualmente aos Srs. Presidente da República, Dr. Fernando Collor de Mello, Presidente do Senado, Dr. Mauro Benevides, e Presidente da Câmara dos Deputados, Dr. Ibsen Pinheiro 2365 e contou com uma acolhida popular que a nós mesmos nos causou surpresa. Tínhamos certeza da boa acolhida popular, mas não pensávamos que ela chegasse a ser tão calorosa. No primeiro dia de campanha, andávamos já por perto de cem mil assinaturas 2366. Uma comissão de 20 sócios e cooperadores da TFP entregou, no dia 1º de dezembro de 1992, no protocolo do Palácio do Planalto, 40 caixas contendo 117.973 folhas de abaixo-assinado com o aludido número de assinaturas. Analogamente, foram encaminhados ofícios aos presidentes do Senado e da Câmara Federal, comunicando a entrega daquela documentação no Palácio presidencial* 2367. * Vinte e oito dias depois, em 29 de dezembro de 1992, Collor renunciava ao mandato, diante da iminência de um processo de impeachment em curso na Câmara e no Senado. Assumiu o Vice-Presidente, Itamar Franco.

3. Campanha contra a Reforma Agrária no governo Fernando Henrique: audiência com o Ministro da Agricultura (1995) Três anos depois, já no governo de Fernando Henrique Cardoso, houve um desdobramento desse lance contra a Reforma Agrária. Organizada pela Campanha SOS Fazendeiro, da TFP, uma comissão seleta de brasileiros esteve em Brasília no dia 17 de maio de 1995, para levar ao Ministro Andrade Vieira, da Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária, a manifestação de sua inconformidade com a Reforma Agrária*. * Essa Reforma Agrária estava sendo impulsionada sob a égide do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

2364 CCEE 12/7/92. 2365 Declarações à imprensa, boletim Serviço de Imprensa, dezembro de 1992. 2366 Entrevista à Folha da Tarde (gravação), 18/8/92. 2367 Declarações à imprensa, boletim Serviço de Imprensa, dezembro de 1992.


752 A comissão incluía sacerdotes (entre eles, o então Cônego, hoje Monsenhor José Luis M. Villac), representantes de sindicatos, produtores e trabalhadores rurais e o deputado federal Lael Varella. Vários produtores apresentaram com calor, nessa entrevista de 30 minutos, as reivindicações da classe. Esta foi a primeira reação dos agropecuaristas contra o pacote de desapropriações de quase um milhão de hectares, decretado pelo Presidente Fernando Henrique em seus primeiros 90 dias de governo. Na ocasião, foram entregues ao Ministro 30.310 petições de brasileiros inconformes com a Reforma Agrária como vinha sendo aplicada no País. O porta-voz da Comissão foi o Dr. Plinio Vidigal Xavier da Silveira, diretor da TFP (cfr. Catolicismo n° 534, junho de 1995).

Assim, pela voz da TFP mais de 30 mil pessoas de todo o Brasil pediam ao governo que apresentasse ao grande público um levantamento dos resultados obtidos pela Reforma Agrária, nas terras em que ela já havia sido implantada desde 1964. E que dissesse ao País que vantagem houve na execução dessa Reforma Agrária. Tratava-se de um pedido cujo caráter justo entrava pelos olhos. A acolhida do Ministro foi amável, mas nem tudo na vida se resolve com amabilidades. Quando está em foco uma injustiça, o assunto só se resolve por meio da justiça. E nós só poderíamos nos sentir satisfeitos quando notássemos que o plano injusto da Reforma Agrária não era mais executado. Todos sabiam que o imenso território brasileiro comportava vastidões em grande parte ainda não ocupadas por ninguém. Ele é tão extenso que está bem acima das proporções necessárias para a atual população do País. Ora, se há gente sem terra, por que essa gente não era instalada onde havia terra sem gente, sobretudo no Norte do Brasil? Por que razão o governo, que era o proprietário ocioso dessas terras incultas, lançava mão de propriedades que pertenciam a outros?

4. No que deu a Reforma Agrária até agora? Assentamentos se transformaram em favelas rurais De mais a mais, a Reforma Agrária já provara ser um fracasso. Fazendas outrora prósperas foram brutalmente sujeitas ao processo de favelização. Tanto é que, na audiência concedida pelo Ministro da Agricultura, um sócio da TFP, Dr. Paulo Henrique Chaves, manifestou cordial e respeitosamente ao Sr. Andrade Vieira estar “muito preocupado com o fracasso dos assentamentos”. A isto, o Sr. Ministro redarguiu: “Alguns”.


753 Dr. Paulo Henrique então acrescentou: “Eu já visitei uns 10 ou 12 assentamentos. Todos os que eu visitei até hoje, um total fracasso”. O Ministro ficou em silêncio. Uma vez que isso era assim, tornava-se indispensável ao governo parar com as desapropriações, dar as provas de que a Reforma Agrária não estava favelizando o campo, abrir um debate nacional sobre o assunto e só depois continuar, se fosse o caso. O que não fosse isso, não seria democracia. Cortesmente pedíamos ao governo as provas do contrário, caso elas existissem. Que fossem publicadas — dizíamos — para que o povo as conhecesse, e mostrar que nós estávamos enganados. Que nos desmentissem! Que o Ministro da Reforma Agrária publicasse os resultados obtidos com a aplicação da Reforma Agrária até aquela data. Que falasse, nós estávamos ali pedindo. Se essa publicação não fosse feita, se ela não fosse convincente, se um debate sério e proveitoso não viesse a arejar o assunto, ficaria para a História que a Reforma Agrária tinha sido aplicada sem documentação que provasse seu acerto. Ela seria assim imposta ao País, e aplicada na marra por uma lei injusta. E ficaria patente que não houve progresso nenhum, mas sim a vitória da demagogia que soube impor sua opinião ao governo em detrimento do País 2368.

Capítulo VI Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana (1993) LIVRO ORIGINAL E PROFUNDO — O PAPEL DAS ELITES SEGUNDO A DOUTRINA CATÓLICA

1. Cinquenta anos antes, uma ideia realizada cinquenta anos depois Lembro-me até hoje quando, em 1944, li no Osservatore Romano

2368 A História registrará, Informativo Rural, junho-julho de 1995.


754 um discurso de Pio XII à Nobreza romana, falando do papel desta 2369. Era preciso ter vivido naquele tempo para compreender o silêncio pesado e diabólico que cercou a publicação desse documento. Que eu saiba fui só eu que o comentei num jornal como era o Legionário 2370. Já naquela época, veio-me completa a ideia de, baseado nos ensinamentos de Pio XII, escrever um livro sobre a Nobreza, e vi o proveito que se poderia tirar de tudo aquilo para a boa causa 2371. Cheguei até a escrever, naquele ano, uma espécie de pré-livro da Nobreza 2372. Paradoxalmente, naquela época as coisas no mundo andavam muito menos mal do que hoje. Mas naquele mundo menos mau, meus artigos produziram uma inércia prodigiosa 2373. Quer dizer, houve uma espécie de laje de chumbo em cima do tema 2374. O resultado é que, por dezenas de anos, eu não mexi mais no assunto. Não que eu me esquecesse, mas por parecer-me que o momento não era oportuno. Pois vi que, se eu publicasse um livro a esse respeito naquela ocasião, não encontraria repercussão 2375. Passados os tempos, me veio à cabeça que, mudadas também favoravelmente as mentalidades em vários países do mundo, o ideal monárquico se reacendendo auspiciosamente, havia clima para a publicação desses documentos do Papa, mas com comentários mais amplos. E eu então resolvi fazer esse livro que trata da Nobreza e das elites tradicionais análogas 2376. Que circunstâncias foram essas? Preciso explicá-las um pouco longamente, para se poder entender o alcance do livro que escrevi. * No ano 1988, fiz uma viagem pela Europa. E encontrei-a bem mais rica do que eu a havia deixado 30 ou 40 anos atrás. 2369 CSN 5/2/94. 2370 Despacho livro da Nobreza 18/1/93. 2371 CSN 5/2/94. 2372 SD 22/2/95 — Esta série começou com um comentário na seção 7 dias em revista do Legionário nº 598, de 23 de janeiro de 1944, e logo em seguida no artigo Alocução do Santo Padre à Nobreza romana, do Legionário n° 601, 13 de fevereiro de 1944. Doze anos mais tarde, em Catolicismo foram publicados os artigos Um hino de amor sobe ao trono do pontífice imortal (n° 63, março de 1956); Missão hodierna das elites tradicionais (n° 64, abril de 1956); A importância das elites tradicionais na solução da crise hodierna (n° 65, maio de 1956). 2373 CSN 14/8/93. 2374 Despacho livro Nobreza (Estados Unidos) 18/1/93. 2375 Telefonema 29/4/93. 2376 Conversa 20/1/93.


755 Na década de 50, ela estava toda lanhada, com os ferimentos ainda frescos da última guerra mundial. Esses ferimentos se tinham somado ao corpo velho e cansado da Europa, a qual não cicatrizara inteiramente nem das feridas da I Guerra Mundial 2377. E tudo isso agravado por antecedentes históricos que ajudaram a formar esse quadro. Que antecedentes tinham sido esses?

2. Século XIX: “monarquista enquanto católico e católico enquanto monarquista” Quando nos reportamos ao último período anterior à Revolução Francesa, a Europa ainda era totalmente marcada pela Renascença e pelo racionalismo. Tomando em consideração que a sociedade francesa dava o tom a toda a Europa, era portanto toda a sociedade europeia que estava nessa situação. De um lado, ela era muito frívola, perpassada por ditos finos, espirituosos, engraçados, verdadeiros petiscos do ponto de vista do espírito, da inteligência, mas sem pensamento profundo, sem nada que representasse seriedade. A glória militar, por exemplo, já não produzia admiração. Nem produzia admiração o que era mais sério. Único tipo de intelectuais que era tolerado eram os enciclopedistas, todos eles racionalistas, muito raciocinantes, mas de um raciocínio completamente no ar, produzindo quimeras brilhantes como as de Rousseau. Ou então um palhaço do espírito, como era Voltaire. Muito raciocinador, esgrimidor, mas engraçado. Seus raciocínios não concluíam pela lógica, concluíam pelo debique, arrasando o adversário com coisas desse gênero. O ambiente geral era de otimismo. Uma festa! Ficavam de fora desse quadro duas necessidades do espírito humano. Uma era a observação da realidade nua e crua como ela é, em contraposição a uma realidade fictícia, brilhante, reluzente, mas imaginária e irreal. E outra era a necessidade de abandonar essa secura de espírito e de coração, que não permitia senão o divertimento e o raciocínio no ar, para dar lugar ao sentimento, à bondade, e também para que a dor humana encontrasse sua possibilidade de expansão. Uma cultura bem concebida 2377 CM 13/11/88.


756 tem que dar lugar à expressão do sofrimento, como dá lugar à expressão de outros sentimentos humanos. Isto estava trancado e posto de lado na cultura pré-Revolução Francesa. O resultado foi que, enquanto esse exagero ia caminhando até o delírio, uma certa parte da nobreza começou a reagir contra isto, produzindo uma certa reação impulsiva, um bom número de anos antes da Revolução Francesa se declarar. Então começaram a voltar para o interior e ir morar nos seus castelos, restaurando e construindo edificações góticas que antes eram abominadas. * Quando explodiu a Revolução Francesa, em 1789, houve todos os horrores que todo mundo sabe. E o mundo que emergiu dessa revolução, como reação exagerou aquilo que faltava no mundo anterior. Então vimos o papel do sentimento deixando de lado e dominando a razão, e o papel da observação da realidade procurando já não mais uma realidade real, mas uma realidade levada a figurar principalmente o horrível, o prosaico, o baixo, o vulgar, como uma espécie de vingança, de desforra do espírito humano em relação àquela feeria brilhante anterior à Revolução Francesa. Daí veio a série de romances lacrimejantes, representando tragédias. Então óperas e dramas em que os personagens se matavam. E os romances em que o suicídio era o mais bonito dos desfechos. Daí ter surgido o Romantismo e a tendência ao trágico. Mas também, junto com esses exageros, surgiu a boa tendência ao gótico, ao sério, ao direito, aos estudos históricos. Apareceram então sociólogos como Le Play, De Bonald, De Maistre e vários outros, que apresentavam a realidade como ela era. Surgiu, portanto, em toda a Europa, em face da Revolução Francesa, uma onda enorme de opinião contra-revolucionária, gerando o aparecimento de movimentos como o da Restauração na França, do Carlismo na Espanha, o de Andreas Hofer na Áustria e outros. Foi nessa ocasião que se vincou a ideia do monarquista enquanto católico e do católico enquanto monarquista, quer dizer, a consciência da relação profunda entre a forma de governo monárquica e a doutrina católica, e a ideia de que Altar e Trono eram aliados naturais contra a Revolução. E esta ideia ficou firme na Nobreza, ficou firme no Clero, ficou firme no povo. E quando Carlos X foi derrubado na França, o elemento legitimista


757 da Nobreza francesa em geral migrou para o interior, e ali passou a levar uma vida de castelo, fazendo festas, se intervisitando etc., mas com uma nota de austeridade e piedade muito grande. Ele era um bom castelão, ela uma boa castelã; eram bons para os pobres, pertenciam às Conferências Vicentinas. E eram de fato pessoas muito boas, muito virtuosas, muito direitas, mas que não se sentiam com um papel a desempenhar. Era essa a posição deles. Acontece que esses monarquistas percebiam pouco o lado metafísico que sustentava a sua posição. Em contrapartida, os republicanos adotavam tal posição por uma razão metafísica: o igualitarismo.

3. Política do ralliement: uma estocada na posição monárquicocatólica Foi nessa situação que se vibrou contra essa gente, como uma estocada, a política de ralliement de Leão XIII, quando ele declarou que não havia nenhuma razão para o católico, enquanto católico, preferir a forma de governo monárquica; e que os católicos eram igualmente livres de preferir a monarquia ou a república. Pela doutrina católica, o católico pode realmente ser a favor da forma republicana, ou da forma aristocrática ou monárquica de governo, ou das várias formas combinadas entre si. Nisto não haveria nada a objetar do ponto de vista católico. Mas, ao enunciar este princípio, Leão XIII havia deixado de lado a questão metafísica, ou melhor, a questão política envolvendo uma questão metafísica: a antipatia pela monarquia, existente em virtude do princípio da igualdade, era um problema agudo sobretudo na França. E LeãoXIII tomou só em tese a questão da legitimidade das diversas formas de governo, sem ir às raízes do problema então fundamental. Ora, ser igualitário enquanto posição metafísica, afirmando que a perfeição de todas as coisas consistia na igualdade, era um erro. E, enquanto tal, devia ser condenado. Leão XIII, fazendo sua declaração sobre as formas de governo sem estabelecer essa distinção, acabou levando os franceses monarquistas e católicos a abandonarem a posição metafísica contra-revolucionária. Foi, portanto, uma punhalada medonha nessa gente. Muitos deles, diante disso, aderiram à república e começaram a lutar nos partidos republicanos. Concretamente aconteceu que o católico nobre, ou o conservador monarquista não nobre — os havia muitos — perdendo a sua razão


758 metafísica de ser monarquistas, começaram a se deixar absorver pelo mundo moderno, passando a aceitar a Revolução Industrial, a se entusiasmar sem restrições pelos automóveis, trens, telégrafos etc. Isto porque a razão metafísica tinha se esfarelado na cabeça deles, pela omissão de Leão XIII.

4. Emenda pior que o soneto: a opção laicista de MaurrasDaudet Ao mesmo tempo em que a política de ralliement de Leão XIII fazia essas devastações, apareceu a dupla Maurras-Daudet, dizendo-se monarquistas e dizendo que Leão XIII tinha razão: Religião não tinha nada que ver com o monarquismo. Esses dois então conclamaram esses franceses para uma ação monárquica laica e desligada da Religião, apenas admirando na Religião a expressão do talento e do gênio francês. Com isto, eles levaram parte dessa gente, que estava decepcionada com o ralliement, para uma posição em que deixavam para trás Leão XIII, deixavam para trás Deus (Maurras se declarava ateu). E ficaram assim monarquistas tortos. Era essa a situação da aristocracia, da boa burguesia, e do que havia de sadio na França nas vésperas da I Guerra Mundial, antes de começar a débâcle. Depois veio a guerra e tudo ruiu por terra.

5. Situação dos monarquistas não-laicistas O que aconteceu com a outra parte, a dos monarquistas nãolaicistas? Eles se sentiram meio atordoados: continuaram a manter a Fé, frequentar os sacramentos, mas ficaram tíbios em matéria de Religião. Exatos, cumpridores dos seus deveres, comungando, confessando-se. Eram monarquistas sem saber bem por que eram monarquistas, nem por que eram católicos, e que nexo tinha uma coisa com outra. De maneira que deram numa massa de população, nobre e não nobre, a qual ficou esparsa pela França, deixando de constituir um corpo social unido. E quando começaram a perder a fortuna, não tinham mais representação, não tinham mais situação oficial. E sobrevieram mais alguns


759 desabamentos com a II Guerra Mundial 2378.

6. Um fenômeno recente: Nobreza rejuvenescida, mas sem noção de sua missão Considerando todo esse quadro, eu ficava com muita dúvida sobre se a Europa conseguiria se recompor. Até que, em determinado momento, conveio aos planejadores da União Europeia enriquecer a Europa, para efeito de um determinado plano internacional 2379. Com a entrada do dinheiro, a Europa tornou-se francamente rica. E com esse dinheiro, alguma coisa foi parar nas mãos desses nobres também. E, na minha viagem de 1988, prestando muita atenção nos apartamentos, nas casas, no modo de se apresentar, notei tudo renovadinho, direitinho, as senhoras de ar conservador mais bem arranjadas, mais senhoras de si. E, longe de estar acompanhando a grande moda, essa gente estava mais aprumada, mais saudável. Era um reflorescimento geral. Mas, apesar de tudo isso, eu via que boa parte desses nobres haviam perdido a noção do que era a Nobreza, do que esta significava e qual a missão que deviam desempenhar. Seus componentes sabiam o que eram, mas achavam que isto era apenas um resto do passado que sobreviveu, e não se achavam necessários para o bem de toda a ordem social.

7. Conversa com alguns nobres espanhóis Foi aí que tive, na Espanha, uma conversa com alguns nobres, em que expus para eles as nossas ideias sobre a Nobreza. Eles caíram das nuvens e ficaram sensibilizados. Toda aquela pseudo-epopeia e prestígio que a Revolução Francesa tinha, e que vinham ligados ao ralliement, hoje tudo isso murchou muito. E não há mais o republicano metafísico entusiasmado com o igualitarismo, que havia no tempo de Leão XIII. E esses nobres ficaram numa alternativa entre o comunismo — que a Igreja condenou, mas em relação ao qual, infelizmente, os Papas conciliares tentaram fazer o ralliement — e um passado que ninguém mais combate. De fato, praticamente ninguém mais fala contra os nobres, ninguém mais os odeia, ninguém mais os discute. De maneira que aquele quadro todo da década de 50, de indiferença pelas alocuções de Pio XII sobre a 2378 Reunião com os mais antigos do movimento 6/8/89. 2379 CM 13/11/88.


760 Nobreza, havia passado por uma inversão. E eu fiquei com a esperança de que, se lançasse adequadamente um livro sobre a Nobreza, ele poderia ter um efeito detonador, permitindo a retonificação desses elementos esparsos 2380.

8. Entre uma batalha e outra, a preparação de um livro sobre o papel da Nobreza Comecei então a escrever esse livro com muito empenho 2381. E nem consultei os artigos do Legionário e do Catolicismo para me inspirar neles. Eu simplesmente tomei o de que eu me lembrava e escrevi o que estava no meu espírito naquele tempo e que, graças a Deus, continuava 2382. Encontrei simpatia, apoio caloroso, interesse vivo, da parte daqueles mesmos que antigamente não se tinham interessado 2383. Escrevi este trabalho em meio a mil atividades — crescentes na acentuada proporção em que iam crescendo, com a graça de Deus, todas as TFPs e o meu relacionamento com elas — nas quais me via cada vez mais enleado 2384. Este foi, portanto, um livro escrito por um soldado durante a batalha, tendo por mesa o tambor 2385. * A preparação desse livro não foi muito longa. Ela começou em 1989, desfechando na publicação de uma edição-piloto em dezembro de 1991. Retomei a redação em fevereiro de 1992, e por fim o livro pôde vir a lume em Portugal, em abril de 1993 2386. Foi assim que escrevi o livro Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana. Pio XII pronunciou, em seu pontificado, catorze importantíssimas alocuções, as quais contêm um apelo a que fossem preservados cuidadosamente, nos países com tradição nobiliárquica, as aristocracias respectivas. E que, ao mesmo tempo, as elites novas, originadas do trabalho 2380 Reunião com os mais antigos do movimento 6/8/89. 2381 Telefonema 29/4/93. 2382 SD 27/8/94. 2383 Telefonema 29/4/93. 2384 Despacho 7/2/92. 2385 Despacho 3/2/93. 2386 Entrevista a Catolicismo n° 511, julho de 1993.


761 exercido no campo da cultura, como no da produção, encontrassem condições propícias para constituírem elites autênticas, congêneres com a Nobreza por sua formação moral e cultural, como por sua capacidade de mando. Caber-lhes-ia formar, à maneira da Nobreza, verdadeiras elites capazes de originar homens de escol nos mais variados campos. O livro analisa as condições do mundo contemporâneo à luz das catorze alocuções de Pio XII 2387.

9. Receptividade pelo tema, um sinal da Providência Depois de ter escrito o livro, comecei a lê-lo no auditório da TFP, com comentários. Era preciso ter estado presente para se fazer ideia do ambiente de entusiasmo — eu diria mesmo de graças — que acompanhava esses comentários 2388. E isto se deu também com a opinião pública: desde a Revolução Francesa, o espírito monárquico e aristocrático não era acolhido como estava sendo agora. Era um tema que seria negado, que seria tido como inviável, odiado. E agora as pessoas aplaudiam. Até mesmo nos arraiais dos nossos inimigos aplaudem! É uma tal inversão de causas e efeitos que se é levado a supor que há nisso uma graça de Deus. E o curioso é que esse solavanco foi dado num momento em que essas luzes iam dar os últimos lampejos. Na última hora, no último minuto, a última luz recebeu um sopro para se apagar, e nesse sopro saiu um sol! 2389 . Quer dizer, depois de um longo inverno, aparecia uma primavera de interesse e de calor pelo tema 2390. E, no meu outono, Nossa Senhora me dava a graça de publicar esse livro que havia dormido, engavetado e empoeirado, na sua forma primeira, durante cerca de 40 anos. Em cima desse livro havia, portanto, algo de glorioso. Havia 40 anos de espera que poderíamos chamar de profética 2391.

2387 Auto-retrato filosófico, cit. 2388 Telefonema 29/4/93. 2389 CSN 14/8/93. 2390 Telefonema 29/4/93. 2391 SD 22/2/95.


762

10. Um livro para desfazer os preconceitos contra a Nobreza O Livro da Nobreza, como ficou conhecido entre nós, não era um livro teórico, que se destinava só a explanar o que é a Nobreza em tese 2392. Ele era um instrumento de batalha ideológica 2393, que dava um tiro no ponto de solidariedade do mundo contemporâneo com a Revolução 2394. Ele visava principalmente desfazer os preconceitos que estavam nas cabeças das pessoas, e que as levavam a ter prevenção contra a Nobreza. Se essas prevenções não fossem destruídas, toda a exposição sobre a Nobreza corria o risco de ser recebida com hostilidade e não alcançar resultado. Era preciso agir, portanto, sobre os que eram hostis, ou para trazêlos para as nossas teses, ou pelo menos para fazer com que eles as respeitassem, e compreendessem que elas se baseavam em argumentos muito sérios. E isto os deixaria na dúvida: “Quem sabe se os favoráveis à Nobreza têm razão?” Este livro foi escrito, pois, para ganhar terreno dentro de uma operação de Contra-Revolução 2395.

11. A justiça está na desigualdade cristã Havia ainda outro aspecto importantíssimo: mais do que tudo, o Livro da Nobreza era uma Contra-Revolução na Igreja 2396. O livro atacava, não todo e qualquer exercício da democracia, mas a democracia revolucionária, a democracia igualitária, o mito infernal da igualdade absoluta, da liberdade anárquica, da fraternidade mentirosa. Esse mito era atacado no ponto onde a ofensiva dele era mais perigosa, que é exatamente dentro da Igreja. E atacado com a melhor arma que existe, que são os documentos de Pio XII 2397. Se tudo isso que nele está dito for verdade, o que a Igreja diz sobre o problema social fica a pedir uma complementação na linha do papel das elites. E, feita essa complementação, todo um lado novo da fisionomia da Igreja fica apresentado 2398. Um católico, enquanto católico, teria então a obrigação de 2392 SD 3/11/92. 2393 Despacho livro Nobreza 14/8/92. 2394 Despacho Argentina 28/10/94. 2395 SD 3/11/92. 2396 Despacho livro Nobreza 23/1/92. 2397 Despacho Itália 18/6/94. 2398 Despacho livro Nobreza 23/1/92.


763 reconhecer tudo quanto no livro está dito sobre a Nobreza. E se a pessoa entende assim a condição da Nobreza, não pode haver esquerda na Igreja, pois a Igreja se identificaria com a direita* 2399. * É preciso descartar a falsa ideia de que a direita se confunde com sua caricatura, o nazifascismo. Os erros de ambas as doutrinas foram condenados por Pio XI: os do fascismo na Encíclica Non abbiamo bisogno, e os do nazismo na Encíclica Mit brennender sorge. No seu livro, como em tudo quanto escreveu ao longo de sua vida, Dr. Plinio sempre aderiu inteiramente à doutrina social católica. Haja vista a sua posição condenando o cunho socialista oficial do fascismo, e não só oficial, mas até marcantíssimo, do nazismo (cfr. A bengala e a laranja, Folha de S. Paulo, 24/5/70).

* As palavras "direita" e "esquerda" surgiram no vocabulário político, social e econômico da Europa do século XIX. O esquerdismo era uma participação ideológica no pensamento e na obra de algo ainda recente e bastante definido em suas linhas gerais, isto é, a Revolução Francesa. A esquerda não era só uma negação vulcânica de uma tradição que parecia morta, mas também e cada vez mais a afirmação de um futuro que se diria fatal. Em face da Revolução avassaladora, a direita só se definiu aos poucos, de modo tateante e contraditório. A definir-se como um anti-esquerdismo, e a fortiori como um antianarquismo, o que teria de ser, em inteiro rigor de lógica, a direita? Está na essência do anarquismo total a afirmação de que toda e qualquer desigualdade é injusta. Assim, quanto menor a desigualdade, menor a injustiça. A liberdade é cara ao anarquismo, precisamente porque a autoridade é em si mesma uma negação da igualdade. O direitismo afirma que, em si mesma, a desigualdade não é injusta. Que, em um universo no qual Deus criou desiguais todos os seres, inclusive e principalmente os homens, a injustiça é a imposição de uma ordem de coisas contrária à que Deus, por altíssimas razões, fez desigual (cfr. Mt. 25, 14-30; 1 Cor. 12, 28 a 31; S. Tomás, Summa contra gentiles, Livro III, Cap. LXXVII). Assim, a justiça está na desigualdade. Dessa verdade básica − convém lembrar de passagem − não se deduz que quanto maior for a desigualdade, mais perfeita é a justiça. Com efeito, Deus criou as desigualdades, não aterradoras e monstruosas, mas 2399 Despacho 11/1/90.


764 proporcionadas à natureza, ao bem-estar e ao progresso de cada ser, e adequadas à ordenação geral do universo. E assim é a desigualdade cristã. Análogas considerações se poderiam fazer acerca da liberdade no universo e na sociedade. Mas esse padrão de direitismo não é a desigualdade absoluta, simétrica e oposta à igualdade absoluta. É a desigualdade harmônica, convém insistir2400.

12. Uma bomba contra a esquerda católica O progressismo, que veio trazendo em seu bojo uma espécie de republicanização democrática dentro da Igreja, ficaria impugnado com as alocuções de Pio XII que comento no livro. Pois o que notamos em cada reforma progressista que aparece, é que ela constitui uma marcha para alguma coisa que representa, na Igreja, um papel parecido ao representado nas sociedades temporais pelas revoluções republicanas. Tais reformas pegam todo o aparato monárquico, o mandam para o museu e começam a viver uma vida sem belezas, sem símbolos, sem adornos 2401. Nos infelizes dias da crise em que se encontra a Santa Igreja de Deus, nós vemos muitas vezes muitos católicos fazerem uma verrina quase incessante contra os exageros das desigualdades sociais. É evidente que onde há o exagero, pode haver facilmente uma injustiça. Mas a questão é saber se, em si, a desigualdade social é legítima ou não. E essa legitimidade é o que os Papas nos ensinam com a abundância de argumentos que são citados no livro. A interpretação quase comunista que alguém poderia dar do que é a opção preferencial pelos pobres fica arrasada com a documentação deste livro. O ponto fundamental do contraste entre o que é a sociedade temporal inspirada e desejada pela Revolução e a sociedade temporal desejada por Nossa Senhora, ensinada por Jesus Cristo, pela Igreja Católica, é este: o da igualdade e o da desigualdade. A Revolução é toda ela fundamentalmente igualitária, e tudo quanto é fundamentalmente igualitário e nega qualquer hierarquia em qualquer terreno é revolucionário e é de Satanás. A publicação da coletânea de textos pontifícios que nós difundimos em nosso livro não me consta que tenha sido feita por ninguém até hoje. Eu não sei de ninguém que tenha feito uma coisa deste gênero, e ainda mais acompanhada com um comentário que corta qualquer interpretação abusiva desses textos. 2400 A justiça está na desigualdade cristã, Jornal da Tarde, 9/6/79. 2401 Despacho Itália 18/6/94.


765 De maneira que o Livro da Nobreza poder-se-ia chamar acies ordinata, quer dizer, exército em ordem de batalha. É o exército do pensamento anti-igualitário e do pensamento celeste ensinado pela Igreja através de Papas, de doutores, de santos, e de uma torrente incontável de moralistas, de teólogos. Eles ensinam a doutrina da desigualdade harmônica e proporcionada. Quer dizer, as classes desiguais existem para viver em harmonia e mútua colaboração: os ricos existem para ajudar os pobres, os pobres existem para servir os ricos. Uns são necessários aos outros 2402. De sua perfeita consonância com o ensinamento pontifício dão testemunho calorosas cartas de apoio dos Emmos. Cardeais Silvio Oddi, Luigi Ciappi, Alfons M. Stickler e Bernardino Echeverría, e de teólogos de fama mundial, como os padres Raimondo Spiazzi OP, Victorino Rodríguez OP, e Anastasio Gutiérrez CMF.

13. Edição, lançamentos, cartas de apoio A primeira edição desta obra em idioma português foi confiada à Editora Civilização, de Portugal, e veio a lume em abril de 1993. Traduzida para o castelhano, foi divulgada na Espanha pela Editora Fernando III El Santo. Essa edição cobriu não só o território espanhol, como o das nações hispano-americanas. Nos Estados Unidos, a obra foi publicada pela importante editora Hamilton Press, e teve seu lançamento oficial no prestigioso Mayflower Hotel de Washington, em setembro de 1993. Na ocasião, diante de um público de 850 convidados, entre os quais a Arquiduquesa Mônica da Áustria e o Duque de Maqueda, Grande de Espanha, discursaram personalidades de alto relevo na vida pública norteamericana. Na França, publicado pela Editora Albatros, o livro vem encontrando larga aceitação em amplos setores daquele país*. * O lançamento da obra deu-se no Hotel Crillon, e nesta ocasião foi vendida toda a edição. A TFP francesa lançou posteriormente uma edição própria.

Na Itália, a obra foi publicada pela Editora Marzorati, e apresentada no Congresso da Nobreza Europeia, realizado em Milão, em outubro de 1993, como também numa concorrida sessão de lançamento oficial no Circolo della Stampa, Palácio Seberlloni, daquela cidade. O lançamento em Roma ocorreu no histórico palácio da Princesa Elvina Pallavicini, com a presença do Cardeal Alfons Stickler, de Monsenhor Cândido Alvim Pereira, Arcebispo emérito de Lourenço 2402 SD 22/2/95.


766 Marques, do Arquiduque Martin da Áustria, de príncipes, princesas e inúmeros outros membros da mais alta aristocracia italiana. Nesses diversos atos, a obra foi, além de acuradamente analisada, também vivamente elogiada pelos distintos conferencistas que se sucederam no decurso das sessões então realizadas. vivas*.

Na imprensa romana, a repercussão desse lançamento foi das mais * A Rádio-Televisão italiana transmitiu as cenas do acontecimento no seu telejornal do domingo 31 de outubro, e entrevistou a respeito o Príncipe Sforza Ruspoli, um dos destacados conferencistas, que apresentou a obra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira na referida Convenção do Palacio Pallavicini, sob um grande estandarte vermelho com o leão dourado rompante marcado pela cruz e o lema Tradição, Família e Propriedade. Il Tempo do dia 1º de novembro se referiu à jornada de apresentação "da monografia [...] traçada por Plinio Corrêa de Oliveira, um dos maîtres à penser da direita". La Repubblica, na edição do mesmo dia 1°, informava ser o evento "patrocinado pelo Centro Romano Lepanto e por um Movimento cujo nome é mais eficaz do que um slogan político: Tradição, Família e Propriedade". Segundo o jornal, a presença do Cardeal de Cúria Alfons Stickler e de uma dezena de sacerdotes, junto com as cartas de adesão ao livro da parte de Cardeais como Silvio Oddi e Luigi Ciappi, teólogo papal de Paulo VI, "revelam a atenção que alguns ambientes da Cúria Romana deram ao encontro". Por seu turno, o jornal Secolo d'Italia (edição de 2/11/93), trouxe uma destacada matéria assinada por Guglielmo Marconi, em que este perguntava: "No processo de reconstrução moral do País, que papel podem desempenhar as elites tradicionais? [...] Na busca de algo novo, muitas sugestões podem vir da tradição. De uma Convenção realizada nestes dias em Roma (Palacio Pallavicini), sob a iniciativa do Centro Cultural Lepanto e da TFP (Tradição, Família e Propriedade), partiu o convite a reconsiderar o papel que possam desempenhar a nobreza e as elites tradicionais nesta obra de reconstrução moral e cívica. A ocasião ofereceua a publicação, na editora Marzorati, de um livro de Plinio Corrêa de Oliveira". O jornal L'Unità, órgão do ex-partido comunista italiano, fez referências ao lançamento em dois artigos de sua edição de 3 de novembro. Um desses artigos, assinado por Enrico Vaime, comentava irritado o destaque dado pela televisão italiana ao evento, dizendo que a aristocracia romana reaparecia "com um programa ornado pelas condessas, sobre um estandarte carmesim: Tradição, Família e Propriedade". Outro artigo, assinado por Stefano Dimichele, destacava a declaração da Princesa Pallavicini de que, para a sociedade atual, "a única salvação é o retorno aos valores verdadeiros". Tendo o jornalista perguntado: "E quais seriam, Princesa?", ela deu uma pronta resposta: "Tradição, Família e Propriedade, naturalmente" (cfr. Catolismo n° 516, dezembro de 1993).

O evento chegou a ser apresentado por Il Tempo (edição de


767 31/10/93) como “os estados gerais da aristocracia negra”, como é designada na Itália a parte da Nobreza romana que, solidária com a Santa Sé, se recusou a reconhecer a anexação forçada dos Estados Pontifícios à Itália* 2403. * Esta parte da Nobreza romana portou traje negro, em sinal de luto, desde o momento da invasão dos Estados Pontifícios pelas tropas de Garibaldi em 20 de setembro de 1870, até a data da celebração do Tratado de Latrão em 11 de fevereiro de 1929, do qual nasceu a Concordata entre a Itália e a Santa Sé, ratificada em 7 de junho do mesmo ano.

Capítulo VII Cúpula das Américas: nossa posição em face da esquerdização do Continente (1994) 1. Amolecimento dos governos das Américas em relação à Cuba de Fidel Castro Em 1994, chegou-me a notícia de que se realizaria em Miami, entre os dias 9 e 11 de dezembro, a chamada Cúpula das Américas, reunindo todos os primeiros mandatários do Continente, com a merecida exceção cubana 2404. Eu ia notando que, com a política de aproximação da Santa Sé com Cuba, vários outros governos sul-americanos começaram a mudar de atitude com Fidel Castro. E isto apesar de que, quando caiu o Muro de Berlim, a atitude de Fidel Castro ter sido a mais insolente possível 2405. Para se ter ideia dessa insolência, transcrevo apenas trechos de um discurso do ditador noticiado por O Estado de S. Paulo (31/10/89), sob título Fidel se diz o último comunista. Nele, o Stalin cubano se declarou disposto a continuar defendendo a ortodoxia comunista mesmo que "mais ninguém no mundo o faça". E acrescentou: "Jamais vamos renegar o honroso título de comunista". Mais adiante acrescentou: "Viva a rigidez na defesa dos princípios revolucionários, nada de flexibilidade". Não contente com isso, afirmou ele ainda: "Agora estão dizendo que há dois tipos de comunistas: os bons e os maus. Quero dizer que nós estamos entre os maus — maus porque somos 2403 Auto-retrato filosófico, cit. 2404 As Américas rumo ao 3º milênio: convicções, apreensões e esperanças das TFPs do Continente, Folha de S. Paulo, 9/12/94. 2405 SD 30/12/94.


768 incorrigíveis, [...] jamais vamos regredir à pré-história". Citemos ainda estas últimas palavras: "Temos que permanecer [...] firmes e entrincheirados nas ideias do comunismo, do socialismo" 2406. Com o que ele tentava manifestamente salvar de um desmoronamento mais ou menos real, mais ou menos aparente, os partidos comunistas dos vários países da Europa, da América e de outros continentes. De outro lado, ele continuou a perseguição em Cuba, exatamente como estava antes da queda da Cortina de Ferro. Isto tudo feito, os chefes de Estado da América do Sul, e depois também da América do Norte, começaram a se manifestar pessoalmente simpáticos a Fidel Castro, dando a entender que ele já estava velho, estava mudado e que mais cedo ou mais tarde ele morreria e mais valia a pena tratá-lo bem, porque aí o regime não comunista poderia expandir-se à vontade em Cuba2407. A manutenção do bloqueio da ilha passou a ser apresentada como medida discriminatória e odiosa, ao passo que a cessação do bloqueio era vista como uma aspiração simpática e generosa. Desta forma, a generosidade de alma passou a consistir em apertar a mão do carrasco, consolidando-o ipso facto no poder2408. Sob o bafejo dessas e de outras fantasias da mesma natureza, de um modo geral as chancelarias das nações sul-americanas começaram a convidar Fidel Castro, quando havia algum evento que contava com a participação de todos os chefes de Estado americanos. Nessas ocasiões, Fidel Castro aparecia com grande destaque publicitário, e era tratado pelos chefes de Estado não comunistas — eu não ousaria dizer anticomunistas — exatamente como o primeiro dentre eles. Tudo isso criava uma situação na qual governos não comunistas, simpáticos não tanto ao comunismo mas aos comunistas — é um modo velado de ser pró-comunista — queriam uma aproximação com Cuba, mediante a permanência de Fidel Castro no governo e pequenas concessões, como, por exemplo, permitir que turistas norte-americanos e de outros países pudessem ir veranear em Cuba. E também a abertura de um certo comércio: lojinhas, armazenzinhos, restaurantezinhos. Cuba passou a ser uma nação que, debaixo de certo ponto de vista, parecia muito ambiguamente estar evoluindo rumo a uma ocidentalização, 2406 Interpelando a esquerda e a extrema-esquerda, Folha de S. Paulo, 3/1/90. 2407 SD 30/12/94. 2408 Prelado brilhante pela ausência, Folha de S. Paulo, 17/6/73.


769 e portanto a uma semi-descomunistização. Com isto, a possibilidade de Fidel Castro ser jogado no chão, como tinham caído os próprios magnatas do regime comunista da Rússia, ficava empurrada para as calendas gregas. Era portanto a perpetuação de um regime de tapeação em Cuba. Entretanto, havia nesses governos norte, centro e sul-americanos, a preocupação de não apressar uma reconciliação completa com Cuba, para não ficarem, eles, desmoralizados nos respectivos países. Resumindo o quadro, ao governo de Cuba convinha simular uma espécie de liberalização para, por esta forma, obter a boa vontade dos países ocidentais, e com essa boa vontade obter subvenções, riquezas, ajudas, comodidades diplomáticas de várias ordens, e, portanto, mais solidez do governo comunista. Por outro lado, aos governos americanos convinha que a oposição a Cuba fosse decrescendo aos poucos, supondo caminhar devagar na tendência para uma reconciliação completa, para evitar um processo de “cristalização” (ou seja, de rejeição) da opinião pública dos respectivos países. Há um velho ditado português que formula o seguinte: "Dize-me com quem andas que te direi quem és". O risco seria dizerem deles: "Dizeime a quem quereis favorecer e nós vos diremos quem sois" Em última análise, foi nessa situação que se fez a reunião da Cúpula das Américas em Miami2409.

2. Necessidade de denunciar o jogo para tentar frustrar a manobra Eu estava convicto de que essa transformação do comunismo cubano num pseudo-capitalismo seria o que de mais nocivo pudesse haver para a reação anticomunista no mundo, e portanto para a civilização ocidental. Uma vez que isto era assim, o que poderia fazer a TFP? Eu tinha como certo que, a partir do momento em que se dissipasse a cortina de terror policial que Fidel Castro espalhou entre Miami e o território cubano, os cubanos ricos, bem instalados nos Estados Unidos, iriam ávidos para Cuba. E Cuba se encheria desses cubanos consumistas, que souberam trabalhar, souberam fazer dinheiro, e por causa disso queriam uma 2409 SD 30/12/94.


770 compensação e uma vida normal que a saúde humana e as apetências do homem equilibrado podem satisfazer. Se eles encontrassem a verdadeira Cuba, sem baton, sem creme, sem pó-de-arroz, sem disfarces, mas apenas com a sua face trágica e pobre, eles iriam ficar indignados e o vozerio promovido a partir de Cuba iria em última análise ajudar a desmascarar a mentira comunista. Se, pelo contrário, o bluff fosse bem preparado e o jogo da mentira, com seus inigualáveis artistas, soubesse preparar uma tapeação cubana, então a manobra iria ser diferente e nós teríamos mais um pseudoargumento a favor da ideia de que o comunismo não era tão ruim assim. todo

2410

Então, era preciso elaborar um manifesto que desvendasse esse jogo .

Esse manifesto tinha de ser ajustado, evidentemente, ao programa dessa Cúpula.

3. TFPs apresentam “Agenda de problemas continentais” Foi dentro desse quadro geral que delineei o manifesto para as TFPs do Continente, o qual tomou o título As Américas rumo ao 3° milênio: convicções, apreensões e esperanças das TFPs do Continente. Esse manifesto foi apresentado na forma de uma Agenda de problemas continentais*. * Esta “Agenda de problemas continentais” foi publicada no dia 9 de dezembro de 1994 no Diário Las Américas, de Miami, no Washington Times, na Folha de S. Paulo; no El Mercurio, de Santiago do Chile e no El Universal da Venezuela. Ele foi subscrito pelos presidentes das TFPs das três Américas, então existentes na Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estados Unidos, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. O texto completo pode ser consultado na revista Catolicismo n° 528, dezembro de 1994. O documento não tratava apenas da questão cubana. Ele manifestava, por exemplo, a preocupação com a hábil metamorfose operada, após a queda do muro de Berlim, por numerosas figuras da extrema-esquerda. Estas figuras, sem renegar seu passado e suas metas igualitárias, apenas mudaram de rótulos e métodos de ação, e assim alcançaram importantes posições políticas no Continente. Tratava também da utilização do poder político por parte dessas figuras, no sentido de promover uma verdadeira revolução cultural que anestesiava as reações sadias, ao mesmo tempo que desferia golpes radicais contra os princípios básicos da civilização cristã. Abordava ainda o potencial destrutivo e detonador de caos socioeconômico que vinham demonstrando, na América Latina, grupos terroristas e 2410 RR 10/12/94.


771 guerrilheiros apoiados em conexões internacionais, de que são exemplos atuais as Farcs, na Colômbia, o EPP (Exército do Povo Paraguaio), no Paraguai, o Sendero Luminoso, que continua a atuar no Peru e ainda outros. O manifesto também deplorava as inconcebíveis pressões de alguns organismos internacionais e setores sociais de várias nações do Continente em favor do aborto e do controle da natalidade, de reivindicações feitas pelos movimentos homossexuais, do divórcio, do concubinato, da eutanásia e de outras medidas que conduziam à extinção da família e fazia ainda várias outras considerações do gênero.

* Esse documento, evidentemente, não era feito para convencer os políticos. Era para ser lido e comentado pelo público, para este ver o quanto os políticos estavam afastados do caminho autêntico que tomava a população. Ele convidava os participantes da Cúpula de Miami a adotarem, com a indispensável urgência, medidas políticas, econômicas e publicitárias próprias a viabilizar a imediata normalização da situação do povo cubano 2411.

4. Um hino de esperança e de fé ao término do documento Terminávamos o nosso manifesto da seguinte maneira: “As TFPs das três Américas afirmam sua profunda convicção de que, quando os homens resolvem cooperar com a graça de Deus, o desenrolar da História gera maravilhas: é esta a lição que nos foi legada pela Europa pré-medieval e medieval, a qual, a partir de populações latinas decadentes e de hordas de invasores bárbaros, chegou, sob todos os pontos de vista, a um nível religioso, cultural e econômico sem precedentes. “[E] manifestam portanto a certeza de que, para além das tormentas morais, das dificuldades materiais e das ciladas de toda ordem que vão sendo preparadas no Continente pelos inimigos da Igreja e da civilização cristã, haverá nas Américas um ressurgir da Cristandade, de acordo com o previsto por Nossa Senhora em Fátima, em 1917, quando anunciou: Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”2412 Esta certeza e esperança fecham também esta nossa narrativa.

2411 SD 30/12/94. 2412 As Américas rumo ao 3° milênio — Agenda de problemas continentais, Folha de S. Paulo, 9/12/94.


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Epílogo Creio que, quando uma alma chamada por Deus para uma determinada missão diz o seu último “sim”, em geral também a missão dela nesta Terra está cumprida e ela é levada pelos Anjos. Está tudo feito, todas as batalhas foram ganhas. E no relógio de Deus, o ponteiro marca a hora em que essa alma é colhida: a sua obra está pronta e a alma está absolutamente pronta também. Naquelas palavras famosas de São Paulo, um pouco adaptadas: “Combati o bom combate, corri a corrida inteira, dai-me agora, meu Deus, o prêmio de vossa glória”, fica entendido que o Apóstolo tinha evangelizado tudo quanto devia evangelizar, tinha renunciado a tudo quanto deveria renunciar, e restava apenas estender a cabeça sobre o cadafalso e dizer sim para o golpe que viria. “Bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi. In reliquo reposita est mihi corona justitiae” (II Tim. 4, 7-8). Dito esse Amém último, estava pronto para entrar na corte celeste . 2413

* Tenho a consciência do dever cumprido, pelo fato de ter fundado e dirigido minha gloriosa e querida TFP. Osculo em espírito o estandarte desta que se encontra na Sala do Reino de Maria. São tais os vínculos de alma que tenho com cada um dos sócios e cooperadores da TFP brasileira, como das demais TFPs, que me é impossível mencionar aqui especialmente alguém para lhe exprimir meu afeto 2414. Nossa Senhora fez com que nosso movimento, ao longo dos decênios se arrastasse pela desolação e pelas derrotas. Fez com que ele se esfregasse em todas as humilhações e em todos os insucessos para ficar bem claro que de si ele não podia nada. Mas quando Ela resolveu deitar uma bênção mais rica sobre esse movimento, ei-lo que se alastra, ei-lo que cresce contra todas as probabilidades. Ele começa a arrolar almas, a empolgar precisamente a juventude, da qual menos se poderia esperar isso. E obtendo resultados tão superiores àquilo que nós poderíamos fazer. Quando alguém produz resultados muito superiores às suas forças, 2413 RR 24/2/74. 2414 Testamento espiritual 10/1/78, Catolicismo n° 550, outubro de 1996.


773 prova com isto que é assistido por Deus. E se é assistido por Deus, o que pode vencê-lo? Há algo de mais irreversível do que o auxílio divino, quando Deus resolve começar alguma coisa por Nossa Senhora — Ela que é terrível como um exército em ordem de batalha e ao avançar dispersa todos os seus adversários? Não, nada poderá conter esta Contra-Revolução que aqui começou como uma minúscula semente de mostarda que deita depois árvores imensas e feitas para ocupar uma área enorme. * É verdade que temos diante de nós os ambientes religiosos, que deveriam constituir a muralha mais firme contra a Revolução, envoltos num caos sem precedentes na História. Pode-se dizer desses ambientes religiosos aquilo que disse a Sagrada Escritura de Nosso Senhor durante a Paixão: do alto da sua cabeça sagrada até a planta de seus pés veneráveis, nada há que esteja sadio, nada há que não esteja convulsionado, nada há que não esteja entregue à perplexidade mais profunda. É em nome da Religião precisamente que as causas mais irreligiosas, neste nosso século de teólogos ateus, se advogam, se sustentam, se proclamam, e ganham alento. De outro lado, vemos as cúpulas do mundo ocidental numa aproximação escandalosa em relação à Revolução, que mal disfarça o desejo de admitir uma conciliação com ela e de uma incorporação dos princípios comunistas e autogestionários aos soi disant valores da civilização ocidental. Diante dessa aproximação desconcertante, encontramos a posição inerte dos homens de hoje, posição de quem não vê e não quer ver, posição de quem deseja apenas levar a vida cotidiana, indiferentes a saber se sobreviverão ou não os princípios fundamentais da civilização cristã. Essa docilidade das multidões e das massas é que torna possível a essas cúpulas realizar mais ou menos os seus intentos. Vemos portanto um sumo pecado, porque é um pecado que as elites desse mundo estão cometendo em nome do mesmo mundo. Nossa época não é apenas uma época de teólogos ateus, é uma época de príncipes comunistas, é uma época de aristocratas socialistas, é uma época de burgueses colaboracionistas, e é nessa época de mentira e de farisaísmo que esse sumo pecado vai se fazendo. Esse sumo pecado supõe uma suma punição. E a suma punição não pode deixar de ser uma destruição. Bem entendido, não a destruição da Humanidade. Mas algo de análogo e de maior que a queda do Império Romano do Ocidente, ou seja, a destruição das nações, a destruição das


774 estruturas, a destruição das culturas, a destruição da civilização numa espécie de tremendo terremoto, em que nós devemos ver o dedo da justiça de Deus fazendo-se sentir dentro dos acontecimentos que constituem a trama da História. * Entretanto, por outro lado também é verdade que nunca a capacidade de arrastar inerente às forças que impulsionam a Revolução foi tão pequena. Nunca as massas foram tão indiferentes à barulheira da Revolução. E paralelo ao tédio de indiferença para com a civilização cristã, há também um tédio de indiferença em relação à Revolução. E por causa disso se pode dizer que um enorme vazio mental vai se formando no mundo de hoje. Este vazio já é uma prova de debilidade da Revolução. É uma prova de que as garras da Revolução já não penetram toda a contextura de alma do mundo contemporâneo e indica uma perda de forças que, nas trevas e na desolação da situação contemporânea, representa qualquer coisa na ordem da quebra da Revolução. E verificamos — com quanta alegria e com quanta consolação — que esse vazio é receptivo às sementes que Nossa Senhora deita no fundo das almas. Por causa disso encontramos por toda parte pessoas com o espírito cheio desse vazio e que atendem ao nosso chamado. Houve uma persistência religiosa no mundo, houve uma fidelidade de fundo, tênue e débil, sonolenta se quiserem, mas em todo caso uma fidelidade que espanta. Por mais que suas cúpulas estejam descristianizadas, as nações de hoje apresentam entretanto um teor de resistência religiosa com que ninguém poderia contar. Ora, Deus, cuja justiça clarividente não deixa a menor falta sem punir, não deixa também o menor ato de virtude sem o tomar na devida consideração. E Ele, cuja misericórdia é incontável para aqueles que pecam, a fortiori ainda é mais misericordioso para aqueles nos quais se pode encontrar alguma razão de bem. Nesse mundo assim constituído, há algo que aos olhos de Deus parece merecer não morrer, parece merecer uma sobrevivência. E isso é uma das razões pelas quais nós devemos acreditar num dia de amanhã depois desse grande castigo. * Ficamos assim diante de um mundo velho, um mundo gasto, um mundo roto, em que à podridão das nações pagãs se juntou a podridão das


775 nações neopagãs; mas que, tal como nas bodas de Caná, por um pedido de Nossa Senhora, passa por uma transmutação. Há um Grand-Retour2415, há uma volta de todas as almas contaminadas pelo fogo que Nossa Senhora acendeu neste movimento, e quiçá em movimentos como este, e então não só a água se transforma em vinho, mas se transforma no melhor vinho da História. Transforma-se naquele Reino de Maria dos apóstolos dos últimos tempos cuja grandeza São Luís Maria Grignion de Montfort descreveu profeticamente no seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. * Isto, que é um argumento de alta probabilidade e verossimilhaça, foi transformado em certeza. Com efeito, foi objeto de uma promessa formal de Nossa Senhora. Ela apareceu em Fátima e em Fátima falou aos pastorinhos, prevendo — antes de a Rússia se tornar comunista — que a Rússia espalharia seus erros por toda parte como castigo para a Humanidade, caso esta não se emendasse. Há também a promessa da Santíssima Virgem quando disse: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará”. E um triunfo dEla não pode deixar de ser um triunfo esplêndido, porque Deus reservou para Ela todas as suas grandezas. Então, aquilo que era tão verossímil, tão natural, que correspondia às regras da justiça e de sabedoria com que Deus governa esse mundo, isto se dará porque houve uma promessa de Nossa Senhora. E as promessas de Nossa Senhora são tão indefectíveis e tão irreversíveis quanto o é a própria Senhora a quem Deus deu, junto com a glória da Maternidade Divina, o governo do Céu e da Terra. * Como a Contra-Revolução triunfará, não sabemos. Uma coisa nós sabemos, por nossa experiência diária: a experiência da assistência contínua de Nossa Senhora. E com essa experiência nós sabemos que Ela é grande, que Ela está conosco, que Ela pode tudo e que ninguém A deterá. Na participação dessa grande esperança e dessa grande certeza,

2415 — Grand Retour (Grande Retorno), na linguagem frequentemente usada por Dr. Plinio, designa a esperança de uma profunda restauração espiritual, propriamente uma conversão da humanidade, após os dramáticos e grandiosos acontecimentos previstos por Nossa Senhora em Fátima. Esta expressão havia surgido na França em 1942, a propósito das peregrinações de cópias da imagem de Nossa Senhora de Boulogne, que determinaram um afervoramento geral, denominado pelo povo como um Grand Retour da França à devoção marial.


776 cremos firmemente que os castigos anunciados em Fátima são irreversíveis. Que também é irreversível a vitória da Contra-Revolução. Que é irreversível o Reino de Maria, esse processo de glória de Deus na justiça, glória de Deus na punição, glória de Deus no triunfo de Maria Santíssima. E o triunfo pessoal dEla terá que ser o mais maravilhoso dos triunfos da História 2416. FINIS CORONAT OPUS

.2416 Encerramento de SEFAC 29/1/67


777

Índice Onomástico A Abel, Personagem do Antigo Testamento 623 Ablas Filho, Antonio 277, 316, 354, 355, 455 Ablas, Julinha Freitas Guimarães 354 Achótegui, José 275 Ackel, Ibrahim Abi 693 Aguilar, Manuel Barrera de 376 Alacoque, Margarida Maria 402 Albuquerque, João Batista da Motta e 463, 639 Albuquerque, Otaviano Pereira de 792, 796 Alderete, Juan Bosco Hugo Parra 577 Alessandrini, Frederico 608, 609 Alfrink, Bernardus Johannes 571 Allende, Salvador 497, 532, 536, 567, 568, 569, 571, 572, 573, 577, 578, 579, 580, 585, 586, 587, 621, 622, 623, 632, 806, 807 Almeida, Antonio Mendes de 49 Almeida, Felix Pereira de 194 Almeida, Fernando Furquim de 42, 159, 229, 316, 318, 452, 486, 795, 803 Almeida, Luciano Mendes de 693 Almeida, Luís Gonzaga de 328 Almeida, Luiz Gonzaga de 215, 324, 789 Alonso, Arturo 348 Altamirano, Carlos 532 Álvares, José Lafayette Ferreira 527 Alves, Francisco de Paula Rodrigues 801 Alves, Márcio Moreira 458, 459 Amadei, José 341 Amaral, Alexandre Gonçalves do 267, 268, 336, 337 Amaral, Francisco Borja do 790 Amaral, João da Matha de Andrade 343, 344 Amerio, Romano 492 Amstalden, Polycarpo 291 Anchieta, José de 114, 645, 742, 810 Andrada, Antonio Carlos Ribeiro de 103, 117 Andrada, Martim Francisco Ribeiro de 103 Andrade, José Carlos Castilho de 42, 159, 259, 316, 319, 320, 327, 328, 329, 438, 488, 534, 628 Andrade, Moraes de 120 Andrónova, Valentina 687 Angelis, Antonio De 405, 415, 416 Angelo Neto, José 525 Aparício, José 488 Aquino, Tomás de 672 Arancibia S., Raymundo 583 Aranha, Mário Egídio de Souza 71 Araújo, Epaminondas José de 525 Araújo, Hugo Bressane de 206


778 Araújo, Serafim Fernandes de 595, 596 Arjona, Andrés Cruz 535 Arruda, José Gonzaga de 159, 229, 230, 316 Assis, Antonio Augusto de 792 Assumpção Filho, Luiz Nazareno Teixeira de 363, 803 Athayde, Tristão de 36, 66, 86, 102, 106, 107, 108, 158, 167, 169, 175, 177, 182, 186, 189, 192, 193, 228, 265, 266, 286, 288, 355, 500 Auphan, Gabriel 391, 392 Azevedo, Fernando de 20 Azevedo, João José de 237, 790

B Badra, Aniz 476, 477, 802 Bahamonde, Francisco Franco 381, 385, 397, 398 Balduino, Tomás 638, 639, 640 Balthasar, Hans Urs von 300 Barker, William 410 Barretto, Nelson Ramos 648 Barros, Ademar de 278, 324 Barros, Artur Leite de 172 Barros, João Alberto Lins de 64, 65, 100, 117 Barros, Pereira 126, 127 Batista, José Newton de Almeida 634, 809 Battenberg, Juan de Borbon y 379 Baviera, Maria Gabriela da 403 Baviera, Rodolfo da 403 Beaussart, Roger 392, 393 Beauvoir, Simone de 180 Bécassine 22 Becker, João 792 Bellarmino, Robert 581 Benevides, Mauro 752, 753 Bento XV 341 Bento XVI 300, 356, 575, 581 Bermejo, Jesus 419 Bernanos, Georges 191, 194, 238 Bernardes, Artur 44, 75 Bernini, Gian Lorenzo 410 Besier, Gerhard 492 Binh, Nguyen Van 514 Blenke, Batista 340, 341, 350, 351 Blondel, Maurice 195 Boff, Leonardo 645, 688, 705, 726 Bonald, Louis-Gabriel-Ambroise De 318, 758 Bonaparte, Napoleão 47 Borba, Adolfo Greff 72 Borges, Laudimiro de Jesus 187 Borsato, Fausto 693 Botte, Bernard 163, 166, 189 Bourbon, Carlos de 379 Bourbon, Juan Carlos de 379 Boyens, Armin 492


779 Braccesi, Umberto 803 Bracciano, Sorrento 401 Bragança, Bertrand de Orleans e 363, 434, 803 Bragança, Francisco Xavier de Borbón y Parma de 398 Bragança, Luiz de Orleans e 363 Bragança, Pedro Henrique de Orleans e 324, 332, 363, 434 Branco, Humberto de Alencar Castelo 477, 478, 479, 520, 522, 529, 530, 615, 616, 802 Brandão, Ascânio 159, 237, 238, 239, 240 Brito, Juvêncio de 792 Brito, Paulo Corrêa de 20, 23, 363, 452, 592, 594, 803 Brizola, Leonel 472, 718 Brotero, Eduardo de Barros 277, 364, 558 Bucko, Ivan 503, 803 Bueno, Antonio Henrique Bittencourt Cunha 545 Bush, George Herbert Walker 727, 730 Bush, Mario 567

C Cabanas, João 65 Cabral, Antonio dos Santos 156, 162, 192, 193, 267, 268, 272, 288, 300, 302, 304, 306, 307, 344 Caetano, Angelina 243 Caggiano, Antonio 310 Caim, Personagem do Antigo Testamento 623 Calazans, Benedito Mário 185, 236 Calazans, Ruy 96 Caldeira, Osmar Peres 711 Calderón, Ronaldo 578 Calles, Plutarco Elías 43 Câmara, Helder Pessoa 174, 354, 355, 429, 432, 456, 459, 462, 463, 464, 465, 467, 541, 542, 543, 545, 546, 547, 551, 552, 553, 573, 574, 575, 588, 637, 806 Câmara, Jaime de Barros 174, 288, 298, 301, 305, 336, 344, 525, 526 Camargo, José Fernando de 42, 159, 270, 286, 316, 320, 332, 338, 342, 465 Campbell, Juan Gonzalo Larrain 532, 533, 741 Campelo, Barreto 119 Campins, Luís Herrera 699 Campo, Carlos Patricio del 671, 705 Campón, Germano Vega 463, 792 Campos, Carlos de 44, 45 Campos, Milton 472 Campos, Paulo de Tarso 126, 127, 144, 145, 146, 785 Canali, Nicola 416 Cantarelli, Boaventura 341, 342 Cardijn, Joseph-Léon 202, 788 Cardoso, Fernando Henrique 753, 754 Carli, Luigi Maria 495 Carlos I da Áustria 396, 398 Carlos X 759 Carneiro, Ernesto Pereira 256, 791 Carneiro, Mateus Pereira 256 Carneiro, Nelson 525, 611, 644 Carter, Jimmy 649, 650, 651, 654, 656, 701, 810 Carton, Henri 513


780 Casaldáliga, Pedro 632, 633, 635, 636, 637, 638, 639, 640, 645, 655, 666, 672, 740 Casaroli, Agostino 440, 441, 600, 601, 602, 604, 605, 608, 609, 800, 808 Castanho, Amaury 344 Castelli, Leopoldo Fortunato Galtieri Castelnau, Noël Marie Joseph Édouard de 63, 64, 66, 67 Castro, Fidel 464, 586, 600, 602, 645, 696, 726, 769, 770, 771 Castro, José Brandão de 639 Cavada, Carlos Oviedo 582 Cavalcanti, André Arcoverde de Albuquerque 236, 237, 240, 790 Cavalcanti, Joaquim Arcoverde de Albuquerque 67 Cayetano, Tomás 582 Chardin, Pierre Teilhard de 379 Charzat, Michel 685 Chautard, Jean-Baptiste 98, 99, 189, 382, 788 Chaves, Elias Pacheco 81 Chaves, Orlando 555 Chaves, Paulo Henrique 648, 754, 755 Chaves, Pedro 524 Cheicko, Paul II 511 Ciappi, Luigi 766, 767 Chiarlo, Carlo 297, 323, 346, 796 Chlodion 133 Chonchol, Jacques 577, 578 Churchill, Winston Leonard Spencer 389, 396, 506, 794 Cicognani, Amleto Giovanni 489 Cintra, Joaquim de Sylos 524 Cintra, Manoel Pedro da Cunha 793 Cintra, Paulo Barros de Ulhôa 42, 72, 80, 87, 90, 148, 149, 159, 215, 270, 302, 303, 316, 321, 338, 373, 388, 443, 452, 465 Cintra, Sebastião Leme da Silveira 66, 67, 86, 106, 107, 108, 114, 184, 186, 241, 250, 251, 265, 288, 500, 520, 790 Cipulo, Francisco 324 Claret, Antonio Maria 419 Clemenceau, Georges 399 Coelho, Jaime Luís 639 Collor, Lindolfo 719 Colombo, Cristóvão 379, 645 Comblin, Joseph 541, 542, 544, 545, 547, 552, 562 Conde, Manuel Fal 376, 377, 395, 399 Coniac, Regis René de 391 Consentino, Roque 278 Cooke, Terence 486 Corção, Gustavo 468, 469 Cordeiro, Simone Luciana 34 Cordovani 161 Corneille, Pierre 307, 794 Corrêa, Aquino 246 Correia, Alexandre 37, 785 Correia, Carlos Alberto Soares 803 Cortés, Juan Donoso 318 Costa Filho, Luís Tolosa de Oliveira e 328, 796 Costa, Adroaldo Mesquita da 119 Costa, Benigno de Brito 300 Costa, Carlos Duarte 27


781 Costa, Heitor da Silva 66, 102 Costa, João de Castro e 302, 303, 306, 307, 347, 352, 792, 794, 795, 796 Costa, João Rezende 473 Costa, José Gonçalves 546 Costa, José Pedro 638 Covas, Mário 718 Crisóstomo, João 581 Cruz, Reinaldo 277 Cunha, Leitão da 66, 105 Czajkowski, Zbigniew 513, 518, 519

D D’Arc, Joana 413 d’Áustria, João 378 D’Elboux, Manuel da Silveira 160, 282, 305, 792 Dainese, César 194, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 260, 263, 268, 275, 289, 290, 294, 300, 321, 323, 326, 335, 348, 792, 796 d’Alembert, Jean le Rond 402 Damasceno, João 581 Daniel, Personagem do Antigo Testamento 44, 48, 273 Danti, José 78, 340 Daudet, Alphonse 760 d’Azeglio, Luigi Taparelli 499, 803 Deléani, Simone 344 Delespesse, Max 447, 448 Desmarais, Marcelo 192 Despuig, Ramón Orlandis i 379, 798 Dias, José Carlos 692, 693, 694 Diderot, Denis 402 Didonet, Frederico 639 Diehl, Rubi 613, 614 Dimichele, Stefano 767 Dória, Antonio Sampaio 87 Dourado, Estela 243 Dourado, Rubens 611 Duque de Maqueda 766 Duque de Orleans 276 Durán Ch., Reinaldo 584

E Ebert, Aidano 152, 324 Echeverría, Bernardino 766 Elgar, Edward 805 Elizondo, José Rodriguez 533 Engels, Friedrich 732 Eucarístico, Maria Teresa de Jesus 237, 790

F Faga, Dominique Pierre 803 Falcão, José Freire 594, 638


782 Fedelli, Orlando 434 Felici, Pericle 495 Fernandes, Alceu Cordeiro 524 Fernando de Castela 385 Ferraz, Brasilina Ilka Ribeiro Barbosa (Zili) 21 Ferraz, Ilka Barbosa 21 Ferraz, Nestor Barbosa 21 Ferreira, Esdras Pacheco 72 Ferreira, Marcio Martins 524 Figueiredo, João Batista 693, 700 Figueiredo, Pedro Paulo 803 Filipe II 151, 408 Fragoso, Antônio Batista 547 Franca, Leonel Edgard da Silveira 56, 57, 139, 162, 501 France, Pierre Isaac Mendès 191 Francisco I 488 Franco, Itamar 753 Frederico, Genoefa 244 Freire, Manuel Macedo 172, 324 Freire, Paulo 688 Freitas, Benedito Marcos de 324 Freitas, Luiz Mendonça de 455, 457, 460, 461 Freitas, Rafael 717 Fuentes T., Arturo 584

G Gaida, Pranas 814 Galli, Italo 524 Galliez, Murilo Maranhão 803 Gama, Alcebíades Delamare Nogueira da 37 Garcia, José 584 Garibaldi, Giuseppe 768 Garric, Robert 178, 179, 180, 181, 182 Garrigou-Lagrange, Reginald Marie 162 Gaulle, Charles De 517 Gawlina, Józef Felix 503, 804 Geisel, Ernesto 619 Gelain, Henrique 463 Geraldo, Cônego 323 Gielow, Igor 697 Gilroy, Norman Thomas 511 Giordano, Adalgisa 243 Glorieux, Achille Marie Joseph 494, 495 Gomes, Carlos 236, 238 Gomes, Orlando 711 Gomes, Venceslau Brás Pereira 72, 104 Gomulka, Wladyslaw 507, 508 Gonçalves, Alberto José 282, 792 Gondi, Jean-François Paul de 800 Gorbachev, Mikhail Sergueievitch 730, 731, 732, 733, 734, 735, 814 Gordinho, Antonio Cintra 124, 125 Goulart, (Jango) João Belchior Marques 356, 469, 472, 473, 474, 476, 477, 478, 479, 531, 589, 675, 686, 802


783 Gouveia, Zoroastro de 114, 115, 116 Grand-Air, Madame de 22 Grechi, Moacir 639, 669 Guardini, Romano 187, 299, 300 Guayasamín, Oswaldo 645 Gubin, Éliane 182 Guedes, Delfim Ribeiro 525 Guéranger, Prosper 189 Guerreiro, Geroboão Cândido 570 Guerreiro, Ramiro Elísio Saraiva 700 Guevara, Che 180 Guines, Benedito 584 Gundlach, Gustav 413, 415, 416 Gusso, Enzo Campos 330, 332, 342, 347, 348 Gutiérrez, Anastasio 766

H Habsburgo, Otto de 374, 378, 393, 394, 395, 398 Hacker, Leonardo Van 785 Haig, Alexander 700 Hemptinne, Christine de 182 Henriquez, Raúl Silva 568, 569, 586, 587, 621, 622 Hércules, Personagem mitológico 748 Herold, Helena 790 Hinten, Jerônimo Van 349, 803 Hipólito, Adriano 634 Hitler, Adolph 165, 789 Hofer, Andreas 758 Hofer, Walter 337 Homero, Poeta grego 467 Hostin, Daniel Henrique 792 Huxley, Aldous 195

I Isabel a Católica 645 Isabel, Princesa 20, 22, 363 Isnard, Clemente José Carlos de Gouvea 163, 166, 187, 188, 189, 596, 597, 598, 807, 808

J Jesus, Teresinha do Menino 383 João Paulo II 488, 657, 660, 661, 662, 668, 673, 682, 683, 705, 735, 742, 811, 814 João XXIII 297, 405, 474, 480, 481, 491, 498, 512, 599, 660 Joffre, Joseph Jacques Césaire 63 Jorge V 399 Journet, Charles 581 Junqueira, Helena 244

K


784 Kai-Shek, Chiang 551 Kerensky, Alexander Fyódorovich 532, 567, 572 Kiehl, Maria 183, 244 Kissinger, Henri 600 Kohl, Helmut 730 Kok, Svend 88, 183, 261, 270, 271, 272, 273, 278 Kok, Teodoro (ver Kok, Svend) Krauss 535 Kriutchov, Vladimir 734 Kun, Bela 808

L Laborde, Jean de 392 Ladeira, Martins 223 Laet, Carlos Maximiliano Pimenta de 160 Landsbergis, Vytautas 727, 729, 733, 735, 814 Lanteri, Pio Bruno 318, 803 Lápide, Cornélio a 581 Lara, Lelis 639 Larrain, Horacio Walker 536 Leão XII 799 Leão XIII 244, 258, 286, 499, 547, 599, 683, 759, 760, 761, 803 Ledochowski, Wlodimir 234 Lefebvre, Marcel 116, 493, 494, 495, 496, 634 Lefebvre, Luc 362, 390, 392, 787, 798 Lefèvre, Sérgio Brotero 363, 443, 452, 803 Lehmann, João Batista 792 Leiber, Robert 311, 315, 321, 334, 413, 414, 415, 416, 426, 427, 428, 788, 794, 800 Leighton, Bernardo 531 Lenin, Vladimir Ilitch 532, 687 Leonov, Nikolai Sergeievitch 697, 702 Lessa, José N. César 280 Letelier, Héctor Correa 536 Lévis-Mirepoix, Antoine de 391 Lévi-Strauss, Claude 646, 647 Levy Sobrinho, José 785 Líbero, Cásper 280 Librelotto, Pascoal Gomes 303, 351, 352 Lienemann, Marie-Noèlle 685 Lima, Alceu Amoroso 66, 67, 159, 191, 195, 186, 286, 307, 311 Limongi, José Papaterra 71 Lindemann, Gerhard 492 Lindenberg, Adolpho 42, 149, 159, 316, 319, 320, 373, 388, 409, 411, 443, 592 Lira, Hernán Videla 536 Lobos M., Bernardo 584 Loebmann, Antonio 339 Lombardi, Armando 302, 303, 347, 458, 462, 463, 464 Loneux, Adèle de 182, 183, 185, 193, 208 Lopes, Gilberto Pereira 595 Lopes, Isidoro Dias 44, 45 Lorscheider, Aloisio 546, 639 Lorscheiter, Ivo 596, 597, 635, 639, 672


785 Loureiro, Paulo Rolim 219, 228, 229, 328, 329, 335, 352, 789 Loyola, Inácio de 234, 245, 378, 414 Lubac, Henri de 300 Luís II de Baviera 403 Luís III de Baviera 403 Luís XI da França 404 Luís XIV 393, 801 Luís XVI 497 Lupion, Moisés 324 Lusseau, Henri 798 Lutero, Martinho 46, 157 Luz, Ivã 476, 477, 802

M Macedo, Antonio 463 Machado, Antonio Augusto Borelli 488, 629 Machado, Antonio Leme 324, 341, 787, 788, 790, 791, 793, 794, 796 Machado, Francisco de Paula Monteiro 328 Magalhães, Agamenon Sérgio de Godoy 255 Magalhães, Fernando 105 Maglione, Luigi 381, 405 Magne, Augusto 341, 796 Mahl, Clemente Raphael 581 Maia, Júlio 58 Maistre, Joseph-Marie de 318, 758 Marconi, Guglielmo 767 Mariaux, Walter 194, 231, 232, 233, 234, 235, 252, 260, 275, 315, 321, 363, 364, 365, 366, 367, 368, 373, 374, 413, 415, 416, 434 Marighela, Carlos 560 Marita, Princesa (ver Baviera, Maria Gabriela da) 403 Maritain, Jacques 67, 145, 158, 161, 166, 167, 191, 194, 234, 285, 286, 300, 356 Marques, Edith Junqueira Azevedo 244 Marques, José Manuel de Azevedo 93 Marquis, André 392 Martins, Jackson de Figueiredo 37, 66, 160 Marto, Manuel Pedro 387 Marx, Karl Heinrich 552, 662, 667, 712, 732 Mary, Rainha 399 Masella, Aloisi Bento 155, 188, 189, 238, 247, 252, 255, 265, 290, 291, 292, 295, 297, 298, 305, 791, 794 Matos, Silvio 323 Mattei, Roberto de 67, 174, 194, 330, 398, 482, 494, 495, 496 Matulionis, Teófilo 814 Mauriac, François 191 Mauroy, Pierre 681 Maurras, Charles 760 Maximiliano da Áustria 558 Mayer, Antonio de Castro 115, 116, 129, 155, 159, 184, 187, 192, 229, 230, 231, 232, 233, 240, 241, 242, 243, 244, 246, 247, 248, 249, 250, 252, 260, 261, 264, 265, 266, 268, 271, 272, 273, 274, 275, 277, 278, 285, 291, 293, 294, 295, 296, 299, 300, 310, 311, 317, 319, 321, 324, 328, 331, 332, 334, 336, 337, 339, 340, 341, 345, 346, 351, 363, 365, 368, 373, 405, 406, 407, 408, 423, 425, 426, 427, 428, 429, 432, 438, 457, 458, 459, 460, 461, 462, 463, 464, 465, 469, 471, 482, 483, 484, 485, 487, 489, 493, 494, 496, 497, 502, 512, 521, 525, 531, 545, 546, 547, 549, 574, 591, 592, 593, 594, 598, 606, 611, 629, 640, 642, 643, 691, 788, 791, 796, 803, 811


786 Mazagão, Carlos 363 Mazowiecki, Tadeusz 513, 804 Mazzaroto, Antonio 555 Mazzarotto, Jerônimo 525 Mazzilli, Pacoal Ranieri 471, 802 Medeiros Junior, Raul da Rocha 524 Medeiros, Antônio Augusto Borges de 120 Medeiros, Danilo 717 Medeiros, Roberto Saboia de 195, 231 Medice, Garrastazú 562 Melillo, Vicente 72, 77, 782 Melilo, Aniger 463 Mello, Fernando Affonso Collor de 718, 719, 720, 721, 751, 752, 753, 814 Mello, Luiz Geraldo do Amaral 324 Mello, Marco Aurélio de 648 Melo, Bezerra de 717 Menezes, Furtado de 119 Menezes, Pedro de 413 Mercier, Désiré-Félicien-François-Joseph 183, 787 Meroveu I 133 Michler, Martinho 186, 187, 188, 216 Miguel, Alberto Leopoldo Fernando 403 Min, Ho Chi 514, 633 Mindszenty, József 601, 602, 603, 604, 808 Miranda, Antonio Afonso de 595 Miranda, Otávio Chagas de 792 Miranda, Rocha 175 Mitterrand, François 674, 675, 676, 678, 680, 684, 687, 746, 749 Mohana, João 441 Moisés, Personagem do Antigo Testamento 797 Molotov, Vyacheslav 165, 732 Mônica da Áustria 766 Montalembert, Charles Forbes René de 318 Montalva, Eduardo Frei 517, 531, 532, 533, 534, 536, 567, 572 Monteiro, José Maria 285 Monteiro, Paulo 288 Monteiro, Raphael de Barros 524 Montfort, Luís Maria Grignion de 18, 98, 318, 353, 778, 797 Montini, João Batista 174, 335, 349, 350, 352, 405, 406, 407, 408, 409, 411, 412, 570, 797 Montoro, André Franco 270, 435 Montoro, Lucy 244 Monzoni, Heloisa Prestes 244 Morabito, Rocco 635 Moraes Júnior, Antonio de Almeida 555 Moraes, Marcelo de 700 Motta, Carlos Carmelo de Vasconcellos 26, 27, 144, 153, 156, 161, 247, 288, 289, 290, 291, 292, 293, 296, 298,303, 304, 307, 322, 330, 331, 343, 344, 347, 365, 467, 469, 474, 643, 794 Moura, Irineu Cursino de 101 Moura, Jairo de 236 Moura, Samuel 717 Mourão, Henrique César Fernandes 792 Mozzoni, Umberto 550 Muldermann, Canísio 150, 151


787 Muniz, João Batista 265, 305 Mussolini, Benito Amilcare Andrea 384

N Nascimento (Pelé), Edson Arantes do 525 Natali, J. B. 680 Neto, João Sampaio 803 Neto, José Joaquim Cardoso de Melo 82, 118 Netto, João Bloes 463 Neves, Trancredo 704 Niehues, Afonso 639 Nikodin 492 Nogueira, José Bonifácio Coutinho 454, 467, 801

O Oddi, Silvio 766, 767 Olascoaga, José Antonio Labúru 185, 201, 787, 788, 794, 796, 797, 798 Oliveira, Armando Sales de 100, 120, 136, 137, 138 Oliveira, Brasílio Augusto Machado de 75 Oliveira, Ernesto Sena de 488 Oliveira, Família Corrêa de 20 Oliveira, Helvécio Gomes de 792 Oliveira, João Alfredo Corrêa de 20, 150 Oliveira, João Paulo Corrêa de 20, 23 Oliveira, Joaquim Domingues de 792 Oliveira, Jorge Marcos de 463 Oliveira, José de Alcântara Machado de 74, 81, 82, 84, 85, 94, 104, 117, 118, 134 Oliveira, Lucilia Ribeiro dos Santos Corrêa de 20, 21,22, 45, 88, 402 Oliveira, Oscar de 575 Oliveira, Otávio Frias de 537, 538, 606, 721, 722, 805 Oliveira, Vital Maria Gonçalves de 289, 412, 413 Orlandis e Habsburgo 379 Ortiz, Benedito 238 Ortiz, Carlos 236, 237, 238, 265, 271, 291 Ortiz, Ramón de Oliveira 236 Ottaviani, Alfredo 464, 511, 788, 802

P Pacelli, Eugenio 224, 337, 382, 789, 794 Padim, Cândido 547 Palacios, Ariel 696 Pallavicini, Elvina 767 Pantoja, Roberto 179 Parma, Carlos Hugo de Bourbon 398 Parma, Sixto de Bourbon 398 Parma, Xavier de Bourbon 376, 378, 398 Parma, Zita de Bourbon 395, 398, 399 Parrentir, Philippe 525 Pastor, Ludwig von 413, 795 Paula, Ernesto de 249, 332, 792, 796


788 Paula Machado, Francisco Julião Arruda de 328, 329, 330 Paulo VI 67, 174, 202, 283, 300, 405, 412, 488, 489, 492, 495, 497, 512, 541, 544, 546, 548, 550, 551, 552, 553, 561, 569, 570, 571, 577, 579, 580, 581, 584, 596, 599, 602, 603, 604, 607, 608, 609, 610, 621, 622, 626, 632, 640, 649, 652, 653, 654, 655, 656, 657, 660, 665, 731, 767, 788, 800, 805, 810 Pavão, Ary 110, 111, 784 Pavesio, João 324 Pedro II, Imperador 66 Pedrosa, Paulo Marcondes 51, 152, 156, 261, 270, 271, 290, 291 Pena, Alano 639 Pena, Rodolpho das Mercês de Oliveira 525 Penteado, Antonio Alvares 21 Penteado, Barros 118 Pequeno, Alberto 280 Pereira, Cândido Alvim 767 Pereira, Otto de Alencar de Sá 803 Pessoa, Epitácio 93 Pessoa, Lenildo Tabosa 567 Pétain, (ver Pétain, Philippe) Pétain, Henri Philippe Benoni Omer Joseph Pétain, Philippe 63, 391, 392, 680 Piacenza, Parma e 398 Piazza, Adeodato Giovanni 428 Picão, David 463 Pinchon, Joseph 22 Pinheiro, Ibsen Valls 752, 753 Pinochet, Augusto 518, 624 Pinto, Carlos Alberto Alves de Carvalho 454, 460, 801 Pinto, Gastão Liberal 56, 57, 69, 70, 77, 94, 118, 209, 784 Pinto, Heráclito Fontoura Sobral 177 Pio IX 286, 411, 570 Pio X 46, 75, 90, 164, 191, 197, 246, 286, 309, 341, 383, 385, 389, 391, 483, 807 Pio XI 39, 196, 197, 198, 224, 258, 269, 337, 381, 382, 383, 384, 385, 391, 413, 415, 488, 496, 600, 628, 653, 683, 764, 791 Pio XII 144, 188, 224, 250, 258, 267, 294, 297, 311, 315, 321, 322, 325, 332, 335, 337, 343, 349, 351, 352, 354, 373, 391, 392, 393, 405, 408, 413, 414, 415, 416, 480, 488, 490, 504, 526, 570, 599, 600, 615, 653, 660, 683, 756, 761, 762, 764, 765, 786, 791, 793, 794, 796, 800, 808 Piratininga, Jorge Tibiriçá 277 Pires, Francisco de Assis 792 Pires, José Maria 639, 668 Pizzardo, Giuseppe 345, 512 Platão, Filósofo grego 349 Poincaré, Raymond 399 Politzer, Patricia 532 Poulengy, Bertrand de 795 Prado, Antonio 81 Prado, Veridiana Valéria da Silva 21 Prestes, Luís Carlos 45, 85, 177 Pró, Miguel Agustin 43 Pugo, Boris 735

Q Queiroz, José Gustavo de Souza 270, 297, 316, 366


789 Quintanilha 238 Quintero, José Humberto 555

R Rahner, Karl 300 Ramirez, Francisco 584 Ramos, Albertina 183, 244 Ramos, Alberto Gaudêncio 426 Ramos, Mario Antunes Maciel 324 Ramos, Nereu de Oliveira 83 Ratzinger, Joseph Aloisius 300, 356, 581, 729 Reagan, Ronald 700, 730 Rego, Manuel Hipólito do 74, 75, 94 Rego, Rosalvo Costa 265 Resende, Expedito de Freitas 652 Reus, João Baptista 284 Rezende, Estevão Emmerich de Souza 70, 76, 77 Ribbentrop, Joachim von 165, 732 Ribeiro, Fábio Alves 286 Ribeiro, Jose Maria 525 Ribeiro, Nelson 704, 705, 708 Riesle, Hector 622 Rios, Airon 611 Riou, Louis 194, 260, 275, 309 Roberto, Eduardo 278 Rocco, Carmine 657 Rocha, Attico Eusébio da 323 Rocha, José Maurício da 302, 304, 315, 324, 463, 792 Rodrigues, Júlio 127 Rodrigues, Silvio 711 Rodríguez, Jorge Alessandri 568 Rodríguez, Victorino 766 Ronca, Roberto 427, 502, 800 Roncalli, Angelo 480 Roosevelt, Franklin Delano 278, 506 Rosée, Rosenda Corrêa de Oliveira 21, 102 Rossi, Agnelo 525, 526, 547 Rossi, Clóvis 685 Ruiz, Angélica 243 Ruiz, Aurora 243 Ruspoli, Sforza 767

S Sáenz, Pedro Segura y 380, 382, 383, 384, 385 Saint-Ambroise, Mère 136 Sales, Apolonio 290, 339 Sales, Eugênio de Araújo 573, 574, 628, 643, 806 Sales, José Benedito Pacheco 42, 159, 229, 289, 299, 300, 316, 319, 332, 373 Salgado, Plinio 173, 175 Salido, Álvaro Obregón 43 Sampaio, Rafael Correia de 138


790 Sangnier, Marc 191 Sansão, Personagem do Antigo Testamento 282 Santana, Luís de 792 Santini, Cândido 352 Santos, Antonio dos 792 Santos, Antonio Ribeiro dos 21 Santos, Brasílio Rodrigues dos 790 Santos, Dulce Rodrigues dos 790 Santos, Gabriel José Rodrigues dos 20 Santos, Gabriel Ribeiro dos 45 Santos, Gabriela Ribeiro dos 21 Santos, José de Azeredo 42, 159, 267, 316, 449 Santos (Irmâ Lúcia), Lúcia de Jesus Rosa dos 387, 488 Santos, Mauro Aparecido dos 563 Santos, Paulo de Tarso 461 Santos, Ribeiro dos 20, 22 Sarney, José 704, 705, 801 Sartre, Jean Paul 180 Sawaya, Paulo 96 Saxe-Meiningen, Regina de 397 Sch, Luis Toledo 584 Scherer, Alfredo Vicente 283 Scherer, Emílio 803 Schmitz, Desidério 152 Schmitz, Quirino Adolfo 639 Sedelmayer, Jorge 339 Sequeira, Carlos Antonio 693 Sete, Primitivo 150 Shakespeare, William 805 Sigaud, Geraldo de Proença 115, 116, 229, 248, 249, 260, 268, 270, 293, 294, 298, 299, 310, 321, 322, 323, 324, 327, 330, 332, 336, 337, 338, 339, 340, 345, 346, 351, 365, 373, 376, 381, 423, 432, 457, 458, 459, 460, 461, 462, 463, 464, 465, 466, 469, 471, 472, 481, 482, 484, 485, 487, 489, 493, 494, 495, 496, 501, 502, 521, 525, 531, 545, 546, 547, 549, 574, 575, 576, 638, 639, 640, 794, 795, 796, 797, 800, 803 Sigaud, Lucas de Proença 324 Silva, Augusto Álvaro da 344 Silva, Beatriz de Menezes da 413 Silva, Duarte Leopoldo e 36, 38, 46, 56, 69, 70, 72, 74, 76, 84, 85, 86, 96, 100, 101, 121, 122, 123, 124, 126, 127, 148, 156, 158, 172, 173, 181, 182, 217, 220, 222, 223, 224, 278, 328, 784 Silva, Epaminondas Nunes D’Ávila e 90, 124, 126, 236 Silva, José Ariovaldo da 187, 291 Silva, José Bonifácio de Andrada e 103 Silva, José Gaspar de Affonseca e 155, 156, 161, 165, 172, 183, 186, 192, 193, 217, 218, 220, 221, 223, 224, 225, 227, 230, 239, 241, 244, 249, 252, 253, 255, 256, 266, 272, 278, 280, 285, 289, 294, 295, 289, 294, 295, 296, 331, 334, 527, 789, 793 Silva, José Gomes da 801 Silva, José Inácio Lula da 718, 720, 721 Silva, Tarcísio Leopoldo e 126 Silva, Yolanda Costa e 546 Silveira, Caio Vidigal Xavier da 364, 733 Silveira, Fábio Vidigal Xavier da 364, 439, 452, 465, 475, 517, 531, 535, 803 Silveira, Nádia 783, 784, 785, 786, 787 Silveira, Plinio Vidigal Xavier da 363, 706, 754 Singer, Paul Israel 674


791 Siqueira, Antonio Maria Alves de 331, 335, 341, 342, 343 Sixto de Bourbon Parma (ver Parma, Sixto de Bourbon) 398 Sladkevicius, Vincentas 734 Soares, Idílio José 277 Soares, José Carlos de Macedo 82, 85, 86, 96, 110, 117, 224 Soares, José Eduardo de Macedo 110 Solimeo, Gustavo Antonio 690 Solimeo, Luiz Sérgio 690 Sousa, José Pedro Galvão de 270 Sousa, Washington Luís Pereira de 64, 75, 83 Spiazzi, Raimondo 766 Spínola, Elias de Tejada 376 Staffa, Dino 512 Stalin, Josef 506, 769 Steft, J. F. 727 Stickler, Alfons 766, 767 Stolz, Anselm 299 Strambi, Vicente Maria 408, 799 Suárez, Francisco 581 Sucupira, Luís 119 Sued, Ibraim 545

T Tarancón, Vicente Enrique y 608, 609, 809 Tardini, Domenico 405, 442 Taveiro, Elói de Magalhães 790 Teodureto 581 Tisserant, Eugène 491, 492, 511 Tito, Josip Broz 571 Tohá, José 621 Tolentino, Célia Aparecida Ferreira 801 Tomic, Radomiro 568 Trakostjan, Maria Francisca Juliana Joana Draskovich von 799 Tsé-Tung, Mao 551, 632

U Ureta, José Antonio 492, 495 Urpiá, Jaime Luciano Antonio Balmes y 318

V Vaime, Enrico 767 Valença, Marquês de 70 Valentini, Luigi 201, 416, 441, 788, 797 Valenzuela, Francisco J. 584 Valls, Manuel 685 Valois, Joana de 404 Varas A., Guilhermo 583 Varella, Lael Vieira 754 Vargas, Getúlio Dornelles 46, 47, 62, 64, 65, 66, 67, 68, 83, 85, 98, 100, 104, 105, 107, 120, 121, 122, 174, 175, 253, 254, 255, 283, 290


792 Vasken I 571 Vaz, Benedito 72 Veloso, José Francisco Versiani 323, 347, 584 Venceslau Brás, (ver Gomes, Venceslau Brás Pereira) 72, 104 Vermander, Jean-Marie 344 Verne, Júlio 467 Veuillot, Louis 318 Vidal, Rafael de Abreu Sampaio 74, 75, 94 Vidigal, Cassio 172 Vidigal, Celso da Costa Carvalho 363 Vieira, Arlindo 158, 162, 194, 204, 275, 286, 323, 340, 348, 793 Vieira, Florêncio Sisinio 792 Vieira, José Eduardo de Andrade 754, 755 Vieira, Nelson 280 Vieira, Severino 792 Vieira, Talita Carmona 183 Villac, José Luiz Marinho 754 Villalba, SoteroSanz 625 Villot, Jean-Marie 626 Viñas, Maria 419 Viotti, Polycarpo 119 Vitória, Francisco de 581 Voltaire, François Marie Arouet 402, 757

W Wernz, Francisco Xavier 581 Wey, Clarisse 244 Weygand, Maxime 392 Wielowieyski, A. 513 Wilde, Melissa 482 Wiltgen, Ralph Michael 485, 486, 489, 495 Wittelsbach, Casa de 403 Wyszynski, Stefan 507

X Xifré, José 419 Alfonso XIII 379

Y Yamamoto, Estêvão Shingiro 162

Z Zanini 486 Zili (ver Ferraz, Brasilina Ilka Ribeiro Barbosa) 21 Zioni, Vicente 463 Zita, Imperatriz (ver Parma, Zita de Bourbon) 395, 398, 399


793

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Prol Editora Gráfica Ltda.


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