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PRATAS DA CASA n Conheça um pouco mais sobre dois egressos do Jornalismo UPF: Cleber Bertoncello e Fábio Rosso
CULTURA Já leu A sangue frio, de Truman Capote? Se ainda não, leia nossa resenha e, em seguida, o livro completo
REPORTAGEM n Vidas ambulantes. As histórias de quem ganha a vida vendendo produtos em calçadas
SAÚDE n Você é o que come? Então pense sua alimentação como um plano de saúde
REPORTAGEM n Precisa-se de leitores. Uma experiência bemsucedida de leitura para incentivar novos leitores
JORNALISMO n Um clássico de John Hersey sempre válido e atual. Hiroshima, a reportagem do século XX
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REPORTAGEM n Como lidar com o preconceito? Conheça Daiane Carraro e se emocione com sua trajetória de superação
TECNEWS n Fique ligado em todas as novidades do mundo tecnológico
REPORTAGEM nComo era o amor no tempo das cartas? Uma história de amor escrita à mão
IMAGENS PRECOCES n Conheça as imagens vencedoras do concurso do Núcleo de Estudos em Fotografia
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CURSOS E EVENTOS
EVENTOS
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20 anos Jornalismo UPF 436 perfis estampam nossa contracapa especial que marca os 20 anos do curso de Jornalismo da UPF. Dos 568 profissionais egressos, conseguimos localizar 436 perfis em redes sociais e os utilizamos para parabenizar ao curso por seu aniversário. Já que o curso é formado pela identidade de quem por aqui passou, nada mais justo que utilizar essas mesmas identidades para homenageá-lo.
PRÊMIOS
V FAC CINE FÓRUM Data: Maio 2017 Onde: Centro de Eventos UPF Informações: http://www.upf.br/facineforum/
2º Prêmio de Jornalismo da Delegacia Regional da Serra Gaúcha (SINDJORS) Inscrições até 07/11/2016 Site: http://bit.ly/2eoN6fn
INTERCOM SUL 2017 Data: 15 a 17 de junho de 2017 Onde: Universidade de Caxias do Sul (UCS) - Caxias do Sul/RS Informações: http://www.portalintercom.org.br/
Prêmio ARI/Banrisul de Jornalismo 2016 Inscrições até: 22/11/2016 Site: http://www.ari.org.br/
INTERCOM 2017 Data: Setembro de 2017 Onde: Universidade Positivo Curitiba/PR Informações: http://www.portalintercom.org.br/eventos/congresso-nacional/20171
Parabéns jornalistas UPF por 20 anos de boas histórias contadas!
UCS-Teatro na Cidade Universitária da UCS receberá a edição 2017 do Intercom Sul
24º Prêmio CNH Industrial de Jornalismo Econômico Inscrições até: 28/02/2017 Site: http://bit.ly/2dPESey
INTERCÂMBIO n CCom a mala cheia de experiências apresentamos histórias de quem veio e de quem foi para o exterior para um período de estudospara um período de estudos
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REPORTAGEM n O que você sabe sobre o Islã? Nós te apresentamos um pouco mais sobre essa religião a partir da opinião de muçulmanos que vivem em Passo Fundo
Imagem de fundo: Arquivo NEXJOR
Cursos
Cursos de aperfeiçoamento online do COMUNIQUE-SE n Como escrever um artigo: dicas e orientações. n Como vender trabalhos freelance de jornalismo. n Fotojornalismo: teoria e prática. n Jornalismo gastronômico - técnicas e ferramentas.
n Narração esportiva para rádio, TV e internet. n O jornalismo e as redes sociais. n Jornalismo de turismo na prática. ONDE: http://www.dominou.com.br/ jornalismo.html
CURSOS E EVENTOS
AGENDA
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Carta da Editora
EDITORIAL
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ma das maiores habilidades que se espera dos profissionais atualmente é que eles saibam trabalhar em equipe. Que eles saibam conviver com os defeitos ou incapacidades uns dos outros e explorar os que os colegas têm de melhor. Que tirem proveito das dificuldades enfrentadas e, com isso, renovem a atuação em equipe. 2016 é um ano muito importante para o curso de Jornalismo da UPF. É o ano em que o curso comemora 20 anos de atividades. São 20 anos de desafios, superação e formação de profissionais. São 20 anos de trabalho em equipe. São 20 anos de renovação de equipes e de acúmulo de experiências.
lho 436 fotos dos perfis dos egressos do nosso Jornalismo que conseguimos obter em redes sociais. E como a nossa identidade é mutante e segue sendo moldada, reformulada, agregada, nossas páginas trazem histórias que estão sendo contadas por quem ainda está nas salas de aula e corredores da FAC ajudando a fazer a história do curso de Jornalismo da UPF hoje. A começar pela matéria especial, que é contada por duas acadêmicas: a Larissa Paludo e a Cláudia Dalmuth.
Não se alcança 20 anos de história sozinho. Ninguém alcança. Muito menos um curso de graduação. Então, esses 20 anos devemos – todos nós, os egressos e os atuais alunos, professores, colaboradores – à atuação de muitos, ao trabalho e ao desprendimento de equipes que souberam inovar, se modernizar, correr riscos, crescer com os eventuais erros e comemorar os acertos. Equipes que foram se reformulando e adaptando-se às realidades.
Ainda, apresentamos a vocês uma série de reportagens muito especiais. O egresso do curso Vinícius Coimbra nos apresenta uma bela história de amor contada de um jeito inusitado aos padrões atuais, em manuscritos guardados com carinho por uma senhora que hoje os relê e rememora os sentimentos que a fizeram colorir de tinta os papeis de carta. Depois, publicamos uma matéria que nos dá uma lição de vida. A história de uma jovem mãe que encara os desafios da pouca acessibilidade nas cidades que ainda desrespeitam as leis e os cidadãos é contada por Andrei Nardi e Cristian Mroginski.
E como equipe temos muito a comemorar. Em números, temos 568 jornalistas formados pela UPF que hoje contam histórias Brasil afora. No exterior, quiçá. A identidade do nosso curso foi moldada por essas centenas de profissionais que aqui deixaram suas marcas. E por isso, para marcar esses 20 anos, buscamos a identidade de quem ajudou a construir esse curso. Nossa contracapa estampa com orgu-
Um convite à leitura do clássico Hiroshima é o que Lucas França nos apresenta em seguida, inclusive com trechos do livro, para provocar ainda mais a sede de leitura em quem não conhece a obra. E nesse mesmo universo, nosso egresso Elvis Picolotto apresenta uma resenha do clássico a Sangue Frio, do Capote. É pra sentar e ler já! Aliás, leitura é o tema da matéria que o Daniel Rohrig traz pra nós, aler-
EXPEDIENTE A Revista Radar é uma publicação do curso de Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Passo Fundo e tem distribuição gratuita. Coordenadora do curso de Jornalismo Prof. Ma. Maria Joana Chaise Diretor da Faculdade de Artes e Comunicação Me. Cassiano Cavalheiro Del Ré
Produção de textos Estagiários do Núcleo Experimental de Jornalismo e estudantes do curso de Jornalismo da FAC/UPF Edição Prof. Me. Fábio Luis Rockenbach e Prof. Ma. Maria Joana Chaise Revisão de textos Núcleo Experimental de Jornalismo - UPF Projeto gráfico Prof. Me. Fábio Luis Rockenbach e Marcus Freitas Diagramação Marcell Marchioro
ENTRE EM CONTATO CONOSCO NEXJOR - AGECOM - Universidade de Passo Fundo - BR 285, Bairro São José - Central de Salas / Nexcom Prédio D1 - Passo Fundo/RS - CEP: 99052-900. Fones: (54) 3316 8489 / (54) 3316 8487 nexjor@upf.br - www.nexjor.com.br
tando que o índice de leitores diminuiu 9% em cinco anos no Brasil. Em seguida, a Maria Eduarda Ely aborda um tema bem bacana: o vegetarianismo, que é diferente de veganismo. Ela explica no texto, confere lá. Outra egressa nossa, a Julia Possa, faz o que jornalista adora na reportagem das páginas 20 e 21: ela escuta e conta histórias de pessoas que têm muito a nos ensinar. Histórias humanas tão ricas e fascinantes que poderiam ser a de muitos de nós. E histórias humanas também são a base do texto bem especial que está publicado a partir da página 24. Os muçulmanos que residem em Passo Fundo falam para nossos egressos do curso sobre seus hábitos distante de suas cidades de origem, sobre como se sentem discriminados e como fazem para manter os preceitos religiosos. Pra finalizar, temos as seções fixas da Radar: a página Imagens Precoces, que passa a ser fechada pelo Grupo de Estudos em Fotografia a partir desta edição; a seção Pratas da Casa, que apresenta dois egressos do curso; a agenda de eventos e cursos e a página sobre intercâmbio, nesta edição com uma reportagem que aborda quem vai e quem vem em busca de experiências. Então, espero que a experiência de leitura seja tão prazerosa pra vocês quanto foi para nós produzirmos. Boa leitura! Boa leitura! Maria Joana Chiodelli Chaise
Revista Radar
nº 02 – Outubro/2016
Universidade de Passo Fundo
Reitor: José Carlos Carles de Souza Vice-reitora de Graduação Rosani Sgari Vice-reitor de Pesquisa e PósGraduação Leonardo José Gil Barcellos Vice-reitora de Extensão e Assuntos Comunitários Bernadete Maria Dalmolin Vice-reitor Administrativo Agenor Dias Meira Júnior
Foto: Leandro Birgieir
Imagens precoces
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Natureza em movimento Foto: Gabriela Dutra
Foto: Eduardo Castro Bird set free Foto: Anderson Mignoni
Gato reflexivo Foto: Larissa Soares
Enchendo os olhos de campo Foto: Marcell Marchioro
O sorriso é o nosso cartão de visitas Foto: Giseli Biazus
Homens do Martelo Foto: Patrick Santin
A fibra no campo Foto: Patrick Santin
Nas sombras Foto: Maria Eduarda Ely Foto: Fernanda Algayer
A simplicidade de uma postura Foto: Ana Paula Ferri
Crepúsculo na Serra Gaúcha Foto: Alessandra Langaro
Foto: Giulia Porto
Olhar travesso Foto: Eugênio Siqueira
As imagens acima são resultado do concurso de fotografia promovido pelo Núcleo de Estudos em Fotografia, coordenado pelo prof. Me Cassiano Cavalheiro Del Ré.
Cachoeira Foto: Diego Consalter
Foto: Joana Schaeffer
Sinuosas curvas Foto: Monalise Canalle
FOTOGRAFIA
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Quer ter suas fotos publicadas na Radar? Participe do Núcleo, pois a página publicará em todas as edições materiais disponibilizados pelos participantes do grupo.
REPORTAGEM
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Casal trocou centenas de cartas antes de morarem juntos em Passo Fundo
VINICIUS COIMBRA
Egresso do curso de JORNALISMO
“Puxa vida, nem sei o que dizer-te, tamanha é a felicidade que sinto. Meu amor assume proporções indefinidas. Está tão grande, que não sei como irá acabar. Qualquer dia desses (parece que estou vendo), ao caminhar pela rua, ou trabalhando, eu vou estourar. Bummm. Lá se foi o Fábio. Como gostava da guria dele. É... são coisas que acontecem. Amava tanto que estourou.”
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ábio errou a previsão. Não chegou o momento em que estouraria de amor. Sorte de Neusa. O trecho da carta, amarelada pelos anos, não passou de um exagero. Um homem que estoura de amor porque ama tanto uma guria. Bummm. Uma ideia que não pertence aos nossos dias. Diz a data: 4 de setembro de 1969. O exagerado é Fábio Santos, o então jovem de 23 anos. A sortuda é Neusa Borges, de 21. A história dos dois não seria o motivo destas linhas não fossem as cartas guardadas por ela. E não teria metade do encanto caso ele não as tivesse escrito. Sarandi foi o lugar do primeiro encontro. - Não existia esse negócio de sair e namorar esse ou aquele. A gente flertava, como se dizia na época - relembra Neiva. E o baile era o lugar do flerte. Mas tudo comportado. Segundo ela, apenas
r o s m a a d O o p m e t no
s a t car
"olhadinhas" discretas a um pretendente. Nada mais. Fábio estava num desses bailes em Sarandi. Neusa o flertou. Foi o flerte definitivo. Era 1967. Fábio morava em Marau, Neusa em Sarandi. A distância de 77 km separava os namorados, que se viam a cada duas semanas. Como na década de 1960 a tecnologia que existe hoje não passava de aspiração, a alternativa era recorrer às cartas. E centenas delas testemunharam um ano de namoro à distância. O encontro do casal dependia da condição do tempo. Na época o trajeto entre as duas cidades só podia ser feito por estrada de chão. Hoje, a viagem é feita em menos de duas horas. Naquela época, se perdia uma tarde inteira. Caso viesse a chuva, a estrada se tornava intransitável e o encontro precisava ser adiado. Até para avisar a ausência era difícil. Como a telefonia também não ajudava, era cara e para poucos, o jeito era Fábio telegrafar à namorada: “Estarei ahi sábado tarde abraço – Fábio”, diz um telegrama de novembro de 1967. As cartas seguiam um padrão. Antes do texto, o local e a data. Depois, antes de qualquer frase, um singelo “Meu amor” ou um “Meu bem” encabeçava o que estava por vir. Então Fábio escrevia à tinta sobre o branco do papel as cartas que hoje relembram o namoro que virou casamento. E como escrevia. Fábio fazia literatura dos sentimentos. Com um português sem erros, preenchia as linhas com declarações e narrativas do dia a dia. As boas novas, as dificuldades, a saudade da amada. Mandava até partituras de músicas para a namorada, que então aprendia os primeiros acordes no
Não existia esse negócio de sair e namorar esse ou aquele. A gente flertava, como se dizia na época - Neusa Borges
violão. Neusa escrevia menos, o que foi motivo de queixa de Fábio: “Essa semana recebi uma só carta sua, no entanto já escrevi seis com esta”. Desabafou, revoltado. Mas quando escrevia, ela não deixava por menos: “Deitei com o pensamento voltado para ti. Sobressaltada, acordei-me às 5:05. Fui à janela e eu o vi. Você sabe conquistar. Hein!?”, conta Neusa, em 1968. Entre uma carta e outra, o relacionamento ficou sério. Do primeiro flerte ao casamento dois anos se passaram. Nesse período, o casal ficou oitos meses sem se falar. Depois, reconciliação, troca de alianças e a vida em Passo Fundo. E mais dois membros na família: um menino e uma menina. Fábio pediu Neuva em casamento pela segunda vez. Fez o pedido porque não recordava que a união entre os dois já durava 15 anos. Aos poucos, um aneurisma cerebral tirava a lembrança do homem. Ela aceitou o novo pedido. Depois do segundo sim, um acidente de carro tirou a vida do remetente das cartas. Ela ficou sozinha, com os dois filhos do casal. Mesmo com pretendentes, não os quis. Não teve outro depois de Fábio, assim como não teve outro antes. Aos 68 anos, Neiva vive com a filha num apartamento em Passo Fundo. Resiste àqueles que pedem para ler as cartas de Fábio. Guarda como segredo uma história que não se escreve mais. Porque é uma história de outros tempos. De uma época de flertes em bailes, telegramas, papel e caneta. De cartas escritas à mão. E de gente que temia, de repente, estourar de tanto amar uma guria. n
TECH NEWS
REPORTAGEM
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7 ÔÔ Instagram disponibiliza analytics para perfis empresariais Ficou melhor para o social media acompanhar o andamento das postagens no Instagram. A rede social vai liberar ferramentas para análise de engajamento até o final de 2016. No Brasil, já é possível conferir e aproveitar a novidade. Até o momento, de acordo com o site The Next Web, somente contas verificadas como empresariais poderão usar as ferramentas. Muito similar com o visual e com as funcionalidades do Facebook Pages, ela basicamente se divide em “insights” e “promote”. A primeira mostra o desempenho das postagens ao longo dia, enquanto que a segunda permite selecionar o público ou deixar o trabalho para o Instagram fazer isso automaticamente.
Dica de ferramenta ÔÔ Hootsuite Uma grande ajuda para aumentar a produtividade nas redes sociais é o Hootsuite, ferramenta de marketing digital com foco na gestão de mídias sociais. A possibilidade de agendar posts, monitoramento por termos e perfis, poder centralizar a gestão de várias páginas e/ou perfis em um único local e o
fornecimento de relatórios detalhando o desempenho são algumas de suas vantagens. Como a maioria dos aplicativos e plataformas voltadas para a comunicação, ele possui três tipos de planos: Grátis, Pro e Bussiness. Basicamente, o que diferencia os planos é a quantidade de perfis e o acesso de outros membros. Ficou a fim de experimentar o Hootsuite? Então acesse https://hootsuite. com/pt e bom monitoramento nas redes!
LIVRO DA CANNON SOBRE FOTOGRAFIA ÔÔ 30 livros de comunicação para download grátis Livros de comunicação estão disponíveis para download grátis no site da Universia. A iniciativa é da Universidade da Beira, de Portugal. Entre os títulos, muitos tratam de produção de notícias, convergência de mídias, radiojornalismo, marketing, entre outros. Entre os títulos estão Vitrine e vidraça: crítica de mídia e qualidade no jornalismo, Redefinindo os gêneros jornalísticos, Jornalismo e convergência, e Jornalismo digital de terceira geração. O conteúdo pode ser acessado neste link http://livros.universia.com.br/
GRÁTIS PARA DOWNLOAD Sempre é uma boa ideia aumentar os conhecimentos sobre fotografia, não? Se você concorda, temos uma boa notícia. A Canon, através de seu programa educacional, o Canon College, lançou gratuitamente o livro “Técnicas de Aprimoramento para iniciantes”. Com uma visão didática dos principais elementos da fotografia, a obra aborda desde cuidados básicos com o equipamento e sua manutenção até tópicos mais técnicos, como composição e enquadramento. Você pode baixá-lo em http://nossapesquisa.com.br/canon_livro/
ESPECIAL
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Duas décadas de renovações
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Curso de Jornalismo da UPF comemora 20 anos de formação de profissionais e atinge marca de 568 egressos CLAUDIA DALMUTH LARISSA PALUDO
Acadêmicas do curso de JORNALISMO
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aroma que subia do café recém-feito se misturava ao barulho emitido por máquinas de escrever ou os ‘modernos’ computadores, em uma escrita frenética e cuidadosa para que não houvesse erros, além da correria dos fotógrafos, que precisavam dispor de muita precisão para não gastar poses em excesso e depois revelar o filme. A tecnologia era analógica. A cena remete aos filmes hollywoodianos, mas o período relatado acima era a década de 90, na região do Planalto Médio. O glamour envolto à profissão de jornalismo só não era composto, na maioria das vezes, pela formação acadêmica. Em 1996, quando o curso de Jornalismo foi implantado na Universidade de Passo Fundo (UPF), ainda sob o título de Comunicação Social: Habilitação em Jornalismo, o cenário jornalístico no norte do Estado dava os primeiros passos rumo ao desenvolvimento. É unanimidade que, antes disso, os veículos de comunicação careciam de uma visão especializada, preparada academica-
mente para exercer a função, com bons conceitos de ética e profissionalismo. As demais faculdades da região não ofertavam o curso e egressos de instituições situadas em capitais raramente demonstravam interesse em trabalhar numa região composta por cidades pequenas marcadas pela agricultura, em que a profissão custava a ser valorizada. A atual editora-chefe do jornal O Nacional, Zulmara Colussi, já trabalhava na área antes de o curso ser implantado na UPF. Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de Passo Fundo e lembra que a entidade lutou pela instalação da graduação. A jornalista mudou-se para Porto Alegre para trabalhar no jornal Correio do Povo um ano antes do curso entrar em vigência, mas nessa fase já estava tudo encaminhado. Desde 1994 o projeto já vinha tomando forma. Após aprovação do vice -reitor de graduação à época, Lorivan Figueiredo, foi formada uma equipe de trabalho e implementados os cursos de comunicação na UPF. O primeiro currículo do curso, muito voltado para o jornalismo impresso, foi elaborado pelos professores Sônia Bertol – que trabalhava na assessoria de imprensa da Universidade à época –, Benami Bacaltchuk e Maria Goretti Bettencourt, além
de alguns professores externos, como o renomado professor José Marques de Melo. As dificuldades para implementação do curso vieram de todos os lados. De um lado faltava infraestrutura como estúdios, laboratórios de televisão e vídeo, rádio e fotografia, além do acervo bibliográfico que precisava ser adquirido. Por outro lado, os profissionais, muitas vezes sem formação acadêmica, já colocados no mercado regional, apresentaram uma resistência grande ao novo curso. “Eles tinham medo de ser desbancados pelos novos profissionais que vinham chegando com a formação acadêmica. Fomos alvo de muitas críticas em rádios, mas com o tempo a gente conseguiu mostrar que estava mais do que na hora de a UPF oferecer também esse curso profissional pela importância regional que existe”, relembra a professora Sônia. Em 1999 formou-se a primeira turma passo-fundense de jornalistas, que aos poucos começou a conquistar espaço e expandir o conceito de comunicação, transformando os veículos de dentro para fora. Em redações nas quais antes atuavam profissionais das mais diversas áreas, passaram a marcar presença os estudantes de jornalismo, que trou-
É claro que eu ainda não estava pronto. E até hoje não estou, afinal estamos sempre aprendendo. Mas conseguir aliar a teoria e a prática foi fundamental - Lucas Cardoso
Foto: Arquivo UPF
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xeram consigo um novo gás, conceitos éticos e uma visão de mundo global e agregadora. Para aqueles jovens, ainda cheios de desejos e anseios, querendo realizar grandes feitos, com espíritos impregnados de esperança, de fazer um jornalismo humanizado, que refletisse as pessoas e deixasse um legado, o curso foi uma vitória e a concretização de um sonho. “Acho que o maior benefício do curso de Jornalismo da UPF, mais do que ensinar técnicas, é e foi ensinar a pensar, a ter uma consciência crítica”, diz a egressa da primeira turma, Camila Knack. Hoje, Camila é jornalista em uma rádio, mas teve a oportunidade de passar por diversos veículos nestes 17 anos de formação, convivendo com muitos jornalistas recém-formados. Ela conta que a motivação, estampada na vontade de fazer mais, continua presente no espírito daqueles que acabaram de conquistar o diploma. No início, algumas dificuldades surgiram, como o não pagamento de pisos, horas extras e folgas e a inevitável espécie de rivalidade entre funcionários antigos e jornalistas recém-formados. A experiência versus a formação acadêmica. No entanto, aos poucos e dentro de suas próprias limitações, as empresas começaram a ampliaram os quadros de profissionais, apostando naqueles formados no município, o que contribuiu para uma renovação no jeito de fazer jornalismo, muito mais jovem e moderno. Alguns dos egressos se tornaram jornalistas reconhecidos, alguns apostaram no empreendedorismo e outros mostraram para os empresários a necessidade de trabalhar a comunicação, contribuindo para a renovação das figuras dos assessores de comunicação. Inclusive, novas iniciativas foram trazidas para Passo Fundo, como por exem-
Prof. João Carlos Tibursky, um dos precursores do curso e entusiasta de publicações como os Cadernos de Artes e Comunicação, o PraL/Zer e o Crônicas Faquianas
plo o projeto Caras Novas, da RBS, que antes não tinha etapas realizadas na cidade. “Desde que surgiu a FAC, passouse a pensar esse fazer do comunicador de uma maneira mais conectada com o avanço e as transformações do processo comunicativo, justamente numa fase em que as novas mídias surgiram e as mudanças se aceleraram”, declara o repórter de rede da Band em Salvador, Cristiano Gobbi, também formado em 1999. A grande maioria dos formandos, assim como Camila e Cristiano, obteve uma boa colocação no mercado, muitos se fixando em veículos estaduais e nacionais, alguns até mesmo se arriscando fora do país. Graças à boa formação acadêmica proporcionada pela instituição, apesar das incertezas burocráticas naturais para um curso que estava iniciando, todos aqueles que desejavam se arriscar em diferentes meios de comunicação foram bem-sucedidos. Lucas Scherer Cardoso foi um dos colegas de Camila e, como muitos daquela turma, teve o prazer de ver as portas começarem a se abrir para os jovens
A prática de contextualizar assuntos e discussões em eventos acadêmicos acompanhou o curso ao longo dos 20 anos. À esquerda, o primeiro Making Of, em 2005, e à direita uma aula inaugural do semestre
Em 2007, a UPF foi sede do Intercom Sul, um dos principais eventos de comunicação da região Sul. O prof. Cesar Augusto Azevedo dos Santos (ao centro, ao lado da prof. Bibiana Friderichs) foi o responsável por trazer o evento à UPF. O prof. Benami Bacaltchuk foi o coordenador do Intercom Sul à época
jornalistas. Lucas teve a oportunidade de começar profissionalmente em uma época em que havia uma demanda reprimida por jornalistas na cidade. No final de maio de 1996, com apenas dois meses de faculdade, já estreou profissionalmente. “É claro que eu ainda não estava pronto. E até hoje não estou, afinal estamos sempre aprendendo. Mas conseguir aliar a teoria e a prática foi fundamental”, conta com carinho. Assim, seu nascimento foi no jornal O Nacional, um dos jornais mais antigos de Passo Fundo. Lá, Lucas passou por todas as editorias e enfrentou desde o início uma demanda multifacetada, que exigia um profissional com habilidades de escrita, foto e diagramação. Para quem não possuía uma bagagem e suporte acadêmico, tais exigências poderiam ser sinônimo de dificuldade, mas não para ele. Em 2000, passou a trabalhar para a RBS TV Passo Fundo, depois de ser selecionado no projeto Caras Novas, onde ficou até março de 2003. Após esse período, Lucas teve outra oportunidade. Dessa vez, iria cursar
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ESPECIAL
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Da fusão da Agexjor e da Agexrtv surgiu, em 2010, o Nexjor – Núcleo Experimental de Jornalismo, um espaço de flexibilização curricular e de apoio às diversas iniciativas e projetos do curso de Jornalismo
mestrado em Jornalismo em Buenos Aires, com área de concentração em jornalismo impresso, sua primeira paixão. O curso funcionava numa parceria entre a Universidad Torcuato Di Tella e o jornal La Nación. Assim, no dia 1º de abril de 2003, o jovem jornalista encarava a saída para um país estranho, propondo-se a viver em uma pensão com outras oito pessoas e dividindo o quarto com três desconhecidos. Logo após concluir o curso na Argentina, Lucas retornou à Passo Fundo, ainda que nesse meio tempo tenha começado a trabalhar como produtor, tradutor e roteirista para o Disney Channel, funções que exerceu à distância por quase 10 anos. Agora, desde 2011, Lucas é analista da área de comunicação da Embrapa Suínos e Aves, em Concórdia, Santa Catarina. Embora muitas coisas continuem praticamente as mesmas, como a oportunidade de experiências profissionais vivenciadas nos mais diferentes cantos do país, em dezenas de plataformas, tanto dos 28 egressos da primeira turma como daqueles formados recentemente, outras tantas se modificaram. Entre elas, o currículo. ÔÔ As mudanças Em 2004, oito anos depois do primeiro currículo, houve uma série de mudanças de mercado e os professores passaram a perceber que a inserção de alunos formados em Radialismo era
muito mais ampla do que a de alunos formados em Jornalismo. Professora do curso de Jornalismo à época, Bibiana Friedrichs conta que a partir daí houve o entendimento de que não existe a televisão, o rádio ou o impresso. “O que existe é o jornalismo feito em diferentes linguagens. Essa mudança de conhecimento e especificação do campo do jornalismo e a questão mercadológica fez com que houvesse a primeira reforma curricular”. A primeira mudança no currículo
A grade curricular do curso é formada por aproximadamente 50% de disciplinas práticas. Para que os alunos vivenciem a prática profissional durante a graduação, há uma ampla estrutura laboratorial disponível para o ensino, a pesquisa e a extensão Foto: Arquivo UPF
visava fortalecer as perspectivas do campo comunicacional, que haviam se modificado, e dar vasão para a demanda de mercado, fundindo os cursos de Jornalismo e Radialismo. Zulmara, que fez o movimento inverso, ou seja, foi do mercado de trabalho para as salas de aula, se agregou à nova grade curricular. Ela, que considera a formação fundamental, teria feito parte da primeira turma se estivesse em Passo Fundo. Após passar oito anos na capital, voltou com o propósito de se
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formar em Jornalismo. Assim, em 2003 prestou vestibular e ingressou na turma de 2004. “Eu sempre achei que o curso superior, e acho até hoje, é essencial para qualquer profissão. Mesmo entendendo que jornalista nasce jornalista. Ele não é feito em faculdade nenhuma. Ou você nasce com o dom de ser jornalista ou não vai ter formação que te faça jornalista. Mas a formação é extremamente importante para te lapidar, para te qualificar, para ti enfrentar o mercado de trabalho bem. Porque ali dentro tu vais ter todos os conceitos necessários para a comunicação, tu vais ter todo o aspecto histórico que tu precisas, pois o maior patrimônio de um jornalista é a memória e a credibilidade”, argumenta. Após três anos do ingresso da jornalista na universidade, os professores do colegiado precisaram pensar em uma segunda reforma. Em 2007, diversos fatores entraram em cena para causar turbulência e dúvidas quanto à estrutura curricular: a queda da obrigatoriedade do diploma; uma crise econômica regional muito grande, em função de um ano agrícola desfavorável; uma perspectiva de mercado de alunos que cursavam Jornalismo por já trabalharem e estarem buscando o diploma, não alunos recém-saídos do Ensino Médio; um movimento institucional que impunha disciplinas obrigatórias, como Sociologia, Iniciação ao Conhecimento Acadêmico, Leitura e Produção de Textos e Ética. Estes quatro fatores – questão do mercado, queda do diploma, crise econômica e o movimento institucional – tencionaram o colegiado a fazer uma nova reforma curricular. Nesta reforma, concretizada em 2008, o curso de quatro anos foi reduzido para três anos e meio. “Hoje
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Neste ano um grupo de alunos do Jornalismo UPF teve a oportunidade de participar do Projeto Rondon, uma iniciativa do Ministério da Defesa. Eles foram os responsáveis por toda a comunicação da Operação Forte dos Reis Magos, no Rio Grande do Norte
entendemos que foi reduzido equivocadamente. A gente criou um curso tecnicista, porque para fazer essa redução do número de créditos tiramos disciplinas de humanas e privilegiamos disciplinas práticas. Era um currículo mais prático do que reflexivo, de formação intelectual. Isso deu origem a um tipo de profissional, que era o que o mercado precisava, mas talvez não fosse a melhor opção”, explica Bibiana. A partir da percepção da lacuna intelectual e reflexiva, a coordenação do curso teve esforços maiores com palestras e discussões. E, ao mesmo tempo em que se via uma necessidade
Eu sempre achei que o curso superior, e acho até hoje, é essencial para qualquer profissão. Mesmo entendendo que jornalista nasce jornalista. Ele não é feito em faculdade nenhuma. - Zulmara Colussi
de reformular o currículo no Planalto Médio, uma nova discussão em âmbito nacional ocorreu, fruto de uma renovação necessária. A reforma de 2008 abrangeu as necessidades regionais, mas não encobriu a discussão nacional, que ainda não estava madura, de repensar todo o campo do jornalismo e da comunicação no Brasil. Discussão iniciada em 2006, mas que só ganhou forma em 2012. Bibiana conta que quando as escolas de comunicação começaram a se popularizar e se estabelecer, o Brasil vivia um cenário marcado pela ditadura por toda América Latina e a Unesco, con-
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siderando o nível de desenvolvimento intelectual da população brasileira, entendia que os profissionais da comunicação não precisavam ser específicos da publicidade ou do jornalismo. Eles entendiam que era necessário formar comunicadores, muito na perspectiva da educação, ou seja, de um profissional que levasse uma informação educativa para a população. Um profissional que pudesse atuar em diversas áreas. Havia um descompasso entre a perspectiva teórica e a prática dos currículos, que causava uma série de conflitos e de lacunas na formação do jornalista. Desse momento da história até 2006, o amadurecimento do campo teórico nos cursos de Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas criou a necessidade e a relevância de pensar teórica e especificamente o Jornalismo. Foi preciso percorrer este longo caminho para chegar a tal amadurecimento, havendo nos últimos anos a intensificação das pesquisas e teorias na área jornalística. “Quando se instituiu isso, chegou a hora de serem introduzidas novas diretrizes. A reforma vem quando esse conhecimento que estava sendo construído de alguma maneira se consolida”. ÔÔ Currículo NOVO Da reforma de 2008, logo em 2012 já se percebeu a necessidade de uma nova mudança. Porém, os professores optaram por esperar pelas novas diretrizes do Ministério da Educação (MEC). Assim, em 2014, devido a demanda imposta pelas novas diretrizes curriculares dos cursos de Jornalismo estabelecidas pelo governo, que obrigou todos os cursos a se adequarem, mais as lacunas deixadas pelas reformas anteriores, o colegiado do curso passou a se reunir para definição da grade, eixos e tempo de duração do curso, escolha das disciplinas eletivas, elaboração dos regulamentos de TCC e estágio, redação das ementas, definição de pré-requisitos e escolha das bibliografias. O trabalho inteiro consumiu mais de um ano, de acordo com Fábio Rockenbach, um dos integrantes da comissão. O currículo novo entrou em vigência no segundo semestre de 2015. De acordo com a atual coordenadora do curso, Maria Joana Chaise, o foco da reforma foi ampliar o estudo das especificidades do Jornalismo. “O jornalismo é uma profissão reconhecida e regulamentada no mundo inteiro. A comunicação social não é profissão, mas sim um campo que reúne diversas áreas. Por isso, o processo de reformulação ampliou o campo do jornalismo no currículo, não se esque-
Ficamos felizes em poder comemorar os 20 anos do curso exatamente quando implementamos um novo currículo, que entendemos muito mais focado a oferecer os subsídios teóricos e práticos para uma atuação profissional capaz de promover a formação acadêmica generalista, mas também humanista, crítica, ética e reflexiva. Dessa forma, entendemos que a reforma repercute o resultado de uma maturidade teórica e de um reconhecimento social do campo do jornalismo. Maria Joana Chaise, atual coordenadora do curso
Hoje, olhando para trás, a gente percebe o quanto esse mercado se qualificou. Temos alunos nossos bem colocados em universidades e veículos de comunicação tanto da região quanto do estado. Vemos o quanto movimentou o mercado e o qualificou. Talvez não na velocidade que a gente gostaria que as coisas se transformassem, mas houve essa evolução na qualificação do mercado, com certeza. Sônia Bertol, uma das professoras pioneiras do curso
Os cursos de comunicação para a região, acredito, promoveram uma modificação bastante profunda em nossa região. Em 20 anos, a gente conseguiu entregar ao mercado de trabalho não só bons profissionais, mas ganhadores de prêmios tecnicamente bem preparados, também comunicadores capazes de gerar mudanças sociais que a gente tanto quer. Então se você pensar em veículos de comunicação de 20 anos atrás e pensas nos veículos de comunicação de hoje, o perfil do veículo muda radicalmente com esse profissionalismo, com esse exercício de cidadania, com esse exercício crítico dentro do veículo. Então, eu acredito que a comunidade regional de toda área de abrangência da UPF ganha com a formação e com a qualificação do seu quadro de funcionários. Cassiano Cavalheiro Del Ré, diretor da Faculdade de Artes e Comunicação (FAC)
Foto: Arquivo UPF
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Antes do curso de jornalismo a gente tinha ou os profissionais que eram formados fora daqui, que vinham para cá e normalmente não ficavam, ou os profissionais que vinham de outras áreas para ser jornalista. Então não se tinha a aplicação da técnica de jornalismo, era só mesmo o profissional que vinha por vocação para trabalhar nos veículos de comunicação. Ganhamos muita qualidade técnica depois do curso de jornalismo, com certeza. Zulmara Colussi, editora-chefe de O Nacional
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ÔÔ Indissociabilidade do ensino da pesquisa e da extensão
Desde 2013, o curso de Jornalismo também organiza o FAC Cine Fórum, uma atividade que agrega todos os cursos da FAC em torno de debates multidisciplinares, ancorados por produções cinematográficas Foto: Arquivo UPF
cendo da comunicação, que era o foco anterior”, pontua. Thaise Ribeiro descobriu a paixão pelo jornalismo no ensino médio, quando surgiu a oportunidade de trabalhar em uma rádio comunitária da sua cidade, em Caseiros. O amor pelo rádio foi à primeira transmissão. Atual aluna do Jornalismo UPF, Thaise, que está no segundo nível, tem afeto pelo currículo novo do curso. “A partir de um momento comecei a perceber que a teoria é toda pensada para completar
a prática mais tarde. Posso dar como exemplo a disciplina Seminário de Leitura que agora lemos vários livros literários para mais tarde ter mais facilidade em escrever reportagens”, observa. Duas décadas, 568 jornalistas formados, três reformas curriculares. As tecnologias avançam, as linguagens e as concepções acadêmicas envoltas no campo se renovam, o café a ser passado continua sendo um dos melhores amigos, mas o que não muda é a essência do jornalismo: contar histórias.
Desde 2015 o novo currículo atende à uma orientação do MEC de ampliar a formação no chamado “campo duro” do jornalismo. Para isso, o curso passou a ter maior duração (4 anos e meio) e a dedicar mais disciplinas – tanto teóricas quanto práticas - à formação dos profissionais, que também devem fazer estágio como etapa obrigatória
Thaise participou, durante um semestre, do projeto de extensão chamado Observatório de Meios. O projeto tem como objetivo analisar jornais impressos de Passo Fundo e pensar como determinados temas são abordados, levando em conta valores-notícia, analisando fontes, deslocamento dos repórteres, termos pejorativos, entre outros elementos, e, depois disso, promovendo oficinas de discussão com os públicos envolvidos. “Posso dizer que, o que aprendi sobre impressos até hoje, foi em consequência do projeto de extensão”, analisa. Esse é um dos objetivos dos projetos de extensão, de acordo com a professora Bibiana. Conseguir combinar a natureza extensionista do jornalista com os processos de ensino e com a pesquisa. As três coisas têm de acontecer de maneira simultânea, mas o processo não é tão simples. “Viemos de um mundo em que as coisas são engavetadas: isso é pesquisa,,isso é trabalhar com a comunidade e isso é ensinar jornalismo. Mas o processo aprender/ensinar exige mais de gente, exige que consigamos criar projetos integrados, onde o fazer e o pensar estejam articulados e sejam simultâneos. Uma tendência neste sentido é a curricularização da extensão, avalia. Trata-se da necessidade do Ensino Superior conseguir construir um processo onde todos os alunos, e não apenas aqueles que disponham de tempo extracurricular, tenham contato com os problemas reais da sociedade no qual estão imersos e do campo onde atuaram. Todo aluno de jornalismo, em seu currículo, tem de fazer atividades de extensão. Bibiana lembra que: “todos os alunos devem ter essa experiência, algo que os fortalecerá não apenas como profissionais, mas sobretudo, como cidadãos. Fazer extensão é permitir ao aluno ser sensivelmente tocado e refletir sobre o mundo no qual vive, condição sine qua non para qualquer jornalista ocupar seu papel social. Assim, por um lado, é muito fácil fazer extensão no jornalismo, pois ouvir, conversar e aprender com a comunidade é parte do trabalho de qualquer jornalista, por outro lado, a complexidade do que significa fazer extensão torna isso um trabalho muito árduo, constante, permanente, intenso. E o curso de jornalismo vem fazendo isso de uma maneira muito significativa. Existem inúmeros projetos de extensão que conseguem construir interface com a pesquisa e com a sala de aula”, conclui. Esta exigência de um trabalho acadêmico focado no exercício da competência e do diálogo qualificado com a sociedade, por meio de uma formação acadêmica
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ESPECIAL
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integrando ensino, pesquisa e extensão, é notável na articulação curricular, cujo diálogo acolhe o eixo científico básico, ligado às especificidades da área do conhecimento. Por isso, todas as disciplinas práticas do currículo indiciam interfaces entre o ensino e a extensão, propondo que o acadêmico vá a campo. Mas esse processo de indissociabilidade não se atém tão somente ao ambiente interno, na sala de aula. Ele se expande também em ações extensionistas, como as realizadas pelos projetos Boas Práticas (ligado ao Centro de Ciência e Tecnologia Ambiental), Audioteca, ComSaúde (ligado à Faculdade de Medicina), Momento Patrimônio, Projeto Educação e Cidadania, Observatório de Meios, Movimentos Sociais: Desafio das Relações Étnico-Raciais e Ponto de Cinema. Os projetos de extensão, além de evidenciarem o entendimento do curso quanto ao compromisso social que tem com a comunidade, também são uma forma de qualificar o processo de ensino dos acadêmicos de Jornalismo, uma vez que a dinâmica os coloca frente às problemáticas reais e que, possivelmente, serão encontradas no dia-a-dia profissional. E, mais do que isso, permite antecipá-las e propor, diante delas, o exercício da reflexão sistematizada e orientada, a pesquisa, que tem como objetivo entender tais questões de modo a potencializar os meios para transformar os espaços sociais, midiáticos e, particularmente, as práticas jornalísticas com as quais esses alunos estão imbricados. A atual coordenadora do curso, Maria Joana Chaise, diz que o compromisso da UPF diante da formação de profissionais jornalistas é enorme. “Entendemos que só a transmissão oral de conhecimento
já não dá conta de repassar o conteúdo relevante. E, portanto, entendemos que fomentar as experiências, as análises e os próprios experimentos é uma alternativa interessante. Para isso a pesquisa científica desempenha um papel extremamente relevante, porque coloca o acadêmico diante de um problema e fomenta que ele seja capaz de buscar conhecimentos que resolvam a situação, ou seja, faz com que o aluno saiba utilizar o conhecimento acumulado numa situação da prática cotidiana. Essa formação para a autonomia talvez seja um dos principais ingredientes da formação acadêmica”, avalia. O curso mantém projetos de pesquisa que abrangem a comunicação pública; os hábitos midiáticos em Passo Fundo e região; pesquisa em leitura e interpretação de imagens; a relação entre linguagem, poder e jornalismo; e a abordagem da gravidez na adolescência na mídia impressa – comparando-se a mídia local, estadual e nacional. Além disso, o curso de Jornalismo mantém o Núcleo Experimental de Jornalismo, um laboratório que funciona como espaço extracurricular, que produz conteúdo jornalístico e que permanentemente associa a prática profissional com a reflexão teórica e social. O propósito é que, em sua trajetória acadêmica, o discente estude e vivencie elementos conceituais e práticos, necessários à compreensão contextualizada da natureza dos fenômenos e processos do fazer jornalístico. Este espaço, resultante das duas vertentes – extensão e pesquisa – lapida diversos alunos, lançando-os ao mercado de trabalho como profissionais bem preparados. Não apenas isso, oportuniza a conquista de prêmios pelo trabalho desenvolvido (veja ao lado). n
Prêmios Nexjor Entre os principais prêmios, estão: Evento: Prêmio Unirádio FM Cultura 2008 Premiação: 2o lugar Categoria: Rádio/TV, sub-categoria Reportagem. Produto: reportagem em série sobre a marca de refrigerantes “Coca-cola” Evento: Expocom / Intercom 2006 Premiação: 3o lugar Categoria: Rádio/TV, sub-categoria Webrádio. Produto: Conta-gotas (www.conta-gotas.podomatic.com) Evento: Prêmio Unirádio FM CULTURA 2006 Premiação: Destaque radiofônico Produto: adaptação em áudio do texto “A aliança” de Luiz Fernando Veríssimo. Evento: Expocom / Intercom 2005 Premiação: 1o lugar Categoria: Rádio/TV, sub-categoria Agência Jr. Experimental. Produto: Portifólio *** Evento: Prêmio Unirádio FM CULTURA 2005 Premiação: 1o lugar Categoria: Reportagem Produto: série de reportagens, sobre Internet, divididas em capítulos. Título: Navegando nas ondas da web Evento: Prêmio Unirádio FM CULTURA 2005 Premiação: 1o lugar Categoria: Rádio ficção Produto: adaptação da fábula “O cágado e a festa no céu”. Evento: Prêmio Unirádio FM CULTURA 2005 Premiação: Destaque radiof6onico Produto: reportagem em série sobre a cultura gaúcha. Evento: 24º Set Universitário PUCRS – 2011 Premiação: melhor weblog de jornalismo online Produto: portal Nexjor Evento: 27º Set Universitário PUCRS – 2014 Premiação: melhor reportagem digital Produto: especial sobre os 50 anos da ditadura militar Só neste ano, foram três prêmios no SET Universitário, na PUC de Porto Alegre. São eles: Categoria Audiovisual Institucional e Organizacional: Cleide de Oliveira, Daniele Becker Teixeira, Alison Favaretto Costela e Bruna Foking com o trabalho “ONG Mi Au Juda”. Conteúdo em Comunicação Institucional e Organizacional – Digital: Andrei da Silveira Nardi (do Nexjor) com a campanha “Luíza e sua turma te ajudam nesse Vestibular de Inverno da UPF”.
Desde 2011 o Nexjor é responsável por atender as demandas da comunicação institucional nas redes sociais e à produção de materiais multimídia. Os alunos atuam com suporte de profissionais e supervisão de professores Foto: Arquivo UPF
Reportagem Digital: Caroline Maria Beccari (do Nexjor) com a reportagem “Nuova Vita: Especial sobre a imigração italiana”. Confira: https://nexjor.atavist. com/nuovavita
Uma aula sobre como lidar com o PRECONCEITO
Daiane Carraro nos dá uma lição de vida ao relatar como encara seu cotidiano de forma positiva, mesmo encarando inúmeras dificuldades ANDREI NARDI CRISTIAN MROGINSKI
Acadêmicos do curso de Jornalismo
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dia 30 de abril foi especial para Daiane Carraro. Ela completou 34 anos. Foram 34 verões, primaveras, invernos, outonos. Mas em nenhum deles Daiane pode colocar os pés na grama e sentir a liberdade. Em nenhum deles Daiane pode brincar de pega-pega com suas amigas. Não pode, também, brincar de esconde -esconde com sua filha. Atividades rotineiras são experiências diferentes para Daiane. Mas ela não reclama. As pessoas olham para Daiane de um jeito diferente, como uma incapaz. Mas ela se adapta. Em momento algum se ouve as palavras “eu não posso” da boca de Daiane. Moradora da cidade de Erechim, Daiane diz que a cidade não se adaptou como devia a pessoas na mesma condição da
dela. Ela teve que se adaptar à cidade. Não é um problema só da cidade do Alto Uruguai gaúcho, é um problema de todo o Brasil. Daiane nunca andou. Ela nasceu sem o movimento das pernas. Mas Daiane não reclama. Em um país onde 6,2% da população têm algum tipo de deficiência e a acessibilidade é “um corpo estranho”, pessoas como Daiane se veem abandonadas. Em um país onde apenas 4,7% das ruas têm rampas de acesso à calçada, se nota a indiferença de instituições e mesmo autoridades em fazer com que essa realidade mude. Daiane é uma pessoa segura de si. Daiane nos passa uma mensagem de esperança, de conforto e de que é preciso ser menos autocrítico. “Não é preciso ter vergonha de sua condição, pois o preconceito é você quem faz primeiro consigo mesmo”, avalia. O maior desejo de Daiane? Que a ci-
Não é preciso ter vergonha de sua condição, pois o preconceito é você quem faz primeiro consigo mesmo - Daiana Carraro
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dade, que o estado e o país se adaptem à realidade das pessoas com deficiência. E que as pessoas se adaptem às diversas realidades e aceitem que uma pessoa com deficiência não é um ser incapaz. Com sua doença, ter filhos era quase um sonho impossível de ser realizado. Muito por conta do preconceito enjaulado em sua própria família. Seu pai, sua mãe, amigos e vizinhos tinham medo da criança também nascer com problemas. Mas Daiane é forte e com sua persistência e confiança levou a sua gravidez adiante. Nasceu a pequena Natália. Natália é seu pilar, sua amiga, companheira, sua filha. Sempre ao lado da mãe, a pequena Nati tem orgulho da mãe cadeirante. Natália vai à escola todos os dias. E todos os dias, às 17h30min, Daiane está na porta da escola pronta para levar a filha para casa. Porém, consegue chegar apenas ao pátio da escola. As escadas e a falta de rampas impedem o acesso ao restante do prédio. Reuniões, apresentações de sua filha e outros momentos são impossibilitados. Nem a sala de sua filha ela conhece. Daiane revela que levou uma infância “como a das outras crianças”. Brincou, estudou, aprendeu que no mundo ninguém é igual a ninguém, que as diferenças é que fazem o mundo ser como é, e aprendeu, acima de tudo, a lidar com a deficiência. A lidar com as pessoas olhando-a diferente. “Hoje em dia eu não sofro preconceito porque eu não deixo. Eu faço as pessoas me respeitarem”, conta a mulher que, em sua juventude, já foi, sim, vítima de bullying. Mas Daiane não reclama. A maior dificuldade é a de locomoção. Ir até o mercado mais próximo se torna cansativo, pois as calçadas são irregulares. Se torna cansativo porque não há rampas para acessar a calçada. E quando o destino é mais longe? Aí é cansaço em dobro, em triplo. Os motoristas, conta Daiane, não compreendem a necessidade que ela tem. Não entendem que sua cadeira não pesa uma tonelada e pode ser transportada sem problema nenhum. Disso Daiane reclama, pois é algo que não depende dela. Para o dicionário Michaelis deficiência é: 1 – Falta, lacuna. 2 – Imperfeição, insuficiência. 3 – Mutação cromossômica que consiste na perda de um pedaço de cromossomo. Para Daiane, é a sua realidade. Para todo mundo, deveria ser algo normal. n
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JORNALISMO
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Hiroshima: A reportagem do século XX John Hersey precisou de 31.347 palavras para explicar como uma única explosão matou mais de 100 mil pessoas
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Fotos: Lucas de Costa França
LUCAS DE COSTA FRANÇA
Acadêmico do curso de JORNALISMO
C
onsiderada como uma espécie de Cidadão Kane do jornalismo mundial, “Hiroshima”, do jornalista e escritor John Hersey, é um completo relato de seis sobreviventes do ataque americano à cidade de Hiroshima no dia seis de agosto do ano de 1945. Naquela manhã, precisamente às 08h15min, horário local, a bomba Little Boy foi lançada em direção à cidade, explodindo a cerca de 500m do chão e causando a morte de mais de 140 mil pessoas imediatamente. Os efeitos foram devastadores. Edifícios, árvores e casas vieram abaixo, e por toda a cidade se encontravam corpos mutilados dos poucos sobreviventes ao caos gerado pela bomba. Um ano após o ataque, Hersey se instalou na cidade e entrevistou os sobreviventes, captando relatos detalhados que foram publicados pela revista americana “The New Yorker”- umas das
“Ele soube conduzir o livro de forma que te faz ficar presa à leitura, até que o livro chegue a sua última página” - Aline Koproski
mais importantes de jornalismo literário do mundo. No mesmo ano os relatos foram editados e publicados em livro. Nenhuma outra reportagem na história do jornalismo teve tanta repercussão como Hiroshima. Foram impressos cerca de 300 mil exemplares que se esgotaram rapidamente nas bancas. De todo o mundo surgiam pedidos de autorização para a reimpressão da matéria. A rádio ABC e a BBC, de Londres, colocaram atores no ar lendo a reportagem para seus ouvintes e o físico Albert Einstein enviou um pedido de compra de mil exemplares, mas não pôde ser atendido. Os seis sobreviventes, ou “Hibakusha” como eram chamados pelas outras pessoas, que são literalmente "pessoas afetadas pela explosão”, relataram ao jornalista que tinham a sensação de culpa por serem das poucas pessoas a sobreviverem, chegando a pedir desculpas por terem sobrevivido, diante do numeroso índice de mortos espalhados por toda parte. Quarenta anos depois, Hersey continua sua história em uma Hiroshima reconstruída, detalhando como estavam
os hibakusha e como suas vidas foram afetadas. A reportagem foi novamente transformada em livro, contando tudo o que os seis sobreviventes passaram e as consequências que os afetaram mesmo passados tantos anos. Quem lê o livro tem uma sensação diferente e uma opinião sobre cada um deles. Para o acadêmico do curso de Jornalismo, Igor Gava, o livro Hiroshima foi o mais impactante que ele já leu. “A construção do texto nos prende, nos envolve de tal forma que nos faz sentir como se estivéssemos lá, vivenciando a tristeza, a tragédia e sofrendo junto com os personagens”. Hiroshima foi a primeira obra que os alunos do novo currículo do curso tiveram contato na matéria de Seminário de Leituras em Jornalismo I. Em debate realizado entre os alunos e o professor Fábio Rockenbach, a visão dos acadêmicos quanto ao modo usado pelo autor para tratar a vida de cada um dos sobreviventes foi a mesma. “Ele soube conduzir o livro de forma que te faz ficar presa à leitura, até que o livro chegue a sua ultima página”, enfatiza a acadêmica Aline
“A construção do texto nos prende, nos envolve de tal forma que nos faz sentir como se estivéssemos lá, vivenciando a tristeza, a tragédia e sofrendo junto com os personagens” - Igor Gava
ÔÔ O autor Nascido em Tientsin, China, filho de Roscoe e Grace Baird Hersey, frequentou a Hotchkiss School, logo após a Universidade Yale e posteriormente uma pós-graduação como um Mellon Fellow em Cambridge. Trabalhou como um secretário para Sinclair Lewis pelo verão de 1937, e sem seguida começou a trabalhar na Time, nos Estados Unidos. O trabalho mais visado de John Hersey, Hiroshima, alcançou uma repercussão extraordinária. Sua investigação traz uma informação jornalística com qualidade de um texto literário. A narrativa de Hersey tinha nome, idade e sexo. Ele optou por um texto simples, sem enfatizar as emoções, e usando de poucos adjetivos, o autor deixou fluir o relato oral de quem realmente viveu a história.
Os sobreviventes
RADAR RADAR Outubro| |2016 2016 Outubro
Veja abaixo trechos do libro em que os sobreviventes contam onde estavam e o explosão. que faziam no momento da explosão ÔÔ Reverendo Kiyoshi Tanimoto “Então um imenso clarão cortou o céu. O reverendo se lembraria nitidamente de que o clarão partiu do leste em direção ao oeste, da cidade em direção às montanhas. Parecia um naco de sol”. O Sr. Tanimoto deu três ou quatro passos e se jogou entre duas grandes pedras do jardim, agarrando-se firmamente a uma delas. Com o rosto encostado na pedra, não viu o que aconteceu. Sentiu uma pressão repentina, e estilhaços de madeira e de telhas choveram sobre ele. Não ouviu barulho nenhum. ÔÔ Sra. Hatsuyo Nakamura “A Sra. Nakamura observava o vizinho quando um clarão de um branco intenso, de um branco que nunca tinha visto até então”, iluminou todas as coisas. Ela não se importou em saber o que estaria acontecendo com o vizinho; o instinto materno a direcionou para sua prole. No entanto, mal deu um passo, alguma coisa a levantou e a fez voar até o cômodo contíguo, em meio a partes de sua casa. Quando ela aterrissou, tábuas caíram a seu redor, e uma chuva de telhas a cobriu. Tudo escureceu. ÔÔ Dr. Masakazu Fujii “O Dr. Fuji sentou-se na esteira do terraço, cruzou as pernas, colocou os óculos e se pôs a ler o Asahi de Osaka”. E então viu o clarão, que, na posição em que se achava pareceulhe de um amarelo intenso. Surpreso, começou a levantar-se. Nesse momento o hospital se inclinou e, com um baque terrível, caiu no rio. O médico, que ainda não completara o ato de levantar-se, foi jogado para frente, para os lados e para cima, socado e agarrado; perdeu a noção das coisas, pois tudo aconteceu com crescente rapidez; sentiu que a água o envolvia. ÔÔ Srta. Toshiko Sasaki “De volta a sua sala, a Srta. Sasaki sentou-se a sua mesa. Estava bem longe das janelas, que ficavam a sua esquerda, e tinha a suas costas duas estantes altas, contendo todos os livros da biblioteca organizada pelo departamento de pessoal. Guardou algumas coisas numa gaveta e mudou uns papéis de lugar. Assim que virou a cabeça para o lado oposto ao das janelas, um clarão ofuscante encheu a sala. O medo a paralisou em sua cadeira por um longo momento. Tudo veio abaixo, e a Srta. Sasaki perdeu a consciência”. ÔÔ Padre Wilhelm Kleinsorge “Ao ver o terrível clarão teve tempo para um único pensamento: uma bomba caiu em cima de nós. Então perdeu os sentidos por alguns segundos ou minutos. Nunca soube como saiu do prédio. As primeiras coisas de que se deu conta, ao recobrar a consciência, foi que vagou pela horta da missão, em seus trajes íntimos, com pequenos cortes sangrando em seu flanco esquerdo; que todos os edifícios a seu redor haviam desmoronado”. ÔÔ Dr. Terufumi Sasaki “Encontrava-se a um passo de uma janela aberta quando o clarão da bomba se refletiu no corredor como um gigantesco flash fotográfico. Agachou-se rapidamente, apoiando-se no joelho, e, como só um japonês diria, falou para si mesmo: “Ssaki, gambare! Coragem!”. Os óculos do médico voaram longe.”.
JORNALISMO
Koproski. Igor destaca ainda a realidade e os detalhes trazidos pelo autor. “Hershey nos faz esquecer que as histórias foram obtidas após o acontecimento. A narrativa com palavras simples e objetivas, a frieza e a maneira detalhista com que relata os fatos são o diferencial do autor”, completa o acadêmico. Hiroshima seria inicialmente publicada em série, mas o editor da revista, William Shawn, teve outra ideia e propôs que a matéria fosse publicada em uma única edição da The New Yorker, chegando às bancas com 68 páginas, onde apenas uma de suas habituais seções foi mantida. Quando a reportagem teve conhecimento dos poderes americanos, efeitos práticos não foram surtidos em relação à bomba, mas se criou um amplo desconforto. Poucos dias depois de a The New Yorker circular, os jornais publicaram uma declaração do almirante William F. Halsey - comandante da 3ª Força Tarefa na Guerra do Pacífico, durante a II Guerra Mundial - segundo a qual os japoneses estavam prestes a se render e "a bomba atômica [fora] um experimento desnecessário". Em 1947, nas páginas da Harper's – revista americana- foi publicada uma espécie de resposta oficial a Hiroshima, sob o título “A decisão de usar a bomba atômica”, que levava a assinatura do ex-secretário da Guerra, Henry Stimson. A ocupação americana no Japão não permitiu que o livro de Hersey fosse lançado naquele país. Hiroshima é considerado por muitos o primeiro livro de jornalismo literário. Esta mistura entre jornalismo e literatura tem a missão de informar e estar sempre mantendo a essência jornalística, aliando narrativa literária ao aprofundamento do conteúdo que esta sendo tratado. Além de trazer as informações completas, aliada a uma boa narrativa escrita, faz com que o leitor tenha uma visão ampla do fato, assim como fez Hersey em seu texto. n
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REPORTAGEM
RADAR Outubro | 2016
Precisa-se de LEITORES
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Leonardo compartilha suas experiências de leitura para mais de 16 mil pessoas inscritas em seu canal no YouTube Foto: Reprodução
Pesquisa revela que número de leitores diminuiu 9% em cinco anos no país. Passo Fundo ostenta número acima da média nacional DANIEL ROHRIG
Acadêmico do curso de Jornalismo
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epois de uma noite intensa de leitura, Leonardo Oliveira, 20 anos, prepara sua câmera em frente a estante de livros que tanto se orgulha para começar a maratona de gravações. O jornalista formado pela UPF dedica boa parte do seu tempo lendo, e, posteriormente, compartilhando suas experiências para mais de 16 mil pessoas inscritas em seu canal no YouTube , chamado Um Leitor a Mais. Tudo começou com um blog na internet onde Leonardo escrevia sobre livros, filmes e música. Com o passar do tempo, o então estudante de jornalismo decidiu investir em vídeos, fazendo a migração do blog escrito para a plataforma audiovisual. Segundo ele, já foram mais de 120 livros lidos e compartilhados com seus seguidores na internet. - O segredo é levar o trabalho a sério. A leitura serve como uma porta de entrada para crescer mais e ser uma pessoa melhor para o ‘mundo real’, pontua Leonardo. Léo, como é conhecido pelos internautas, faz parte dos mais de 88 milhões de brasileiros considerados leitores pela pesquisa do Instituto Pró-Livro. A tercei-
O segredo é levar o trabalho a sério. A leitura serve como uma porta de entrada para crescer mais e ser uma pessoa melhor para o ‘mundo real’ - Leonardo Oliveira
ra edição do estudo “Retratos da Leitura no Brasil” buscou medir a intensidade, forma, motivação e condições de leitura da população brasileira. A pesquisa considerou leitores “quem lê um livro pelo menos a cada três meses”. Ou seja, quatro livros por ano. Aproximadamente 40% dos brasileiros se encaixaram no perfil, onde a maioria é formada por universitários entre 18 e 24 anos. Porém, o índice apresentou uma redução de 9% em cinco anos. Em 2007, a média de livros lidos pelos brasileiros ficou em 4,7. Já em 2011, este número caiu para quatro livros lidos por pessoa no Brasil. Outro dado preocupante vem da Federação do Comércio, no Rio de Janeiro. Uma pesquisa revelou que 7 em cada 10 brasileiros não leram nenhum livro em 2014. O número de leitores varia muito de acordo com as regiões do país. A pesquisa do Instituto Pró-Livro também revelou que em Passo Fundo, cidade que recebe o título de Capital Nacional da Literatura, a média de livros lidos por pessoa é a maior do país. São aproximadamente sete exemplares lidos por ano pelos passo-fundenses. Leonardo é uma das pessoas responsáveis por este índice aqui na região norte do Rio Grande do Sul. Além de contribuir com seu expressivo número de leituras anuais, ele influencia grande parte dos jovens que acabam conhe-
cendo o mundo das histórias através de seus vídeos. - Salve, salve galera! Tudo bom com vocês? O bordão já é conhecido do público que acompanha o jornalista nas redes sociais e no YouTube. Levando em consideração os dados mostrados pelo estudo do Instituo Pró -Livro, o perfil leitor dos universitários virou tema de uma pesquisa desenvolvida na UPF. Para a coordenadora do projeto de pesquisa, professora Fabiane Burlamaque, a forma de ler está mudando. - Através da nossa pesquisa estamos tentando mostrar que a leitura é considerada leitura independente da plataforma onde é praticada, explica a pesquisadora. A retração do público leitor nos últimos anos pode ser explicada pelo surgimento de outras plataformas como os celulares, computadores, tablets e outros meios eletrônicos que acabam tomando o tempo das pessoas, antes destinado à leitura. Fabiane entende que as narrativas dessas novas plataformas também poderão ser consideradas leituras – mas nada deve substituir o bom e velho livro. - São diferentes materialidades de leitura. A nossa preocupação é com este novo leitor que pode acabar formando novos leitores nas áreas de educação, conclui. n
A alimentação como plano de saúde
SAÚDE REPORTAGEM
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Vegetarianismo e veganismo. Duas tendências de estilos de vida saudáveis que conquistam cada dia mais adeptos
MARIA EDUARDA ELY Estagiária NEXJOR
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xcluir da dieta a carne, na terra do churrasco, é quase como conhecer a terra da rainha e não tomar um bom chá das cinco. Os adeptos do vegetarianismo e do veganismo vem abrindo portas para novas discussões e estudos sobre uma alimentação diferenciada. No entanto, o estilo de vida, que para brasileiros e gaúchos gera estranheza, em culturas como a indiana está institucionalizado na religião. E por que não pensamos como eles? Vanessa Shakti, 29 anos, é adepta do vegetarianismo há nove anos. O assunto, de acordo com ela, torna-se a principal preocupação de reuniões familiares ou de amigos. Por sua alimentação livre de carne, acaba sendo recebida com alimentos muito gordurosos e pouco saudáveis. Formada em Naturologia pela Unisul, Vanessa teve seu primeiro contato com o vegetarianismo morando com outros adeptos e acredita que
não convivendo com a carne, excluiu-a de sua alimentação, em um movimento natural. Hoje se dedica ao estudo de práticas e métodos naturais para o cuidado humano, a melhoria da qualidade de vida e o equilíbrio da vida com a sociedade e o ambiente. Vanessa associa a sua alimentação ao estilo de vida. “Mudei de vida, nasci de novo. Minha vida melhorou, minha saúde mental também. Acredito que se as pessoas pesquisassem e entrassem em contato com esse estilo de vida, o aceitariam facilmente”, avalia, já que de acordo com ela poucas pessoas sabem o que comem e acabam se alimentando de produtos artificiais e químicos. Vanessa encontra tudo o que precisa em vegetais, frutas, sementes e castanhas. “Procuro não me alimentar com nada químico, artificial, enlatado ou sintético. Dificilmente vou ao mercado, porque não procuro produtos feitos para a comercialização e, sim, alimentos”. Se hoje não é tão traumático para pessoas como Vanessa aderirem a esse estilo de vida é porque pessoas como Ivana já trabalham em prol da alimen-
Segundo a nutricionista, no reino vegetal é possível encontrar todos os nutrientes necessários para uma alimentação saudável, exceto a vitamina B12.
Vanessa cuidando do jardim e da horta de casa | Foto: Maria Eduarda Ely
tação saudável há muito tempo. Ivana Melo Jacks, 44 anos, vegetariana e transitória ao veganismo, é proprietária do restaurante vegano Harmonia da Terra, em Balneário Camboriú. Ela nota que o número de pessoas que simpatizam com o vegetarianismo e o veganismo cresce a cada dia e que a comida vegana pode ser tão gostosa quanto qualquer outra. “Consideramos nosso restaurante como um plano de saúde e acreditamos que hoje a alimentação saudável pode ser mais barata que a de um onívoro. Frutas e verduras duram mais e a comida é mais leve. O objetivo da casa é mostrar que é possível comer bem e gostar do que se come”. n
O restaurante Harmonia da Terra atende segunda a sábado | Foto: Divulgação
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Vidas ambulantes Usando as calçadas como centros de comércio, eles vendem seus produtos e buscam sustentar a família
JULIA MAZIERO POSSA
Egressa do curso de Jornalismo
Seu Paulino (esq) e Darlúcio em frente ao Hospital São Vicente de Paulo, de Passo Fundo, RS, em mais uma jornada de trabalho Fotos: Julia Pozza
ito da manhã, 19 graus. O vento gelado inaugura a quintafeira. Seu Paulino começou cedo. Despertou por volta das seis, tomou a costumeira xícara de café e abriu, por via de dúvidas, uma maleta de veludo preta já antiga, maltratada pelo tempo. É ali que está o seu sustento: fitas coloridas com nomes de santos católicos, escapulários de cordão, pingue-pongues de borracha, pássaros de papel que voam forçados por pilhas paraguaias. Pega a estrada aí pelas sete e vai vendo sua casa lá no fundo pela janela do ônibus que o levará do bairro Jaboticabal para o centro de Passo Fundo. Desembarcado, toma o rumo do hospital. Não é ele quem está doente. Sua mulher, dona Maria, já passou suas dores, vítima de uma diabetes difícil de controlar. Seu Paulino, no entanto, conhece o Hospital São Vicente de Paulo por inteiro: é ali que visita a mulher e também onde tira dinheiro para seu sustento. Aos 66 anos, com dois filhos de mais de 40, ele é um entre centenas de vendedores ambulantes que rodeiam os centros comerciais se apropriando das calçadas para alimentar a família. ÔÔ O santo andarilho Quando começo a conversar com Seu Paulino, logo chega outro personagem. Pergunta desconfiado: você é da Prefeitura? Até conquistar a confiança
do Darlúcio Pereira, 44 anos, vamos longe. Mais simples, ele carrega um maço de DVDs piratas, grande maioria do padre Alessandro Campos. Me conta que teve estudo, casa, comida, mas decidiu sair de Belo Horizonte, MG, cidade onde cresceu, para vir em busca de uma grande amizade, em Passo Fundo. Decepcionado depois das voltas que o mundo dá, foi demitido da empresa onde trabalhava e decidiu vender na rua como forma de se sustentar. “A gente nunca sabe o dia de amanhã. Estou esperando meu dinheiro, coloquei a empresa na Justiça, sabe? Agora vendo aqui, dá uns R$ 10 por dia, quando muito. Mas fazer o quê, é o que temos para hoje, minha filha”, conta, acrescentando a eterna vontade de partir, fugir do frio e reencontrar a família nas terras mineiras. Seu Paulino e Darlúcio acabaram ficando amigos na rua. Chegam cedo para conseguir o melhor lugar. No decorrer do dia, conversam com todo o tipo de gente. “Vem de tudo, já tentaram me roubar, mas a gente é duro na queda”, ri Seu Paulino. “Acho que essas pessoas que vem do interior para Passo Fundo entendem como é ser gente de verdade. Todo mundo é humilde, gastam às vezes até o que não tem para ajudar”, completa. “Moça, eu sou adventista, acredito muito em Deus, é ele que guia meu caminho”. É o Darlúcio, vestido com
ÔÔ Realidade crescente A suposta desconfiança da Prefeitura de Passo Fundo é válida. Na cidade, apenas 28 vendedores ambulantes estão em situação regular, conforme dados da Coordenadoria de Fiscalização e Licenciamento. Fora isso, não há espaço: quando não apresentada a nota de compra das mercadorias, os fiscalizadores apreendem o que está sendo vendido e esperam 30 dias. Se neste período não for apresentado um documento que comprove a oficialidade do negócio, os produtos são destruídos. Já aconteceu com a Valquíria Sada, de 47 anos. Ela trabalhava sem nota fiscal até que teve toda a sua mercadoria apreendida. Além do prejuízo, precisou ir atrás de um veículo que servisse como ponto, caso quisesse continuar com o negócio. Teimosa que só ela, foi atrás do sonho. Depois de muita burocracia, licenciou-se vendedora ambulante. Agora anda para lá e para cá vendendo todo o tipo de coisa imaginável: pilhas, baterias, carregadores, cobertores, chapéus, relógios... Mesmo com tanta variedade, a venda ainda é pouca. “Às vezes as pessoas vem aqui, dão uma olhada. A maioria compra com o dinheiro que sobra dos exames. No fim o maior valor fica entre cinco, dez reais”, explica. E nos dias de chuva – como fazer para não estragar as coisas? “Aí eu coloco tudo dentro da Kombi e vendo meu estoque de guarda-chuvas. Sai tudo rapidinho, é a coisa mais boa”. ÔÔ Laços Na rua há 20 anos, ela e seu pai, seu Genoíno, são conhecidos por todos do
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REPORTAGEM REPORTAGEM
um moletom cinza desbotado, que dá a palavra. “E eu vejo que todo mundo leva a religião muito a sério por aqui. É todo mundo que nem eu. Só vendo coisa deste padre, sai pouca coisa do Luan Santana.” O Seu Paulino, de casaco de lã, calça social marrom, óculos grandes e boina cinza confirma. “Acho que tá todo mundo cansado de sofrer. Aqui no Hospital só tem gente que sofre. Nunca uma doença vai ser uma coisa boa. A verdade é que o que eu mais vendo é escapulário, fita, imagem de santo. Fé nunca é demais”. Seu Paulino diz que ganha nos dias bons cerca de R$ 30. Quando sai da rua, corre para a Farmácia Central, onde compra os remédios para a diabetes da Dona Maria. “Eu bem que podia ser como a Jussara, a Daniela, a Mariana. Elas estudaram, são minhas irmãs lá de Minas. Mas eu decidi sair. Sou quieto, tenho a maior dificuldade de me enturmar. Só falei contigo porque não sei, achei que você fosse da Prefeitura”, o andarilho abaixa a guarda.
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Valquíria e sua Kombi – com os mais variados produtos paraguaios
hospital. “Todo mundo que me vê me cumprimenta, sou amiga dos doutores, das doutoras, dos funcionários, de todo mundo”, conta Valquíria, faceira. Cercada pela depressão desde pequena – a doença vitimou grande parte da sua família – Valquíria vive seus dias na Rua Uruguai, acompanhando o movimento, sabendo tudo que acontece dentro e fora da área hospitalar. E é daí que surge a inspiração para as novas coisas que serão compradas nas próximas viagens para Porto Alegre e o Paraguai. “Sou antenada nas tendências”. ÔÔ Asas cortadas É visto que Passo Fundo abriga muito mais que os 28 comerciantes ambulantes devidamente regularizados. A cidade é minada de ofertas das ruas - tudo o que se pode vender é oferecido. Capas de celulares, DVDs, CDs, artigos religiosos - principalmente. E a pena para quem anda “fora da lei” é dura: prisão. A Polícia Federal esclarece: antes de visitar a cadeia, o vendedor tem direito a uma série de medidas administrativas visando sempre recorrer da decisão. A questão é que, como muita gente simplesmente não tem alternativas, acaba voltando para o mercado ilegal. ÔÔ A arte do negócio Se tem uma coisa que se vê quando passamos na Teixeira Soares, lar central do Hospital São Vicente de Paulo, é gente de todo o tipo. São rostos perdidos, sempre na espera. E esta angústia é compartilhada pelos comerciantes. Mesmo procurando vender, eles obedecem ao silêncio. Vendem balões, mequetrefes, santos, fé – sempre segurando o chapéu em respeito àqueles que ali esperam o
passar das horas, das estações, da vida. Seu Paulino continuará exercendo a função. É dali que consegue facilidades em retirar remédios pra Dona Maria, uma união de mais de 50 anos. Já Darlúcio segue a vida: vai voltar para Minas, vai conhecer alguém e se mandar mundo afora, uma alma hospedeira, seguidora dos instintos do coração. Valquíria e seu pai seguem antenados nas tendências – e quanto mais viagens (e produtos) ao país vizinho melhor. O hospital, então, segue cercado de gente: vidas que passam despercebidas pelos passantes. Que perdem-se no olhar dos que esperam. E que dão rumo aos que ali permanecem, vendo de perto a dura realidade da existência. n
“Todo mundo que me vê me cumprimenta, sou amiga dos doutores, das doutoras, dos funcionários, de todo mundo” -Valquíria Sada
“Acho que tá todo mundo cansado de sofrer, aqui no Hospital só tem gente que sofre. Nunca uma doença vai ser uma coisa boa. A verdade é que o que eu mais vendo é escapulário, fita, imagem de santo. Fé nunca é demais” - Seu Paulino
Amizade das ruas – Seu Paulino e Darlúcio ficaram amigos vendendo DVDs e artigos religiosos
CULTURA
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A Sangue Frio, de Truman Capote
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O livro merece ser citado nas aulas de jornalismo como um modelo. E o jornalista que não lê Truman Capote perde a chance de aprimorar a escrita literária das reportagens que merecem esse tratamento aprofundado, e também das notícias do Hard News.
ELVIS PICOLOTTO
Egresso do curso de Jornalismo
Se Truman Capote usa da imaginação para embelezar a realidade na história, ou se ele se mantém fiel aos fatos, como um bom jornalista deve fazer, ainda não se sabe. O que, quase cinquenta anos depois do lançamento, pode-se afirmar é que se trata de um exemplo ímpar de jornalismo literário. O tema e a história importam muito, é claro. Mas a forma que Truman dá ao conteúdo é que cativa e impressiona pela riqueza de detalhes e pela ambientação que, sem fugir do clichê, joga o leitor para dentro do mundo do livro. Lendo você tem a impressão de realmente entender todo o contexto histórico social de um crime que abalou todo um país como foi o assassinato em Holcomb. O livro merece ser citado nas aulas de jornalismo como um modelo. E o jornalista que não lê Truman Capote perde a chance de aprimorar a escrita literária das reportagens que merecem esse tratamento aprofundado, e também das notícias do Hard News. Considerado o passo inicial do New Jornalism, o romance não ficcional cum-
pre o papel de informar e, feito isso, vai além com uma narrativa envolvente. Se o brutal assassinato da família Clutter já oferecia uma potencial história de violência, crime e investigação, a visão de Truman conseguiu unir as histórias de uma maneira que fortalece ainda mais a brutalidade dos assassinos e a importância dos traços pessoais de cada personagem. O modo como o senhor da família assassinada passa as primeiras horas do seu último dia de vida, à um olhar desatento, pode parecer algo banal. Mas essa pequena narrativa de hábitos matutinos na verdade mostra toda uma característica da vida do personagem, coisa que importa muito para enriquecer a obra e a história. Como mostrar uma cidade? Como mostrar o tamanho da violência e sua relação com a silenciosa quietude da região? Como fazer com que, independente do leitor, brasileiro ou americano, a história cumpra esses dois papeis – informativo e literário – e resista ao tempo, sendo lida hoje como algo atual? A resposta está em cada página. No cachorro da família, que “como todos sabiam” perdia toda a valentia quando
avistava uma espingarda. Nos costumes da filha, recatada com seu namorado assistindo TV na companhia do sogro. Na vida do Sr. Clutter, que o leitor pode comparar com muitos cidadãos padrão de hombridade, em qualquer que seja a comunidade. Nas realidades que Truman transforma em personagens e na forma escolhida para tratar o real nesse meio fio com a ficção. A melancolia de uma cidadezinha encrustada no deserto, onde os únicos trens que passam são de carga e viajantes são raros. Um sistema tão conhecido pelos seus ocupantes, que cada carro estranho pode ser notado. E nesse ambiente controlado pelos costumes, um assassinato jorra sangue na imagem tranquila da cidade e não se a quem culpar. Todos passam a trancar portas, a desconfiar dos vizinhos, a se aterrorizar com os barulhos da noite e a olhar para trás na escuridão. Agora a cidade toda é a cena de um crime. Um ótimo livro para o público em geral e para os dedicados a aprimorar a sua escrita por meio do jornalismo literário. Uma história de época que parece imortal nas redações dos jornais e nas estantes por toda parte. n
Ao completar 20 anos, o Colegiado do curso de Jornalismo da UPF se orgulha por ter formado 568 jornalistas. Certamente, todos eles têm excelentes histórias a nos relatar e neste espaço sempre iremos contar algumas. Nesta edição, dois jornalistas de perfis distintos nos relatam um pouco de suas experiências profissionais e da paixão pela profissão.
PRATAS DA CASA
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Caminhos do jornalismo Fábio Rosso “A dica é: começar! A gente só chega onde quer se um dia tomamos a atitude de começar algo. O nosso futuro é fruto dos nossos inícios. Este é o caminho. Você já pensou quantas vezes cogitamos começar um curso, por exemplo, e deixamos para o próximo ano? As oportunidades surgem e precisamos estar preparados. Fazer estágio, por exemplo, é uma boa forma de conhecer o mercado, estar em contato com outros profissionais, aprender e principalmente obter experiência. Enquanto estudante, fiz isso em impresso, assessoria de imprensa e televisão. Depois dos estágios, fui contratado como produtor na RBSTV em Blumenau e posteriormente em Porto Alegre. Trabalhei muito para contribuir com a comunidade onde estava vivendo. Mesmo priorizando a informação, sempre procurei pensar em conteúdos diferentes e inovadores, apostando em novos formatos. Foi esta inquietação que me levou ao meu próximo desafio: integrar a equipe do Gshow, na novela Império da Rede Globo, no Projac. Trabalhar com entretenimento e online é um grande desafio e permite muito explorar a criatividade. O “mundo virtual” muda diariamente. A cada dia novas ferramentas e tecnologias são inventadas e as pessoas estão cada vez mais antenadas, participativas e exigentes. O jornalismo como um todo está mais dinâmico. Hoje você acessa informação de diversas formas e a audiência está mais disputada. Para alcançá-la, aposto sempre na credibilidade, relevância, criatividade e inovação. Enfim, se pudesse dar só mais uma dica, seria: não crie raízes. Saia da zona de conforto e quando estiver caindo na rotina, crie um projeto novo, encare outro desafio ou pense em algo que te motive a continuar inovando e agregando valor ao que você faz. Independente de onde seja e do que seja. A motivação só depende das nossas atitudes em provocar a nós mesmos.” Fábio Rosso é egresso do curso de Jornalismo da UPF. Teve experiências como assessor de imprensa, repórter e produtor de televisão. Atualmente, é Editor de Web no GShow, Rede Globo, e estuda Cinema e Linguagem Audiovisual na Universidade Candido Mendes
Caminhos do jornalismo Cleber Bertoncello “Antes de mais nada, ingressar no curso de Jornalismo da Faculdade de Artes Comunicação (FAC) da Universidade de Passo Fundo (UPF) foi, por si só, um sonho realizado. A paixão por comunicar e a certeza de qual caminho profissional seguir se manifestaram desde a minha infância. A faculdade, desde o primeiro semestre, desde as primeiras aulas, foi ao encontro dessa vocação. Mais que isso, o curso de Jornalismo me revelou um universo comunicacional muito mais amplo do que eu imaginava. Me mostrou possibilidades e caminhos que sequer eu havia cogitado seguir. Também apresentou a importância e a responsabilidade de ser um jornalista, com toda a carga social comportamental que isso abriga. E, por fim, ao longo de quatro anos me capacitou técnica e eticamente para enfrentar o mercado de trabalho não somente local como também estadual e nacional. Independente de uma questão burocrática de ser ou não necessário o diploma, fazer uma boa faculdade de Jornalismo como a da UPF nunca deixará de ser importante, pois o embasamento teórico e prático a ser recebido tem um valor para muito além de qualquer definição legal. Numa era de tantos desafios, na qual o jornalista tem de se tornar não somente empregado de um veículo, mas cada vez mais um empreendedor de comunicação, em variados setores, possuir segurança intelectual, saber da sua relevância para a sociedade e ter a tranquilidade de uma grande universidade como a UPF avalista de seu conhecimento são ingredientes que resultam em um valioso diferencial”.
Cleber Bertoncello, ex-aluno da FAC, formado em Comunicação Social – Jornalismo em dezembro de 2001. Foi repórter de jornais como Diário da Manhã e Zero Hora, editor no Jornal Hora de Santa Catarina, assessor de imprensa e superintendente de Comunicação e Relações Institucionais da Assembleia Legislativa gaúcha. Atualmente possui uma empresa focada na produção de biografias.
REPORTAGEM REPORTAGEM
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Conheça mais sobre a história, os costumes e crenças dos muçulmanos
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Um pouco de História O islamismo, -segundo maior grupo religioso da atualidade-, abordado em seu viés histórico e a partir de seus seguidores no Brasil
Pelo menos uma vez na vida todos os muçulmanos têm que vir à cidade de Meca, a cidade sagrada Foto: The Iman Foundation
CRISTIANO BIANCHINI MATHEUS MORAES VINICIUS COIMBRA
Egressos do curso de JORNALISMO
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om presença nos últimos 1500 anos da história da humanidade, o Islamismo vem se consolidando como o segundo maior grupo religioso da atualidade, tendo cerca de 1 bilhão e 600 milhões de seguidores pelo mundo todo. Fundada por Maomé no século XII d.C., é uma religião monoteísta, ou seja, que crê em um único Deus, Alá, que é o mesmo que Deus em árabe. Em certos pontos, a história do Islamismo se confunde com a história do Judaísmo e do Cristianismo, já que Maomé, seu fundador, seria descendente de Abraão, enquanto Moisés (fundador do Judaísmo) e Jesus (figura central do Cris-
OS CINCO PRINCIPAIS MANDAMENTOS MULÇUMANOS 1. Não há outra divindade além de Alá. Maomé é o mensageiro de Alá; 2. Cinco orações precisam ser feitas todos os dias; 3. Pagar dádivas rituais; 4. Jejuar durante o Ramadã, nono mês do calendário islâmico; 5. Peregrinação a Meca, na Arábia Saudita, pelo menos uma vez.
tianismo) também seriam descendentes de Abraão. A região de maior influência histórica do Islamismo é o Oriente Médio, mas a maior comunidade islã atualmente vive na Indonésia. No Brasil, existem cerca de três milhões de muçulmanos (como são chamados os seguidores do Islamismo, e que significa “submissos a Deus”, Alá, no caso). A religião islâmica, assim como a cristã, tem diversas divisões dentro dela mesma. As duas principais são os Sunitas e os Xiitas. ÔÔ Alcorão acima de tudo Outra peculiaridade do povo muçulmano está nas punições, geralmente seguidas pelo o que é registrado no Alcorão. O adultério é um exemplo. Para eles, não adianta alegar que alguém, durante o casamento, trai o seu cônjuge, sem que haja testemunhas. Julgar uma pessoa é uma grande responsabilidade. E, por isso, precisam jurar pelo Alcorão. Se o juramento for desrespeitado, a consequência é severa: há punições de apedrejamento e até mesmo a morte. n
De Hamallah a Passo Fundo “Não tem ofensa maior para o nosso povo do que alguém querer representar em caricaturas ou imagens o profeta” – Reiad
JULIA POSSA MAIARA CAMINI MATHEUS MORAES VINICIUS COIMBRA
Egressos do curso de JORNALISMO
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Palestina nas décadas de 1940 e 1950 era palco de guerras entre judeus e muçulmanos. Com o conflito, moradores da região resolveram abandonar o Oriente Médio e seguir outros rumos. Para muitos, o Brasil foi o destino. É assim que começa a história de Reiad André Aref Bakri. O tio avô de Reiad, que morava em Hamallah, na Palestina, desembarcou no porto de Santos com o objetivo de trabalhar com a venda de roupas. Depois da cidade paulista, Lajeado. E foi em terras gaúchas que o negócio cresceu para o tio avô de Reiad. “Ele viu que a coisa ia prosperar, então trouxe mais um ou dois irmãos e os sobrinhos para o Brasil. Então,
Na sua loja, Reiad mantém o alcorão e o quadro de oração sempre a vista
RADAR RADAR Outubro || 2016 2016 Outubro
REPORTAGEM REPORTAGEM CULTURA ESPECIAL
meu pai e meu tio vieram de navio para cá, com 15 anos, atraídos pela proposta de trabalho”, conta. E a promessa de bons negócios vingou. Em Caxias do Sul, onde nasceu Reiad, a família se estabeleceu e virou proprietária de uma rede de lojas de roupas que está presente em 11 cidades do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Hoje ele administra a filial de Passo Fundo há um mês. Mesmo com o pouco tempo, já tem ideia de como o muçulmano é visto na cidade. “Tem gente que fica curiosa, tem gente que fica assustado. Não vou te mentir, nem sempre é boa”, comenta. Carnaval, violência, mulher e futebol: são as partes do Brasil que chegam a quem não é nascido aqui, como exemplifica Reiad André Aref Bakri. “Quando o meu primo veio visitar o país ele só queria conhecer o carnaval e as mulatas que ele viu na televisão, não queria saber de conhecer praias, campos e lugares turísticos”. Conforme Reiad Bakri infelizmente isso é o que é mostrado paras os imigrantes, são esses eventos concentrados que ganham mais destaque e não a grande diversidade de cultura que o país carrega. Ele ainda afirma que isso não acontece apenas com o Brasil, mas sim com a grande maioria dos países. Essa visão, segundo ele, se deve pela forma com que os meios de comunicação transmitem a informação. O estereótipo existe. No primeiro olhar nada é 100% consciente – “Todo muçulmano é terrorista” – a generalização tornouse uma bomba relógio e explode a todo momento. “Me diz, quantos muçulmanos você já conheceu até hoje? Eu tenho cara de terrorista?”, indaga Reiad, com revolta. Segundo ele, o que acontece com os muçulmanos é o mesmo preconceito tido com os africanos que acabam de imigrar para o Brasil. “Eles trabalham de sol a sol, o dia todo na rua… Mas você vê eles fazendo mal pra alguém? É a mesma coisa com a gente. O problema é que tem um pessoal que se diz enviados de Deus e usam isso pra matar gente, usar da violência. É errado”, explica. Tradicional, a mãe de Reiad usa o véu, a polêmica burca. “Hoje eu não me importo muito, mas sempre que vamos a lugares públicos as pessoas olham, cochicham, e isso incomoda muito. Outro dia eu pedi para uma senhora se ela queria uma foto da minha mãe – desde que chegamos ao lugar ela não parava de apontar. Incomodou, eu quero respeito”, diz. Estas foram apenas algumas das situações vividas por Reiad que demonstram o quão conservador segue sendo o pensamento de uma parcela de brasileiros. “É complicado viver em um país onde 90% do povo é de uma religião e ser discriminado não de propósito, mas por ignorância e falta de informação. Sei que muita gente não faz por maldade e é apenas ignorante, sem cultura”, pontua. Ainda assim, a visão de quem é de fora
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É complicado viver em um país onde 90% do povo é de uma religião e ser discriminado não de propósito, mas por ignorância e falta de informação. Sei que muita gente não faz por maldade e é apenas ignorante, sem cultura”, afirma Reiad
“Me diz, quantos muçulmanos você já conheceu até hoje? Eu tenho cara de terrorista?” - Reiad Bakri
também surte efeitos, principalmente de quem vive na Palestina e tem contato com o povo brasileiro. “Quando estive na Europa, lembro de ter sido questionado por uma moça da companhia aérea, depois de ter olhado o meu registro. Ela perguntou se eu tinha vindo de São Paulo e eu confirmei. Surpresa, ela perguntou como era aqui no Brasil, se não morávamos no Amazonas e se não vivíamos em ocas”, relata. Outra situação ocorrida foi em relação à mídia palestina, em 1994, no período da morte do campeão mundial de Fórmula 1, Ayrton Senna. “Na época eu tinha 13 anos, tinha chegado em casa depois da escola e assisti uma reportagem sobre um acidente do Senna. Lembro de ter me questionado: estamos em maio, não é época do campeonato, como ele já pode ser campeão?”. Segundo ele, a TV Israelense mostrava um acidente e omitia a informação da morte do atleta. “Só fui descobrir que ele tinha morrido quando voltei para o Brasil, em novembro daquele ano”. n
Fotos: Maiara Camini
O Estado Islâmico na visão do muçulmano MATHEUS MORAES VINICIUS COIMBRA
Egressos do curso de JORNALISMO
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xistem diversos grupos paramilitares no Oriente Médio. Mas, atualmente, um se destaca: o chamado ISIS ou Estado Islâmico, que controla cidades importantes na Síria e no Iraque. O grupo, que cresceu após a saída do Estados Unidos da região, ganhou notoriedade pela forma de atuação regional, diferente de outros
Estado Islâmico ganhou notoriedade pelas práticas cruéis contra pessoas de outras religiões Foto: Imagem da Internet
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RADAR RADAR Outubro| 2016 | 2016 Outubro
“Muitos acabam fazendo o que têm na cabeça, e não por causa de alguma religião” Reiad
como Al Qaeda e Taliban, que buscam reconhecimento através de ataques contra alvos ocidentais. Prova disso é a tentativa do grupo de estabelecer um califado, uma forma de governo baseada na lei islâmica. Além disso, o ISIS ficou famoso mundialmente pela crueldade com que trata pessoas que não seguem o Islã, ou seguem outras vertentes da religião. Mas esse tipo de prática não encontra apoio na maiora dos muçulmanos, como Reiad André Aref Bakri: ‘’Eu fico com bastante raiva. Eles dizem quem bombardeiam em nome de Deus, o que é uma mentira. Fazem isso por revolta’’, pontua.Essas atitudes confrontam o que é dito no Alcorão, o livro mais sagrado desse povo. Na ‘’bíblia’’ dos muçulmanos, é relatado que o mártir que guerrear e parar no céu, será perdoado. O motivo é simples: para eles, lutar na guerra é um ato nobre. O que Reiad e tantos outros não admitem é o ataque contra pessoas inocentes. ÔÔ Radicalismo x Religião
Segundo Reiad André Aref Bakri, as pessoas confundem radicalismo com religião. Há um costume de cometer erros graves e colocar a culpa no que muitas pessoas seguem e acreditam como uma desculpa pelos atos realizados. ‘’Muitos acabam fazendo o que têm na cabeça, e não por causa de alguma religião’’, comenta. Se alguém pratica o bem, os outros não precisam saber. O povo muçulmano não deve se gabar de fazer o bem, apenas Deus precisa estar ciente disso. ‘’O muçulmano tem que fazer o bem, e não o mal a alguém’’, afirma o Reiad André Bakri.
o profeta não tem imagem, a única coisa que sabemos é que ele tinha barba. Não tem ofensa maior para o nosso povo do que alguém querer representar em caricaturas ou imagens o profeta”, acentua Bakri. n
O brasileiro muçulmano ANDRESSA ZORZETTO
Egressa do curso de JORNALISMO
ÔÔ O Profeta não tem imagem Em 2015, dois integrantes da Al Qaeda do Iêmen fuzilaram a redação da revista satírica francesa “Charlie Hebdo” e mataram 12 pessoas. A polêmica teve início quando a revista em 2012 publicou caricaturas do profeta Maomé, figura sagrada do islamismo. Na época sua sede foi incendiada e desde então vem sendo ameaçada pelos radicais islâmicos. “Para nós
Família reunida na mesquita fala sobre o Islã Foto: Maiara Camini
“O Islã é visto como novidade e toda novidade traz aceitação ou renegação. As diversas práticas religiosas fazem com que as pessoas o aceitem. Se isso não houvesse, temos como princípio respeitar a religião do próximo, mesmo que ele não respeite a nossa” – Nivaldo| Muhammaad
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ivaldo, de 47 anos, conheceu o Islã entre 1991 e 1992, em São Paulo. Após ter lido o livro Malcolm X e, posteriormente, assistido ao filme, ficou interessado pela religião. Com um amigo, procurou por uma mesquita, a qual frequentou durante dois meses para conhecer as tradições. Ao sentir-se próximo dos ensinamentos passados pelos sábios muçulmanos, optou por se converter, adotando o nome de Muhammad. “Eu era católico não praticante. Tinha religião porque os meus pais me criaram católico, mas nunca tive interesse por ela. Passei a tê-lo quando comecei a perguntar coisas, das quais não obtive resposta. No Islã, encontrei essas respostas”, conta. Muhammad viajou para a Líbia para estudar Teologia. Em quatro meses, já dominava o árabe. Quando voltou, em 1994, conheceu Andreia, a sua esposa. Andreia, de 39 anos, também é paulista e se converteu ao Islã influenciada por amigas. Depois de menos de dois meses, os dois se casaram e, há 18 anos, estão juntos. Em 2002, Muhammad veio para Passo Fundo para trabalhar no abate especial de frangos. Andreia veio com os filhos um ano depois. Nessa época, havia mais três famílias que seguem a religião e algumas pessoas independentes. Com a imigração, em 2015, a cidade já registra aproximadamente 1.100 praticantes, entre brasileiros que se converteram, senegaleses, palestinos, sudaneses, marroquinos e imigrantes de Bangladesh. A aceitação que tiveram é positiva, devido à forte religiosidade mantida na região sul do país. Católicos, evangélicos, umbandistas e candomblecistas. Budistas, mórmons adeptos das crenças espíritas e de várias outras. Todos caminham – e se cruzam – diariamente pelas ruas, sem conflitos. Nesse espaço, Muhammad trabalha transportando os ensinamentos do povo muçulmano. Ele viaja, participa de painéis e debates e recebe na Mesquita representantes de outras religiões. “O Islã é visto como novidade e toda novidade traz aceitação ou negação. As diversas práticas religiosas fazem com que as pessoas o aceitem. Se isso não houvesse, temos como princípio res-
“No Islã encontrei respostas”
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Nivaldo, agora Muhammad, em oração na Mesquita de Passo Fundo Foto: Maiara Camini.
peitar a religião do próximo, mesmo que ele não respeite a nossa”, conta. Os episódios de preconceito são raros. Como tradição sunita, Muhammad carrega a barba. Já Andreia veste-se com o hijab, roupa que demonstra a sua integridade com Deus. É impossível não notá-la pelas ruas, o que a torna mais vulnerável a ofensas religiosas. Emocionada, ela relembra uma situação que viveu numa parada de ônibus. “Uma mulher gritava: ‘essas pessoas vêm de outros países para trazer guerra’. Hoje, com livros, jornais e internet, ainda há muita falta de informação. As pessoas não querem saber”, desabafa. As vestimentas, além de fazerem com que a mulher apresente a sua religião, levam as pessoas a acreditarem que ela é submissa ao marido e oprimida por suas vontades, o que é um equívoco. Embora seja obrigação dele comprá-las, a mulher possui igualdade de direitos. O respeito que mantém pelo homem é como o que deve existir entre quaisquer pessoas. “O
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hijab é uma opção que a gente faz, que demonstra respeito a Deus. Não é obrigatório. A minha filha não usa. Quando ela achar que é o momento, vai usar”, esclarece, enfatizando que “o papel da mulher muçulmana é como o de qualquer outra: ela educa os filhos e pode exercer qualquer profissão”. Embora o Islã esteja se multiplicando na cidade, cuja população tem uma visão aberta para o diferente, ainda falta conhecimento sobre as suas crenças: quem é Alá e o que diz o Alcorão? Para todos os efeitos, o Islã significa um estado de ser. Ele se fortalece na liberdade, na paz, na segurança e na entrega, se enfraquecendo na ignorância e nas más ações. “O Islã é um código de vida. Não se separa economia, política e cultura. Em qualquer segmento desses, temos que tê-lo como referência”, pontua Muhammad. ÔÔ Ficando pequena
Em 2003, as orações islâmicas em Passo Fundo eram feitas na casa de Muhammad. Em 2008, com recursos enviados da Líbia, a primeira mesquita foi construída. No centro da cidade, o prédio simples, de dois andares, abriga biblioteca, sala para o ensino de árabe e o ambiente de reza, constituído de um longo carpete com listras grossas que indicam onde cada pessoa pode sentar e um pequeno altar. Quem sobe nele é quem tem mais conhecimento sobre o Alcorão. Não há hierarquia. Durante as orações, feitas em direção a Meca, é preciso sentar nos corredores, no quintal e, dependendo da sexta-feira, dia resplandecente do Islã, na rua. A sua ampliação já está prevista. Um engenheiro foi contratado para avaliar o que pode ser feito. Essa medida, provavelmente, não será suficiente, pois, se depender da expansão da religião no território passofundense, logo ela precisará ser situada em um novo endereço. n
Foto: Internet.
“O alcorão diz que a burca serve para que a mulher seja vista pelo que é e não pela sua beleza física, seu cabelo bonito ou pelo seu corpo bem formado, mas pelo que você é por dentro. A beleza interna da mulher deve ser vista antes da exterior” – Nahida Tamimi
REPORTAGEM
RADAR Outubro | 2016
A mulher e o islã LUANA FIORENTIN
Egressa do curso de JORNALISMO
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HADITH um corpo de leis, lendas e histórias sobre a vida de Maomé, e os próprios dizeres nos quais ele justificou as suas escolhas ou ofereceu conselhos.
ahida Tamimi, embaixatriz da Palestina no Brasil, explica: “o Alcorão diz que a burca serve para que a mulher seja vista pelo que é e não pela sua beleza física, seu cabelo bonito ou pelo seu corpo bem formado, mas pelo que você é por dentro. A beleza interna da mulher deve ser vista antes da exterior”. A burca é utilizada na Palestina nas áreas do deserto para a proteção contra as tempestades de areia. É necessário reconhecer que atrocidades foram cometidas contra as mulheres por todo o mundo em nome do Islã, entretanto, essas ações não têm base na religião em si. “O amor à mulher é parte da moral dos Profetas”, cita um hadith. “Ao contrário do que muitos dizem sobre a religião, por exemplo, que maltrata a mulher, não é verdade. Na essência do alcorão eles defendem a mulher”, enfatiza Nahida. No islamismo, a figura masculina tem o dever de proteger a mulher, herança de um sistema patriarcal. Mesmo a mulher sendo independente, trabalhando e tendo seu próprio dinheiro, sempre terá a proteção dos homens da família. Muitas são as diferenças encontradas de um país para outro e Nahida ressalta, “é uma coisa muito bonita da religião, que está na parte cultural, não só no islamismo como também nas famílias cristãs. Eles se protegem, se defendem. É uma coisa que nós não vemos muito aqui no ocidente”. ÔÔ Independência FINANCEIRA Com relação ao dinheiro, a mulher islâmica não tem a obrigação de ajudar nos gastos da casa e nem de comentar
“Ao contrário do que muitos dizem sobre a religião, por exemplo, que maltrata a mulher, não é verdade. Na essência do alcorão eles defendem a mulher” - Nahida
Abdel em seu emprego na novo mundo: Brasil Foto: Arquivo pessoal
quanto ganha por mês. Existem tópicos bem específicos da religião, Quando a mulher casa, por exemplo, ela tem o direito ao dote e em caso de divórcio, que é permitido, o dote também é dela. “Essa é uma forma de ela se proteger e se sustentar caso o marido venha a não sustentá-la mais”, salienta a embaixatriz. ÔÔ Casamento O casamento Islâmico é um contrato civil baseado em consentimento de ambos, diferentemente da forma sacramental do casamento. “Os pais incentivam as filhas a casarem com muçulmanos. Não é como dizem, mas na Palestina, raramente, alguma menina é obrigada a casar com alguém. Hoje em dia elas mesmas escolhem seus maridos, claro que a família tem que aceitar”, exemplifica Nahida. A mulher tem absoluto direito sobre as propriedades, adquiridas antes e depois do casamento. Além do mais, possui uma distinta penhora sobre as propriedades do marido para o seu dote pré-nupcial. Antes do casamento, as mulheres da família se reúnem para a festa da henna, onde a noiva é pintada com essa tinta específica, e as outras dançam. “Uma festa que até hoje eles fazem, só de mulheres, inclusive em algumas regiões, elas dão um banho turco na noiva. Elas vão e todas tomam banho. Elas fazem isso pra desinibir a noiva, tudo tem uma razão, assim ela fica mais a vontade com o corpo dela”, simplifica, Durante a cerimônia, homens ficam de um lado e mulheres do outro. O islamismo tem uma relação de respeito e dignidade para com a mulher, por mais que essa seja mais uma verdade oculta de uma religião, como cita um hadith do Profeta Mohammad: “o Paraíso repousa sob os pés das mulheres”. n
Perdendo hábitos CAMILA DOCENA
Egressa do curso de JORNALISMO
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ahida Tamimi foi embaixatriz da Palestina durante seis anos, de 2008 a 2014. Hoje ela é dona de uma agência de viagens em Carazinho, cidade que seu pai, Abdel Karim Musa Tamimi, escolheu para abrigar-se e construir uma vida nova em 1948. Neste ano começava na Palestina a guerra entre o Estado de Israel e os povos Árabes, depois da declaração da ONU de criar o Estado de Israel. Adbel morava com a sua família no norte da Palestina, perto de Haifa. A família islâmica levava uma vida tranquila. Como a maioria das pessoas naquela época Abdel era pastor e vivia com seus pais e sete irmãos. Mas toda essa tranquilidade acabou em 1948, quando começaram os ataques aos palestinos. Sua família vivia na região onde hoje é Israel e foi uma das que teve que fugir ou morrer. Abdel e seus familiares mais próximos foram para a Jordânia, em um campo de refugiados. Naquela época esses campos eram ainda mais precários do que são hoje. Não havia escolas, hospitais e nada que garantisse o mínimo de qualidade para viver. Era apenas um campo, onde pessoas iam chegando e se acampando para sobreviver. A situação era muito difícil e Abdel decidiu que mudaria isso. Um primo dele já estava no Brasil, então sua família reuniu todas as economias que tinha e, com 100 dólares, veio para o Brasil, com a promessa que fez ao seu pai de conseguir ajudar todos os seus irmãos a ter uma
O novo casal: Abdel e a recém convertida ao islamismo, Nelvi Foto: Arquivo pessoal
irmãos para a Palestinha, para que eles conhecessem a família e aprendessem sobre a cultura e os costumes de lá. Seus avós os ensinaram sobre a religião e também como rezar. Depois de poucos anos eles voltaram ao Brasil. Todos eles foram educados como muçulmanos, mas fosse pelo estilo de vida que estivessem levando ou pelos costumes da região a força dos hábitos do islamismo foi sendo perdida. Nahida, por exemplo, sempre viajou muito. De formação ela é urbanista e restauradora do patrimônio cultural e móvel e estudou em diversos lugares. Quando casou-se foi morar na Palestina, onde teve seu primeiro filho, Khalil, e permaneceu lá por quatro anos. Seu (hoje ex) marido, Ibrahim Alzeben, tornou-se Embaixador da Palestina e por isso o casal passou por diversos países do mundo, sendo Embaixadores da Palestina na Colômbia, em Cuba e por último no Brasil. “Nós fomos educados como muçulmanos, mas eu digo que eu sou uma muçulmana light. Eu acredito na religião, eu admiro a religião, mas eu não pratico. Não pratico porque pra dizer que eu sou muçulmana eu teria que fazer cinco coisas que são mandatórias pra você ser considerado um bom muçulmano. Eu teria que rezar cinco vezes por dia e eu não rezo. Faço a minha oração à noite e é isso. Eu teria que fazer o Az-Zakat, que seria uma vez por ano dar uma doação em dinheiro, que às vezes eu faço, às vezes não, então não é sempre. Quando eu tenho
“O alcorão diz que a burca serve para que a mulher seja vista pelo que é e não pela sua beleza física, seu cabelo bonito ou pelo seu corpo bem formado, mas pelo que você é por dentro. A beleza interna da mulher deve ser vista antes da exterior”
eu dou. Eu teria que jejuar uma vez por ano, essa é uma obrigação do islã, e eu não faço mais esse jejum. Eu bebo, mas no islamismo é proibido qualquer coisa que possa alterar o seu estado normal”, conta Nahida. A sua irmã, Fátima, é mais religiosa. Vai a mesquita em Passo Fundo depois das comemorações do Ramadan e do Az-Zakat. Seu pai, Abdel, também seguia a religião a risca, mas com o passar dos anos foi perdendo alguns hábitos como o do jejum. No Islamismo, uma vez por ano, no Ramadan, eles jejuam do nascer até o por do sol. Na Palestina, tudo para durante o dia do jejum. As horas de trabalho são reduzidas para que os muçulmanos possam cumprir esse ritual de purificação. Mas no Brasil eles não podiam parar durante um dia para jejuar e, depois, Abdel começou a ficar mais fraco por causa da idade (ele hoje tem 80 anos) e parou com o hábito do jejum. Sua mulher, Nelvi, nunca fez o jejum. Na verdade ela nem chegou a seguir as práticas do islamismo. Sua família é evangélica e ela converteuse ao islamismo apenas para poder casar-se. Segundo Nahida, ela continua seguindo a sua religião evangélica, indo aos cultos e mantendo as tradições da religião de origem. Seu Adbel abriu a cabeça com o passar dos anos, não ficou brabo e nem ressentido pela diferença de hábitos religiosos que eles mantinham. Ele respeita a fé de sua mulher, pois para ele cada um tem a sua história. n
Nahída foi Embaixadora da Palestina na Colômbia, Cuba e Brasil Foto: Camila Docena
– Nahida Tamimi
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vida melhor. Trabalhou como mascate, carregando malas, vendendo coisas. Assim que começou a trabalhar, começou a mandar dinheiro para os irmãos. Ele comprou pra cada um uma propriedade e abriu um tipo de negócio. As coisas começaram a dar certo para Abdel no Brasil. Na pousada onde estava hospedado ele conheceu – e se apaixonou – pela filha do dono, Nelvi. O seu primo já namorava a irmã de Nelvi e, assim, o novo casal se aproximou ainda mais. Para um mulçumano poder casar-se com alguém de outra religião é necessário que a outra pessoa se converta ao islamismo. E dona Nelvi não pensou duas vezes, se converteu à religião e se casou. Depois do casamento nasceu Fátima, a primeira filha do casal – e assim se passavam cinco anos no Brasil. Abdel fez a sua primeira visita a Palestina depois de ter saído do país, levando junto sua esposa e sua filha, na época com dois aninhos. Lá ele deu mais uma ajuda aos seus irmãos e cumpriu com a promessa que havia feito a seu pai, pois todos estavam bem. Foi uma vida bem difícil, cansativa, carregando malas, correndo atrás de muita coisa, mas ele conseguiu. Logo depois de casar, ele e sua mulher abriram a primeira lojinha deles em Carazinho e ficaram um tempo na cidade. Depois foram a Soledade e depois pra Canela, onde nasceram os outros dois filhos do casal, Nahida e Adel. Depois voltaram para Carazinho. Quando Nahida tinha 9 anos, seu pai mandou ela e seus
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RADAR Outubro | 2016
Com a mala cheia de experiências Não importa para onde você vá, uma coisa é certa: todo intercâmbio é oportunidade de experiências, conhecimento e amadurecimento AMÉLIA FREITAS MARCELL MARCHIORO MONIQUE CHIARENTIN
Acadêmicos do curso de JORNALISMO
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primorar uma segunda língua, conviver com outras culturas ou experimentar a vida longe da casa dos pais são alguns dos motivos que levam milhares de jovens e adultos todos os anos a procurarem novas experiências através de um intercâmbio. E os destinos também são infinitos. A jovem Ana Cristina Jung, moradora de Nova Prata, escolheu a cidade de Montreal, no Canadá, como destino para realizar o antigo desejo de viver em outro país. Entre setembro e novembro de 2014 ela esteve em contato com a forte cultura hipster presente no lugar, principal fator que a levou a escolher a segunda maior cidade daquele país como seu lar temporário. Montreal é uma cidade singular, com inúmeras opções de lazer que fazem inveja a qualquer cidade brasileira. Os eventos culturais são muitos, principalmente no verão, e como Ana ressalta, também cabem no bolso, fator importante pra quem está a fim de viajar sem gastar muito. A maioria dos shows oferece entrada gratuita ou cobra um dólar canadense pelos serviços da chapelaria. “Eu definiria essa como uma das melhores experiências da minha vida. Eu já estive em muitos países, mas eu nunca encontrei um lugar que eu pudesse dizer ‘aqui eu me identifico”. Porém os contratempos também existem. Montreal fica no estado de Quebec, colonizado pela França e conhecido pelo movimento que procura separá-lo do resto do Canadá, onde a cultura e a língua inglesas predominam. A estudante, que não fala francês, conseguiu se comunicar bem na cidade em inglês, principalmente nas regiões mais próximas ao centro, porém indo em direção ao subúrbio a situação é diferente: “Saindo de Downtown, eu fui pedir uma água em inglês e a mulher não tinha a mínima ideia do que eu estava falando, então tive que ir apontando até ela descobrir”, lembra. Mas nem todo mundo é tão simpático com aqueles que não conhecem a línguamãe do lugar: “Se tu chegar e falar em inglês em um ônibus pedindo informações, dependendo do motorista, ele pode nem te responder, como se não tivesse te ouvi-
Ana Cristina foi recebida com muito carinho por uma família de franco-canadenses Fotos: Arquivo Pesoal
“Eu definiria essa como uma das melhores experiências da minha vida. Eu já estive em muitos países, mas eu nunca encontrei um lugar que eu pudesse dizer ‘aqui eu me identifico’”. - Ana Jung
do”, revela a gaúcha, que contou já ter sido destratada quando pediu orientações em inglês, não em francês. Outro problema de Montreal, segundo ela, é o metrô, que foi construído nos anos 1960 e em determinadas horas do dia é superlotado: “A cidade cresceu, a população aumentou, e o metrô ficou muito pequeno”. Apesar dos problemas pontuais, Ana Cristina voltou encantada com o lugar, apontando a educação e o acolhimento recebido pelos nativos como principais atrativos de Montreal: “Como é uma cidade de imigrantes, eles são acostumados a receber gente de fora de uma forma muito receptiva. É muito bom, tu se sente parte canadense”, afirma, reforçando que pretende voltar para a cidade para se tornar uma moradora do lugar, desta vez, quem sabe, “com o francês afiado.” ÔÔ Dois intercâmbios, uma experiência inesquecível Quem também escolheu o Canadá como destino e voltou com uma impressão positiva foi Elciane Gehring, instrutora de inglês em uma escola de treinamentos e idiomas de Nova Prata, que já possuía outro intercâmbio para os Estados Unidos em 2005 na bagagem e aproveitou ambas as oportunidades para trabalhar, estudar e aprimorar a língua. Ela ficou hospedada, assim como Ana e muitos intercambistas, em casas de família nas duas oportunidades, porém tendo mais contato com a
americana, na qual participava da rotina da casa ativamente, cuidando das crianças e levando-as para a escola. E foi justamente a educação um dos aspectos que a pratense observou quando esteve nos Estados Unidos, visitando as escolas normais (de ensino fundamental e médio), devido ao seu trabalho como babysitter. Lá, os alunos frequentam as disciplinas normais e as extracurriculares em dois turnos, aproveitando assim o dia. Já no Canadá, Elciane teve contato apenas com a Escola de Segunda Língua (Second Language) onde estudou e aproveitou para conhecer pessoas de diversos países. As dificuldades surgiram em diversos aspectos, como a alimentação, pela forma como a comida é temperada. “Nos dois países eles não usam sal, colocam muita pimenta e não gastam muito tempo com a comida, cozinhando tudo muito rápido. Então a comida não tem o mesmo sabor que a daqui.” Porém o grande obstáculo na primeira viagem ficou por conta da língua inglesa, algo logo contornado. “Quando eu fui em 2004 para os Estados Unidos, os três primeiros meses foram muito difíceis porque eu não dominava a língua. Depois desse período, quando eu já estava estudando e convivendo com as pessoas, não era mais tão difícil.” ÔÔ Veio pra ficar A língua, que para alguns é um problema na hora de conhecer o mundo, pode
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A viagem de Elciane proporcionou conhecer dois países muito parecidos e próximos: EUA e Canadá Fotos: Arquivo Pessoal
ser também o motivo para querer se aventurar longe de casa. Com um sotaque da região da Galícia, porém português impecável, Elena Veiga Rilo chegou ao Brasil este ano para estudar Letras na Universidade de Passo Fundo. Deixou para trás a vida universitária na histórica cidade de Santiago de Compostela, na Espanha, onde estudava galego - idioma que teve a mesma origem do português - e optou viver uma experiência de seis meses como moradora de Passo Fundo. A escolha da cidade surgiu quando integrantes da Jornada Nacional de Literatura visitaram sua universidade na Espanha e informaram sobre os projetos literários presentes na cidade e realizados pela UPF. “Ela falou sobre a Jornada, achei muito legal e queria conhecer”. Logo, gostou da ideia de morar em uma cidade não tão grande e poder conviver com a cultura gaúcha, sabidamente diferente do resto do país. Já no primeiro dia, Elena notou diferenças de sua terra natal. “Aqui os carros não param”, conta ela, descontraindo sobre a falta de respeito de motoristas com pedestres. Outro problema surgiu na hora de alugar um apartamento. Como muitos estudantes brasileiros, ela se deparou com algumas práticas duvidosas das imobiliárias. “Eles te pedem coisas tipo pagar dez meses adiantado. Também te diziam um preço e na hora de cobrar era outro, ou seja, era como se tentassem te enganar”, uma experiência que ela define, brincando, como um “trauma total”. Agora, instalada em um apartamento pequeno, porém maior do que possuía na Espanha, ela conta que se sentiu acolhida pelos brasileiros. A saudade fica por conta do trem, meio de transporte comum na Europa, porém inexistente em terras brasileiras, onde o ônibus impera. E foi justamente utilizando essa condução que ela percebeu algo incomum para a sua realidade. “No ônibus são o cobrador e o motorista, duas pessoas trabalhando, quando na Europa é só uma. No prédio também, tem o síndico e mais gente, quando lá é só uma pessoa que resolve tudo”.
“Quando me diziam ‘oi guria’, eu pensava ‘espero que seja algo bom’” lembra Elena Rilo
As semelhanças, mais difíceis de detectar, se mostram na vida estudantil e na vida que o povo daqui leva de forma geral. Ela se sentiu em casa também pelo clima encontrado aqui no sul, parecido com o da Galícia, perfeito para um chimarrão, que ela provou logo na chegada e gostou. Apesar de estar em um cenário parecido com o que deixou do outro lado do oceano, Elena aproveitou a oportunidade para conhecer cidades como Salvador e São Paulo, onde encontrou os “clichês” brasileiros, tão explorados no exterior, porém aparentemente inexistentes aqui. Acostumada com o sotaque de Portugal, que não conseguiu aprender quando esteve lá, Elena chegou aqui se deparando com algumas mudanças na língua. “Eu estava acostumada ao português de Portugal também porque foi o que aprendi na faculdade. Embora houvesse aulas de literatura brasileira, aqui mudam algumas coisas como, por exemplo, o gerúndio”. Outra diferença no modo de falar fica por conta das gírias locais, gerando situações engraçadas que ela recorda com descontração: “Quando me diziam ‘oi guria’, eu pensava ‘espero que seja algo bom’”. Elena chegou aqui interessada em ampliar seus horizontes, mas um dos principais motivos foi a crise econômica que atinge seu país desde 2008 e dificulta a vida dos jovens espanhóis. Privada de oportunidades pela falta de experiência, aqui conseguiu muito mais que satisfação pessoal e uma troca de culturas: “Surgiu uma oportunidade de dar aulas de galego em Salvador, então tive que ir pra lá. Fui correndo. Volto pra lá em janeiro para ficar três anos”, revela contente a agora quase professora. Descontraída e já acostumada à realidade brasileira, ela se diz satisfeita com a experiência: “Tu conhece muita gente nova, entra em contato com culturas diferentes da tua, conhece não só brasileiros, mas os outros intercambistas. Há uma troca que se estabelece e que te enriquece”, avalia. ÔÔ Apesar da crise, não entre em pânico
INTERCÂMBIO
RADAR RADAR Outubro | 2016 Outubro | 2016
São muitos os destinos para quem quer fazer intercâmbio. E mesmo com o dólar alto é possível fazer ótimas viagens, ter experiências inesquecíveis em um mochilão com os amigos, aperfeiçoar uma língua estrangeira e até trabalhar no exterior. É o que garante a consultora de vendas da empresa CI Viagens e Intercâmbios, Julia Machado, que ressalta que alguns países não tiveram suas moedas tão valorizadas como a americana e ainda se apresentam como boas opções no exterior. É o caso da África do Sul, famoso destino de trabalho voluntário, onde a moeda está por R$ 0,30, ou a Austrália, outra muito procurada por aqui, sendo ainda o Canadá o país que mais recebe brasileiros. Existem dois perfis que costumam procuram a agência. “Tem aquele que está se formando ou já se formou, o perfil “apavorado” digamos assim, que não consegue emprego e quer ter uma experiência internacional, arrumar um trabalho e não voltar mais, quer morar fora e chega aqui com dúvidas quanto a questão de visto, tempo do curso de inglês para que o visto seja aprovado, questões mais burocráticas mesmo”, e os que querem aproveitar as férias para aperfeiçoar o inglê ou fazer um mochilão com os amigos”. Para quem se interessou e quer viajar, o processo começa com a retirada do passaporte na Polícia Federal. Feito isso, o próximo passo é a retirada do visto, que em alguns países acontece no ato de entrada. Já em outros é exigido antecipadamente, caso do Canadá. Para isso, Júlia recomenda a contratação de um profissional despachante, pois ele irá resolver as questões legais rapidamente, evitando dúvidas e problemas futuros. Para obter uma experiência como a de Ana Cristina, Elciane ou Elena, não basta o desejo, é preciso também estar preparado para alguns obstáculos comuns a todo aventureiro que irão surgir no caminho. Porém, o conhecimento e a maturidade adquiridos através do intercâmbio também são garantidos. Bons frutos sempre surgem dessa experiência que não é apenas uma viagem e sim uma jornada de autoconhecimento e aprendizado. n