Da cibernética à teoria familiar sistémica

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INSTITUTO DE FORMAÇÃO SISTÊMICA

TERAPEUTA SISTÊMICO

Andréia Chagas Pereira

Florianópolis, novembro de 2005.


INTRODUÇÃO Este trabalho simboliza o final do segundo ano de formação em terapia sistêmica, depois de já ter passado pelo estudo Teórico-vivencial dos fundamentos da Terapia Sistêmica, compreendendo uma nova forma de ver o mundo e o Homem, e de ter estudado as principais escolas de Terapia Familiar Sistêmica e sua aplicação na prática clínica, optei por fazer deste trabalho um resumo do meu aprendizado enquanto iniciante na prática de psicoterapia sistêmica. Em um primeiro momento, será apresentado um breve Histórico da Terapia Familiar Sistêmica, elaborado com o desejo de conhecer e de me aprofundar mais na origem desta teoria, pois acredito que este estudo seja fundamental para um melhor entendimento desta como um todo.

Em seguida, serão apresentados os principais

fundamentos da Teoria Sistêmica, por serem estes que embasam o trabalho clínico de um terapeuta sistêmico. Na seqüência, são discutidas algumas questões referentes a relação terapeuta/cliente no trabalho de psicoterapia sistêmica, já que estas vem fazendo parte dos meus questionamentos no início de minha prática profissional. Finalizando este trabalho, são apresentadas as considerações finais, destacando algumas questões sobre a prática da psicoterapia sistêmica. Este trabalho versa sobre a assimilação de uma postura terapêutica. Ser um terapeuta relacional sistêmico não se restringe apenas em ser sistêmico na vida profissional, esses conceitos e vivências vão pouco a pouco se integrando à vida do profissional, fazendo com que estes profissionais passem a ter uma postura sistêmica diante da vida.


BREVE HISTÓRICO DA TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA As origens da Teoria Sistêmica encontram-se na física quântica, a partir da mudança na visão de mundo, onde se passou da concepção linear-mecanicista de Descartes e Newton para uma visão holística e ecológica, em que o universo é visto como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Neste novo paradigma, nenhuma das propriedades de qualquer parte dessa teia é fundamental, todas elas decorrem das propriedades das outras partes do todo, e a coerência total de suas inter-relações determina a estrutura da teia (Capra, 1982). O foco da visão clínica deixa de ser o intra-psíquico, passando a ser o interrelacional, surgindo, assim, a Teoria Sistêmica aplicada à atividade clínica. Desta forma, inicia-se a Cibernética de Primeira Ordem, que é divida em dois momentos a Primeira Cibernética e a Segunda Cibernética. Os terapeutas da Primeira Cibernética eram mais diretivos, pois planejavam ativamente suas estratégias e ações. Segundo Filomeno (2002, p. 14), estes tinham “como objetivo definir o problema de forma clara e aplicar técnicas para a eliminação ou redução do problema ou sintoma apresentado pela família, pois os sintomas são considerados, nesta época uma ameaça de desequilíbrio”. Esta forma de tratamento tornou-se eficiente e breve, se contrapondo aos tratamentos psicoterapêuticos da época. No entanto, depois de algum tempo do tratamento, muitas famílias voltavam a fazer sintomas em busca da sua homeostase conforme se acreditava. Surge então, a chamada Segunda Cibernética que não possui o foco no sintoma, pois acredita que este surge apenas para identificar que algo não vai bem na família. Dentro dessa visão, o problema não é do paciente referido (pessoa que leva a família à terapia) somente, mas sim de todos os membros da família. Com o início da Cibernética de Segunda Ordem à idéia de consertar uma estrutura que apresenta um problema, não serve mais. Consideram que os problemas não estão nas famílias, mas sim, em sua construção da realidade, em sua relação e na forma pela qual esta permite a emergência de realidades, sujeitos, crenças e sintomas. Este conceito é apresentado por Andolfi (1989, p.87) ao afirmar que “quando consideramos a intervenção terapêutica numa perspectiva sistêmica, temos de redefinir a terapia não como uma intervenção centrada num indivíduo ‘doente’, mas como um ato de participação e crescimento num grupo com uma história”. Sendo assim, o interesse dos terapeutas desloca-se das seqüências de comportamento a serem modificadas, para os processos de construção da realidade e identidade familiar e para os significados gerados no sistema. De acordo com Rapizo


(1996, p.136), “a terapia de família de segunda ordem sai do domínio da exigência e da obrigatoriedade do uso ou não uso de alguma intervenção para o terreno da criatividade, do uso da pessoa do terapeuta e não de algo que é apenas um instrumento” . Na Cibernética de Segunda Ordem surge a noção de auto-referência, ou seja, a idéia de que o observador está inserido na observação que realiza, pois aquele que descreve suas observações, descreve a respeito de si. Segundo Filomeno (2002, p. 22), “quem traz esta idéia é a Cibernética de Segunda Ordem e o Construtivismo e Construcionismo Social, que veio dar consistência ao pensamento Cibernético”. A Figura 1, apresentada por Adersen (1996, p.76), demonstra as principais diferenças entre a forma de pensar da Cibernética de Primeira Ordem e da Cibernética de Segunda Ordem, segundo este autor o nosso pensamento está em constante movimento entre o lado esquerdo e direito do quadro .

CIBERNÉTICA DE PRIMEIRA ORDEM

CIBERNÉTICA DE SEGUNDA ORDEM

O “dado” (p.ex., uma doença) é visto como algo em si próprio.

O “dado” (p.ex., uma doença) é visto como parte de e relacionado a um contexto mutável.

Um profissional trabalha com (trata de) o “dado” (p.ex., uma doença).

Um profissional trabalha com a compreensão que a pessoa tem do “dado” (p.ex., uma doença).

Uma pessoa descobre o “dado” (p.ex., uma doença) como ele é. O “dado” tem somente uma versão.

Uma pessoa cria uma compreensão do que é o “dado”, que é apenas uma de suas muitas possíveis versões.

Uma mudança pessoal pode vir de fora; portanto é previsível.

Uma mudança pessoal evolui espontaneamente de dentro e a pessoa nunca pode saber qual será, como será ou quando acontecerá. Figura 1 – Diferenças de pensamento entre primeira e segunda cibernética.

REFERENCIAL SISTÊMICO Existem alguns pressupostos considerados básicos na Terapia sistêmica. O indivíduo é sempre considerado em um sistema, nada existe se não em relação, o que faz com que o universo seja visto como uma rede de inter-relações. A família em si é considerada uma unidade, em que todas as partes estão ligadas e interagem. Existindo um movimento contínuo e circular de troca entre o sistema familiar e a estrutura individual. No modelo de desenvolvimento humano, a


matriz de identificação é a família. Desta forma, para crescer é preciso estar dentro do grupo trocando e aprendendo. A família passa por ciclos de vida onde, de diferentes maneiras, busca manter um equilíbrio. A temática desenrola-se através das gerações, deste modo, deve-se compreender não só a família atual, como a tri-geracional (Andolfi, 1989). Na Terapia Sistêmica não existe verdade absoluta, o que existe é aquela pessoa diante de determinada situação, isto faz com que não exista certo ou errado, bom ou ruim, vítima ou algoz. O terapeuta trabalha no sentido de permitir que o cliente reconheça seu próprio padrão de funcionamento, o seu jeito de ser, aquela forma como se apresenta, age e reage nas mais diversas ocasiões. Segundo Rapizo (1996, p.136), esta postura faz com que surja “um contexto em que certezas não têm lugar, em que o terapeuta convive com a angústia do indeterminado, do imprevisível”. O terapeuta deve trabalhar considerando todas as hipóteses existentes a partir de uma determinada situação e as inter-relações entre elas, pois é isto que permite o distanciamento das verdades absolutas. De acordo com Bolosco, Cecchin, Hoffmann e Penn (1993, p. 25) “a hipótese precisa, pois, ser ‘sistêmica’, isto é, precisa englobar todos os elementos de uma situação problema e a forma como eles se ligam. Como não há nenhuma tentativa de ver a hipótese como verdadeira ou falsa, o que interessa é que ela pode ser útil no sentido de conduzir a novas informações que levem à família a mudança”. O terapeuta trabalha em uma postura simétrica não ingênua, ou seja, entendendo a diferença de intenção do cliente e do terapeuta, na qual o terapeuta procura ajudar na solução de um problema, sem se colocar em uma postura de expert do problema do outro. Desta forma, cliente e terapeuta trabalham juntos na construção de hipóteses que podem ser compreendidas no decorrer do processo terapêutico. Os terapeutas devem estar atentos aos sentimentos que um determinado cliente lhe inspira, pois estes podem ser transformados em excelentes instrumentos de trabalho, ou seja, trunfos. Estes sentimentos possuem uma função dentro do sistema terapeuta / cliente, podendo apresentar um conjunto de zonas e de crenças que merecem ser aprofundadas e trabalhadas. O terapeuta pode compartilha experiências de sua própria vida, com o objetivo de desmistificar o processo e reduzir a distância profissional, quando perceber que isso é importante para o cliente no momento. O indivíduo escolhe tudo que lhe acontece, a própria pessoa é quem determina, na maioria dos casos, se os acontecimentos de sua vida continuarão existindo ou não. O que é variável é o nível de consciência da escolha. No entanto, o inconsciente é,


simplesmente, todas as coisas que se escolhe não tomar consciência. Desta forma, as pessoas, às vezes escolhem dor, sofrimento e não se permitem saber que estão escolhendo isto (Rosset, 2002). O terapeuta relacional sistêmico compartilha com o cliente a responsabilidade da busca de soluções para as questões trabalhadas no processo terapêutico, não fixando-se nos problemas, nas dificuldades, mas sim nas novas soluções, nas mudanças, prestando atenção nas dificuldades que podem se tornar problemas. Deve existir um respeito ético pela autonomia do cliente, acreditando-se na capacidade auto-reguladora do sujeito.

RELAÇÃO TERAPEUTA/CLIENTE Segundo Rosset (2002), “na visão relacional sistêmica, quando alguém na família apresenta algum sintoma, acredita-se que é porque a família está precisando, naquele momento aprender algum novo comportamento, fazer alguma remodelação no seu funcionamento, ou mudar comportamentos que mesmo que tenham sido úteis em outra etapa, agora são disfuncionais”. Sendo assim, o trabalho é realizado com foco na mudança e na aprendizagem de novos padrões de relação, sem priorizar o sintoma. Com isso não se isola o sintoma ou área sintomática do contexto mais amplo de relações. No trabalho clínico o terapeuta sistêmico não precisa entender "o porque" das questões e sim ajudar o cliente a entender "o pra que" e o "como", tendo como preocupação "a forma" como estas questões se apresentam na vida do cliente, isto mantendo o foco sempre na mudança. As intervenções são realizadas considerando e rearranjando as relações entre os indivíduos e do indivíduo consigo mesmo, sendo a própria relação com o Terapeuta um modelo de mudança. Isto é realizado através dos diversos níveis de comunicação verbal, não verbal, paraverbal, das situações terapêuticas na própria rede, no grupo, nas tarefas e na relação terapêutica. As questões sobre a relação terapêutica/cliente fazem parte das minhas reflexões atuais pelo próprio momento de vida em que estou passando. Trabalhar com os paradoxos de ser um terapeuta que pode compreender e ter distanciamento do que é vivido pelo cliente sem adotar uma postura de grande saber ou verdade absoluta, ao mesmo tempo ser uma pessoa que vive uma vida real, iniciando uma carreira profissional, vem sendo meu grande desafio atualmente.


Auxiliar o cliente a ser sujeito da sua vida, sem fugir da responsabilidade e da tarefa profissional de intervir sem direcionar, compreender sem dar álibis, dar continente sem infantilizar (Rosset, 2002). Conseguir adequar minhas vivências com o padrão do cliente, com as aprendizagens que aquele sistema precisa ter naquele momento, sabendo reconhecer os momentos certos para intervir. São muitas as questões que vem rondando meus pensamentos atualmente, Qual a queixa que meu paciente me trás? Qual a demanda por de trás desta queixa? De que forma esta demanda deve ser trabalhada? De que forma eu gosto de trabalhar? Qual a melhor forma de trabalhar? Eu possuo conhecimento e experiência de vida suficiente para realizar um bom trabalho? No entanto, todas estas questões se referem à forma de ser e de trabalhar de cada profissional.


CONCLUSÃO Segundo Prado (2002, p.20), um elemento essencial da terapia, é a criatividade, pois o profissional deve ser capaz de criar algo novo, próprio, pessoal, manifestação única de seu self, afinal esta será a forma mais adequada de trabalho para aquele profissional. Para o terapeuta “sua história, suas vivências, sua forma de ser darão o toque pessoal e único a cada intervenção”. De acordo com este autor, o maior desafio para cada terapeuta é saber encontrar as técnicas e o modo de implementá-las que melhor se adapte a seu self. A aflição daqueles que, como eu, estão iniciando nesta profissão é descobrir a sua forma de trabalhar e como pode utilizar-se de suas próprias experiências para enriquecer seu trabalho, no entanto, Prado afirma que este é o maior desafio para cada terapeuta ao longo de sua construção. De acordo com Rosset (2002, p.1) “A doçura ou a firmeza, o limite ou a complacência, o compartilhar ou o silêncio, a redefinição ou a aceitação, a explicitação ou o encobrimento, serão mais úteis na medida em que o terapeuta tenha clareza de como esses temas o tocam, de como estão inseridos na sua vida, nos seus valores, nas suas crenças”. A partir disso, estas técnicas poderão ser usados de forma mais terapêutica na relação com o cliente. Durante este período do curso de formação em terapia sistêmica um dos meus grandes aprendizados foi que um terapeuta deve tomar consciência do seu próprio funcionamento, pois isto o ajuda a ter discernimento para escolher de que forma trabalhar com cada cliente, ativando os aspectos de mudança e cura que eles trazem dentro de si. Atualmente tem sido um grande desafio para mim, diferenciar os meus sentimentos enquanto terapeuta que está iniciando este papel e os sentimentos que surgem devido às situações e momentos específicos vividos no consultório. A partir do momento em que minhas tensões, despertadas pelo desconhecido de atender um paciente como uma profissional, forem diminuindo poderei ter mais clareza do que realmente estou sentindo ao atender cada paciente. Assim poderei diferenciar meu medo e cobrança dos outros sentimentos que forem surgindo, no entanto, acredito que esta capacidade só irei adquirir com o tempo e a prática profissional.


REFERÊNCIAS ANDERSEN, T. Processos Reflexivos. Rio de Janeiro: Instituto NOOS, 1996. ANDOLFI, M. e ANGELO, C. Tempo e Mito em Psicoterapia Familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. BOLOSCO, L.; CECCHIN, G.; HOFFMAN, L; PENN, P. A Terapia Familiar Sistêmica de Milão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982. FILOMENO, K. Da Cibernética Movimento, 2002. (Não Publicado)

à

Teoria

Familiar

Sistêmica.

Florianópolis:

PRADO, L. C. O Ser Terapeuta. Porto Alegre: Gráfica UFRG, 2002. RAPIZO, R. Terapia Sistêmica de Família: da instrução à construção. Rio de Janeiro: Instituto NOOS, 1996. ROSSET, S. M. Compreensão Relacional Sistêmica dos Sintomas. Disponível em: http://www.srosset.com.br/. Acesso em: 20/11/05.

2002.

ROSSET, S. M. Ser e Estar na Relação com o Cliente. 2002. Disponível em: http://www.srosset.com.br/. Acesso em: 20/11/05.


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