Em demanda de uma economia do Dom

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MANUEL REIS

EM DEMANDA DE UMA ECONOMIA DO DOM

CENTRO DE ESTUDOS DO HUMANISMO CRÍTICO (CEHC)


[Professor Manuel Reis]

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E eis aqui, como dizem a professora Maria C. Arruda e o professor Carlos Firmino, a Lectio Sapientiae sobre a ECONOMIA DO DOM, que Manuel Reis escreveu em 1963 e nos chega às mãos, hoje, que é 2012, com os novos pensamentos do autor e sem camuflar os posicionamento anteriores, porque “o reino do Imaginário humano é incontornável... e o hibridismo, na melhor das hipóteses, até funciona aí como uma certa regra d´ouro, que faculta a continuidade temporal entre as gerações e a convivialidade entre os vivos, mesmo com ´cabeças´ muito diferentes” [Manuel Reis, 2012]. A acompanhar esta obra literária do notável universalismo do português Manuel Reis, a escultura O Desterrado, do naturalista Soares dos Reis, está na capa, porque a vida é uma mutação contínua entre gerações humanas. EM DEMANDA DE UMA ECONOMIA DO DOM é a lição do Mestre que pinça nas variantes da própria existência os conteúdos pedagógicos para estabelecer a Filosofia da Justiça Social e, nela, a construção de uma Ordem Mundial com base no Amor e na Paz. J. C. Macedo [poeta e jornalista], 2012.

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INTRODUÇÃO AO ENSAIO SOBRE ‘A ECONOMIA DO DOM’

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PRÓLOGO DO AUTOR a um seu Ensaio de 1963, com o título: ‘UMA ECONOMIA NOVA: A ECONOMIA DO DOM!’ Destinada (de imediato) a uma edição electrónica na Rev. ‘Noética’ (São Paulo/Br.) ─ 2012

* (Exergos de Enquadramento)

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● ‘O Homem é a única criatura capaz de se deixar morrer de fome no meio da abundância’. (Julia Kristeva, psico-linguista e antropóloga búlgara).

● ‘O Homem é a única criatura capaz de distinguir a água benta da água natural’. (Todo o Mundo e Ninguém).

● Resistir à Neguentropia e às Inércias societárias constitui o 1º Mandato do ‘Homo Sapiens//Sapiens’ (de que não cura o ‘Homo Sapiens tout court’, que muitos também chamam ‘demens’, em igual percentagem). Desta sorte, manter e preservar a Autonomia pessoal e a acribia na independência de um Pensamento crítico, em ambiente absolutamente dominado (por modos directos ou indirectos) pelos Poderes Estabelecidos, dentro do odre da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, nunca foi tarefa fácil para ninguém.

● “A vera Teoria económica é nos Tratados de Teologia Moral e do Direito que ela se encontra. Dada a forte centralidade (nos dois campos), tanto das orientações/ditames ético-morais, como

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das instituições jurídicas, na organização e funcionamento das Sociedades humanas. Não esquecer, entretanto, (mais na óptica do passado do que na do presente…) os chamados manuais de confessores e directores espirituais. A vera Teoria económica pode encontrar-se mais e melhor, aí, nesses três sítios, do que nos lugares habituais dos Compêndios de Economia política”. (M. Reis, 1963).

● “The quantum principle shows that there is a sense in which what the observer will do in the future defines what happens in the past ─ even in a past so remote that life did not then exist, and shows even more, that ‘observership’ is a prerequisite for any useful version of ‘reality’. One is led by these considerations to explore the working hypothesis that ‘observership is the mechanism of genesis’”. (John Archibald Wheeler, in ‘Genesis and Observership’, cit. in ‘The Forbidden Universe’, by Lynn Picknett and Clive Prince, Constable, London, 2011, pp.322-323). Reconhecendo a alta importância da hipótese de Wheeler, Bernard Carr (in ‘On the Origin, Evolution and Purpose of the Physical Universe’, cit. i6


bi, p.323) comenta e confirma o bem-fundado da Ideia: “Wheeler has suggested a more radical interpretation in which the universe does not even come into being in a well-defined way until an observer is produced who can perceive it. In this case, the very existence of the universe depends on life”. A Lição é dupla e tem um postulado: À escala evolutiva do Psico-Sócio-Ânthropos (a coroa do Universo), não se pode misturar e confundir Sujeito e Objecto; no entanto, é da natureza e da índole de ambos articularem-se. Reside aí a chave, que nos permitirá banir uma noção fabriqueira de Criação, com os seus pressupostos/implicações no Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, construído como Alavanca ideológica da Cultura do Poder-Dominação d’abord.

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A

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Como surgiu o Ensaio, o que o balizou ideológico-culturalmente, e as reacções sócio-culturais que ele veio a desencadear.

1. Em fins de Junho de 1963, no Seminário Maior de Coimbra, em reunião presidida pelo Reitor, o Conselho de Professores deliberou, por unanimidade, atribuir a tarefa da ‘Lectio Sapientiae’ inaugural, para o Ano lectivo de 1963-1964, ao Pe Dr. Manuel Reis. Como era da Tradição, a escolha do Tema pertencia ao Professor nomeado para o efeito. 2. O contexto psico-sócio-cultural da época (com o Concílio Vaticano II anunciado e preparado desde 1959 e a decorrer desde 1962 a 1965, ao lado das sociedades ocidentais em ebulição convulsiva, a braços com a sua reconstrução e a sua reorganização, no encalço da IIª Guerra Mundial) constituía um marco incontornável a pedir Ideias Novas e soluções adequadas para o presente e o futuro. Foi nessa ambiência ideológico-cultural que o Prof. encarregado da ‘L.S.’ (a proferir, em fins de Novembro de 1963), trocou as férias grandes pelo Labor e preocupação de redigir um Ensaio subordinado ao tema da Economia do Dom, inspirado, originalmente, na obra homónima de Marcel Mauss (1872-1950). Neste horizonte, foram, sem dúvida, três as dimensões ou registos que o balizaram e orientaram, nas reflexões e no estudo em que se empenhou: a) Sob o signo de Marcel Mauss e do seu famoso ‘Essai sur le Don’. Esta bandeira não podia ser esquecida ou postergada. A obra-prima deste sociólogo multifacetado tinha, necessariamente, de constituir o ponto de partida em todas as reflexões críticas de Economia política: em termos de ‘arqueologia do saber’ sobre as matérias em causa, e na óptica da crítica, necessária e indispensável, às ideológicas correntes vanguardistas em vigor, designadamente as marxistas. Na altura, ninguém melhor do que Mauss poderia carrear melhores e mais fecundas novidades, no concernente às bases antropológicas e histórico-etnográficas da moderna Economia política: estavam em causa as próprias âncoras do Processo Civilizatório que a História tem conhecido, nomeadamente: o patriarcado machista e dominador que, desde há 5 milénios e meio, tinha atirado borda fora a ancestral Era da Gilania e das Divindades Femininas, que estimulavam a união e a harmonia dos Humanos com a Madre-Natura; o Egocentrismo; o primado do Ter sobre o Ser; a conquista e a dominação; o Lucro (egoísta…) primacial e primordial. b) Algum marxismo (metodológico): obviamente, não o ‘M. Vulgata’ e dogmático (tornado catecismo dos regimes ditos, erradamente, ‘comunistas’; mas o marxismo crítico, cujo padrão se poderia encontrar e recuperar nos trabalhos e escritos do ‘Jóvem Marx’ (1844-45; 1857-1858).

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c) A então ainda celebrada ‘Doutrina Social da Igreja’ (a qual tem o seu início oficial com a Encíclica ‘Rerum Novarum’ (1891) de Leão XIII e acabou por ser assassinada e enterrada com a Enc. ‘Caritas in Veritate’ do papa Ratzinger, Bento XVI, (em 29.6.2009), como nós demonstrámos (no âmbito do C.E.H.C.) na nossa Obra ‘Em busca de Outra Humanidade’ (I vol.: edição electrónica, na ‘Noética’, a partir de São Paulo/Br., 2011). 3. Sobre a ‘Lectio Sapientiae’, em fins de Novembro de 1963, e as reacções ideológico-culturais, que ela veio a desencadear, desde logo na cidade de Coimbra. O salão de S. Tomás de Aquino, na Casa ‘Novíssima’ do Seminário Maior de Coimbra, estava repleto de gente interessada. (Comportava mais de quinhentas pessoas sentadas). O orador leu o seu Ensaio, por inteiro, perante uma audiência interessada e atenta (desde as 21 horas de sábado até às 2 da manhã de domingo). Ainda hoje me surpreendo duplamente: pela minha coragem e ousadia em ‘abusar’ assim de um Auditório… e pela paciência estóica do Auditório em aturar o orador!... Por melhores que fossem as mensagens. Na segunda feira imediata (nas imediações do Liceu D. João III, que, depois do 25 de Abril de 1974, veio mudar o nome do patrono para José Falcão), foi o próprio Au-tor do Ensaio (que era Prof. de Moral e Religião nessa Escola) que ouviu alguns sussurros e increpações do Vulgo passeante do tipo: ‘Olha o padre comunista que o Arcebispo tem lá no Seminário!...’. É claro que não havia razão para dar troco à chacota… O Autor do Ensaio chegou, posteriormente, a fazer duas tentativas para a possível edição da obra: a 1ª, em 1964, foi junto da Moraes Editores do Dr. A. Alçada Baptista (que a partir de 1965 começou a editar as minhas obras), e a 2ª, em 1965, foi junto da Europa-América de F. León de Castro. As duas tentativas resultaram, ambas, goradas. Vistas bem as coisas, o Autor não podia estranhar o fracasso!... *

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* B

No contexto da Contemporaneidade hodierna, (e no horizonte da Pós-Modernidade positiva e crítica), o Ensaio em causa é pertinente e ainda pode ser útil e fecundo. 9


1. ─ Algumas Notas soltas sobre Marcel Mauss (sociólogo francês: 10.5.187210.2.1950). Foi estudante em Epinal, sua cidade natal; estudou, igualmente, em Bordéus, com seu tio e mestre E. Durkheim. É considerado, com E. Durkheim, um dos dois principais Sociólogos/Antropólogos franceses, que deixaram profundas influências nos campos da sociologia, da etnologia, da psicologia e da própria linguística. Muito especialmente, M.M. soube manter sempre presente, de algum modo, o nosso modelo holístico-crítico, o Psico--Sócio-Ânthropos, que é o vero ancoradouro do C.E.H.C. (Centro de Estudos do Humanismo Crítico). Em termos metodológicos, M.M. soube aliar e unir (o que é frequentemente difícil e paradoxal…) a argumentação racional sistemática e as necessárias intuições metodológicas fecundas. É, hoje, indiscutível que o seu ‘Essai sur le don’ (de 1925) constitui a sua obra-prima, a mais representativa e fecunda (à la longue…) de todas as suas obras. Foi professor de matérias como a religião primitiva, na École Pratique des Hautes Études de Paris, e no Collège de France, de 1931-1939. É indisfarçável que a influência ideológico/cultural de M.M. tem vindo a aumentar, decisivamente, desde a IIª Guerra Mundial, muito especialmente a cavalo da sua obra-prima ‘Essai sur le don’. O que veio a despoletar-lhe as atenções para as suas intuições matriciais sobre a economia do dom, foram, sem dúvida, os estudos e investigações, que empreendeu, em história e sociologia das religiões indianas e dos primitivos povos não-civilizados, durante o período em que foi professor na École Pratique des Hautes Études. Não esquecer que foi com Lévy-Bruhl que ele despertou para a história social das principais categorias definidoras do espírito humano. E as conclusões a que chegou são importantes e decisivas: Essas categorias não são inatas; são elaboradas progressivamente, ao longo da História e ao ritmo das experiências humanas diferenciadas, sendo a relatividade (cujo núcleo semântico é, antes de tudo, o da relação com…) um dos seus factores fundamentais. Neste contexto, já se vê que a educação e a instrução são, aí, essenciais e decisivas. Sobre ‘La notion de personne’ (1938). Aqui, M.M. assevera que esta noção foi elaborada ao longo de séculos e milénios, a partir da noção (enteléquia) de personagem e da máscara (material) até ascender à noção de personalidade. Primeiro, foi o acesso elementar à consciência do eu; e, logo a seguir, à consciência do respeito pelo eu dos outros. Entram, aí, no respectivo processus de formação, no universo da vida dos humanos, os seus direitos, as suas religiões, os seus usos e costumes, as estruturas sociais e as mentalidades, sem esquecer, obviamente, as revoluções civis/políticas. A pessoa, enquanto tal, não é, para M.M., apenas função da cultura (como acontece na Antropologia norte-americana, de forte pendor dualista…). Ela é, em termos holísticos, uma construção da 10


História, operada evolucionariamente: uma construção, na plenitude holística do Psico-Sócio-Ânthropos (como nós defendemos no C.E.H.C.). Para M.M., a Sociedade e a Vida mental dos Humanos integram-se, plenamente, na Natureza, a tal ponto que a transição do segundo patamar (S.) para o primeiro (N.) é, por vezes, imediata, tal como acontece na psico-somática. Um exemplo: a sugestão da morte, expressa através da hostilidade de todo um grupo, leva à morte efectiva do indivíduo em foco. É a totalidade psico-física que aí funciona. (Cf. ‘Effet physique chez l’individu de l’idée de mort sugérée par la colectivité’, 1928). Neste horizonte (que é o do padrão/base do hilemorfismo aristotélico e da profunda união psico-física dos seres humanos), cada civilização marca os indivíduos pelos modos de usar o próprio corpo, ─ modos de usar que lhes são ensinados, tanto no desporto como no trabalho, tanto no andar e repousar como nos gestos cerimoniais bem como na expressão dos sentimentos e das emoções. Nesta perspectiva, a Sociedade inscreve-se, assim, na própria fisiologia; o psíquico deriva mais do social do que o inverso: a realidade da colectividade configura-se antes da consciência colectiva. É, de facto, por esta via que se acede a esse pléroma que dá pelo nome de ‘facto social total’, em M.M.. A sua configuração holística pode descrever-se como segue: todo o facto social e humano começa na sua dimensão material, situando-se no espaço e dependendo dos lugares (geografia física e humana). Primeiro, o facto social é numerável e estatístico; depois, quando se concretiza em cada indivíduo, é a psicologia que toma conta dele. E além disso, por detrás de todo o facto social, há a história, as tradições, os hábitos… Mesmo os mais novos e revolucionários estão carregados de passado. Entre os humanos ─ é bom nunca esquecer ─, a comunicação e a comunhão são efectuadas através de símbolos, sinais comuns, permanentes e exteriores aos estados mentais dos indivíduos. De resto, os fenómenos fundamentais continuam a situar-se ao nível do inconsciente, que faz a mediação entre eu e outrem, e que constitui a base da identidade do colectivo. Esta tese está tanto mais carregada de realidade, com uma semântica profunda, quanto mais o processo da Civilização, ao longo da História, tem sido avesso a lidar com a Consciência dos Indivíduos e a tirar partido das suas Experiências de vida partilhados. Lévi-Strauss cometeu o erro de assimilar todos os factos sociais à línguagem; e, por essa via, ele fundou e constituiu o Estruturalismo (e a correlativa escola ideológico-cultural). Não foi essa a via de Marcel Mauss. Enquanto a Escola estruturalista se deixou encerrar em circuitos fechados, nos super-determinismos que foram apagando, progressivamente, os feróis das Consciências individuais-pessoais, a via metodológica e epistémica de M.M. manteve o Caminho aberto (no plano dos Indivíduos e no das Sociedades), precisamente porque ela é o resultado da análise combinatória de todos os factos sociais, enquanto permutas constituídas entre os indivíduos. 11


O ‘estruturalismo’ de M.M. (se ainda é legítimo falar assim… nós entendemos que não) é, radicalmente, histórico, justamente porque se baseia no conceito prenhe de facto social total. Este conceito anima, operatoriamente, todos os seus trabalhos e obras; e constitui um pattern bem identificado no ‘Essai sur le don’. Curiosamente, o chamado ‘facto psíquico total’ de G. Gurvitch já redunda numa redução idealista, imprópria e, finalmente, errada, porque cedeu à velha dogmática do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo. Numa perspectiva diametralmente oposta, o ‘facto social total’ de M.M. põe em causa, em termos sócio-epistémicos, a própria totalidade da existência colectiva das Sociedades humanas; ele implica todas as dimensões ou registos, que devem integrar o Edifício humano: religiões, estéticas, direito e jurisprudência, economia, ciências, etc.. Ele incide tanto no subjectivo individual como na objectividade da vida social. Ele flui do exterior e material para o interior e psíquico, e vice-versa. Ele adoptou a saga ancestral dos Gnósticos da antiga Escola de Alexandria, (a cidade portuária do Egipto, fundada em 332 a.E.C., por Alexandre Magno, e que, nos inícios do séc. III a.E.C., teve uma florescente Escola de filósofos, teólogos e linguistas, onde se notabilizaram os ‘Septuaginta’ sábios, que procederam à tradução da Bíblia hebraica para o grego koinè diálektos).

2. ─ A propósito da invocação e da tentativa de recuperação recentes de Marcel Mauss, pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk (um dos três ou quatro maiores pensadores germânicos das últimas duas décadas). Já conhecíamos P.S. de três livros, que até foram traduzidos e editados em Portugal. Em jeito de quem pretende retomar (em época de crise profunda do Sistema capitalista e numa atmosfera de mediocridade geral, tanto nas Academias como nos Governos dos Estados) o pensamento criticista dos anos ’70 do séc. XX, Peter Sloterdijk, há ca. de dois anos, começou por explorar e promover os debates públicos sobre o Tema das ‘energias psicopolíticas’ (que a Crise financeira→ económica, desde 2008, tanto tem desafiado como amordaçado…). Ancorado nesse pressuposto das ‘energias psicopolíticas’, P.S. desencadeou um aceso debate, em alguns jornais alemães, no seu estilo meio provocatório, fazendo apelo à teoria do dom de Marcel Mauss, enquanto laço social constituinte primário. Nesta perspectiva, ele propôs a seguinte experiência intelectual aos responsáveis políticos da Administração fiscal e ao público em geral: “que os impostos fossem repensados de modo a considerar o cidadão contribuinte como um dador (Sloterdijk pensa que o nosso sistema fiscal mascara voluntariamente o carácter de dom) e não como um devedor, passando-se assim do sistema da obrigatoriedade a outro baseado no gesto voluntário”. (António Guerreiro, in ‘Expresso’/Atual, 30.6.2012, p.38). Comentando o resultado dos debates, A.G. (ibidem) acrescentou: “Como é óbvio, foi acusado de querer desmantelar o Estado social e de andar a brincar perigosamente 12


com ideias utópicas. Mas a verdade é que ele conseguiu introduzir a ideia de que, na fase actual do capitalismo, era necessária uma reforma fiscal e repensar os impostos, a partir de pressupostos que estão completamente fora do horizonte do poder político”. Algumas advertências críticas à puridade: ─ Não é, seguramente, uma nova teoria dos impostos, que irá alterar substancialmente o neoliberalismo capitalista global e recuperar, assim, com legitimidade, o pensamento revolucionário estruturador de Marcel Mauss. Isto só nos mostra até que ponto campeia a Mediocridade generalizada: não há muita gente dita ilustrada e responsável a tecer loas às Wikypaedias, em nome do ideário, supostamente difundido, da Democracia, em contraste com as Enciclopédias tradicionais (com os seus estudos culturais e científicos penetrantes e exaustivos…), tais como a Britannica, a Larousse, a Verbo, que são cada vez mais desdenhadas, em nome do estigma da ‘cultura erudita’?!... ─ O próprio A.G. parece não ter entendido, cabalmente, o pensamento crítico de P.S., ao fazer referência ao pressuposto de que o sistema fiscal mascara voluntariamente o carácter de dom dos impostos… O advérbio de modo está a mais: o sistema actua impessoalmente, a tal ponto que toda a mega-geringonza financeira, dentro da cartilha do economicismo, só pode operar mecanicisticamente!... Quando se abandona a política séria, em nome do vil economicismo, supostamente gerador de liberdade (uma ilusão…), é o próprio Estado de direito que se elimina. A realidade das coisas e dos processos é muito mais séria do que a superfície dos fenómenos pode sugerir. ─ Aurélio Agostinho (bispo de Hipona) já nos punha, no séc. V, de sobreaviso, ao asseverar perorando: ‘Se se puser de parte o Direito, baseado na Justiça e na Verdade, em que se distinguirá, então, o Estado, em confronto com um bando de salteadores?!’ Ora, ‘para que o Mal vença, basta que o Bem nada faça’ (poucos o dizem e muitos é desta forma que actuam…). Tecem-se, canónicamente, loas à Liberdade (senz’altro…); mas muito poucos assumem o que nós chamamos, no CEHC, a Liberdade Responsável (primacial e primordial) de todos os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos! ─ Que significa mudar a intencionalidade do pagador de impostos ao erário público (como pretende P.S.), se, na Mega-Máquina das Sociedades (estigmatizada pelo Sistema capitalista do Lucro d’abord), os Governos dos Estados e a Política de turno deixam à solta os ‘off-shores’ (paraísos fiscais), não regulam adequadamente as operações das Agências de Rating, continuam a considerar (erradamente…) os chamados ‘mercados de capitais’ como expressão da democracia, quando, na verdade, eles não passam de uma implacável ditadura sobre os Estados e as respectivas populações?! C. Lagarde (a Senhora do F.M.I.) recomendava, no princípio de Julho 2012, a banqueiros e bancários, que os Bancos também serviam para alavancar e promover a economia real e ajudar a resolver os problemas do desemprego endémico. Não é simplesmente patético um tal sermão?!... Na estação internacional da TV, Euronews, antes de ser dado ao telespectador o quadro 13


das variações e cotações na Bolsa de Valores, ouve-se uma voz off a entoar a expressão: ‘Admiral Markets’!... O mercado dos ‘produtos financeiros’ (supostamente entregues à sorte ou azar…) tornou-se uma vera religião profana… e já nem se dá conta da tonalidade patética que tudo isso encerra!... Num artigo (difundido na Rev. Electrónica ‘Noética’, 30.6.2012) de Johanne Liffey & J.C. Macedo, com o título ‘Corporativismo Objectualista & Liberdade’, foi escrito, semântica e justificadamente, em exergo, a estrofe: ‘O sonho de consumo da pessoa egoísta/é poder olhar por cima dos ombros e espezinhar/a comunidade onde obtém os lucros que capitaliza/e divide unicamente com as elites do sistema’. De facto, o Egoísta só pensa em si; não se dá conta do Todo da comunidade a que pertence. Pelo seu feitio unicórnio e avarento, ele tornou-se um zombie… deixando de ser humano!... A Economia do Dom (aberta e dirigida aos Sujeitos-humanos/Pessoas, e não balizada para a construção ilimitada de produtos-mercadorias, como ordena o Sistema capitalista) é tanto mais justificada e legitimada pelo Psico-Sócio-Ânthropos, quanto mais se dá conta de que o Corporativismo objectualista, comandado pela Potestas d’abord, destrói e condiciona, inelutavelmente, as Liberdades Responsáveis dos Indivíduos-Pessoas. Os Sujeitos humanos foram eclipsados e anulados, em vantagem dos Objectos e do Objectualismo do Sistema pan-envolvente. Escrevem, com perspicácia e acerto, J. Liffey & J.C. Macedo (ibi, p.2): “O objectualismo mercantil, que marca a sociedade consumista, só pode ser analisado sob a óptica do próprio vício que é o custo-benefício, ou seja, tudo tem que gerar lucro ou não tem valor, por isso, e por exemplo, tanto uma sala de aula como um auditório de igreja são parte dessa plataforma, pelo que ‘o ensino de uma profissão e o catecismo de um dogma estão entre os produtos capitalizados pela sociedade de consumo, e a ruptura em algum ponto da plataforma pode ferir fatalmente o conceito de poder corporativo’ [Novaes, 1973]”. Não são apenas a sociedade consumista (tornada rebanho/zombie) e o Sistema capitalista (tornado religião para todos os efeitos) que aí estão em causa. É a própria Cultura do Poder-Dominação d’abord e o Processo civilizatório (ancorado no Ter, e não no Ser dos Indivíduos-Pessoas) que aí se acham em causa, ─ impondo, absolutamente, soluções alternativas. Com imaginação e humor sarcástico q.b., escreve o par supra-referenciado (ibi, p.1): “A falta de visão humana em torno de si mesma criou pressupostos e uma espécie de cadeira de rodas, que a imobiliza no seu sem-sentido cósmico. Que quer isto dizer? Incapacitada de solucionar a problemática da sua existência, ‘a humanidade buscou, e busca, respostas no imaginário que a inteligência lhe proporciona ─ mas, respostas que não solucionam a sua angústia; e, diante disso, ela constrói uma cadeira de rodas, na 14


qual se movimenta sem sair de um circuito restrito, ou seja, historicamente impotente, vivencia a sua existência num quotidiano sem horizonte. Não consegue enxergar além de si…’ [Macedo, 1981], e, neste sem-sentido, ‘a pessoa estabelece um curso existencial puramente materialista, mesmo quando abrigada sob a abóbada da igreja erigida em louvor das divindades projectadas, segundo a óptica dessas mesmas necessidades’ [Liffey, 2009]”. Na sequência do artigo, o par de autores intelectuais exímios (filha e pai) transcreve uma perícopa nossa, extraída do ensaio de 2009, ‘As Lições Essenciais da Crise’, que é, sem dúvida, pertinentíssima, pelo seu carácter sinóptico/estrutural (cf. ibi, pp.1-2): “Acerca deste quadro sociopolítico e religioso, o filósofo Manuel Reis ensina o seguinte: ‘[…] A) O Poder (societário) encontra-se, ipso facto, identificado e constituído no universo dos Objectos (Objectivo-Objectuais…). B) A Liberdade (individual-pessoal) acha-se configurada, por definição, no universo dos Sujeitos livres e responsáveis, que são a sua casa própria de origem. Estes dois perfis/noções (do Poder e da Liberdade) constituem o que há de mais original e originário, no universo humano. C) Em tal horizonte, o detentor (ou detentores) do Poder, mesmo e, sobremaneira, em Regime democrático, tem a sua legitimidade sempre exposta e à prova, in actu exercito… O que significa e implica que ele está continuamente exposto ao julgamento e avaliação dos seus concidadãos/eleitores, ─ exposto, por conseguinte, à objectual ‘vida nua’ (G. Agamben), ou à condição do ‘homo sacer’ atribuída às vítimas exemplarmente expiatórias para toda uma Sociedade. (O criminoso de sangue, que foi julgado e condenado à pena de morte, é uma ‘res sacra’, cuja pena só pode ser executada pelo carrasco legal… ninguém mais pode tocar no criminoso!...). Desta sorte, e em conclusão, no universo omnienvolvente dos Objectos objectivo-objectuais, há, pois, sempre e por toda a parte, uma estrutural sintonia semântica entre o rei, o imperador, o presidente, ou o chefe eleito, dum lado, e do outro, o criminoso condenado, ou o próprio ‘bode expiatório’, enquanto vítima pura, que são considerados como ‘res sacrae’. A fenda ou ruptura, para a constituição dos espaços profanos, com a dignidade própria da condição humana, só pode ser estabelecida pelos próprios Sujeitos humanos, livres e responsáveis, justamente enquanto Sujeitos, nunca enquanto objectualizados. ● Pressuposto filosófico-político desta Teoria/Doutrina da DEMOCRACIA: Os Seres Humanos Individuais-Pessoais constituem, por princípio (e deveriam sê-lo, de facto!...), o único Absoluto do Universo (da Relatividade Geral einsteiniana).

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● Os Seres Humanos (todos eles, em princípio) são seres dotados de consciência reflexiva e crítica. Obviamente, segundo a gramática do ‘Homo Sapiens//Sapiens’, que não a cartilha (corrente) do ‘Homo Sapiens tout court’ […]’”. Em termos psico-sócio-históricos e culturais, Portugal entrou em apocatástase (ou apocalipse antecipado…), desde o assassinato, na batalha de Alfarrobeira (20 de Maio de 1449), do mais esclarecido, ilustrado e virtuoso dos Precursores da Modernidade em terras lusas, o Infante D. Pedro (Regente do Reino), o das Sete Partidas, às mãos das hostes da Família real, o sobrinho rei D. Afonso V e o irmão bastardo D. Afonso, duque de Bragança, que o mesmo Regente havia feito Condestável do Reino. Desde então até ao presente, a História e a Sociedade nacional lusas têm andado divididas e chanceladas pelo que nós chamamos, no CEHC, o estigma/síndrome de uma Esquizofrenia foncière, que impõe às populações a submissão resignada e manda aos chefes e às elites uma actuação pesporrente e o exercício do Poder sobranceiro e impune. Desde então, não tem havido em Portugal, uma vera e autêntica Sociedade civil!... António Sérgio (na 1ª metade do séc. XX) objurgou os hábitos e as tendências seculares da Nação lusa para o comércio, através dos primeiros entrepostos criados a partir da saga dos Descobrimentos marítimos, nos sécs. XV-XVI. Paralela e progressivamente, o que foi acontecendo teve um nome: desenraìzamento crescente, em relação ao território nacional. A fixação nos territórios ultramarinos e a mais atrasada das descolonizações constituíram uma sorte de Ersatz, para o que realmente fazia falta estrutural na pátria/mátria lusa!... Onde está a prática do slogan caro a José Gomes Ferreira: ‘Penso nos outros, logo existo’?!... Hoje, sob a Crise (criada pelas elites financeiras à escala global), e com a Troika aos comandos da governança nacional, sobrevivemos em regime de protectorado, sob o signo do inevitável (que a História ─ diga-se ─ nos forçou a aprender…): afinal, o diametralmente oposto de uma Liberdade responsável. Desde a Geração de ’70 do séc. XIX, nunca chegámos a acertar o passo, criticamente, com a nossa História ancestral (de uma das mais antigas Nações da Europa). Esquecemos, cedo, a voz da Sibila que foi Manuel Laranjeiro ao asseverar: ‘ou nos salvamos a nós, ou ninguém nos salva’. Pesquisando uma diagnose necessária da história nacional lusa, Cecília Honório resume o tema que ela desenvolve, com mestria, no seu livro ‘Gaiola de Fantasmas’ (Bertrand, Venda Nova, 2012), da seguinte forma: “Somos um país sem consciência dos seus fantasmas e com uma relação mal resolvida com o passado” (in ‘JL’, 11-24.7.2012, p.19). Em termos de psico-sociografia, é muito ténue a linha divisória entre os estados inconsciente e consciente… No seu artigo Encontro de modernidades, Guilherme D’Oliveira Martins escreve (in ‘JL’ cit., p.31): “O autor de O Labirinto da Saudade aproximar-se-á heterodoxamente de Pascoaes, ao interrogar os mitos e ao procurar lê-los e desconstruí-los criticamente. Na 16


linha de Oliveira Martins, considerado por José Marinho como filómita, e que entendeu o sebastianismo como prova póstuma da nacionalidade, Lourenço concede especial importância aos mitos, como instrumentos de análise e crítica”. ─ Ora, antes ou depois de toda esta ‘questionação no trapézio’, é necessária e urgente tomar consciência crítica do seguinte: Antes de considerar os mitos (nacionais) como energia de enquadramento da identidade nacional lusa, do que nós carecemos é de uma psico-sociografia criticista da Sociedade e da História nacionais lusas, e, por essa via, do nosso viver numa Sociedade nacional, que se encontra, no Mundo, ao lado de outras Sociedades nacionais. Quase todos os pensadores que vieram a centrar-se na problemática da Nação lusa, ao longo da sua História (desde Camões a Teixeira de Pascoaes ou a Alberto Sampaio) esbarraram com esse dilema incontornável: a Terra ou o Mar? Portugal ou o Mundo? No seu discurso de 1941, Franklin D. Roosevelt apresentou ao povo norte-americano uma receita estrutural simples, que em Portugal nunca foi posta em prática. António Nóvoa resumiu-a como segue (in ‘JL’, 27.6-10.7.2012, p.4/Ed.): “A democracia funda-se em coisas básicas e simples: igualdade de oportunidades; emprego para os que podem trabalhar; segurança para os que dela necessitam; fim dos privilégios para poucos; preservação das liberdades para todos”. A.N. compendiou o depoimento sócio-histórico (que é um catecismo da crítica lusa, necessária e indispensável) de Alberto Sampaio, da seguinte forma (ibidem): “No final do séc. XIX, um homem da Geração de 70, Alberto Sampaio, explica que as nossas faculdades se atrofiaram ‘para tudo que não fosse viajar e mercadejar’. Nunca nos preocupámos com ‘a agricultura, a indústria, a ciência ou as belas-artes’. As riquezas que fomos tendo ‘mal aportavam, escoavam-se rapidamente, porque faltava uma indústria que as fixasse’, e o património da comunidade, esse, ‘em vez de enriquecer, empobrecia’”. A.N. (reitor da Universidade de Lisboa), na sua Conferência da Festa nacional do 10 de Junho (Dia de Portugal, Camões e Comunidades Portuguesas) acertou em cheio, ao fazer pontaria para os dois pilares centrais, que a Nação lusa não havia desenvolvido e aprofundado adequadamente: o Trabalho e o Ensino; e ao esconjurar o vício principal da Sociedade nacional ao longo da sua história: “Portugal tem um problema de organi-zação dentro de si: ─ num sistema político cada vez mais bloqueado; ─ numa sociedade com instituições enfraquecidas, sem independência, tomadas por uma burocracia e por uma promiscuidade que são fonte de corrupção e desperdício; ─ numa economia frágil e sem uma verdadeira cultura empresarial.

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Estão a surgir, é certo, sinais de uma capacidade de adaptação e de resposta, de baixo para cima. Precisamos de transformar estes movimentos numa acção sobre o país, numa acção de reinvenção e de reforço da sociedade. Chegou o tempo de dar um rumo novo à nossa história. Portugal tem de se organizar dentro de si, não para se fechar, mas para se abrir, para alcançar uma presença forte fora de si. Não conseguiremos ser alguém na Europa e no Mundo, se formos ninguém em nós” (ibi, p.5/Ed.). *

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* C

Rumo ao horizonte crítico de uma Decisiva Pós-Modernidade positiva e crítica, enquanto Diapasão de regulação e orientação da nossa Contemporaneidade

1. ─ Todo o discurso e/ou linguagem que, hoje em dia, nas Academias ou nas áreas da Política, continuam a evocar e a invocar o moderno e a modernidade, são falsos e falhados, além de embusteiros e demagógicos. Estão alinhados com uma falsa noção de ‘Progresso’ (moderno…); e queimam incenso a toda a sorte de determinismos históricos e ao sempre mal-sinado Objectivo-Objectualismo (que nós não nos cansamos de profligar no CEHC), o qual, por sua vez, é construído sob a bandeira da Cultura (ideológica) do Poder-Dominação d’abord. Alguns parâmetros ou questões estruturais, exigidos pelo Quadrante (epistémico e histórico) da Pós-Modernidade positiva e crítica: ─ À partida e por princípio, cada Nação-Estado deve (poder) contar com as suas próprias forças ou recursos. Esta deveria ser uma praxis decorrente do próprio princípio da soberania dos Estados, esquadriada no concerto das Nações sob a batuta da O.N.U.. Os chamados (sobranceira e cinicamente) ‘estados párias’ deverão ser enquadrados e ajudados pelos diferentes organismos das Nações Unidas, nos seus ramos e áreas respectivos.

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─ A Economia política não se destina a produzir e a distribuir e a consumir bens e mercadorias, segundo o estafado e perverso catecismo do Objectivo-Objectualismo (supostamente impessoal e neutro…); destina-se, outrossim, a satisfazer as necessidades e os desejos dos Sujeitos humanos, que são Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, irredutíveis à condição de objectos…, o que se tem necessariamente de afirmar, à rebelia das práticas correntes do Sistema capitalista. Eis por que o postulado do pleno emprego constitui a 1ª exigência de uma Economia política sensata e honesta (como ainda professou J.M. Keynes). ─ Nesta sua última fase (a do neoliberalismo capitalista global), o Sistema capitalista tem explorado e exacerbado a homogeneidade e o uniformismo da condição humana e das Sociedades a tal ponto que, à superfície das coisas, até pretende dar a impressão de que as (marxianas) classes sociais se extinguiram!... Quando os mecanismos financeiros, sob a ditadura dos mercados de capitais, ascenderam a 1º plano, submetendo a Política e atirando para o lixo a Economia… Eis por que François Hollande (o novo Presidente da República Francesa), na visita feita ao U.K. (10.7.2012) estava, paradoxalmente, certo ao declarar que a União Europeia deveria prosseguir e vencer a Crise actual do Euro, no esquema de uma caminhada a várias velocidades. (*) _______________________________________________________________________ (*) Em termos de história ‘de la longue durée’, a condição periférica de uma nação pode ter efeitos positivos, como aconteceu, no processus dos Descobrimentos transoceânicos e na expansão ultramarina portuguesa. Escreveram com acerto os Autores da ‘História de Portugal’ (coordenada por Rui Ramos), (2009, reeditada por ‘Expresso’, 2012, 2º vol., pp.97-98): “Muito mais do que mergulhar as suas raízes num

─ O que, ainda há três décadas, poderia transparecer como solução maligna, de empobrecimento das zonas periférias, poderá configurar-se, agora, como solução positiva e benigna, na medida em que pode abrir espaço para a autonomia e autoctonia de cada Estado/Nação. Evitar-se-á, assim, o rolo compressor (uniformista-conformista) do sistema capitalista, sempre imperialista, por definição estrutural. Ao mesmo tempo, uma tal solução (a única realista…) obrigar-nos-á a pôr a Magna Quaestio, no ordenamento da Nova Ordem Mundial: Impérios ou Nações-Estados?!... A gramática da Pós-Modernidade positiva e crítica verbera e repudia todas as estratégias que alimentem e engordem os modelos do Império; e admite, aceita e promove toda as estratégias conducentes ao reforço do Modelo do Estado-Nação, em paridade jurídica com as outras Nações/Estados do Mundo. ─ Outra Magna Quaestio, que tem de pôr-se com urgência, no palco da Nova Ordem Mundial, é a da ‘Guerra ou Paz?!’ Os Impérios, historicamente de turno, não podem continuar a funcionar segundo a Regra (hipócrita!...) ‘dos dois pesos e duas me19


didas’. Desta sorte, nunca se conseguirá sair do odre da Cultura do Poder-Dominação d’abord. E, neste horizonte, como é sabido, a paz nunca passará do armistício entre duas guerras… Continuará a prevalecer o aforisma: ‘Si vis pacem, para bellum’. É neste mesmo horizonte que o general prussiano Karl von Clausewitz podia pronunciar (com basófia e verosimilhança) o seu axioma predilecto: ‘a guerra é a continuação da economia política por outros meios’!... ─ Mas, na órbita da edificação da vera e autêntica Nova Ordem Mundial (em ambiente de uma Pós-Modernidade positiva e crítica), os Sistemas Educativos, no âmbito de cada Estado-Nação, devem assumir dimensão e carácter verdadeiramente substantivos e vertebradores dos cidadãos e do ordenamento da Sociedade (nacional) em causa. Cave canem!... Não existe, hoje, uma ‘super-classe global’ (cf. ‘Le Monde Diplomatique’, Agosto 2012, p.3). Uma tal mistificação só é possível porque ─ dizem os profetas da desgraça ─ é preciso promover o imperialismo (financeiro/económico), para contra______________________________________________________________________________________ qualquer ciclo longo de crescimento do Ocidente europeu, a expansão ultramarina portuguesa filiou-se, antes, na conjuntura de crise dos sécs. XIV e XV, nas dificuldades estruturais do reino e no seu impasse ibérico. Tirando vantagem da sua posição periférica, onde a terra terminava mas não acabava o orbe, Portugal situou-se, de facto, na intersecção do mundo conhecido e do mundo desconhecido. O seu sucesso imediato iria resultar, em larga medida, da capacidade para pôr em contacto e para aproximar estes ‘dois mundos’. Com ganhos que, a breve trecho, se tornariam evidentes para o reino e para o ‘seu mundo’. Mas, projectando-se para o exterior, o Portugal do início do séc. XV, cansado da guerra e carecido de recursos materiais e humanos, só o pôde ter feito elevando ao máximo expoente possível tudo o que era e tudo o que tinha ─ as suas capacidades, mas também as suas debilidades”.

balançar os chauvinismos nacionalistas… Uma trágica ilusão, que é o reflexo da mediocridade generalizada do Pensamento. Na base, o que acontece, é que nunca se enfrentam nem resolvem as contradições estruturais e mortíferas do Sistema Capitalista panenvolvente e imperante. Olha-se para o Mundo… mas não se vê nada!... Por tudo isso, carecemos de Sistemas educativos substantivos, e não ao serviço dos Mercados; de contrário, veremos e teremos sempre as pessoas e os trabalhadores reduzidos a objectos (manipuláveis) e a coisas. As multinacionais, com as suas ‘deslocalizações’ em cata do maior lucro possível, não fazem outra coisa em relação à mão-de-obra e aos seus operários de serviço!... Que é um Sistema Educativo substantivo e estruturador de uma cidadania responsável? Não é, seguramente, o que se preocupa, tão só, por dar serventia ao Capital; este não passa de uma condição adjectiva. A Educação e Formação para uma cidadania responsável, numa Sociedade democrática, devem ser a Alavanca de Arquimedes de qualquer Sistema Educativo que se preze. Atente-se que Educar e Instruir são funções e tarefas, que devem começar por ser exercidas nas Famílias; depois, nas Escolas, Poli20


técnicos e Universidades, bem como nas Academias de Artes. Tais funções e tarefas não podem ser deixadas ao livre curso dos Mercados e do Processo civilizatório materialista. Educação: educere + inducere: eduzir (a partir de dentro, do sujeito em causa; e induzir (a partir de fora, dos mestres e da observação exterior). A âncora do processus reside no educere: por isso, a Educação deve realizar-se em diálogo (crítico e autonomizador), entre o mestre e o discípulo. Não esquecer que a polarização na autonomia (crescente) dos Alunos não deverá inibir a abertura dos mesmos ao exterior, à heteronomia. O professor, diante do Aluno, é o primeiro a precisar de alimentar uma fé humana nele; de contrário, o Aluno não será capaz de adquirir a sua autonomia pessoal própria. Promover e edificar a Cidadania responsável (que precisou, na fonte, daquela fé humana do mestre) e construir uma vera Sociedade humana, aferida pelo Diapasão da Consciência reflexiva e crítica, é muito mais importante e dá muito mais trabalho, do que preparar serventes para as diversas profissões e os mercados societários e pseudo-cidadãos domesticados, destinados a enquadrarem-se servilmente nas Instituições e na Administração, por forma a não levantarem dificuldades e objecções aos Governos de turno. Na Cultura (ainda predominante) do Poder-Dominação d’abord, as ciências psico-sociais e/ou humanas têm estado absolutamente enfeudadas ao estatuto epistémico das ciências físico-naturais. Por isso mesmo, os Sistemas Educativos não formam cidadãos de corpo inteiro, mas serventuários e burocratas. E de tal maneira o processo civilizatório tem evoluído nesta linha minguada e redutora, que, por ex., nos últimos dois séculos e meio, o Direito Penal, a Medicina e a Psiquiatria, (paradoxalmente sob a bandeira do Iluminismo…), vieram a evolucionar no sentido (estrábico) de não culpabilizar certos criminosos, precisamente na medida em que são reconhecidos como incapazes de liberdade responsável perante a Lei. Cuidam, escrupulosamente, os juristas de aplicar princípios como ‘nulla poena sine lege’, ‘nulla poena sine culpa’!... Mas nem os juristas, nem os moralistas nem os políticos ou os próprios especialistas na matéria se dão conta de que é a própria Sociedade que se encontra estruturalmente doente: nunca põem institucionalmente em causa as estruturas patológicas e demenciais/egotistas/egoístas (oriundas do Sistema Capitalista smitheano). (O juiz reformado Narciso Machado também não se lembrou disto: in ‘Notícias de Guimarães’, 27.7.2012, p.2). Vê-se a árvore… mas não se dá conta da floresta e do seu estado patológico!... De tal maneira o Processo civilizatório tem evoluído como o Carro de Jagrená (na mitologia indiana), que a principiologia do Lucro d’abord, consagrada pelo Egoísmo sem fronteiras (próprio e específico do Sistema capitalista smitheano) conduz, esplendorosamente e sem reticências, à mais completa indiferenciação ou não discriminação das mercadorias, enquanto tais, para conseguir os intentos de que pretende converter a vida (toda a vida…), pura e simplesmente, numa questão de negócio: drogas 21


ou venenos, ao lado dos medicamentos e dos alimentos, e estes ao lado das armas, para ameaçar ou matar outros humanos, a título pessoal, ou exércitos, a título colectivo, para fazer a guerra contra outros povos ou nações. Tudo isto, sempre sob o pressuposto ideológico, expresso no axioma tradicional: ‘Si vis pacem para bellum’!... Pobre humanidade; desgraçada civilização!...

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D

Será que a gramática da Pós-Modernidade positiva e crítica vai abrindo caminho? ─ Duas situações típicas.

A primeira situação pareceu configurar-se, programaticamente, a partir das posições críticas, assumidas publicamente pelo ex-Presidente brasileiro Lula da Silva, na entrevista transmitida pela RTP/2, em 5.7.2012 (após dois mandatos presidenciais e uma recuperação feliz da saúde, uma vez debelada a doença de cancro na laringe). Do seu discurso arquitectado, decorrem duas teses centrais, que se podem enunciar como segue: a População vai crescendo exponencialmente, à escala mundial e não aumenta, na mesma proporção, a produção de alimentos e produtos de primeira necessidade; dentro de meio século, a Humanidade no seu conjunto ver-se-á obrigada a eleger (democraticamente, ─ espera-se…) os produtos/mercadorias que mais falta fazem às Sociedades humanas e a um padrão decente de vida humana. A 1ª Tese exprime e resume o que se passa no horizonte histórico do Sistema capitalista. A 2ª Tese postula e exige a construção do vero e autêntico Socialismo, ou seja: uma Economia concebida e organizada para satisfazer as necessidades reais das pessoas; e não para dar serventia à religião (laica…) do Objectivo-Objectualismo, impessoal e neutro, que não presta atenção às exigências da Ética e da Moral. Não foi sem motivos sérios e profundos que o discurso de Lula fez questão de discernir categorias na 22


escansão do leque dos produtos/mercadorias. Ora, quando tal acontecer expressamente, os Sujeitos humanos estarão em vias de assumir o primado, em contraste com os objectos/mercadorias. O Tesário essencial, aqui esboçado, não se realizará dentro do Sistema Capitalista e, muito menos, à escala do imperialismo (capitalista) mundial. Exige, desde logo, uma correcção substantiva do Capitalismo (selvagem…), que certamente irá franquear a via necessária para o Socialismo autêntico (o qual terá de construir o seu centro responsável próprio à escala de cada Estado-Nação, contra o que, erradamente, pensaram tanto Trotsky como Lénine). Assim, no horizonte da indiciada reflexão de Lula, há toda uma estruturação essencial do leque (necessário e indispensável) das balizas e orientações a ter em conta: ● À partida, os Estados/Nações devem ser considerados em pé de igualdade jurídica e política, independentemente da sua força de guerra e do seu tamanho geográfico e demográfico. (Esta é a tese janual, que o CEHC tem defendido nas suas obras, muito especialmente em ‘Natal Jesuânico’/edição port. ou ‘Panorama Crítico da Actualidade sob o Signo do Jesuanismo’/edição brasil.). ● No concurso dos modelos económicos de organização e desenvolvimento das Sociedades humanas, é preciso prestar toda a Atenção à 1ª Regra d’Ouro: Cada País deve contar, primeiro, com as suas próprias Forças e Recursos (materiais e humanos). ● A Globalização actual é perversa e predatória, imperialista por definição e estrutura; e é-o, em todos os azimutes, visto que é filtrada pelo crivo do Economicismo e pela absoluta hegemonia das Multi-transnacionais, bem como pelo regime político-económico do Império, que, na forja do Sistema capitalista, não pode assegurar regime democrático decente e digno do nome. Eis por que os sensatos e críticos estão hoje a clamar por Uma Alternativa ao status quo: Outro Mundo tem de ser possível!... ● A Gouvernance internacional/mundial, a funcionar segundo uma Gramática Democrática, ainda está muito longe de existir em termos político-administrativos. E tentar apressar, per faz et nefas, o Processus nesta orientação e sentido, só acabará por reforçar a cartilha processual do Velho Imperium. É preciso mudar de Rumo e de Cultura. Tem de soar, primeiro, um gigantesco toque de gong, a partir da própria O.N.U., abrindo caminho para uma ‘Sabática’ propedêutica, em termos políticos, educacionais e éticos, dos próprios Povos e Nações. O processus não pode ficar entregue às costumadas inércias societárias, que duram há milénios. ● Neste contexto, mandam a prudência e a sensatez que se mantenha, com firmeza, a escala intermédia dos Estados/Nações e o princípio da sua colaboração em-pé-de-igualdade e de acordo com as suas capacidades próprias. O lema será: dos que 23


podem e são capazes aos que não podem e têm necessidades e carências de toda a sorte. Obviamente, os países mais ricos e desenvolvidos é mister que ajudem os países mais pobres e carenciados. ● O Capitalismo puro e duro, segundo o hodierno modelo neoliberal planetário (afinado pelo Diapasão do Financismo internacional dos mercados de capitais, a supercomandar as economias reais de cada Nação…) deve ser extirpado, quanto antes, de contrário, será o suicídio das Sociedades nacionais e da Humanidade. ● A O.N.U. (fundada em 1945, no rescaldo da IIª Guerra Mundial), com a dinâmica própria dos seus Organismos actualizados, deverá constituir o farol e o laboratório crítico dos balizamentos e orientações a tomar: nas áreas da Política internacional, da Economia e da Saúde das populações, das boas políticas da Administração pública. Convém sempre que não se sobreponha ditatorialmente aos Estados… a não ser em casos excepcionais de conflito armado em curso ou iminente, e não haja mesmo outra solução: 1º por via diplomática e pacífica; 2º por via armada, se não houver, v.g., no Conselho de Segurança (que precisa, ele próprio, de ganhar uma legitimidade mais alargada…), outra solução aconselhável. ● Os Estados/Nações, por paradoxal que pareça, estão aí, para durar… Claro, se o Sol contemporâneo dos regimes democráticos não se extinguir, e se a Humanidade e as Sociedades humanas não entrarem em colapso, por qualquer espécie de Apocalipse, climático ou telúrico, político ou societário!...

O que Lula da Silva foi capaz de indiciar, na sua entrevista de ex-presidente, não teve a coragem de o pôr em prática, quando era Presidente do Brasil. Há, de facto, limiares, no leque diversificado das mercadorias e dos alimentos, a pôr no Mercado, à escala mundial, que não podem ser ultrapassados. Em 2007/2008, o Presidente do Brasil era favorável à produção de etanol a partir do milho e, em geral, continuava a defender os biocombustíveis, colocando no mesmo prato da balança a carência de alimentos e a carência de energia. Nicolau Santos (in ‘Expresso’/Economia, 19.4.2008, p.5) urdiu um artigo, bem argumentado, sob o título: Quem é o responsável pela crise alimentar? Enquanto a população mundial tem vindo a aumentar exponencialmente (2,5 mil milhões em 1950; 4,1 mil milhões em 1975; 6,1 mil milhões em 2000; 8 mil milhões previstos para 2025; 9,2 mil milhões previstos para 2050), por exemplo, o aumento do preço dos cereais, só entre Março de 2007 e Março de 2008, configurou-se como segue: 31% para o milho; 74% para o arroz; 87% para a soja; 130% para o trigo (cf. ibidem). Lula está certo, quando fustiga o proteccionismo dos países ricos e os subsídios da U.E., em toda esta problemática, mas não está certo no horizonte denunciado, de forma contundente, por Jean Zigler (director das Nações Unidas para o Direito à Alimentação), ao 24


afirmar que “o cultivo em massa destinado aos biocombustíveis, reduzindo a área destinada à produção de alimentos, configura um crime contra a Humanidade, devido ao impacto no preço dos bens alimentares” (cit. ibidem). Critérios e Pautas são precisas, para discernir as prioridades, tanto a nível nacional como mundial; e a necessária aproximação destes dois níveis deve constituir a prioridade principal, numa política internacional, dirigida pela O.N.U.. Quem é capaz de encarar o Poder, pura e simplesmente, como um serviço (e nada mais…) à Comunidade ou à Sociedade, para o exercício de cuja função foi eleito?! Lord Acton dizia que o Poder corrompe, e o Poder absoluto corrompe absolutamente. João Moreira (jornalista em São Paulo) transmitiu o recado do ex-Presidente Lula da Silva: ‘Serei candidato em 2014 se a Dilma não quiser’ (cf. ‘Expresso’, 7.7.2012, p.33: artigo titulado: ‘Efeito Putin’ de Lula assusta Dilma’). Desta feita, o ex-Presidente mostra-se disponível para suceder à sua sucessora. O exercício do Poder traz, normalmente, em Democracia, indisponibilidade para o renovo do seu exercício, as quais podem continuar post facta, quando o Ego pessoal sabe acomodar-se à incontornável Realidade panenvolvente. Será que o ‘Chefe’ já se esqueceu do ‘Mensalão’?!... Na verdade, o axioma ético-moral de que os fins não justificam os meios serve, ao menos, para nos prevenir das prepotências e dos abusos do Poder, que sempre fizeram os candidatos a ditadores. Se os meios têm uma moralidade autónoma, perante os fins almejados (o que implica que nem todos os meios servem ou são adequados), ─ então um tal discurso é mesmo para nos recomendar e ensinar as práticas lisas da Democracia. Nunca poderemos esquecer (nos nossos comportamentos e nos nossos projectos e planos) que a Lógica do Mercado não pode envolver todas as coisas e todas as Realidades do Mundo. A imoralidade não está no Dinheiro; está nas pessoas que o utilizam mal… A amizade e a confiança, por exemplo, não se podem comprar, ─ isso constitui suborno!... Assim, “certas práticas e certos bens não deviam ter um preço, porque dar-lhes um preço é instrumentalizá-los, torná-los ‘mercadorias’, e isso degrada-os, como se prova pela modificação dos nossos comportamentos” (Pedro Mexia, in ‘Expresso’/Atual, 14.7.2012, p.3). Retornando ao nosso tema central/estruturador: ─ A Economia política (à qual se deve subordinar todo o universo das Finanças) deve ser dirigida e direccionada para as pessoas, não primacialmente para as mercadorias e as coisas (segundo a religião impessoal e neutra (?...) do Objectivo-Objectualismo); ─ Por isso, Moral e Ética nos comportamentos e nos negócios, dapertutto; ─ A Economia de uma Sociedade nacional nunca é um processus neutro; ─ A Democracia representativa sem o reforço da Democracia directa e de base é um perjúrio e uma perversidade: não saímos, efectivamente, do ‘Ancien Régime’ de Tocqueville; ─ Economia de mercado (na esfera dos objectos/ /mercadorias), sim; não a sua transformação numa ‘Sociedade de Mercado’; ─ A integridade (física e moral) dos Sujeitos humanos, qua tais, não é matéria mercadejável. 25


A Língua/Linguagem-Discurso, sua Semântica e sua Lógica (na sua condição materna, de origem) faz parte (de modo incontornável) da Autenticidade e Integridade dos Sujeitos humanos/Indivíduos-Pessoas. Não se pode vender o guarda-roupa dos figurantes que surgem no Palco societário sem o seu consentimento expresso. Um caso para meditar: a propósito da articulação da língua/linguagem e da cultura substantiva de um povo. O caso dos seris (povo nativo do México, próximo do Golfo da Califórnia (USA)) têm um refrão típico identitário, da sua língua seri, que reza assim: “Quando os seris se tornam ricos, eles cessam de existir” (cf. ‘National Geographic’, Julho de 2012, p.79). “Everyone has a flower inside, and inside the flower is a word. Language is a seed of Seri identity” (ibi, pp.78-79). Restam, actualmente, da língua Seri, entre 650-1000 falantes (ibi, pp.80-81). Ora, língua e cultura de um povo são como uma noz: a casca e o fruto lá dentro. Veja-se, com atenção e preocupação, todo o estudo sobre o tema ‘Vanishing Voices’ (ibi, pp.60-93). A Economia de mercado, erigida num absoluto, como faz o neoliberalismo capitalista global, reinstaura a religião laica do Objectivo-Objectualismo e, por essa via, destrói, ipso facto, os Sujeitos humanos, enquanto tais, ao mesmo tempo que procede à laminação das línguas e da cultura identitária dos povos, acarretando, igualmente, toda a sorte de catástrofes ecológicas sobre o (já moribundo…) Planeta Azul!... As línguas têm sempre a ver, estruturalmente, com a identidade dos povos. Poucos o disseram e exprimiram tão bem (nas suas obras literárias) como Jorge Amado: a literatura, para ele, é a própria linguagem do povo em formato de arte… Daí a Lição que J.A. reconheceu que o povo nos dá: a miscigenação e o sincretismo ideológico, como meio e expediente de superar a condição servil a que os Poderes Estabelecidos votam os povos, no horizonte da Cultura do Poder-Condomínio. (Cf. ‘JL’, 8-21.8.2012, pp.8-10). João Ubaldo Ribeiro (amigo de Jorge Amado), na peugada do mestre ‘inventor do Brasil’ (moderno), via na Nação Brasileira “o único verdadeiro melting-pot do mundo, a que padrões antropológicos europeus e colonizadores não poderiam aplicar-se” (ibi, p. 8). Eis por que o Escritor, que se preza de estar ao serviço crítico do Povo, não pode deixar de pesquisar e actuar, com ‘imparcialidade e paixão’, como o próprio J.A. deixou escrito no pórtico do seu romance ‘São Jorge dos Ilhéus’ (1944): “Este romance e o anterior, Terras do Sem Fim (1943) formam uma única história: a das terras do cacau no sul da Bahia”. E logo acrescenta: “Nesses dois livros, tentei fixar, com imparcialidade e paixão, o drama da economia cacaueira, a conquista da terra pelos coronéis feudais do princípio do século, a passagem das terras para as mãos ávidas dos exportadores nos dias de ontem”. (Cit. a partir da Ed. D.Quixote: Obra Conjunta). Ser capaz ─ advirta-se ─ de juntar na mesma postura psico-literária indivisa, a imparcialidade e a paixão é próprio de um espírito pós-moderno avant-la-lêttre.

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A segunda situação anunciadora de que parece ter-se entrado no novo horizonte da Pós-Modernidade positiva e crítica (à escala internacional-mundial) é constituída pelo enquadramento em que se tem processado a tragédia e a guerra civil na Síria de Bashar-al-Assad, desde Março de 2011 até ao presente (Agosto de 2012). Estamos muito longe da tentação modernaça, levada a efeito por G.W.Bush, no encalço do ataque às ‘Twin Towers’ por parte dos aviões suicidas dos militantes de Ben Laden. Um caso, que deveria ser julgado nos Tribunais, converteu-se, ‘automaticamente’, em motivo de uma declarada guerra internacional sobre o Afeganistão, mas sem a possibilidade de identificar adequadamente o alvo!... É óbvio que só a condição de ‘a última hiperpotência militar sobrevivente’ à ‘Guerra Fria’, poderia permitir aos U.S.A. actuar como fizeram. A Síria é uma potência regional de escala média; constitui um puzzle de credos religiosos e etnias, que imprimiram ao regime um carácter compósito. Tornou-se um país crucial dentro e fora do Médio Oriente, quer em termos políticos e religiosos, quer em termos de estratégia regional. Será um país ameaçado de desintegração?... É o que resta averiguar, a partir da sua evolução. A guerra civil (primeiro encapotada, depois reconhecida pelo próprio B.-al-A.), que dura há um ano e meio e que, segundo os media, já fez mais de 20.000 mortos, e mais do dobro de feridos, desalojados e exilados, deixando todo um país devastado e em ruínas, não tem sido motivo de intervenção da NATO e dos USA, até porque o Conselho de Segurança da O.N.U. não tem chegado a acordo sobre a intervenção. Os organismos da O.N.U. contabilizaram, até ao presente (1ª quinzena de Agosto de 2012), cerca de 300.000 sírios que pediram asilo nos países vizinhos. A Síria tem, no C. de S., dois amigos de longa data, a Rússia e a China. Apesar de a situação actual ser mesmo patética… com a demissão de alguns ministros do Governo, a começar pelo Primeiro-Ministro, que solicitou asilo à vizinha Jordânia. A Síria, em termos estratégicos, tem amigos no Médio-Oriente: o Irão, a Arábia Saudita e o Qatar. Na competição entre a Arábia Saudita (sunita) e o Irão (xiita), Damasco constituiu a capital indispensável, nas alianças, para Teerão dividir o mundo árabe a meio: o Iraque ficou neutralizado como adversário, e o Hezbollah e os xiitas no Líbano receberam o adequado apoio de Damasco. Até se deixou criar a impressão de que o Mundo é só ou, principalmente, estratégia (e táctica) política!... E, como a nível dos próprios Direitos Humanos Universais, já existem até 2 versões islâmicas (a de Paris/1981 e a do Cairo/1990), que pretendem ultrapassar e ‘branquear’ a Magna Charta/Declaração de 1948, (submetendo-os à Sharia do Islão que, por seu turno, é considerado ─ erradamente ─ como ‘religião natural’), tudo se complica e obscurece, cada vez mais… O caso-padrão da Síria (cuja cartilha de evolução ao longo de ano e meio se tem desvinculado, claramente, da gramática de resolução do conflito na Líbia de Khadafi, 27


onde os revoltosos obtiveram a ajuda de países da NATO) configura, iniludivelmente, um outro catecismo de resolução de conflitos, que já não é o moderno, mas o pós-moderno. O próprio grau e volume das atrocidades bélicas o confirmou, pela negativa. Alguns dados de base para enquadrar a situação: ─ Receio generalizado de interferências estrangeiras e do próprio Islão (radical/totalitário); ─ o regime de Bashar-al-Assad é, sem dúvida, autoritário e ditatorial, mas encontra-se na órbita do ‘socialismo’ convencional, supostamente a tentar uma ‘terceira via’; ─ um parâmetro de base que não se pode esquecer e surpreende: o C.N.S. (Conselho Nacional Sírio), que se pretende mediação e alternativa ao regime de B.-al-A., acha-se sediado em Istambul (Turquia). Na pauta orientadora da situação, parece predominar a grelha de análise anti-imperialista (imperialismo conduzido pelos USA): Forças regionais e mundiais em presença: Irão e Síria contra monarquias do Golfo; Qatar e Arábia Saudita, aliados dos USA, contra B.-al-A., e a favor da linha insurreccional e popular, como aconteceu em Marrocos, na Tunísia e no Egipto. A Rússia e a China contra os USA.. As duas linhas em oposição, no conflito contra o regime de B.-al-A., podem enunciar-se como segue: a) sustentação do regime sírio, em nome da luta contra Israel e da ‘resistência ao imperialismo’; b) os insurrectos/revoltosos actuam em nome da lógica ‘revolucionária’ e da defesa dos ‘direitos democráticos’. Estes alinham em soluções medianas, defendem a liberdade das manifestações populares e a recusa da intervenção estrangeira, bem como a ‘reconciliação nacional’. Desta sorte, a crise síria tornou-se um caleidoscópio, que deixa estranguladas as esquerdas árabes. O jornal da Esquerda nacional libanês Al-Akhbar mudou de direcção, em virtude da interpretação que fazia dos acontecimentos. O partido comunista libanês mantém a sua prudência no conflito. A maior parte das esquerdas árabes promoveu uma lógica de reformas do regime; e na Conferência nacionalista árabe (reunida em Junho p.p. em Hammamet, na Tunísia), ficou estabelecido que a solução do conflito na Síria tinha de ser política e não militar. Sinais dos tempos!... O comunicado final reconhece o direito do povo sírio ‘à liberdade, à democracia e à alternância pacífica no poder’; condena ‘a violência de onde quer que venha’ e reclama a lógica do diálogo fundada no plano do regresso à paz, proposto pelo emissário da O.N.U. Kofi Annan. (Cf. ‘Le Monde Diplomatique’, Agosto de 2012, p.5). Em resumo, poder-se-ia dizer (com Filipe Ferreira, in ‘Seara Nova’, Verão de 2012, p.32) que “será talvez imperdoável, para os grandes grupos financeiros e económicos dos EUA e da EU, o facto de o povo sírio ser solidário com a causa palestina, albergando no seu país cerca de meio milhão de refugiados palestinos e representações de todas as principais forças políticas palestinas; ou não baixar os braços perante a ilegal ocupação dos Montes Golã por parte de Israel, exigindo ao abrigo do direito interna28


cional a sua devolução; ou ainda de ter socorrido e ter sido solidário com milhões de crianças, mulheres e homens iraquianos fugidos da guerra dos EUA ao seu país; isto é, de o povo sírio não alinhar com as políticas e os objectivos de domínio das potências ocidentais para o Médio Oriente”. O que as Delegações sérias, observadoras no terreno, têm ouvido insistentemente do povo sírio, solidariamente unido em torno da defesa da soberania nacional, é o Apelo desesperado, resultante dos sentimentos de injustiça e revolta perante a malsinação das informações dos canais internacionais das televisões: “Quando voltarem aos vossos países contem a verdade! Contem o que viram! Que a realidade Síria não tem nada de comum com o que dizem nos canais internacionais” (cit. ibi, p.34). Perante essa exigência/desiderato, não é nas camadas populares que, nas circunstâncias de conflito armado, se verificam hostilidades entre sunitas, shiitas e alevitas. O Grande Problema, já no concernente à crise trágica da Síria, já no atinente à dramática crise financeira→económica do Ocidente e do Mundo, é que, nesta fase do neoliberalismo capitalista global, a cartilha é só uma (e sempre a mesma…) com duas vertentes: a) Ditadura dos mercados de capitais e a sempiterna religião extremada do Objectivo-Objectualismo; b) Mediocridade e impotência absolutas dos Governos dos Estados do Mundo e a mais dilacerante dissolução da Política, enquanto Saber e Ciência digna destes nomes. É, deveras, pavorosa e patética a situação actual, à escala do Mundo. François Hollande (o Presidente recém-eleito da França) parece que é a única excepção feliz, em termos de reformas económico-financeiras e fiscais/sociais, excepção a essa regra geral hodierna, estigmatizada pela mais infeliz e desesperante mediocridade e pobreza de espírito.

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E

Mudar de Cultura e de Epistemologia, ─ 29


é preciso e urgente: Re-inventar a articulação adequada de Economia e Política

O melhor período para estudar e captar, em termos de padrão, as Lições do Sistema Capitalista, nos últimos três séculos da Modernidade Ocidental, nem é o dos chamados ‘clássicos’ da Economia política dos sécs. XVII e XVIII; é, outrossim, o período dos chamados ‘Trinta Gloriosos’, no encalço das trágicas experiências ocorridas durante a IIª Guerra Mundial (1939-1945); estamos a referir-nos ao período que vai de 1945 a 1975, onde a pauta normal e os esforços desempenhados com vista a fundamentar e construir a articulação adequada entre Economia e Política (sem reduzir a 2ª à 1ª, como hoje ocorre…) foram, historicamente, mais bem sucedidos. Esta Tese já foi estabelecida e argumentada pelo CEHC nos livros ‘Panorama Crítico da Actualidade’ (Edicon/Br.) e ‘Natal Jesuânico’ (Liv./Ed. Ideal/Pt). O Processo civilizatório, protagonizado pela Cultura/Civilização Ocidental, à escala do Mundo (nos quatro séculos da chamada Modernidade), pretendendo, embora, apresentar-se ao Mundo como libertador/emancipador, o que fez (ao longo de cinco séculos) foi colonialismo e imperialismo, tirando sempre partido da escravatura e da condição servil das populações, tratadas como ‘cabeças de rebanho’. Ainda hoje, a doutrina do Despotismo Iuminado (que foi o facho subliminarmente levantado por todas as revoluções modernas, sem excepção…) é tabú: ninguém a discute nem repudia!... (A não ser… ao que parece, o CEHC). Maquiavelicamente… toleram-na!... Neste contexto, é óbvio que há falhas estruturais/estruturantes de ordem epistémico-metodológica, que se repercutem, inexoravelmente, nas plataformas estratégicas, económicas e políticas: A) Desde logo, o Processo civilizatório do Ocidente nunca ousa trazer à colação crítica o próprio Sistema Capitalista omni-toto-abrangente das Sociedades em que os Humanos vivem ou sobrevivem, seus efeitos perniciosos e maléficos… e nunca teve a coragem de identificar e perceber os efeitos antropologicamente mortíferos do colonialismo e do imperialismo. Em termos psico-sócio-antropológicos, dir-se-á que esse Processo civilizatório só conhece a cartilha do ‘Homo Sapiens tout court’; ignora ou despreza a gramática do ‘Homo Sapiens//Sapiens’. B) Assim, em termos estruturais/estruturantes, o Processo Civilizatório do Ocidente não foi (e continua…) capaz de confrontar-se com os outros povos e civilizações em pé de igualdade; e não confronta o próprio Grande Problema das contradições arquitecturais internas à Cultura/Civilização do Ocidente. Desta sorte, actua como zombie, incapaz de identificar e reconhecer a sua Identidade Contraditória, ─ o que o leva, 30


designadamente: a) a pôr de pé todo um programa de ‘civilização’/conquista de outros povos e civilizações; b) a não ser capaz de utilizar, em relação aos outros, senão o catecismo estafado ‘dos dois pesos e duas medidas’. C) Enquanto não se der conta, criticamente, do afirmado em B), ou seja, no horizonte desses factores condicionadores/estruturadores, não haverá saídas para o ar livre, para uma Racionalidade (e Diálogo entre os Povos), com Futuro!... No seu livro (esclarecedor, mas enviezado) ‘A Islamização da Europa’ (Civilização Editora, Porto, 2009, p.331), Alexandre del Valle acerta num dos alvos, quando assevera que “este nihilismo europeu, este ódio de si eurabiano, é o fundamento psicológico da morte da Europa e da sua transformação em Eurábia. Isto enquanto espera a islamização maciça e completa, progressiva mas seguramente garantida pela acentuada queda da natalidade europeia, que é outro sinal da pulsão de morte, do ódio de si (recusa em dar a vida) e do nihilismo”. Falta, na verdade, ao nosso Jornalista pesquisador e especialista nas matérias em causa, uma visão crítica da própria História da Cultura/Civilização do Ocidente. De contrário, arrisca-se a que as suas informações e advertências não aproveitem para a Renovação da Europa e do Ocidente, e levem, antes, a água ao moinho dos adversários do Ocidente. A talhe de foice, é caso para relembrar que o Caminho (crítico) é o aberto, desde há duas décadas, pelo menos, pelo CEHC. Para o nosso Autor, parece que tudo se reduz, em última instância, a questões do foro psicológico. O que ele denuncia na sua tópica da ‘reductio ad Hitlerum’, é, para nós, simplesmente patético, uma vez que ele próprio não abriu caminho para a superação de uma tal situação caricata e calamitosa. Ouçamo-lo (ibi. p.323): “Arma de guerra fatal, a reductio ad Hitlerum tem eliminado simbolicamente todo e qualquer militante, político, intelectual ou ensaísta europeu, cristão ou ‘sionista’, que se atreva a defender a própria civilização ou o próprio país da islamização e do ódio anti-ocidentais das nações revanchistas do terceiro-mundo”. Não é estranho um tal discurso, quando não se é capaz de sair do empíreo-criticismo, de que é useira e vezeira a Cultura do Ocidente de marca oficial e ad usum delphini. Quando, na verdade, carecemos, epistemicamente, de uma reconceptualização e reescrita da própria História ao 3º grau (como nós dizemos no CEHC), A. del V. continua a pressupor que os problemas em causa são de ordem psicológica, tudo se podendo reduzir a uma ‘guerra das representações’ (vd., ibi, p.322). Esta miséria filosófica (como diria K. Marx) lembra-nos a má solução dos psicanalistas e psiquiatras freudianos que, vendo a Casa abalada com os sucessivos tremores de terra, se recusam a sair da própria Casa!...

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Mas leiamos, atentamente, a perícopa que vem ad casum (ibidem): “A guerra das representações ou a destruição psicológica da Europa” ─ é o título. O 1º parágrafo reza assim (ibidem): “A guerra das representações, ou guerra psicológica, tem como finalidade inibir o inimigo para mais facilmente vencer o combate. Este tipo de guerra ─ que, no caso em questão, visa destruir a Europa ─ ataca os valores fundamentais que se situam no fulcro do sistema de legitimidade do Ocidente cristão, assimilado às potências coloniais, islamófobas e imperialistas, ou seja, ao Mal absoluto. Ataca o núcleo imunitário, o programa deste sistema, com o objectivo de o fazer perder o norte e inverter por completo as suas referências. Como? Voltando contra a Europa os valores e a memória europeus, impondo mapas mentais culpabilizadores e deslegitimizadores. Em suma, inoculando nela um vírus psico-ideológico”. É sabido, a partir das ciências psico-linguísticas, que os Poderes Estabelecidos e a respectiva Dogmática podem, mediante um controlo sistemático, alterar o cérebro e o modo de pensar dos indivíduos. Daí, a importância decisiva de Sociedades humanas organizadas segundo a gramática da Liberdade Responsável (que, infelizmente, não é o caso da Cultura dualista do Ocidente…). Quando o scenario ideológico-cultural (como faz A. del V.) é reduzido a uma ‘guerra das representações’ e toda a psique humana confinada a uma ‘guerra psicológica’, apostada na ‘destruição psicológica’ da Europa, por parte do Islão… decididamente, não se saiu do odre do monismo epistémico e da órbita da Cultura do Poder-Condomínio. Nesse combate para sofrear e inibir o Ocidente, a Cultura Islâmica aplica a crónica vulgata: mistura e confunde, no mesmo alforge, a religião adversária (o Cristianismo) e o sistema capitalista (ambos, sem dúvida, cúmplices no cruzadismo, no colonialismo e no imperialismo). Empíreo-criticismo a funcionar… E a Cultura islâmica, como se comporta e actua, a partir da sua própria Dogmática? Aí, Religião e Estado confundem-se; não há distinção, classicamente estabelecida (como acontece, v.g. em Mt. 22,21: ‘Dai a César o que é de César, e a Deus o que a Deus pertence’) entre o Poder temporal e o Poder espiritual. O que, de resto, é, na praxis societária cristã tradicional, também a regra… a realidade oculta, por detrás das aparências, na Cultura das Sociedades cristãs. Eis como tem, aí, a sua origem pragmática a Cartilha ocidental ‘dos dois pesos e duas medidas’. Desta sorte, a cartilha habitual do empíreo-criticismo, com que a Cultura do Ocidente tem actuado, ao longo da História das civilizações, só poderá ser superada pela recuperação do vero e autêntico Jesuanismo, que foi atraiçoado por todas as Cristandades, oriundas das Cartas de Paulo e da maior parte dos Textos do N.T. canónico. (Vd. o nosso Livro ‘Traição de São Paulo’, Ideal/CEHC, Guimarães, Pt. e Edicon, São Paulo, Br., 2007).

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Eis por que o velho Tema político de ‘integrar’ a Turquia na U.E. continua a ser um Problema complexo e de solução difícil. A. del V. discute a problemática no cap. IX do seu livro (pp.259 e ss.), sob o título seguinte: ‘A Turquia na EU: ‘muralha contra o islamismo’ e solução para o choque entre as civilizações’. Mas ele próprio, no quadrante em que desenvolve o seu discurso, só consegue ser criticista… soluções não as apresenta, como seria de esperar… Em abono de alguma proximidade ideológica com a EU e a Cultura Ocidental cristã(?!), recorde-se que a Turquia fica sediada no antigo território, que foi pátria do Império Romano do Oriente; este império caiu, em 1453, nas mãos do Islão e do novo Império, o Otomano. Ataturk instaurou a Turquia kemalista laica, que durou, efectivamente, de 1925 a 1949, com a implicada abolição do Califado. A partir de 1946-1950, o Partido Democrata encarregou-se da reislamização do País. Terá de dizer-se, em abono da verdade, que se houve um kemalismo de Estado, foi pela simples razão de que o Islão, enquanto tal, tem pretensões a religião do Estado, e, por enquanto, faz disso uma ‘conditio sine qua non’. Nos anos ’80, o primeiro-ministro Turgut Ozal repetia o slogan: ‘A Turquia é laica, mas eu sou muçulmano’. Depois das eleições de 2002, o Islão (supostamente moderado) tomava conta das instituições públicas da Nação. O primeiro-ministro Ricep Erdogan gosta de repetir o slogan de Ozal. Mas essa espécie de esquizofrenia foncière já era apanágio do seu antigo avatar: o Império Romano do Oriente. Um facto insofismável permanece: se o AKP (dito Partido Democrata) vence eleições políticas, isso significa que a sharia continua enraizada nas mentes da maior parte dos votantes. Assim, o projecto da ‘integração’ da Turquia na UE, no actual enquadramento geopolítico e religioso do Mundo, arrisca-se a funcionar como um ‘cavalo de Tróia’ islamista dentro da União Europeia (hodiernamente, mais fragilizada do que nunca). Pressupor que a ‘integração’ da Turquia na UE constitui uma ‘muralha contra o Islamismo’ é uma inocente imbecilidade, porque se apoia precisamente no que se pretende não dito ou falado, o medo do choque entre civilizações!... Se as políticas nacionais fossem concebidas e orientadas, mais a partir da cabeça do que a partir do estômago, outro galo cantaria!... A chanceler alemã Angela Merkel ainda foi capaz de responder a Erdogan, na visita que este fez a Berlim, em 9.2.2008: “a integração pressupõe uma disposição de adaptação ao modo de vida de um país” (cit. ibi, p.265). Respeito e adaptação, por conseguinte, ao Poder político democrático do País para onde se imigrou. Quando (como parece ser o caso de Erdogan) se tem da Democracia a noção de que deve ser assumida como um meio e não como um fim, algo está profundamente errado nas categorias do universo mental destes islâmicos. O erro reside precisamente nisso: em assumir o Islão como ‘religio naturalis’, quando se trata de uma ‘religião positiva e revelada’, tal como acontece com as outras duas religiões de ‘O Livro’. 33


Na hipótese da ‘integração’ da Turquia na EU, o país que, em 2020 terá 90 milhões de habitantes (cf. ibi, p.281), ficaria, ipso facto, no posto de comando dos 28 países da UE: naturalmente, em tais condições, não seria a Turquia a adaptar-se à Europa, mas a UE a adaptar-se à Turquia nacionalista e muçulmana, ─ uma Turquia que prossegue sendo uma das economias mais corruptas do Mundo (cf. ibi, pp.279…). E, assim, a União Europeia, que perdeu (por não ter evoluído positiva e corajosamente) a sua Identidade Cultural/crítica, própria, ir-se-á degradando nas configurações próximas, primeiro, da Eurábia, depois, da Eurásia (cf. ibi, pp.284-293). Estamos inteiramente de acordo com A. del V., quando ele procede, com pertinência e pertinácia, à denúncia manifesta de uma Eurábia islamizada (cf. cap.X, pp.295 e ss.). A citação em exergo, que ele faz do escritor anglo-iraniano, Amir Jahanchachi, a partir do seu livro ‘Vaincre le IIIème Totalitarisme’, vem mesmo a propósito (ibi, p.295): “O islamismo é uma ideologia de destruição em massa, que propaga o caos. […] Onde outras ideologias ─ como o nazismo, o fascismo ou o comunismo ─ fracassaram, o islamismo pode ser bem sucedido. […] O islamismo é totalitário, porque pretende purificar o mundo daquilo que é contrário à sua ideologia e à lei da sharia. […] O islamismo é aparentado […] aos sistemas que foram personificados por Hitler e por Estaline”. A atmosfera ideológica, que envolve a situação dos imigrantes integrados (sobremaneira tratando-se de muçulmanos) e a própria Tese política da ‘integração’ (uma opção decente!) tem-se elevado ao rubro, ultimamente, a ponto de a ECRI (Comissão Europeia sobre o Racismo e a Intolerância) vislumbrar, aí, samicas de racismo. A impressão com que se fica, a este propósito, é que a atmosfera ideológica entrou em curto-circuito e já só funciona em roda livre!... Vale a pena transcrever todo o parágrafo do Autor (ibi, p.302), para nos darmos conta do despautério a que se chegou: “Assimilando a integração a uma nova forma de racismo, a ECRI publicou recentemente novos relatórios e conclusões em que sublinha “o perigo suscitado pelas preocupações de numerosos europeus hostis à islamização dos respectivos países”. “A ECRI está preocupada com a intensificação do clima de hostilidade para com as pessoas que são muçulmanas, ou que são vistas como tais, e lamenta as manifestações de islamofobia detectáveis a diferentes níveis das sociedades europeias”. A Comissão recusa igualmente a assimilação, que favorece a dissolução do indivíduo nas comunidades nacionais, preferindo o acolhimento de grupos estrangeiros que mantenham a respectiva identidade, ou seja, a integração segundo o modelo anglo-saxónico, cujas desastrosas consequências comunitaristas são bem conhecidas. Uma integração em que, de acordo com o relatório, os países de acolhimento deviam conceder aos grupos alógenos os mesmos direitos que concedem aos seus próprios cidadãos; deste modo, os povos autóctones não teriam quaisquer privilégios sobre o novos povos colonizadores, em 34


virtude da abolição das preferências nacionais, conceito no entanto já legitimado pela Frente Popular [em França], numa lei de Agosto de 1932”. Que se poderá dizer, em termos criticistas, desta janela assim escancarada?!... Continuando a insistir, teimosamente, na pauta (já fracassada…) do multiculturalismo, a ECRI faz um caldeirão de patetismo e cinismo estratégico, duplamente em função (volens//nollens) da extirpação dos Estados/Nações e da promoção, a todo o vapor, do Imperialismo (economicista/crematístico) mundial… que precisará, pelo menos, de uma Hiper-Potência suprema para o reger e administrar. Não chega o Deus Altíssimo, Allah ou Jahvé/Jeová ou qualquer outro Zeus!... Considerar e admitir que os grupos de imigrados no país de acolhimento se vão tornar focos estratégicos de uma nova colonização, é uma ideia peregrina e perversa. Onde está a condição legitimadora da Autoctonia e o reconhecimento da Autonomia dos Povos (nativos), no quadro dos respectivos Estados/Nações, considerados, para todos os efeitos, em-pé-de-igualdade-jurídica, uns perante os outros?!... Não esquecer que é só por esta via que se podem cumprir a Humanidade, enquanto tal, e as Sociedades humanas, com dignidade humana. A. del V. caracteriza bem a presença do ‘islamicamente correcto’ à escala das Nações Unidas, tendo em conta o relatório de Doudou Diène, apresentado à Ass. Geral das N.U., a 12 de Jan. de 2007, no quadro do Conselho dos Direitos Humanos (cf. ibi, p.304): o relator especial associado a Doudou Diène “ilustra e encarna na perfeição a ofensiva liberticida, anti-ocidental e pró-islâmica lançada pela OCI [Organização da Conferência Islâmica] e pelos países árabes muçulmanos com vista à progressiva islamização da Eurábia; e sobretudo com o fito da sua submissão forçada, aproveitando a síndroma de dimitude voluntária. [O que nada tem a ver com ‘A Servidão Voluntária’ de La Boétie.]. O relatório de Doudou Diène visa, em nome de uma subversão dos direitos humanos, em nome do direito à diferença e da luta contra a islamofobia, reduzir pura e simplesmente as liberdades e impedir as nações ocidentais de se exprimirem livremente em matérias religiosas, e em particular sobre o islão”. Ora, enquanto a Cultura, dita ‘cristã’, do Ocidente, não operar a sua metamorfose radical rumo ao vero e autêntico Jesuanismo (como nós preconizamos e defendemos no CEHC), nada de válido e fecundo será feito na desastrosa panorâmica (ainda ideológica…) actual. As Sociedades do Ocidente continuam, apesar dos regimes ditos democráticos, a viver e a actuar (para dentro e para fora…) com dois pesos e duas medidas, em registo de hipocrisia. A organização e o funcionamento das sociedades são operados e manipulados/controlados de cima para baixo (inelutavelmente…), e não de baixo para cima, como manda a gramática da Democracia. Ora, a construção das veras personalidades identitárias e críticas é levada a efeito de baixo para cima, mediante a discussão e o diálogo psico-cultural,que deve ter lugar, antes de tudo, na língua-mãe.

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Em contraponto com este horizonte crítico, o discurso do relatório protagonizado por D.D. não passa de uma contrafacção malsinada, na órbita do empíreo-criticismo, na medida em que, para combater as tendências anti-semitas e anti-ocidentais, o que promove é a redução da liberdade de expressão dos indivíduos-pessoas: “Para inverter estas fortes tendências, que são de natureza política, jurídica, ética e cultural, o relator especial continua a insistir na elaboração, para todos os domínios, de uma dupla estratégia, política e jurídica, por um lado, cultural e ética, por outro, com o fito de reconhecer e combater as manifestações e as expressões do racismo e da xenofobia, bem como as suas raízes profundas” (cit. ibi,p.305). Ora, em rigor, não são as Identidades nacionais (construídas de modo são e fecundo, com o respeito implícito pelos Outros, pelos outros Povos) a forja dos conflitos e guerras entre os Estados, já nos tempos antigos, já nos modernos. É, outrossim, a Cultura sempiterna do Poder-Dominação d’abord e o espírito egoísta e de conquista do alheio, estranho ou diferente. Implicadamente, adensam-se, aí, todos os ideologemas da hierarquização das culturas e dos povos, das raças e das civilizações, onde se acham fundadas e supostamente legitimadas, todas as dominações, colonialismos e imperialismos de uns povos sobre (e contra) os outros!...

Em defesa da Identidade dos Indivíduos-Pessoas, qua tais

● Do que basicamente se carece, em termos psico-sócio-antropológicos, é de um vero e autêntico ‘Sitz im Leben’, ancorado no Ser identitário do Indivíduo-Pessoa/Cidadão (certamente em constante evolução, mediante o encontro e o convívio, a comunicação e o diálogo com os outros); e não baseado no Ter, na supremacia, na conquista e na dominação. O acto, agir, actuação, comportamento são da ordem do Ser e sua identidade; a potência encerra uma tendência irresistível a polarizar-se em objectos e produtos/mercadorias e sua acumulação. Adágio da Antiga Escola e da Tradição da Filosofia helénica clássica: ‘ab esse ad posse valet illatio, sed non contra’. Do ser (da identidade efectiva) ao poder é frequente e normal a injunção e a progressão; já não acontece o mesmo no sentido contrário. Esta é a mensagem de fundo, que procede directamente da mundividência pagã da Graecitas clássica e da melhor Filosofia helénica. As Cristandades adulteraram esta mundividência pagã. Em 527 da E.C., o imperador Justiniano, no encalço da publicação do Código de Leis com o seu nome, mandou encerrar todas as Escolas consideradas clássico-pagãs do Império. Em 529, foi ordenado o encerramento da Academia Platónica de Atenas, considerada, também ela, pagã!... Eis 36


por que, em termos éticos, a moralidade dos fins é uma, e a dos meios é outra. É o que diz o axioma latino: ‘Non facienda mala ut eveniant bona’!... Nunca será de mais zurzir e refutar essa terrível e ancestral monomania (decorrente da ideologia perversa da Potestas d’abord) de ser mais que os outros e pretender exercer o dominium e o mando sobre toda a população, na linguagem e no discurso, nos actos e nas operações, nas atitudes e nos comportamentos; ─ uma mania ancestral, que nada é capaz de fazer sem esquemas classificatórias e hierarquizadores, e que é predicável tanto dos Indivíduos como dos Estados, enquanto pessoas colectivas, obviamente, com efeitos e consequências diferenciados. Não se tem visto outra coisa, ao longo de todo o Processo histórico das civilizações ditas humanas, desde há 5 milénios e meio, i.e., desde o fim da Era da Gilania e os inícios das civilizações patriarcais e machistas. Todo esse processus teve um preço, em termos de concepção da vida humana e da organização e funcionamento das Sociedades ditas humanas. O método e os resultados finais condensaram-se, resumidamente, no seguinte: o bem e o mal foram forçados a existir e a conviver, no mesmo plano e horizonte fisicalistas. Como e por quê?! Porque se parte do pressuposto ideológico, ancorado nas Divindades uranianas, do Dualismo metafísico-ontológico, que estabeleceu um Julgamento global escatológico na consumação dos séculos: Desta sorte, tanto na esfera dos indivíduos como na do colectivo das Sociedades humanas, o bem e o mal (em termos operacionais…) andam à mistura, são deixados numa sorte de horizonte de neutralidade, no concernente à gramática axiológica dos Valores ético-morais. Foi nesse berço da neutralidade que nasceu e foi embalada a religião profana do Objectivo-Objectualismo, cultivada largamente pelas ciências antigas e modernas, que, oficialmente, nunca abandonaram a cartilha do Monismo Epistemológico. Eis por que, na outra esfera (que é a do colectivo das Sociedades humanas), ou seja, na ordem sócio-política, as balizas e as orientações são, inalteravelmente, definidas pela cartilha do Objectivo-Objectualismo, sem qualquer referência aos Sujeitos (humanos) livres e responsáveis, que se encontram atrás dos bastidores. Por isso mesmo, a violência e a guerra fazem parte essencial dessa cartilha e é forçoso que apareçam no decurso da História. Tudo se passa, pois, em tal horizonte, como se a mais selvagem ‘struggle for life’, que teve lugar no curso da Evolução biológica até ao advento do ‘Homo Sapiens’, continuasse, sem alterações, ao longo da posterior história das civilizações e das Sociedades humanas. Na história da Evolução biológica (Biogénese + Antropogénese) não se fez caso da emergência do ‘Homo Sapiens//Sapiens’, dotado de consciência reflexiva e crítica, e, por conseguinte, com outra gramática de organização e funcionamento. Descobriram e recuperaram esta gramática Sócrates, na Escola de Atenas, e Jesus, na Escola Gnóstica de Alexandria do Egipto: o Socratismo e o Jesuanismo.

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Por que é que a Economia política moderna (com tantas ciências a respaldá-la…) se virou, inexoravelmente, para a pura materialidade das coisas e mercadorias bem como da vida humana? Porque estava e continua amarrada à religião do Objectivo-Objectualismo. Por isso, ela malsina e blasfema, hodiernamente, contra os Estados e as Nações, desconfiando sempre dos seus processos de Identidade, porque, embarcada como está na Nau do neoliberalismo capitalista global, o que lhe interessa é construir o imperialismo economicista mundial. Ora, é inquestionável que, tanto à escala das pessoas como à escala das nações, o processus de Identidade edifica-se, em primeira e ultima instância, mediante as culturas próprias e específicas. Quando se mistura e confunde o significante e o significado (como acontece nas análises correntes da Economia…), entrou-se, declaradamente, em curto circuito, numa série que não tem limites. Isto, porém, não é nada de estranho: é, afinal, a prática tradicional ditada pelo Objectivo-Objectualismo. Como sair desta trágica situação do chamado ‘Estado estacionário’? Niall Ferguson (o historiador e cronista/ensaísta da ‘Newsweek’, 23 & 30.7.2012, p.15) ainda acredita que Adam Smith (na medida em que nos acicata…) nos pode trazer a cura. Como se o problema de fundo fosse a esclerose das ‘leis e instituições’, como havia denunciado A.S. no concernente à China do seu tempo. Esta situação generalizada de estagnaflação à escala global (com a excepção dos BRICS) representa, bem, o estado de coma desta última fase do Capitalismo. Não se romperá o cerco, com as medidas preconizadas por N.F.: mais liberdade de comércio, encorajamento dos pequenos negócios, menos burocracia e menos capitalismo useiro/vezeiro!... “É tempo ─ conclui ele no seu artigo ─ de abanar a ‘desordem dos dispositivos’, provocada não tanto pela dívida excessiva mas, outrossim, pela excessiva burocracia. Só o optimismo empresarial nos pode fazer sair do estado estacionário e abrir caminho de novo”. O dramatismo trágico da situação (que já se faz sentir à escala global) não se compadece com os remédios de ocasião, sem cirurgias que alterem substantivamente todo o Sistema Capitalista que, nesta sua derradeira fase, se tem mostrado mais feroz e selvagem do que nunca. Os Erros e Vícios estruturais do Sistema devem-se, precisamente, ao horizonte (ainda vigente) e à cartilha do Objectivo-Objectualismo: a ordenação e o funcionamento da Economia devem ser concebidos e postos em marcha em função das Pessoas enquanto Sujeitos humanos. É claro e patente, para os investigadores honestos, que as dívidas excessivas (públicas e privadas) têm uma dupla origem articulada: a) investimentos mal pensados e mal decididos a longo termo, a começar pelos responsáveis dos governos dos Estados; b) as montanhas de burocracia (excessiva…), que atravancam a caminhada, até ao ponto de, nas áreas financeiras, trocarem e confundirem os produtos financeiros e os bens reais, a economia virtual e a economia real, o significado e o significante!... Simplesmente patético e de garotos…

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Para sairmos do odre criado pela religião do Objectivo-Objectualismo, os caminhos e os modos de operar a mudança não são nada fáceis nem lineares, se estivermos decididos, não apenas a caiar de novo a Casa velha, mas a edificar Casa nova de raiz. É que, hoje em dia, o grande bastião, que sustenta e promove essa cartilha tradicional, é constituído por todas as áreas das Ciências modernas, que, para maior desgraça, ainda não souberam nem foram capazes de distribuir, pelo menos, o Grande Território em dois grandes campos distintos: A) as Ciências físico-naturais; B) as Ciências psico-sociais e/ou humanas. Por exemplo, a noção de determinismo genético (tendências naturais irresistíveis nos seres vivos…). A partir da 2ª metade do séc XX, com a descoberta do código genético dos humanos, a doutrina do Determinismo tornou-se, em nome da cartilha do Objectivo-Objectualismo, o catecismo de substituição, em regime suposto de Democracia representativa, das balizas e da orientação ditadas pelo Autoritarismo dos Governos e por toda a sorte de Despotismo iluminado. Tudo isto ─ não olvidar ─ sempre no horizonte inexorável da Potestas-Dominação d’abord.

Política//Economia//Sociedade (2012): Os hodiernos tempos duros e difíceis da ‘Crise financeira/económica e cultural’ não vão para arranjos precipitados e armistícios (empíreo-criticistas) à superfície das realidades sociais trágicas, num esforço (frustrado/frustrante) de tentar ultrapassar os antagonismos sociais, mediante um diálogo restrito a gente de boa companhia!... O espírito e a compreensão radicais e holísticos das realidades sociais nunca foram tão necessários e urgentes. É preciso, por exemplo, dizer não às propostas de Pierre Rosanvallon sobre o ‘déficit de compréhension’, em nome da divinização do projecto de ‘A Empresa’. O fundador de ‘La République des idées’ não passa, aqui, de um demagogo vulgar, agitando mais um ‘scarecrow’. (Cf. ‘Manière de Voir’, Ag./Set. 2012, pp.89-90). Nesse horizonte, a realidade sócio-cultural é limitada, paradoxalmente, à situação seguinte: “Dependentes do reconhecimento dos media, chefes de empresas, altos funcionários ou responsáveis políticos, um bom número de intelectuais são estruturalmente conduzidos a limitar o seu papel à formulação das ideias dominantes e suas declinações. Por outros termos: a colocar a regressão social do lado do progresso e a salvaguarda das aquisições democráticas do lado do conservadorismo”. (Laurent Bonelli, ibi, p.89). Em suma… funcionam e são como os bonecos na mesa dos ‘matraquilhos’: tanto viram a cabeça para baixo como para cima!...

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Sobre a Decadência da U.E. perante o novo advento do Imperialismo (capitalista) serôdio e impenitente

O que, superlativamente, pode caracterizar (e o faz de modo selvagem e truculento…) as ‘modas’ dos tempos em que sobrevivemos, a avaliar pelos novos meios de comunicação social (T.I.C.) é o bordel (a que se chegou…) das subjectividades e a festa do ego (veja-se a série das peripécias ocorridas no ‘Facebook’ e no clube dos seus frequentadores..): situados nos antípodas da Realidade real das Sociedades, o que esses ‘exibicionistas’ simbolizam e representam é o estado geral de castração das urgentes e necessárias revoluções sociais a empreender (para salvar a Humanidade e o Planeta). Se as ‘Revoluções Sociais’ têm sido adiadas, pelo menos desde 1848, agora sê-lo-ão ainda mais, adiadas para as calendas gregas. O que prossegue nos comandos, são as inércias (activas…) do Sistema capitalista. Por isso, os modelos do Império e o Imperialismo podem continuar, sem contestações de monta. Enquanto as contradições do Sistema capitalista se vão acumulando, no Processo civilizatório, as Revoluções necessárias e indispensáveis vão sendo adiadas para o dia de São Nunca à tarde!... Como se pode explicar uma tal situação? Entrámos no reino da Estupidez e da Mediocridade intelectual generalizada, tanto no campo dos intelectuais e academias, como no da política e da governação dos povos e nações. Como os mercados não curam, por definição estrutural, de qualquer espécie de Planificação inteligente, e são inexoravelmente ditatoriais, as funções da Inteligência a dirigirem e a balizarem o funcionamento da Economia política dissiparam-se, por inanidade. Os organismos humanos têm a cabeça degolada… e as sociedades dos mercados são ‘organizadas’ a partir dos estômagos de organismos acéfalos. E ainda há criaturas (como a Chanceler alemã Angela Merkel) que acreditam, piamente, na ‘democracia dos mercados de capitais’!... A propósito da grande festa do ego que se tornou um bordel de subjectividades, escreveu, a concluir o seu artigo, António Guerreiro (in ‘Expresso’/Atual, 18.8.2012, p. 46): “A grande festa do ‘Eu’, a pessoalização como fenómeno mediático total, requer 40


uma contrarrevolução puritana”. À boa maneira da época vitoriana, na Grã-Bretanha da 2ª metade do séc. XIX?... Entretanto, A.G. estará certo se os intelectuais e os governantes responsáveis não forem capazes de sair do odre ideológico-dogmático do empíreo-criticismo, como atmosfera societária omni-toto-abrangente (segregada pela Cultura do Poder-Condomínio). Entre o indivíduo agrilhoado, sob o peso da sua impotência reconhecida, mas dotado de uma viva consciência contra a opressão sem rosto, procedente de todos os cantos e encruzilhadas (como acontece em ‘O Processo’ de Franz Kafka) e o indivíduo hodierno bafejado com a festa engrinaldada do ‘Ego’, que os novos media lhe trouxeram na bandeja, a diferença fundamental é que o primeiro ainda tinha consciência da realidade para lutar contra ela, ao passo que o segundo vive num obtuso mundo virtual, onde a realidade, decididamente, já não conta… A esta situação foram levadas as Sociedades, na era do Neoliberalismo capitalista global, precisamente pelas engrenagens do Sistema capitalista e sua cartilha específica do Objectivo-Objectualismo. Se produz bens e serviços, produtos e mercadorias, não os distribui, sequer por quem precisa. Não passa sem Armas e Exércitos para assegurar e defender o que considera ser seu. Este seu modo de estar e ser no Mundo, conduz, sistemicamente, o Capitalismo ao useiro/vezeiro comércio internacional de armas, um negocio extremamente lucrativo para os Estados em causa… para, por ex., Governos poderosos como os dos USA, China, Rússia (3 dos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU). Mas as armas distribuídas/comercializadas a granel pelos grupos e cidadãos de uma dada Sociedade, é inevitável que acarretam consigo consequências nefastas… A Amnistia Internacional teve o cuidado de lançar recentemente um Manifesto, que foi subscrito por 600.000 pessoas, onde se exigia aos Governos dos Estados (que estiveram reunidos em New York, a 2 e a 27 de Julho de 2012, numa conferência destinada à aprovação de um ‘Tratado de Comércio de Armas’), uma posição clara e definitiva sobre estas matérias. A A.I. estabelecia uma cláusula final, que os três grandes (acima referidos) não quiseram aprovar, solicitando, para os devidos efeitos, uma nova conferência marcada para 2013. Dizia, em resumo, a cláusula que as normas devem ser claras e rigorosas de modo que ‘impeçam a transferência de armas, sempre que estas possam ser usadas, para cometer crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou violações graves dos direitos humanos’. A criação do T.P.I. (em 2002), sediado em Haia, e no quadro do Estatuto de Roma (ratificado por 121 países), pode empreender uma investigação, nos casos, por ex., de genocídio ou violação dos direitos humanos, ou por iniciativa do próprio Procurador, ou a 41


pedido de um Estado que haja ratificado o tratado. Ou a pedido do Conselho de Segurança da ONU. Em boa hora emergiu esta iniciativa da Amnistia Internacional. Os responsáveis desta O.N.G. estão cheios de razão, porquanto estimam, com dados sobre a mesa, que 60% das armas espalhadas e traficadas pelo Mundo estão presentes nas mais diversas violações documentadas dos Direitos Humanos. (Cf. Narciso Machado, in ‘Notícias de Guimarães’, 17.8.2012, p.2). As Sociedades humanas, onde o bem e o mal andam, objectivo-objectualmente, à mistura, em nome de uma Divindade exterior e transcendente, que há-de julgar vivos e mortos no Eskhaton universal, (o famigerado ‘terciarismo teológico substantivo’, que tem as suas expressões inexoráveis na organização das Sociedades e na natureza sacro-divina do Poder…) têm de acabar, através de uma Metamorfose cultural e pedagógica (esta será o fulcro de qualquer Sistema Educativo nacional que se preze!), ─ tudo isso para dar lugar a uma Humanidade adulta e emancipada, livre e responsável a um só tempo. É que a Liberdade sem o espaldar da Responsabilidade, é pura libertinagem e arbítrio… impróprios do ‘Homo Sapiens//Sapiens’. E o ‘livre arbítrio’, enquanto tal, é o predicado do ‘Homo Sapiens tout court’, cuja existência societária está vinculada e algemada por um Poder substantivo, exterior e transcendente. Este Enigma, que é a Chave da emergência da vera e autêntica HUMANITAS, na História das Sociedades e da Civilização, constitui o Problema/Crux, que é mister ser encarado e resolvido quanto antes… de contrário, será o nietzscheano ‘eterno retorno’ destas miseráveis Sociedades ditas (erradamente…) humanas, que a História tem registado até ao presente. Por que disse, com discernimento e juízo, Lord Acton, que o Poder corrompe sempre, e o Poder absoluto (do Estado…) corrompe absolutamente?!... Porque não tinha, no seu horizonte crítico, outra teoria/doutrina a não ser a da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. O Poder (de Estado), que mata ou manda matar cidadãos, só porque afirmaram e defenderam ideias ou doutrinas diferentes do seu cânone… assumiu, ipso facto, o papel do Inquisidor-Mor e a postura da Inquisição de má memória; abandonou, eo ipso, a sua condição de Poder legítimo, se acaso foi constituído democraticamente, e converteu-se num governo tirânico, ao qual ─ dixit Tomás de Aquino ─ qualquer cidadão pode e deve resistir. Por isso mesmo, a única via mestra para institucionalizar Sociedades humanas, democráticas e justas, é promover e enquadrar, sistemicamente, o exercício efectivo do Poder, através da Discussão e da Argumentação, mediante a Dialogia entre os cidadãos (como, de resto, ensinaram Sócrates e Jesus).

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Com muita frequência, os jornais e a imprensa (falada e escrita) trazem-nos, copiosamente, notícias do tipo: pessoas foram capturadas e detidas, torturadas e entregues à pena capital (sem julgamento, ou apenas com ‘julgamento sumário’), tão só por terem assumido opiniões ou crenças, que não são admitidas pelo seu Governo… Onde está a básica e fundamental Liberdade de Expressão (e, implicadamente, de Pensamento)?!... Em suma, em tais situações, os Poderes Estabelecidos mostram-se o que são: absolutamente incapazes de lobrigar o diferente, de discutir e dialogar com os cidadãos e as pessoas em geral. De resto, (como acontece com a chamada democracia representativa/burguesa/capitalista: ‘democracia de trela’…), a conclamada liberdade de expressão é tão-só aceite pelos Poderes Estabelecidos, dentro de um registo limitado: na medida em que não ouse revelar, v.g., os segredos e os tabús do Estado e, em suma, se submeta, nisto como em tudo, à sacrossanta ‘Law & Order’!... Não recomendava já o pai-fundador do Cristianismo e das Cristandades, Paulo, na sua epístola aos Romanos (12,3), que não se deve saber mais do que é preciso: ‘non plus sapere quam oportet sapere’?!... Com efeito, os Poderes Estabelecidos (dentro da Cultura do Poder-Condomínio) não gostam, por definição e estrutura organizacional da Sociedade, da Discussão e do Diálogo, justamente porque são ignorantes e néscios, não sabem argumentar nem promover a Ratio, no Discurso e na Linguagem (corrente) entre todos os cidadãos. Por tudo isso, chegámos a esta situação deplorável e rocambolesca nas contemporâneas sociedades humanas: os espaços avassaladores da pseudo-realidade virtual (através das T.I.C.) ultrapassam, na sua obscenidade e tragédia, a dureza e a espessura próprias da Realidade real, que não há (como ocorre actualmente, na brenha selvagem da ‘Crise’) outra saída senão a festa do ‘Ego’ narcisista, o qual já não tem nada a celebrar senão a sua própria imagem nos ecrãs dos computadores, tal como Narciso a contemplar, candidamente, a sua imagem nas águas!... ‘Exercícios de estilo’ ─ é o que resta!...

Declínio e Dissolução da U.E. ou Superação da ‘Crise’?!...

Sobre o declínio e o afundamento crescente da U.E., que ainda não se adultizou, face às inércias de um Capitalismo selvagem, supostamente irreformável!... O catecismo é demasiada e desesperadamente conhecido: a ‘Crise’ financeira→económica (mais proximamente no Continente europeu) já pôs em situação KO a Grécia, a Irlanda, Portugal; deixou a Espanha e a Itália chamuscadas a carecerem de ‘resgates’ impossíveis; a França em crescimento de 0,4% e a própria Alemanha a baixar o seu crescimento para 1,2%. Entretanto, não se dá conta de que estão a ferir gravemente os 43


princípios das Democracias nacionais e a soberania dos Estados em causa, sem que a Comissão Europeia ou o Directório (franco-alemão) tenham discutido e decidido, com os restantes membros, se o caminho do futuro vai ser a ‘Federação de Estados’ (que sucumbirá à não-reforma do Sistema capitalista) ou a ‘Confederação de Estados’ (que admitirá a dita reforma e poderá encontrar modelo na Confederação helvética). É a religião (laica e profana) demencial do Objectivo-Objectualismo de estrita observância, que tudo comanda… Ao mesmo tempo, os governantes ditos responsáveis da U.E. continuam a alimentar a crença de que a ‘ditadura dos mercados de capitais’ redunda, por artes mágicas, na suprema democracia, ─ claro, dentro do Esquema tradicional da democracia representativa/indirecta, também designada por burguesa. Não esquecer que o Dualismo metafísico-ontológico (de Platão e das Cristandades paulinas) está no eixo central destas Sociedades, a presidir à concepção global do Mundo e do Universo. Há esta vida… e a ‘outra vida’… Há o materialismo práxico/societário e há a grande ilusão do ‘idealismo’ religioso (S. Freud dixit!). Neste horizonte, as Sociedades ocidentais são estruturalmente esquizofrénicas e o que, em regra, produzem são cidadãos castrados… submissos e obedientes à ‘Law & Order’!... Que Lição têm elas, para ensinar às outras Sociedades nacionais do Mundo?!... Eppure, há ‘ouro’ nos filões originais da vera e autêntica Cultura/Civilização do Ocidente, ─ como o C.E.H.C. descobriu e tem feito saber. Ora, enquanto nada de importante e decisivo for feito, Mario Draghi (presidente do BCE), que espera salvar os países à beira do resgate e os que estão a ser resgatados, através da compra da dívida pública nos mercados secundários, e a Comissão Europeia, que nada tem feito para promover a vera e indispensável regulação e ordenamento dos mercados de capitais, hão-de ver os seus planos a fracassar e a U.E. a afundar-se e a auto-destruir-se às mãos do actual Capitalismo selvagem, sob o estandarte do Neoliberalismo capitalista global. A Europa, desde o fim dos ‘Trinta Gloriosos’ e o sucessivo Colapso da URSS (em 1991), tem deixado, sistemicamente, a impressão de ‘Touro decapitado’; e é assim que ela se encontra ainda hoje (2012). Eis por que a sua decadência estrutural (que tem as suas origens no foro ideológico-cultural!...) está a abrir caminho: 1º, à emergência do ‘mundo da Eurábia’; 2º, à próxima submissão ao ‘mundo da Eurásia’. (Cf. Alexandre del Valle in ‘A Islamização da Europa’, Civilização Editora, Porto, 2009: uma obra re-cheada de boa informação actualizada, embora com falhas na metodologia crítica e nas perspectivas de futuro, que deixa em aberto…). As Sociedades ocidentais têm sido ideologicamente estigmatizadas e psicológica e politicamente bloqueadas por temores avatáricos e fanéricos do chamado ‘Estado socialista’, que, ao longo dos últimos 160 anos, nunca chegou a haver (se exceptuarmos, em esquema de indiciamentos, a ‘Comuna de Paris’ e os ‘Kibutzim’ israelenses). O que a 44


História, de facto, registou (naqueles países onde as trombetas anunciaram ‘revolução socialista’) foi, tão só, a realização daquilo que é conhecido pela expressão técnica de ‘capitalismo monopolista de Estado’. (John K. Galbraith dixit, in ‘O Nôvo Estado Industrial’, na década de ’60 do séc. XX). Como bem se pode saber, com os devidos ingredientes da demagogia, brandidos por governantes e por intelectuais ‘cães de guarda’ do Establishment, as populações e a Humanidade, em geral, continuam a ser vítimas de ilusões rotundas e mentiras grosseiras, tecidas e propaladas pelo títeres dos Poderes Estabelecidos!... Má sorte…. Estranha condição!... Nos mercados, o medium é o dinheiro; na política, o medium é a palavra. Tudo bem compartimentado e estanque, como nos ensinou a cartilha da Modernidade. Neste contexto, é óbvio que a U.E. deixou de falar… com sentido e verdade (psico-sócio-antropológica)!... Ela está surda-muda. Com efeito, a realidade não é o que parece, e o que parece, afinal, não é. O primeiro e monumental Problema do Mundo é, precisamente, este. Daí procedem, ou para aí remetem, todos os outros!... Para agravar a situação dos Problemas, a realidade separou-se da ficção, na mesma proporção em que os indivíduos (cidadãos…) se viram traídos e separados dos Poderes Estabelecidos. Assim, a realidade separou-se da ficção, e esta daquela, porque as Sociedades e os Sistemas Educativos são balizados e norteados pelo Dualismo metafísico-ontológico, e por uma separação de abismos entre a cartilha dos Poderes Estabelecidos e a gramática (inconsequente…) das liberdades concretas e situadas dos Indivíduos-Pessoas. O atirador do Colorado, James Holmes (agora, em Julho de 2012), acreditava ser uma personagem de um mundo ficcional (completamente separado da realidade): é a situação típica do esquizofrénico, que já não é um simples psicopata. Tudo leva a crer que a situação de alienação esquizofrénica tenha sido despoletada por todo um mundo de ficção que o dominava (cf. ‘Expresso’/Atual, 4.8.2012, pp.34-35). Em tais casos, os analistas preferem discretear em torno dos habituais dilemas admitidos pelo Establishment: insanidade mental ou depressão suicida, como fez Dave Cullen (in ‘Newsweek’, 6.8.2012, pp.40-43). Ora, em abono da verdade, há que ter a coragem de declarar e denunciar, que são as Sociedades em geral (e as do Ocidente, em primeiro lugar) que se encontram, estruturalmente, doentes e estigmatizadas por uma depressão e insanidade sistémicas pela psicopatia sistémica, resultante, precisamente, da divisão da personalidade, esta, por seu turno, procedente da separação abissal entre os Poderes Estabelecidos, e as Liberdades (responsáveis), que não existem na sua condição de responsáveis. Esta sofreu a ‘epokhé’ husserliana… Não interessa, aqui, discretear muito sobre a distinção dos perfis pessoais/psico-patológicos do atirador James Holmes (2012) face ao atirador Eric Harris (1999). Essa é a 45


pecha do Objectivo-Objectualismo, o qual já é, em si mesmo, uma patologia sistémica. O que, outrossim, importa ver e averiguar, para disso tomar consciência, é que toda a Sociedade contemporânea (no seu tecido estrutural/estruturador) está enferma, gravemente doente, com doença mortífera.

É sempre bom aprender Lições dos Outros… assim, podemos escudar-nos e corrigir as nossas falhas. No horizonte da redescoberta da China, por parte dos Ocidentais, eis aí uma lição da praxis pragmática ‘made in China’: Sendo, ao longo da sua história ancestral ─ Estado multimilenar, que a si próprio se atribuiu, desde tempos imemoriais, o título de ‘Império do Meio’ ─ uma Nação/Estado, que preza a harmonia social acima de tudo, a China operou (o que mais nenhum Estado fez…) a transição entre o chamado ‘comunismo de Mao’ e o ‘capitalismo de Deng Xiao-Ping’, sem conflitos nem guerras de permeio. E, agora, na óptica da tradição compósita de ‘um país/dois sistemas’, a China, chefiada ainda pelo ‘Partido Comunista’, está a articular com êxito a cartilha do Capitalismo e a recuperação das doutrinas de Confúcio, baseadas no respeito pelos mais velhos e nas hierarquias sociais. (Cf. ‘Newsweek’, 17.9.2012, p.7). Desta sorte, a China e os chineses tiveram a oportunidade de saber que “o comunismo não cria prosperidade, mas o capitalismo selvagem gera desigualdades, que podem levar à destruição de uma sociedade. Na China, a importância da questão da repartição da riqueza vai tornar-se mais importante à medida que o crescimento da economia abrandar” (Manuel Pinho, ex-ministro da Economia, in ‘Expresso’/Atual, 4.8. 2012, p.22 Ec.), perante a sua aproximação à fronteira tecnológica. Caracterizando o modo de estar no Mundo da China multimilenar (e fazendo-se eco, de algum modo, ao Livro sobre os Descobrimentos Chineses (Gavin Menzies: ‘1421: O Ano em que a China descobriu o Mundo’, Dom Quixote, Lisboa, 2003), escreveu Manuel Pinho (ibidem): “No séc. XV, Yongle, o primeiro imperador da dinastia Ming e o responsável pela mudança de capital de Nanjin para Pequim (literalmente, a ópera do Norte), mandou construir uma frota naval muito maior e mais bem equipada que a portuguesa; porém, o único propósito das expedições comandadas pelo almirante Zheng He era dar a conhecer a China ao mundo, não era impor valores religiosos ou culturais, muito menos fazer comércio de escravos e especiarias. A experiência correu tão mal, que o seu sucessor mandou queimar todas as embarcações” (o sublinhado é nosso). Esclareça-se, aqui, que pode ter havido, na decisão drástica do novo imperador, alguns elementos de ‘superstição’. A imperatriz do anterior imperador tinha morrido, por efeito de um raio, que havia caído sobre o ‘Palácio Proibido’, no meio de uma violenta tempestade, ocorrida já no final dessa Viagem de descobrimento e circumnavegação do Mundo (odisseia datada a partir de 1420 e que terá durado ca. de 2 décadas). Assim, os 46


chineses empreenderam as suas Viagens de Descoberta e Circumnavegação do Mundo, nos seus Juncos, ca. de 50 anos antes dos ibéricos, mas, sem dúvida, com intenções diferentes… inquestionavelmente, mais civilizados em confronto com os outros povos nativos!...

Será que a U.E. da zona Euro, no meio da Crise e das contradições que sobre ela se avolumam (desde logo a austeridade rígida versus crescimento…), está a ganhar juízo e sensatez e a chegar à conclusão de que o quadro que pode ter futuro é mesmo o da Confederação de Estados, justamente contra o modelo do Império, que é o resultado da praxis societária do Sistema capitalista, sans ambages?!... Num discurso recente, o novo Presidente de França, François Hollande, de sensibilidade socialista, deixou transparecer esse trend (cf. ‘Manière de Voir’, Ag.-Set. de 2012, p.4). O processo de ultrapassagem do Sistema predador e assassino, que é o Capitalismo moderno (que multiplicou exponencialmente a sua selvajaria na fase, ainda actual, do neoliberalismo global), é sem dúvida, um processo complexo e difícil, mas a Psico-Sócio-História há-de, um dia, concretizá-lo com sucesso (cf. ibi, p.5). Nas vésperas da eleição presidencial de 1974, François Mitterrand, no seu programa comum de Esquerda, proclamava, convictamente, a sua preferência por uma política de cooperação entre os Países, com desenvolvimento à escala internacional em articulação com a O.N.U.. Desta sorte, a nova ordem mundial deveria fazer caminho, dentro dos carris da Igualdade jurídica entre os Estados, na órbita de um respeitado e cumprido Direito Internacional (cf. ibi, pp.6-9). Assinalava-se, aí, uma Lectio, que a História deveria ter enaltecido e registado, em termos do vero Progresso para as Nações e a Humanidade: pretendia-se, já nessa altura, a dissolução dos Blocos (que sempre levam a água aos moínhos dos modelos imperiais), a segurança colectiva e o desarmamento progressivo, dum lado, e do outro, soluções veras e reais, fundadas sobre o incontornável direito dos povos a disporem de si mesmos. A reconversão das indústrias atómicas de armamento será organizada e escalonada no tempo. Eis a súmula essencial do que, então, se preconizava. Nas 110 propostas para a França (abril/maio de 1981), não ficou de fora a defesa do Direito e da Solidariedade efectiva com os povos em luta (para se libertarem das potências colonizadoras); a articulação da segurança colectiva e do desarmamento; a construção de uma nova ordem mundial, com uma França forte e uma Europa independente; o crescimento social mediante o domínio da Economia e o relançamento desta em função do Emprego. O novo crescimento económico tem de basear-se no Desenvolvimento dos Povos.─ Não esquecer que o Discurso inteligente e crítico, dos anos ’60 até ao colapso da URSS (1991), fazia questão em discernir e enaltecer a noção de De47


senvolvimento, ancorado na real melhoria e emancipação das pessoas e dos povos, em contraste com o puro Crescimento, medido em termos financeiros e estatísticos. A partir, porém, dos anos ’80 e na década de ’90, sob a maré cheia (que emergia) das multinacionais e dos novos ventos alíseos do Neoliberalismo global, as diferentes Esquerdas foram perdendo o timão, na medida em que se aliaram, sem condições, às classes societariamente dominantes, detentoras do Poder Estabelecido. Entretanto, há um exemplo histórico, que elas não podem perder de vista: o da Comuna de Paris, em 1871 (cf. ibi, pp.14-18): os 72 dias em que os parisienses puderam observar e testemunhar como se punha em prática a ideia matricial de um governo do povo por si mesmo, e transformar-se em força militar capaz de se bater, com armas iguais, contra os soldados dos exércitos profissionais. Acima de tudo, há que prestar toda a atenção ao carácter da dimensão universal da Comuna de Paris (vd. ibi, p.16); ao carácter e identidade do seu ideário, em termos sócio-económicos (p.17). A frase célebre de Victor Hugo mantém-se como herança eterna e filosófica: ‘Le cadavre est à terre, mais l’idée est debout’. No seu ‘Le Rappel’ (abril de 1871), Hugo fazia-se eco do grito: ‘Eu sou pela Comuna em princípio, e contra a Comuna na sua aplicação’. O que significava: não se pode a gente ficar no plano dos princípios e direitos; é preciso passar à prática efectiva. Emendar e corrigir, quanto antes, ─ é preciso! Que intelectuais e que governantes pensam nisso?!... Ora, há correcções que reclamam, desesperadamente, por serem concretizadas no Sistema capitalista vigente. Desde logo, se a pobreza (de muitos…) constitui objecto de indignação justa, a super-riqueza (de poucos…) deve ser igualmente encarada como problema grave. Desta sorte, a tentativa (a partir da ‘Crise financeira’ despoletada nos USA, em 2007-8) de impor, generalizadamente, uma política de baixos salários na U.E., constitui uma atrocidade escandalosa. Em termos jesuânicos, é o escândalo dos simples e inocentes. Comvém, igualmente, não esquecer e não atirar às urtigas os sinais dos tempos que, há mais de uma década, se vão exprimindo, everywhere, em manifestações massivas, protestando contra as malfeitorias do Sistema capitalista: primeiro, foi o ‘Occupy movement’, que teve os seus inícios em Setembro de 2001, em New York, no Zuccotti Park (no seu livro ‘Occupy’, da Penguin, N. Chomsky defende que as mensagens desse movimento devem ser tomadas a sério pelos governantes, uma vez que elas cobrem um leque muito amplo de protestos de rua, que atinguem os postos mais elevados das hierarquias societárias); depois, veio, nos últimos três anos, o ‘movimento dos Indignados’, que parece ter começado em Espanha, e logo se difundiu por outros países da Europa e das Américas.

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Na verdade, a solução de plafonner os rendimentos dos super-ricos e ricos é uma ideia que nasceu na América, há mais de um século, sob a fórmula: é preciso impor limites aos rendimentos dos ricos. (Cf. ibi, pp.24 e ss.). E, agora, convém advertir que o problema se põe nos dois planos: o dos indivíduos e o das empresas. No segundo caso, estamos a falar das multi-transnacionais, que se tornaram senhoras e dominadoras do mundo, enquanto ‘corporations’, 1º na sua própria área, 2º em outras áreas, induzidas pela acção dos mercados financeiros, governados pela ditadura dos mercados de capitais. Adler propôs essa ideia do plafonamento, há um século, para os indivíduos; Pinchot e Long fazem, hodiernamente, a sua polarização nas empresas (cf. ibi, p.27), ─ o que se impõe, com a máxima evidência, tendo em conta o carácter selectivo e anti-democrático das Corporations. Se há, de facto, um salário mínimo nacional, que a Justiça social-societária manda aplicar, é óbvio que, simetricamente, tem de haver um limiar para o salário máximo. É sabido que os recursos do Planeta são limitados, como já lembrava, a tempo (!), o Clube de Roma, em 1953 e, depois, na sua formalização definitiva, em 1968, sob a orientação de Aurelio Peccei. A partir de então, a bússola foi perdendo a sua agulha magnética… Uma Questão pertinente, entre muitas: Por que não vingou nem foi possível o modelo do Socialismo democrático do Presidente Chileno, Salvador Allende, em 1973?!... A resposta sumária e profunda é simples: foi proibido e impedido (manu militari) pelo irredento Sistema capitalista e pela sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord (cf. ibi, pp.28 e ss.). Com a implosão da URSS e o abalroamento do socialismo cubano, entrou em cena o que ‘Manière de Voir’ chamou as visões místicas do socialismo, muito especialmente na América Latina (cf. ibi, p.33). Não obstante, tais concepções ainda são capazes de preferir as soluções da cooperação às da competição. Sintomático!... Continua a vigorar um dado que é fundamental e fundador: as liberdades fundamentais dos indivíduos encontram-se articuladas com o primado atribuído ao Bem colectivo (cf. ibi, p.37). Exemplos históricos e postulados, que daí decorrem: a experiência do Orçamento Público (O.P.) de Porto Alegre (Brasil), (cf. ibi, p.61). É óbvio que a Economia deve servir a Colectividade (nacional), antes de proporcionar lucros e prebendas aos interesses privados (cf. ibi, p.66). É nesta óptica que se tem de fazer o balanço crítico do labirinto sem saída da social-democracia europeia, inclusivè no concernente às dificuldades e zigzagues de uma integração, devidamente ordenada, da U.E. (p.73). Parece que os próceres actuais do processo da integração estão, apenas, a fazer pontaria para jogos de dissimulação e pacificação (frustrada) das consciências (pp.74-75).

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Admitamos que o Sistema capitalista até poderia ser controlado e domesticado, se os governantes das Nações e as instâncias da O.N.U. tivessem sabedoria e coragem para o Grande Empreendimento. Delegação democrática suficiente (e superabundante…) por parte das populações (a grande maioria!) não lhes faltará, por certo. Ora, nos dias de hoje, é ainda o imperialismo (capitalista), puro e duro, que segue em frente, à rebelia da ‘Vox populi’, bem identificada e sem demagogias. Hoje, o imperialismo (capitalista) prossegue a sua marcha, sob a batuta do Neoliberalismo (capitalista) global. Os resultados são a mundialização uniformizada sob a bandeira da livre circulação dos capitais, nos chamados ‘mercados de capitais’; e a chamada ‘sociedade dos dois terços’ cada vez mais afunilada e reduzida à condição de exclusão de ‘três quartos’. (Cf. ‘Le Monde Diplomatique’ , Ag. de 2012, p.3 e pp.4-5). Diante de tantos projectos e planos, não só inúteis, como também nocivos e destruidores, dá vontade de lembrar, ad hominem, o que já dizia uma das personagens de George Orwell: ‘A guerra é a paz. A liberdade é a escravatura; a ignorância é a força’!... Esta última ─ não esquecer ─ constitui mesmo a ideologia emblemática do pícaro ibérico, que é uma sorte de anti-herói, de extracção popular, ordinariamente sem escrúpulos: (o romance picaresco aparece em Espanha, no séc. XVI, quando, na antecâmara da transição para a ‘primeira Modernidade’, as contradições societárias eram mais gritantes…). Ora, já esse génio de Crítica societária, que foi Karl Marx, dizia e proclamava que o sistema económico capitalista carreava, no seu bojo, os germes da sua própria destruição! Isso não é uma profecia; é uma constatação crítica, que pode ser oriunda de qualquer Mente inteligente e sã. Eis por que o Mundo hodierno se converteu no espectro de uma Sociedade desconjuntada, impossível, moribunda… Onde o simples e comum acto de viver se tornou impraticável!... A Economia dita global de hoje não passa de um embuste (demagógico) grosseiro, uma farsa monumental: o que se pode ver e observar são deslocalizações, para uns (operários e trabalhadores em geral), e remunerações milionárias, para outros (os patrões e dirigentes dessas ‘Corporations’ que dão mais vulgarmente pelo nome de Multinacionais e os respectivos governos nacionais de turno). O discurso da globalização/ /mundialização é duplamente lucrativo para quem o enuncia: ao mesmo tempo, procura justificar a concorrência ‘imposta’ aos assalariados, e os privilégios e sinecuras atribuídos aos capitalistas (accionistas… e comissionistas…) e aos super-dirigentes pavoneados de supra-nacionais!... Ora, precisamente contra essas atmosferas e ideologias falsas, os estudos actuais sobre a matéria estão a confirmar, cada vez mais radicalmente, que as autoproclamadas Multinacionais têm, afinal, a sua sede e seus centros polarizadores dos interesses em determinadas nações, nutrindo sobranceria e desdém em confronto com as outras (cf. ‘Le 50


M.D.’ cit., p.3.e.pp.4-5).A cartinha do imperialismo impenitente não faz excepções à regra… Assim, ‘La surclasse’ ou ‘the overclass’ global não passa de uma mistagogia ideológica, bem orquestrada, cuja função é a de acompanhar e promover o imperialismo financeiro/económico ascendente de hoje (cf. ibi, p.3). Não há, pois, uma ‘elite mundializada’, como é frequentemente pressuposto!... Em face destas pseudo-realidades, a realidade densa e espessa, que permanece, é a dos Estados nacionais. O imperialismo (globalizador e uniformista) só traz ilusões, precariedade no emprego, mentira e frustração. A chamada ‘classe global’ ─ já se deveria saber pela História ─ é profundamente refractária ao vero cosmopolitismo (de acordo com a bitola kantiana). Money… Money… ─ eis o que lhe interessa. A revista (de Ec. & Fin.) britânica ‘The Economist’ constitui, muito bem, o padrão e a bíbia destas atmosferas ideológicas, inexoravelmente marcadas pelo empíreo-criticismo da Escola. Aí se nota, às maravilhas, o paradoxo do Liberalismo comercial, que não soube evoluir, historicamente, em Sociedades sedentárias e civilizadas, segundo a gramática evolutiva do Psico-Sócio-Ânthropos. (Com efeito, o Liberalismo comercial acha-se representado, ainda hoje, paradigmaticamente, pelo britânico jornal/revista ‘The Economist’, fundado em 1843, por um fabricante de chapéus, James Wilson de seu nome, que, na altura, alimentava o propósito de obter a abrogação da legislação proteccionista, em torno das corn laws.). Padrão emblemático desse impasse sócio-histórico e cultural, ‘The Economist’ “parece não se ter apercebido de que a liberdade de comércio tinha precedido as liberdades sociais e democráticas, para cuja conquista os povos pagaram, por vezes, um tributo pesado E a livre troca, que ele preconiza, nem sempre tornou a economia mais eficaz nem mais humana, bem pelo contrário. James Wilson militava contra o boicote comercial dos países esclavagistas, pelo motivo de que uma tal medida traria prejuízos aos consumidores britânicos, como aos próprios escravos. Preconizava, por isso, mais livre troca para salvar a Irlanda, vítima da fome. Quando esta solução fracassou, ‘The Economist’ fustigou os irlandeses pela sua ingratidão e recomendou uma repressão mais severa” (Alexander Zevin, ibi, p.5). Um pressuposto metodológico e duas lições a extrair desta situação paradigmática. O pressuposto: nunca se resolvem, adequadamente, situações problemáticas, com os instrumentos do Direito positivo, se o Direito natural em causa foi simplesmente esquecido ou postergado. As duas lições: a primeira e última Lição desta situação contraditória é muito simples: uma Economia nacional, bem ordenada, tem de começar pela escanção dos recursos naturais e culturais próprios, ─ afinal, o contrário do que tem feito toda a história 51


do Capitalismo moderno, bem como dos chamados ‘socialismos reais’ (que não foram outra coisa senão capitalismo monopolista de Estado). A lição subsidiária a esta é a da Autonomia e Autoctonia, originais, de cada Nação/Estado, o que implica que não se jogue nas aparências do liberalismo comercial (o qual paga o seu tributo ao Objectivo-Objectualismo de escola…), mas, outrossim, se aposte no estatuto psico-cultural dos cidadãos, numa Sociedade democrática, que é capaz de ordenar racionalmente a sua economia nacional. Assim, a intervenção pública do Estado tem de saber corrigir os desmandos próprios do capitalismo selvagem e enquadrar, adequadamente, o seu funcionamento, por forma a evitar e impedir todas as suas disfunções mais gritantes.

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G MULTICULTURALISMO E GLOBALIZAÇÃO (─ Mundialização é a palavra precisa e não dissimuladora, na apercepção feita à superfície das coisas…)

● Glosando Emmanuel Lévinas, no seu livro filosófico pioneiro da Pós-Modernidade, ‘Totalité et Infini’ (a 1ª noção do lado dos Objectos e dos Poderes Estabelecidos; a 2ª do lado dos Sujeitos e das respectivas Consciências), proclamaremos nós, hodiernamente, no CEHC, os dois axiomas seguintes: A) Tudo, no Universo, tem os seus Limites 52


e Condições/condicionamentos. Não foi em vão, e sem consequências, que Albert Einstein descobriu e estabeleceu a Relatividade Restrita, primeiro, e a Relatividade Geral, depois. B) O único Infinito do Cosmos é a Consciência dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. E é-o, exactamente, porque é exercida, justamente, a partir da sua condição de Potência (enquanto tal, infinita) sobre actos, situados e configurados no espaço/tempo (implicando a 4ª dimensão da Realidade aparente). (Vd. a noção, muito bem desenvolvida a partir de Aristóteles, de Potência, nos ensaios do filósofo italiano Giorgio Agamben).

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N.B.: As problemáticas do Multiculturalismo e da Globalização (→Mundialização) têm de ser, por definição e estrutura, discutidas e tratadas, no horizonte da Política e do Direito Internacional-Mundial, e em função da instauração da vera e autêntica Nova Ordem Mundial (de que se anda a falar, nas instâncias políticas internacionais desde o fim da IIª Guerra Mundial, mas sem consequências…; para sermos mais precisos, desde a ‘Magna Charta’ das Nações Unidas (1945), na oitava da IIª G.M.). ─ Dissémos, efectivamente, sem consequências, porque, na verdade, não se alterou o Sistema económico-financeiro (o que os clássicos designavam por Economia política); nem sequer se corrigiu e controlou o Sistema capitalista e a sua natural condição selvagem/predatória… E, enquanto isto, pelo menos, não for feito, o mundo não pula nem avança (para glosar o poeta A. Gedeão).

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● O Multiculturalismo foi, e continua a ser, uma construção/arquitectura ideológica das últimas três décadas: é coevo e cúmplice com esse tsunami, que teve duas faces (ou vertentes): a) do lado tecnocientífico (Tecnociência de Aparelho), a produção e difusão, nos Mercados, everywhere, das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação; b) do lado da Economia política, a vaga alterosa e globalizada (!...) do Neoliberalismo capitalista planetário. Ora, na 1ª década do séc XXI, quer por parte dos políticos responsáveis dos Estados (sobretudo, os que tinham problemas resultantes da imigração…), quer por parte dos universitários e académicos de turno, começou a ser feita uma constatação de tomo insofismável e de efeitos patéticos: o Multiculturalismo (tão celebrado, antes, por todos… à Esquerda e à Direita), ─ chegava-se à conclusão de que não passava de um bluff, uma pia intenção, um espantalho para afugentar os pássaros da seara!... Com efeito, poder-se-á dizer que o Multiculturalismo foi o catecismo ideológico legitimador da nova fase do Capitalismo, ─ a do Neoliberalismo globalizado (que é expressa, por antonomásia, no político primado absoluto dos Mercados, em geral, e dos financeiros, acima de todos). Nesta óptica, o Multiculturalismo contribuiu, poderosamente, para promover e alimentar a ideologia e as atmosferas (de tipo pechisbeque e camaleónico) da Globalização: uma Globalização empreendida e realizada, apenas, no horizonte materialista e sensório do Processo civilizatório. Usurparam-se os títulos e as divisas do Humano, para realizar, tão-só, as partes animais dos humanos (que, por isso, redundam em animalescas…). Como é de ver, em tal contexto, as religiões institucionalizadas (à superfície da Terra) não tiveram a oportunidade de se confrontarem e dialogarem entre si (como foi proposto, a partir das conclusões do Conc. ‘Vaticano II’ sobre o Ecumenismo), ─ por forma a poderem evoluir em novos moldes, agora críticos e criticistas. Este processus, que em boa hora havia sido encetado, na mundividência resultante do Concílio ‘Vat. II’, na década de ’60 do séc. XX, foi drasticamente interrompido e castrado (nos dois pontificados subsequentes: no de João Paulo II e, cada vez pior, no de Bento XVI). ● Que vem a ser a Globalização? ─ Um ‘monstro’ com duas faces: a) a expansão/difusão das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s); b) a 54


ideologia hegemónica do Primado absoluto das Finanças e dos mercados de capitais, sobre a Economia e a Política dos Estados, mantida, enquadrada e incrementada pelas novas ‘Corporations’, que dão pelo nome de Multi-transnacionais. Foi, de facto, a Globalização que veio a abrir caminho à Ditadura (actual) dos chamados ‘Mercados de capitais’.

● A Cultura/Civilização do Ocidente e o Mundo, neste Processo histórico da Globalização(→Mundialização). O Ocidente (desde A. Smith, o doutrinador-mor do Sistema capitalista) não fez outra coisa senão institucionalizar a Mentira, no lugar da Verdade: as virtudes privadas foram convertidas em vícios púbicos; e os vícios privados (egoísmo, no topo) foram convertidos em virtudes públicas. O Ocidente (desde ‘O Príncipe’ de Macchiavelli) estabeleceu, de modo expresso e indiscutível, o primado absoluto do Poder sobre o Saber. (O que já era, de resto, a sua praxis rotineira, desde a Antiguidade…). Para complicar mais as coisas, Hobbes, no seu ‘Leviathan’, ao estabelecer o primado incontornável do Poder temporal/societário do Rei, limitou-se a deixar ‘entre parênteses’ o poder espiritual detido pelos pontífices das Igrejas cristãs e das Religiões, em geral. Ora, foi, efectivamente, sobre aqueles dois pilares, que a Cultura/Civilização do Ocidente instituiu e constitucionalizou a sua cartilha prática ‘dos dois pesos e duas medidas’. Desta sorte, como corolário inevitável, a Consciência e a Experiência dos Indivíduos-Pessoas não tiveram outra sorte senão serem sempre (e sistemicamente) obliquadas e ignoradas… E, assim, o que veio a predominar, absolutamente, foi a gramática (unicórnia) do Objectivo-Objectualismo, no andor procissional da ‘Totalidade’ (levinasiana), rumo às contemporâneas políticas ideológicas do Totalitarismo. Para alimentar esta ideologia, contribuiu, também, decisivamente, a noção de ‘Super-Homem’ de F. Nietzsche. É nesta órbita ─ não esquecer ─ que o Multiculturalismo foi ideologicamente engendrado e funcionou (durante algum tempo, com sucesso...) como arma para evitar e impedir a emergência de toda a sorte de xenofobias, racismos e anti-semitismos, ao mesmo tempo que obtinha dois efeitos de monta: a) impedir e travar a Autonomia legítima de cada Estado-Nação; b) promover e alargar, a um só tempo, o Mercado mundial e a (implicada…) ideologia política do Império (um só, em última instância…), enquanto modelo societário (uniformizante…) e forma (principal ou exclusiva) de governação. Mas este é, na sua Grund-Struktur, um programa coxo e perverso, sem futuro… O livro celebrado de Samuel Huntington sobre o ‘Choque das Civilizações’ constituiu um formidável ‘scarecrow’, na última década do séc. XX. Despistou e dis55


simulou bem a problemática séria de que tratava!... O Autor esteve, aí, desde logo, consciente de que a religião institucionalizada constituía o fecho d’abóbada de toda a arquitectura de uma dada civilização, cujo edifício ela pode sustentar ou deixar cair em ruínas (vd., v.g., a cristã, ou a islâmica…); curiosamente, não foi, em termos precisos, do confronto formal entre religiões institucionalizadas que ele falou no livro. Em vez disso, o seu discurso polarizou-se no confronto entre as civilizações e no pressuposto Processo civilizatório. Por que operou S.H., no seu livro tão badalado, com o chamado ‘efeito camaleónico’?!... Porque a Cultura/Civilização do Ocidente (a que ele pertence) está, desde há séculos, decepada: foi-lhe cortada a cabeça na guilhotina da Modernidade (contraditória…); e, desde o Concílio de Trento (séc. XVI) até ao Conc. ‘Vaticano II’ (nos inícios da 2ª metade do séc. XX), a Cristandade e o Cristianismo, no Ocidente, não evoluíram… em termos substantivos, parece que ficaram parados no tempo. Foi nessa sua condição que a Modernidade se impôs, ou seja, pura e simplesmente na sua vertente material e tecnológica, ─ e fez isso dentro e fora de Casa, impondo a sua supremacia a todas as outras civilizações do Planeta, com as suas respectivas religiões institucionalizadas. Como pôde isso acontecer? ─ Precisamente em virtude do famigerado Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, o qual marcou a fogo toda a Cultura do Ocidente e, ipso facto, das três religiões de ‘O Livro’.

● Os resultados deste Processo histórico, sempre orientado e conduzido na Nau ideológica da Cultura do Poder-Dominação d’abord, tornam-se óbvios e de efeitos e consequências trágicos: 1) Paradoxalmente, está já em curso o que Alexandre del Valle chamou (no seu livro de título homónimo, Civ. Editora, Porto, 2009) ‘A Islamização da Europa’. Há, de facto, em virtude da Informação carreada e actualizada, seis capítulos, neste livro, que é preciso ler e estudar com atenção: o 1º sobre Medo, compromissos, capitulação e submissão voluntária: os fundamentos da Eurábia (pp.21 e ss.); o 2º sobre A deriva multiculturalista da U.E.: Eurásia versus Europa (pp.47 e ss.); o 3º sobre A recusa do ‘choque entre as civilizações’ como pretexto para o eurabismo (pp.63 e ss.); o 8º sobre O argumento da demografia europeia (pp.239 e ss.); o 9º sobre A Turquia na EU: ‘muralha contra o islamismo’ e solução para o choque entre as civilizações (pp.259 e ss.); e o 11º sobre A crise da consciência europeia e a nova tendência totalitária (pp. 319 e ss.). ─ O paradigma da novel orientação para o Ocidente foi definido pela historiadora anglo-egípcia Bat Ye’Or, na Rev. ‘Eurabia’ (Paris, 2005) e reza assim: “Trata-se de uma análise que glorifica a palestinidade, que instila na opinião pública ocidental uma versão imaginária da religião, da história e da civilização islâmicas, que 56


obriga a Europa a rever a sua própria interpretação da sua identidade e da sua história, a fim de a tornar conforme com a visão islâmica da Europa” (cit. por A.V., op. cit., p.21). Essa versão islâmica, que obriga a Europa a rever a sua identidade, vem no encalço, aliás, de figuras importantes da Cultura do Ocidente que, tardiamente, se converteram ao Islão, tais como René Guénon e Roger Garaudy. Mas esta é uma pauta da Cultura do Ocidente, que desconhece, totalmente, os seus dois filões mais importantes e decisivos: o Socratismo e o Jesuanismo. E, aqui ─ convenhamos ─, se a Cultura oficial do Ocidente, maioritariamente afirmada ao longo da História, não proceder ao seu haraquiri e não recuperar as Mensagens originais de Sócrates e de Jesus, ela própria irá sucumbir ao Islão, ou então, provocará a antecipação do Apocalipse!... ─ “A Europa não tem identidade nem deve ter! […] A Europa não existe, o que significa que o seu futuro não deve, em caso algum, ser solidário de uma história, seja ela qual for”. (François Ewald, Fundação para a Inovação Política, in Valeurs Actuelles nº3561, 25.2.2005: cit. in A.V., p.47). O Tratado de Roma (1956), que instituiu a Comunidade Europeia, estabelecia, clara e objectivamente, que “a Comunidade contribui para o desenvolvimento das culturas dos Estados membros, no respeito pela respectiva diversidade nacional e regional, pondo em evidência a herança cultural comum” (cit. ibidem). Que se passou, entretanto, para que François Ewald possa asseverar que A Eurupa não tem identidade nem deve tê-la?!... Veio o tsunami do Neoliberalismo imperialista e a maré-cheia do Multiculturalismo. Tem, pois, igualmente, razão A.V. (op. cit., ibidem) ao registar que “foi, contudo, uma clara deriva mundializante e terceiro-mundista a que fez evoluir esta interculturalidade intra-europeia inicial, no sentido de um pluralismo que promove a extensão infinita da União Europeia”. Os resultados estão à vista. Como, repetidas vezes, tem defendido o CEHC, só o modelo geo-político da Confederação de Estados pode salvar a U.E.. Com efeito, no carro armado do Sistema capitalista globalizado, os Estados de direito democrático deixam de funcionar, e o que emerge é o Império mundial, desencadeado pelo processo da globalização capitalista. O Multiculturalismo resultou numa aposta súbdola e embusteira: projecto teórico que não correspondeu às praxis diferentes das diferentes sociedades nacionais; as instâncias religiosas em presença não foram beliscadas. Na verdade, o multiculturalismo só pode resultar, enquadrado, positivamente, numa planificação ecuménica para todas as Sociedades humanas, à escala da ONU e dela dimanado. Um processo análogo tem lugar na Economia política: o euro, como moeda única, deveria surgir no termo do processus da unificação sócio-económica e política da U.E.; de contrário, é uma realidade artificial e perfunctória, deixa de servir como instrumento de coesão e união. Leia-se, com atenção, o quadro caracterizador da ‘Eurábia’, que A.V. nos apresenta (op. cit., pp.26-27): “Assim, a Eurábia participa essencialmente nesta propensão 57


para bater no peito, mesmo quando o Outro reivindicativo recusa por completo qualquer tipo de reciprocidade, de autocrítica, de boa fé. É um processo de autocrítica e de pedidos de desculpa de sentido único; de concessões sem reciprocidade e de generosidades nunca agradecidas ou talvez mesmo ignoradas. O adágio do eurabismo é, grosso modo, o seguinte: “Nós sabemos que o diálogo com a Europa constitui, para os dirigentes muçulmanos, uma oportunidade de conquistas político-religiosas por via pacífica; porém, para manter as aparências, fingimos acreditar na sinceridade do diálogo euro-islâmico de sentido único. Porque temos medo deles, e precisamos do petróleo deles e da mão-de-obra barata que eles nos fornecem, e que permitirá manter o moribundo sistema europeu de reformas”. Ou então: “Do ponto de vista demográfico, o futuro pertence-vos; o vosso tom reivindicativo poderá vir a converter-se num perigo para nós, apesar da nossa superioridade tecnológica e militar, tanto mais que nós vendemos armas, aviões e centrais nucleares às ditaduras islâmicas. Nós, a Velha Europa, a Europa pacífica, estamos portanto dispostos a abrir as portas às nações ex-colonizadas do islão ─ nações sedentas de vingança ─, a fim de vos acalmar a fúria e de evitar um confronto entre o islão e o ocidente””. A vera realidade, patente neste discurso, tem uma tonalidade patética… e exprime, inexoravelmente, as mentiras e as contradições consabidas no Processo civilizatório. Já te déste conta, Amigo Leitor, de que, no espaldar da cadeira do Poder (dos dois lados…) está o Adamastor da Cultura do Poder-Dominação d’abord e o incontornável e irredento Sistema capitalista?!... É tempo de aprender as Lições críticas da História. O Ocidente (e a Europa em 1º lugar) constitui, hodiernamente, um Organismo sem Cabeça!... O Cristianismo acha-se em evanescência e a Cristandade em agonia… É claro que, também, a principal religião institucionalizada da Cultura/Civilização do Ocidente, não evoluiu, adequadamente, nem se deixou superar. O próprio papa Ratzin-ger actua como um zombie, por ex., ao admitir, na Encíclica ‘Charitas in Veritate’ (29.6.2009), que o Cristianismo (a religião cristã) cobre, hoje, todo o Orbe terráquio, precisamente pelas mãos e pelas asas dos construtores do Neoliberalismo capitalista global!... 2) E os outros velhos e recorrentes problemas estruturais, de natureza sócio-cultural, foram eles resolvidos, a seu devido tempo (desde os inícios da Revolução Industrial até ao presente)?!... Não. Absolutamente. Em vez de os resolver, eles foram-se acumulando, selvaticamente, como numa montureira… Alguns dos principais, que surgem num rol infindo: a emigração/imigração (com o mobil de ‘ganhar a vida’, no quadro do Capitalismo impenitente…), a qual, no caso da Europa, trouxe para o seio da Cristandade elementos exógenos de outras religiões, com destaque especial para os islâmicos… o que veio a baralhar de novo o jogo das cartas; a 58


falta de autonomia e as fáceis maquias da soberania nacional, à escala de cada Estado-Nação, justamente para poder programar a sua demografia; a generalizada perda de soberania dos Estados-Nações, para poderem coordenar a sua Economia nacional (tudo por causa do imperialismo capitalista e da correspondente ‘ditadura dos mercados de capitais’); em tal contexto, a inércia natural para a promoção e alimentação dos modelos imperiais, como sendo os únicos com viabilidade e sucesso: em resumo, a permanente tentação totalitária e a implicada impossibilidade de romper com a sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. 3) A vera e honesta Mundialização, enquanto processo histórico equilibrado e digno de atenção, só poderá realizar-se sobre dois parâmetros conjugados, essenciais e indiscutíveis: A) O dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos (a condição de cidadania é inseparável do Indivíduo-Pessoa). B) O dos Estados-Nações, com a sua Autonomia e Soberania próprias (muito embora limitadas pela Lei natural e o Direito natural, inerentes a todos os Seres humanos, qua tais), considerados em pé-de-Igualdade jurídica e política, uns perante os outros, no concerto mundial das Nações, cuja Orquestra coordenadora é dirigida pela O.N.U. e seus respectivos Organismos. 4) Como se poderá dar conta, todos estes feixes emaranhados dos problemas indiciados e de todos os outros, que ficaram por referir, nunca obterão a sua adequada solução, enquanto prevalecer o Sistema Capitalista hegemónico (e a Cultura do Poder-Condomínio) como Regra (absoluta) e Bússola de orientação. 5) A Globalização, em esquema imperialista, e no tradicional horizonte do Sistema Capitalista, só acarretará, como consequência, a devastação eco-biológica do Planeta Azul (agravando as alterações climáticas em curso…), como exercerá efeitos de exterminação sobre a maior parte das línguas nacionais, à excepção do inglês enquanto nova koinè diálektos e, por enquanto, do chinês e mandarim. A devastação da bio-diversidade linguística constitui, hoje, um facto insofismável: das 7.000 línguas ca., que existiam nos inícios do séc. XX, restam hoje menos de 3.000, aproximadamente. E a biodiversidade biológica anda pelas ruas da amargura…

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Das Teologias e da pressuposta Noção central de DEUS…

Essa Noção pode muito bem considerar-se a corveia ancestral da Humanidade, no seu conatus espinosiano para se emancipar e adultizar, segundo a gramática do ‘Homo Sapiens//Sapiens’. É, igualmente, a corveia ancestral das Sociedades ditas humanas, no seu Projecto de Libertação dos Poderes Estabelecidos, e na promoção de um adequado Processo Civilizatório. Este, na verdade, ao longo da história das Civilizações, não tem feito outra coisa senão obliquar, meter em curto-circuito e, em suma, omitir e recusar a acção das Consciências dos Indivíduos-Pessoas, eclipsando, ipso facto, a Experiência humana, enquanto vera e autêntica fonte de um Progresso sem sofismas nem contradições. Por que aconteceu esta desgraça?... Por que se foram acumulando as contradições (estruturais…), em lugar de encontrar as veras soluções para os problemas emergentes?... Porque a cartilha seguida (em termos políticos e psico-sócio-antropológicos) foi a do ‘Homo Sapiens tout court’, ─ que separou os Poderes do exercício da Liberdade (responsável). ● Com efeito, a História das Sociedades humanas até ao presente, a História das Culturas e das Civilizações, desde as da Antiguidade clássica às modernas e contemporâneas, sempre se têm obstinado em iludir e evitar assumir as lides e as labutas da Consciência humana individual e concreta, bem como enfrentar a Experiência humana, enquanto fonte de vida, de melhorias de vida veras e reais e de Progresso sócio-humano efectivo. ● Em vez disso, essa História inventou a Ideia matricial de Deus (Divindade uraniana), ─ de um Deus omnipotente e criador do Mundo e do Universo, concebido no horizonte do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo. A partir daí (desde o fim da era da Gilania, há 5 milénios e meio…), foram surgindo as construções ideológicas que dão pelo nome de Teologias, as quais foram constituídas na 1ª Ciência conhecida e formatada, dentro da cartilha incontornável do Monismo Epistémico. ● Desta sorte, e em tal horizonte, as Teologias acham-se inevitavelmente estruturadas, em bom rigor, como ciências físicas, ─ a 1ª ciência física-fisicalista. O próprio Aristóteles (apesar da sua doutrina do Hilemorfismo) prestou, paradoxalmente, a melhor caução (ou âncora) possível a todo este Pensamento religioso sistémico do Mundo e do Universo, ao estabelecer, na ‘Política’, a sua tese de que a Emancipação e a Libertação dos escravos (e servos) só seriam um dia realizadas, quando a mão d’obra escrava viesse

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a ser substituída por instrumentos tecnológicos, mecânicos ou, posteriormente, como, aparentemente (!...), veio a ocorrer na Modernidade, automáticos. ● Ora, em tal horizonte, estavam instaurados: a) O Objectivo-Objectualismo, enquanto gramática de funcionamento do Pensamento e do Conhecimento; b) a Cultura do Poder-Dominação d’abord, e a própria ideia de Deus vertida no molde ideológico dos Poderes Estabelecidos; a continuação in aeternum das hierarquias sacrossantas. Por isso… quando, na Idade Moderna ocidental, se operou, com as Revoluções principais (1776…, 1789…), a distinção e a separação entre os Poderes religioso e político, o Esquema estratégico (que começa com T. Hobbes…) não passou de uma farsa posta em cena para o Grande Vulgo!... ● Este horizonte ideológico-cultural ─ deverá saber-se ─ começou, históricamente, com o fim da GILANIA, cerca de 3.500 anos antes da E.C.: trata-se de um processus ideológico-cultural, que se fez acompanhar e resultou geminado com a instauração das Sociedades patriarcais/patriarcalistas e os seus característicos Deuses uranianos/celestes, ficções transcendentes, ─ os quais vieram a carrear, consigo, na história das culturas e das civilizações, a total e mais completa alienação das Consciências individuais-pessoais, e, implicadamente, a própria impossibilidade de ultrapassar a Cultura do Poder-Condomínio, que prossegue estigmatizando as modernas Sociedades desesperadas e sem saída de hoje. ● Ao abrigo da cartilha vigente da História das Civilizações e das Culturas, a história, real e efectiva, não passa de um ‘eterno retorno’ nietzscheano, sem saída possível para o ar livre e o vero progresso. Crise?!... Os operários e os trabalhadores, em geral, que a paguem ─ é o veredicto não dito dos próceres do Establishment ─, reexplorados e reoprimidos, porque são obrigados a trabalhar mais horas e a receber um salário mais reduzido!... Quem pensará nas outras soluções, trazidas pela Distribuição (mais) equitativa e social da Riqueza produzida?!... A conclusão, a partir da análise crítica do estado das Sociedades humanas, é óbvia: estas encontram-se em estado de explosão sísmica, a partir de dentro… Os diversos movimentos de Indignados é isso mesmo que tornam patente.

* O CEHC E A LAICIDADE

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● A história das Sociedades, no mundo islâmico (árabe ou de outros idiomas) nunca conheceu, propriamente, a Laicidade, essa condição fundamental de organização das Sociedades humanas segundo uma gramática genuinamente laica (do grego laós = povo, arraia-miúda), ─ uma concepção oriunda das Revoluções modernas (sobretudo da Rev. Francesa de 1789-95), que souberam recuperar o espírito (pagão) céltico, bem como o Socratismo e o Jesuanismo, à rebelia das Cristandades paulinas tradicionais e de todas as religiões institucionalizadas. Estas, com efeito, não têm feito outra coisa senão, quer no concernente às suas doutrinas impostas, quer no atinente aos comportamentos e actuações, incensar e promover a sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. ● Uma situação sócio-cultural e histórica. Desde a des-kemalização e a consequente reislamização da Turquia, por parte dos seus líderes de Estado e de Governo, a partir dos anos ’50 do séc. XX, os governantes turcos têm andado a mentir ao Mundo, ao afirmarem em termos paradoxais: ‘A Turquia é laica, mas eu sou muçulmano’ como fez Ozal e faz, agora, Erdogan). (Cf. A.V., ‘A Islamização da Europa’, op. cit., p.263). Referimos, a propósito do tema da Laicidade, o caso padrão da Turquia, porque não só tem havido pretensões manifestas, por parte da Turquia, para integrar a U.E., como alguns membros da U.E. têm defendido, com afinco, essa ideia/opção, que até presumem positiva e fecunda como vacina contra o chamado fundamentalismo islâmico!... É, com efeito, esta atmosfera ideológica que tem conduzido às transformações ocorridas na chamada Eurábia, com potencialidades para aprisionar o futuro da Europa: em 2050, mais de metade dos 450 milhões de europeus serão islâmicos. É, pelo menos, muito duvidoso se a Europa tem interesse em integrar a Turquia: esta constitui uma placa giratória de conflitos permanentes e continua a ser uma das economias mais corruptas do mundo (cf. ibi, pp.279 e ss.). Por outro lado, os líderes e os governos islâmicos, no processus de imigração, não admitem nem promovem, no terminus ad quem, a plena integração dos muçulmanos nos países de acolhimento, como poderá esperar, naturalmente, a Cultura e as Sociedades do Ocidente. Os islâmicos continuam à espera do Califado mundial. Glosando Karl Popper, a tolerância e o multiculturalismo extremos da Cultura do Ocidente (de um Ocidente já sem convicções e sem personalidade própria…) levará, fatalmente, à sua auto-destruição e à sua suplantação por outra civilização (neste caso, o Islão…). ● Por que é que o Islão nunca conheceu (ao longo da sua história) a Laicidade? Esta é uma questão crucial, à qual se têm esquivado de responder os intelectuais do Ocidente. Sumariamente: Porque, no Corão (e em outros textos e loci tidos por sagrados…), nunca houve espaço para um axioma tão simples como o lóguion conhecido de Jesus, na famosa altercação com os fariseus (Mt. 22,21): “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”; ‘e a mim o que me pertence’ ─ como se pode ler, no axioma completo, que se encontra no Evangelho apócrifo de Tomé. Que significa tudo 62


isto, em resumo? É a teoria/doutrina dos dois Poderes distintos: o Religioso e o Político, o Espiritual e o Temporal. ● O Islão é, por conseguinte, um Totalitarismo irredento. Amir Jahanchachi (escritor anglo-iraniano) escreveu, com pertinência e perspicácia (in ‘Vaincre le IIIème Totalitarisme’, cit. por A.V., op. cit., p.295): “O islamismo é uma ideologia de destruição em massa, que propaga o caos. […] Onde outras ideologias ─ como o nazismo, o fascismo ou o comunismo ─ fracassaram, o islamismo pode ser bem sucedido. […] O islamismo é totalitário, porque pretende purificar o mundo daquilo que é contrário à sua ideologia e à lei da sharia. […] O islamismo é aparentado […] aos sistemas que foram personificados por Hitler e por Estaline”. Sobre os limites da liberdade de expressão e o modus operandi ético e moral, A.V. (op. cit., pp.300-301) chega a arrolar perícopas de texto da teóloga inglesa Karen Armstrong (extraídas do Cap. I da sua obra ‘Muhammed: A Biography of the Prophet’), de que vamos transcrever um parágrafo, que envolve uma certa tonalidade patética: “Até esta altura, o leitor ainda pode suscitar argumentos que contrariam o pacifismo de Maomé, subscrevendo no entanto o convite à tolerância para com as minorias. Porém, quando se passa à discussão do caso das caricaturas e da liberdade de expressão ─ directamente posta em questão pelo referido caso ─, as teses tornam-se subitamente liberticidas: [K.A.] “A liberdade de expressão nasceu como instrumento da democracia, para proteger os fracos contra o poder, e não para os atacar. Ora, estamos manifestamente perante um abuso de poder contra os fracos, sob a capa da liberdade de imprensa. […] Não seria de nos perguntarmos se, quando estes valores são postos em causa, como o foram recentemente, a liberdade de imprensa continua a ser neutra e benéfica? Não estaremos em vias de a converter num fim em si mesmo, sacralizando-a e utilizando-a como argumento político? Ora, a liberdade de imprensa é apenas um instrumento, não devendo ser, em caso algum, uma arma. […] Os insultos àqueles que pensam de maneira diferente de nós são injustificáveis, como são inadmissíveis as teorias revisionistas e as humilhações que visam colectivos como os deficientes. […] Um umçulmano nunca se permitiria insultar os profetas venerados pelo judaísmo ou pelo cristianismo, profetas esses que pertencem igualmente à tradição islâmica. A palavra ‘liberdade’ perde por completo o sentido quando é acompanhada de falta de respeito. A questão das caricaturas foi a gota de água que fez transbordar o copo, a última de uma série de humilhações de que os muçulmanos foram alvos. Recordemos a Argélia, a Bósnia, a Chechénia, a Palestina, o Iraque, Faluja, Abu Ghraib, Guantánamo… O que virá a seguir?””. Alexandre del Valle, no parágrafo seguinte, diz que voltará a abordar, adiante, “a temática tipicamente árabe islâmica da ‘humilhação’”, que ele considera o “núcleo da propaganda fundamentalista e pretexto para o ódio e a violência contra dimis e eura63


bianos, acusados de ‘ofender o islão’ ou de ‘humilhar os muçulmanos’”. Mas, na verdade, ele não acrescenta nada de substantivo à sua posição em Tese, contextuada criticamente ao longo do seu livro. Até estamos na dúvida sobre se ele entendeu, a fundo, as Teses filosóficas de Karen Armstrong, que nós conhecemos bem de outros livros seus, e que nos parece militar pela Cultura da Liberdade Responsável primacial e primordial, como Alternativa à sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, ainda vigente e dominante, nos espaços culturais das três religiões de ‘O Livro’ (aí incluídos os muçulmanos ‘humilhados’!...). ● ‘Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ (Mt. 22,21); ‘e a mim o que me pertence’ ─ acrescentou o Evangelho de Tomé. A dualidade tradicional dos Poderes, que passa por ser a doutrina clássica da Cristandade… e que, bem vistas as coisas, não é assim tão tradicional, em termos sócio-históricos efectivos!... É que, em termos filosófico-críticos, a tese da dualidade dos Poderes não passa de um ‘arranjo estratégico’ (de índole propedêutica e metodológica), ─ visto que, em última análise ou instância, o Poder é sempre um só, como nós próprios temos aprendido e ensinado no CEHC. Eis por que o mais importante no lóguion, atribuído a Jesus, encontra-se, verdadeiramente, no Evangelho de Tomé: é o que pertence às Consciências individuais-pessoais de toda a Gente, e que não pode ser esmagado nem esquecido por qualquer Poder constituído (religioso ou político). É aí que reside a Fonte (original/originante) da Democracia e do seu ideário autêntico! Essa é, também, a Fonte original da vera e autêntica Laicidade, ─ que nós encontramos na Noção de Laós = Povo, a qual dispensa (por perfunctórias…) Divindades (exógenas) e Mandantes, constituídos em Poderes Estabelecidos. ● O próprio Concílio Vaticano II (1962-1965) ficou a meio caminho, nos seus Documentos de abertura aos novos tempos (que, aí, já foram, de algum modo, intuídos como pertencendo a uma Nova Era, a da Pós-Modernidade, a qual para o CEHC, só faz sentido se for assumida na sua condição de reflexiva e crítica). Desde a Constituição inaugural sobre a Igreja enquanto ‘povo de Deus’, na ‘Lumen Gentium’, e passando em revista os restantes Documentos teológicos e societários, a Cristandade dita Católica ficou ainda refém, porquanto ficou amarrada à incontornável Constituição hierárquica da Igreja (que não é de Jesus, mas de Paulo…): bispos, padres e fiéis cristãos…; e os leigos, na Igreja, sempre continuaram a ser considerados no rol da ‘Ecclesia discens’, sempre ordenada e submetida, superiormente, à ‘Ecclesia docens’. (Vd. ‘ A Igreja do Vaticano II’, sob a direcção de Frei Guilherme Baraúna, O.F.M., Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1965). Como não poderia deixar de ser, v.g., o pensamento e o ideário dos Enciclopedistas e da Revolução Francesa foram muito mais longe, na prospecção e no 64


balizamento da Democracia e da Laicidade, do que o Concílio Vaticano II. Sentinela, Alerta… é o Futuro que te convoca! ● Que é a Laicidade? ─ É a Democracia radical de Sujeitos humanos livres e responsáveis; e o reconhecimento, indiscutível, de que as Consciências dos Indivíduos-Pessoas e sua Experiência real se encontram no lugar do comando (da Psico-Sócio-História), face a todos os Adamastores dos Poderes constituídos nas Sociedades humanas. Por isso mesmo, a Cultura do Ocidente, de matriz cristã, mesmo na óptica das suas aberturas (serôdias) ao ideário das Revoluções modernas, foi sempre esquizofrenadamente ambígua, e não se cansou, até ao presente, de continuar a pensar e a agir, sob a bitola e a batuta dos ‘dois pesos e duas medidas’!... Até quando?... Só esperamos que o Jesuanismo emirja definitivamente, aliado ao Socratismo, e não se obrigue a Humanidade à desesperança de S. Beckett, na sua peça de Teatro ‘À espera de Godot’!...

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I Três Tipologias principais de Organização das Sociedades Humanas

A escansão dessas Tipologias é concebida e estruturada a partir da Interioridade (ab intus et ab intra ad extra et exteriora) para a Exterioridade, segundo a gramática dos Gnósticos judeo-cristãos primevos da Escola de Alexandria. De modo aproximado, o processus também poderia ser nomeado: do espírito (ruah, no hebraico e pneuma, no grego) para a matéria; da alma para o corpo. Não esquecer que essa é a dialéctica dialógica específica da Pós-Modernidade positiva e crítica. Enquanto não percebermos e captarmos este enquadramento crítico, continuaremos como o tolo no meio da ponte, enleado nas contradições e confusões entre o moderno e o pós-moderno. A) A tipologia, mais corrente e tradicional (é uma espécie de estereotipo…), que tem a sua base de construção na Lei d’abord, conceptualiza e subsume os Indivíduos como elementos de um Conjunto (ou Colectivo), que é comandado, hierárquica e superiormente, por um Chefe supremo ou Dominador majestático (rei, imperador, pontífice, 65


califa, sátrapa…). Como é sabido, este modo de estar e ser, no mundo societário, foi típico das sociedades gregárias; foi próprio do ‘Ancien Régime’ (caracterizado por A. de Tocqueville), onde, v.g., uma vez convertido ao Cristianismo o rei Clóvis, todo o reino dos Francos foi, ipso facto, convertido. O Cristianismo e as Cristandades paulinas, que entenderam e tomaram os Pelagianos (e o pelagianismo) como heréticos e incréus a rejeitar e anatematizar, seguiram, rigorosamente, na mesma trilha. Mas o ‘Nouveau Régime’, que usou e abusou, historicamente, do Despotismo Iluminado (per fas et nefas…), esteve sempre longe de pôr em causa essa cartilha corrente e tradicional. Ora, neste horizonte, a Lei é o instrumento principal (com os exércitos armados às suas ordens…), e quase único (o bom conselho, a admoestação e a reprimenda não passam de anõezinhos…), para afinar e modelar os usos e costumes (os mores…) e balizar e orientar o Processo civilizatório. B) A tipologia intermédia (assim considerada com o seu inevitável artifício…) procura respeitar a axiomática mais fundamental da Democracia, a saber: a Lei é igual para todos!... (É justamente nesta óptica original que o CEHC dá habitualmente esta noção radical da Lei como ‘lugar de encontro das pessoas’). Se, de facto, alguns são exceptuados a essa igualdade/generalidade da Lei, não devem ser os de cima, mas os de baixo na pirâmide societária: a isso se chama discriminação positiva, cujo objectivo (metodológico/axiológico) é corrigir o que a Lei não pôde cobrir, devido à sua extrema generalidade. Nesta perspectiva, convém prestar atenção a três Teses/Factos: a) O pregador oratoriano Lacordaire, do púlpito da catedral de Notre-Dame de Paris (1ª metade do séc. XIX) perorava da seguinte forma: Há, na verdade, situações sócio-humanas, em que, paradoxalmente, é a Lei que liberta e a Liberdade que oprime. Esclarecimento: com efeito, enquanto a liberdade de ricos e poderosos dá para explorar e oprimir os pobres e os mais débeis e carenciados, é, em contraste, a Lei, na medida em que impõe o princípio da igualdade de base para toda a gente, é a Lei que salva e liberta. b) A noção de Lei, em Tomás d’Aquino (na ‘Summa Theologiae’) foi formulada nos termos seguintes: “ordinatio rationis, ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet promulgata”. Pressupõe-se, aí, uma Direcção e um Chefe; a gramática da racionalidade enquanto modus operandi; só não ficou prevista a origem ou fonte do exercício do Poder: se isso é feito por obra e graça de um qualquer mandato divino (‘omnis potestas a Deo’, segundo Paulo ad Rom.13,1), ou se é levado a cabo mediante o sufrágio popular, de acordo com a teoria/doutrina do ‘Contrato Social’ de J-J. Rousseau. Francisco Suarez, no séc. XVII, (na 2ª Escolástica, ou Escolástica hispânica), procurou resolver esse dilema estabelecendo o parergo: ‘omnis potestas a Deo per populum’. Em suma, as velhas/relhas soluções híbridas, de armistício, que foram também as da famosa Teoria política de T. Hobbes sobre os dois Poderes. 66


c) ‘A Servidão Voluntária’ de La Boétie (amigo de Montaigne), (séc. XVI). Este livro é uma das primeiras obras modernas (absolutamente excepcional…), que são capazes de fundar e promover a Liberdade responsável entre os Seres humanos… e fá-lo, com tal penetração e sagacidade, que, paradoxalmente, chega a admitir e a justificar a própria servidão, desde que ela seja alimentada pela Vontade (livre) dos Sujeitos em causa. No fundo, esta obra constitui um hino paradoxal (em tempo histórico muito anterior ao advento da Pós-Modernidade positiva e crítica) à Liberdade Responsável e à sua condição primacial na gramática dos Seres humanos, qua tais. Deve admitir-se que, de ricochete, mas só implicitamente, a Tese (luminosa) de La Boétie rejeita e esconjura toda a sorte de Despotismo Iluminado, ─ a víbora que a Cultura ideológica da Modernidade ocidental (1ª e 2ª…) acalentou descuidosamente no seu peito. C) A tipologia, antiga e futurista, que estabelece a sua âncora, no primado absoluto das Consciências individuais-pessoais, de acordo com a gramática dos Gnósticos judeo-cristãos primevos da Escola de Alexandria. Nesta óptica, a Lei, enquanto tal, não é um instrumento/arma do Poder Estabelecido, para forçar e impor a obediência e a servidão dos súbditos e das populações, em geral. Entretanto, o Poder, por seu turno, não se constitui como uma realidade cindida e separada das Liberdades (reais) dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. A Lei acaba por ser, neste horizonte, o simples lugar de encontro das pessoas (CEHC). Isto mesmo, visto que, se o Poder Estabelecido busca a Totalidade, a Consciência do Indivíduo-Pessoa é, por definição, um Infinito. (Cf. Emmanuel Lévinas: ‘La Totalité et l’Infini’). É, de facto, nessa noção de Lei, que reside a fonte derradeira, que nos manda operar a distinção e não confusão entre o Estado e o Governo do Estado. Por outras palavras, o horizonte (eidético/estruturador), que estamos a configurar, é o que o CEHC tem chamado a Cultura da Liberdade Responsável primacial e primordial, contra a sua inimiga de morte, a Cultura do Poder-Dominação d’abord, que, proh dolor, ainda é hegemónica nas Sociedades nossas contemporâneas. A linguagem e o discurso preferenciais, nesta órbita de funcionamento das Sociedades humanas, não são os da Lei e dos Aparelhos legiferantes, mas, outrossim, os das sugestões e propostas e recomendações. A preocupação (ético-moral) central é a de não amordaçar o próximo, não inibir e não controlar a Vontade livre e responsável dos Indivíduos-Pessoas. Este caminho só pode ser aberto, na Cultura substantiva, mediante uma forte e robusta panenvolvência propedêutica da Educação, bem como de um Sistema Educativo (nacional) substantivo, capazes de promover o Diálogo e a Argumentação com todos os outros, em lugar de proceder através da imposição de ‘leis’, de dogmas e doutrinas (sempre destilados de cima para baixo…).

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Este Mundo social/societário, agora indiciado, pressupõe, obviamente, o primado absoluto dos Sujeitos (humanos) sobre os objectos/coisas/mercadorias; pressupõe o primado absoluto das Pessoas sobre as Coisas: o primado, por conseguinte, da Ética e da Moral e do Bom Direito, sobre os mercados e mercadores, e o seu liberalismo fútil e egoísta/egotista. Adam Smith (na sua obra celebrada ‘The Wealth of Nations’), ao construir a cartilha do Capitalismo moderno, partiu (erradamente e erroneamente…) do pressuposto de que os vícios privados se convertiam em virtudes púbicas e vice-versa… ─ Ora, este tipo de axiomática, além de demagógico e errado, é nefasto e pejado de consequências negativas e apocalípticas. ‘Parvulus error in principio, magnus in fine’!... Nas Sociedades hodiernas, estigmatizadas pelo Neoliberalismo capitalista global, nunca abundaram tanto (em confronto com as anteriores) os processos enviesados, as predações/roubos, as degradações/corrupções formais e os crimes de sangue para manter ou conquistar situações lucrativas… As penitenciárias estão a abarrotar de criminosos (reais ou supostos…). Até se criou, generalizadamente, a atmosfera ideológica perversa de que o crime compensa. O axioma, errado e funesto, de que se parte é este: ‘Cada um por si e Deus por todos’!... E admira-se a gente de as Sociedades, à escala do Mundo, viveram numa Crise Gravíssima (financeira, económica e moral…) desde 2007/8?!... É óbvio que uma Sociedade, assim, só pode conduzir ao ‘bellum omnium contra omnes’ de T. Hobbes, ao caos e ao apocalipse final!... Em vez de investir nos efeitos e sequelas da culpa (Schuld, que, para os alemães, prototipicamente, significa culpa e dívida…) e do crime/delito, por que não aprender a Lição dos Gnósticos, e investir, forte e basicamente, na Educação e na Instrução, em suma, em Sistemas Educativos (nacionais), dignos do nome?!... A videovigilância (hodiernamente tão consentida e divulgada…) e os tradicionais e modernos sistemas da Lei e da Moral (‘Law & Order’), baseados nos prémios ou nos castigos/punições, situam-se, indiscutivelmente, dentro do odre da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, e, precisamente, nos antípodas da Cultura da Liberdade Responsável primacial e primordial. Não promovem a Consciência dos Indivíduos-Pessoas; pelo contrário, operam disrupção, eclipsam-na e acabam por destruí-la e aniquilá-la. Que fizeram Sócrates e Jesus?! Cada um a seu modo, promoveram a emergência (definitiva!...) desse Infinito humano, que é a Consciência de cada Indivíduo-Pessoa/ /Cidadão. Nossa Tese de Licenciatura em Teologia, na Univ. Gregoriana (Roma), (escrita em Latim, em 1959), tinha por título e tema central: ‘Lex ≠=Evangelium’. Defendia-se, aí, o primado do Evangelho sobre a Lei, ─ o que constitui a Alavanca de Arquimedes do Jesuanismo. Um universo cultural diferente e oposto a esse, foi, historicamente, construído pelo Cristianismo de Paulo e pelas Cristandades tradicionais (sempre no horizonte da Potestas d’abord). 68


* Quais os caminhos a seguir? O coordenador (Rui Ramos) e um dos 3 Autores da ‘História de Portugal’ (editada por A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009), a propósito da reedição da obra em fascículos, pelo semanário ‘Expresso’, em Julho/Agosto de 2012, deu ao referido semanário uma entrevista notável, sobre temas históricos e sócio-políticos de fundo, que nos mereceu muita atenção (vd. ‘Expresso’/Atual, 7.7.2012, pp.6-10). Aí (p.7) diz o historiador, em parergo que os jornalistas destacaram: “Durante muitos anos, vivemos uma relação com o passado, como se ele fosse um passado monstruoso, único e inexplicável”. A historiografia, que o trio de Autores pratica nesta obra (de grande mérito e qualidade científica e metodológica), aprendeu, confessadamente, as duas metodologias historiográficas: a da Escola francesa dos ‘Annales’ e a da Escola inglesa, mais propensa à narrativa e ao discurso de uma História política mais sofisticado (vd. ibidem). Esta obra ─ há que declará-lo ─ ainda não se enquadra, propriamente, no que o CEHC designa por História ‘ao terceiro grau’ (como têm feito Alfredo Pinheiro Marques, do CEMAR, em Portugal, e João Barcellos, do CEHC/Escritórios América Latina, São Paulo, Brasil). Mas aproxima-se da meta, a passo estugado. E até se perceberá melhor este dado ‘conflitual’, se tivermos em conta que se trata de uma Obra de síntese global (para uso nas escolas e academias), e não de monografias historiográficas de investigação científica actualizada. Rui Ramos professa, clara e criticamente, o ideário historiológico de que “é importante contrariar o discurso da História de Portugal de que isto é sempre a mesma coisa. Não é nada a mesma coisa” (ibi, p.9). Do passado, “uma das maiores lições que se pode tirar é a dessa noção da contingência, a noção do efémero, a noção da abertura, de as coisas estarem condicionadas mas não determinadas” (ibi, p.10). Quem não pressente, aqui, por detrás dos bastidores, a vontade nítida de esconjurar, de vez, a famigerada teoria do ‘eterno retorno’ nietzscheano?! Mentes abertas e críticas é o que mais necessitamos hoje, às escalas nacional, europeia e do Mundo. Com efeito, dados os conhecimentos científicos de que dispomos sobre as realidades físicas e biológicas, terrestres e extra-terrestres, bem como sobre a Humanidade, a História das Civilizações e das Culturas, nas Sociedades humanas, não pode deixar de ser empreendida ‘ao terceiro grau’, visto que a Realidade que está em causa é o Psico-Sócio-Ânthropos. Borda fora todos os Dualismos metafísico-ontológicos (procedentes das religiões institucionalizadas), porque eles não conhecem outro catecismo do Humano, a não ser o do ‘Homo Sapiens tout court’. Reveladora, sem dúvida, de uma mundividência esclarecida e crítica, foi a afirmação de Rui Ramos, que os jornalistas salientaram (na p.10): “A maneira como as 69


nações marcaram a História da Europa é tão forte, que um dos grandes problemas da UE é não se conseguir conceber senão como nação”. Daqui, as inércias próprias ao modelo imperial da Federação de Estados (como acontece nos USA, no Brasil ou na actual Rússia). E o modelo imperial de onde procede, na Civilização/Cultura do Ocidente? Precisamente do Imperium Romanum, que se encontra, historicamente, nas origens geopolíticas e ideológicas da maior parte das nações do Ocidente E o que marcou a fogo esse Império Romano (que foi a matriz de outros Impérios do Ocidente)? O Cristianismo e o espírito das Cristandades paulinas, no encalço da constantinização da Igreja Católica Romana (ICR), em 313, através do edicto de Milão. Eis por que, para o processus histórico da formação da U.E., tem sido tão difícil o caminho da vera e autêntica Confederação de Estados/Nações (o único modelo válido, legítimo e salutar, atendendo à geopolítica e à história nacional dos Estados/nações europeus e ocidentais). De modo latente, ou patenteado, as guerras, na Europa, foram históricamente desencadeadas pela Hybris e pela fúria, decorrentes das tentações do modelo imperial-imperialista, que adveio do Imperium Romanum e da teoria/doutrina da Potestas-Dominação d’abord, que o Cristianismo e as Cristandades não foram capazes de emendar… muito pelo contrário!... Rui Ramos tem plena consciência de que a dimensão global, na Civilização/ /Cultura do Ocidente, esteve, historicamente, sempre presente, mesmo antes do actual processo de globalização das últimas três décadas (cf. ibi, p.9). Sob que padrão ou modelo? No quadro do Sistema capitalista (materialista/economicista), que é, por definição e estrutura, expansionista, de índole mundializada. Neste contexto, quando, nos inícios da Modernidade ocidental, as Nações europeias foram tomando a sua forma, em termos geopolíticos, o molde/modelo que prevaleceu foi exactamente o do Império (não o das nações constituídas em-pé-de-igualdade, como foi o caso das ‘Cidades/Estados’ italianas, entre o séc. XII e XV, que precederam as outras Nações modernas, na península itálica). Se, com efeito, as sociedades europeias se relacionam com a História, mediante o quadro da Nação, isso mesmo ainda se deve ao modelo do Império, que se mantém (residual, como bomba relógio…) no subconsciente de todas as Culturas nacionais europeias e ocidentais (a começar pela ideologia imperialista do papa Bento XVI, na Encíclica ‘Caritas in Veritate’/2009). Rui Ramos conhece este caleidoscópio de embuste e farsa, quando assevera (ibidem): “A nação é a História e vice-versa. Portanto, as histórias que temos são as de nações, de entidades que por vezes estão identificadas com territórios, outras vezes com línguas, mas sempre identificadas com uma experiência colectiva que é partilhada e a que gerações sucessivas foram condicionadas para ver como a sua História. No entanto, hoje sabemos que a nação pode também ser entendida como um produto da História. [Aqui, o marco do novo ‘território’ da História ‘ao 3º grau’!]. Um produto construído pelos histo70


riadores de forma a que ela fosse uma História nacional, mas também um produto daquilo que resultou de uma sucessão de acontecimentos. Aqui deixamos bem claro que entendemos Portugal como essa construção da História, mas que ao mesmo tempo percebemos que essa construção condiciona a maneira como olhamos para ela, a selecção que fazemos dos materiais e que cada momento em que estamos nos dá uma visão diferente desse passado. Chamamos a atenção, por exemplo, para o facto de a des-colonização, em 1974/75, e a opção europeia, que se lhe seguiu, terem europeizado de mais a História de Portugal. A História de Portugal é a História de uma unidade política, que durante a maior parte do tempo integrou territórios não europeus, integrou populações não europeias e que, por vezes, teve a sua sede fora da Europa. [o caso da fuga/ /libertação da Casa Real de D. João VI para o Brasil, perante a iminência das invasões napoleónicas a Portugal continental…]. De repente, começámos a adoptarmo-nos muito a este rectângulo”. O historiador tem uma concepção crítica apurada do estado actual das Socie-dades humanas. Negámos e rejeitámos a 1ª natureza (incluindo, aí, a humana…) e fizé-mos dela tratos de polé. Os resultados foram a 2ª natureza perder o pé-de-sustentação. “Construiuse a ideia de que o ser humano pode atingir um estado em que manipula tu-do. É uma civilização que negou os limites. É por isso que esta crise, que estamos a viver desde 2008, que historicamente não é tão estranha como isso, causou um abalo tre-mendo” (idem, ibi, p.10).

Outro tema, que não se pode ignorar e não se pode esconjurar, até que seja adequadamente enfrentado e resolvido: o convívio entre as três religiões de ‘O Livro’ será realmente possível ou teremos de esperar até às calendas gregas?!... A peça de tea-tro da israelense Yael Ronen, ‘The Day Before the Last Day’ (que esteve presente, em Julho p.p., no Festival de Almada, apud Teatro Nacional D. Maria II) constitui uma daquelas obras emblemáticas, no concernente aos problemas-base da Humanitas. A Au-tora da peça volta a pôr em palco cristãos, muçulmanos e judeus (cf. ‘Expresso’/Atual, cit., p.24). É sempre melindroso e difícil abordar os dois temas geminados: o Holocausto e a Nakba (o êxodo dos árabes da Palestina, em 1948, aquando da refundação do Estado de Israel). Tudo gira, na peça, em torno da ‘Third Generation’. A Autora da peça explica o modus operandi: “O triângulo de ‘Third Generation’ foi entendido como o problema de base, não interessava o que ia acontecer a seguir” (cf. ibidem). O objectivo central, polarizador, da peça é constituído pela problemática da discussão da utilidade das religiões, e procura imaginar um mundo, onde as pessoas acabem por descobrir que, afinal, a sua identidade não depende da religião que professam. Realidade ou apenas um desejo piedoso?!... Até ao séc. XVII, faziam-se guerras (no Ocidente europeu…) por causas e motivações religiosas; a partir da era das Revoluções sócio-políticas (séc. XVIII), as guerras começam a ser feitas (às escâncaras), em nome da cegueira 71


e da hybris do Poder e da Conquista e Dominação económicas. As Revoluções modernas ─ não esquecer ─ acompanharam a emergência e a subida dos impérios!... Não será tempo de superar este ‘status quo’ societário, ainda vigente à escala do Mundo?... Referindo-se à Autora da peça, a jornalista Cristina Margato escreve, na conclusão do artigo (ibidem): “Para o problema de base, ela até tinha uma solução: um país com duas nacionalidades, sem religiões, mas sabe que é apenas ilusão”. Aqui mesmo, a tragédia: a problemática inerente ao ‘tertium datur’, i.e., os desprovidos de qualquer crença religiosa… problemática essa que não é resolvida, pela mesma razão por que não foram adequadamente resolvidos os problemas dos crentes das religiões institucionalizadas. Na verdade, perante a situação da crença religiosa e a situação da não-crença, é mister lembrar que também, aqui, se aplica o princípio de que ‘a Natureza tem horror ao vazio’. Significa isto, em última análise ou instância, que é obrigatório, axiológicamente, para a Humanitas, superar, pela positiva (não apenas na vertente negativa) todas as religiões institucionalizadas.

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J Temas avulsos de uma Quermesse up-date São temas e problemas transversais, que não são, por isso, menos importantes e decisivos. Não esquecer que toda a selecção, toda a opção constituem uma Decisão, justa ou puramente caprichosa. Daí, o dever humanizante do equilíbrio e da moderação nos comportamentos e atitudes, é o princípio axiomático do ‘mesótes’ aristotélico, em todo o universo humano.

● Sobre a história do Sistema capitalista, na Cultura do Ocidente Na Idade Moderna, sobretudo na peugada dos Descobrimentos transoceânicos, a Cultura ocidental entrou num processo acelerado de globalização (vocábulo de matriz inglesa) ou mundialização (vocáb. de matriz semântica francesa). Consideramos a 2ª expressão mais exacta e feliz. Não vamos, aqui, dissertar sobre a história do Sistema ca72


pitalista… Vamos, tão-só, procurar identificar, nas suas origens, o que podemos designar pelo seu ‘embrião genético’. Para tratar deste Problema, há que ter presentes duas Teses fundamentais estruturadoras: A) O Sistema capitalista entronca (e não subsiste sem…) na sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. Tanto historicamente, como à escala actual do Mundo, esta Cultura está muito mais difundida e presente everywhere do que se imagina. Quando a Tradição jurídica do Direito Romano (a Ocidente e a Oriente) nos define a propriedade como ‘jus utendi et abutendi’, ─ estamos nela. Quando (a Ocidente e a Oriente) se proclama o carácter sacro e santo do Poder constituído ou a constituir, ─ estamos nela. Quando (a Ocidente e a Oriente) se atirou às urtigas o Direito natural e a Lei natural, e se atribuiu o primado ao positivismo jurídico, ─ estamos nela. Quando os intelectuais e próceres islâmicos argumentam e defendem que o Islão é uma religião natural, (o que é um Erro crasso, visto que é religião positiva e revelada, tanto como o judaísmo e o cristianismo), ─ estamos nela. B) Na história da Cultura do Ocidente, o capitalismo, identificado (a posteriori…) embrionariamente como tal, tem as suas origens, no período dos sécs. XII a XIV, quando foram formatadas as 1as ‘Cidades/estados’ na península itálica, e, ao mesmo tempo, começaram a operar, para as viagens de longo curso e os movimentos comerciais, as chamadas ‘guildas’ (germânicas…), numa escala transnacional/internacional. O monumento icónico (de carácter jurídico) que serviu de arranque foi chamado (em italiano) ‘prestamo all’interesse’ (empréstimo, primeiro ocasional, depois sistemático…, empréstimo do dinheiro em troca de juros acumulados, progressivamente, pelo seu empréstimo). Os judeus de então, como de costume, sempre entregues maioritariamente ao Comércio, na sua Diáspora universal, fizeram a proposta (começaram o movimento…) e os pontífices da I.C.R. sancionaram, logo, essas práticas, legislando sobre a matéria.

● Das dificuldades em acertar no alvo com precisão Vitorino Nemésio (o das surpreendentes charlas na TV com o ‘incipit’: se bem me lembro), (no seu livro de poemas integrado nas ‘Obras Completas, Poesia’, vol 2º, edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda), o velho guru que foi capaz de lobrigar para além do seu tempo, ensinou que a morte não é outra coisa senão a ‘foz das vidas’, de tal sorte que o finito vem a atingir a sua completude, precisamente na sua emergente infinidade.

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Esta concepção ─ há que dizê-lo sem ambiguidades ─ ainda paga tributo à sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, e à sua respectiva Alavanca de Arquimedes que é o Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo. Mas há que reconhecer, igualmente, que essa sua concepção da morte tem uma outra face, que faz questão de começar a revelar: o potencial da consciência de cada Indivíduo-Pessoa e, bem assim, o inestimável legado que ele pode deixar à Sociedade, enquanto cidadão responsável, constituído como parte activa integrante da Sociedade a que pertence. Tudo isto, no horizonte, como é óbvio, da gramática do ‘Homo Sapiens// //Sapiens’, que dispensa e recusa todas as mistagogias, procedentes do Dualismo metafísico-ontológico e das ‘religiões institucionalizadas’, em geral. Não é a religião que é o ópio do povo (K. Marx dixit), mas, outrossim, a religião institucionalizada. É que as Sociedades humanas do Futuro, concebidas e arquitectadas ao abrigo da gramática do ‘Homo Sapiens//Sapiens’, (em suma, Sociedades humanas dignas do nome), não se compadecem com a presença estruturalmente esquizofrenante das ‘religiões institucionalizadas’… as quais começam por dissolver toda a sorte de religio naturalis e acabam o seu modus operandi na mais cruel e nefanda ditadura. Atenção, pois, a este datum incontornável: o Poder, em última análise/instância, é sempre um só… e os cidadãos de parte inteira, numa Sociedade livre e consciente de si, devem assumi-lo, activa e criticamente: devem repartir o Poder entre si, como o P e Manuel Bernardes dizia do Pão: é preciso reparti-lo ‘em pequeninos’ (pedaços).

● A sempre insinuada e incontornável perversidade a meias… A meia perversidade das indústrias do Turismo e do próprio universo ideológico dos Museus é inevitável sob o horizonte da religião do Objectivo-Objectualismo e da Cultura (geminada) do Poder-Condomínio, claro, dentro das estruturas societárias do Sistema Capitalista, ─ que já (quase) ninguém discute ou põe em causa, antes, assumem-no como um ‘datum naturale’… ‘Eppure si muove’ ─ diria Galileus Galilei!... Imagem e ideia/conceito. Segundo a gramática do ‘Homo Sapiens//Sapiens’, em termos gnóseo-epistemológicos, a 1ª notio, formada com a ajuda do intelecto passivo, configura-se na ante-câmara; na câmara propriamente dita, situa-se a 2ª notio, formada sob a agência do intelecto activo do Indivíduo-Pessoa. Segundo a cartilha do ‘Homo Sapiens tout court’, em termos gnóseo-epistemológicos, a 1ª notio, formada sob a inspecção (paradoxal…) do intelecto passivo, detém (abusivamente…) o primado (absoluto) sobre a 2ª notio; e, aqui, o intelecto activo perdeu o pé e deixou de cumprir a sua missão identitária e levou o Sujeito individual-pessoal a perder a sua Identidade. A diferença estrutural-estruturante, entre os dois caminhos da Humanitas, reside aí: por 74


isso, bem e mal andam sempre à mistura, numa confusão letal e a bandeira que se agita é sempre a mesma: ‘cada um por si e Deus (o Poder Estabelecido…) por todos’!... Falamos, obviamente, do turismo de massas (em Sociedades capitalistas), para os turistas, que são, a um só tempo, espectadores e actores, ─ onde as funções do actor e as do espectador coincidem e se confundem, visto que todos se acham no reino/império das coisas/mercadorias: aí, a condição de actor personalizado (com a sua identidade própria insubstituível) não existe. Eis por que os turistas, guiados/impelidos pelo tropismo inercial da multidão, causam, habitualmente, danos, estragos, devastação por onde passam… Este movimento do Turismo, assim calibrado, começou com as exposições universais, levadas a efeito no séc. XIX (2ª metade) e polarizadas nas mercadorias e nos novos engenhos tecnológicos para as Indústrias emergentes, criadas pelo Capitalismo industrial. Nos inícios do séc. XIX, erguem-se, nos palcos societários, uma forte frente de crítica ao chamado ‘Turismo de massas’, que já denunciava a enorme devastação (espiritual e material) desencadeada por esse tipo de Turismo. Contudo, essa frente de combate não durou muito nem produziu grandes efeitos de reorientação crítica… É conhecido (‘à sufficenza’…), v.g., o ódio visceral que Veneza, Roma ou Florença alimentam face aos turistas massivos, mas ─ pergunta-se ─ não é com os don juans e os lascivos, que as prostitutas e os bordéis e os proxenetas celebram os seus festins sexuais?!... Em 1950, o ensaísta alemão Gerhard Nebel deixou escrito, lapidarmente, que ‘o turismo ocidental é um dos maiores movimentos nihilistas, uma das grandes epidemias do Ocidente’, e advertia que ‘um país que se abre ao turismo fecha-se metafisicamente ─ oferece um cenário, mas já não a sua potência mágica’. Mutatis mutandis, deparamos com uma situação similar de contrastes, na época actual, onde o financeirismo detém os comandos sobre a economia real!... O trabalho produtivo e criador perdeu o seu encanto… a própria arte entrou no reino da contrafacção e do pechisbeque… Ficámos afundados sob o império da Pletora mecanicística/automática mais acabada!... É por isso, que, hoje, somos todos ‘turistas’, nas sociedades requintadamente capitalistas em que sobrevivemos!... Advertindo bem, a própria noção de ‘destruição criadora’, enfatizada como categoria fundadora pelo economista austríaco Friedrick Hayeck, é sob esta abóbada celeste que se justifica!... Ora, a Indústria do Turismo (tal como é conhecida…) e a devastação, que os turistas massivos carreiam consigo, constituem, afinal, o non-plus-ultra ocidental da santa religião laica do ‘Objectivo-Objectualismo’… Em resultado disso, a Humanidade ficou, ela própria, devastada e aniquilada, sem motivação espiritual/anímica que a balize e norteie, reduzida à sua nihilista e trágica condição, avaliada, tão-só, no horizonte materialista da vida, que resta!...

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É sabido como foram severamente contestadas (na Rússia e no Ocidente) as eleições de 2012, levadas a efeito na Federação russa, onde se operou a nova troca de cargos políticos entre Putin e Medvedev (medvedev, em russo, significa ‘urso’…). Neste contexto, é indiscutível que “se existe alguma verdade no que, a 3 de Agosto, em ‘Making Punk a Threat Again’, Spencer Ackerman escrevia no ‘Foreign Policy’: ‘As Pussy Riot são ─ e tomamos de empréstimo, por um segundo, o lema dos Clash ─ a única banda que realmente interessa’, vendo nelas o derradeiro elo de vencedoras, pelo martírio, numa longa linhagem de heróis punk parcos de vitórias reais, será mais exacto encará-las como brigada de teatro de guerrilha urbana, mais afim das tácticas situacionistas do que, ainda assim, convencional, modus operandi punk: não existem discos físicos das Pussy Riot que possam ser comprados ou descarregados da net” (João Lisboa, ‘Expresso’/Atual, 25.8.2012, p.38). Pelos seus efeitos de indignação crítica, numa sorte de ‘mega-obra-d’arte’, as Pussy Riot foram condenadas, por um tribunal de Moscovo, à pena de dois anos de prisão efectiva, sob a acusação de hooliganismo e incitamento ao ódio religioso!... Como se dá conta, é patética a dissimulação no veredicto do julgamento. Nas alegações finais do processo, Nadezhda Tolokonnikova, assumindo a vera função de ‘advogada de defesa’, numa estratégia adequada, que transformou o acusado em acusador, proclamou antologicamente: “Na essência, não são as três cantoras das Pussy Riot que estão aqui a ser julgadas. Se fosse esse o caso, o que está a acontecer seria completamente insignificante. É o aparelho de Estado da Federação Russa no seu todo que está a ser julgado e que, infelizmente para si mesmo, se deleita verdadeiramente em publicitar a sua crueldade para com os seres humanos, a indiferença perante a sua honra e dignidade, o pior que aconteceu na História da Rússia até hoje. Lamento profundamente que este tribunal não seja muito diferente das troikas estalinistas. […] As decisões que toma são determinadas por uma exigência política de repressão. De quem é a culpa pela nossa performance na Catedral do Cristo Salvador e por termos sido processadas a seguir? Do sistema político autoritário. O que as Pussy Riot fizeram foi arte e política de oposição, que deriva de formas artísticas estabelecidas. Trata-se de uma forma de intervenção cívica, em cujas circunstâncias os direitos humanos básicos e as liberdades políticas foram suprimidos pelo Estado. […] Realizámos os nossos concertos punk porque o Estado russo é rígido, fechado e dominado por castas, cuja política está de tal modo ao serviço de interesses corporativos, que só de respirar o ar da Rússia nos dá náuseas”. E, depois de citar Aleksander Viredensky (e os outros futuristas russos dos anos 20 e 30 dizimados pelo estalinismo), Dostoyevsky, Sócrates e Montaigne, concluiu, evocando a própria ‘Punk Prayer’: “Por estranho que pareça, todas as nossas canções acabaram por se revelar proféticas, incluindo a que diz ‘O chefe do KGB, o santo número um, escoltará até à cadeia os indignados que protestam’. Era de nós que falávamos! Mas

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o que importa, agora, é a frase seguinte: ‘Abram as portas, corram com as insígnias militares e juntem-se a nós para saborear a liberdade’”. (Cit. por J.L., ibidem). Assim mesmo se vão rasgando os caminhos (na sua vertente dramática e trágica…) do que o CEHC designa por Pós-Modernidade positiva e crítica. No meio de oligarquias mafiosas, organizadas segundo o mais despudorado catecismo do arbitrário despótico, a protoditadura de V. Putin está a consolidar-se, ameaçadoramente, no horizonte da Federação russa, depois das últimas eleições extremamente controversas. Quando, nos anos ’80 e inícios dos ’90 do séc. XX, se contrariou e fez abortar (de dentro e de fora da URSS) o bom êxito da Perestroika de Gorbatchov, a Rússia perdeu, então, a oportunidade histórica de edificar um sistema político normal… (Ia, justamente, nesse horizonte crítico a nossa obra, editada em 1989, por Estante Editora, Aveiro, com o título: ‘Flashes sobre a Esquerda neste final de século (milénio) (Crises do PCP e da Modernidade incluídas)). No filme ‘Winter Go Away’ (da Escola de Teatro e Cinema de Marina Razbezhkina e Mikhail Ugarov), lobriga-se uma freira ortodoxa, aliás apoiante de Vladimir Putin, a definir da melhor forma o estado actual das coisas: ‘A Rússia está transformada num pátio psiquiátrico’!...

● Mas as Crises continuam descabeladamente (e sem controlo) everywhere… O célebre geógrafo e etnógrafo, que foi Orlando Ribeiro, para caracterizar a identidade de Portugal, socorreu-se de um texto famoso do paradigmático geógrafo e historiador francês que foi Pierre Birot, que rezava o seguinte: “Assim puderam longamente amadurecer, ao abrigo de fronteiras que são as mais velhas da Europa, os traços próprios da alma portuguesa e que a individualizam tão nitidamente em relação aos seus vizinhos peninsulares. De um lado, um povo orgulhoso e exaltado, pronto para todos os sacrifícios e para todas as violências, que lhe inspirará a preocupação da dignidade; de outro lado, mais melancolia e mais indecisão; mais sensibilidade ao encontro das mulheres e das crianças, uma humanidade verdadeira, onde se reconhece um dos tesouros mais preciosos do património da nossa velha Europa ocidental”. A U.E., com a sua gravíssima Crise hodierna, fez sentir aos portugueses a sua tradicional condição periférica, no Sistema do Capitalismo continental e mundial. Ora, se, ao invés, prestarmos alguma atenção à História, designadamente à saga dos Descobrimentos transoceânicos e ao vasto quadro geopolítico da Lusofonia, é mister chegar à conclusão incontornável de que Portugal é um país central. “Como escreveu recentemente o coreógrafo Rui Horta, ‘Portugal não é um país periférico, é um país na charneira de três continentes’. É necessário passar a entender o 77


imenso mapa da lusofonia no contexto europeu e perceber que, olhando a geografia desse modo, Portugal é o centro”. (Tiago Rodrigues, in ‘JL’, 22.8 – 4.9. 2012, p.25). Ora, ao abrigo da gramática do ‘Homo Sapiens//Sapiens’, é a cultura dos povos que detém o primado sobre a economia. De contrário, cair-se-á, inexoravelmente, na religião do Objectivo-Objectualismo e serão, fatalmente, destroçados os Sujeitos (humanos) individuais-pessoais. Os dois pais fundadores da U.E., Jean Monnet e Robert Schuman, confessaram, no final das suas vidas, que, se houvessem de começar de novo todo o processo, principiariam pela Cultura e pelo reforço (sistémico) da união/coesão cultural dos povos europeus no essencial da sua Cultura comum. Saber e averiguar se, primeiro, foi edificado o Estado ou a Nação é sempre um problema complexo e delicado, e difícil de resolver em alguns casos. Quanto a Portugal, a resposta parece clara: Afonso Henriques, o 1º rei, impôs-se política e societariamente contra os desvarios da mãe, Dona Teresa, e tornou-se, ipso facto, a primeira fonte de um Estado em embrião. Na França, v.g., é sócio-historicamente consensual que a Nação deteve o primado sobre o Estado. Não obstante, no séc. V, no antigo reino dos Francos, o rei Clóvis converteu-se ao Cristianismo e, nas carruagens atreladas, seguiram todos os seus súbditos, supostamente convertidos!... Para evidenciar quão complexo e delicado é o problema da precedência do Estado sobre a Nação, e vice-versa, poder-se-ão aflorar as afinidades e as diferenças entre Portugal e a França, constituídos como padrão e assumidos, previamente, como dois casos diferentes. “Em 1910, a República Portuguesa ficou a ser, com a III República Francesa, uma das duas únicas repúblicas modernas na Europa (a confederação suíça tinha origem medieval). Mas enquanto a III República Francesa, no princípio, durante a década de 1870, teve governos e parlamentos onde os partidários das antigas dinastias reinantes formavam a maioria, isso não aconteceu em Portugal. Na República Portuguesa, começou por vigorar o princípio de que ‘o país é para todos, mas o Estado é para os republicanos’” (in ‘História de Portugal’, coordenada por Rui Ramos, editada em fascículos por ‘Expresso’/2012, 7º vol., p.5). (A citação final pertenceu a José Relvas, na proclamação feita a partir da varanda da C.M. de Lisboa).

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K Sob o catecismo da Cultura da Potestas-Dominação d’abord? Até quando?!...

Atenção à Regra de Proporcionalidade: Quanto mais se cresce em Tecnologias automatizadas e robótica de toda a sorte (cuja praxis é imposta a martelo-pilão no ordenamento societário), mais cresce a rigidez nos usos e costumes e o autoritarismo nos laços sociais; mais cresce a desumanização dos trabalhadores e o desprezo do Humano enquanto tal: os Sujeitos humanos (livres e responsáveis), que são a origem primeira de toda a produção e da riqueza societária, abandonados e desprezados, foram completamente varridos e eclipsados pelo tsunami do Neoliberalismo capitalista global. Uma vez postergada a vida cívica democrática, as Sociedades humanas encontram-se à deriva, em estado de disrupção e em situação de ameaça e saque permanentes. ─ Ora, essa Regra de Proporcionalidade verifica-se, hoje, a 100%, porque a Espécie humana não evoluiu societariamente, em termos psico-sócio-antropológicos, do ‘Homo Sapiens tout court’ para o ‘Homo Sapiens//Sapiens’. Aristóteles, no sector preciso da libertação dos escravos mediante as inovações tecnológicas crescentes, estava redondamente enganado… ‘o Filósofo’ que acertara no alvo, em tantas outras matérias e sectores da Filosofia!... O Erro substantivo do criador do Hilemorfismo deveu-se ao facto de ele nunca ter impugnado, expressamente, a universalizada Cultura do Poder-Dominação d’abord, e, em consequência disso, ter soçobrado no báratro do reino impiedoso dos Objectos, ter aderido (sem o saber…) à religião do Objectivo-Objectualismo. Sobrevivemos, hoje, em tempos ominosos e tristes, dramáticos e trágicos, onde a Humanitas e as Sociedades ditas (ainda…) humanas perderam a bússola e o próprio sentido do Norte, na sua odisseia ao longo da História. Em 1848, Marx e Engels proclamavam, no final do ‘Manifesto do Partido Comunista’ (uma convocatória acertada que não iludia os ‘sinais do Tempo’!): ‘Proletários de todos os Países, Uni-Vos!’ Adiar ou eludir/iludir os ‘sinais do Tempo’ é gravíssimo… Altera e desarticula o que se tem chamado ‘Processo histórico’. Por tudo isso, por exemplo, hoje em dia, o Movimento mais conhecido e generalizado de contestação ao Establishment, que dá pelo nome ‘de Indignados’, aquilo a que mais se assemelha é expresso por aquele dito bíblico: ‘Vox clamantis in deserto’!... Os tempos nossos contemporâneos podem muito bem ser caracterizados pela bandeira crítica erguida e agitada, criticamente, pelo filósofo francês Jacques Rancière, no seu livro, que na tradução portuguesa dá pelo título: ‘A Noite dos Proletários’ (An79


tígona, Lisboa, 2012). Este ensaio de historiografia sobre o Movimento Operário da 1ª metade do séc. XIX constitui um tributo justo ao ideário da Emancipação/Libertação dos Humanos, nas Sociedades injustas e contraditórias em que (abnegada e corajosamente) têm vivido. Numa época de Crises estruturais, como a da actualidade (em vez de soluções adequadas, a história das Sociedades tem acumulado problemas…), em que Ocidente e Europa perderam o rumo e entraram na mais vil mediocridade, este ensaio de J.R. é salutar e fecundo. Durante o dia, os operários são submetidos e explorados nas cadeias de trabalho (individual ou de grupo) ritmado monocordicamente. É durante a noite que eles estudam, com o objectivo de melhor se prepararem para a vida: criticamente, eles imaginam e avaliam a possibilidade de instaurar uma Sociedade organizada sem o camartelo da exploração e da opressão, com a Emancipação erigida em bandeira para congregar e unir Toda a Gente. Estes operários (que eram, aliás, em grande número, e, por isso, se revelaram capazes de promover revoluções e instituir as conhecidas organizações sindicais) não se encontravam intelectualmente submetidos ao jugo do Establishment; e, obviamente, não entendiam como ‘natural’ a condição societária real, a que estavam acorrentados, histórica e simbolicamente. O que eles, na verdade, pretendiam, era instaurar uma vera Sociedade Alternativa, e sentiam-se capazes de empreender uma tal Façanha: uma Sociedade onde os Indivíduos (trabalhadores e cidadãos) sejam reconhecidos como Sujeitos livres e responsáveis, em plenitude. Para tanto, é preciso e indispensável estilhaçar a cartilha do Poder Estabelecido, apoiado na Força em vez da Justiça, na Guerra em vez da Paz (o sistema capitalista, enquanto tal, faz parte integrante dessa cartilha), e instaurar, definitivamente, a vera Democracia, sem o litígio estrutural entre os que mandam e os que obedecem, que é chancelado, precisamente, pelo Poder d’abord. Nesse seu ‘sonho nocturno’, os operários conscientes e iluminados sabem distinguir (com Foucault e Rancière) a vera e boa política da falsa e má política. Esta nunca abandona as suas polícias, bem como a sua ambição de conquista e dominação, utilizando o recurso da guerra, como um dos meios considerados ‘normais’: para disciplinar os corpos, o próprio discurso e as actuações respectivas, o impulso e o movimento advêm sempre, hierarquicamente, de cima para baixo e de fora para dentro. Nunca se fala, v.g., em propor o auto-domínio, a auto-educação e a auto-disciplina, como ensinavam os Gnósticos judeo-cristãos primevos. Neste horizonte, académicos e universitários, em geral, nunca saem do odre analítico/quadriculado do Sujeito//Objecto; ora, os operários e os trabalhadores sabem edificar um mundo, onde a relação entre Sujeitos não coisifica nem objectualiza. Eis por 80


que estes (ao contrário daqueles), quando devidamente esclarecidos, não confundem a Democracia com a demagogia, a qual leva certos governantes a instaurarem o sistema absolutista de Sujeito//Objecto a tal ponto, que exprimem, desaforadamente, a sua ‘demofobia’ com a frase vesga e tortuosa: ‘que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal’ (P. Passos Coelho, 1º ministro de Portugal). ─ Patético e obscurantista… No comment more!... Há que dizê-lo sem ambiguidades, enquanto marco no Processo histórico rumo à Modernidade ocidental: o alvorecer do Sistema capitalista moderno toma corpo e ganha (na lotaria…) a sua cartilha de funcionamento, no séc. XVI, através da ‘rede em nebulosa’ de territórios descontínuos (em relação às antigas metrópoles), sobre os quais se irá exercer, posteriormente, um domínio territorial alargado (que foi o processo de colonização, até ao movimento da desccolonização, que teve os seus inícios nas oitavas da IIª Guerra Mundial). A sua cartilha de funcionamento moderno (onde os vícios particulares se convertem em virtudes sociais e vice-versa…) foi aprimorada e sistematizada por Adam Smith, na sua obra ‘The Wealth of Nations…’ (1776: a mesma data da Revolução Americana). Assim, por exemplo, em consequência do Processo das Descobertas e conquistas transoceânicas levadas a cabo pelos Portugueses, surdiu esse padrão específico que se chamou ‘Estado da Índia’, cuja governação era assumida por um Vice-Rei (representante do Rei na Metrópole lusa). Numa palavra, os ‘territórios descontínuos’ eram tratados, à partida, como se fossem o alargamento do território metropolitano. O que significa que a bandeira da Conquista e Dominação (de outros territórios e povos) esteve sempre presente. O mantenimento de tais territórios descontínuos era assegurado por praças/fortalezas adrede construídas: (em 1521, contava-se cerca de uma dúzia). O Processo foi assegurado mediante o cruzamento da pressão militar e da prática mercantil: forjar alianças locais constituía o catecismo e a bandeira da dominação era erguida sob o signo: ‘dividir para reinar’!... Os historiadores Charles Boxer e Carlo Cipolla, entre outros, explicam o fenómeno da supremacia portuguesa nos mares, porque os seu barcos transportavam ‘velas e canhões’, artilharia a bordo, o que não acontecia com a mesma eficácia, nos outros barcos de outros países e povos, que navegavam no Índico. Foi desta sorte que se edificou o ‘Estado da Índia’ (essencialmente, Goa, Damão e Diu). D. João de Castro (um dos mais famosos vice-reis da Índia) fazia a estimativa de que, por volta de 1540, entre 6.000 e 7.000 homens estavam presentes no Oceano Índico. (Cf. ‘História de Portugal’, coordenada por Rui Ramos, edição do ‘Expresso’/2012, 3º vol., pp.26-32).

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No concernente à problemática de fundo, já em causa no séc. XVI e, sobremaneira na nossa Contemporaneidade, não se pode esquecer uma Questão central que emergiu no estado actual do Mundo: a Crise (global…) do Sistema capitalista redunda, necessariamente, na Crise estrutural em torno dos fundamentos enquadradores do processus de formação da União Europeia, a partir de 1956 (Tratado de Roma). (Cf. João Ferreira, in ‘Seara Nova’, Verão de 2012, pp.19-22, no artigo titulado Algumas Notas sobre um novo tratado europeu (o de Março de 2012: ‘Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária’, ou, videlicet, Tratado Orçamental…)).

● Uma referência, en passant, aos Jogos Olímpicos de Londres (27.7-12. 8.2012)… Porque estamos ─ não esquecer ─ dentro do odre do Sistema capitalista. Hoje em dia, felizmente, nem sempre os media ‘fazem a vontade’ e ‘executam o beneplácito’ dos Poderes Estabelecidos… como é óbvio, sempre que as actuações vão em sentido contrário!... Um caso marcante: no dia 28.7.2012, foi mostrada, nas televisões da U.E., uma Manifestação monumental nas ruas de Londres. Nos cartazes podia ler-se: ‘Keep Capitalism out of the Sport!’. O sentido e a orientação do slogan eram mesmo esses: Contra as Corporations do Capitalismo (selvagem) que, nesta fase do Neoliberalismo global invadem o Mundo inteiro!... Mas houve uma outra informação, de âmbito global, que as televisões haviam noticiado previamente: nos J.O. de 2012, o Governo inglês pôs em acção um dispositivo rígido de policiamento dos atletas e seus acompanhantes, e instalou baterias de mísseis balísticos contra possíveis ataques inimigos. É a guerra no próprio bas-fond da economia e da cultura, como ensinara o general prussiano Karl von Clausewitz. Como é evidente, estamos nos antípodas das origens clássicas dos J.O.. O processo civilizatório… diz-se que ‘progrediu’, mecanicisticamente e à força, entre as barreiras do bem e do mal, entre a paz e a guerra. Afinal, contra tudo o que ensinara o Socratismo e o Jesuanismo, bem como a Escola dos Gnósticos judeo-cristãos (na esteira dos seus mestres da Biblioteca e Escola Superior de Alexandria, no Egipto). A de 2012 constituía a 30ª Olimpíada da Era Moderna, depois que os J.O. da Grécia clássica foram recuperados (em finais do séc. XIX) pelo barão Pierre de Coubertin, fundador do Comité Olímpico Internacional, em 1894, diga-se em abono da verdade, já numa atmosfera ideológica em que se privilegiavam as hierarquias e a aristocracia da Sociedade burguesa dominante. Na Antiguidade, os J.O. decorreram em Olímpia, na Hélade, do séc. VIII a.E.C. ao séc. V da E.C.. Nos sécs. IV e V, os dois imperadores Teodósios puseram fim ao que foi, nos inícios, a celebração magnificante da Elevação 82


humana: o 1º acabou (em 395 A.D.) com os rituais pagãos em Delfos e, no enxurro, com os Jogos; o 2º mandou incendiar Olímpia. A Cultura do Poder-Dominação d’abord e o Sistema capitalista moderno (nela perfeitamente encaixado) corromperam e desnaturaram tudo à face da Terra, e a própria História das Sociedades e das Civilizações continua a ser tratada como os sismos e as hecatombes/calamidades da Física e Astrofísica, segundo o catecismo do Monismo Epistémico. Na Antiguidade clássica, “os Jogos Olímpicos eram eco, contraponto, celebração do episódio fundador. O louro e a oliveira das coroas não eram símbolos convencionados como as nossas medalhas. Vinham directamente das árvores divinas (a de Apolo e a de Zeus), ─ e a glória, esse kléos almejado, que escorre dos ombros vencedores sobre a sua família e a sua terra, tal como a ‘fama’, significa aquilo que é dito, o relato dos feitos que precede e se sucede ao homem, o seu texto” (Hélia Correia, in ‘JL’, 25.7-7. 8.2012, p.9). O ‘dom da fala’ dos poetas e do maior de todos, Píndaro, foi substituído, em Aristóteles, por ‘dom do discurso’, ─ o que veio logo a apoucar e a empobrecer a Realidade original. Desta feita, na Antiguidade clássica, a filosofia do Olimpismo trazia consigo as ideias de tréguas e do culto da beleza; estas ainda se podiam perscrutar na Filosofia da Escolástica medieval, precisamente no seu axioma, que rezava assim: ‘Ens (unum et plurimum), verum et bonum et pulchrum convertuntur’. Os Jogos Olímpicos, na Antiguidade clássica, “decorriam sob a garantia de tréguas sagradas, e que reduziam a prisioneiros de guerra quem entrasse armado no seu território” (Maria Helena da Rocha Pereira, ibi, p.8). O artigo do nosso prezado Amigo Manuel Sérgio (ibi, pp.10-11) faz cedências a um certo eclectismo ilustrado, e o seu título ‘o Olimpismo: uma lição de vida?’ bem poderia ser pronunciado pela Pitonisa de Delfos!... Mas, a concluir o seu artigo, M.S. escreveu com aprumo e desassombro (ibi, p.11): “Um outro ponto me interessa salientar: o mercado apresenta-se, hoje, como o fundamento fiável da democracia e, assim, a política desliza para infrapolítica, onde as preocupações com o bem comum são olhadas com um olhar lateral. A política como forma exigente de viver um compromisso sério, ao serviço dos outros, designadamente os mais necessitados, é bandeira que o neoliberalismo dificilmente desfralda. Aqui, poderá levantar-se o olimpismo como contra-poder ao poder das taras dominantes, como foco irradiador de um mundo novo, que tente erradicar da face da Terra um individualismo sinónimo do mais empedernido egoísmo”. Ora, quando, efectivamente, governantes como a Chanceler alemã, Angela Merkel e Cia, assumem, de modo expresso e tácito, que os famigerados mercados de capitais constituem o ‘santo-e-senha’, a nível internacional-mundial, da democracia repre83


sentativa-liberal… o mundo está mesmo de pernas-para-o-ar e entrou, definitivamente, em curto-circuito!... Quando, na verdade, os ditos mercados de capitais são a contraprova (com as permanentes crises financeiras, que daí decorrem) de que as Sociedades sob o dito regime sobrevivem em Ditadura, uma ditadura incontornável, já sem sofismas possíveis, para quem vê e olha, criticamente, com dignidade e honestidade.

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L Uma Boa Filosofia é sempre necessária e indispensável, para pensar certo e agir/actuar bem no universo humano

As Sociedades actuais estão a saque, por toda a parte. Não é só o crescendo da violência e os conflitos cada vez mais frequentes; é, implicadamente (consequência dos fenómenos anteriores…), o reforço da Autoridade (pela via exterior e material…) mediante um autoritarismo desaforado, o policiamento crescente e os sistemas da vídeovigilância nos espaços públicos (por ora…). Por mais que se invoque a ‘coesão social’, as Sociedades actuais encontram-se em dissolução acelerada, no que tange aos seus laços sociais substantivos: elas estão a afastar-se, cada vez mais, do estatuto que foi promovido, everywhere, depois da IIª Guerra Mundial: o regime democrático. Não se pode esquecer que foi este ideário que abriu caminho à segunda fase do processo da descolonização contemporânea. Como o Neoliberalismo capitalista global (sobremaneira, a partir de 1985 e, decisivamente, a partir das duas datas mais conhecidas: 1989 e 1991) fez esquecer e pôs a perder todas aquelas articulações e entrosamentos!... Desde logo, os Sistemas Educativos nacionais começaram a ser ameaçados de ruína e desconjuntação, por causa da sua necessária (?!...) submissão às leis da ‘ditadura dos mercados internacionais’ e do primado absoluto, atribuído à preparação e formação para o exercício das profissões, que o Mercado solicitava. Ao mesmo tempo, assistimos ao ‘boom’ do Ensino e das Escolas particulares, e ao movimento da privatização de vários sectores, que a tradição clássica havia atribuído aos foros do Ensino Púbico, até como garantia de base do regime democrático. 84


Karl Marx, nos ‘Grundrisse’ (1857-1858), sabia muito bem e ensinou a quem o leu, atentamente, a gramática do espaço público/comum e a do espaço privado, que logo a grande maioria da população toma por individual, em contraste com o social/comum. Ora este é um sofisma tremendo, que leva a não entender nada, acertado, sobre o que é individual e social, sobre o que é público e comum e o que é particular e privado. Há duas teses essenciais, que Marx aí estabeleceu com clarividência: a) o indivíduo diferencia-se e individualiza-se, na sua identidade própria, precisamente no espaço do público/comum e da comunidade (contra o que é pressuposto, tradicionalmente, nas Sociedades estigmatizadas pelo Capitalismo e pela Cultura do Poder-Condomínio); b) o ser do indivíduo, com a sua identidade própria (no plano psico-sócio-cultural) não carece dos recursos à esfera do ‘ter’ e da ‘propriedade privada’, para se constituir e afirmar, identitariamente (como é pressuposto, de regra, na órbita da mundividência anglossaxónica). Os resultados evidentes de um tal tesário marxiano são importantes e decisivos, porquanto deixam o espaço psico-sócio-cultural das Sociedades aberto à Gratuidade e à Crítica social livre, à própria fundação da Economia do Dom, enquanto Alavanca de Arquimedes de uma próxima/futura vera Sociedade comunista. Ora, dentro do odre do Neoliberalismo capitalista global, estamos nos antípodas desse ideário crítico marxiano (e do CEHC). Hoje em dia, os Sistemas Educativos nacionais acham-se abalroados: já não são substantivos e autónomos e independentes, face ao tsunami das forças e inércias do Sistema capitalista e do catecismo da Cultura do Poder-Condomínio. O estudo de tese de Isabelle Bruno (no 'Le Monde Diplomatique’, Setembro de 2012, pp.4-5) tem por título, sintomaticamente, a frase que resume toda a problemática societária: ‘Pourquoi les droits d’inscription universitaires s’envolent partout’. A começar pela Economia mais capitalista do mundo (USA), esses direitos desapareceram por toda a parte (ou estão em vias disso…). Por quê?... O que predomina, absolutamente, em todas as Sociedades nacionais da Terra, são os comportamentos e as atitudes primacialmente utilitaristas e materialistas; o que o Sistema capitalista pretende é destroçar toda a gratuidade (de indivíduos e grupos e instituições) até ao último centil. No actual contexto societário do Mundo, os espaços públicos do Bem Comum, que são (primordial e primacialmente) representados pelos Sistemas Educativos nacionais (precisamente na sua dimensão pública) estão a dissolver-se, em crescendo, por força do tsunami do Neoliberalismo capitalista global. No exergo do estudo de I.B. ficou escrito o seguinte (que dá para perceber o resto): “Em França, segundo uma pesquisa da Federação das Associações Gerais Estudantis (FAGE), o custo da entrada universitária saltou 50% em dez anos. Entre as causas deste encarecimento, o aumento das propinas de inscrição, promovido pelos think tanks e organizações internacionais. 85


Nos Estados Unidos, numerosos estudantes nunca poderão reembolsar os empréstimos para pagar a sua formação” (ibi, p.4). As clássicas 3 esferas da Economia política: produção; comercialização/distribuição; consumo. Marx foi, sem dúvida, inteligente e sagaz, ao identificar a mais-valia (lucrativa), caracterizadora do Sistema capitalista, precisamente na esfera da produção. Não é, justamente, a partir dessa ancoragem, que é justo e legítimo lutar por uma Sociedade radicalmente Alternativa, e não por simples mudanças aparentes e efémeras, nos arranjos florais?! Ora, por exemplo, quando se sabe que apenas metade de uma geração tem acesso ao Ensino superior, não será lógica e justa a reivindicação de que os estudantes ricos devem pagar os seus estudos por inteiro?! Isto mesmo ajudava a percepcionar e a resolver melhor o engulho societário da problemática recorrente das reformas. Escreve a concluir I. Bruno (ibi, p.5): “Com a alternativa entre uma ‘educação por capitalização’ e uma ‘educação por repartição’, prolonga-se o combate por uma solidariedade intergeracional, capaz de garantir a partilha dessa riqueza colectiva que o Saber representa”. ─ Não será o Saber o Bem Comum por antonomásia?! O que é válido (acrescente-se) nas duas dimensões: a dos espaços societários e a dos tempos geracionais. A Cultura do Poder-Condomínio estabeleceu (abusivamente…) o primado do Poder sobre o Saber. É um Erro/categoria gravíssimo. É, de facto, neste horizonte, que muita gente sente prazer e orgulho em ser ignorante, perante os diktaten dos Poderes Estabelecidos. Não esquecer que é esta mesma doutrina que ensina a I.C.R. e as Cristandades em geral, na senda do preceituado por Paulo aos Romanos (12,3): ‘Não se deve saber mais do que é preciso’. Uma mensagem de obscurantismo e de autoritarismo, como se dá conta. A dívida dos estudantes constitui, dentro do Sistema do Economicismo capitalista, uma bomba incontornável a explodir ao retardador. (Vd., ibidem, o artigo de Christopher Newfield, sobre este tema). Tão grave como a das reformas (a que faltam cada vez mais os fundos do Tesouro), ou a da crise financeira originada na especulação das ‘sub-prime’. A concluir, escreve, sensata e argutamente, C.N. (ibi, p.5): “Nestas últimas décadas, foram desferidos claros golpes devastadores para as universidades. Todavia, os neo-reaganianos continuam a fazer a apologia da transferência dos custos do ensino superior do público para o privado. Já passaram trinta anos que o movimento foi iniciado, e os resultados estão longe de ser conclusivos: três quartos dos americanos mais modestos não fizeram qualquer progresso para a obtenção de um diploma”.

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Em 2000, a Edicon publicou em São Paulo (Br.) um livro nosso, de importância decisiva para lidar com as novas tecnologias e recuperar o filão certo e justo no Processo civilizatório e na organização das Sociedades humanas. Tinha por título: ‘Em torno das Novas Tecnologias e da Nova Economia’; e lutava pela gramática das Tecnologias funcionalmente Adequadas, enquanto instrumentos de trabalho especificados. Esta exigência ou objectivo societário/arquitectural é o óbvio, para quem não quer sucumbir à religião do Objectivo-Objectualismo, à ditadura absolutista do Mercado (recordam-se? Antes, era a ‘ditadura do Plano’… agora é a ‘ditadura do Mercado!...), aos vícios inomináveis e letais do Sistema capitalista selvagem, instaurado pelo Neoliberalismo globalizado. Em total convergência connosco, o jornalista Evgeny Morozov (autor do livro: ‘The Net Delusion. The Dark Side of Internet Freedom’, Public Affairs, New York, 2011) escreveu um artigo (in ‘Le M.D.’, cit., p.28) com este título surpreendente: ‘Un robot m’a volé mon Pulitzer’. Com o tsunami de tecnologias desadequadas (em esquema de inovações em catadupa, feitas gadgets, para fazer e acumular, rapidamente, lucros fabulosos no Mercado), não é para menos. Quando os robots se convertem em rivais dos humanos, que haverá de positivo e bom para a Humanidade?!... Não se venha ripostar com essa ‘stupidagine’ corrente que reza assim: ‘La macchina a sempre raggione’!... O jornalista está, efectivamente, na linha certa e justa, quando faz o seguinte enquadramento, logo a abrir o seu artigo (ibidem): “Disfrutará a Tecnologia de uma existência autónoma? Poderá ela funcionar sem a ajuda dos humanos? Do teólogo Jacques Ellul a Theodore Kaczinski, chamado ‘Unabomber’, a resposta tem sido frequentemente positiva. Hoje, todavia, numerosos historiadores e sociólogos consideram esta teoria naïve e infundada”. ─ Finalmente, começa a raiar a aurora no horizonte!... E.M. não se esqueceu de fazer referência à sofreguidão da revista Forbes, que recentemente montou uma campanha a favor da ‘sociedade Ciência Narrativa’, na perspectiva de engendrar, automaticamente, através de logiciais próprios de ordem estatística, artigos completamente legíveis, a partir de elementos avulsos. E cita, aí, a base de orientação da Forbes: “Graças à sua plataforma de inteligência artificial patenteada, a Ciência Narrativa transforma dados em artigos e em discursos compreensíveis”. No último parágrafo do seu artigo, E.M. dá-se conta dos engulhos e problemas sem fim, a partir da admissão generalizada desta orientação das Tecnologias rumo à mais acabada Sociedade conformista e uniformizada, onde os Indivíduos-Pessoas/ /Cidadãos ─ argumenta o CEHC ─, depois de perderem a sua identidade pessoal, fariam a sua kénosis total, numa sorte de Nirvana hinduísta!... ─ Afinal, a servidão e a escravidão, na famigerada órbita aristotélica da emancipação/libertação dos escravos mediante as tecnologias vindouras!...

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“A ideia de que uma automatização mais avançada poderia salvar o jornalismo parece muito pouco pertinente, mas não é preciso atirar a pedra aos inventores da Ciência Narrativa. Utilizadas inteligentemente, estas tecnologias poderiam permitir aos media realizar economias salutares e aos jornalistas consagrar-se a pesquisas de grande alcance, em lugar de reescrever a mesma história em cada semana. A vera ameaça procede da nossa recusa em cedermos às implicações sociais e políticas de um mundo, onde a leitura anónima seria abolida. Um mundo, cujo advento é celebrado pelos publicitários, tais como Google, Facebook, Amazon, etc., onde o pensamento crítico, informado e não convencional encontraria muito mais dificuldades em desenvolver-se e proteger-se” (ibidem: o itálico é nosso). ─ Como se vê, a mundividência crítica de E.M. é muito mais meiga e complacente do que a nossa. Possivelmente, a Árvore do seu Jardim não cresceu tanto nem ganhou raízes tão fundas e radicais, em comparação com a nossa.

É, hoje, um lugar comum dizer-se e proclamar-se que o Conselho da Europa (criado em 1949, agrupa 47 países e é totalmente independente da U.E.; tem a sua sede em Estrasburgo) tem sido esquecido e ignorado, não só para os mais graves problemas com que se debate a U.E., mas, também, à escala do Mundo, no concernente, por exemplo, à defesa da gramática da Democracia e dos Direitos humanos, vilipendiados e espezinhados, por toda a parte, inclusive no que tange interpretações enviesadas (como acontece no mundo islâmico) da Declaração universal dos Direitos Humanos de 1948. Hodiernamente, o ideário (exigente) da Democracia e a organização dos regimes (ditos) democráticos nas Sociedades actuais estão enfermos e andam pelas ruas da amargura. Sob o título: ‘Le Conseil de l’Europe, outil négligencié, Fabio Liberti (directer de recherche à l’Institut de relations internationales et stratégiques/IRIS) escreveu um artigo (in ‘Le M.D.’ cit., Supplément démocratie, p.I), a dar o sinal de alarme: aí se esclarecem e reivindicam três temas principais: a Democracia é um projecto exigente, que é preciso reconstruir; o bom Direito deve prevalecer sobre os interesses económicos, na organização das Sociedades humanas (não se trata de sociedades de leões, elefantes ou abelhas, nem de símios, que já se acham na grande família dos primatas); a chamada ‘Casa Comum’ da Humanidade (de que falam os Documentos fundadores da O.N.U.), deve ser recuperada, com a aplicação da sua gramática integral. No exórdio do artigo de F.L. (ibidem), pode ler-se, em jeito de informação e abrégé: “De 5 a 11 de Outubro, Estrasburgo ─ onde têm a sua sede numerosas organizações europeias ─ acolhe o primeiro Forum mundial da democracia. Parceiro da manifestação, o Conselho da Europa, contrariamente à União Europeia, consagra-se inteiramente às liberdades e aos direitos humanos. Neste dealbar do séc. XXI, se a democracia permanece um ideal mobilizador ─ para os renitentes chineses, os povos árabes… ─, ela reclama reformas vigorosas para superar o desafio das desigualdades sociais e da 88


crise da representação política. Desde logo, o fosso crescente entre as ‘elites’ e as populações ─ que é ressentido, cada vez mais, na União europeia ─ incita a imaginar um novo papel para o cidadão e outras relações entre eleitos e eleitores”. Estes são, iniludivelmente, os principais indicadores sobre a grave e complexa problemática da Democracia na situação actual, à escala do Mundo e das Sociedades nacionais. De facto, ao longo das últimas três décadas, o Conselho da Europa tem sido um instrumento (da O.N.U.) esquecido, negligenciado, ignorado. ─ Uma Pergunta do CEHC: Será que é desta vez que se vai levantar o véu da irredenta organização societária capitalista e da sua madrasta pressuposta, a Cultura do Poder-Dominação d’abord?! Para começar, é preciso arguir e proclamar, aos quatro ventos, que a palavra Cidadania tem sido um sintagma nominal terrivelmente maltratado, tanto na linguagem corrente, como no discurso dos especialistas em ciências sociais. Ora, é precisamente a condição de Cidadania dos Indivíduos-Pessoas (integrados na Sociedade) que constitui e dá forma ao que se chama, tradicionalmente, a Sociedade civil (em contraste com a formatagem do Estado). O que está nas origens da Sociedade civil? (Cf., sobre o tema, o artigo do prof. da Univ. de Bolonha, Raffaele Landani, in ‘Le M.D.’ cit., pp.II-III). Na base da problemática, é necessário tomar consciência de que o Indivíduo-Pessoa/Cidadão constitui a âncora (primacial e primordial), na estruturação da Sociedade. Indivíduo e Sociedade não são duas realidades biunívocas e reversíveis, tanto em termos da Teoria como da Praxis. Não podemos esquecer que é o Indivíduo-Pessoa a fonte da Consciência e da Experiência: duas realidades abastardadas e ignoradas, tanto pelas Sociedades tradicionais como pelas modernas e, em geral, por todo o Processo histórico da Civilização até ao presente. Com efeito, Consciência pessoal e Experência autêntica têm constituído as duas alavancas (do Processo civilizatório) sistemicamente desdenhadas, esquecidas e postergadas, ao longo da história do Processo civilizatório. Que nos tem ensinado a teoria/doutrina política, na Cultura/Civilização do Ocidente, sobre o que há nas origens da Sociedade civil? Em torno desta matéria, configuram-se duas posturas ou orientações principais: A) Na linha de Jean-Jacques Rousseau, a sociedade civil é constituída pela negativa, a partir dos fundamentos da propriedade privada, cuja salvaguarda dependerá ( positivamente…) da edificação das instituições políticas e das leis: é nesta óptica que é importante e decisivo o contrato social entre os indivíduos, do qual decorrerá a sua nova condição de cidadãos. B) Na linha de autores como David Hume ou Adam Ferguson, a sociedade civil, em vez de resultar de um contrato entre indivíduos, constitui um ‘produto histórico’, “o resultado necessário e natural da organização económica da sociedade e da divisão do trabalho que ela pressupõe. Entre esta organização social, à qual correspondem fortes diferenças na 89


repartição da riqueza, e as instituições políticas democráticas, as ligações são complicadas” (R.L., ibi, p.III). É do consenso (académico…) generalizado que A) se compõe e configura no horizonte francófono; e B) no universo anglo-saxónico. Assinalando o 1º momento da fundação da sociedade civil, Rousseau deixou exarado, no 'Discours sur l’origine et les fondements des inégalités parmi les hommes’ (1755): ‘Le premier qui, ayant enclos un terrain, s’avisa de dire: ‘Ceci est à moi’, et trouva des gens assez simples pour le croire, fut le vrai fondateur de la société civile’. Nesta óptica, como é óbvio, tiveram lugar duas operações: uma negativa (ausência/omissão de diálogo entre as partes) e outra positiva (afirmação do poder do que chegou primeiro). Contudo, não é nada melhor, em termos substantivos, a mundividência anglo-saxónica. Por exemplo, Adam Ferguson (in ‘Essai sur l’histoire de la société civile’/parte IV, secção 2, Edimburg, 1767) chega a esta conclusão encalacrante: “Que concluir de tudo isto? Que é preciso fazer o processo a esta forma de governo, depois de ela ter perdido o seu móbil e a sua base; e mostrar quanto é absurdo pretender que possa haver, aí, igualdade de consideração e de influência entre os homens, que deixaram de ser iguais pelos talentos e pelo carácter”. Em tal horizonte ─ como já advertia Hegel ─, ‘cada um é o seu próprio fim e tudo o resto não é nada’… em suma, os conflitos e os antagonismos sociais estilhaçaram a sociedade enquanto tal. Percebe-se, agora, muito melhor, que, no conflito dramático entre A) e B), o caminho a fazer tem mesmo de passar pelo apotegma de K. Marx (in ‘Contribuição para a Crítica da Economia política’, de 1859): “A anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política”. É, de facto, na esfera da produção, em sistema capitalista, que se identifca e é mister denunciar (em nome da Justiça e da Verdade) a formação da mais-valia (como fez o próprio Marx, na sua obra maior: ‘Das Kapital’); e é precisamente, aí, que se dá conta, criticamente, da necessidade estrutural de uma vera Sociedade Alternativa. Com efeito, está mais que comprovado que, nos últimos dois séculos e meio, as Sociedades chanceladas pela democracia representativa liberal e estigmatizadas pelo sistema capitalista (desaforado e mais ou menos selvagem) continuaram a ser Sociedades marcadas por hierarquias rígidas e servidões esclavagistas; continuaram a ser ‘sociedades dos dois terços’, absolutamente incapazes de resolverem os seus problemas estruturais, tais como o desemprego endémico (em tempo de crise…), porque nunca se empenham, prioritariamente, na doutrina do pleno emprego, e a pobreza (carências de toda a sorte) socialmente excludente constitui a sua corveia e fatalidade. Os dois conjuntos de Problemas mais Graves da Cultura/Civilização Ocidental podem identificar-se como segue: a) a estafada e sempre repetida estratégia ‘dos dois 90


pesos e duas medidas’; b) os problemas resultantes da sua incapacidade estrutural de resolver a incompatibilidade real entre o ideário da Democracia e o Sistema capitalista (uma das duas realidades exclui, substantivamente, a outra…). Até se poderia concluir o seguinte, numa sinopse criticamente comparativa, sobre as mudanças operadas entre as sociedades medievais e tradicionais, de um lado, e as chamadas sociedades modernas, do outro: os controlos societários mudaram os seus mecanismos de exercício; mas, na sua substância e na estrutura das sociedades, eles mantiveram-se inalteráveis. No seu artigo titulado ‘Quando o despotismo Iluminado Confronta a Notável Aristocracia da Res Publica’ (divulgado pela revista electrónica Noética, a partir de São Paulo/Br., em 5.9.2012), Carlos Firmino assevera (ibi, p.3): “Tem razão Manuel Reis quando afirma que ‘[…] ainda não se procedeu à crítica e desconstrução, oficial, da doutrina do Despotismo Iluminado’ (p.11), e por isso levantou a questão através da tese de Miguel Ferreira da Silva, até para ter como fonte de inspiração outro português. “O poeta J.C.Macedo costuma dizer que ‘no Poder está o condomínio das elites socioeconômicas e igrejistas, e na periferia estão os Povos que, mantidos fora de uma Educação construtivamente natural e humanista, sustentam a vida boa dessa malandragem’. O que resta dizer, então? Que precisamente lutar por uma Nova Ordem Mundial sob os auspícios do Humanismo Crítico contra o Consenso de Washington (a harmonia dos ricos contra os pobres, dos poderosos contra os escravos), precisamos de uma Ordem Mundial com e pela Razão e a Justiça Social”. E, a propósito do sempre assomadiço terrorismo de Estado e dos dois casos ocorridos no Brasil (o Caso Collor e o Caso Mensalão), C.F. (ibidem) esclarece desassombradamente: “Pode parecer que o caso brasileiro não tem a ver com o caso europeu, mas tem. E muito. Pois, ‘o Poder instituído sustenta um Estado socialmente terrorista sob as vestes de uma falsa democracia que, na maioria das vezes, faz a Justiça acompanhar a sua vontade política e ainda leva a bênção das igrejas economicamente poderosas, que circulam com passaportes diplomáticos desses governos’, como descreve, e bem, o jornalista João Barcellos”.

É preciso alargar e difundir, abroad, a percepção crítica da realidade psico-sócio-cultural e político-económica. É urgente acabar com os pressupostos de ‘inocência’ a qualquer preço e o chico-espertismo dos ‘fura-bolos’ sempre vangloriado e enaltecido. Pagam tributo aos estereotipos e à dogmática tradicional, nos usos e costumes. George W. Bush (nos seus dois mandatos) abriu caminho aos programas de terrorismo militar de Estado, para resolver problemas de polícia e de tribunal; programas de terrorismo social contra os sindicatos, programas de especulação financeira (nas sub-prime… que estão nas origens da gravíssima Crise ulterior, que ainda hoje afecta o 91


Mundo) e de autêntico deboche económico. E o pateticamente impressionante, nesta circunstância internacional, é assistirmos, nos vários países devastados pela Grave Crise Económica, desencadeada pelo neoliberalismo capitalista global, ao recurso recorrente aos mesmos autores morais dos crimes, para, supostamente, apagarem os incêndios, que eles próprios haviam ateado. Nesta circunstância, é preciso e urgente tomar consciência de que já não se trata de ciência económica, mas, tão-só, de pura ideologia (de conquista e dominação). “E já passou o tempo das ilusões, em que o continuado falhanço das soluções propostas podia ser atribuído a erro de análise ou a alteração imprevista das condições envolventes. Não é um erro, é uma política deliberada. Trata-se de, a coberto da perda de soberania económica dos Estados assistidos e a pretexto de os ajudar a sair da situação em que caíram, aproveitar para pôr em prática todas as teorias, que visam consumar uma desforra histórica do liberalismo fanático sobre a doutrina do estado social, da qual nasceram as grandes famílias políticas europeias da social-democracia e da democracia cristã. Para estes novos terroristas económicos, o fim último da economia deixou de ser a criação de emprego e riqueza a distribuir por todos, para passar a ser apenas a produção de lucros crescentes a favor de alguns” (Miguel Sousa Tavares, ‘Tem de Haver Alternativa’, in ‘Expresso’, 8.9.2012, p.7). O resto deste notável artigo de tomo e o seu pano de fundo podem ser resumidos no parergo seguinte: “Só chegámos aqui, porque a Esquerda não foi capaz de se livrar dos dogmas paralisadores e entender como o mundo estava a mudar, e a própria noção de justiça social tinha de mudar com ele” (ibidem). A noção tradicional corrente de Disciplina é um pau de dois bicos: na maior parte dos casos não passou o limiar de uma imposição vinda do exterior; muito raramente, ela é um facto psico-social, assimilado e assumido pelo próprio indivíduo em causa. É um lugar-comum afirmar que o Povo alemão é um Povo Disciplinado. Ian Kershaw (historiador britânico) sabe-o perfeitamente, ao ponto de afirmar, no seu último livro (cf. ‘Expresso’ cit., Atual, p.35) que “no regime nazi, os fanáticos, por oposição aos oportunistas, foram sempre uma minoria”. A grande Questão é esta: Por que não caiu o Nazismo (12 anos de flagelos e crueldades inomináveis…), a partir de dentro?... Antes, ele prosseguiu, mesmo depois do fracasso da bomba de Stauffenberg… “O velho código de honra, obediência e dever instilado nos oficiais alemães, encorajava a maioria dos generais a obedecer mesmo quando discordavam. A maioria tomou o juramento de fidelidade pessoal e seriamente até ao fim” (entrevista de Luís M. Faria, ibidem). ─ O dueto em tal contexto, aguentou até ao fim (Maio de 1945): Hitler, estigmatizado com o que Max Weber chamou ‘autoridade carismática’, e um povo super-disciplinado. Aí, é óbvio que está a jogar, subterraneamente, o catecismo do Despotismo iluminado do Ocidente, ligado ao culto (sacro) do Chefe (sagrado). 92


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M Uma Boa Metodologia é sempre necessária e imprescindível, no mundo das Sociedades humanas, tanto no plano do pensamento vero e certo e das consequentes decisões a tomar, como no plano do agir/actuar justo e bom.

A) BÚSSOLA DE ORIENTAÇÃO

“Um pouco de Filosofia afasta-nos da Religião; muita Filosofia faz-nos voltar a ela” (Antoine Rivarol, escritor francês (1753-1801)). * “Mas quando se volta a ela, de novo, com muita Filosofia, o estado de espírito do filósofo é, qualitativa e estruturalmente, Diferente!

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Os Humanos foram reconcebidos como duplamente Sapientes: eles sabem que sabem… i.e.: a) sabem que a Religião é uma invenção e uma construção humanas; b) e sabem que as Sociedades, verdadeiramente humanas, estão por recriar, no presente e no futuro.” (Presidente do C.E.H. C.).

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B) ECONOMIA POLÍTICA Produção, Distribuição/comercialização e Consumo: as três vertentes fundamentais articuladas (Na perspectiva de uma Economia Política vera e autenticamente Socialista)

Um pequeno arrolamento de Teses apenas esboçadas:

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● Em toda a Obra gigantesca de Karl Marx, paira, por toda a parte, o pressuposto básico de ordem epistémica e metodológica: a definição e a identidade de uma Economia Política é no horizonte da Produção que se opera, não nos horizontes da Comercialização e do Consumo. Com toda a evidência crítica, ele estava (como, aliás, nós, hoje, no CEHC) cheio de razões e fundamentos para estabelecer essa Tese (metodo94


lógica e epistémica) inauguradora de uma vera Ciência económica e política. Essa Tese de K. Marx pode, na verdade, considerar-se uma intuição crítica e fecunda, avant-la-lêttre, do que nós, hoje, designamos por Pós-Modernidade positiva e crítica. Com efeito, na concepção de Ciência da Economia política, que ele lobrigava e pressupunha, já se podia postular, perfeitamente, que uma tal Ciência se devia edificar no hemisfério das ciências humanas e/ou sociais, auxiliadas, certamente, pelas ciências físico-naturais, mas de modo nenhum destas dependentes, como pressupõe o estafado Monismo epistémico tradicional…). Nesta óptica, é indiscutível que K.M. não abandonou um certo Humanismo crítico, que permanece na base da sua arquitectura científico-cultural.

● O ‘Socialismo Convencional’, instaurado pelas ‘revoluções socialistas’ do séc. XX, não passou, em termos histórico-críticos, da formatagem (para todos os efeitos…) do ‘Capitalismo monopolista de Estado’ (J.K. Galbraith dixit in ‘O Nôvo Estado Industrial’, edit. por Civilização Brasileira, na década de ’60 do séc. XX). Em termos de ‘arquitectura societária’, a novidade estrutural, que esse modelo trouxe, foi o mais completo e acabado curto-circuito entre o chamado ‘Plano central’ e o Mercado (que, apesar de tudo, nunca foi eludido/iludido e eliminado…). Ora, numa análise crítica, honesta e independente, sabe-se que as duas noções, uma vez depuradas criticamente, são ambas necessárias e indispensáveis, para uma boa organização e regência das Sociedades humanas, no quadro do Estado/Nação e a funcionar em Regime Democrático.

● As decisões e as escolhas fundamentais, numa Economia política bem estruturada, têm, por conseguinte, de ser executadas e levadas a cabo ao nível da Produção dos bens e dos serviços; por isso, tais decisões e escolhas têm de passar pelo crivo das Assembleias do Povo, que é chamado a exercer, activamente, o seu direito de sufrágio (que, numa Democracia plena, deve ser universal). O que, nas urnas, o Povo vai sufragar, não deviam ser as pessoas ou as Figuras de proa, mas, outrossim, os programas, que previamente deveriam ser bem conhecidos e discutidos. É a esta escala que todos os esforços de governantes e governados devem ser envidados, com o duplo objectivo de socorrer e atender às necessidades fundamentais e já identificadas pelas populações, ─ sempre segundo a gramática de que a Economia política deve ser concebida e organizada para as pessoas individuais e concretas e, implicadamente, para dar resposta à doutrina clássica do pleno Emprego (J. M. Keynes dixit).

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● Planificação e Mercados. Por melhores e mais abrangentes que sejam, o Plano e a planificação nunca poderão ficar satisfatoriamente completados, sem a acção correctora e o Aparelho marcador dos Mercados de bens e serviços essenciais. Deve, contudo, advertir-se que a sua clivagem de normalização diz sempre respeito mais à quantidade de produtos/mercadorias, do que à sua qualidade: a avaliação desta deve ser atribuída às Autoridades competentes. Entendemos que não se deve atribuir ao Mercado tout court o discernimento/selecção no vasto oceano dos produtos/mercadorias ou processos negociais, onde o bom e o mau, o salutar e o mortífero andam misturados e confundidos, girando numa interminável roleta da sorte, e atribuindo toda a responsabilidade decisória ao consumidor final (o desgraçadinho…). Mas é inquestionável que os Mercados de bens e serviços essenciais (edificados à escala dos mercados de consumo familiar e individual, ou mesmo à escala do funcionamento das empresas, no concernente aos instrumentos de produção e de trabalho) assumem, em confronto com os processos de planificação, uma função correctora/ /disciplinadora essencial, constituindo um painel útil de indicadores (de sentido positivo ou negativo…). Quando essas funções de correcção e disciplinamento não são cumpridas, as Sociedades humanas abastardam-se e degradam os indivíduos à condição de zombies ou de escravos sem vontade própria, sempiternamente entregues aos destinos impostos por essas divindades todo-poderosas, que são os Poderes Estabelecidos na Pólis/Civitas e no Estado (nação). Em toda esta problemática, como princípio orientador, ter-se-á de impedir, sempre, que o Economicismo e a consequente ditadura do Mercado assomem à praça pública, num furacão destruidor das Instituições Democráticas. No lugar do comando, nas Sociedades humanas, deve ter a sua residência própria a Cultura, não a Economia… quando se dá a inversão, logo emerge a praga do Economicismo, aquilo a que já Aristóteles dava o nome de Krematística.

● P.I.B. (produto interno bruto), produtividade do Trabalho (quem falou da produtividade do Capital?!... Essa é tratada como os ‘segredos de Estado’…), inflação/ /deflação, crédito/débito (público ou privado), norma de redução até 0,5% da dívida pública, nas operações de elaboração do Orçamento Geral do Estado (segundo a nova cartilha da U.E.), ─ tudo isso ainda são práticas (obscenas…) de uma Economia política regida e balizada pelo catecismo da religião do Objectivo-Objectualismo. Ora, o que, decisivamente, deve contar, acima de tudo, são os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, singulares e concretos, e, óbvia e implicadamente, o pleno Emprego. A Tese do pleno Emprego é tanto mais importante e decisiva, quanto, no ‘ADN’ Cultural das Sociedades marcadas pela Cultura/Civilização do Ocidente, está inscrita, sem dúvida, essa exigência pessoal enobrecedora/libertadora do Trabalho. Desta sorte, uma Sociedade ─ imagine-se nesta órbita ─, onde um terço ou mais dos seus trabalha96


dores, em idade activa, tivessem de ser sustentados por rendimentos/subsídios, procedentes do Erário púbico, acabaria por ter, inquestionavelmente, o estatuto de uma ‘Sociedade anómala ou menor’ (estigmatizada por uma mentalidade esclavagista…).

● O maior absurdo e Contrassenso do Mundo, nesta fase do Neoliberalismo capitalista global, vigente e dominante, actualmente, em todo o Planeta Azul: Pressupor (e actuar ou fingir actuar, em conformidade, como faz a Gouvernance de Angela Merkel (na Alemanha e numa U.E. servil e domesticada), (desde logo, numa Alemanha unificada, que, para levar a bom porto o processo de unificação, beneficiou esplendorosamente da ‘moeda única’ do Euro e do Banco Central de Frankfurt que nunca deixou de funcionar em toda a amplitude…) que os mercados de capitais actuam e funcionam democraticamente (para efeitos de distribuir os investimentos, em 1ª lugar…), constitui uma grave heresia e um Erro grosseiro, na ciência da Economia política. Porquanto, os mercados de capitais são, enquanto tais (nas suas expressões e variantes indiciadas nos movimentos da Bolsa internacional), puras Ditaduras… a ditadura (objectivo-objectualista), pesporrente e absolutista do Dinheiro e dos seus Detentores privilegiados, a ditadura encoberta dos poderosos sobre as populações e o sempre castigado e postergado ‘povo miúdo’ ou ‘arraia miúda’ (Fernão Lopes). Neste contexto ─ como resulta evidente ─, é obrigatório questionar: Para que servem os regimes (ditos) democráticos, institucionalizados nas nossas Sociedades ocidentais, e as eleições periódicas, utilizadas (quase sempre demagogicamente…) para sufragar os governantes, bem como a direcção do Estado e da Res Publica?! Pura irrisão patética, zombaria, Blasfémia sobre o Povo!...

● Como nos ensinou o Marxismo crítico, no princípio está o modo de produção (capitalista… ou socialista…), com as suas respectivas relações de produção, integradas (em maior ou menor grau) no processus. O que vem a seguir são efeitos e consequências da Escolha originária. E as marcas da Escolha feita ficarão inscritas, inexoravelmente, em todos os objectos, produtos, mercadorias, instrumentos de trabalho; em todos os bens e serviços, em suma. Os estigmas do Sistema capitalista são, hoje, sobejamente conhecidos e atribuladamente suportados pelas populações, ao longo da História das Sociedades e da Civilização. De facto, foi o Sistema capitalista que sempre apoiou a religião laica (de substituição…) do Objectivo-Objectualismo; foi ele que sempre tem apoiado e promovido a queima de incenso aos Ídolos de toda a espécie, alimentando toda a sorte de Idolatrias. Contemporizou, historicamente, com a escravatura e toda a sorte de servidões. Não foi 97


ele gerado, precisamente, pela sempiterna Cultura do dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo?!... E não tem sido ele, modernamente, sempre assistido e respaldado por todas as Igrejas e Cristandades (a começar pela I.C.R.), em suma, por todas as Religiões institucionalizadas?!... Ora, o que, hodiernamente, pretende empreender e levar a cabo o Neoliberalismo capitalista, à escala do Planeta, é, precisamente, construir um mundo (económico-social, regido pelo Economicismo), nos antípodas absolutos do que é prescrito (marxiana e cientificamente) pelo (primordial e primacial) modo de produção (capitalista) e pelas suas respectivas relações de produção, ao quais reclamam, em termos puramente humanos (no Processo da Sócio-História), a sua ultrapassagem histórica decisiva. Neste contexto, que pretende a pseudo-democracia ditaturial dos ‘mercados de capitais’?... Manifestamente, o que ela pretende é fechar (a 7 chaves…) o círculo (vicioso…), a operar eternamente em curto-circuito, com a cartilha (perversa) da ‘Ditadura dos mercados de capitais’, como se de Democracia ainda se tratasse!... ─ Pseudo-Democracia, sem honra nem glória. Como foi isto possível, na moderna Cultura pretendidamente democrática do Ocidente? Em resumo, foi possível, porque, na gramática moderna do Iluminismo setecentista/oitocentista, a doutrina e as teses do Despotismo iluminado nunca foram, expressamente, denunciadas e desconstruídas. Este começou a ser erigido em Tema primacial e primordial só no C.E.H.C. (de nosso conhecimento…). Esta situação de facto começou a ser tanto mais incontornável e tabú, quanto o Sistema capitalista se confundiu e misturou na mesma mundividência ideológica das Religiões institucionalizadas (que, por definição, são metafisicamente dualistas, e acreditam piamente na ‘Mão Invisível’ (A.S.) de uma Divindade qualquer!... Com efeito, o Sistema capitalista (em todas as suas fases, mas de modo virulento e bélico nesta sua fase actual, verdadeiramente selvagem, a do Neoliberalismo global) sempre tem respaldado e protegido as religiões, em cujo ‘código genético’ está inscrito o Dualismo metafísico-ontológico, ─ o qual, por sua vez, é gerado pela sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. O parergo que o sistema capitalista e as religiões institucionalizadas erigiram e levantaram em estandarte é bem conhecido: ‘Cada um por si e Deus por todos’!... Como se o Deus transcendente e criador pudesse corrigir e anular os Erros e os Males, desencadeados pelos Seres humanos. Ora, um tal apotegma é absolutamente falso e embusteiro, ─ como já ensinava ‘O Livro dos Mortos’ do Egipto antigo (há mais de cinco milénios). Essa divindade, a que fora dado o nome de ‘Hermes Trismegisto’ (de há ca. de cinco mil anos), já nos ensinava (aí mesmo, no egípcio ‘Livro dos Mortos’) (que é, afinal, dos Vivos!) que os pecados dos humanos ficam, sempre, com quem os comete; não são

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perdoados, nem passam de geração em geração (como tem doutrinado a tradição bíblica e cristã)!...

● 1ª Conditio sine qua non, para a edificação do vero e autêntico Socialismo: Numa estrutura psico-societária de Democracia radical de base, o processo de construção do Socialismo tem de ser arquitectado a partir do hemisfério dos Sujeitos livres e responsáveis; não a partir do hemisfério dos Objectos objectivo-objectuais, ─ como tem pretendido fazer o catecismo tradicional das revoluções socialistas (todas elas malogradas: o ‘homem novo’ não adveio, nem poderia emergir…). Desta sorte, pode estabelecer-se a seguinte Perequação genérica: Muito embora seja necessário e indispensável trabalhar e programar, no hemisfério dos Objectos objectivo-objectuais (Objectos/Produtos/Mercadorias/Instrumentos de Trabalho), há sempre um Coeficiente, na Perequação e no leque dos Factores intervenientes, que pertence ao hemisfério dos Sujeitos (humanos) livres e responsáveis, e que, de todo em todo, não pode ser negligenciado nem esquecido nas operações. ● 2ª Conditio sine qua non, para a edificação do vero e autêntico Socialismo: A Experiência própria dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos tem de actuar e operar como se fora o châssis da Viatura (individual//colectiva), que se decidiu pôr em marcha (à escala de uma Sociedade nacional). A Consciência dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos tem de actuar e operar como fonte e pauta aferidora da Verdade e da Justiça do Conhecimento. ● 3ª Conditio sine qua non: a salvaguarda básica e intransigente do regime democrático: Como se resolve a (sempre recorrente) problemática das diferenças reais entre os indivíduos, face à igualdade jurídica perante a Lei? Há duas situações/tipo absolutamente distintas e inconfundíveis, em regime democrático: A) a chamada ‘discriminação positiva’, que deve levar os Poderes constituídos na Sociedade (nacional) a proteger e a ajudar os mais pobres e carenciados, que a universalidade da Lei não cobriu, de facto, ou não pôde cobrir; B) as ‘agressões distributivas’ (segundo a designação sensata e crítica de Michael Walzer). A Sociedade (nacional) funciona, essencialmente, como uma ‘comunidade distributiva’ cujos Poderes constituídos deverão aplicar, em tudo, os critérios da Verdade e da Justiça, de acordo com o padrão da universalidade das leis. Ora, as chamadas ‘agressões distributivas’, que atribúem condições de privilégio a certos indivíduos ou grupos, devem ser radicalmente condenadas, na medida em que os valores em jogo e os critérios de valoração pertinentes são distintos. O que as ‘agressões distributivas’ trazem para a cena societária é a pseudo99


-solução aberrante da demagogia (e do maquiavelismo…), em vez das soluções da Democracia. (Cf. João Santos in ‘JL’/Ed’, 5-18.9.2012, pp.6-7).

*

● “O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem ética. O que mais (me) preocupa… é o silêncio dos bons”. (Martin Luther King)

Guimarães, 8 de Setembro de 2012. Manuel Reis (Presidente do C.E.H.C.): Autoria. Lillian Reis (Secretária do C.E.H.C.): Digitalização ao computador e Revisão de provas.

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II

ECONOMIA DO DOM

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UMA ECONOMIA NOVA: A ECONOMIA DO DOM!

— ENSAIO PARA UMA ECONOMIA NOVA — crítica e absolutamente HUMANA: —

Seminário de Coimbra, 21 de Setembro de 1963. Manuel Augusto da Encarnação Reis.

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ENSAIO PARA UMA ECONOMIA NOVA: A ECONOMIA DO DOM! SUMÁRIO INTRODUÇÃO: O móbil da nossa análise, de índole Ético-económica:  Renovação da Ciência e da Actividade económicas;  Alguns dados da Problemática económica contemporânea;  Alguns Pregoeiros da Economia Nova: a Economia do Serviço e do Dom. —I— Patologia da Sociedade contemporânea — II — Esboço de uma Terapêutica geral:  Transformação económica;  Transformação social e Comunidade de Trabalho — modelo;  Métodos democráticos. — III — Auto-crítica da Economia de Mercado: O Ideal que a Visão dos Ocidentais enxerga é a Economia sem escassez e a Sociedade sem coacção! — IV — Projectos de uma Economia Nova — a Economia do Dom: contra a economia do “Ter”, do “Deve e do Haver”, a Economia do “Ser”. 104


CONCLUSテグ: MANIFESTO

DE

UMA

ECONOMIA

NOVA,

AUTENTICAMENTE

HUMANA: A) Uma Filosofia Econテウmica Humana; B) Uma Economia dos Homens ou Economia Planetテ。ria, com uma tarefa positiva trテュplice: a) alimentar os humanos; b) cuidar dos humanos; c) libertar os escravos.

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INTRODUÇÃO:

O Móbil da nossa Análise de índole Ético-económica:

Ninguém ignora que o Homem é animal: nessa qualidade, ele é produto crescente da sua ecologia. Enquanto possui capacidade para se auto-referir aos outros homens, ele é produto sim, mas activo, da sua sociologia, a plano de grupo geo-demográfico ou classista, a plano de povo, de raça e de espécie humana. Enquanto é capaz de tanto, pela sua inteligência, que o leva a prever e a fixar-se os fins e a esconjurar os meios adequados para a sua consecução, ele é profundamente um animal económico. Se é inteiramente válida e gritante a instância existencialista de toda a cultura contemporânea — confirmamos todos esse in der Welt sein de Heidegger —, não é menos válido e premente o reconhecimento do carácter estruturalmente económico do Homem. Não é ele porventura capaz de adaptar o meio a si mesmo? E muito mais ainda do que se adapta ele ao meio?1 Não é aliás o que a Ciência hodierna comprova: essa originalidade biológica do homem que o torna capaz de descobrir as normas e inventar o processo do seu desenvolvimento?2 Já se pode ver agora porque se impõe uma distinção clara entre a Economia ut sic e a Crematística, e, subsequentemente, a catarse radical da economia política clássica.

1

Pierre Grapin, cit. por F. Perroux in La Coexistencia Pacífica, Mexico-Buenos Aires, 1960, p.315. 2 F. Perroux, La Coexistencia Pacífica, o.c., pp.314-315. 106


Economia, de Oikonomía, não significa nem quer compreender outra coisa senão a direcção e administração dos bens da casa. Ora, não foi exactamente por ela se ter transformado em Crematística — mera produção de bens — que desorbitou o homem, o reduziu à condição de proletário, identificando o trabalho humano mercadejado com o capital e a máquina e alienando alfim o homem económico?3 Mas não é verdade que a noção e a realidade do económico, que é lidimamente humano, andam necessariamente ligadas a duas leis-critérios fundamentais: a lei da racionalidade que postula a ordenação dos meios e dos processos para os fins e as metas, e a lei da suficiência, que é equivalente, no mundo humano, da lei universal da inércia, e encontra a sua última razão de ser no escalonamento ôntico do universo que especifica para a coexistência de muitos seres e interliga para a acção? Progressivamente adulterada na história e logo perdida a noção da economia verdadeira e real, o homem moderno achou-se tragicamente alienado; Karl Marx, qual profeta agoirento, denuncia judiciosamente, das super-estruturas às infra-estruturas, o rosário das alienações: a alienação religiosa, que confundia a religião com o Estado, com todos os vícios consequentes; a alienação filosófica, que entrincheirava a filosofia na turris eburnea dos idealismos irreversíveis e estagnizantes que vendavam a inteligência criadora, enquanto realista, em face da praxis e do real; a alienação política, que confundia a nação com o Estado e este com o Governo, declinando forçosamente nas ditaduras ou nos paternalismos; a alienação social, que defendia as classes — especialmente a oposição de capitalistas-operários —, postergando a natural promoção social de todos os homens; a alienação económica, que reduzia o trinómio — Trabalho, Mercadoria, Dinheiro — ao monolito do Dinheiro e do Capital preguiçoso e prepotente. Importa, porém, observar mais: é que todas estas alienações não eram constituídas, pura e simplesmente, pelos elementos contraditórios ou pelas classes antagónicas existentes: acrescia-lhes a nota de “ilusão” de uma conciliação entre contraditórios, a um nível em que esta conciliação não pode ser senão vã.4 É mesmo esta a característica essencial da alienação.

3

Note-se que não significamos aqui, com este adjectivo, o Homo oeconomicus de uma dada época da história da cultura e civilização, e da economia. 4 J.-Y. Calvez, La Pensée de Karl Marx, Paris, 1956, p.188; há tradução portuguesa da Ed. Tavares Martins, Porto. 107


Não teria Marx razões de sobejo para reduzir as super-estruturas à infra-estrutura económica?5 Ninquém nega hoje a importância deste fenómeno. O Marxismo só é afinal criticamente condenável pelo seu exclusivismo económico-materialístico e suas implicações de doutrina e vida. De resto não será uma constante real da história da Humanidade a base económica, até mesmo para os sectores de actividades humanas mais espirituais e superiores? Se é verdade que non in solo pane vivit homo, é igualmente certo — é o próprio Evangelho que ensina e o exemplo de Cristo que não deixou partir a multidão faminta, depois de O ouvir — que não pode pregar-se eficazmente a estômagos vazios! Primum vivere, deinde philosohare — reza pitorescamente o adágio conhecido. E porque as mentalidades cristãs haviam exaltado demasiadamente os valores espirituais com detrimento e desprezo dos temporais e materiais, até ao encratismo, sob formas de maniqueismo larvado, platonismo sobranceiro, jansenismo gnóstico e espiritualismos à pur amour de Port-Royal, — foi assaz tonificante e bemfazeja e fecunda a vaga do materialismo dialéctico e histórico, no seu apelo para a infra-estrutura económica e material sempre relevante. Nesta perspectiva não foi precisamente o Cristianismo o maior escândalo da História com a epifania do Filho de Deus materializado?!... É um paleontólogo como o P. Teilhard de Chardin 6 que escreve sobre o relevo crescente do económico: “ Depois do Neolítico, sobretudo, quanto mais se comprime a Humanidade sobre si mesma, por efeito de crescimento, mais se acha vitalmente obrigada, para se fazer lugar a si mesma, a descobrir os meios, sempre renovados, de dispor os seus elementos do modo mais económico de energia e de espaço”. O malthusianismo e o neo-malthusianismo só colhem à escala de uma análise superficial e por consequência no domínio da Crematística, ou seja, da ‘economia’ quantativística. Em face do panorama capitalístico e materialístico contemporâneo, refere o mesmo autor: “ E diante de um ideal tão burguês é justo que o nosso coração desfaleça. “ Frente a este materialismo e a este naturalismo autenticamente pagãos, torna-se urgente recordar de novo que, se as leis da Biogénese supõem e implicam efectivamente, por natureza, um melhoramento económico das condições humanas, não se trata de uma

5

Note-se que esta terminologia entrou pacificamente no património de todas as Ciências Sociais, muito embora, a nosso aviso, mereça um reparo crítico. 6 in El Grupo Zoológico humano, Madrid, 1962, 2ª ed., p.117. 108


questão de bem-estar, mas de uma sêde de mais-ser, a qual pode por si só, por necesidade psicológica, libertar a Terra pensante do taedium vitae” 7 RENOVAÇÃO DA CIÊNCIA E DA ACTIVIDADE ECONÓMICAS: Arthur Taylor8 esquematiza criteriosamente dez momentos lógico-cronológicos da História da Economia: as Doutrinas da Antiguidade e da Idade Média, as Doutrinas mercantilistas, os Fisiocratas, a escola clássica, reacções contra o Liberalismo, o Socialismo, a escola histórica, Doutrinas inspiradas no Cristianismo, a Doutrina da utilidade marginal, Tendências contemporâneas. Numa visão geral e de superfície, todos estes momentos podiam reduzir-se a três fundamentais: Liberalismo, Socialismo e Catolicismo Social! E o curioso é que, ainda nesta perspectiva, o processus histórico aparente vai-se realizando de uma forma dialéctica simples de dois momentos que se opõem para integrar-se: Liberalismo e Dirigismo. O Liberalismo económico surgiu, inicialmente, como reacção contra o mercantilismo, de índole dirigista, desviando o predomínio da segunda estação do circuito económico — a circulação — para a primeira estação — a produção. Contra o mercantilismo nasce a escola dos fisiocratas que não mais se preocupam com a troca mas com a produção: a agricultura assume para eles o carácter de fonte de toda a economia; os comerciantes são parasitas inúteis. Ninguém olvida hoje as duas grandes significações do Marxismo: a significação histórica, que vai na linha do materialismo, benèficamente contraposto aos idealismos desincarnados e estáticos e despóticos, e a significação humana, que se projecta na senda do social e do colectivo, pondo cobro à exploração do proletário, acabando com a era do Dinheiro e do Capital e estabelecendo o fim da propriedade como fonte do proveito e do poder.

7

in El Porvenir del Hombre, Madrid, 1962, p.371; o sublinhado é nosso. As Grandes Doutrinas Económicas, col. Saber, Public. Europa-América, Lisboa, 1962, 2ª ed. (com actualização da Mater et Magistra.) 8

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Sobre a ambivalência de Marx, dissertou atiladamente Pierre Bigo 9 : — Na corrente humanista, que é o fulcro de toda a sua obra, são enaltecidos o Homem e o seu trabalho. É célebre aquela passagem de Marx10, onde o Comunismo é apresentado qual Humanismo nimbado de ar profético: “ como abolição positiva da propriedade privada, considerada como a separação do homem de si mesmo”, e, positivamente, “ como a apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem, e assim como retorno do homem a si mesmo, enquanto homem social, isto é, como homem humano, retorno completo, consciente, e com o mantenimento de toda a riqueza do desenvolvimento anterior. Sendo um naturalismo acabado, o comunismo coincide com o humanismo; é o verdadeiro fim do conflito entre a existência e a essência, entre a objectivação e a afirmação de si, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie. Ele resolve o mistério da história e sabe que o resolve”. Na corrente materialista, se bem que toda a gente reconheça, no centro da economia política marxista, uma afirmação explícita do homem e implícita das suas dimensões espirituais, Marx nega todavia o espírito e com ele toda a verdadeira religião natural, e o seu pensamento processa-se nas duas etapas conhecidas: do ateismo ao materialismo e do materialismo ao socialismo. O nó é o primado absoluto e irreversível da matéria e os dois factores — ateismo e socialismo — implicam-se mutuamente. Não resta dúvida que o Fundador do Comunismo, ao fim do seu itinerário, está ainda no ponto de partida: a economia política marxista é simultaneamente materialista e ateia; está dela ausente o homem autêntico possuidor de espírito, com a capacidade consequente de se ligar a Deus e constituir religião — dados incontrovertíveis da história do homem. “ Transcendência da história e interioridade do homem. É o duplo mistério que Marx ignorou”. 11 Mas a par do comunismo levado a efeito por Lenine e Estaline no bolchevismo soviético, estão todas as outras escolas socialistas, já desde Platão na República, Tomás More na Utopia e Campanella na Cidade do Sol, passando por Fourier, Owen, Proudhon, Lassalle, até ao socialismo reformista de Bernstein, diante do desencantamento das 9

Marxisme et Humanisme, P.U.F., Paris, 1954, pp.132-160. Economie politique et philosophie, Oeuvres Philosophiques, t.VI, p.22; cit. por Bigo, o.c., p.141. 11 Pierre Bigo, o..c.., p.160. 10

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profecias de Marx. O termo Socialismo ficou mais ligado aos segundos, menos radicais na Revolução e menos exclusivistas nos seus pontos de programa. O Comunismo da primeira hora propôs-se reconstituir o homem e o humano, num plano, porém, estritamente económico-materialístico, sem portanto dar a suficiente atenção a todas as suas dimensões. O Socialismo, embora de raiz ou aliança marxista, já temperado da segunda hora, reconheceu a sua impotência perante a complexidade do homem e deu as mãos já explícita já implicitamente ao espiritualismo cristão. Este volte-face do socialismo científico da primeira hora pôs a competir na liça o Socialismo com o Catolicismo Social, na tarefa ingente de restauração do homem contemporâneo, ao menos no mundo dos fenómenos! * Com o Manifesto comunista na Londres de 1847, içava-se a bandeira do humanismo e do socialismo!... A evolução da economia política pura, estruturada na plataforma da simples Crematologia (de Khrémata = coisas-riquezas-produção de riquezas) — para a Economia Social não se operou num golpe de varinha mágica. Charles Gide12 foi o primeiro que, já no dealbar do século XX, na sequência de certos vestígios de Ricardo, se ocupou dos fenómenos da distribuição, e substituiu o esquema tripartido da economia clássica — produção-circulação-consumo — por um esquema quadripartido, que incluia a distribuição dos bens, fundindo desta sorte a economia política com a economia social, como ele declara a p.4. O autor define luminosamente as suas intenções, quando considera as relações Capital-Trabalho, num parágrafo magistral: “ É verdade, como vimos, que também o trabalho sem o concurso do capital, nas condições normais da produção, é estéril; poderíamos, assim, ser levados a pensar que se encontram ambos nas mesmas condições: infecundos enquanto separados, aptos a criar logo que reunidos, sem que se possa discernir a parte que concerne um e outro, precisamente como acontece com os dois sexos na geração. Mas não se deve esquecer que o próprio capital outra coisa não é que um produto do 12

in Principii di Economia Politica, Milano 1911, III ed. Sobre a XII francesa. 111


trabalho. Dizer que o trabalho é estéril sem o concurso do capital equivale a dizer que o trabalho presente não pode produzir sem a colaboração do trabalho passado”.13 Clément Mertens14 estrutura o seu trabalho de Economia Social pela produção, circulação e distribuição, sem se ocupar da última etapa do circuito económico — o consumo — que é de carácter predominantemente individual. Não deixa de ser significativa e actualizada a definição que ele dá da Ciência Económica “ que tem por objecto o observar e o dirigir o comportamento dos homens relativamente aos recursos inadequados às necessidades, tendo em conta o conjunto das necessidades e dos recursos”.15 É o mesmo autor que faz notar ainda, judiciosamente, os tres predicados desta Ciência: —é a um tempo só teórica e prática (processa-se de uma forma imbricativa e envolvente, em três graus: Economia pura, Economia política, Economia Social); é uma ciência psicológica, pois versa uma actividade livre do homem; é uma ciência social, enquanto a actividade económica é desenvolvida por indivíduos que vivem em sociedade. Tem sido certamente, em boa parte, por causa do desfasamento profundo — fenómeno cavado ainda mais pelas duas ordens de dirigentes da vida económica, os homens políticos e os sábios das escolas e universidades, e pela sua escassa intercompenetração — entre a Ciência económica, naturalmente atreita à previsão científica, e a actividade económica, fàcilmente seduzida pelo mais imediato e eficaz, — que a Economia política clássica não evoluiu tão lesta e desembaraçada para o estádio superior e mais humano da Economia Social. Exprime-se deste modo o Engº A.B. Couto Soares:16 “ Ainda não é frequente encontrar este espírito de previsão no domínio da economia social ou da economia da empresa, devido em parte ao desfasamento entre o desenvolvimento das ciências experimentais ou exactas e o das ciências sociais, mas também devido ao divórcio correntemente verificado entre a ciência económico-social e a política económico-social. Os universitários tendem com frequência para concentrar os seus esforços na extracção de conceitos da 13

ibi, p.122. in Iniziazione alla Economia Sociale, Marietti, 1954. 15 ibi, p.18. 16 in Rev. Empresa, Nº4, Junho, 1963, p.8, Iª col.; o sublinhado é nosso. 14

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observação de fenómenos do passado, de preferência a ocuparem-se do futuro; os políticos e os chefes de empresa tendem a viver absorvidos pela preocupação dominante do imediato”. Ora, a actividade económica é essencialmente social: os homens trabalham em sociedade e por conseguinte os mais ricos devem ajudar os mais pobres, como na teoria dos vasos comunicantes; é essencialmente dinâmica, ao serviço simultaneamente quantitativo e qualitativo da humanidade. Outro impacto de origem mais sócio-demográfica são as visões pessimistas de muitos sequazes, aliás já francamente ultrapassados, das teorias de Malthus, segundo as quais as populações crescem em progressão geométrica, enquanto os recursos aumentam apenas em progressão aritmética. Ora, escreviam, há poucos anos, numa publicação da UNESCO, dois especialistas em questões de população:17 “ Mau grado as predições pessimísticas dos malthusianos, mau grado um crescimento sem precedentes da população mundial, os países periòdicamente em presa de carestia ou miséria, ou os povos privados de uma alimentação suficiente e apta, são pouco a pouco sempre menos numerosos”. * Alguns Dados da Problemática Económica Contemporânea: 18 — No seu livro Teoria geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Keynes diz na última página: “ As ideias justas ou falsas dos filósofos da economia têm mais importância que o que geralmente se pensa. Em abono da verdade, o mundo é quase (totalmente) conduzido por elas”.19 Dois factos principais de cariz económico-social têm dominado a evolução económica contemporânea: a) a greve; b) o aumento de necessidades de toda a ordem.

17

A. Myrdal e P. Vincent, Sommes nous trop nombreux?; cit. por C. Mertens, o.c., p.246. Seguimos de perto a obra Panorama des idées contemporaines, sob a direc. De Gaetan Picon, Paris, 1957, pp.231-252. 19 cit. ibi, p.232. 18

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Não foi porventura o medo das greves e das suas desordens que fez subir ao poder os governos fascistas de Mussolini e Hitler e Peron... e transformou os grevistas em soldados e operários que trabalhavam na preparação da guerra-conclusão fatal destes regimes? E, no entanto, porque a época era estruturalmente socializante, o fascismo de Adolf Hitler mascarava-se com o rótulo de Nacional-Socialismo e o de Benito Mussolini distraía-se com a etiqueta de Estado sindicalista ou corporativo. O segundo facto consiste no aumento enorme de necessidades de toda a ordem, originado, já pela expansão demográfica, já pela aspiração geral das massas ao melhoramento dos níveis de vida. E brotou assim um fenómeno de mimetismo trágico, na imprensa, na rádio, no cinema, na televisão, na arte e na própria ciência! A sociedade em geral não soube ainda começar a viver decididamente o seu momento de socialização autêntica, e vai-se desmoronando na massificação que avassala. A Tese fundamental de Keynes sustenta que a greve, que desabara sobre os grandes países industriais e corria o risco de arruinar a economia liberal, provém do desequilíbrio, na sociedade contemporânea, entre o consumo tornado insuficiente e o aforro tornado relativamente excessivo. Em breve, o economista inglês convenceu todos os governos da Teoria do Pleno Emprego, pois que — como diz Angèlos Angelopoulos20 — “esta poupança que permanece ‘inactiva’ constitui a anomalia principal da actividade económica e é ela que explica o paradoxo da pobreza no seio da abundância”. Este discípulo de Keynes conclui assim por um investimento tão forte, que seja capaz de absorver a poupança e equilibrar a economia. Quase a modo de crítica, recordamos o que disse Gunnar Myrdal 21 numa das assembleias das Nações Unidas (1952): “ Se as regiões industrializadas — a Europa oriental e ocidental, a União Soviética, os Estados Unidos, — se sentissem suficientemente seguras para economizar só 10% das suas despesas actuais em armamentos e se elas estivessem decididas a consagrar esta economia ao equipamento das regiões insuficientemente desenvolvidas em capital de produção, só isto bastaria para cobrir a despesa neces-

20

Planisme et Progrès social, Librairie général de droit et de jurisprudence, 1952; cit. ibi, p.234. 21 cit. ibi, p.236. 114


sária, segundo os cálculos dos peritos das Nações Unidas, para pôr fim ao empobrecimento contínuo das regiões insuficientemente desenvolvidas e permitir um acréscimo anual dos seus réditos da ordem de 2% por cabeça”. Schumpeter, defendendo o capitalismo, chama a atenção para o excesso de dinamismo deste regime: “ O capitalismo nunca é estacionário nem pode jamais vir a sê-lo”22. E apreciando o sucesso do liberalismo económico que produziu num só século, após a revolução industrial, mais invenções e riquezas que milénios de regimes corporativos e de dirigismos tradicionais, vê nos sistemas socialistas equacionados com o dirigismo económico, uma vaga de relaxamento e repouso, uma descontracção cíclica da Economia política do Estado. A escola de Keynes, em suma, fixou a sua mira pura e simplesmente no anticiclismo do Estado, elaborando para o efeito toda uma política de salários altos, capazes de garantirem aos operários um poder de compra bom, em ordem à prosperidade geral. Outro problema grave da economia contemporânea é o dos países insuficientemente desenvolvidos em face dos países evoluidos. Escreve Jean Piel 23 sobre a economia colonial e as taras da civilização moderna ocidental: “ tornou-se bem necessário apelar para os móbeis que são o motor da civilização moderna do Ocidente, quando, tendo-se tornado impraticáveis a escravatura e o trabalho forçado, se deveu convencer as populações de fornecer um trabalho incessantemente crescente e proveitoso. Ora, tudo está nesta civilização: o gosto do ganho, do proveito, o cálculo para o progresso, o espírito de concorrência... de classe a classe. Pelas próprias exigências da exploração, sem disso darem conta os colonizadores, os ideais materialistas da civilização ocidental estão em vias de ganhar os mais refractários”. Quanto à brusca solicitude dos países evoluidos para com os países sub-desenvolvidos, as razões parecem ser fundamentalmente duas: a) facto constatado que o comunismo totalitário entrava preferencialmente nos países mais atrazados, de estrutura quase exclusivamente agrária e arcaica, surgiu a esperança, para os que enfileiravam na ‘cruzada’ anti-comunista, de contrariar o avanço do comunismo nestes países, com todo um plano

22 23

cit. ibi, p.237. cit. ibi, p.238. 115


de multiplicação dos serviços e diversificação do consumo e instalações técnico-industriais, à moda das economias ocidentais evoluidas. b) Desde o século XVIII, os países subdesenvolvidos têm constituido, para as indústrias ocidentais, alguns fonte rica de matérias primas e todos mercado aberto às exportações dos países evoluidos — facto que aos olhos gananciosos dos ocidentais importava conservar. A situação foi porém mudando no último após-guerra, quando os Estados Unidos, particularmente, começaram a reconhecer que era mais importante assegurar o pleno emprego à sua população e às suas oficinas que todos os proveitos extraidos da exportação. Pierre Uri sente então a oportunidade e anuncia a ‘economia do dom’! A estratégia económica de investimento de capitais nos países subdesenvolvidos não foi fácil e proficiente na maioria dos casos. A rotina e o dolce far niente são entraves fortes; o próprio capital, transferido de um meio para o outro, como “ herança social que depende das instituições e dos modos tradicionais de pensamento e de acção dos indivíduos na sociedade”, “ deve ser readaptado, refeito segundo os novos tipos de comportamentos”, — como bem observa Raymond Barre 24; e acrescenta logo a seguir: “ O equipamento mais aperfeiçoado permanecerá ineficiente, se não dispõe de homens competentes para a sua utilização, num meio receptivo à sua inovação e aspirando ao progresso”. “ O verdadeiro problema — diz François Perroux — (nos países subdesenvolvidos) é a criação de tipos económicos e sociais: consumidores, trabalhadores e empresários dinâmicos”. 25 Não significará isto mesmo as implicações das exigências humanas no próprio coração da economia? O mundo fechado da economia política tradicional, provido de leis próprias e inalteráveis, abriu francamente brecha: — Ele é a nova concepção da moeda meramente funcional: “ Assim — ensina Robert Mossé26 — a gente sabe agora que a moeda é bem outra coisa que um simples bocado de metal e que os governos podem, agindo sobre a moeda, exercer uma influência funesta ou fecunda sobre a vida económica e a estrutura 24

cit. ibi, p.241. cit. ibi, p.241. 26 La Monnaie, coll. ‘Bilan de la connaissance économique’, Librairie Rivière et C.ie, 1950; cit. ibi, p.243. 25

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social”; a inflação afigura-se-nos prevalentemente como um fenómeno patológico acessório da guerra; as flutuações na vida económica são cada vez menos cíclicas e determinísticas e mais acidentais e voluntarísticas. Toda uma irrupção de factores e móbeis exógenos no desenvolvimento da vida económica. A Economia política clássica vem-se abrindo ao social e transformou-se em Sociologia económica, na obra do economista italiano Conrado Gini; e em Sociologia económico-cristã, na pena do Jesuita espanhol Joaquin Azpiazu, a qual oferece a unção da paz para a luta de classes e uma grande injecção de espiritualidade ao materialismo. Depois de fazer apelo para outros estudos interessantes, para-económicos, como a psicologia económica da renúncia, da solidariedade, as condições de uma economia de regressão ao lado das de uma economia de progresso, o primeiro autor escreve: “ O conjunto destas pesquisas poderá formar, sob a denominação geral de ‘economia integral’, uma ciência, na qual encontrariam lugar, ao lado da economia burguesa, a economia dos primitivos, a economia fundada sobre a escravatura, a economia feudal e, ao lado da economia do lucro, a economia do prestígio. De modo análogo, ao lado da economia que estuda os conjuntos em vias de progresso ou de expansão, a que estudará os conjuntos em vias de decadência ou de regressão. Ao lado da economia hedonista, estudar-se-á a economia energética; junto à economia fundada sobre o esforço, a economia fundada sobre o ascetismo ou a economia da moderação; ao lado da economia fundada sobre a reciprocidade, a economia da solidariedade”. 27 Outro fenómeno de vulto da economia contemporânea é o aumento considerável da produtividade, em grande parte mercê do progresso técnico que diminui a duração do trabalho e faz concentrar sobre ele, de tal modo, as atenções, em virtude especialmente das suas núpcias com a máquina e a automação, que a nossa civilização veio a chamar-se com razão a civilização do Trabalho. Muitos têm pensado e escrito que a acção fundamental do progresso técnico e da industrialização consistiu na transferência do camponês para a oficina; mas parece mais criterioso e realista que este processo o deva transferir para as profissões liberais e comerciais. O primeiro ponto de vista parece deixar o homem subjugado pelo automatismo, e o 27

in Patologia Economica, Unione Tipografica Editrice, UTET, Torino, 1952; cit. ibi, p.247. 117


seu trabalho escravizado pela máquina e a produção em série. O segundo tem em conta o trabalho qualificado e as premissas necessárias do ensino técnico. É sabido como o Taylorismo, na preocupação louvável de organizar cientificamente o trabalho, através do conhecimento da psicologia do trabalho que se ocupa das influências dos diversos trabalhos no corpo humano, da psico-técnica que estuda as suas influências nas disposições racionais, e das relações industriais que tratam das influências do ambiente e do comportamento social do operário em face dos seus camaradas e dos chefes, — descurou quase por completo a moralidade do trabalho e as suas implicações tipicamente humanas; a standardização do Trabalho que o método-Taylor patrocinava acaba por tratar “ o homem unicamente como uma máquina, sem ter em conta as particularidades do seu corpo, do seu espírito e das suas relações sociais”. 28 A era prometeica do Trabalho chegou a uma mistificação tal que importa urgentemente esconjurar sob pena de não entendermos nada do Homem. Observa judiciosamente Jean Fourastié 29: “ Esta evolução (do ruralismo para a industrialização) prosseguirá até uma relativa igualização das produtividades por cabeça, dentro das três actividades” (primárias, secundárias, terciárias). Esclarece ainda o autor na mesma passagem: “ Nesta evolução, o processus de industrialização não é indefinido, mas passa por um maximum. O homem liberta-se do trabalho industrial como se libertou (isto é, em grande parte) do trabalho agrícola”. Nestas perspectivas realistas, a nossa visão, ao julgarmos a revolução industrial, não poderá ser senão optimista, contra os pessimismos de Georges Duhamel e Ortega y Gasset: espíritos médios e fracos temem que a civilização intelectual sucumba à civilização mecânica! “ Em realidade produzir-se-á o contrário: visto que o progresso técnico liberta o homem do trabalho servil e, enquanto tal sucede, este mesmo progresso técnico obriga ao trabalho do espírito. Nada será menos ‘industrial’ que a civilização nascida da revolução industrial. A ‘categoria operária’, após uma longa expansão, começa a decrescer; a condição proletária desaparecerá com o espírito transitório que lhe deu origem”. 30

28

C. Mertens, Iniziazione alla Economia Sociale, Marietti, 1954, p.85. La civilization de 1960, PUF, 1947, cit. in Panorama des idées contemporaines, o.c., p.250. 30 J. Fourastié, ibidem, cit. ibidem. 29

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Não estaremos precisamente diante da ‘subida à Noosfera’ que anunciam tão calorosa e realisticamente os pregões de T. de Chardin, tão levianamente criticado por muitos?!... * Alguns Pregoeiros da Economia Nova: a Economia do Serviço e do Dom — ‘Oeconomia hominis et quidem socialis’! Trata-se de uma economia desalienada, absolutamente coerente e autêntica. A tarefa ingente dos economistas sérios e concludentes, antes mesmo de serem católicos, não pode cifrar-se ùnicamente na execução pura e simples das doutrinas económico-sociais da Igreja, que tão esplendidamente sintetizadas poderão encontrar na obra de J.-Y. Calvez e J. Perrin — Église et Société économique (Paris, 1959), pois eles hão-de ser, enquanto cristãos conscientes, verdadeiramente vanguardistas neste seu sector. Não podem estar passivamente obedientes ao telecomando de um minimum de ortodoxia!... Ora, neste campo específico há já, graças à Providência, um belo número de homens que se têm sentido com a coragem de verberar tanto as economias libero-capitalísticas (liberalismo económico) como as sócio-capitalísticas (comunismo = hiper-capitalismo de Estado já na fase intermédia do socialismo, já mesmo na fase final paradisíaca do comunismo!). As soluçoes positivas apresentadas têm sido também algumas. Na sua extensa e conceituada obra — Introdução à Análise Económica — Paul A. Samuelson, apesar de ter dedicado toda uma parte quinta do II volume ao ‘Comércio internacional e Finanças internacionais’, e uma parte sexta aos ‘Problemas económicos contemporâneos’, — estabelece ainda toda a vida económica à escala da produção nacional e raciocina com critérios meramente económicos (crematísticos, no fundo!). Dissertando sobre os Sistemas económicos alternativos (capitalismo, comunismo, socialismo nas suas diversas formas), o autor propõe Um modelo do século XX que será, em três alíneas, a fusão de todos: “ O que têm em comum todos estes sistemas económicos? — Primeiro, todos parecem mostrar que o colectivismo na Europa e na Ásia não tem sido condição suficiente

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para a prosperidade económica ou para o bem-estar político. Segundo, todos procuram melhorar as extremas desigualdades de consumo que caracterizam o verdadeiro laissez-faire. Terceiro, todos resolvem utilizar os poderes fiscais e monetários da nação para modificar as oscilações do emprego e dos preços”. 31 E, concluindo, acrescenta: “ A Economia dos Estados Unidos está hoje em melhor situação do que nunca. O país, apenas com 6% da população mundial, produz 40% da renda mundial. E, apesar de todos os seus defeitos, a economia norte-americana conseguiu realizar o mais rápido aumento de produtividade e de padrões-de-vida jamais conseguido em qualquer parte. “ O sistema mixto de iniciativa capitalista e intervenção governamental possui, se abstrairmos as guerras, um grande futuro em sua frente”. 32 Bem mais decididos e contundentes foram outros autores, como Peter Drucker que anunciou “ o fim do homem económico”, e Julian Huxley que, na peugada dele, declarou, no seu livro — A Revolução actual — (Londres, 1946) — termos entrado na “era do homem social”. A crítica à Economia negociante ou de mercado havia já sido lacònicamente presagiada por Proudhon, em Sistema das contradições económicas ou filosofia da miséria (1846), pelo “ estado estacionário” de Stuart Mill, em Princípios de Economia política (1848, Iª edição), e pelo “ comunismo terminal” de Karl Marx, principalmente em Crítica da economia política (1859) e no primeiro tomo de O Capital (1867). Henri de Lovinfosse e Gustave Thibon escrevem “ Solução Social” (Lisboa, 1951) — Para uma Economia Nacional Humana, onde o princípio da convergência dos interesses é constituido base de toda a economia sã; onde há liberdade na ordem, on-de o egoísmo é depurado pelo amor, causa e origem de toda a liberdade autêntica; onde o interesse do consumidor é proposto como princípio e fim de uma economia sã. A p.80, lê-se: “ O fim supremo da economia — ... — é proporcionar ao conjunto dos homens o máximo de utilidades económicas. Tudo o resto (o trabalho, a produção, a moeda, etc.) é apenas um meio e não tem valor senão na medida em que concorre para aquele fim”.

31 32

Introdução à Análise Económica, II vol., 4ª ed., Rio de Jan. 1961, p.636. ibi, p.638. 120


Os dois autores professam em síntese: “ Contra o liberalismo e o socialismo, nós queremos unir e harmonizar as exigências da liberdade e as da ordem. Nós queremos uma liberdade suficientemente larga para que a ordem não seja automatismo e escravidão, e uma ordem suficientemente forte para que a liberdade não descambe em anarquia”.33 Giacomo Soleri34, depois de nos elucidar, na primeira parte histórica do seu livro, sobre o Primado do útil económico no espírito burguês moderno e sobre as Aspirações ético-humanitárias e pressupostos utilitarístico-materialísticos nas concepções socialistas e comunistas, versa, na segunda parte doutrinária, capítulo X, a Economia Humana; capítulo XX, Expansão económica e Pessoa humana, e conclui com toda uma problemática bem posta e resolvida sobre a Moralidade da Economia. Aqui mesmo assevera o autor: “ A pretensa autonomia da economia revela-se heterónoma no próprio momento em que se põe e se afirma” 35, porquanto o homem não é, mesmo nos seus actos económicos, pura e simplesmente corporeidade. Os conflitos que por vezes surgem entre o moralista e o economista, entre a moralidade e a eficiência da economia, têm a sua origem num dos dois factos: ou o moralista não é realista (porque está agarrado a formas civilizacionais e técnicas do passado ou é “maniqueu”!) ou o economista não é económico, mas perdulário. “ A economia como tal deve mirar a obter o máximo de bens económicos com o dispêndio mínimo de meios empregues, na situação concretamente dada”.36 E assim o moralista realista postula, segundo o princípio económico do máximo de bens com o mínimo de meios, que a economia seja económica. “ Daqui resulta a necessidade de uma colaboração harmónica de economista e moralista: colaboração indispensável à instauração de uma ordem económica verdadeiramente humana”. 37 Não é verdade que, no campo da política económica, as escolhas implicam sempre uma apreciação e atitude éticas? Que de passos decisivos não deve hoje empreender o moralista, para sair da sua preguiça e ignorância tradicionais e despir-se até dos hábitos mentais de individualismo egoístico que se deixou criar à sombra do capitalismo liberístico! 33

Solução Social, Lisboa, 1951 (Para uma Economia Nacional Humana), pp.54-55. Economia e Morale, Borla, Torino, 1960. 35 ibi, p.349. 36 ibi, p.354. 37 ibi, p.358. 34

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O célebre economista cristão e político italiano Ammintore Fanfani 38 escreve: “Os bens económicos são para o homem meios que ele deve usar para atingir o seu fim, remetendo-os à disposição de terceiros, uma vez desfrutado quanto basta para tal escopo”. Estamos por conseguinte “ à procura de um programa que no campo social e económico salve todos os direitos da pessoa, através da realização completa do bem comum. Personalistas e comunitárias são as aspirações difundidas no mundo”. No seu apreciável livro — Psicanálise da Sociedade Contemporânea 39 — Erich Fromm chega à conclusão de que o mal da nossa civilização não resulta apenas da má distribuição dos produtos da indústria ou da tirania da sua conduta, — como tantos supõem — mas sobretudo por ter a própria indústria conquistado um posto de predomínio absoluto no mundo dos interesses humanos. “ O homem está hoje em dia diante da escolha mais fundamental; não é a escolha entre o capitalismo e o comunismo, mas entre o robotismo (tanto do tipo capitalista como do comunista) e o Socialismo Comunitário Humanista”.40 R. H. Tawney41 proclama que na nossa sociedade “ ...até as pessoas cultas estão persuadidas de que o capital ‘emprega’ o trabalho, como os nossos antigos pagãos imaginavam que as peças de madeira e ferro, que eles endeusaram em seus dias, lhes mandavam suas colheitas e ganhavam suas batalhas. Quando os homens chegam ao ponto de falar como se os seus ídolos se tivessem materializado, é tempo de alguém derrubar tais ídolos. A única utilidade das coisas é serem aplicadas ao serviço das pessoas”. Diagnosticando o mundo contemporâneo, Aldous Huxley escreveu o “ Brave New World”42, onde o seu radiograma observa lemas deste cinismo: “ Nunca deixes para amanhã a diversão que podes ter hoje”. “ Todo o mundo é feliz hoje em dia”; as criaturas “ têm o que querem e nunca querem o que não podem ter”. “ São tomadas as maiores precauções para impedir que amemos alguém por tempo demasiado. Não há nada que se pareça a uma felicidade mútua; a criatura está por tal forma condicionada que não pode

38

Economia, Brescia, 1948, pp.143-144. Zahar Editores, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1961. 40 ibi, p.350. 41 The Acquisitive Society, Harcourt, Brace & Company, Inc., Nova York, 1920, p.99. 42 The Vanguard Library, p.196; (há tradução para o português com o título Admirável Mundo Novo). 39

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deixar de fazer o que deve fazer. E o que deve fazer é tão agradável, em seu todo permite a livre expansão de tantos impulsos naturais, que na realidade não se sente nenhuma tentação em resistir”.43 Quanto à Economia, o nosso autor ensina que não se trata de eliminá-la, mas sim de ultrapassar as barreiras da Crematística, reintroduzindo a participação no campo próprio desta disciplina. François Perroux é, sem dúvida, dos autores mais destacados e corajosos da Economia Nova. Além de uma colaboração assídua para revistas diversas, escreveu, no sentido de compreender os movimentos amplos da economia do nosso tempo — como ele mesmo refere — Capitalisme et communauté de travail (1938); L’Europe sans rivages (1954); La Coëxistence pacifique (1958) onde ele desenvolve, em três partes magistrais, toda a temática contemporânea de uma economia versus economia planetária: — As crises do capitalismo e do comunismo. As contradições do desenvolvimento das sociedades industriais. — Os pólos de desenvolvimento e o comércio Leste-Oeste. As contradições entre os centros industrias e a política territorial. — A contradição entre o armamento e o desenvolvimento. A Economia dos homens; — e conclui denunciando esta Coexistência pacífica que na realidade é uma luta total, pois que — como disse bem J. Nehru (1958) — a verdadeira oposição no mundo é entre industrializados e não industrializados”. Escreveu ainda Économie et Société, Contrainte-Échange-Don (1960), que tem por objectivo, como ele declara no Prefácio, “ uma crítica em profundidade da sociedade negociante; uma tentativa de escapar à sua “ má-fé”; um esforço para lançar os primeiros fundamentos de uma economia generalizada”. Escreveu mais, L’Économie du XXe Siècle (1961) onde propõe uma economia generalizada, à escala mundial, baseada na chamada teoria dos espaços económicos, capaz de superar a economia nacional. Esta é também fundamentalmente a visão da “ Mater et Magistra” de João XXIII (15/V/61). A contradição mais radical da economia contemporânea, isto é, o conflito armado entre os centros industriais e pólos de desenvolvimento económico (que não são nacionais nem territoriais!) e a organização política por territórios e por população territorial (contradição que no fundo supõe um abismo entre o económico e o político = falta de inteligência, e determinismo ou arbitrariedade das leis políticas e económicas); a situação 43

ibi, p.196. 123


de compromisso táctico (em ordem à resolução... finalmente ilusória, do problema) das economias nacionais que pretendem ser simultaneamente territoriais e funcionais: toda esta problemática tem sido posta ao vivo por outros autores, na linha de F. Perroux, como Gunnar Myrdal em Development and Underdevelopment, a note on the mechanism of national and international economic inequality44; Economic Theory and underdeveloped Regions45. Outro livro recente deste autor, sobre as economias não marxistas, apareceu com o título bem significativo — Solidariedade ou desintegração! No Congresso universitário da “ Pro Civitate Christiana”, realizado em Assis, de 27 a 31 de Dezembro de 1960, dirigia-se-nos nestes termos escaldantes o Presidente da EURATOM, Enrico Medi: “ Rapazes que estudais Economia, pensai em criar uma economia nova: pode criar-se, sabeis, uma economia que nos liberte do dinheiro, que nos dê a possibilidade de dar; a economia da doação em vez da economia da aquisição. Não vos digo tolices, digo-vos coisas verdadeiras, verdadeiras”!46 “ No campo da economia assistimos hoje a um mundo que cai completamente. O mundo caminha hoje para possibilidades de produção superiores às necessidades de consumo do mundo, realidade que não se havia jamais verificado à face da terra. Até agora a economia estava construida sobre esta ideia: produzir o mais possível, porque os bens não são suficientes à humanidade. Agora, porém, vamos caminhando para uma era, na qual a humanidade poderá dispor de bens em superabundância para as suas necessidades. Toda a humanidade, não digo parte da humanidade”.47 O velho slogan “ homo homini lupus” está a ser substituido pelo slogan “ homo homini salus”! Eis como Pio XII deixou escultoricamente precisado o fim da Economia — a Pessoa humana integral (não só corpo mas também espírito) e universal (não só de uma região ou de um país, mas de todas as nações) —: “ Todo o homem, como ser vivo dotado de razão, tem efectivamente da natureza o direito fundamental de usar dos bens materiais da terra, muito embora seja deixado à vontade humana e às formas jurídicas dos povos o 44

Cairo, 1956; (88 pp.). Londres, 1957; (168 pp.). 46 in La Chiesa di Cristo è ormai superata?, Edizioni “ Pro Civitate Christiana”, Assisi, 1961, p.24. 47 ibi, p.22. 45

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regular-lhe mais particularmente a actuação prática. ... O Direito originário sobre o uso dos bens materiais, por estar em conexão íntima com a dignidade e com os outros direitos da pessoa humana, oferece-lhe a ela com as outras formas supra indicadas uma base material segura, de importância suma, para se elevar ao cumprimento dos seus deveres morais”. 48 “ À danosa economia dos decénios passados — observa o Pontífice na Rádiomensagem natalícia de ‘42 49 — durante os quais toda a vida civil esteve subordinada ao estímulo do lucro, sucede agora uma concepção não menos danosa, a qual, enquanto vê tudo e todos sob o aspecto político, exclui toda a consideração ética e religiosa”. Todavia, ensina o Papa: “ Origem e escopo essencial da vida social quer ser a conservação, o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da pessoa humana, ajudando-a a actuar rectamente as normas e os valores da religião e da cultura, consignados pelo Criador a cada homem e a toda a humanidade, já no seu conjunto, já nas suas naturais ramificações”.50 Impõe-se urgentemente destruir todos os egoismos e imanentismos acumulados pelos séculos, e reconstruir uma mentalidade humana e cristã, a fim de instaurar “ uma nova ordem social, implorada, digna de Deus e do homem”, capaz de infundir “ novo impulso galhardo e nova onda de viço e crescimento em todo o florescer da cultura humana. Guardai a chama nobre do espírito social fraterno...”!51 * *

*

48

Pio XII, Radiomessaggio pel cinquantenario della “ Rerum Novarum” (I/VI/41); in I. Giordani, Le Encicliche Sociali dei Papi, 4ª ed., Roma, 1956, p.723. 49 ibi, p.753. 50 ibi, p.752. 51 Pio XII, Radiomessaggio pel cinquantenario della “ Rerum Novarum”; in I. Giordani, o.c., pp.729-730. 125


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I PATOLOGIA DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Esta nossa sociedade contemporânea pode ver-se já inaugurada com as primeiras revoluções industriais levadas a cabo na Grã-Bretanha, nos alvores do século XVIII. E não deixa de ser assás sintomático — a título de nota — terem aparecido nesse mesmo país, por essa altura, os primeiros movimentos sindicais: é típico o caso dos alfaiates londrinos que se associaram, na perspectiva negativa de novas técnicas, a fim de defenderem os seus interesses. Só, porém, na segunda metade do século XIX e por todo o século XX, esta nossa sociedade começou a revelar-se no seu tipismo de aporias e contradições e, ao mesmo tempo também, de descoberta de valores novos redentores. O nosso diagnóstico vai incidir especialmente sobre a sociedade ocidental contemporânea, enquanto possuidora, ao menos, da consciência de padrão e mestra de civilizações. O próprio mundo marxista, tão homogéneo e compacto (à parte o que deva dizer-se em contrário) não constitui um fruto abortivo mas natural da civilização ocidental europeia? Medo da Liberdade (... e nunca se apregoou tanto!...) que por sua vez se radica na noção e realidade da Alienação, constituem as duas esfinges de miragem e desarticulação caótica da vida na Democracia do século XX!

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Temos presente a panorâmica que nos oferece Erich Fromm, no seu judicioso livro — Psicanálise da Sociedade Contemporânea.1 — A sua plataforma de diagnose é a Psicanálise Humanista (bastante diversa da psicanálise freudiana), cuja tese principal afirma “ que as paixões básicas do homem não estão arraigadas em suas necessidades instintivas, mas nas condições específicas da existência humana, na necessidade de encontrar nova relação do homem com a Natureza, após haver perdido a relação primária da etapa pré-humana”.2 A sociedade ocidental pensa viver na maior das normalidades. Mas seremos de facto normais e mentalmente sàdios? — Violámos milhares de tratados de paz; amontoámos em cem anos mais riqueza material que a conseguida por qualquer sociedade da História da humanidade, para destruirmos grande parte em duas guerras que mataram, também, milhões de pessoas; os nossos sistemas económicos são de tal sorte que uma boa colheita constitui um desastre e temos de restringir a produtividade agrícola para “ estabilizar o mercado”, enquanto milhões de criaturas sentem privações e outras morrem de fome (segundo as estatísticas da FAO). Sensação geral de tédio... e o alcoolismo, os narcóticos, e o suicídio como seus remédios de fuga!... Provirá a deficiência apenas do “ desajustamento” dos indivíduos na sociedade? ou antes do “ desajustamento” das próprias estruturas e da cultura? É que “ o objectivo de todo o desenvolvimento sócio-económico do mundo ocidental é a vida materialmente confortável, distribuição relativamente igual da riqueza, democracia estável e paz, e os países que mais se aproximaram da realização desse objectivo apresentam os mais sérios sintomas de desequilíbrio mental!” 3 Certos sociólogos atreitos ao relativismo sociológico não admitirão que toda uma sociedade possa estar enferma. Enquanto relativistas, não possuem ideal social algum que possa constituir meta; enquanto estudiosos do homem, desconhecem que a natureza hu-

1

2ª edição, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1961. (O original intitula-se “ The sane Society”: o autor é optimista e sabe fazer crítica construtiva). 2 ibi, prefácio, p.12. 3 ibi, p.24. 128


mana não é historicamente fixa. “ Assim como o homem transforma o mundo em seu redor, também ele se auto-transforma no processo da História”.4 A doença mental da nossa sociedade não se patenteia como o defeito individual, fàcilmente diagnosticável, mas, como neurose colectiva que é, apresenta-se como um “defeito socialmente modelado”, em que os indivíduos enfermos já não têm sequer consciência da sua doença, por não se sentirem, no confronto, diferentes dos outros. A psicanálise humanista e normativa preocupar-se-á, pois, pela pesquisa da patologia das comunidades civilizadas; saberá enfrentar, sem ilusão, os conflitos entre a natureza humana e a sociedade; e encaminhará, depois, o homem, na e com a sociedade, para a realização da sua plena natureza. Quando a vida se tornou cônscia de si mesma, isto é, quando o animal se arrancou à Natureza e passou do passivo ao activo, transcendendo-a e tornando-se, também, biològicamente mais desamparado (necessitando, por isso, de indústrias para sobreviver), nasceu o homem! “ A necessidade de encontrar soluções sempre renovadas para as contradições da sua existência, de encontrar formas cada vez mais elevadas de unidade com a Natureza, com seus próximos e consigo mesmo, é a fonte de todas as forças psíquicas motivadoras do homem, de todas as suas paixões, seus afectos e ansiedades”. 5 Por consequência, o homem e as suas necessidades vitais não podem medir-se por determinadas formas sócio-económicas, mas pelas condições globais da sua existência. E, assim, a saúde mental do homem não pode medir-se em termos de adaptação do indivíduo à sua sociedade, mas, ao contrário, deve definir-se pela capacidade de adaptação da sociedade às necessidades do homem. “ A saúde mental — escreve Erich Fromm6 — caracteriza-se pela capacidade de amar e de criar, pela libertação dos vínculos incestuosos com o clã e o solo, por uma sensação de identidade baseada no sentimento de si mesmo como sujeito e agente das capacidades próprias, pela captação da realidade interior e exterior, isto é, pelo desenvolvimento da objectividade e da razão”. Já se pode notar como estamos bem longe das premissas materialísticas do século XIX e meramente fisiológicas de Freud.

4

ibi, p.27. ibi, p.38. 6 ibi, p.79. 5

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Desde o “ selvagem feliz” de Rousseau, o “ homo homini lupus” de Hobbes, a “struggle for life” biológica de Darwin, até ao “ homo sexualis” de Freud e ao “ homo oeconomicus” de Ricardo e da escola de Manchester, perpassa a mesma contradição fundamental e constante entre a natureza humana e a sociedade, que radica na suposta natureza associal do homem. Diverso do carácter individual, o carácter social é aquele “ núcleo da estrutura do carácter compartilhado pela maioria dos indivíduos da mesma cultura”, e tem por função “ moldar e canalizar a energia humana numa determinada sociedade, para que esta possa continuar funcionando, contìnuamente”7, de modo que as pessoas desejem comportar-se como têm socialmente de comportar-se. Estamos já suficientemente aptos a entender a situação do homem na sociedade capitalista. “ Assim, pois, o problema das condições sócio-económicas da sociedade industrial moderna, que criaram a personalidade do homem ocidental moderno e são causadoras das perturbações da sua saúde mental, exige o conhecimento dos elementos específicos do modo capitalista de produção, de uma “ sociedade aquisitiva” numa era industrial”.8 Podemos anotar, com Erich Fromm, as arquitraves estruturais do Capitalismo: — 1) Os homens são política e jurìdicamente livres; 2) Como tais, operários e empregados vendem no mercado, por contracto, o seu trabalho ao proprietário de capital; 3) O mercado de bens é que fixa os preços e regula a produção social; 4) Os indivíduos actuam com o objectivo de conseguir o máximo de utilidade para si mesmos, supondo-se que o processo de competição faça resultar a maior vantagem possível para todos.9 Desde o século XVII ao século XX, o capitalismo foi-se alargando dos monopólios de produtos e mercados aos trusts e constelações industriais. Latentes sempre os mesmos factos a demonstrar a mesma neurose: o homem em função da sociedade e da eco-

7

ibi, pp.87,88. ibi, p.91. 9 ibi, p.92. 8

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nomia! O lucro — não o activo do trabalho em si, mas o passivo resultante dos investimentos — móbil de toda a actividade económica. “ Nós não escolhemos os nossos problemas, não escolhemos os nossos produtos; somos empurrados. Que força nos impele? Um sistema que não tem nenhuma finalidade nem meta fora de si mesmo e que converte o homem em seu apêndice”.10 Parece óbvio que no século XX desapareceu em boa parte a exploração capitalista habitual do século XIX; isso, porém, não deve iludir-nos sobre o princípio comum latente, aliás característico de todas as sociedades de classe, do emprego do homem pelo homem. “ O uso do homem pelo homem é expressivo do sistema de valores que serve de base ao sistema capitalista. O capital, o passado morto, emprega a vitalidade e a força do presente. Na hierarquia capitalista de valores, o capital ocupa lugar mais elevado do que o trabalho, as coisas acumuladas mais que as manifestações da vida”. ... “ O conflito entre o capital e o trabalho é muito maior do que o conflito entre as classes, maior do que uma luta pela participação no produto social. É o conflito entre os princípios de valorização: o conflito entre o mundo das coisas e sua acumulação e o mundo da vida e sua produtividade”.11 Toda a gente dá conta das mudanças flagrantes do século XIX para o século XX: maior uso da técnica e da electricidade, actualização da máquina a vapor, reactores atómicos... tudo, em suma, o que trouxe a segunda revolução industrial. Se o “ carácter social” do capitalismo — século XIX foi essencialmente competitivo, explorador e individualista, o do capitalismo — século XX toma uma orientação receptiva e mercantil12 e substitui a competição pela tendência para o “ trabalho em equipe”; “ em lugar da tendência para os lucros incessantemente crescentes, o desejo de uma renda fixa e segura; em lugar da exploração, a tendência para partilhar e generalizar a riqueza, e para manejar os outros e a si mesmo; em lugar da autoridade racional e irracional, porém franca, encontramos a autoridade anónima, a autoridade da opinião pública e do mercado; em lugar da consciência individual, a necessidade de adaptar-se e ser

10

ibi, p.95. ibi, p.102. 12 Nota a alternância — produção, mercado — como lei da história económica... 11

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aprovado pelos demais; em lugar do sentimento de orgulho e domínio, um sentimento cada vez maior, embora acentuadamente inconsciente, de impotência”. 13 O Social não subiu, porque o espírito não mudou!... Já não corremos o risco de nos transformarmos em escravos, mas — o que é pior ainda — de nos tornarmos autómatos.14 —QUANTIFICAÇÃO: matérias-primas, maquinaria, mão-de-obra, lucros, tudo é medido pelo mesmo valor monetário que tudo compara sem distinções. —ABSTRACTIFICAÇÃO: com a divisão crescente do trabalho, o operário não sente a relação concreta com o produto concreto, em sua totalidade; só o director da empresa está em relação com ele, mas considera-o tão sòmente valor de câmbio! Poderia objectar-se que, sem a quantificação e a abstractificação, seria inconcebível a moderna produção em série. O que nós, porém, deploramos é que estes dois fenómenos transcenderam o campo da produção económica e invadiram o homem na sua atitude para com as coisas, enquanto a actividade económica lhe polarizou despoticamente as atenções. À semelhança do que sucedia com os bens económicos, o valor de uso, concreto, do trabalho humano, tornou-se secundário, enquanto se erigia como valor primário, o valor de câmbio, abstracto. O homem veio assim definido um “ animal que produz”! Contudo, “ no processo do trabalho, isto é, no processo de moldar e alterar a Natureza exterior a ele, o homem molda-se e altera-se a si mesmo”.15 Eis a razão por que ele pode sair alienado. Nos últimos decénios, volvida mais atenção para a situação do trabalhador, tem-se levado a cabo cursos de estudo e congressos sobre o “ problema humano da indústria”; o que, porém, se devia estudar é “ o problema industrial dos seres humanos”! — ALIENAÇÃO: o espectro radical das neuroses contemporâneas! O processo da Alienação faz que o homem, de facto, “ não se sinta a si mesmo como portador activo de seus poderes e riquezas, mas como uma “ coisa” empobrecida que depende de poderes

13

Erich Fromm, Psicanálise da Sociedade contemporânea, o.c., p.106. Adlai Stevenson, in discurso na Columbia University, 1954. 15 Erich Fromm, o.c., p.178. 14

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exteriores a ele e nos quais projectou sua substância vital”. 16 O homem resulta, deste modo, um adorador de ídolos, servidor de um “ golem” (autómato, coisa sem alma, homem artificial = monstro) construido por suas mãos. Um dos fenómenos significativos de toda uma cultura alienada é o fenómeno da burocratização que invadiu a administração dos negócios e do governo, os sindicatos, os grandes partidos socialistas democráticos dos países ocidentais, sem falarmos já na máquina gigantesca e férrea da Rússia soviética, países satélites e China comunista. “ O burocrata relaciona-se com o mundo como mero objecto da sua actividade” — escreveu algures com muito acerto Karl Marx. Apraz-nos transcrever aqui uma bela e ainda bastante actual passagem de Marx, que chega a tocar as raias do paradoxo, acerca da função alienadora do dinheiro, no processo de aquisição e consumo: “ O Dinheiro... transforma as forças humanas reais e naturais em ideias meramente abstractas e, portanto, em imperfeições, e, por outro lado, transforma as imperfeições reais e fantasias, as forças que só existem na imaginação do indivíduo, em forças reais... Transforma a lealdade em vício, os vícios em virtude, o escravo em senhor, a ignorância em razão, e esta em ignorância... Quem pode comprar valores é valente, embora possa ser cobarde... Considera o homem como homem, e suas relações com o mundo como relações humanas, e só poderá trocar amor por amor, confiança por confiança, etc.. Se deves gozar a arte tens de ser uma pessoa artisticamente preparada; se queres influir em outras pessoas, tens que ser alguém que exerça sobre elas uma influência realmente estimulante e propulsora. Todas as tuas relações com o homem e com a Natureza têm de ser uma expressão definida de tua vida real, individual, correspondente ao objecto de tua vontade. Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor como tal não produz amor; se, mediante uma expressão de vida como pessoa que ama não fazes de ti mesmo uma pessoa amada, então teu amor é impotente, é um infortúnio”!17 O século XIX manteve uma orientação acumulativa — produzir e acumular! O século XX expandiu-se numa orientação consumista — produzir e consumir: as

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ibi, p.128. “ Nationalökonomie und Philosophie”, 1844; publicado em Die Frühschriften, de K. Marx, Alfred Köner Verlag, Stuttgart, 1953, pp.300 e 301; cit. in Erich Fromm, o.c., pp.135-136. 17

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guerras “ quentes” são também elas postulado das guerras “ frias” ou guerras de economia. Nas suas relações mútuas, os homens da sociedade contemporânea cairam no anonimato, fizeram-se átomos ou meros indivíduos na mecânica social. Nas próprias relações privadas predomina o lema egoístico e acristão: “ Cada um por si e Deus por todos”! Nas relações consigo mesmo, o homem perdeu o seu “ Eu” de Pessoa, para se identificar com as coisas! A rotinização da vida eliminou-lhe da consciência os problemas básicos da existência humana. A Troca tornou-se, na sociedade capitalista do século XX, um fim em si mesma: “perdeu sua função racional como mero meio para fins económicos e converteu-se num fim em si, estendendo-se a esferas não económicas. ... o amor à troca substituiu o amor à posse”.18 Como é o homem do século XX? — Um homem tremendamente alienado, económica e polìticamente, social e culturalmente! A natural tensão humana de autonomia e dependência foi fàcilmente resolvida no suposto equilíbrio de paternalismo e submissão, de proteccionismo e sujeição, verificado entre Estados protectores e Estados protegidos, ao nível dos Governos internos das Nações, a plano da Escola com educadores paternalistas e educandos “ em ordem” ...! Observa judiciosamente Carlos de Mello 19: “ Paralelo será o caso das máquinas estaduais em que, para a ascensão a qualquer cargo de importância, é condição “ sine qua non” ser-se um protegido que diz “ amen” a tudo quanto é arbitrariamente ordenado”! Não há consciência política generalizada (nem mesmo por parte das elites governamentais, porque estas estão profundamente viciadas: administram os seus interesses em vez de administrar o Bem-comum!) — porque não há nível de instrução e educação suficiente do conjunto social. Por isso não singram — como deviam — as Democracias! “ O Desejo de liberdade inerente à natureza humana, dum lado, e a inevitável simbiose da protecção com a submissão, do outro, fazem surgir uma situação de conflito comum a toda a Humanidade”.20

18

E. Fromm, o.c., p.149. Círculos Viciosos, Lisboa, 1963, p.19. 20 ibi, p.20. 19

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As atitudes de repressão política ou educacional só podem ter duas consequências: ou servilismo estagnante e amorfo, para os conformistas, ou revolta mais ou menos explosiva, para os inconformistas. Quanto ao educando passa-se o mesmo: “ o jovem educado com grande rigidez, demasiado reprimido na sua natural pujança e curiosidade, tenderá a ser um adulto falho de dinamismo ou um espírito revoltado, eivado de agravos para com o mundo que o rodeia”.21 Não se passará isto tanto em certos institutos eclesiásticos e religiosos? Os liberalismos conduzem à dissolução e anarquia; os socialismos que não são socialização, e as ditaduras com a sua disciplina excessiva levam à cristalização mental e à estagnação social. Qual será a solução? — O individualismo liberalístico opõe-se ao socialismo colectivístico como o indivíduo se opõe à sociedade! Só o indivíduo-Pessoa pode, com efeito, integrar-se socialmente na sociedade, permanecendo ele mesmo fonte natural de sociedade. Mas, infelizmente, não se presta muita fé ao inteiro credo libero-democrático!... Os “ leaders” deixam de auscultar o povo, porque reputam isso inútil ou supérfluo ou nem sequer pensam em tal; e “ um chefe que deixe de auscultar o povo que representa, passará, mais cedo ou mais tarde, a ditador, porque serão os seus desígnios que virão a prevalecer”.22 E Cristo que era Chefe declarou que não veio para ser servido mas para servir! E a única tensão real e justa da evolução do homem na sociedade consiste na Protecção  Submissão versus Liberdade  Independência, que é capacidade de dar e realizar, porque se tem. Pelo excesso dos dogmatismos e pela ausência de discussão franca e inteligente, as sociedades foram deterioradas por uma ética obscurantista e fanática! É terrìvelmente sintomático que os países africanos e, em geral, quase todos os países não evoluidos ou semi-evoluidos, em face da opção extrema liberalismo-totalitarismo, resolvam pelo segundo. Não há discussão e agitação livre dos problemas, até por-

21 22

ibi, p.26. ibi, p.38. 135


que, radicalmente, o seu estado psíquico-cultural, diante dos povos civilizados e intelectuais, é precário ou nulo. As experiências políticas conhecidas parecem apontar todas, infelizmente, o mesmo círculo vicioso: “ o povo atrazado só consegue um mínimo de ordem, de organização e estabilidade, quando é submetido àquele tipo de governo e respectiva infra-estrutura política que, por outro lado, vai impedir (ou retardar grandemente) o progresso económico e social”.23 Mas a ditadura, tanto política como económica24, é reprovável por sua natureza, e seria cair no relativismo ético admiti-la que fosse nos períodos de confusão, como uma espécie de anti-vírus da anarquia! O investimento intelectual será o primeiro dos investimentos económicos e políticos a fazer para conduzirmos as sociedades “ à ordem sem opressão, à paz social sem estagnação, à liberdade individual sem anarquia, e a mais justa distribuição da riqueza sem esmagar o empresário e as suas fontes de capital”. 25 Outra neurose da sociedade contemporânea é o imobilismo das crenças, sejam elas credos religiosos, culturais ou políticos. O conformismo sentimental condena, a priori, sem discussão, o que é novo, simplesmente por não se enquadrar nos dogmatismos existentes. Esta abdicação da inteligência gera a ignorância e o receio, inseparáveis, que por sua vez explodem no irenismo e na agressão e na xenofobia. Sintoma de estagnação é a senilidade social de certos povos que teimam em ancorar-se excessivamente no tradicionalismo, arraigados como estão à imutabilidade de sistemas ultrapassados. Voltados para os seus avoengos com um culto que sabe a idolatria, estes povos vivem uma espécie de neurose do passado, agoiram o futuro, à “ velho do Restelo”, e perdem o sentido realista e universalista, entrincheirando-se no idealismo dos círculos fechados sobre si mesmos: são, em suma, um obstáculo sério a uma sociedade progressiva e sã! Outro círculo vicioso constituem as pretensões de criar a todo o custo as chamadas indústrias de prestígio, e as construções de fachada, que o povo não está apto a receber nem a economia de um país a suportar! 23

ibi, p.76. ou as duas fundidas, pois estas duas ordens andam realìsticamente amalgamadas no mundo de hoje. 25 C. de Mello, o.c., p.79. 24

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E não estará também profundamente abalada a consciência religiosa do homem contemporâneo? — Como pode desenvolver-se tal consciência, quando o princípio de vida é a conformidade e o mimetismo das atitudes? Certos “ renascimentos religiosos”, a que assistimos actualmente, parecem estar a desfechar o pior golpe contra o monoteismo, enquanto se referem a Deus como “ o homem que está lá no sótão”: — Antropomorfismo, idolatria! Sabe-se, porém, que o monoteismo professa um Deus uno e inefável, e é inimigo visceral de todos os ídolos e alienações; o homem, criado à imagem de Deus, é por isso também ele inefável e insusceptível de plena compreensão, aliás ingressaria na teoria das coisas, em tal hipótese. Quando o homem alienado se tornou coisa, teve a presunção de considerar antropomorficamente Deus como homem!... A religião está hoje, em boa parte, mais a fazer “ sózias”... do que imitadores conscientes de Deus! Cauterizando a alienação religiosa, escreve Erich Fromm26: “ Em vista de a alienação do homem moderno ser incompatível com o monoteismo, poder-se-ia esperar que os pastores, os sacerdotes e os rabinos formassem a ponta de lança da crítica ao capitalismo moderno. Conquanto seja verdade que se tenha feito essa crítica por parte das altas hierarquias da Igreja Católica, e que também tenha sido feita por muitos pastores, sacerdotes e rabinos não situados em plano tão elevado, todas as Igrejas pertencem essencialmente às forças conservadoras da sociedade moderna e empregam a religião para manter o homem tranquilo e satisfeito com um regime profundamente irreligioso. A maioria deles parece não se aperceberem de que esse tipo de religião degenerará fàcilmente em idolatria ostensiva, a menos que eles próprios comecem por definir e, depois, a combater a idolatria moderna, em vez de emitir juizos sobre Deus, empregando assim um santo nome em vão — em mais de um sentido”. Prefere-se louvar a paciência e a humildade dos pobres: aquelas mesmas características que farão com que continuem pobres! A Revolução religiosa actual terá de começar, antes de mais, com um gigantesco investimento de Instrução religiosa a todos os níveis e, vitalmente, em todos os estratos 26

o.c., p.177. 137


sociais. É premente, dum modo especial, a multiplicação de Universidades livres, sem preconceitos laicos nem credos subdolamente neutrais, Universidades Católicas, e a criação de Universidades Sociais, isentas de dogmatismos restrictivos! Diagnosticando os gonzos das perturbações nas sociedades contemporâneas podemos resumir com A. Alçada Baptista27: “ 1) ideia de evolução das sociedades do particular para o geral, do espontâneo para o organizado, da casuística para a previsão planificada; 2) conhecimento da natureza humana, da sua tragédia, dos seus erros por inteligência e por vontade; 3) ter presentes as condições óptimas de existência da pessoa na comunidade; 4) esta forma ideal de comportamento está condicionada pelas exigências de uma realidade social e histórica determinada; 5) capacidade crescente das sociedades de se exprimir em poder que organiza e impõe as normas de uma ideologia informante; 6) a penetração do real com vistas à sua alteração — o poder em acção — entra nas sociedades através dos actos da vontade humana; 7) o estádio em que o mundo de hoje se debate, na sua vida social, exige que se possa prever o dia de amanhã”.

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II ESBOÇO DE UMA TERAPÊUTICA GERAL: — 27

Notas sobre a Perturbação de certas sociedades contemporâneas, in Rev. “ O Tempo e o Modo”, NºI, Jan. de 1963, pp.3-11, resumo p.8... 138


Denunciámos alguns dos vícios da personalidade alienada e mercantil do século XX. Vimos que era, fundamentalmente, “ a descrição de um ‘ égotisme à deux’, de duas pessoas que juntam seus interesses comuns e permanecem unidas contra um mundo hostil e alienado”.1 É uma sociedade total, organizada sobre um motivo económico — o Lucro! Neste parágrafo demandamos os caminhos para a sanidade, que poderíamos esquematizar do seguinte modo: a) Transformação económica; b) transformação social e Comunidade de Trabalho — modelo; c) métodos democráticos. Como premissa impõe-se-nos uma noção básica de saúde mental de uma sociedade. “ A saúde mental, no sentido humanista, — esclarece-nos Erich Fromm2 — caracteriza-se pela capacidade para amar e para criar, pela libertação dos vínculos incestuosos com a família e a Natureza, por um sentido de identidade baseado no sentimento do eu que a criatura tem como sujeito e agente de seus poderes, pela captação da realidade interior e exterior a nós mesmos, isto é, pelo desenvolvimento da objectividade e da razão”. Não se trata, nesta terapêutica, de forjar contraposições ou fazer substituições, que nunca engendrariam nada concreta e eficazmente; trata-se outrossim de perscrutar o filão de continuidade sã, a evolução renovadora e o progresso social que vai analizado e projectado de acordo com uma pauta de três pontos fundamentais: “ — a necessidade de explicitar um certo referencial filosófico, reconhecidamente extra-científico; — o diagnóstico objectivo sobre a situação histórica perante a qual o investigador se debruça; — a elaboração de uma sociedade óptima, susceptível de funcionar como pólo de convergência da evolução social”. 3 É oportuno também fazermos uma observação prévia sobre o Marxismo, que tanto se empenhou em operar a libertação do homem na História (o comunismo não é para 1

Erich Fromm, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, 2ª ed., Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1961, p.198. 2 ibi, p.201. 3 Mario Murteira, Crescimento económico e Sistemas sociais, Lisboa, 1962, p.247; (o sublinhado é nosso e intencional). 139


Marx o termo da alienação?), expurgando-o dos dois vícios congénitos: o dogmatismo anti-científico e a sujeição fatal a um determinado condicionalismo histórico (historicismo determinístico!). Assim estaremos aptos a encontrar toda a positividade de Marx. De resto, não é isto mesmo que insinua o Papa João XXIII, na sua imorredoira ‘Pacem in Terris’, quando nos ensina a distinguir o Materalismo dialéctico-histórico do Socialismo  comunismo económico-social-político? “... cumpre não identificar falsas ideias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem com movimentos históricos de finalidade económica, social, cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas ideias filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina uma vez formulada é aquilo que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, é susceptível de alterações profundas. Aliás, quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da recta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos dignos de aprovação?” 4 Qual será a terapêutica número um, o elixir da restauração do homem alienado e da sociedade “ económica” contemporânea? — O reconhecimento e garantia da Liberdade ao homem! Não há progresso senão em liberdade — escreveu Alain — e esta liberdade é por natureza criadora — ensinou Bergson. As sociedades actuais acham-se, por conseguinte, perante uma opção radical: ou são abertas, econòmicamente eficazes e empenhadas na promoção das classes trabalhadoras, ou são fechadas e monolíticas, porventura capazes de uma transformação social acelerada, mas a custo de um bom número de liberdades pessoais sacrificadas! Antolha-se pois o dilema: ou tendência franca e decidida para a Democracia em todos os planos, ou tendência inevitável para a idolatria totalitária! Todas as críticas ao capitalismo moderno que empreenderam Burckhardt ou Proudhon, Tolstoy ou Baudelaire, Thoreau ou Huxley, Marx ou Kropotkin, Durkheim ou Friedmann, assemtam nos princípios: “ O Homem é um fim, jamais devendo ser usado como um meio; a produção material deve servir ao homem, este jamais deverá servi-la; o

4

‘ Pacem in Terris’; ed. da União Gráfica, Lisboa, 1963, pp.57-58. 140


objectivo da vida é a libertação do poder criador do homem; o objectivo da História é a transformação da sociedade em coisa governada pela Justiça e pela Verdade”.

5

Tais princípios foram radicalmente desprezados pelo totalitarismo fascista, nazista e estalinista, e pelo hiper-capitalismo tanto do teor do Socialismo de Estado marxista como do teor da “ Administração incentivadora” liberalística de James F. Lincoln6, que vê a solução no fomento do espírito de competição e egoismo em todos os funcionários e trabalhadores, de modo que o capitalismo possa abarcar a nação inteira. Nas reacções e movimentos surtos pela crítica ao capitalismo, o próprio Socialismo que de si se afigurou, nuclearmente, mais como ideologia social que como programa político-económico, à maneira do fascismo ou do estalinismo, — tornou-se antipático e para muitos ‘res vitanda’, pois associavam-lhe logo ideias de materialismo, ateismo, hecatombe... e sangue, confundindo-o, nefastamente, com o marxismo das piores concepções. Nas suas revisões críticas, porém, o que os socialistas de boa cepa mais repudiam no seu socialismo é exactamente o materialismo — característica fundamental do capitalismo —, o que, ao invés, é motivo para os liberalistas censurarem o socialismo!... ironia dialéctica da história, jogo de cegos, abdicação da inteligência e incensação do Rei-Preconceito e Rei-Sentimento paralizado! Charles Fourier, em ‘Théorie des Quatre Mouvements’ (1ª ed. 1808), é bem clarividente e incisivo; assim o interpreta Erich Fromm: “ Contra a organização universal de grandes monopólios em todos os ramos da indústria, ele postula associações comunais no campo da produção e do consumo, associações livres e voluntárias, nas quais o individualismo se combinará espontaneamente com o colectivismo. Sòmente dessa forma poderá a terceira fase histórica, a da harmonia, substituir as duas primeiras: a de sociedades baseadas nas relações entre escravo e senhor, e aquela entre assalariados e empresários”.

7

Em carta a Marx, já Proudhon manifestara o grave perigo do dogmatismo, que tão pernicioso resultou na evolução do marxismo, particularmente Lenine-estalinista. E noutra carta a Jules Michelet (Janeiro de 1860) Proudhon comentou argutamente: “ O Velho

5

Erich Fromm, o.c., p.228. Incentive Management, ed. pela Lincoln Electric Company, 1951, de que foi dirigente o autor durante trinta e oito anos. 7 o.c., p.243. 6

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Mundo encontra-se num processo de dissolução... a qual só pode ser modificada pela revolução integral nas ideias e nos corações”. Como para os outros socialistas, o interesse básico do próprio Marx é o homem: “Ser radical (era sua ideia constante nos Escritos da Juventude e na Economia nacional e Filosofia) — significa ir à raiz, e a raiz — é o próprio homem”. Karl Marx viu na transformação da sociedade do capitalismo para o socialismo o único processo de libertação (desalienação!) e emancipação do homem, para uma democracia autêntica. É claro que Marx e Engels foram seriamente vitimados pelo preconceito tradicional do domínio da esfera política sobre a esfera económico-social, o que contaminou toda a sua terapêutica anti-capitalística, reduzindo-os, assim, via materialismo, à idolatria do económico e ao denominador comum agravado do super-capitalismo! Todavia, a libertação do homem e a recuperação da sua liberdade e autenticidade não eram, primariamente, para o Fundador do Marxismo, uma questão política de simples mudança de regime ou governo, mas, antes, uma questão mais profunda de transformação estrutural económica e social da sociedade. A verdadeira falha de Karl Marx consistiu na suposição ingénua de que a socialização dos meios de produção era, não apenas condição necessária mas também suficiente para transformar a sociedade de capitalista em sociedade cooperativa socialista. Mau grado os seus simplismos que o lançaram nos erros, o intento de Marx era uma economia humana , racional, e por isso mais produtiva. Já nos podemos dar conta que o que está radical e profundamente mal, não é tanto o comunismo nem o capitalismo contrário, porquanto estão bem ancorados e defendidos, em polémica apaixonada e cega, parte a parte. O Comunismo, com as suas contradições internas, reduz-se claramente ao capitalismo: os homens permanecem proletários = alienados — o facto trágico da sociedade capitalista! A raiz do mal está, então, num ponto comum de encontro: o nosso sistema industrial que é congènitamente alienador. Não basta, portanto, reformar os homens e as mentalidades (seria simplístico!); é necessário e urgente reformar as estruturas de base, em virtude, até, da sua mútua interdependência com os homens e as mentalidades. Só assim, a auto-consciência pessoal crescente, que derrubará o sentimento de alienação, pode tornar-se plenamente eficaz. 142


Nos caminhos para a sanidade, a transformação económica é, por conseguinte, primordialíssima. Esta transformação não pode hoje ser concebida senão nos carris do socialismo (já vimos eliminadas as outras soluções) — a única solução construtiva que visa à reorganização estrutural do nosso sistema económico-social, a fim de que o homem seja respeitado como sujeito e senhor, e à criação de uma ordem social, onde sejam francamente defendidas e estimuladas a solidariedade humana, a razão e a produtividade. Mas não na senda do socialismo marxista que supôs ter o problema resolvido com uma sociedade socialista, fundada nestas duas premissas: a socialização dos meios de produção e distribuição e uma economia centralmente planeada. A solução positiva e fecunda será a do Socialismo Comunitário, que propõe uma organização social onde “ todo o trabalhador seria um participante activo e responsável, onde o trabalho seria atraente e significativo, onde o capital não empregaria o trabalho mas o trabalho empregaria o capital”.8 O ideal do Socialismo comunitário cifra-se, finalmente, em duas palavras: gerência directa. Elucida-o esplendidamente Cole, quando escreve: “ Fundamentalmente, a velha insistência no tocante à liberdade é certa; ela foi afastada, porque considerava a liberdade apenas em termos de autonomia política. O novo conceito de liberdade deve ser mais amplo. Deve incluir a ideia de homem não apenas como um cidadão num Estado livre, mas como um sócio numa comunidade industrial... “A liberdade política por si só é, na realidade, sempre ilusória. Um homem que viva subjugado, durante seis ou sete dias por semana, não pode tornar-se livre apenas por assinalar uma cédula eleitoral em cruz, de cinco em cinco anos. Para que a liberdade tenha algum sentido para o homem médio, ela deverá incluir a liberdade industrial. … “ A doença da civilização não é tanto a pobreza material de muitos, mas a decadência do espírito de liberdade e confiança própria. A revolta que modificará o mundo não emergirá da benevolência que gera a ‘reforma’, mas do desejo de ser livre. Os homens agirão juntos, na plena consciência de sua dependência mútua; mas agirão por si. ... “ Os socialistas não devem procurar, portanto, atrair os trabalhadores com as perguntas: ‘Não é desagradável ser pobre?’, ‘Você não nos ajudará a erguer os pobres?’, mas 8

Erich Fromm, o.c., p.274. 143


da seguinte forma: ‘A pobreza é apenas um sinal da escravidão humana: para curar esse mal você deve deixar de trabalhar para outros e acreditar em si mesmo’. A escravidão salarial existirá enquanto existir um homem ou uma instituição que seja o senhor dos homens; ela desaparecerá quando os homens aprenderem a colocar a liberdade acima do conforto”.9 Apesar das diferenças consideráveis, não deixa de ser bom sintoma o facto de esta temática do Socialismo comunitário ser substancialmente comum a sindicalistas, anarquistas, socialistas sindicais e aos próprios socialistas marxistas que avançam em ver a tarefa do Socialismo não na Revolução Política a empreender contra os factos do totalitarismo, tanto bolchevista como das ‘sociedades de gerência’ (‘managerial society’) que alargou imenso, materialmente, a economia; — (tal atitude seria análoga àqueloutra de há um século que se opôs em vão à revolução industrial!) —; mas, outrossim, na civilização e investimento de relações humanas verdadeiras na sociedade industrial e nas suas estruturas. O Trabalho é, então, o problema fundamental, numa sociedade industrial, a concentrar as atenções e a exigir uma reforma: ele terá que ser atraente e significativo, a fim de poder humanizar-se perfeitamente. Se perguntarmos ao trabalhador por que trabalha, encontraríamos mil motivações: o dinheiro, o lucro, a independência e o governo da vida, o prestígio, o estado social, o poder... — O que importa primariamente é distinguir bem os aspectos técnicos e sociais do trabalho, já para sabermos escalonar hierarquicamente os seus móbeis para o trabalhador situado, já para nos apercebermos do modo como conjugar o interesse e a participação activa e responsável, como motivações fundamentais, em ordem à desalienação e aperfeiçoamento crescente da pessoa humana livre e criadora. Elton Mayo10 chegou a estes resultados surpreendentes das suas pesquisas na Fábrica Hawthorne da Western Electric, em Chicago: a doença, a fadiga e a baixa produção resultante não são provocadas primàriamente pelo aspecto técnico monótono do trabalho, mas sim pela alienação do trabalhador da situação total do trabalho, nos seus as9

G.D.H. Cole e W. Mellor, The Meaning of Industrial Freedom, Londres, 1918, pp.3 e 4; cit. por Erich Fromm, o.c., p.276. 10 The Human Problems of an Industrial Civilization, The Macmillan Company, 2ª ed., Nova York, 1946; cfr. também Maria Susana G. de Almeida, Motivações no trabalho (inquérito aos operários das indústrias metalomecânicas da região de Lisboa) 144


pectos sociais: é a atmosfera social, criada por determinado grupo ou classe que prevaleceram. É significativo que a quase totalidade de queixas e denúncias do mundo operário de hoje não atinge tanto os aspectos técnicos do trabalho e o seu automatismo, mas os aspectos sociais e os desequilíbrios e injustiças gritantes. Têm-se ensaiado já, em vários países, Comunidades de Trabalho-piloto, com resultados magníficos.11 A Boimondau, por exemplo, uma das sete maiores fábricas de caixas de relógio da França, conseguiu abolir a distinção entre empresário e empregado, e desfazer qualquer suspeita de paternalismo, concentrando as preocupações de todos — mestres e empregados — na pesquisa em comum. “ O importante foi a pesquisa” — como nos refere o fundador Marcel Barbu. Os trabalhadores logo fizeram várias descobertas: cada um devia sentir a sua liberdade para criticar o outro; ansiavam todos por se educar e atingir toda a perfeição possível de homens. O poder é da competência da assembleia geral que, por sua vez, elege o Chefe. Nestas Comunidades de Trabalho-modelo, a ênfase não vai dada à aquisição conjunta, mas ao trabalho em conjunto, para a satisfação colectiva e pessoal. Este é o princípio que as leva a partir do próprio homem e não da fábrica ou da actividade técnica do homem. Nas Comunidades de Trabalho a alienação não vai medicada pela propriedade social dos meios de produção, mas pela participação dos trabalhadores na gerência e nas decisões, segundo o princípio da co-gestão, na empresa ou na fábrica. A verdade é que “ todas as sugestões no sentido da humanização do trabalho não têm por objectivo o aumento da produção, nem é sua finalidade a maior satisfação com o trabalho per se. Elas só têm sentido, numa estrutura social totalmente diferente, na qual a actividade económica seja uma parte — e uma parte subordinada — da vida social. Não se pode separar a actividade de trabalho da actividade política, do uso das horas de lazer e da vida pessoal”.12 Nesta linha, até o próprio sistema de segurança social existente deve ampliar-se a ponto de se transformar em garantia universal de subsistência. 11

Cfr. Claire Huchet Bishop, All Things Common, Harper and Brothers, Nova York, 1950. Vid. et. E. Fromm, o.c. pp.297 e ss. (são de interesse os excerptos e os comentários); cfr. et. Maria Manuela da Silva, Desenvolvimento comunitário (uma técnica de progresso social). 12 E. Fromm, o.c., p.316. 145


Impõe-se-nos também, para a consecução da sanidade mental da sociedade, a aplicação crescente e decidida dos processos democráticos nos três domínios que se intercompenetram, económico, social e político. A transformação política, que é tão urgente, porque também ela básica, deverá centrar-se na Democracia. É bem significativo que o ideal democrático seja incompatível com a sociedade alienada. José A. Schumpeter13 viu com certo realismo histórico a noção de Democracia: “O método democrático é um dispositivo institucional para chegar a decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir, mediante uma luta de competição para conseguir o voto das gentes”. “ Somente um movimento popular que vise à descentralização e ao espírito de iniciativa poderá sustar a tendência actual para o estatismo”.14 Os governantes que pretextam que “ cada povo tem o governo que merece” caem afinal no círculo vicioso de manter o povo a merecer o governo que tem!... Porque é ainda tão paradoxal o facto da Democracia nas sociedades contemporâneas? — De um lado, as decisões e as certezas forjam-se pelo critério maioritário, segundo o princípio democrático; do outro, sabe-se que as ideias certas, tanto na filosofia, na teologia, nas ciências, como na política, foram, originariamente, produto de minorias! O paradoxo tem a sua raiz na ainda actual falta de inteligência e consciência social. Que sucede hoje? — as decisões são tomadas numa atmosfera de votação em massa, como que em série; é uma sociedade-rebanho, sociedade de indivíduos, alistados “ por cabeça”. Ora só numa sociedade celular e pluralística, descentralizada e repartida em pequenos grupos instruidos e conscientes, o ideal democrático pode atingir a sua perfeita adequação: numa sociedade de pessoas, em suma, que não seja mais atomista mas comunitária. Toda a gente vê como todo este processus implica uma transformação cultural e religiosa profunda. E a alienação religiosa, nos próprios homens religiosos e nos cristãos, especialmente (porque em maior número e com mais responsabilidade!), é hoje tão diluviana e 13

Capitalism, Socialism, and Democracy, Harper and Brothers, Nova York e Londres, 1947, p.269; cit. por E. Fromm, o.c., p.189. — Cfr. et. Carlos de Mello, Círculos Viciosos, Lisboa, 1963, cap. V: Realismo Democrático. 14 Erich Fromm, o.c., p.221. 146


alarmante! Não é verdade que os objectivos humanistas da revolução económica coincidem perfeitamente com os ideais das grandes religiões monoteistas? — o homem — fim em si; o amor fraterno, o primado dos valores espirituais sobre os materiais!... os ateus contemporâneos encarniçaram-se, erradamente, no ataque à ideia de Deus; “ o seu objectivo real devia ser desafiar os religiosos a levar mais a sério a sua religião e, especialmente, o seu conceito de Deus; isso significaria os religiosos praticarem o espírito do amor fraterno, da verdade e da justiça, e, portanto, tornarem-se os críticos mais radicais da sociedade actual”.15 Não podiam e deviam todas as religiões, por sua natureza, unir-se “ na firme negação da idolatria, encontrando, talvez, muito mais fé comum nessa negação do que em quaisquer declarações afirmativas sobre Deus?”16 A religião precisa de se desalienar também, metendo a ênfase mais sobre a prática da vida e as obras, que demonstram a fé (“ fides sine operibus mortua est in semetipsa” — S. Tiago), do que sobre as crenças meramente doutrinárias. “ Já não estamos no centro do universo, já não somos a finalidade da criação, já não somos os senhores de um mundo manejável e reconhecível: somos uma partícula de pó, um nada, em algum lugar do espaço, sem nenhum tipo de relação concreta com coisa alguma”.17 O sentimento trágico do homem alienado contemporâneo! E o dilema contundente que certos homens de Religião propõem, como antídoto, — Deus ou nada! — não é exacto nem eficaz!... Era penetrante o P. Teilhard de Chardin, ao afirmar: “ Quando alguém, em plena sinceridade interior, se decidir (como cada vez mais sucederá a todo o homem em busca de santidade) a deixar, no fundo de si, a fé ascensional em Deus e a fé motriz no Ultra-humano para reagirem entre si, esse alguém sentir-se-á, de vez em quando, assustado (sem poder obstar a esse sentimento) perante a novidade, a audácia e, ao mesmo tempo, as possibilidades paradoxais que encerra a sua situação, intelectual e sentimentalmente

15

ibi, p.339. ibi, p.340. 17 ibi, p.124. 16

147


forçado a tomar, se quiser permanecer fiel à sua vocação, esta atitude: atingir o Céu pelo completamento da Terra”!18

*

*

18

cit. por Mário Murteira, in Crescimento económico e sistemas sociais, Lisboa, 1962, p.265. 148


III

AUTO-CRÍTICA DA ECONOMIA-DE-MERCADO: —

É facto sobejamente conhecido a orientação das sociedades capitalistas para a competição no Mercado. Não é exactamente por ele que elas necessàriamente se explicam? As economias nacionais clássicas mediam a sua riqueza, no balanço das importações e exportações, pela quantidade dos produtos; à medida que os mercados se foram abrindo, a nível continental e mundial, o critério da qualidade dos produtos foi prevalecendo. Hoje assistimos a uma transformação económico-social mais profunda: é a própria instituição-Mercado que está em crise e a manifestar-se contraditória! É o canto do cisne da Economia negociante ou de Mercado; o fim do “ homo oeconomicus” e o advento auspicioso do “ homo socialis”, verdadeiramente humano, numa economia consentânea, racional e humana, que só poderá ser a Economia da oferta e do Dom! Propomo-nos, neste parágrafo, fazer uma crítica geral à Economia de Mercado. Os factos que actualmente começamos a observar são de molde a que “ os móbeis e os procedimentos correntemente considerados como económicos, a procura do ganho e a troca mercantil, recuam em benefício dos móbeis orientados para bem da so149


ciedade inteira e de procedimentos que regem um grande número de actividades submetidas a cálculos colectivos e usando meios colectivos. “ Este desvio é observável entre os totalitários, entre os comunistas e nas democracias capitalistas, não parecendo, pois, à primeira vista, exclusivamente imputável a um regime político ou a um sistema económico”. 1 Os primeiros esboços de uma economia que tenta inserir-se plenamente nas exigências do Social e do Humano. A Sociedade negociante, que vemos surgir já com o capitalismo comercial e financeiro, anterior ao capitalismo industrial, foi definida por Karl Marx, citando e comentando A. Smith, como aquela sociedade, onde, após a divisão do trabalho, cada homem subsiste de trocas e se torna uma espécie de negociante, resultando, assim, a própria sociedade uma “ sociedade negociante”, com estas características fundamentais: a troca mercantil idolatrada, separada das relações humanas, sociais e religiosas; o Estado deixa de funcionar como super-visor político, para se confundir com uma pura administração de categoria superior. O mercado é protegido pela coacção do Estado, que o regulamenta, fixando os quadros dos preços. Contudo, “ numa sociedade organizada, os homens não podem trocar única e exclusivamente uma mercadoria. Trocam, nessa ocasião, símbolos, significações, serviços e informações”. 2 A troca económica não pode despir-se das suas vestes sociais. Além disso, as sociedades ocidentais ainda acreditam que certos valores como o Vital e o Sagrado escapam absolutamente ao preço e à troca. Numa sociedade negociante, os valores estimativos, artísticos, culturais e religiosos, não têm enquadramento possível, a menos que sejam reduzidos finalmente aos valores úteis: v.g., uma estatueta preciosa da China, um Moisés de Michelangelo, uma Guernica de Picasso, uma Missa! De resto, os valores estimativos, em geral, como profundamente pessoais que são, não deverão ser apreciados como pertença da Humanidade, na dimensão grande do Homem e não na dimensão pequena individualista e liberística do indivíduo? A pseudo-sociedade de mercado (‘pseudo-market society’ — J. M. Clark — é um liberal esclarecido que a verbera!), intimada, de fora, a provar a sua eficácia, tenta obviar 1 2

F. Perroux, Economia e Sociedade, Lisboa, 1962, p.10; (o sublinhado é nosso). ibi, p.16. 150


aos seus vícios e contradições com uma Economia redistributiva; os resultados, porém, não são satisfatórios... A Economia de mercado labora sob esta escala dicotómica de valores: valor de troca, primeiro; valor de uso, segundo. Dos dois aspectos básicos da economia, técnico-naturalístico de índole determinística, e humano-voluntarístico, especificamente humano, ela adopta o predomínio do primeiro sobre o segundo. É uma Crematística, sem alma, em bom rigor! Ao contrário, a Economia do Dom estrutura-se de modo inverso: o valor primário é o de uso; e o valor de troca é subsidiário. Reconhece plenamente o primado aos aspectos humano-voluntarísticos, porquanto sabe que a própria técnica é produto do homem e a economia deve servir e não dominar o homem. 3 O fracasso da Sociedade negociante e da economia de mercado pode ver-se apenas do exterior, na falha de referências sociais e humanas, e a terapêutica seria neste caso só externa, porque a doença foi reputada exógena e temporária. É erro! Na realidade, é a própria racionalidade da sociedade negociante que resulta irracional e desumana. O diagnóstico e a terapêutica deverão ser, pois, internos, e o estudo deve ser conduzido no domínio estritamente (não dizemos exclusivamente) económico e pelos meios da análise económica. Trata-se de uma auto-crítica da economia de mercado. A sociedade negociante subordina à troca mercantil tanto a coacção, exercida sobre os sistemas de preferências dos sujeitos e sobre os limites das suas funções do emprego e da transformação dos bens, como o dom, em todos os seus aspectos. Este aparece adulterado em equívocos grosseiros: — transferência ‘gratuita’ sem retribuição aparente; — transferência paternalística sem retribuição imediata, e com consequências de submissão aduladora; — transferência sem retribuição (para investimentos normalmente) com falha de intenção da parte do que dá (é o dom pródigo) que acarreta todavia atribuições económicas mais racionais que as da troca mercantil. — É bem diverso o Dom da Economia Humana de Serviço e Oferta gratuita!

3

Cfr. Giacomo Soleri, Economia e Morale, Torino, 1960, pp.323-338. 151


Troca, coacção e dom acabam por tomar, na sociedade negociante, uma e a mesma significação patente ou latente: aquisição, lucro e egoismo: a luta pela vida típica do mercado e a “ exploração” económica; com este lema: — Se não houvesse necessidades, não havia ninguém que se sujeitasse e servisse! A auto-crítica à economia de mercado pode estruturar-se perfeitamente nos quatro níveis de análise de François Perroux4: — 1) a Visão, colhida das reflexões teóricas de alguns economistas ocidentais: tanto o estado estacionário de Stuart Mill (sociedades em situações limites e óptimas) como o comunismo terminal de Karl Marx (sociedade terminal) postulam em comum uma sociedade sem coacção e uma economia sem escassez; 2) a Formalização dos equilíbrios económicos, ou seja a teoria pura da troca, em vasos comunicantes equilibrados, para o indivíduo e para os conjuntos sociais, a qual só é verdadeira, uma vez retirada a hipótese hedonística, que entra pela coacção e pelo falso dom; 3) a Motivação, colhida das investigações sobre as dependências entre instituições determinadas e a orgânica das comunidades de trabalho, põe em foco que os móbeis estranhos ao lucro e, em geral, “ os móbeis alocêntricos não têm um rendimento económico necessàriamente mais fraco e incerto que os móbeis egocêntricos”; 4) a Instituição: nas instituições apresenta-se este quadro: a troca ou “ acto de comércio” duma associação supostamente livre; a coacção pública da autoridade política que tem o monopólio legitimado da força; “ os ‘dons’, reserva feita das doações e dos ‘dons à clientela’, exprimem-se nas instituições: a) da economia caritativa e da assistência; b) das transferências, entre nações; de capitais ou outros bens sem contrapartida; c) das transferências de solidariedade no interior duma nação ou entre nações; d) das cedências ‘inintencionais’ nas concorrências com ‘perda’ que poderiam ser institucionalizadas”.5 Ora as instituições têm a sua dialéctica: as expressões institucionalizadas da troca, da coacção e do dom vão sendo desmitificadas, na medida em que as sociedades se tornam mais activas e conscientes em todas as suas classes. 4 5

Economia e Sociedade, Lisboa, 1962, pp.21 e ss. ibi, p.25. 152


Qual a lógica da troca? — a equivalência de produtos que não são iguais no concernente ao valor de uso, e entre pessoas com capacidades e exigências desiguais. Socializados os produtos e os valores pelo preço, no mercado, toda a actividade económica (e extra-económica!) do homem entra numa subordinação inexorável à lógica da troca. Ora “ a comunidade distingue-se da associação contratual, e da troca regida pela equivalência. Não menos se distingue ainda da sociedade hierárquica baseada no ‘imperium’ e na transferência autoritária de bens e serviços, segundo uma ordem total. A comunidade estabelece-se aquém e além dos cálculos económicos costumeiros, ao nível das trocas biológicas entre os seres que se encontram, e ao nível destas trocas mentais de que algumas merecem ser chamadas intelectuais e morais. O interessante é que as investigações da economia científica da actualidade já não afastam, nem mesmo discutem, tais permutas. Não desprezam estas matérias que jamais deixaram aos economistas de outrora a consciência completamente tranquila, pois também eles se entregaram a debates casuísticos sobre os ‘bens imateriais’. Tendo sido definitivamente abandonada esta casuística, é graças às contribuições das ciências físicas e naturais que a economia moderna discute as equivalências mercantis e recusa considerar como dons as transferências que não seriam mais do que retribuições. Nesta perspectiva, ela obtém, por contradição, por revolta, a verdade das comunidades vitais e das comunidades espirituais”. 6 Esta Economia do Serviço e da gratuidade construirá uma sociedade nova, onde os grupos — autênticas comunidades — saberão servir toda a espécie humana concreta e o ser universal e polifacetado em cada homem!

*

O IDEAL QUE A VISÃO DOS OCIDENTAIS ENXERGA É A ECONOMIA SEM ESCASSEZ E A SOCIEDADE SEM COACÇÃO: — Centrados na visão crítica, os economistas fizeram perfilar-se dois movimentos de terapêutica económica: 6

ibi, p.27-28. 153


a) um, parcial e correctivo, que conduz da visão ao modelo, e que pode ver-se concretizado no neo-capitalismo marginalista de Keynes, que adopta a preferência pela liquidez, a eficiência marginal do capital e propensão para o consumo; b) outro, radical e substituto, que conduz da visão à utopia e ao mito (no sentido soreliano, de linguagem de acção, depois da ruptura com o passado e o presente) e condena sem apelo a sociedade negociante, professado pelos socialistas ‘utópicos’, Thomas More, Fourier, e outros, e pelo radicalista Marx. Estes dois movimentos coincidem, substancialmente, no ideal e na ideologia (o ideal activo e redentor em fusão com a prática viciada e concreta): uma sociedade terminal ou óptima, para além das sociedades negociantes, donde são eliminadas simultaneamente a escassez e a coacção. É o que tentaremos provar, com François Perroux7, em duas instâncias: 1ª) o estado estacionário da economia de Stuart Mill (sociedade óptima) e o comunismo terminal do socialismo científico de Karl Marx (sociedade terminal); 2ª) a “ oficina livre” de Fernand Pelloutier e Georges Sorel (na linha do óptimo), e a perfeição das sociedades negociantes de acordo com o equilíbrio geral, de Léon Walras (na linha do terminal). Os homens, na realidade, nunca foram todos tão escravos do determinismo económico e das pressões coactivas da sociedade negociante, que a evolução económica se lhes impussesse, de fora, necesàariamente. Houve sempre alguns mais esclarecidos e ousados que pelejaram por um melhor estado de coisas e criaram modelos fecundos. Não resta dúvida que a sociedade terminal marxista é também óptima, pois nela os homens poderão realizar melhor os valores intelectuais e morais, toda a sua humanidade, em suma. É peremptório Stuart Mill, quando escreve8: “ Olhem os Estados do Norte e do Centro da América. A miséria foi aí vencida. As seis reivindicações de justiça social do Cartismo foram atingidas. Que belo resultado!

7

ibi, pp.39 e ss. Principles of political economy, Longman Grun & Co., London, 1927 (1ª edição), p.748; cit. por Perroux, o.c., p.41. 8

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A vida dos homens é empregada na caça ao dólar; a vida do outro sexo a cuidar de caçadores de dólares”. Ora “ não é, ou não é ùnicamente, em nome de uma ética que esta espécie de ‘sucesso’ é condenada por ser humanamente inadmissível; é em virtude de uma análise, profunda e subtil, da economia de todos os homens e de todo o homem, comprometida pela sociedade negociante e, no entanto, restaurável”. 9 Impõe-se, por consequência, uma modificação séria nos móbeis do enriquecimento. Quanto aos dinamismos do crescimento económico — população, acumulação de riquezas e capitais, e inovações técnicas — estes não logram interessar plena e perpètuamente: depois da ‘corrente’ virá o ‘mar estagnado’ — na expressão de Mill. Todo o economista que não olha só à superfície, constata, na actividade económica da sociedade negociante, duas destruições: a do homem pelo homem e a da natureza. Sem solidão própria, o homem torna-se máquina e deixa de inventar e criar. “ Um mundo do qual a solidão fosse banida seria um ideal muito pobre”!10 Por isso até “ os bem alimentados, os bem vestidos, os ricos são lançados ao nada se a sua sociedade, farta ou próspera, não gera mais criadores”.11 A sociedade negociante destrói as espécies naturais e as características próprias de cada homem, submetendo-o uniformemente à lei da empresa lucrativa. “ Enquanto o homem não puder reconstruir um meio artificial que proporcione a cada um e a todos uma saúde e satisfações comparáveis às que a natureza oferece, antes de se ter tornado o joguete da empresa industrial e comerciante, a produção só se opera à custa de destruições que ele não contabiliza — ou que regista demasiado tarde nas suas contas”. 12 As sociedades negociantes votaram-se à contradição e ao insucesso, quando se estribaram na sêde do lucro e na propensão para o enriquecimento: “ não assentam na propensão de todos para o trabalho, mas sim na propensão dos industriais e dos comerciantes para impor o trabalho fabril, acompanhada da coacção que se torna necessária”. 13 9

F.. Perroux, o.c., p.41; (o sublinhado é nosso). S. Mill, o.c., p.750; cit. por Perroux, o.c., p.43. 11 F. Perroux, o.c., p.43. 12 ibi, p.44. 13 ibi, p.45. 10

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O lucro e o trabalho dependente são meios para o enriquecimento, que por seu turno é o melhor meio para aumentar a felicidade!?... O que é na verdade? — a contradição da funcionalidade sem saida do trabalho para o enriquecimento, e o enriquecimento de novo para o enriquecimento!... De redução em redução, o trabalho é tendencialmente eliminado. Todavia, no fundo, “ ninguém deseja tornar-se mais rico” per se! — Paradoxal!... Na perspectiva da parte verdadeira do paradoxo, “ a concorrência muda de plano: não é mais a luta para o ganho que conduz a sociedade negociante. Ela subsiste como uma emulação no domínio das comunidades intelectuais e morais, onde o que é cedido, dado, não é de modo nenhum perdido por aquele que tomou a iniciativa de transmiti-lo”.14 Assim formulou Stuart Mill os seus anelos, no seio de uma sociedade negociante: “ Eu espero sinceramente, para o bem das gerações futuras (for the sake of posterity), que os homens se satisfaçam com o estado estacionário muito antes de a necessidade a isso os obrigar (long before necessity compels them to it)”.15 Como é actual e flagrante a visão crítica stuartmilliana das sociedades negociantes e a denúncia aberta dos meios contraditórios de que se servem para vencer a escassez e reduzir a coacção: “ a troca mercantil, que se propõe libertar, escraviza; as coacções industriais e públicas que fazem afastar a miséria, destroem os homens e a natureza; o dom, a troca em vista do aperfeiçoamento, que não se remunera porque é uma comunicação de coisas sem preço e de valores fora de mercado, não surge de modo algum como uma maneira de caridade, mas antes como uma modalidade da razão, mais alta e mais necessária”.16 Escape positivo de redenção numa sociedade assim constituida, é ainda o triunfo do espírito nas descobertas e invenções, que não deverão ser consideradas, todavia, monopólio de poucos, mas património de toda a espécie. A visão de Karl Marx e Frederico Engels e, no seu encalce, a dos marxistas revolucionários e reformistas (mais fiéis aliás ao próprio Marx que os dogmatistas!) propugna igualmente o movimento da Humanidade e das sociedades no sentido da liberdade e da

14

ibi, p.47. O.c., p.750; cit. por Perroux, o.c., p.48-49. 16 F. Perroux, o.c., p.50; (o sublinhado é nosso). 15

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humanização, pela ultrapassagem das contradições. É o processo da dialéctica da liberdade nas suas três etapas fundamentais: a) na sociedade capitalista, a troca mercantil subsiste na base das coacções, e não da liberdade, que é fictícia; o dom está ipso facto eliminado; b) nas sociedades intermediárias, a coacção subsiste, mas invertida pela ditadura do proletariado, por forma a preparar as equivalências incompletamente humanas das trocas nas fases iniciais do comunismo, sempre, porém, norteada e suavizada pela fórmula ideal — “ de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”; c) na sociedade terminal (comunismo!), esta fórmula é aplicada com perfeição; a coacção e a escassez estão vencidas; as equivalências nas trocas já não são sequer a lei da economia e da sociedade. E, assim, atingiríamos a economia do “ dom” puro ou do “ serviço”! Na sociedade capitalista, o trabalho, como não resulta dividido de acordo com uma combinação hierárquica e harmónica de funções humanas, acaba por “ classicizar” profundamente os trabalhadores e tornar-se a origem da coacção e da troca mercantil. — Ora, Marx propõe uma divisão do Trabalho que estabeleça a cooperação social na sua plenitude e leve a superar, deste modo, os antagonismos de classes, de maneira tal que, numa comunidade de participação efectiva e consentida, o desenvolvimento económico seja fruto simultâneo do conjunto social e de cada pessoa. Convertidos proletário e capitalista em capital, mercadoria e dinheiro, por todas as coacções alienadoras, restará ainda lugar, na sociedade capitalista, para o verdadeiro Dom, que é a forma de transacção mais expressiva e tìpicamente humana?! — a resposta é forçosamente negativa. Na verdade, o dom é, no capitalismo, à superfície, meramente facultativo (já como dom autêntico, já como pseudo-dom...); e no fundo, é necessàriamente eliminado pela lógica e dinâmica do sistema. Se não vejamos: — suponhamos, num dado momento, que a mais-valia é entregue aos trabalhadores-produtores; cessa logo a acumulação em capital e meios de produção... e é destruido o único móbil do lucro. É eliminado o chamado “ efeito-King”, isto é, a coacção exercida sobre o trabalho pelo desemprego que mantém os salários ao simples nível de subsistência. Está, então, todo o sistema avariado! 157


Na sociedade capitalista, “ o dom não desempenha as suas funções senão sob uma condição: é que não seja sequer uma restituição”.17 Ele afigura-se-nos, por conseguinte, como um “ surrogato” de paternalismo, para apaziguar as revoltas, ou de exploração disfarçada e mais cruel: um Pseudo-dom! A Caridade é vendida em tal sociedade. As próprias associações religiosas de beneficência têm sido tão contaminadas pela ideologia capitalista, que redundam tantas vezes num autêntico sarcasmo! E a própria noção de esmola!... No comunismo terminal, é eliminada a divisão do trabalho mantida pela coacção; o próprio trabalho é tendencialmente eliminado, tornando-se menor, fácil, alegre e criador; a mercadoria cede o lugar ao produto, o qual conduz directamente ao encontro com o homem, capaz de dons e serviço fraterno; diz assim uma bela passagem de Marx: “Considerai o homem como homem e a sua relação com o mundo como uma relação humana, e não podereis senão trocar amor por amor, confiança por confiança”. 18 Como é penetrante e cheio de verdade o axioma marxista: “ naturalizar o homem e humanizar a natureza”! Para além do capitalismo e do socialismo, o conflito real comum é, a pleno século XX, o de uma sociedade industrial que postula uma organização económica funcional, centrada nos pólos reais de desenvolvimento, contra a tradicional organização económica territorial. “ O século XVIII das indústrias artesanais ou manufactureiras, das economias campesinas e agrícolas, teria engendrado as doutrinas da soberania territorial. Por que é que o século XX, com as indústrias muito concentradas, em vez de repetir o passado, não havia de produzir a ideologia da soberania dos povos sobre os pólos de desenvolvimento, no campo socialista e no capitalista?”... “ Actualmente encontramos por toda a parte este conflito. Europas de funções ou Europas de nações. Américas funcionais ou Américas das nações. Insistamos: Ásias, Áfricas funcionais que sustêm e vivificam pátrias jóvens que sobem a uma vida política autónoma, ou Áfricas e Ásias de nações e de nacionalismos opostos; ainda que ocorra isto à sombra de duas coalisões hostis e brandindo ideologias pan-asiáticas ou pan-árabes”.19

17

ibi, p.59. Oeuvres philosophiques, T.VI, p.114; cit. por Perroux, o.c., p.67. 19 F. Perroux, La Coexistencia Pacifica, México-Buenos Aires, 1960, p.168-169. 18

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Não serão, desta guisa, bem irmãs as duas visões tão ocidentais da sociedade óptima de Mill e da sociedade terminal de Marx, na recusa intrépida da perda do homem pelas ideologias alienadoras ou na confusão materialista com o cosmos, e na peleja pela economia sem escassez e pela sociedade sem coacção? Um segundo díptico de crítica à sociedade negociante é, como anunciámos, o da oficina livre e sociedade libertária dos sindicalistas revolucionários franceses, e do equilíbrio geral walrasiano, — que apela não para a subordinação directa à totalidade e para a participação directa nas comunidades vitais e espirituais (como preferiu o primeiro díptico), mas para uma ordem de trocas livres e puras entre sujeitos autónomos, uma troca plenamente socializada, capaz de suprimir quanto possível a coacção e o “dom”. A Oficina livre nega toda a coacção pois “ é uma reivindicação existencial de produtores que concebem o seu futuro económico contra os proprietários dos meios de produção, os governantes, as fracções autoritárias do mundo operário, contra todos os que, sob pretexto de ordem e de organização, se opõem aos crescimentos do aparelho económico e ao desenvolvimento da personalidade de cada trabalhador”. 20 A Oficina livre, sem mestre, é um grupo de trabalho autónomo, onde a produção não obedece a norma exterior nem os produtores estão ao serviço das elites sociais estranhas à produção; e é um centro de formação dos homens, onde a organização resulta espontânea, onde se multiplicam os móbeis de um trabalho criador e se respeita a dignidade do próximo e da pessoa humana. A Oficina livre propugna o federalismo como receita libertária: grupos regionais, federações nacionais e federações pluri-nacionais de funções. “ A doutrina da Oficina livre e da sociedade libertária confia em que a escassez pode ser vencida numa sociedade de produtores puros e que a troca pura e o contrato puro, expurgados das coacções da sociedade negociante, são necessários e suficientes para assegurar a coesão dos grupos sociais sem as tiranias do Estado e para lá dos móbeis mercantis”.21 As teorias do Equilíbrio geral de Léon Walras destilam uma sociedade modelo (sempre, porém, de economia mercantil) que eliminou a coacção e conseguiu a vitória so20 21

F Perroux, Economia e Sociedade, Lisboa, 1962, p.72. ibi, p.78. 159


bre a escassez eliminável (pois as suas análises não ultrapassam o terreno da economia pura ou... economicismo!). Podem esquematizar-se em três equações principais22: 1) As equações do “ nada por nada”, que manifestam a onerosidade da troca na sociedade negociante e excluem toda a transferência gratuita: se o sujeito nada possui para oferecer no mercado dos serviços produtivos, não pode, por conseguinte, adquirir, também, nada no mercado dos produtos. 2) As equações de conduta, que exprimem a racionalidade da conduta dos sujeitos, estabelecem que “ a satisfação máxima é realizada para cada sujeito quando as utilidades marginais de todos os serviços e de todos os produtos são proporcionais ao seu preço”.23 A situação limite e óptima será quando houver identidade das funções de utilidade e igualdade dos rendimentos para todos os sujeitos!... 3) As equações de igualdade ou de equilíbrio geral do mercado: tanto as ofertas globais dos serviços como as procuras globais dos produtos são função dos preços. Surgem, assim, duas condições de igualdade: a) as quantidades de serviços empregadas ou procuradas que devem ser iguais às quantidades oferecidas; b) e os custos de produção que devem ser iguais aos preços. A sociedade walrasiana teve o mérito de eliminar o empresário com o seu lucro característico, mas uniformizou os homens, não lhes reconhecendo as desigualdades em necessidades e capacidades.

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As teorias formalizadas da Troca mercantil implicam necessàriamente, na sociedade negociante, a coacção e o “ dom”: tanto a do cálculo económico individual como a oposta do equilíbrio geral das unidades interdependentes.24 Esta, dum modo especial, acaba por “ introduzir o Estado e justapor-lhe um esquema de economia negociante, cu-

22

ibi, pp.80 e ss. ibi, p.81. 24 ibi, pp.89 e ss. 23

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jos preços e quantidades se formam independentemente da presença e da acção do Estado”.25 Forma-se, assim, o chamado circuito económico estacionário que faz repetir os equilíbrios e desequilíbrios com alternâncias de períodos. Ora, tais formalizações não têm em conta senão os esquemas da prática negociante; uma teoria generalizada e englobante, porém, preocupa-se com uma análise económica séria e considera o dinamismo e a evolução da economia. Faz ver, então, que é arbitrária e ineficaz a eliminação da coacção e do “ dom” (pois ficam todas as coacções intencionais); demonstra, ainda, o normativismo implícito de duas normas sociais opostas (troca pura mercantil e planificação da totalidade) — fruto de um mesmo sistema lógico de maximizações: “ A análise da troca pura supõe a liberdade dos agentes individuais e não retém da concorrência senão o que é necessário ao seu perfeito concurso. A análise da coacção pura supõe a liberdade da Central e não retém do seu poder senão o que é necessário a uma perfeita subordinação, cujo resultado é uma maximização, idêntica à maximização do perfeito concurso”.26 A teoria da concorrência monopolística apresenta uma actividade económica tipo conflito-cooperação, com relações entre as firmas que são um mixto de trocas e poderes que coagem. Nesta engrenagem acaba por negar-se implicitamente a iniciativa livre do acto económico — que tanto se pretendia defender. Têm origem deste modo as zonas de conflitos-concursos nos conjuntos sociais: “a actividade económica de um conjunto, de uma nação por exemplo, é reestruturada pela oposição ao conjunto homogéneo do mercado, de concorrência completa e de troca pura. A maximização da troca pura é a posição limite e o caso muito especial em que os grupos humanos renunciam à consciência solidária ou hostil de outros para se submeterem aos preços que consideram intangíveis, isto é, para se entregarem aos mecanismos do mercado”27 A teoria generalizada e englobante do equilíbrio fracassa, porém, quando se reconhece que “ a estrutura mais racional, econòmicamente, não é necessàriamente aquela em que cada unidade actua sobre todas as variáveis do seu plano, mas a que conduz ao má-

25

ibi, p.95. ibi, p.103-104. 27 ibi, p.108. 26

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ximo o indicador de eficiência pela combinação óptima dos poderes e das trocas”. 28 Numa perspectiva contraditória, os conjuntos económicos apresentam-se hoje como capazes de trocar, ou seja, capazes de se adaptarem aos seus sistemas de preferências e de condutas e simultaneamente capazes de exercer a coacção em ordem a modificarem as condutas e os sistemas de preferências! Em conclusão, ocorre dizer com Perroux29: “ A teoria do equilíbrio da interdependência geral é a formalização mais penetrante da troca mercantil e da sociedade individualista. “A maximização dos resultados económicos para cada sujeito e a intercompatibilidade dessa maximização pela simples actuação do preço em regime de concorrência perfeita, supõe que são nulos todos os poderes das unidades definidos como as capacidades de modificar intencionalmente as condutas e as preferências dos outros. “ É um caso muito particular e altamente improvável o de igualdade entre os sujeitos ou de anulação recíproca de todos os seus poderes”. A teoria generalizada e englobante do equilíbrio mostra, assim, como são criticáveis os equilíbrios económicos de uma sociedade negociante, a qual resulta, por compensação, um lugar de emergência dos poderes e dos processos distributivos.

* A análise das Motivações do acto económico leva-nos a reconhecer a necessidade de alargar o conceito de Economia e a observar a realidade das motivações “ não-económicas”. Ninguém nega que a história económica tem sido feita, em todos os tempos, pelos homens do poder e do dom (pseudo-dom e dom). Este facto é já sintoma da redução da troca mercantil à coacção e ao “ dom”. Que vemos e denunciamos nós, seguidamente, na psicologia implícita à teoria económica corrente?

28 29

ibi, p.110. ibi, p.115-116. 162


“ a) Que actividades certamente económicas: o trabalho, a inovação — observadas pela ciência — não se deixam confinar no esquema do cálculo económico; b) que a teoria económica se emancipou das suas próprias premissas cada vez que se tentou dinamizá-la; c) que se põe em contradição consigo própria quando postula o pleno emprego dos recursos (entre os quais os do psiquismo humano), mas apenas ou principalmente assente nas motivações aquisitivas exaltadas nas sociedades negociantes”.30 Enxergamos, depois, positivamente, que a aceitação e desenvolvimento de todas as potencialidades humanas são condições de uma maior eficácia económica. Não é verdade que numa economia estática, de prática negociante, os “ dados” sócio-económicos (técnicas, gostos, instituições) estão de tal modo uniformizados, postulando uma maximização de utilidade em sentido único, que não querem saber das novas e inúmeras possibilidades de cada sujeito? Bertrand Russel31, referindo-se aos móbeis económicos, diz que dos inumeráveis desejos do homem os principais são os que levam ao poder e à glória — o que os economistas tanto clássicos como marxistas desconheceram. Julian Huxley escreve32: “ Diz-se que o interesse pessoal e o benefício económico são os únicos estímulos eficazes para que a obra se faça? a experiência demonstrou o contrário”. Torna-se secundário o móbil do lucro e a coesão social resulta assegurada “ por relações activas entre os indivíduos e seus grupos em lugar das forças impessoais e insensíveis do interesse da concorrência económica”. 33 Quanto ao trabalho, não pode mais considerar-se como seu único ou principal móbil o lucro; os relatórios das missões de produtividade nos U.S.A. hierarquizaram assim os factores de produtividade: 1º — técnica (métodos e material); 2º — factores humanos (formação, informação, relações humanas); 3º — factores económicos (ganhos espe-

30

ibi, p.122. Power, A new analysis, Londres, 1946, pp.9,10. 32 La Revolution actuelle, Londres, 1946, p.32; cit. por Perroux, o.c., p.127. 33 F. Perroux, o.c., p.127. 31

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rados do acréscimo de produtividade).34 Urge humanizar o trabalho, pois é hipocrisia distinguir entre os serviços de trabalho trocados no mercado e o trabalhador que não o é! “ Como o homem é liberdade e o trabalho é uma actividade coagida, a humanização do trabalho é a contrapartida necessária da sua industrialização, mesmo se se propõe sòmente elevar a produtividade”.35 Impõe-se fundir todas as motivações do trabalho e da economia, para uma nova e maior eficácia; empregar todos os recursos naturais e humanos segundo a lei da economicidade do acto económico e de harmonia com o princípio da unidade da personalidade total do homem. Para este desenvolvimento económico, óptimo e humano, muito contribuem dois factores principais: as competições colectivas a corrigir os monopólios e as promoções sociais a desfazer o espírito de classe. Desmistificação e elevação — eis a terapêutica para obviar à mesquinhez da motivação-lucro, idolatrada, da troca nas sociedades negociantes: “ Pode acreditar-se que as pessoas trabalham para ganhar: o certo é que não trabalham só para ganhar e, talvez, não principalmente para ganhar. — Uma iniciativa foi considerada generosa: sabe-se que ela é desejo de auto-afirmação e, noutros casos, à escala social, restituição incompleta. ... “ Sob as motivações do ‘ter mais’ elevam-se as motivações do ‘ser mais’. Na vida económica orientada para satisfazer as necessidades de toda a massa, mais profundos que os cálculos mercantis, eis os níveis da paixão e do entusiasmo. Dos abismos da miséria, o homem ressalta; ele rebenta o quadro da economia prudente daqueles que pesam e que contam”.36 E F. Perroux conclui com precisão: “ Um economista, sem deixar o seu domínio, está no direito de afirmar, em todo o caso, que as cidades começaram a empregar os “ mecanismos económicos” como “ máquinas de fazer homens”. 37 *

34

in F. Perroux, o.c., p.131-132. ibi, p.130-131. 36 ibi, p.140-141. 37 ibi, p.141. 35

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A troca, a coacção e o dom cristalizam nas Instituições, que são “ quadros duradoiros de acção, regras duradoiras do jogo social e dos hábitos colectivos”. 38 Ninguém duvida que as instituições típicas da troca mercantil são o contrato e o mercado, de um lado, e o Estado como instituição máxima da coacção pública, do outro. Aquelas três categorias, institucionalizadas, têm o seu conteúdo dialéctico próprio: “ A troca é à base de equivalência e reciprocidade. A coacção tem como fundamento uma ordem total das preferências de todos os agentes que compõem uma sociedade global. O dom — pseudo-dom ou dom verdadeiro — assenta na participação; esta última apresenta-se sob formas exteriores limitadas nas transferências de solidariedade, ou sob maneiras profundas e íntimas nos dons de amor”. Ora, “ as lógicas da equivalência, da ordenação total das preferências e da participação não puderam ser, até aqui, construidas rigorosamente pela teoria económica, e tão pouco a combinação ou a correcção recíprocas”.39 Primeiro, constatamos o fracasso das instituições de troca e equivalência: a troca apresenta-se como transferência voluntária recíproca, cujo valor de igualdade assenta numa racionalidade económica que, por círculo vicioso, se liga à vantagem recíproca. Não há equivalência entre os excedentes do produtor e os excedentes do consumidor na troca concorrencial: as vantagens suplementares do consumidor (o que procura) que estava na disposição de comprar a um preço mais elevado, não se equacionam com as do produtor (o que oferece) que estava na disposição de vender a um preço inferior. De resto, persiste sempre uma pauta de equivalências para os indivíduos e outra para o conjunto social. Este hiato foi posto em evidência pela tentativa marxista de medir a troca das mercadorias pela média de trabalho socialmente necessário: umas são as situações individuais, outras as situações e exigências sociais!... “ É permitido dizer que, liberal ou marxista, a interpretação económica foi até aqui impotente para construir uma equivalência como base da troca, que transcenda as oposições entre o indivíduo e a sociedade”.40

38

ibi, p.143. ibi, p.145. 40 ibi, p.151. 39

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É que, em boa verdade, as equivalências socializadas pelo mercado não são independentes de uma organização histórica, ligada aos grupos dominantes, nem permitem estabelecer contabilidades exactas e de harmonia com o interesse geral de toda a sociedade. As instituições da troca mercantil têm predilecção pelo estaticismo, pois são incapazes de apreçar a inovação; o que é inteiramente novo ainda não foi medido no mercado, pelo preço da oferta e procura. Mas os bens de produção ou de consumo inteiramente novos têm, contudo, o seu custo, embora não tenham ainda mercado. Urge desmitificar as nossas crenças colectivas na equivalência do mercado, mostrando as contradições dessa construção. A troca mercantil compra e vende, implícita ou explìcitamente, os valores intelectuais e morais e o próprio homem, que não são susceptíveis de preço. E o mercado alastra de tal forma que se compra e vende o nome, a influência social... futebolistas, actrizes!... A moeda, no mercado, deixou de ser simples ‘numerário’ para se converter em poder, em Dinheiro = “ o poder louco da humanidade” — como diz Marx. Ouçamo-lo bem: “ O que eu posso pagar, isto é, o que o Dinheiro pode comprar, sou eu próprio...”. “ O Dinheiro é o maior dos bens, portanto, o seu possuidor é bom; o Dinheiro evita-me o cuidado de ser honesto; eu sou, portanto, apresentado como um homem honesto; eu não tenho espírito, mas o Dinheiro é o espírito real de todas as coisas; como faltaria espírito ao seu possuidor?”. “ Se o Dinheiro é o bem que me liga à vida humana, à sociedade, à nação e aos homens, não é o Dinheiro laço de todos os laços?” 41 O mercado e a troca mercantil eliminaram a possibilidade de desprendimento, o compromisso e a dedicação — os valores humanos! Em segundo lugar, verificamos os fracassos da coacção e da ordem total por ela engendrada. Se a equivalência na troca nunca pôde fixar-se perfeitamente (pois não coincide a equivalência para os indivíduos e para a sociedade), a ordem total que é a racionalidade do uso da coacção não é mais fácil de estabelecer-se. No entrecruzar-se de coacções naturais e coacções dos adversários, “ o poder de negociação é para um agente A a capacidade de impor a outro agente B as relações de 41

Rapports de l’économie politique avec l’État, le droit, la morale et la bourgeoise, Oeuvres philosophiques, t.VI, trad. A. Cortes, pp.188 e ss.; cit. por Perroux, o.c., p.158. 166


troca que lhe são relativamente favoráveis, e relativamente desfavoráveis a B. Este poder provem da capacidade de estratégia da detenção de reservas e da situação do agente no conjunto social”.42 O próprio Estado, como detentor do poder público, a coacção por excelência, está igualmente submetido às limitações de todo o monopólio: porfia com as potências rivais; tem a coacção limitada do interior (o grupo que governa é atreito a defender mais os seus interesses...); está adstrito ao princípio da economicidade: os melhores resultados com os menores custos!... As condições de emprego racional da coacção pública implicariam, da parte do modelo: — que qualquer situação da economia possa comparar-se com uma situação óptima que sirva de padrão das correcções; — que as preferências individuais dos agentes possam ser dispostas, sem as destruir, numa mesma ordem social das preferências, a fim de que o óptimo económico possa remodelar os desequilíbrios da realidade. Da parte do poder público que utiliza o modelo, o Estado não pode ver-se exterior ao conjunto social, pois é uma parte dele; e, nas democracias, não pode ser independente dele, pois é em nome dele que age e se sustém; não pode ser neutro, pois tem que dirimir e tomar partido concreto nos planos incompatíveis. De tudo se infere que a ordem total, necessária nas sociedades negociantes, é, ao mesmo tempo, impossível, e que só através das contradições sociais se podem esboçar algumas aproximações. Depois de ter posto em cheque os insucessos da construção de uma ordem total, na economia mercantil, F. Perroux conclui: “ É a um modelo de crescimento harmonizado (que reuna crescimento harmonizado e flutuações da conjuntura — J. Lesourne:nota) que é preciso recorrer necessàriamente, para libertar a natureza e determinar a medida das coacções económicas que permitem restabelecer e manter os desequilíbrios dinâmicos a níveis suportáveis”.43 O Estado não aceita facilmente as limitações da sua Coacção supostamente incondicionada; e quando surgem conflitos nacionais e internacionais, o poder público sente-se obrigado a aumentar as despesas da coacção e a recorrer a meios violentos que redundam na destruição — totalmente oposta ao princípio da economicidade. 42 43

F, Perroux, o.c., p.167. ibi, p.177. 167


“ É absurdo e odioso — escreve Perroux com realismo — discutir como negócios problemas que interessam à vida e à morte de milhões e milhões de seres humanos; está ultrapassado afirmar que a política diz se se devem produzir canhões ou manteiga, limitando-se o economista a dizer como produzi-los o melhor possível”.44 — Terceiro, o dom e a participação na sociedade negociante: — Após a revolução industrial, a troca mercantil nas sociedades do Ocidente tornou ‘negociáveis’ (Péguy) as coisas sem preço, apesar dos costumes e das leis em contrário. As transacções ‘aparentemente’ livres e gratuitas são, ‘no fundo’, “ coagidas e interessadas”. Não se recebe dom que obrigatòriamente não se restitua. E quando se dá, francamente, qualquer coisa ou serviço como dom, desconfia-se inicialmente da intenção. É que os dons têm a sua função característica e necessária na economia de mercado: são estes pseudo-dons que geram as aproximações institucionais dos princípios falidos da equivalência e da ordem total, e rectificam as desequivalências do mercado e asseguram os operários descontentes (pelos “ dons à clientela”). Na sociedade capitalista toda a espécie de dons (pseudo-dons) não gera a participação consciente e efectiva, mas uma sub-participação (pseudo-participação!): — diz-se que todos participam nos frutos: no lucro ou no capital... mas persiste a pergunta indiscreta: ‘Quem divide os quinhões e como?’. Na sociedade industrial, quanto ao binómio patrão ou dirigente e operários, e às mútuas relações implicadas e postulados sócio-económicos, evoluiu-se do salário individual e ‘por cabeça’ para o salário familiar; do salário familiar para a participação nos lucros; e da participação nos lucros para a co-gestão que realiza a verdadeira participação. Ora, por que se constatam ainda hoje tantos insucessos no princípio da participação? — porque, num clima ainda profundamente negociante e capitalista, não se tem a coragem de pensar a participação activa na comunidade vital de Trabalho, mas somente aquela participação ‘passiva’ de quem participa nos ganhos da empresa, mas sem responsabilidade social no todo. Por que não vinga afinal a co-gestão plena? — porque não se concebe nem, muito menos, se realiza uma participação autêntica! A mentalidade comum hodierna ainda não se sente capaz de conceber a riqueza como social!

44

ibi, p.185. 168


Todavia, a economia ‘ut sic’, dos homens, não pode ser outra senão a economia da participação = Co-gestão e do Dom autêntico; é regida por dois princípios fundamentais: a) o princípio da economicidade que postula que nada se destrua, e se utilizem apenas os meios suficientes para conseguir os melhores resultados; b) e o princípio do centramento no Trabalho-Humano responsável e criador: o capital e os meios de produção representam trabalho cristalizado (morto), que perdeu aquelas referências activas e actuais ao homem produtor, declinando, assim, a propriedade pessoal privada; de resto, eles necessitam da aliança fecunda com o Trabalho humano actual, a fim de se tornarem valores económicos pròpriamente ditos, isto é, numa economia digna desse nome, dinâmica e de desenvolvimento progressivo. Já se notam hoje, felizmente, algumas tentativas sérias para umça economia autêntica: — “ A participação, encontrada de novo, na economia do século XX, é um sucesso do homem contra a magia das forças ocultas e das tiranias misteriosas das coisas. É uma participação em comunidades menos nocturnas que: 1º — Institui a troca plenamente económica e o poder público consciente das exigências da economicidade; 2º — Defende as análises que conduzem: — das necessidades colectivas às necessidades comuns; — dos bens livres aos serviços sociais difusos; — do capital nacional ao património cultural da nação”;45 — dos mercados fechados aos mercados abertos; — das economias nacionais e territoriais às economias mundiais e funcionais. A lógica economicista conhece o segredo das vitórias políticas e militares — (guerra fria e guerra quente!) —: o mercado e a troca mercantil clássica! E por que se tornaram assassinos o comércio e o poder público nas sociedades negociantes do Ocidente? — não, enquanto são económicos, mas na medida em que desprezam as exigências fundamentais da economia e o princípio da economicidade.

45

ibi, p.195; (o sublinhado é nosso). 169


Se o economicismo pensasse até ao fim o acto de destruir, deparar-se-ia em contradição flagrante e verificaria a fecundidade do postulado económico: a exclusão de toda a destruição e a participação plena de todos na vida como sua finalidade objectiva. A economia humana da participação deve conduzir-nos da satisfação das necessidades meramente colectivas à satisfação das necessidades comuns (o mínimo vital a todos e a cada um), de modo a suprimir radicalmente as intoleráveis perdas humanas; só a partir desta base é que poderão construir-se as hierarquias económicas dos rendimentos e dos poderes. Já se reconhece como tem fracassado a economia economicista, à escala planetária. Algo têm feito, sem dúvida, as instituições de beneficência e assistência como a FAO e a UNESCO da ONU, a “ Charitas” norte-americana, etc.; mas ter-se-ão elas emancipado, da parte de quem dá, do paternalismo conquistador, e, da parte de quem recebe, das consequências de inactividade no desenvolvimento económico próprio e responsável? E por que resultam pseudo-dons estes dons? — porque as mentalidades ainda não estão actualizadas na solidariedade e na participação activa, de ambas as partes. As vias da política económica internacional estão a rasgar-se nestes sentidos: desvio da situação de livre câmbio  proteccionismo; isolamento geral ou discrecionário do país em questão  neo-proteccionismo; aceitação do jogo das duas forças — centrípeta e centrífuga — importações e exportações, no plano das sociedades internacionais. O Teorema das vantagens absolutas foi substituido pelo Teorema das vantagens relativas: em clima de livre câmbio, o país, quanto mais especializa e divide a produção, tanto mais consegue produtos qualificados para lucrar o mais possível na troca competitiva com os outros países; na base está sempre a necessidade das exportações para as importações — o mercado com todos os seus postulados e consequências. O equilíbrio é a palavra de ordem, mas a tensão inflacionista (desequilíbrio) persiste sendo o motor do desenvolvimento económico. Ora, uma óptica sã como a da Doutrina Social da Igreja exclui os sistemas económicos internacionais do livre câmbio, das autarquias (= políticas económicas próprias-exclusivas e permanentes) e do proteccionismo. O contrato de Trabalho não poderá ser encarado como um contrato jurídico qualquer (simples e particular) mas como um contrato eminentemente social. A Empresa 170


terá que eliminar a sua concepção classista operário-patronal, parificando as posições sociais e as atitudes psicológicas, não pelo dirigismo económico mas pela comunidade de trabalho, não pela participação submissa do trabalhador, mas pela co-gerência activa e responsável de todos os trabalhadores. Podíamos elencar do seguinte modo as condições fundamentais da Empresa, de acordo com a Doutrina Social da Igreja: 1) Uma comunidade de Trabalho — solidariedade e fraternidade; 2) respeito das exigências tanto económicas como sociais dos trabalhadores e do conjunto social; 3) gestão da empresa por patrões e operários; 4) contactos pessoais entre todos os elementos da Empresa — relações humanas. O economista consciente reconhece “ que a participação nas comunidades de vida e de valores mantém e fecunda o mercado da nação”.46 Com efeito, as transacções comerciais “ não podem existir sem um quadro de funções, de estatutos, de confiança e de estados de esperança e expectativa. Sem estes laços sociais e psicológicos que nos unem, o mercado não pode existir. Um grupo de homens puramente económicos achar-se-ia na impossibilidade de comerciar”.47 Na perspectiva da economia da participação e do Dom, o capital nacional, isto é, o conjunto dos stocks de bens económicos dos nacionais, das colectividades públicas e do Estado, converte-se, qual combinação dos bens de produção e de uso duradoiros, em património cultural comum de todos (pois todos nele participam e ninguém o possui de forma privativa!). A quase totalidade das aproximações institucionais da participação e do dom redundou, na nossa sociedade negociante, num paternalismo feroz. As ‘boas almas’ dos poderosos e dos ricos pensaram desenvolver a economia só com bons sentimentos... Sòmente “ quando o fraco e o pobre se tornaram menos inconscientes e mais capazes de luta, desmistificaram o dom, e começaram a impor a utilização racional e inteligível das

46

ibi, p.202. Kenneth E. Boulding, The skills of the Economist, Howard Allen, 1958, p.143; cit. por Perroux, o.c., p.202. 47

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transferências sem contrapartida”48 é que eles acordaram da sua doce ilusão! É que a verdadeira Caridade supõe e implica exigências sociais de justiça; sem uma justiça social a baseá-la, a Caridade é uma hipocrisia surda!... A troca mercantil, tirânica, prostituiu49 a Caridade e fez passar o julgamento social do dom benévolo à transferência obrigatória, prevista e controlada. “ A redistribuição dos rendimentos, falsa ideia clara (Alain Barrère), sempre em riscos de desconhecer as funções económicas da desigualdade, também se desvanece perante as atribuições prioritárias de recursos adequados à satisfação das necessidades sociais dispostas numa hierarquia objectiva”. 50 Esse caminho longo de individualismo e exploração económica teve início com um estado de espírito caracterizado à maravilha por este texto de Malthus: “ Um homem que nasceu num mundo já possuido, se não pode obter dos seus pais a subsistência que justamente lhes pode pedir e se a sociedade não tem necessidade do seu trabalho, não tem nenhum direito de reclamar a mais pequena porção de alimentos e está de facto a mais”. 51 A assistência técnica das grandes potências industriais aos países subdesenvolvidos gerou, primeiro, os paternalismos económicos e, também, políticos e culturais; depois, a concorrência pela ‘perda’ dos dois grandes blocos (o Leste e o Oeste — o comunismo e o capitalismo!...) fez nascer os imperialismos e a competição normalizada de dois sistemas, cujo fito primário não é pròpriamente o enriquecimento, mas “ conquistar o espírito e o coração dos homens”, na visão política de Nikita Kruchtchov. Três conclusões de crítica à economia de mercado: — 1) A troca social — estatuto humano fundamental — superou a troca meramente económica da sociedade negociante; nesta, vimos que o preço se fixava pelos interesses competitivos do mercado e segundo a concorrência livre e desenfreada dos contendentes; ora, as necessidades vitais (o mínimo vital) são constantes, e podem, por isso, fornecer uma base estável à economia fundada no valor de uso e no apreço dos bens económicos.

48

F. Perroux, o.c., p.205. Paul Lafargue, La charité chrétienne, Librairie Populaire, 1937, Editions du Parti Socialiste S.F.I.O. 50 F. Perroux, o.c., p.206. 51 in F. Perroux, o.c., p.206-207, nota (4). 49

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2) Economia sem escassez e Sociedade sem coacção: é apesar de tudo a visão comum dos economistas ocidentais e das sociedades industriais. 3) O Desenvolvimento económico só poderá encontrar toda a sua eficácia crescente como progresso em liberdade, afastada toda a coacção, e com o máximo empenho, por conseguinte, na defesa integral do Homem e do seu Trabalho criador a abri-lo para a Economia do Dom autêntico.

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173


IV

—PROJECTOS DE UMA ECONOMIA NOVA: A ECONOMIA DO DOM: CONTRA A ECONOMIA DO TER, DO ‘DEVE E DO HAVER’, A ECONOMIA DO SER: —

A nossa Tese poderia formular-se, positivamente, deste modo: a única Economia válida, coerente até ao fim e humana (Economia-economia e não economicismo ou crematística) é a Economia da Participação e do Dom. — Alguns sintomas e casos de uma Economia do Dom que procura romper as peias da economia negociante: — Um sorteio, uma rifa, uma quermesse,um leilão, um jogo de azar, jogos aleatórios em geral: o interesse nestas trocas não vai, ao menos exclusivamente, sobre o lucro, embora isso pareça à primeira vista; é certo que se joga no sorteio para lhe calhar dinheiro ou algum bem útil... mas se se joga, é porque se arrisca, sem mais, caia ou não caia, até mesmo a saber que não há probabilidades verdadeiramente estimulantes. — Não estarão aí valores humanos e morais latentes, no coração da economia? — Criar não é arriscar? E como gosta do risco o homem!

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Um grupo de professoras em casa alugada na Praia: vida sensìvelmente acima do médio; gasta-se... um senhor, pobre, mendigo, vem e dá à bomba uma hora para encher o depósito; em compensação leva o balde das lavagens!... Empresa de construção de adobos: vai-se ao rio buscar areia fina; tem que pagar-se, muito embora se esteja com isso a prestar o serviço de desaçoreamento do rio!... Pergunta-se: nestas circunstâncias (como aliás vem a suceder em todas) o mercadejar comercial — a exploração — o lucro interesseiro — não começará exactamente com aquele interesse de uma das partes, que é ponto de partida do circuito fechado e que afinal funda toda uma sociedade do negócio e do comércio, que se afasta cada vez mais da fonte de produção dos bens económicos e se vem alfim a centrar exclusivamente, ou pelo menos acentuativamente, na fase falsa do comércio e das transacções? Dom e produção ou Mercado e comércio? A propósito de fugas duma economia agrária desamparada e deficitária: — diz a mãe, manifestando o seu antigo gosto pelo negócio(?): o meu sonho foi sempre ter uma tenda e andar a feirar de terra em terra! — Resposta do pai: o meu sonho foi antes de semear pinhais e plantar eucaliptais, para compensar o frustrado saldo agrícola... pois no ‘negócio’ é tão fácil e natural perder-se a consciência! — Apelo aos valores humanos, apesar do profundo desajustamento da economia agrícola. Um pároco diz que não cobra uma côngrua imposta nem recebe remuneração dos pobres; e, contudo, — acrescenta-se —, nunca me faltaram réditos para viver bem! Nos ‘Estudos Generales de Navarra’, os professores dão tudo o que ganham e recebem tudo o que gastam. Comunismo!... O Interesse ganancioso e os juros não assentam radicalmente no egoismo? Não é verdade que o espírito de pobreza (que constitui riqueza mesmo material) é necessário ao homem para viver em sociedade sã e poder exercer a Caridade fecunda? O problema do despedimento dos empregados nos serviços e dos operários nas empresas de hoje, num mundo planificado e liberista: sobe-se o salário ou vencimento do empregado para o estimular, além de executar uma tarefa de justiça que se pensa em segundo lugar; ele não reage ao estímulo; há necessidade de o despedir; ele recorre ao Tribunal de Trabalho e vence! O proprietário ou dirigente precisa de empregados e não encontra... eles querem o que os dirigentes sentem não poder pagar; muitos deles, ao contrário, estão com salários in175


fra-humanos, paupérrimos!... — Depois o operário com o seu emprego e vencimento fixo, que supõe permanente e crescente, põe contas à vida, casa e... seguidamente cessa-lhe o vencimento calculado; muda de emprego, mas desce no vencimento e... catástrofe! Não será possível engendrar uma sociedade com os trabalhos duradoiramente distribuidos, segundo as melhores e preparadas competências dos trabalhadores? Não será exactamente para aí que se caminha, no processo histórico que avança gradualmente desde o emprego simplesmente assalariado, depois com salário familiar, participação nos lucros, até à co-gestão na Empresa tornada Comunidade de Trabalho autêntica? Uma sociedade do Trabalho, do serviço e do Homem, e não do Capital, do Dinheiro e da Coisa?! Pugnamos denodadamente por uma economia da Oferta e do Serviço, contra a economia de mercado, onde são mercadejadas as relações humanas ‘objectivizadas’; uma economia não da aquisição individualista, mas da exposição social, à maneira dos artistas que expõem as suas obras ou das ‘vitrines’ que mostram os artigos! Na economia de mercado, desde a simples vareira ao mais complicado director de trusts, torna-se quase impossível a seriedade e humanidade nos negócios! —Manifestações espirituais irreprimíveis, porque genuinamente humanas, na economia de mercado, para uma Economia Nova: — A ânsia de dons a aceitar e a dar: no fundo do chamado pseudo-dom (paternalismo económico e comercial) está latente a ânsia do dom verdadeiro da pessoa. A economia de mercado estaria certa no âmbito dos objectos trocáveis... mas logo começa a falhar nos seguros, assistências, obras de caridade materiais... em que as pessoas reduzidas a objectos, entram em compra e venda. O regateio e o seu contrário (preços fixos, pautados por um dirigismo absorvente) são sintomas de um mais além que a simples compra e venda no mercado. Numa sociedade e economia novas, não haveria possibilidade de substituir o mercado, à base da justiça comutativa, objectiva e alienante, pela justiça social e distributiva... mediante o processo de impostos indirectos?... a fim de remunerar as pessoas nos seus cargos e profissões sociais de primeira ordem, como médicos, advogados, padres, professores, governantes?! Porque avassalou a automação das sociedades industriais a pessoa humana? — 176


A evolução técnica contemplou o ‘homo faber’; depois o ‘homo ingeniosus’ da máquina (estádio imperfeito); o ‘homo ingeniosus’ da máquina, na automação (estádio perfeito); até chegar (como diz Toynbee) aos homens automáticos ou autómatos humanos. A escravização da pessoa surgiu do facto de as duas linhas de evolução não serem solidárias: de um lado a automatização (a automação é o último grau!) e a técnica, do outro a pessoa humana frágil e sem consciência; a tecnocracia imperou, porque não foram consideradas as ambivalências da técnica: a produtividade económica é diversa e pouco solidária, de facto, com a produtividade técnica: — A Medicina e a Higiene têm reduzido muito a mortalidade infantil, por exemplo; tem crescido, não obstante, a sub-alimentação e a miséria!... Todavia os primeiros valores têm validade em si, não são funcionais: se cresce a pobreza, aumentando as pessoas pobres, o mal não é que aumentam as pessoas, mas que a economia não baste ou não esteja suficientemente ordenada e distribuida. O baluarte que hasteia a técnica de domínio do homem sobre a Natureza (‘crescite, et replete, et dominate terram’: a técnica em si é boa; pode ser é mal usada!) tem que reduzir-se ao bastião que o homem levanta dentro de si de domínio do homem sobre si próprio! O problema do domínio do homem sobre a Natureza é o problema do domínio do homem sobre si próprio! A Economia Nova será caracterizada pelo Diálogo Social: “ Cada participante aceita ser transformado pelo outro no diálogo: põe em questão, como diz Jean Lacroix, as suas próprias certezas: cada classe renuncia a considerar-se uma classe elite ou sòmente privilegiada; e, igualmente para cada nação. Melhor: o fim do diálogo é imprevisível; a reciprocidade na transformação dos participantes é composta de influências assimétricas, mas sempre reversíveis. Elites e grupos que dialogam acerca do capitalismo e do comunismo ignoram o ponto até onde os conduzirá a troca de ideias e de experiências. Finalmente, o diálogo exclui a destruição dos valores intelectuais e morais das pessoas que nele participam”52, e os dialogantes estão preparados para o Dom, e capazes de oferecer os próprios frutos da vitória, conquistando, assim, o espírito e o coração dos homens. Cegados pela lei do ‘nada por nada’, as sociedades industriais consideraram o dom de si ao empreendimento ou à cidade como um ‘mais’ facultativo, além do que é estritamente obrigatório!... Ora, o autêntico Dom de Amor é dedicação incondicionada, é 52

F. Perroux, o.c., p.186. 177


oferecer a vida, aos poucos ou duma vez só, pelo Amigo. “ Seja o que for que me dês, se não és tu, que me importa, pois que não é aos teus dons que eu procuro, mas a ti” (Imitação); o verdadeiro amor “ não consiste em dar, mas em dar-se, e o dom de si implica sempre um risco: o da ausência de resposta, o da ausência de aceitação, o da recusa e da negação”. (P. Lachiese Rey). O autêntico Amor é uma vontade de promoção mútua, que gera a comunicação recíproca das consciências, numa comunidade espiritual do Nós53; é a ‘Charitas christiana’ que concilia o ‘éros’ com a ‘àgápe’, num Terceiro que é Deus! Não o ‘nós’ da semelhança (ti como mim), nem o ‘nós’ da aliança (mim contigo), nem o ‘nós’ da confusão (mim em ti), mas o ‘Nós’ do amor (mim para ti).54 O verdadeiro amor não é prenda (compensação gratuita!) mas dádiva (oferta plenamente gratuita e sem perspectiva de retribuição). É o leit-motiv do Evangelho de Cristo que Paulo de Tarso tão bem absorveu: ‘Nemini quidquam debeatis nisi ut invicem diligatis’ (Rom.13,8); e pelo qual João de Éfeso se sentia devorado: mandatum novum quam habuimus ab initio ut diligamus invicem. ‘Alter alterius onera portate et sic adimplebitis legem Christi’ (Gal.6,2). — O verdadeiro amante diz ao amado: “ A minha satisfação é o teu valor”, “ a minha tristeza é a tua recusa a realizares o valor que estava em ti e que o meu amor quer ajudar a fazer triunfar”; ele outra coisa não sabe dizer ao amado senão que o seu débito é o seu amor. O amor reune os contendentes e concilia o uno e o múltiplo na vida do espírito: ‘Aut duo aut nemo’ — tanto separá-los como confundi-los seria destruí-los! O próprio direito de propriedade da nossa ética tradicional leva as suas taras de individualismo egoístico: está com efeito mais elaborado sobre a separação e a possibilidade de conflitos (inautênticos, aliás!) de dois direitos, que sobre a união e a entrega e uma propriedade que tem que ser simultaneamente de todos e cada um, a fim de realizar a união fraterna concreta e completa. Não precisará até de ser modificada a nossa terminologia adjacente da “ função social da propriedade”? Mas haverá direito da propriedade ou antes, mais pròpriamente, uso da propriedade? Se há direito, para ser autêntico e não ido53

M. Nédoncelle, para uma filosofia do amor e da pessoa, Lisboa, 1961, cap.I: A Essência do Amor. 54 F. Perroux e R. Prieur, Communauté et Société, Paris, 1941, p.12. Vid. et. Segunda Parte, cap.IV, Sobre as variedades da consciência colectiva. 178


latrado, não terá que ser sobre o uso da propriedade, o qual vai aferido pela propriedade comum da mesma?55 O Direito de propriedade vai duplamente condicionado: a) pelo bom uso (da propriedade) e b) enquanto dom de Deus, mantém-se sempre um empréstimo.56 A propriedade do ter encontra a sua legitimação na propriedade do ser, que é dever de promover outros a ser pessoa: “ ser para se dar que é ser pessoa no acto de se dar, isto é, na ‘caridade’, no amor”. 57 “ A propriedade constitui, assim, perene exercício de liberdade, é realização da vontade livre na liberdade do dom”. 58 — Riqueza de doação e não de acumulação, de ser e não de haver! “ O Direito de propriedade implica intrìnsecamente o dever imprescindível de a fazer servir socialmente, porque só sobre o fundamento deste dever existe a propriedade de direito e de direito de propriedade”.59 A nossa mentalidade clássica tem insistido demasiado sobre os direitos, que, muito embora fazendo ver as coisas como função das pessoas, conduzem, todavia, ao esquecimento dos deveres mútuos das mesmas pessoas, os quais decorrem, mais que de uma relação de funções, de uma relação de missões mútuas das próprias pessoas.

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M. F. Sciacca, A Hora de Cristo, Aster, Lisboa, 1959, pp.135-168. ibi, p.137. 57 ibi, p.140. 58 ibi, p.147. 59 ibi, p.143. 56

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— MANIFESTO DE UMA ECONOMIA NOVA, AUTENTICAMENTE HUMANA!

— I — UMA FILOSOFIA ECONÓMICA HUMANA: A intolerância dos povos em face das condições infra-humanas do estado de sub-desenvolvimento de 3/4 da humanidade tornou-se uma constante que grita urgentemente por uma ordem social nova; fica assim reconhecido que o objectivo económico não pode ser outro senão a promoção e o desenvolvimento sociais. “ A experiência dos últimos vinte anos mostrou a inadaptação da teoria económica clássica, e provou a inconsistência do racionalismo e do positivismo económico”. 1 Impõe-se com urgência uma filosofia económica nova, que tome consciência séria das novas descobertas, e novas necessidades por elas criadas, de modo a não desconcertar a hierarquia das necessidades — condição fundamental de uma Economia ordenada que se sabe ao serviço do Homem total e universal, — pois persiste ainda no mundo o absurdo: de 60 milhões de homens que nascem por ano, 40 milhões morrem por falta de alimentação suficiente ou adequada. “ O nosso tempo é um vértice de escolhas. Tempo no qual não impera a equação do sábio, economista que igualava o tempo ao dinheiro, mas tempo onde vive a interpretação do grande chefe antigo que, numa terrível hora de decisões, dizia aos seus generais: ‘É o tempo que nenhum dinheiro pode comprar’... “ A tradução concreta de uma filosofia 1

Vittorio Vaccari, O Desenvolvimento Social — Objectivo económico, in ‘Empresa’, Setembro-Outubro, 1962, nº1, p.28. 180


económica em condições de salvar o Ocidente é uma escolha ideológica inadiável”2, até porque só assim se pode obviar à expansão crescente da esfera de influências do mundo comunista e à consequente debilitação e morte da civilização ocidental. “ É o lugar dos homens verdadeiramente livres, porque responsáveis primeiramente diante de Deus que perante os outros homens”. 3 “ Como motivo de esperança, afirmamos que os temas do desenvolvimento social e da filosofia económica podem ser para o Ocidente ocasião de renascimento e de salvação. Estes podem ressuscitar a fé no homem e dar aos povos do Ocidente coragem de lutar pela sobrevivência do ideal religioso da vida”. 4 Esta Revolução que temos a realizar é a de “ levar ao lar do homem médio a convicção de que os valores religiosos não são uma pia invenção que não tem nada a ver com os valores da vida, mas são o caminho — o único caminho — para o conhecimento da realidade e da lei da vida”.5 A “ economia da salvação” faz também parte integrante da Economia! — 2 — UMA ECONOMIA DOS HOMENS OU ECONOMIA PLANETÁRIA, que afaste todo o paternalismo subtil e se decida não pelo dirigismo ou pela corporação, mas pela cooperação e colaboração: — Não é verdade que “ ser homem é precisamente ser responsável” — como disse Saint-Éxupery? “ O bem do operário deve realizar-se pelo operário, nunca sem ele e, com mais razão, jamais contra ele” — eis a regra judiciosamente promulgada por um chefe de empresa. A razão última da tendência natural à colaboração reside no facto de que os homens não podem encontrar-se a si próprios senão através dos outros. Deste modo, os homens são fonte e estatuto de amor! a) São ilusórios e parcialistas os nacionalismos culturais: tornam-se fatalmente fanáticos e estagnantes e caem na mistificação do ‘caso único’. 2

ibi, p.32. ibi, p.33. 4 ibi, p.34. 5 Dawson — cit. por Vaccari, ibidem, p.34. 3

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b) São ilusórios os nacionalismos políticos (‘chauvinismos’!), porque, afinal, toda a política redunda numa política económica. c) São ilusórias e idealistas as próprias ‘economias nacionais’: os espaços nacionais não se confundem com os espaços económicos: — a oposição capitalismo-comunismo e suas crises reduz-se, radicalmente, às contradições no desenvolvimento das sociedades industriais6: “ Hoje em dia revela-se o conflito dos espaços económicos dos grandes centros de produção e dos espaços nacionais territorialmente organizados” 6 Há nacionalismos novos (como os das nações africanas recentemente independentes) que não passam de mera ficção jurídica; e há nações antigas que não reconhecem a realidade económica dos grandes centros industriais... As contradições entre os centros industriais e a política territorial põem-nos perante o dilema: organização por territórios e política económica regionalista e economia nacional, ou organização supra-nacional a partir dos pólos naturais de desenvolvimento e economias funcionais; e dão-nos logo a resposta, concentrando-nos a atenção sobre a dimensão óptima da empresa e de todo o conjunto industrial. As economias nacionais e as políticas regionalistas estão francamente a desintegrar-se. A própria nação “ não é um espaço economicamente homogéneo; possui, incessantemente modificadas pela técnica, suas zonas de crescimento e de progresso, suas zonas estacionárias e de retrocesso”. (p.159). “ A nação, na Europa Ocidental, é desintegrada, como sempre o foi, pelas modificações sobrevindas na técnica industrial e no grande monopólio das indústrias; é desintegrada ainda mais pela chamada política de integração, que não se leva a cabo em benefício de uma Europa abstracta, mas muito concretamente a favor do Ruhr e das indústrias e países que estão mais directamente animados por ele. “ As políticas de regionalismo e a política de integração pluri-nacional não são necessàriamente compatíveis entre si, do ponto de vista de uma nação, e parecem incompatíveis em grande número de casos”. (p.161). A boa integração pluri-nacional “ está destinada a compensar os inconvenientes da nação pequena. Economistas de grande autoridade afirmam que, para não cair na cate6

F Perroux, La Coexistencia Pacífica, México-Buenos Aires, 1960, p.77. 182


goria de potência de segunda ordem, cada uma das nações europeias dos Seis deve integrar-se em todas as restantes”. (p.160). A tendência para a Economia Nova postula uma preocupação na distribuição sócio-geográfica das matérias primas e das empresas industriais (indústrias pesadas que ponham em órbita natural indústrias ‘ligeiras’) pelos seus lugares naturais, a fim de não sofrerem a exploração do mercado e a subida exorbitante de preços; e uma preocupação consciente no jogo competitivo do mercado, o qual ultrapassou o critério da quantidade dos produtos vendáveis pelo da qualidade dos mesmos. O estado actual da economia, com as suas crises e contradições, postula com veemência a planetarização do desenvolvimento económico; esta, porém, exige a desnacionalização confessa dos pólos do desenvolvimento: “ No campo socialista, como no outro campo, não entraria em vigor senão pela desnacionalização dos pólos de desenvolvimento, sua organização sobre a base de gastos e benefícios comuns e a disposição colectiva e racional do meio em que se propagam seus efeitos”. (ibi, p.281). Os nacionalismos estão hoje em contradição consigo mesmos, enquanto o direito dos povos a dispor de si próprios é sobremodo frágil e instável, no estado actual da técnica e da economia, quer para o Ocidente quer para o Oriente. A Economia do Homem, mais racional e humana, “ conserva o contacto com as realidades fundamentais. As relações de homem a homem apesar da riqueza, a capacidade que têm as sociedades dos homens de conquistar a sua prosperidade contra a natureza avara, apesar dos freios e das cargas do enriquecimento. Esta economia redescobre os tesouros do homem: a propensão para criar e a propensão para trabalhar. Esboça, para além das querelas confusas, a propósito de progresso, os caminhos e os meios do Progresso de todo o género humano”. (p.153). É uma economia de funções e serviços. É sintomático que os norte-americanos tenham procurado rebaptizar o capitalismo, chamando-lhe ‘capitalismo democrático’, ‘democracia económica’, ‘democracia industrial’, ‘distributismo’, ‘mutualismo’, ‘produtivismo’, ‘gerencialismo’, etc., para corresponder a uma realidade económico-social já em parte evoluida. d) A suposta economia mundial contemporânea envolve ainda bastantes contradições: — 183


Abatidas as barreiras das Nações e alargados os limites dos Estados à escala mundial, pelos poderes económicos, surge o mercado mundial, onde se degladiam, no entanto..., os nacionalismos-capitalismos, oriundos da ilusão do pretenso carácter nacional da vida económica. (p.232). Porque se procede mais por sentimento que por raciocínio, não se vê claramente a incompatibilidade entre a organização económica por territórios e a organização de uma economia funcional, centrada nos pólos de desenvolvimento supra-nacionais. Os espaços económicos dos grandes centros industriais contemporâneos não coincidem, de facto, com os espaços económicos das nações. Tentam-se de qualquer modo as coalisões e as federações: U.R.S.S. e satélites; U.S.A. e economias periféricas; Grã-Bretanha e Commonwealth, M.E.C., E.F.T.A. ... — mas não se reconhece que as desigualdades de estrutura são tão resistentes que “ proporcionam os melhores argumentos contra a ideia de federações sem federadores principais, ou de grandes mercados desenvolvidos num meio supostamente homogéneo”. (p.186). Na base, o conflito paradoxal “ consiste em que duas economias dominantes estão submetidas às leis das sociedades industriais do século XX. Os pólos de desenvolvimento das grandes indústrias — ambivalentes: armas e ferramentas a um tempo só — proibem-lhes coexistir pacificamente, em bom rigor, e são, também, seus meios essenciais de penetrar nos países sub-desenvolvidos”. (p.296-297). Já se pode também auscultar a solução para a Economia e os países africanos: “As condições fundamentais do desenvolvimento dos conjuntos industriais africanos, unidos aos conjuntos industriais mundiais, ultrapassam todas as pretensões nacionais, ao nível dos seus poderes verdadeiros”. (p.222). O esforço dos Grandes para o desenvolvimento da economia mundial apresenta a contradição flagrante de dois efeitos econòmicamente opostos: construção porfiada de armamentos, improdutivos, e exportação de investimentos e conjuntos industriais. Perante o armamento e o Desenvolvimento, contraditórios..., o homem de ciência não pode aceitar senão a noção de uma economia dos homens. (p.305). Por isso ele vê claro — com Salvador de Madariaga — que “ o desarmamento não é o desarmamento, é o problema da organização mundial”! Não se trata de uma utopia fácil mas de um ideal que grita! pois a ‘coexistência pacífica’ outra coisa não é senão ‘coexistência hostil’!... e) As tarefas elementares da Economia dos homens: — 184


No meio de todas as doutrinas e práticas da coexistência hostil, há uma referência comum básica: o humanismo científico. “ A ciência contemporânea ensina em toda a parte que o género humano é mais capaz de inventar o meio em que se desenvolve que de adaptar-se a ele; os sábios soviéticos declaram-no pelo menos tão ardentemente como os seus colegas ocidentais. Poucos homens de ciência, no Este e no Oeste, negariam que a natureza humana tem sido e pode ser humanizada, e, ao invés, que neste mesmo esforço o homem descobre e prova que supera todas as demais espécies naturais. Este ponto é comum ao materialismo científico, quando evolucionado, e ao idealismo moral, se não se contenta só com palavras”. (ibi, p.407). Relevados os valores da vida, a economia sistemática e doutrinária viu-se em contradições consigo mesma; e brotou com exigência a economia dos homens com três imperativos fundamentnais: 1) alimentar os homens; 2) cuidar dos homens; 3) libertar os escravos.7 Até ao presente a economia da humanidade tem sido uma empresa abortada e de resultados incertos. Impõe-se, por conseguinte, extrair “ uma nova Ciência Económica da Crematística arruinada e vacilante. Não busquemos no passado a verdadeira ciência económica e a conduta racional que ela poderia aconselhar: temo-las diante de nós próprios”. (p.409). Uma economia que supere os capitalismos e os nacionalismos e suprima a fome em toda a Terra; uma economia que não se deixe tentar pelos ‘falsos donativos’ (gifts, grants) das potências ricas e desenvolvidas aos países semi-desenvolvidos e subdesenvolvidos, que entravem a elevação da produtividade e o crescimento das próprias populações, mas que, mercê de uma acção colectiva e solidária, saiba promover realmente as pessoas e as nações. É tempo de proclamarmos em voz alta uma economia humana que leve os países atrazados ao gosto de se iluminarem e responsabilizarem colectivamente, e os países ricos à decisão de distribuir capitais, conhecimentos técnicos e mercadorias a uma escala inédita, mundial; uma economia que monte estruturas e operações colectivas, comuns a países desenvolvidos e países atrazados. Esta economia humana terá como preocupação fundamental uma política séria de saúde e rendimento são e eficaz do homem, de modo que ele não venha a ser destruido ou 7

F. Perroux, o.c., Parte Tercera, Libro II. 185


deteriorado como coisa; desmistificará o lema estaliniano do homem como “ o capital mais valioso”; porquanto “ o homem não é um capital, em qualquer regime que seja, pois isto suporia que está, como um bem material ou uma coisa, submetido a um plano de emprego. Por natureza, ou como ser existente, é sujeito: toda a economia que não se defina em consequência com isto é uma fórmula de poderio ou de enriquecimento directamente inimiga dos homens”. (p.429). A Declaração universal dos Direitos do Homem (a afirmação da liberdade, da igualdade, da fraternidade, reprovação da escravatura e afirmação da personalidade jurídica...) se algo operou na mentalização, ficou, contudo, na realidade, muito aquém. “ A ruptura com a opinião dominante, a denúncia da rotina societária, onde quer que seja, exigem que se escolha uma hipótese realista: até agora, a humanidade tem-se limitado a mudar as formas de servidões impostas aos seus membros para produzir os bens; em conjunto tem-no feito sem chegar ainda a satisfazer as necessidades de todos e cada um”. (p.449). Em face das pessões sociais, realíssimas, de classes e povos inteiros que assumem consciência das realidades, “ nenhum capitalismo no mundo poderá, para o futuro, levar a cabo a lenta libertação dos seus proletariados industriais, guardando no seu seio e nos seus arredores ilhotas-testemunhas de misérias extremas; jardins secretos para escravos semi-libertos”. (p.451). A realidade crescente das “ regiões naturais trans-nacionais” — como lhe chamou Julian Huxley —, os movimentos mundialistas pugnam hoje decididamente por uma ‘economia generalizada’, planetária; e por uma autoridade mundial. Adolf Berle8 escreveu com realismo profético: “ quem pense que um governo mundial é hoje possível, não tem sentido da realidade. Este governo é agora impossível. Igualmente, de quem não trabalhe para construir um governo mundial, há que dizer, muito simplesmente, que não conhece o mundo em que vive. De aqui a duas ou três gerações, menos porventura, será verosímil esta alternativa: ou será um facto consumado um governo mundial, ou morreremos nas explosões de uma luta mundial que, eventualmente, nem sequer será uma guerra mundial”.

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Tides of Crises, Nova York, 1957, p.245; cit. in Perroux, o.c., p.463. 186


E Perroux comenta: “ Se não se põe freio às chuvas radioactivas, ficarão expostas a dores terríveis e à morte massas humanas; se os armamentos prosseguem, continuarão morrendo massas humanas de fome e de inanição; se estala uma guerra mundial, serão destruidas massas humanas e a espécie afundar-se-á numa regressão cuja severidade e duração não podem prever-se”. (p.463). Em ordem ao processo urgente de transformação humana da economia, não queríamos terminar sem uma alusão encarecedora dos 21 ‘Princípios de uma Carta Económica’ de Lovinfosse e Thibon9, que propugnam, essencialmente, uma economia dinâmica, baseada no princípio da convergência dos interesses e dos esforços para o bem comum, uma economia do Serviço em que o Estado é o primeiro servidor do bem comum, em prol da unidade orgânica da natureza humana e de todo o corpo social, uma economia da pessoa humana, que não é uma máquina de produzir e consumir, mas meta de liberdade e espiritualidade. * A Economia humana, do Dom, do Serviço, a economia da Comunidade de Trabalho, a economia social mundial colocará bem no centro o Homem, com a sua dignidade altíssima de Pessoa: “O Homem é a imagem de Deus, uno e trino, e, portanto, pessoa, irmão do Homem-Deus, Jesus Cristo, e, com Ele e por Ele, herdeiro da vida eterna. Tal é a sua verdadeira dignidade” — disse Pio XII aos operários da FIAT. 10 E Leão XIII explicita na ‘Rerum Novarum’: “ A dignidade do homem, que o próprio Deus tanto respeita, ninguém a pode violar impunemente. Ninguém pode opor-se ao avanço do homem para a perfeição, em ordem à vida eterna, no céu. Mais ainda. Nenhum homem se pode espontaneamente dispensar da dignidade da sua natureza, nem consentir no envilecimento da própria alma, visto não se tratar de direitos de que tenha a livre disposição, mas sim de deveres para com Deus, que se devem cumprir religiosamente”.

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Solução Social, Lisboa, 1951, pp.189-194. em 31/10/1948.

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* O Comunismo incorreu em dois vícios na sua pretensa redenção do Homem: — a) creu ser suficiente a revolução das estruturas (renovação material); b) esqueceu, subsequentemente, que a revolução primeira, que tudo conduz, é a revolução da mentalidade, do espírito (renovação espiritual). Há também dois vícios paralelos difusos em certas cristandades: a) os cristãos que, na ânsia generosa de incarnar o Cristianismo Social e construir uma Sociedade Nova, se comprometem, de tal sorte, na realidade-Classe (facto que aliás não pode hoje escamotear-se!), que descambam no classismo, seduzidos pela miragem da suficiência da revolução das estruturas; b) os cristãos que, querendo a todo o custo pôr-se a salvo do progressismo, pensam efectuar a Revolução única e simplesmente com a mudança da mentalidade e do espírito, esquecendo, em consequência, a realidade dura da classe e a reforma necessária das estruturas. O Cristão social autêntico sabe considerar atentamente a realidade-Classe e as estruturas diferenciadas em ordem a superá-las, suavizá-las e destrui-las alfim, na meta! Tem consciência de toda a realidade, no processus; tem plena consciência do Modelo = a Sociedade Nova, a Economia Nova: — e assim, pode, rectamente, julgar e agir! Ele não só defende mas propõe, apaixonadamente, a economia humana, cristã, a economia de Cristo! A Economia do Ser, em vez da Economia do Ter, do Dar em vez do Adquirir, do Dom em vez da acção mercantil de compra-venda; sabe que o Homem total e universal é o único padrão válido dos valores económicos, e por isso, a sua economia terá que ser social, à escala de toda a sociedade humana. — Os instrumentos da técnica e a ciência da produção... estão socializados; só o homem não está ainda socializado, porque não acompanhou a socialização dos meios de produção!... Por isso, ele continua em regime de economia de mercado — economia solitária-individualista-de exploração — economia do indivíduo!... Até ao século XIX, o homem realizou a socialização de expansão — que não é ainda a sua socialização própria! Hoje, ele está no advento auroral de uma socialização-por-compressão — que é a sua socialização: descerra-se-lhe a era de uma Sociedade 188


Nova, de uma políticia económica nova, porque baseada numa Política pessoal e social autêntica: a era da planetarização, da totalização, da Personalização! A Unidade deste Mundo Novo, dos ‘novos céus e nova terra’ só poderá ser garantida pelo Espírito, no vínculo da paz, que nos leva a admitir um só Corpo e a professar um só Deus e um só Senhor, porque com uma só Fé: — “ Obsecro itaque vos ego vinctus in Domino, ut digne ambuletis vocatione, qua vocati estis, cum omni humilitate et mansuetudine, cum patientia supportantes invicem in charitate, solliciti servare unitatem Spiritus in vinculo pacis. Unum corpus et unus Spiritus, sicut vocati estis in una spe vocationis vestrae. Unus Dominus, una fides, unum baptisma. Unus Deus et Pater omnium qui est super omnes et per omnia et in omnibus nobis”. (Ef. 4,1-6). “Et dixit qui sedebat in throno: Ecce nova facio omnia”! (Apoc. 21,5).

* Post-Scripta ─ Muito mais que interpretar o Mundo, o que é preciso e urgente é transformá-lo (como muito bem lembrou K. Marx na 11ª Tese sobre Feuerbach). Nas suas reflexões sobre a nova Arte Abstracta, que se configura no horizonte crítico, para além da superfície das coisas, ou seja, para além das tradicionais Artes da Representação do Mundo, Kapoor (o artista indiano/israelense) baliza engenhosamente o seu universo estético, a partir da Filosofia (que trata das relações dos Humanos com a Natureza) e da Poética (no sentido etimológico de póesis = estro criador), que estuda e plasma os novos seres e processos a construir e edificar, na base de três parâmetros principais: a) a noção de Escala (exigência da adequada concretude dos seres); b) a noção de Espaço (o real, mas, sobretudo, o do nosso Imaginário); c) e a noção de Tempo (na medida em que todos os existentes, conscientes ou não…, levam, inexoravelmente, a sua marca temporal, espácio-temporal).

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Com efeito, as grandes Revoluções são as que ultrapassam a cartilha e o horizonte habituais da Representação (tanto nas Artes como na Filosofia e nas Ciências…) e porfiam na vera póesis criadora, capaz de dar Resposta adequada ao universo da Consciência e da Interioridade dos Humanos. ─ Reduzir e confinar a Biónica humana aos processos e mecanismos do Mimetismo (como ainda hojé é corrente…) é equivalente a ficar resignado às tradicionais Artes da Representação, em suma, à cartilha humanóide do Homo Sapiens tout court, e não aceder ─ como é dever da Espécie ─ à gramática humana do Homo Sapiens//Sapiens. Esta Lição crítica é-nos ensinada pelos Gnósticos. Eis por que é preciso e urgente recuperar o universo gnóseo-epistémico (crítico) dos Gnósticos judeo-cristãos primevos da Escola de Alexandria; ─ sem isso, não haverá salvamento/salvação possível para a Espécie Humana. Não é a Religião (se e enquanto fenómeno avaliado filosoficamente!...) que é ‘o ópio do povo’ (como pretendeu K. Marx). O vero ‘ópio do povo’ são, outrossim, as religiões institucionalizadas (todas elas!...), na medida em que praticam, sistemicamente, a perversão e o perjúrio, a partir do híbrido material armazenado no Imaginário humano. Elas não humanizam nem promovem a divindade de todos os humanos (como lembrou o Salmo hebraico 81,6)… Bem pelo contrário: elas constituem-se como fonte e origem de um falso Poder; incrementam as hierarquias e promovem a servidão e a escravatura. Em última instância ou análise, a Potestas (constituída) é sempre uma só… Por uma razão fundamental: se a Liberdade tem a sua origem nos Sujeitos humanos, do mesmo modo a Autoridade/Poder é oriunda da mesma Fonte. Em última análise ou instância, não há dicotomia ontológica entre Sujeito e Objecto, ─ o que, em si mesmo, constitui um filosófico postulado essencial da Consciência humana individual-pessoal, enquanto tal.

M.R. (Guimarães/2012).

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NOTA BIBLIOGRÁFICA — Le Encicliche Sociali dei Papi, a cura di Igino Giordani, 4ª ed., Roma, 1956. — J.-Y. Calvez e J. Perrin, Église et Société Économique, Paris, 1959. — Pierre Bigo, Marxisme et Humanisme, P.U.F., Paris, 1954. — Erich Fromm, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1961. — A. Fanfani, Economia, Brescia, 1948. — Henri de Lovinfosse e Gustave Thibon, Solução Social – para uma economia nacional humana, Lisboa, 1951. — Giacomo Soleri, Economia e Morale, Borla, Torino, 1960. — François Perroux, L’Europe sans rivages, Paris, 1954; La Coexistencia Pacifica, México-Buenos Aires, 1960; Economia e Sociedade, Liv. Morais Editora, Lisboa, 1962. — F. Perroux e R. Prieur, Communauté et Société, Paris, 1941. — Mário Murteira, Crescimento económico e Sistemas sociais, Liv. Morais Editora, Lisboa, 1962. — Carlos de Mello, Círculos Viciosos, Editora Arcádia, Lisboa, 1963. — Clément Mertens, Iniziazione alla Economia Sociale, Marietti, Torino, 1954. — As conferências do Curso de Estudos Económico-sociais, promovido pelo CADC-JUCF-UCIDT, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, de 15 a 23 de Janeiro de 1962. — As conferências do II Encontro Nacional dos Diplomados Católicos: Perspectivas cristãs do Desenvolvimento Económico; Encontro organizado pelas direcções gerais da LUC e da LUCF, primeira fase distribuida durante o ano, e segunda fase concentra191


da nos dias 17 a 19 de Maio de 1963. — Acompanham-se com muito interesse as Revistas: Économie et Humanisme, Les Éditions Ouvrières; Aggiornamenti Sociali, Centro Studi Sociali-Milano; Empresa da UCIDT. — Sobre a Economia do Dom, mais propositadamente, é interessante a obra de Bernhard Laum: Die Schenkende Wirtschaft, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1960, 495 pp. — De grande alcance para a fundamentação no amor e na Pessoa é a obra de Maurice Nédoncelle: Para uma Filosofia do Amor e da Pessoa, Liv. Morais Editora, Círculo do Humanismo Cristão, Lisboa, 1961.

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ÍNDICE GERAL E ESPECÍFICO

I INTRODUÇÃO AO ENSAIO SOBRE ‘ A ECONOMIA DO DOM’

p. 1

PRÓLOGO DO AUTOR

p. 2

Exergos de Enquadramento …………………………………………… p. 2 A: Como surgiu o Ensaio, o que o balizou ideológico-culturalmente, e as reacções sócio-culturais que ele veio a desencadear …………… p. 5 B: No contexto da Contemporaneidade hodierna (e no horizonte da Pós-Modernidade positiva e crítica), o Ensaio em causa é pertinente e ainda pode ser útil e fecundo ………………………………………. p. 7 1. Recuperar M. Mauss, na sua inteireza gnóseo-epistémica …………. p. 7 2. Das mistificações e abastardamentos na recuperação de M. Mauss .. p. 10 194


C: Rumo ao horizonte crítico de uma Decisiva Pós-Modernidade positiva e crítica, enquanto Diapasão de regulação e orientação da nossa Contemporaneidade …………………………………………… p. 15 D: Será que a gramática da Pós-Modernidade positiva e crítica vai abrindo caminho? ─ Duas situações típicas ………………………. p. 19 E: Mudar de Cultura e de Epistemologia, ─ é preciso e urgente: Reinventar a articulação adequada de Economia e Política …….. p. 27 ● Em defesa da Identidade dos Indivíduos-Pessoas, qua tais ........ p. 34 ● Política//Economia//Sociedade (2012) …………………………... p. 36 F: Sobre a Decadência da U.E. perante o novo advento do Imperialismo (capitalista) serôdio e impenitente ……………………….. p.37 ● Declínio e Dissolução da U.E. ou Superação da ‘Crise’?! …….. p. 41 G: MULTICULTURALISMO E GLOBALIZAÇÃO (─ Mundialização é a palavra precisa e não dissimuladora, na apercepção feita à superfície das coisas…) ……………………….. p. 50 H: Das Teologias e da pressuposta Noção central de Deus …………. p. 57 O CEHC E A LAICIDADE ……………………………………….. p. 59 I: Três Tipologias principais de Organização das Sociedades Humanas ……………………………………………………………….. p. 62 Quais os caminhos a seguir? ………………………………………. p. 66 J: Temas avulsos de uma Quermesse up-date ……………………… p. 70 ● Sobre a história do Sistema capitalista, na Cultura do Ocidente ……………………………………………………………… p. 70 195


● Das dificuldades em acertar no alvo com precisão ………….. p. 71 ● A sempre insinuada e incontornável perversidade a meias … p. 71 ● Mas as Crises continuam descabeladamente (e sem controlo) everywhere… …………………………………………………… p. 74 K: Sob o catecismo da Cultura da Potestas-Dominação d’abord? Até quando?! ……………………………………………………….. p. 76 ● Uma referência, en passant, aos Jogos Olímpicos de 2012 …… p. 79 L: Uma Boa Filosofia é sempre necessária e indispensável, para pensar certo e agir/actuar bem no universo humano …………… p. 81 M: Uma Boa Metodologia é sempre necessária e imprescindível, no mundo das Sociedades humanas, tanto no plano do pensamento vero e certo e das consequentes decisões a tomar, como no plano do agir/actuar justo e bom …………………………………………. p. 90 ● Em demanda do vero e autêntico Socialismo a construir …… p. 91

* II ECONOMIA DO DOM

p. 99

Ensaio para uma ECONOMIA NOVA ─ Crítica e Absolutamente HUMANA ……………………………………………………………………. p. 100 Sumário ………………………………………………………………………. p. 101 ─ Introdução ……………………………………………………………………. p. 103 O Móbil da nossa Análise de índole Ético-económica …………………….. p. 103 Renovação da Ciência e da Actividade Económicas ……………………… p. 106 196


Alguns Dados da Problemática Económica Contemporânea ……………. p. 110 Alguns Pregoeiros da Nova Economia: a Economia do Serviço e do Dom ─ ‘Oeconomia hominis et quidem socialis’! ……………………………….. p. 116 ─ Patologia da Sociedade Contemporânea ………………………………….. p. 124 ─ Esboço de uma Terapêutica Geral ………………………………………… p. 135 ─ Auto-Crítica da Economia-de-Mercado ………………………………….. p. 146 O Ideal que a Visão dos Ocidentais enxerga é a Economia sem Escassez e a Sociedade sem Coacção ……………………………………………. p. 150 ─ Projectos de uma Economia Nova: a Economia do Dom: Contra a Economia do Ter, do ‘Deve e do Haver’, a Economia do Ser ………………. p. 171 ─ Manifesto de uma Economia Nova, Autênticamente Humana! ………… p. 177 Post-Scripta …………………………………………………………………. p. 186 Nota Bibliográfica ………………………………………………………….. p. 188

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