Em Busca da Outra Humanidade

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MANUEL REIS

EM BUSCA DE OUTRA HUMANIDADE (ENSAIO CIENTÍFICO)

VOL. I


Outros Títulos explicativos de sentido e âmbito globais:

A) A CONSCIÊNCIA: „FONS ET ORIGO’ DO „HOMO SAPIENS//SAPIENS‟

B) REIVINDICANDO A CONSCIÊNCIA COMO COEFICIENTE INDISPENSÁVEL E DECISIVO NA CULTURA E NA CIVILIZAÇÃO DO „HOMO SAPIENS//SAPIENS‟

C) O QUE, À CULTURA E À CIVILIZAÇÃO MAIS DEVE IMPORTAR E INTERESSAR, HOJE, À ESCALA DE CADA NAÇÃO E À ESCALA INTERNACIONAL-MUNDIAL, É A FORMAÇÃO DE SERES HUMANOS QUE SEJAM INDIVÍDUOS-PESSOAS/CIDADÃOS, LIVRES E RESPONSÁVEIS. O RESTO VIRÁ POR ACRÉSCIMO!... 2


EXERGOS INICIAIS

* Enquanto não se admitir, intelectualmente, e aceitar, na praxis societária, em definitivo (na vida corrente dos Seres humanos em Sociedade), o primado do Saber sobre o Poder, os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos e os governantes de turno (no seu encalço) nunca serão capazes de percepcionar (criticamente!) as sérias e justas preocupações/razões que os Anarquistas sempre tiveram e continuam a ter para defender a Anarquia e o Anarquismo e, bem assim, edificar, eo ipso, a DEMOCRACIA radical, i.e., a DEMOCRACIA digna do nome. Sem mais comentários... * Que é o Despotismo Iluminado, no seu núcleo duro, e como surgiu, historicamente, este fenómeno perverso e maquiavélico na Cultura/Civilização do Ocidente?! — É a pretensão (preocupação...) de emancipar/libertar os outros (seres humanos...), sem que eles sejam o motor primeiro da sua própria Emancipação/Libertação. À rebelia das Mensagens gémeas de SÓCRATES e de JESUS, o fenómeno do Despotismo Iluminado emergiu, no Processo civilizatório/cultural do Ocidente, justamente a partir do momento em que se abandonou o Diálogo socrático e a Justiça jesuânica. Há, efectivamente, Despotismo Iluminado sempre que os Seres humanos (investidos nas condições de pais/mães, mestres, chefes ou governantes) não são capazes de dialogar e discutir, criticamente, os planos e os programas que é preciso erguer e construir em comum, para o Bem de toda a Sociedade.

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O fenómeno emergiu, historicamente, em termos institucionais, logo que a Cultura do Ocidente se tornou incapaz de operar e praticar a distinção (estrutural/estruturante) entre o Saber e o Poder e, ao mesmo tempo, admitir e pressupor o primado do Saber (cuja raiz reside, em última instância, no Indivíduo-Pessoa/Cidadão, real ou potencial) sobre o Poder. Este é o vero ‗pecado original‘ do Ocidente: o qual toma corpo, teoricamente, em Platão (que traiu Sócrates) e em Paulo (que atraiçoou Jesus). Em termos institucionais, ele foi configurado e legitimado, mediante a oficialização (constantinização) do Cristianismo paulino, no molde (anterior) do Império Romano, por obra e graça de Constantino-o-Grande; depois, mediante a conversão de todo o reino dos Francos, no encalço da conversão do rei Clovis. And so on, ao longo do Processo Histórico... Em resumo, todas as Revoluções sociais, ao longo de dois milénios e meio, e as modernas não foram excepção (!...), actuaram segundo a mesma cartilha do Despotismo Iluminado. * É preciso e urgente demolir, na Cultura/Civilização do Ocidente, a ideologia cultural do Dualismo metafísico-ontológico (platónico e paulino). Ela contagia e estigmatiza, no sentido negativo e perverso , toda a arquitectura do Edifício. Na verdade, as hipotecas do Dualismo metafísico-ontológico encontram-se, indissoluvelmente, associadas à Tese estrutural geminada da sempiterna Potestas-Dominação d’abord: — Nas suas raízes, é substancialmente homogénea a teoria/ /doutrina da imortalidade da alma (seja, v.g., no horizonte dos cristãos, seja no horizonte do druidismo e da sua doutrina da metempsicose): (cf. ‗Os DRUÍDAS e os DEUSES CELTAS sob a forma de Animais, de Henri D‘Arbois De Jubainville, Sintra, 2009, pp.103 e ss.). — O positivo da concepção/doutrina da imortalidade da alma, sob o invólucro negativo da sua semântica directa e aparente, pode identificar-se como segue: assinalar a identidade indestrutível do Eu dos Seres humanos, os quais são dotados de consciência reflexiva e crítica. Esta dimensão semântica do Fenómeno humano, vista em profundidade (e para além das mistificações construídas pelas religiões 4


institucionalizadas), não se pode ignorar, ao longo da História das Culturas e das Civilizações!... Em boa hora, Victor Hugo estabeleceu a tese antropológico-civilizacional seguinte: ―Primeiro, foi necessário civilizar o Homem/em relação ao próprio Homem. /Agora é necessário civilizar o Homem, /em relação à Natureza e aos Animais‖. Ora, até ao presente, a História das Civilizações, nem realizou o primeiro projecto nem o segundo. Por ter começado, erradamente, pelo segundo, em vez do primeiro... — segundo a ordem ontológica de V.H., que estava certa, visto que é a do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. Que a tua linguagem seja: Sim ou Não! Nada de juras!... (Mt. 5, 34-37). A propósito da semântica profunda (intrínseca) do Fenómeno da Consciência humana e do específico significado nuclear da generalizada crença na imortalidade da alma (seja esta construída em esquema de Dualismo metafísico-ontológico ou, no esquema mais geral, da metempsicose), enquanto confirmação — a mais radical — daquele Fenómeno, deverá advertir-se no seguinte: O mais importante e decisivo, na estruturação do Fenómeno da Consciência, é a emergência do Eu; não é a vigília, nem a mente (consciente). É, de resto, esta mesma ensinança, que nos é feita por A. Damásio (in ‗O Livro da Consciência‘, Círculo de Leitores, Lisboa, 2010, p.228). A dinâmica da sua formação acha-se ordenada em três fases: 1ª - a do proto-eu; 2ª - a do eu nuclear; 3ª - a do eu autobiográfico (cf. ibi, p.229). Estes são, com efeito, os três estádios imbricados, que entram na formação completa do Eu. Uma tese psico-cultural/civilizacional, que é mister acrescentar ao painel descritivo de Damásio, consiste no seguinte: Nas suas três fases, o Eu funciona como testemunha da Identidade do Sujeito livre e responsável, na estrutura do Fenómeno da Consciência Humana, e por tudo quanto concerne à Agência de Conhecimento dos humanos. Essa qualidade de testemunha afirma-se nos dois níveis (que têm as suas raízes na própria anatomia fisiológica do cérebro humano): a) o gnóseo-epistemológico; b) o ético-moral.

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Essa tese constitui um dado, quase sistemicamente ignorado e esquecido na Cultura corrente, que é a do ‗Homo Sapiens tout court‘. Uma tópica padronizada desta fenomenologia: Recebe-se, com muito mais facilidade, uma qualquer mercadoria de um comerciante generoso, do que se toma o conselho de uma pessoa experimentada. Não diz a Sabedoria: ‗tomai conselho só de experimentados‘?! (Cf. ‗Uma Viagem à Índia‘, de Gonçalo M. Tavares, Caminho, Lisboa, 2010, p.455; p. 414; p.407; p.421). * Na Apologia de Raymond Sebond, Michel de Montaigne (descendente de ‗cristãos-novos‘ e grande promotor, no seu tempo, do cepticismo pírrico, como a vera alvorada dos Tempos Modernos) deixou-nos, em legado, esta objurgação irónica: ―O mal da Humanidade é o conceito de Conhecimento. É por isso que a ignorância nos é imposta pela religião, como sendo um elemento fundamental da nossa fé‖. * Na esteira de ‗Ciência com Consciência‘ de Edgar Morin (ed. por Europa-América, Mem Martins, década de ‘80 do séc. XX), cuja bandeira também se pode aplicar, criticamente, ao livro recente de António Damásio: ‗O Livro da Consciência‟/A Construção do Cérebro Consciente, Círculo de Leitores, Lisboa, 2010. * Respigando Notas de uma Palestra, proferida pelo Autor na Escola Secundária Martins Sarmento (Guimarães: 22/10/2010), para professores e pais/mães ou encarregados de Educação, sobre Problemática actual da Educação e do Ensino: ―O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única bússola a conveniência individual. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe solidariedade entre os cidadãos. Já não se acredita na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se, progressivamente, na imbecilidade, na rotina e na inércia. O 6


povo está na miséria e já não tem dinheiro para os medicamentos de receita médica. Os serviços públicos acham-se entregues a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta, assustadoramente. Vivemos todos ao acaso, sem dar conta do fenómeno... Uma perfeita e absoluta indiferença, de cima para baixo, nas hierarquias societárias! Dir-se-á que o viver espiritual e intelectual se dissolveu como num deserto!... O tédio invadiu as almas, e as consciências, de tão embotadas, já não dão conta dos problemas. A mocidade arrasta-se, envelhecida e sem rumo, das secretárias para os cafés e as boîtes. Estrangulada pelo cofinho/açaime das Finanças públicas em dívida, a Economia nacional deixa alargar e crescer a sua ruína... O comércio definha, a indústria sofre de raquitismo... Salários são maquiados e rendimentos diminuem brutalmente... De modo generalizado, o Estado está já a ser considerado, na sua actuação final, como um ladrão e um inimigo, que já não discerne a moralidade dos meios para atingir os seus fins!...‖ * Sobre a Equação tradicional, dogmaticamente estabelecido e imperante (uma sorte de Regra de três simples): Os Objectos (seu tráfico e traficância...) estão para a Gnóseo-Epistemologia, como o Capital (e sua especulação financeirista) está para a Economia Política neoliberalista (designada por Khrematística, segundo Aristóteles, ou por Economicismo no jargão corrente). A pergunta ad hominem que é forçoso formular é esta: Quando irá a Humanidade sair deste Inferno?!... O que é, afinal, a mais subtil e execranda Ditadura (o Economicismo, mundialmente reinante...), a isso é dado o nome eufemístico de Democracia Representativa/(Burguesa)‘!... * Para uma definição básica e elementar da CULTURA: Transmissão de conhecimentos e práticas de vida de uma geração para outra, através de agentes/actores de Educação/Instrução. É óbvio que, nesta acepção, poder-se-ia dizer, com alguma propriedade, que, por exemplo, os chimpanzés e os bonobos (capazes de fazer instru-

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mentos para capturar as suas presas) são depositários de uma dada ‗cultura‘. (Sobre esta problemática, são ainda pertinentes e úteis os livros seguintes: ‗Hommes et Machines‘, de J. Laloup e J. Nélis, Casterman, 1962/4ª ed.; ‗Communante‘ des Hommes‘, iidem, Casterman, Tournai/Paris, 1959/5ª ed.; ‗Culture et Civilisations‘, iidem, Casterman, 1963/4ª ed.. ‗Guerra e Civilização‘ de Arnold Toynbee, Edit. Presença, Lisboa, 1963. As ressalvas críticas a fazer, de índole estrutural-estruturante: Há desvio e dolo, quando pugnamos, sem mais, por um ‗Humanismo Técnico‘; ou por um ‗Humanismo social‘, construído a partir da noção aristotélica do Homem como Animal racional, sem mais; ou por um ‗Humanismo histórico‘, que não pôs em causa as tradicionais ‗leis dialécticas‘ da História, hegelianas ou marxistas. Erra-se, ainda, o alvo da Evolução Antropogenética, quando, na organização sócio-política, como acontece em A. Toynbee, se mostra preferência por Esparta em detrimento de Atenas, e se admite o modelo da organização imperial/ista a tal ponto, que a guerra e o militarismo nunca poderão ser superados e atirados para o caixote do lixo da História da Humanidade, e a Espécie Sapiens//Sapiens nunca poderá romper o odre da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. Todos os historicismos deste tipo, que a Humanidade tem conhecido, pagam o seu preço vital à Teoria/Doutrina do Dualismo metafísico-ontológico.). No horizonte crítico do C.E.H.C., será necessário dar mais dois passos decisivos, para nos introduzirmos, substantivamente, na Cultura humana (definida em contraposição à Natura e segundo a pauta do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘): A) a capacidade de inventar novos instrumentos para resolver os problemas, entretanto, emergentes; B) a capacidade de substituir e suplantar, com êxito, os processos naturais, regidos e governados pela lei draconeana da ‗struggle for life‘ e do primado puro do ‗mais forte‘. Neste horizonte, uma Cultura humana substantiva adoptará a gramática da Cooperação e da Colaboração, inter pares, em vez da cartilha (verticalista...) da exploração/opressão e da dominação dos mais fracos pelos mais fortes.

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* Contra o método moderno da compartimentação estanque dos estudos e da investigação; contra toda a sorte de Mecanicismo, muito especialmente no universo da Biologia e da Psicologia e da História e, em geral, em todo o hemisfério das ciências psico-sociais e/ou humanas. Por exemplo, no concernente ao futuro da Genética, o mais importante e decisivo é a história médica da família: ―Ninguém está a argumentar que o ADN deva ser ignorado. A questão consiste em ler os genes directamente e no vazio — como fazem os scans do genoma pessoal — ou indirectamente mas no seu contexto, e tudo e sempre focalizado naquilo que a história médica da família provê, como esclareceu Charis Eng do Instituto de medicina Genómica da Clínica de Cleveland‖. (Sharon Begley, in ‗Newsweek‘, 22.11.2010, p.24). * ―A massa nunca se eleva ao padrão do seu melhor membro; pelo contrário, degrada-se ao nível do pior‖. (Henry Thoreau: 18171862). O que o apotegma segreda, semanticamente, é a dinâmica tensional corrente, expressa na díade opositiva: ELITES//MASSAS. Muito cuidado com o discurso e a linguagem... Por este caminho, nunca mais evoluiremos para o patamar da Espécie (humana) SAPIENS/ /SAPIENS. A espécie ficará, então, definitivamente, refém da cartilha de funcionamento societário da sempiterna Potestas-Dominação d’abord. Eis por que a vera Cultura humana substantiva tem de ser operacionalizada e actuada em dois parâmetros essenciais (que, embora andem habitualmente juntos, não se devem confundir), a saber: a Instrução e a Educação. (Esta é a temática bifacial do nosso Livro: ‗De Instructione et De Educatione‘, São Paulo, 2010). Um alerta muito importante: Para as diversas e multímodas corrupções, procedentes das conhecidas massificações (e objectualizações inadequadas) só nos restam dois remédios convergentes nos seus efeitos salutares: A) Reivindicação da Identidade singular de cada Indivíduo-Pessoa (sua inteligência/espírito e consciência), empreendimento a levar a cabo, nos planos activo e passivo, e nas vertentes do 9


Indivíduo e da Educação institucional crítica. B) A prática, consistente e fecunda, do Diálogo socrático, enquanto a vera fons et origo da Autenticidade e da Boa Saúde das Sociedades humanas, enquanto tais. * Motes dos Clássicos: — ―O Homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto existem e das que não são enquanto não existem‖. (Protágoras: séc. V a.E.C.). —―Luta pelo mérito e ama a justiça; não te domine a ganância, que é ignomínia‖. (Teógnis: séc. VI-V a.E.C.). —―Aos homens todos é dado conhecerem-se a si mesmos e saberem pensar‖ (Heráclito: séc. VI-V a.E.C.)... ―porque pensar é o mesmo que existir‖ (Parménides: séc. VI-V a.E.C.). — ―Ser sensato é a maior excelência, ser sábio é dizer a verdade e proceder de acordo com a natureza‖. (Heráclito: séc. VI-V a.E.C.). — ―Não me estimes só com palavras, se outro é o pensar da tua mente: se és amigo e tens ânimo fiel. Estima-me de coração puro, ou despede-me e odeia-me abertamente, suscitando uma contenda. Quem tem um coração separado da língua é vil companhia‖. (Teógnis: séc. VI-V a.E.C.). * O conhecido intelectual brasileiro Millôr Fernandes levou a leilão (na Internet), em jeito de desafio ad hominem, a seguinte Pergunta: ―Qual a diferença entre Político e Ladrão?‖ A Resposta mais brilhante veio de Fábio Viltrakis, e é do teor seguinte: ―Caro Millôr, após longa pesquisa cheguei a esta conclusão: a diferença entre o político e o ladrão é que um eu escolho, o outro me escolhe. Estou certo?‖. A réplica de Millôr é como segue: ―Puxa, Viltrakis, você é um gênio... Foi o único que conseguiu achar uma diferença!‖ — Ironia q.b.. *A Civilização fundada na Cultura do ‗Poder-Dominação d’abord, (que é, ainda, a predominante no Ocidente e a hegemónica à es10


cala do Mundo globalizado), não tem outra cartilha de funcionamento senão a do ‗livre arbítrio‘/lei do pêndulo, ao qual hipocriticamente se dá o nome de Liberdade!... O pêndulo, como é sabido, só se desloca em dois sentidos, aparentemente opostos... se o relojoeiro, o Poder Estabelecido, não se esquecer de dar corda ao relógio!... Com efeito, a cartilha de funcionamento da Civilização, que ainda é predominante e hegemónica à escala do Mundo, é a que o escritor e realizador cinematográfico alemão Rainer W. Fassbinder traduziu e expressou no seu filme titulado: ‗O Direito do Mais Forte à Liberdade‘. * A Civilização, que adoptou sem reservas o Sistema capitalista smitheano como cartilha de funcionamento, não tem, absolutamente, condições para lidar com os Seres humanos, na sua integralidade cívica e moral e na sua integridade bio-física. O capitalismo é um sistema predatório e onzeneiro, absolutamente incapaz de assegurar a condição humana dos Indivíduos-Pessoas livres e responsáveis... uma vez que os reduz sistemicamente, a objectos e a coisas. Na vertente da produção, eles não passam de agentes no processo de produção; na vertente do consumo/consumismo, eles são considerados como agentes ávidos e sedentos, abertos a todos os produtos (veros ou falsos... bons ou maus...). Por exemplo, no que diz respeito às condições gerais e estruturais de Saúde (pública e privada). A Medicina e a Farmacopeia, em Sistema capitalista, pode preocupar-se com a cura imediata das doenças e das epidemias... Mas não sabe preocupar-se com os meios e os processos da Prevenção (sistémica) das doenças e epidemias, sobremaneira aquelas doenças como as cancerígenas, que não tendo (ainda) terapêutica eficaz, não dispõem de outra solução a não ser apostar na Prevenção, — o que se pode conseguir, eficazmente, reforçando o sistema imunitário do organismo, através de dietas e de uma alimentação assistida medicamente. * Sob o signo de Leo Tolstoi (1828-1910). 11


Em carta enviada de Paris ao seu amigo Botkin (entre 1857 e 1861, quando viajou pela Europa dita civilizada), ele escrevia: ―A verdade é que o Estado é uma conspiração criada, não apenas para explorar, mas acima de tudo para corromper os cidadãos. Daqui para a frente, nunca servirei qualquer governo em parte alguma‖. — Esta concepção crítica do Estado ainda não foi ultrapassada, porque ainda não se rompeu o odre, em termos culturais/civilizatórios, da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. Estrutural e substantivamente, não se saiu da ‗Sociedade (dualista) do Eterno Retorno‘!... No livro ‗Ressurreição‘, Tolstoi escreveu: ―O único fim dos tribunais é o de manter a sociedade tal qual como está‖. Foi no encalço destas avaliações críticas radicais, que Tolstoi se empenhou em promover a Educação como o mais importante e decisivo Factor de Mudança, nas sociedades humanas; uma Educação chancelada com o ideário da Democracia. Fomentar a Educação democrática e disseminar, por toda a parte, a palavra impressa, constituirão, assim, para ele, os dois projectos mais importantes e decisivos, que acalentou. Neste horizonte, ele fundou toda uma série de escolas para camponeses pobres. Só de uma assentada, promoveu a fundação de 13 escolas na sua cidade natal, Iasnaia Poliana (literalmente a ‗clareira luminosa‘). Da sua bíblia de vida, faziam parte princípios éticos como: Não se pode vencer o mal com outro mal e não se pode ser bom só pela metade. É pelo amor da verdade que se chega à consciência da Liberdade (Responsável): ―Não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência‖. Por outras palavras, a Liberdade Responsável tem de ser assumida por inteiro. ―O segredo da felicidade não é fazer sempre aquilo que queremos, mas querer sempre aquilo que fazemos‖. Nos últimos anos, Tolstoi tornou-se um pacifista radical. E, aos que se intrigavam com o seu comportamento; ele deixou escrito: ―Querer saber se não é errado ser o único, ou um dos poucos, não violentos entre tantos seres vivos, que praticam a violência, não é diferente de

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querer saber se seria possível ser sóbrio entre tantos bêbedos e se não seria melhor que todos começassem já a beber‖!... * Sobre o cruzamento, necessário e indispensável, das três dimensões da existência: Conhecer, aprender, mudar: ―Vivir es conocer, conocer es cambiar y cambiar es aprender. Vivir es aprender, aprender es cambiar y cambiar es conocer. Y, por último, vivir es cambiar, cambiar es aprender y aprender es conocer. Los tres, en tanto que sustantivos y verbos, son dimensiones continuas e inseparables en el proceso de existir. Las tres se constituyen como la base o el caldo de cultivo, a partir del cual los procesos de toma de consciência y de empoderamiento van a constituir a los sujetos individuales y comunitarios‖. (Xavier Úcar, Universitat Autónoma de Barcelona: in ‗A Página da Educação‘, Inverno de 2010, pp.40-41). É preciso apontar para além do discurso do mérito: ―Ao invés de nos centrarmos nas características individuais dos alunos e nos limites que elas impõem, devemos atender às barreiras ambientais e sociais, que impedem um genuino acesso à igualdade. A igualdade depende da criação de condições diferentes, que permitem o acesso de crianças e jovens diferentes às mesmas oportunidades de sucesso‖ (Isabel Menezes, Univ. do Porto, ibi, p.44).

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ABRINDO CAMINHO!...

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‗Caminero no hay camino, se hace camino al andar...‘ (Antonio Machado, poeta sevilhano). • Uma tópica, para ilustrar o problema (metodológico) da Cultura do Ocidente, estruturalmente polarizada nos hábitos inveterados do Paradoxo e da sempiterna aporética distinção/oposição entre a Teoria e a Prática (que Bernard Shaw fustigava, inteligente e sarcasticamente, com o adágio: ‗Quem sabe faz; quem não sabe ensina‘!...). A tópica é recolhida do respeitado Boletim de Notícias ‗Médicos do Mundo‘ (Setembro de 2010, p.3): a partir do seu Núcleo Executivo 24 Horas pelo Combate à Pobreza e à Exclusão Social. Reza assim: ―Com esta iniciativa, pretende-se mobilizar e sensibilizar a sociedade portuguesa para a problemática da pobreza e da exclusão social, enquanto efectivas violações dos mais elementares Direitos Humanos. Paralelamente, e no âmbito das comemorações do AECPES (Ano Europeu do Combate à Pobreza e Exclusão Social), a European Anti-Poverty Network (Rede Europeia Anti-Pobreza) está a organizar uma Focus Week nos diferentes Estados-Membros da União Europeia‖. Que nos diz sobre um tal Discurso (habitual de resto...), a Lectio de uma qualquer pessoa criticamente sensata e bem formada? Os sentimentos de Cólera e Indignação só podem gritar: Esquizofrenia, Hipocrisia!... Tudo isso, sistemicamente institucionalizado. É o discurso para anestesiar as consciências dos Indivíduos/Cidadãos, impedindo-os de fazer, na gestão crítica da Economia política, aquilo mesmo que deve ser feito. Por isso, a boa e justa Teoria continua eternamente separada das práticas societárias. A doutrina do Paradoxo (respaldada no Dualismo metafísico-ontológico) habituou-nos a pactuar, cumplicemente, com as contradições (institucionalizadas) da Realidade societária!... • Um dia, um Príncipe lembrava, oportunamente, a um dos seus amigos universitários: ―There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt of in your philosophy‖! (Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que aquelas que são sonhadas na vossa filosofia). 15


(W. Shakespeare, Hamlet, acto I, cena 5, v.166-167) (Cf. ‗Complete Works of Shakespeare‘/The Alexander Edition of Collins, London and Glasgow, reimpressão de 1968, p.1038). Por exemplo, o Príncipe Sidarta Gautama (por cognome O Desperto ou O Iluminado) também poderia pronunciar, com verdade, o mesmo axioma aos seus familiares, servos e amigos da Casa real. Mas Sócrates e Jesus (o Jeoshua nazoreu), por se terem — ambos — deixado imolar, voluntariamente, por conta das suas respectivas Mensagens (aliás, gémeas, em última análise), esses podem, perfeitamente, (e de modo superlativo), proferir o referido axioma, em jeito de advertência e prevenção, a todos os humanos, com uma intensidade e uma verdade incomparáveis. Atentemos, por exemplo, numa problemática situação típica hodierna: o núcleo duro do Conflito israelo-palestiniano e a pauta ideológica que o super-intende (numa sorte de leitura criptográfica). As Cristandades paulinas (a começar pela I.C.R.), embarcadas na Nau do Império Romano, tornaram-se responsáveis pela dispersão e diasporização dos Judeus, ao longo de dois milénios; elas são os primeiros responsáveis históricos pela formação e incremento do anti-semitismo, ao longo da História cultural e civilizatória do Ocidente. Hoje em dia, os sionistas ortodoxos pretendem justificar os colonatos (institucionalizados na Faixa de Gaza, desde a ‗guerra dos seis dias‘ em 1967), com o recurso ideológico à pertença do território da Palestina ao Povo Judeu, de acordo com a promessa bíblica da ‗Terra Prometida‘ (Israel), por parte de Iahwéh, na Revelação do Sinai. E, por seu turno, as Cristandades actuais já não dispõem, no seu arsenal doutrinário, construído sobre os processos da Conquista e da Dominação, de elementos capazes de obrigarem, moralmente, os ditos Judeus dos ‗colonatos‘ a arrepiarem caminho!... Esta é uma das situações típicas, estigmatizadas pelos impasses estruturais, que são paradigmáticos na tradicional Civilização/Cultura do Ocidente. • As Cinco Estações de uma „Via Sacra‟. (Os cinco painéis, que a seguir se apresentam, constituem uma das melhores expressões do C.E.H.C., no seu pano de fundo em função dos actos e das cenas que têm lugar no Palco.).

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1ª Estação: Poema de V. Maiakowsky (1893-1930: poeta russo, que se suicidou em 1930, em consequência do desencanto severo com a revolução soviética de Lénine, em que ele próprio havia participado activamente). ―Na primeira noite, eles aproximam-se... Colhem uma flor do nosso jardim. E não dizem nada.

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Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam o nosso cão. E não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, Conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, não podemos dizer nada‖.

2ª Estação: Poema de B. Brecht (1898-1956: dramaturgo alemão, divulgado/ /representado em Portugal e, em geral, na Cultura do Ocidente ou ocidentalizada). (No Grupo ‗Juventude em Palco‘, que nós dirigimos e ensaiámos, a obra de B. Brecht esteve sempre presente). ―Primeiro levaram os negros, Mas não me importei com isso, Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, Mas não me importei com isso, Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, Mas não me importei com isso, Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados, Mas como tenho o meu emprego, Também não me importei. Agora estão-me levando Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, Ninguém se importa comigo‖.

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3ª Estação: Poema de 1933, de Martin Niemöller (n.1892..), pastor protestante e símbolo da Resistência do clero a Adolf Hitler e aos nazis. ―Um dia vieram e levaram o meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia vieram e levaram-me; já não havia mais ninguém para reclamar...‖. 4ª Estação: poemeto de Cláudio Humberto, de 9 de Fev. 2007. ―Primeiro, eles roubaram nos sinais, mas não fui eu a vítima. Depois incendiaram os autocarros, mas eu não estava neles; Depois fecharam ruas, onde não moro; Fecharam, então, o portão da favela, que não habito; Em seguida, arrastaram até à morte uma criança, que não era meu [filho...‖. 5ª Estação: Poema (autoria não identificada). ―Sócrates, logo no dia da posse, atacou os farmacêuticos. Eu não disse nada, porque não sou farmacêutico. A seguir atacou os magistrados, também nada disse porque não sou [magistrado. Depois foi aos médicos e enfermeiros. Também nada disso é comigo. A seguir, congelou as carreiras dos funcionários públicos, — quero lá [saber eu não sou manga de alpaca. Maltratou os polícias, os militares, os professores... os padres também [não escaparam. Aumentou os impostos. Aumentou a idade da reforma, a insegurança nas ruas, nas escolas e [até nas nossas casas. Ah! Mas criou ‗as novas oportunidades‘, ‗o divórcio‘, a insegurança, o crime, a violência, os ‗canudos‘ facilmente obtidos, de férias e Domingos. Hoje bateu à minha porta com a Lei da mobilidade e atirou-me para o desemprego. Já gritei e ninguém me ouve, — até parece que a coisa só me afecta a mim‖. Apostila final (autoria não identificada): ―O que os outros disseram, foi depois de ler Maiakowsky: Incrível é que, após mais de cem anos, ainda nos encontremos tão desamparados, inertes e submetidos aos 18


caprichos da ruína moral dos poderes governantes, que vampirizam o erário público, aniquilam as instituições, e deixam aos cidadãos os ossos roídos e o direito ao silêncio: porque a palavra, há muito se tornou inútil... — Até quando?...‖ NB: A cartilha do Homo Sapiens tout court, construída na base dos Poderes separados e sobre a Alavanca do primado do Poder sobre os saberes não pode mesmo ter outro desfecho senão a eterna teoria/parábola do Pastor e do Rebanho!... A tomada de consciência (crítica) do Bem e do Mal, do que está bem e do que está mal não é ensinada na Família e na Escola. Por isso, a História (como já advertira F. Nietzsche) continua a repetir-se... inexoravelmente. No esquema conhecido do eterno retorno. Está certo Gonçalo M. Tavares (o autor da ‗epopeia‘ pós-moderna, ‗Uma Viagem à Índia‘), quando assevera ―Se mudarmos o ritmo da passada, a forma e o que pensamos alteram-se‖ (in ‗JL‘, 20.10 a 2.11.2010, p.9). Contudo, na nossa contemporaneidade, já nada se altera substantivamente, porque os caminhos da Sócio-História, que vamos percorrendo, são-nos dados e impostos, já feitos, por outros... onde nós não metemos prego nem estopa... Glosando E. Lourenço (ibi, p.9): Por que é que todas as viagens continuam a configurar-se num Esquema de Regresso ao Passado, de onde nunca, afinal, chegámos a sair?!... O mínimo que o imperativo categórico da Consciência nos dita, na escola do C.E.H.C., é o Alerta Crítico, que nos fala da urgente necessidade indispensável de Despertar as Consciências dos Cidadãos, levando-os a exercitar, pelo menos, o seu Direito (sacrossanto) à Indignação e à Resistência. • O texto que se segue é uma parábola inteligente, que denuncia, frontalmente, a evolução degenerada da Espécie humana e suas Sociedades. Com efeito, o que tem sido promovido e protegido, tradicionalmente, é a cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘ e dos Poderes separados, baseada na distinção estrutural dos Humanos em Senhores e escravos, os que mandam e os que obedecem, — uma distinção que se acha ancorada, por sua vez, nas religiões institucionalizadas, configuradas, ideologicamente, segundo as pautas do Dualismo metafísico-ontológico. Onde está a Sociedade solidária dos cidadãos livres e responsáveis, iguais e fraternos, na sua mesma condição humana, ensinada e exigida pela Gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘?!

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Eis, aí, o Projecto da Antropogénese sempre adiado (ao longo de séculos e milénios...) para as calendas gregas!... Ora é este mesmo Projecto, que o C.E.H.C. se esforça por promover, sem tréguas, a bem de uma Humanidade inteligente e dotada de Consciência crítica e reflexiva. Não mais a teoria/doutrina do ‗Rebanho humano‘!... Atenção ao texto da parábola seguinte: ―Todos os dias, uma formiga chegava cedinho ao escritório e pegava a sério no trabalho. A formiga era produtiva e feliz. O gerente besouro estranhou a formiga trabalhar sem supervisão... Se ela era produtiva sem supervisão, seria ainda mais se fosse supervisionada. ―E colocou uma barata, que preparava belíssimos relatórios e tinha muita experiência, como supervisora. A primeira preocupação da barata foi a de padronizar o horário de entrada e saída da formiga. Pouco depois, a barata precisou de uma secretária para ajudar a preparar os relatórios e contratou também uma aranha para organizar os arquivos e controlar as ligações telefónicas. O besouro ficou encantado com os relatórios da barata e pediu também gráficos com indicadores e análise das tendências que eram mostradas nas reuniões. ―A barata, então, contratou uma mosca, e comprou um computador com impressora colorida. Logo, a formiga produtiva e feliz, começou a lamentar-se de toda aquela movimentação de papéis e reuniões! ―O besouro concluiu que era o momento de criar a função de gestor para a área onde a formiga produtiva e feliz, trabalhava. O cargo foi entregue a uma cigarra, que mandou colocar uma carpete no seu escritório e comprar uma cadeira especial. ―A nova gestora cigarra logo precisou de um computador e de uma assistente, a pulga (sua assistente na empresa anterior), para ajudá-la a preparar um plano estratégico de melhorias e o controlo do orçamento para a área onde trabalhava a formiga, que já não cantarolava e cada vez ia ficando mais aborrecida. ―A cigarra, então, convenceu o gerente besouro de que era preciso fazer um estudo do clima. Mas o besouro, ao rever as contas, deu-se conta de que a unidade, onde a formiga trabalhava, já não rendia como antes, e, então, contratou a coruja, uma prestigiada consultora, muito famosa, para que fizesse o diagnóstico da situação. A coruja permaneceu três meses nos escritórios e emitiu um volumoso relatório, com vários volumes, o qual concluía como segue: Há muita gente nesta empresa!... Adivinhem, agora, quem o besouro mandou demitir... ―A formiga, claro, — porque andava muito desmotivada e aborrecida. Bom trabalho a todas as formigas do Mundo!!!‖. 20


• Sobre o Paradoxo. Não podemos esquecer que o Paradoxo (o vezo, o hábito e o orgulho demoníaco do Paradoxo...) constitui o estigma (mais ostensivo!...) da Gnóseo-Epistemologia e da Cultura do Ocidente. É um fenómeno (ideológico-cultural), cuja procedência se deve a dois Factores estruturais/estruturantes principais: a) a grelha por que são ainda passados todos os saberes e práticas societárias na Civilização do Ocidente, e que dá pelo nome de Monismo Epistémico; b) a religião (laica e profana) do Objectivo-Objectualismo, que leva os ocidentais a prestarem atenção, em termos primaciais e primordiais, ao princípio material (/ista) da Realidade, seja nos processos da realidade inerte, seja nos processos da realidade da vida em geral. Por isto mesmo, o Ocidente construiu as suas Metafísicas... para defender e assegurar o exercício (incontroverso...) dos Poderes Estabelecidos; facilmente se habituou às práticas societárias, onde predominam a Imagem e o Espectáculo; as idolatrias (mesmo em mundividência laica e profana) constituem moeda corrente; a coisificação dos Indivíduos-Pessoas faz parte essencial da cartilha quotidiana do funcionamento das Sociedades ocidentais. Por isso igualmente, a Democracia participativa e directa, em termos estruturais, é, ainda, uma miragem longínqua: o que vai fazendo algum caminho (atrabiliário e sempre difícil...) é a democracia representativa indirecta (institucionalizada pelas classes da Burguesia, a partir do séc. XVIII). Em suma, o que tem imperado, absolutamente, é o Terciarismo político, ao longo dos últimos dois milénios e meio. Ora, o C.E.H.C. está contra os que fazem gala superior desse hábito mau e perverso, que é o Paradoxo. Só metodologicamente pode fazer sentido o seu emprego no discurso didáctico e pedagógico; em termos filosóficos substantivos, o que a sua prática pode indiciar é ignorância ou preguiça mental, pesporrência ou superioridade paternalística. Estamos, pois, contra a ocidental cultura do Paradoxo e suas práticas habituais. É um fenómeno discursivo e linguístico: — que pactua e contemporiza, ao mesmo tempo, com o SIM e o NÃO, no concernente aos mesmos factos ou processos, às mesmas situações e às mesmas decisões ou orientações tomadas e propostas... — que dá razão e justifica, objectivamente, tanto a Liberdade dos Indivíduos como a Potestas sacra dos Poderes Estabelecidos... Eis, por exemplo, porque não foi 21


difícil, na Modernidade ocidental, coonestar, em nome do ideário da Democracia, tanto o Regime Republicano como o Regime Monárquico, desde que este respeitasse uma Constituição estabelecida; — que mistura e confunde realidade ou valores da Natureza e realidades ou valores da Cultura (o que nunca é, epistemológica e politicamente, aceitável e, muito menos, recomendável); — que, nos campos da praxis e da pragmática societária, disfunciona (sistemicamente): a sua bandeira dúplice leva-nos a actuar, ora com um pé na teoria, ora com outro pé na prática, — isto mesmo, em nome do eterno catecismo ideológico do (paulino/platónico) Dualismo metafísico-ontológico e do seu bastardo irmão gémeo que é o Monismo Epistémico, polarizado e construído sobre a bigorna laboratorial das ciências físico-naturais. Com inteligência e ironia, o dramaturgo inglês Bernard Shaw argumentava, sibilinamente, para as plateias: ‗Quem sabe faz; quem não sabe ensina‘!... Por isso, sempre houve, na I.C.R., duas igrejas: a docens e a discens!...

• Abrir Caminho: Por que Espaço/Tempo se tem, hoje, de abrir caminho (pela negativa e pela positiva), no universo humano, em geral, e muito especialmente nos horizontes da Civilização/Cultura do Ocidente, em nome da desejada emergência/ /advento da Espécie Sapiens//Sapiens?! Para acabar com as ilusões e as propostas inconsequentes, há sempre uma constatação/prelúdio a ter em conta: as doutrinas morais e éticas, sem esquecer as práticas políticas e as respectivas instituições societárias, têm sido sistemicamente defraudadas e atraiçoadas, ao longo de dois milénios e meio: desde as geminadas Revoluções (psico-sócio-antropológicas) de SÓCRATES e de JESUS (o Jeoshua de Nazaré ou, antes, o nazorêu, com mais verosimilhança histórica). Durante esses dois milénios e meio, foram construídos edifícios dogmáticos de doutrinas societárias, públicas e colectivas, no estrito horizonte fontal dos Objectos e segundo a cartilha (dita científica...) do Objectivo-Objectualismo. Não havia Aristóteles definido o Homem como ‗animal racional‘ ou ‗animal político‘ (=social)?... A dialéctica humana da Interioridade e da Exterioridade (depois de Sócrates e depois da Escola alexandrina dos Gnósticos judeo-cristãos primevos) foi completamente eclipsada, em termos substantivos, ao longo dos últimos dois milénios e meio. Neste contexto, os Sujeitos humanos, enquanto tais, ficaram entre parênteses, ou foram sim22


plesmente postergados e abandonados à sua condição coisificada de escravos ou servos. Hodiernamente, em termos ético-morais (e, consequentemente, políticos!...), a Espécie humana encontra-se numa situação de hecatombe generalizada; e, por essa via degenerada, numa situação de desolação/hecatombe na Cultura e na Civilização. No que tange, especialmente, ao mundo da Educação (educação e ensino), o dramatismo e, mesmo, a tragédia chegaram à situação paroxística de já não sabermos que matérias ou temas e problemas devemos transmitir às novas gerações!... As doutrinas dogmáticas (religiosas ou laicas/para-religiosas...) foram desbaratadas e abalroaram, desde logo porque haviam sido construídas e sustentadas, pelos Poderes Estabelecidos, no ideológico universo objectualista e impessoal e neutro dos Objectos. Foram esquecidos ou eclipsados os Sujeitos Humanos, como já se advertiu. O Positivismo (ancorado no Mecanicismo cartesiano) expandiu-se, por toda a parte, na Cultura moderna do Ocidente e no Mundo ocidentalizado, como um tsunâmi... seja na ordem jurídica e política, seja na ordem ético-moral. Não esquecer que o processus foi efectuado a cavalo dos Poderes Estabelecidos (primeiro sacro-religosos, depois secularizados e agnósticos). Os processos de Galileu e de G. Bruno e outros da mesma índole não alteraram, substantivamente, a gramática do uso/abuso do Poder Estabelecido ou a estabelecer, no encalço das Revoluções modernas e contemporâneas. O padrão icónico dos procedimentos societários desta espécie de ‗non sequitur‘ (na esperada mudança revolucionária moderna do exercício do Poder) pode ser configurado, pateticamente, na resposta que o Grande Inquisidor (in ‗Os Irmãos Karamazov‘ de F. Dostoievsky) foi capaz de dar ao vero Jesus de outrora, que lhe apareceu, inesperadamente, em veste de peregrino/mendigo: — ‗O teu tempo já passou... agora somos nós os detentores do ceptro do Poder‘!... Em termos de positivismo/ /mecanicismo, a I.C.R. de hoje, mutatis mutandis, não tem uma posição axiológica e moral muito diferente da do Grande Inquisidor!... Quanto ao Mundo laico e secularizado das Revoluções modernas e contemporâneas, os dirigentes e supostos actores responsáveis não foram capazes de inventar nada de verdadeiramente novo, perante os paradigmas tradicionais do exercício do Poder. Eis também por que, no mundo da Educação e da Cultura, o horizonte moderno e contemporâneo não encontrou outra solução a não ser: parar no bêco sem saída 23


do ‗Muro das Lamentações‘. De facto, o processo da Educação, na Modernidade ocidental, sobremaneira na época da Pós-modernidade hodierna, atingiu o paroxismo das tonalidades apocalípticas de uma sorte de ‗fim do Mundo‘. A) Já não há regiões ou zonas, no universo da Educação e da Cultura, onde educadores e professores e pais/mães possam exercer os seus ofícios, numa legitimidade plenamente reconhecida no que tange todo um Repertório de Conhecimentos objectivo-objectuais, desta feita orientados para a formação dos Sujeitos humanos, assumidos como tais. O vazio com que se depara, no concernente a este parâmetro A), decorre de não se ter configurado, na Tradição ocidental, qualquer gramática precisa sobre o que é um Ser humano (Sapiens//Sapiens) e a necessidade vital da sua formação, para além das modas passageiras e das escolas ideológicas ou das academias que preparam para o exercício de profissões. B) Mas o processo educacional ainda se complica mais, quando se dá conta do multi-dimensionamento das posições correntes assumidas em A). O que agora avulta em B) é que o Positivismo/Mecanicismo explodiu e disseminou-se por tudo quanto é sítio. Já não se conhece qualquer gramática, na base da qual se possa discernir, fundadamente, entre o que é natural e da Natureza e o que é cultural e da humana Cultura substantiva. Um exemplo típico e vulgar: as práticas homossexuais e os chamados ‗casamentos de homossexuais‘. Supostamente em nome do respeito pelas consciências individuais, tudo passa a ser admitido e integrado, societariamente, sem as adequadas fundamentações científicas (que, de resto, ditam sempre o que se deve fazer em outras áreas da vida...), e numa linguagem política positivista à outrance e de pura retórica demagógica. Mas o pior de tudo, nesta problemática, é que as consciências livres e responsáveis das pessoas, envolvidas nas mais diversas situações, não são ouvidas e respeitadas, simplesmente porque o próprio Processo Educativo não promove orientações críticas, fidedignas. Foge mesmo de as propor e promover!...

• Abrindo caminho na era do que nós chamamos, no C.E.H.C., a Pós-Modernidade positiva e crítica. Encontramo-nos num carrefour decisivo, na História geral das Civilizações e do Mundo, potenciado e agravado pelos grandes Problemas, designadamente sociais e contradições institucionais, carreados pelos processos contemporâneos do que se con24


vencionou chamar globalização ou mundialização. As Sociedades (ainda) ditas humanas (dis)funcionam, hoje, em regime de sobressaltos contínuos e disrupções estruturais; a sua sobrevivência (precária...) vai-se fazendo à custa do aumento ciclópico da violência institucionalizada, que é promovida pelas próprias leis de funcionamento do ‗Free Market‘ neoliberalista/capitalista global. A própria sobrevivência, supostamente assegurada pelos sucessivos Governos de turno dos Estados ou Estados-Nações, é executada numa atmosfera ideológica empíreo-criticista semelhante à do tolo no meio da ponte!... Incapaz de decidir se há-de avançar para o outro lado, ou recuar para o casebre da procedência... Já nem sequer nos assemelhamos ao bébé, que (hipoteticamente) recusaria nascer... porque, afinal, ele nem sequer foi ouvido no acto de que nasceu (como disse orficamente o poeta A. Gedeão). Governamentais ou não-governamentais, as Instituições (em geral) não se cansam de apregoar a necessidade de combater a Pobreza e a Exclusão social, bem como o flagelo gravíssimo da viciação nas drogas de toda a sorte. A pergunta ad hominem, que nos cumpre fazer, é simples: Onde estão os resultados efectivos desta habitual retórica demagógica, dando de barato que, muitas vezes, ela até se mostra bem intencionada?... As esquizofrenias estruturais e as hipocrisias institucionais são de tal calibre que não se vislumbram saídas positivas, no meio do desespero racionalizado... Uma Questão pertinente e estrutural, que se nos impõe formular à puridade: Quando vamos pôr termo ao balancé sempiterno entre a Teoria e a Prática, entre uma Teoria supostamente exigente (mas que nunca é cumprida...), e uma Prática estigmatizada por um pragmatismo vil, servil e fraudulento, que, ainda por cima, disfruta da protecção e da bênção das ‗Gouvernances‘ e dos Poderes Estabelecidos?!... Não podemos, aqui, esquecer que tal horizonte ideológico-cultural é tributário da mundividência doutrinal e científica regida pela cartilha (tradicional) do Monismo Epistémico, ancorado na Epistéme das ciências físico-naturais. Na verdade, é bem diferente a mundividência crítica, alicerçada na gramática da Dualidade Epistemológica: há uma Epistéme própria e específica do hemisfério das ciências físico-naturais; e outra Epistéme própria e específica (que não pode confundir-se com a primeira) do hemisfério das ciências psico-sociais e/ou humanas. (Como desenvolvemos e argumentámos no nosso livro ‗Honest to Gods — Já Não! Honest to Humans — Ainda Sim!...‘; Edições Alpharrabio, São Paulo, 2002).

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Nunca será de mais (a propósito do tema nuclear aqui discutido), prestar atenção à Tese central desse insigne e incansável Pedagogo e vero Educador do Povo, que foi o brasileiro Paulo Freire, — uma Tese, aliás, que é também uma das Teses centrais do C.E.H.C.: ―É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática‖. Neste axioma/imperativo-categórico, de ordem gnóseo-epistemológica e ético-moral, (enunciado embora desta maneira simplificada), acham-se implicados dois princípios sócio-antropológicos de base: A) As exigências fundamentais decorrentes do Princípio de Identidade e Não-Contradição, (como pauta da fala e da escrita dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos), permitindo-nos cerzir um Discurso na 1ª pessoa gramatical, corajoso e sem receios, que se configura nos antípodas daquele discurso corrente passe-partout na 3ª pessoa gramatical, que se constituiu no châssis linguístico das Sociedades (humanas) tradicionais ‗do Pastor e do Rebanho‘. É por aí que podem ter início as práticas de um Almanaque sócio-político de saneamento público crítico e sensato, capaz de ser aceite por uma Opinião pública exigente e, ao mesmo tempo, susceptível de respaldar a própria legitimidade das Autoridades constituídas. B) O discernimento (responsável) das exigências de mudança de vida e de organização societária, que se afirmam imperativamente, a partir da clara e nítida contraposição entre a Realidade societária contraditória e sem futuro e a Utopia legítima e crítica, que emana das inteligências e das consciências honestas e sensatas. Neste quadrante, são farisaicas e pesporrentes todas as condenações (por parte das Autoridades constituídas) das posições e dos movimentos anarquistas... Em lugar da condenação pura e simples, as Autoridades estabelecidas, nesta circunstância, deveriam abrir-se a um Diálogo crítico com os seus Adversários. É o preço da Boa-Fé por parte dos responsáveis da Ordem (Desordem) Estabelecida (E. Mounier). O humaníssimo parergo de Paulo Freire foi sagazmente inscrito no frontispício de um estudo notável (16 pp.) da Profª Marta Novaes (a partir de Buenos Aires), titulado ‗Desconstruir a Pedagogia do Liberalismo e viver a Escola da Liberdade e da Justiça Social‘, — estudo concebido e edificado a propósito dos livros de Manuel Reis ‗Em torno de Ivan Illich‘ e ‗De Educatione et de Instructione‘, publica-

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dos, a partir de São Paulo, na Rev. Electrónica NOÉTICA, pelo C.E.H.C./Escritórios América Latina. Não vamos, aqui e agora, demorar-nos em comentários e glosas a este notável trabalho de Marta Novaes, que é uma espécie de bíblia resumida sobre a problemática contemporânea da Educação. Em vez disso — dissémos nós a Professores e Pais/Mães ou Encarregados de Educação, na Conferência (referida em epígrafe) de 22 de Out./2010, na Escola Secundária Martins Sarmento — iríamos ler o plano/índice do nosso Livro titulado ‗DE EDUCATIONE ET DE INSTRUCTIONE‘, acrescentando, apenas, algumas breves notas sobre a razão de ser dos temas enunciados que uma selecção judiciosa nos havia imposto. (Não vamos aqui transcrever a lista dos títulos do Índice desta obra... O leitor interessado poderá facilmente consultar toda a obra na Internet. Pretendemos, tão só, dar conta do final da parte expositiva da referida Conferência, à qual se veio a seguir uma Discussão/Diálogo largamente participada.). Não foi por snobismo ou bizarria que procedemos ao enunciado do título da Obra em Latim. A fórmula latina resultou, outrossim, em termos semânticos e histórico-culturais, da necessidade instante de pôr em relevo a distinção imprescindível entre as duas mundividências, que, muito embora ligadas, não é legítimo misturar ou confundir: A) a da Educação e Formação dos Educandos/Alunos e Estudantes das Novas Gerações; B) a da Instrução/Ensino e Informação dos novos Profissionais, que (por vocação ou por simples necessidade de adquirir um meio de vida) procuram preparar-se e apetrechar-se para o exercício profissional nos mais variados sectores ou funções da Sociedade hodierna. Para se dar boa conta da distinção e da não confusão entre as duas mundividências, convirá ter presentes os respectivos azimutes ou ângulos de percepção e funcionamento respectivos: Com efeito, a dinâmica da Educação actua de dentro para fora, da Interioridade e da Consciência (dos Indivíduos-Pessoas) para a Exterioridade e o mundo dos Objectos e das Pessoas em correlação com os dados anteriores; a dinâmica da Instrução, por sua vez, opera de fora para dentro (no atinente aos seus efeitos sobre a Interioridade da Consciência): procede, assim, do mundo exterior para a interioridade do cérebro, da Mente e da Consciência; mas, em regra, o exercício da Instrução acontece ‗au dehors‟. Na circunstância da pura Instrução, uma máquina automática (aperfeiçoada) cumpriria plenamente as suas funções, do lado da Recepção... 27


Como não há conceitos e processo de conceptualização sem imagens e sem o trabalho da Imaginação e da Memória, achámos pertinente e útil dar-vos a conhecer o plano desta nossa Obra, para nos ajudar a refundar, em termos dir-se-á arquitectónicos e holísticos, a mundividência crítica ‗aggiornata‘ sobre a Educação e a Instrução e os chamados Sistemas Educativos; de Sistemas Educativos autónomos e fidedignos carecemos tanto, que, sem eles, não poderemos resolver, de modo adequado, os problemas hodiernos de uma Civilização cada vez mais unidimensional (H. Marcuse), por força do processo da Globalização, mas cujo andamento não pode deixar de se assemelhar, pelo que observamos e vemos, ao Carro de Jagrená da mitologia indiana. *

* *

ALGUMAS QUESTÕES E TEMAS FUNDAMENTAIS, SELECCIONADOS EM FUNÇÃO DA REFUNDAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL SUBSTANTIVA (SOCRÁTICO-JESUÂNICA)

* SOBRE O SENTIDO DA VIDA,

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A PARTIR DA SUA BASE BIOLÓGICA E BIOGENÉTICA No princípio era a ‗vida imanente‘ (= espontânea...), a qual veio a ser, depois, no processus da Evolução biológica e biogenética, assumida identitariamente por Consciências individuais-pessoais, que ascenderam ao patamar antropogenético do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. (É no horizonte do ‗Deus sive Natura‘ de B. de Espinosa, que todo esse processus evolucionário se pode configurar e perceber até às suas últimas implicações e consequências). Na verdade, é de ‗O Filósofo‘ de Estagira (Aristóteles: 384-322), (filho de Nicómaco, rei da Macedónia, e mestre de Alexandre Magno, a partir do qual a Macedónia foi cultural e politicamente integrada na Hélade clássica), que nos advém a definição clássico-tradicional, incontornável, de Vida: ‗Vita in motu immanenti consistit‘, — como, na Idade Média (que não foi nenhuma ‗idade das trevas‘, segundo a caracterização sobranceira e displicente dos modernos...), souberam repetir e glosar os filósofos escolásticos da Cultura ocidental. Há uma meditação sobre a Fenomenologia da Vida, que muito raramente é feita, em virtude das atmosferas ideológicas imperantes na Civilização ocidental, estigmatizadas pelo Objectivo-Objectualismo, pelo Materialismo, pelo Positivismo e, acima de todos, pelo Mecanicismo cartesiano. O Alerta, que estamos a enunciar, tem a ver com o que se segue. O espantoso e admirável fenómeno da MIGRAÇÃO (de animais, aves, peixes..., em suma, os seres vivos que se movem exteriormente, para além do seu movimento interno, que também é próprio das plantas e dos vegetais, que se acham fixos e vinculados ao terreno onde nasceram e cresceram), que precedeu, na Evolução global da Vida, a emergência dos Primatas em geral e, depois, dos Hominídeos e, por fim, a Espécie Sapiens//Sapiens, constitui, incontornavelmente, uma Realidade muito mais grandiosa e mais padronizada do que o movimento animal, genericamente considerado (seja na sua vertente interna ou na externa, mesmo em função do meio-ambiente que, na óptica lamarckiana da Evolução, sempre tem sido tradicionalmente valorizado, o célebre ‗milieu‘). Há uma Lectio inesquecível que aí se perfila: Com efeito, o que aí se vê e pressente é uma sorte de premeditação ou desígnio épico de auto-orientação na vida, codificado geneticamente como uma espécie de instinto herdado. O biólogo Hugh Dingle, na tentativa de procurar penetrar na essência desse fenómeno grandioso, acabou por identificar cinco características principais, que se 29


aplicam, em diferentes graus e combinações, a todos os processos migratórios: ―São movimentos prolongados, que trazem os animais para fora dos seus habitats familiares; tendem a ser lineares, não em ziguezague; envolvem comportamentos especiais de preparação (como a sobrealimentação) e chegada; implicam um dispêndio especial de energia. E, por último: os animais migrantes mantêm uma atenção férvida nessa sua missão maior, — o que os leva a não se distraírem por tentações [de percurso...] e a não se atemorizarem por desafios provocados por outros animais a seu lado‖. (Cf. ‗National Geographic‘, Novembro de 2010, pp.37-51). Proceda-se, entretanto, a uma catarse prévia de salubridade crítica, i.e., ao necessário desconto de toda a atmosfera (ideológica) de antropomorfismo, que, em tais circunstâncias, permeia todo o nosso discurso irredentamente logocêntrico. E também aqui, há, sem dúvida, uma Lição positiva a reter: Como poderíamos simplesmente evocar todo esse vasto universo de seres vivos, por suposto fora do perímetro do viver da Espécie humana, a tal ponto que, nas ciências biológicas de hoje, já se pode suspeitar, com verosimilhança, da chamada vida ‗extremófila‘, não só em lugares como os vulcões e os fundos abissais dos oceanos, mas igualmente nos astros como ‗Europa‘ (satélite do planeta Júpiter)?!... Agora, uma Quaestio ad hominem: Vida (como já se viu) é movimento imanente, intrínseco (aos seres vivos, desde a amiba aos mega-mamíferos marinhos ou terrestres e ao ‗Sapiens//Sapiens‘). Ora, os movimentos migratórios dos animais, na medida em que são espontâneos/instintivos, não se podem confundir com os outros movimentos externos físicos, mais ou menos aleatórios. A Pergunta: Por que é que a Espécie humana parou (deixou estancar...) a sua dinâmica evolutiva, própria da Antropogénese, no patamar do Homo Sapiens tout court, tal como o próprio processo civilizatório (que a História das civilizações pode conhecer...) tem confirmado, inexoravelmente, até ao presente?!... É que, por má sorte, foi isso mesmo que ocorreu, na história da biogénese antropológica até à nossa Contemporaneidade, — a qual decorreu, como se pode constatar criticamente, no horizonte geométrico do ‗livre arbítrio‘/lei do pêndulo, sempre exercido sob o estandarte do ‗Poder separado‘ (concebido e imposto pelas dualistas religiões metafísicas institucionalizadas). Em resumo, o que a Cultura e os Processos civilizatórios proporcionaram, até ao presente, não chegou a ultrapassar, verdadeiramente, (em termos de um Mundo construído a partir das consciências reflexivas e críticas), a cartilha de funcionamento dos ‗movimentos migratórios dos animais‘. 30


Eis por que, ao longo da História das Culturas e das Civilizações, até ao presente, tanto o fenómeno (criador) da Consciência humana, enquanto âncora da Cultura e da Civilização, como o fenómeno (criador) da Experiência humana (sempre balizada pelo molde individual-pessoal), não chegaram a emergir, enquanto parâmetros estruturais/estruturadores do Processo histórico da Cultura e da Civilização... em suma, não puderam surdir as Sociedades humanas qua tais. E, não obstante, a Lectio mais elementar e eloquente da Biogénese (segredada por um qualquer ‗Deus sive Natura‘ à boa maneira de Espinosa) já se achava, efectivamente, dada no próprio processus da Biogénese, bem entendido: A Vida é movimento imanente/intrínseco, já ao nível do Instinto e, depois, (de modo quase infinitamente potenciado), no patamar da Consciência reflexiva e crítica. ‗Spiritus ubi vult spirat‘!... Como nos ensinou o Evangelho jesuânico. Os Indivíduos-Pessoas não carecem dos movimentos físico-mecânicos da ‗globalização‘, para activarem o pensamento e o raciocínio e, em geral, as operações da mente consciente, sempre sediada na forja do cérebro e de um corpo (humano) vivo. Assimile-se bem o significado e o sentido daquele refrão popular que nos diz: Preciso de parar para pensar!... Precisamos, todos, de parar para pensar e mudar, efectivamente, de horizonte e de rumo!... Explicando o processus evolutivo da Antropogénese, que resultou falhado: Nesta nossa perspectiva crítica, o que se poderia (e deveria...) esperar, era a Lectio resultante do cruzamento da definição (aristotélica) elementar da vida (´movimento imanente‘) e do sentido (crescentemente auto-superador) dos ‗movimentos migratórios‘ dos animais. Ora, a aprendizagem desta Lectio conduz, precisamente, ao aprofundamento/interiorização do ‗motus immanens‘, até se chegar ao nível do Fenómeno (superior) da Mente Consciente. Em termos globais, significa e implica isto, operatoriamente, o despoletar (no processo da Antropogénese) da Espécie humana qua tal, a desse estádio superior que dá pelo nome de ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. Por que ocorreu aquela paragem na Evolução da Espécie humana, ou seja, a fixação (imobilizadora...) no estádio (anterior...) do ‗Homo Sapiens tout court‘?!... Paradoxalmente, temos de fazer referência (na resposta a esta Questão) a dois Factores principais que levaram a esta situação degenerada e degenerativa: A) O próprio processo operatório da objectivo-objectualização do Pensamento e da Mente Consciente operativa; B) a sacralização/separação do Poder/Autoridade (e seu exercício na ‗mecânica‘ societária...), com a correspondente idolatria da Potestas (de todas as espécies e subdivisões das Potestates). 31


Foram, na verdade, esses dois Factores conjugados que mais densa e largamente contribuiram para a paragem e a fixação (imobilizadora) da dinâmica da Antropogénese no estádio elementar do ‗Homo Sapiens tout court‘, — onde a Espécie humana (para dizer tudo numa só expressão...) só se cumpre a meias!... Em tal horizonte, ela jamais se libertará do inexorável Esquema geométrico de funcionamento do Amo e dos escravos, do senhor e dos súbditos!... Mais: Nesse horizonte, o domínio sobre a Natureza é, fatalmente, percepcionado e cumprido segundo a mesma cartilha da Dominação dos Chefes/Donos sobre os seres humanos, seus semelhantes, da mesma Espécie biológica, — tal como acontece em relação aos restantes animais... Noutra vertente da invenção/criação, as próprias invenções da Tecnologia e da Tecnociência, elas mesmas, não poderão deixar de ser demiurgicamente encaradas e manipuladas, a não ser como cumprimento do mesmo e sempiterno desígnio da Dominação/ /Exploração!... Esta é uma situação gravíssima, sobre a qual não se tem detido o pensamento crítico tradicional nem o nosso contemporâneo... É corrente argumentar-se que a Democracia e os regimes democráticos nunca estão definitivamente assegurados. Isso acontece, precisamente, porque ainda não rompemos o odre do ‗Homo Sapiens tout court‘: porque ainda não saímos da Cultura do Poder-Condomínio, e, quanto à Liberdade, só se conhece, realmente, o ‗livre arbítrio‘ a funcionar como a eterna lei do pêndulo!... Ora, para que os regimes democráticos possam ser duradouros e inspirar confiança aos seus cidadãos, é preciso e indispensável que, na organização e no funcionamento das Sociedades humanas, a Racionalidade e a Consciência constituam uma lei constante nos comportamentos e nas práticas societárias. Quando há falhas deliberadas ou ausências no cumprimento dessa lei, os cidadãos, conscientes e críticos, logo reagem legitimamente, com o seu direito à indignação. Na verdade, convirá saber-se que a matriz dos sentimentos democráticos (que estão na base e envolvem o projecto/imperativo categórico crítico do ideário da Democracia) é, justamente, a Cólera (Ménis, no grego clássico)/Indignação. A Ménis/ /Cólera surge em acto, logo no início de uma das três fontes da Cultura/Civilização do Ocidente (helénica, hebraica, romana), precisamente no 1º verso da ‗Ilíada‘, atribuída a Homero (séc. VIII a.E.C.): aparece investida (pelos rapsodos ou pelo autor singular de nome Homero) na personagem principal desse poema épico em torno da Guerra de Tróia, Aquiles, filho de Peleu, que não se cansa de exprimir a sua cólera 32


contra Agamémnon (rei de Micenas e de Argos, filho de Atreu e irmão de Menelau, chefe dos heróis helénicos que cercaram Tróia). Em boa verdade, é justamente essa humaníssima capacidade de Indignação de uma inteligência e uma consciência bem formadas, que se encontra na base do ideário da Democracia, (no berço do que podemos chamar os ‗sentimentos primordiais‘), na base, igualmente, da cultura democrática da irritação e do repúdio de tudo quanto se acha irracional, arrazoável, insensato, inadaptado, agressivo e violento, ‗contra naturam‘. Sentimentos e atitudes, que não têm nada a ver com o despotismo iluminado, que se encontra nos antípodas daquela mundividência (ainda que, por vezes, possa parecer o contrário). Platão (no horizonte assírio/persa da Babilónia), o inaugurador formal do Dualismo metafísico-ontológico, é o primeiro a expulsar, doutrinalmente, a Ménis/ /Cólera/Coragem (em defesa da dignidade humana e da boa sociedade) da Cultura da Polis. Assim, foram expulsos da Cidade, em termos paradigmáticos, os impulsos humanamente espontâneos do Thymós, em função (subserviente) do odre, artificialmente construído pelo Poder seco, da mundividência do Dualismo metafísico-ontológico. Desta sorte, o futuro das Ilusões (glosando, aqui, sarcasticamente, a fórmula de S. Freud) ficou, definitivamente, assegurado (no horizonte da Cultura do PoderCondomínio) pela ‗juga boum‘, que tem vindo a puxar a carroça da Humanidade até ao presente: — o Cristianismo (que prega a humildade, a obediência e o servilismo como supremas virtudes, contra o orgulho/honra legítima na auto-afirmação do Eu); — e a Psicanálise freudiana (de resto, institucionalizada, mais ou menos dogmaticamente, nas Sociedades ocidentais), que foi instaurada — é bom sabê-lo... —, de forma dolosa ou inocente (!...), precisamente para garantir a serventia aos Poderes Estabelecidos... em suma, para resolver os problemas e as situações decorrentes da Erótica supostamente desordenada e das situações (patológicas...) de ‗pecado‘, — tudo sempre em nome de uma ‗ética da falta de dignidade humana‘. Ora, a Realidade (hodierna), sobremaneira quando considerada criticamente, apela, cada vez mais, para o fim de todas as menoridades e humilhações, para o fim da condição de todos os humilhados. Com efeito, se toda esta gente decidisse, um dia, levantar-se verdadeiramente do chão, eles acabariam por constituir, numérica e realmente, ‗o mais poderoso dos partidos‘!... Todavia, eles têm preferido, realmente, continuar numa sorte de ‗autodissolução permanente‘; dir-se-á que eles constituíram a no33


va ‗Internacional dos saturados do género humano‘ (Peter Sloterdijk, in ‗Cólera e Tempo‘, Ensaio Político-Psicológico, Relógio D‘Água, Lisboa, 2010, p.248), e as suas posições, marcadas pela introversão narcisista, chegaram a um paroxismo tal, diante do eventual trabalho de projecto com os seus pares, que a recusa de uma hipotética saída do odre da humilhação lhes aparece como ‗a sua vingança mais íntima contra a situação‘ (ibi, p.249). Aplica-se, aí, em cheio todo o cortejo dos efeitos psico-sociais e culturais desencadeados pela teoria/doutrina do ‗Ressentimento‘, escalpelizada e justamente repudiada por F. Nietzsche. As atitudes e as actuações dos humilhados, mesmo as joeiradas no crivo do criticismo de turno, continuam a ir a Canossa, prosseguem domesticadas e controladas pela sempiterna Ordem/Desordem Estabelecida. A situação trágica dá para, simultaneamente, ver e entender como e por quê continua a imperar, soberanamente, a Cultura do Poder-Dominação d’abord, e ver e entender como e por quê a Educação e os Sistemas Educativos se acham absolutamente falidos no concernente à promoção das virtudes da Timótica e da afirmação desassombrada da Consciência (crítica) dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos!... Os avatares do Timótico (Coragem

Indignação/Cólera) dos dois últimos

séculos são tão frágeis e ténues, que não deram para reinterpretar, criticamente, dois milénios e meio de Cultura do Poder-Dominação d’abord e de religiões monoteístas. Ao proceder ao balanço final do seu livro, perante o actual teatro mundial das ameaças, P. Sloterdijk conclui (ibi, p.249): ―Na oportunidade, veremos que os dois mais poderosos órgãos da captação metafísica e política da cólera na civilização ocidental, a teoria católica da cólera de Deus e a organização comunista das massas anticapitalistas e antiburguesas, não resistiram ao teste do tempo e à mudança de mentalidade‖. No que tange ao segundo órgão (os movimentos socialistas/comunistas) é conhecida apenas ‗meia missa‘, que passou, historicamente, por ‗missa inteira‘!... No atinente ao Cristianismo/Catolicismo, a História não poderá esquecer as suas mudanças camaleónicas. Resumidamente: até ao Concílio ecuménico ‗Vaticano II‘ (19591965), foi a linha doutrinária tradicionalista/integrista, que imperou absolutamente. Nesse horizonte, o Catolicismo sempre se opôs, quer ao tratamento da religião como assunto privado, quer à edificação de uma cultura de Estado conscientemente laica e neutral face às práticas religiosas. Historicamente, o Cristianismo/Catolicismo, no

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Ocidente, foi o prisioneiro dourado da santa religião (laica...) do Objectivo-Objectualismo. Nunca esteve nas suas preocupações o respeito sério e honesto dos Sujeitos humanos, como tais, e das Consciências dos Indivíduos-Pessoas. Depois do ‗Vaticano II‘, a I.C.R. e o Catolicismo viram-se forçados a abandonar as tradições anti-humanistas e antiliberais, para fazerem as pazes com os tempos modernos. E a tal ponto este ‗conatus‘ (empenhado numa vera mutação) fez caminho, que ―a teologia católica se definiu a si própria como o órganon de uma profunda justificação dos direitos humanos‖ (idem, ibi, pp.249-250). Entretanto, amigo leitor, se estiveres criticamente atento, não irás tomar a núvem por Juno!... A religião laica do Objectivo-Objectualismo foi o Cristianismo paulino (expendido nos textos canónicos do N.T.) que a ensinou à I.C.R.; e, depois, foi esta mesma I.C.R. que a ensinou às modernas ciências positivas e experimentais. Convirá sempre não dar tréguas às miragens e às ilusões. Por exemplo, a PósModernidade, que a maioria dos estudiosos viu expressamente introduzida pela Queda do Muro de Berlim (1989) e pelo Colapso da União Soviética (1991), já, na verdade, havia sido indiciada pela data de 1979. ―Visto a partir da nossa época, é o ano de 1979 que deve ser qualificado de data-chave do final do séc. XX. De um triplo ponto de vista, foi nessa época que se entrou na situação pós-comunista: com o princípio do fim da União Soviética (após a invasão do Afeganistão pelo seu exército), com a chegada ao poder de Margaret Thatcher e com a consolidação da revolução islâmica no Irão, sob a liderança do Ayatola Khomeini‖ (idem, ibi, p.253). Uma vez vitoriosa, esta revolução impôs a destituição do Xá da Pérsia, Mohamed Reza Pahlavi, que tinha o apoio político tradicional dos USA e do Ocidente europeu. A Matemática e a Física e a Biologia têm-nos mostrado que os extremos se tocam... Assim acontece no universo humano: são-nos tão necessários e indispensáveis à vida, tanto os elementos materiais (por exemplo, os que se prendem com a alimentação de um corpo vivo), como os elementos espirituais albergados no Imaginário humano. É por isso que ―o caminho que conduz à compreensão das catástrofes, que acabámos de sofrer, e das que se anunciam, passa, num primeiro tempo, pela recordação da teologia. A associação da cólera e da eternidade era um axioma cristão. Teremos de mostrar como, a partir daí, se pôde desenvolver a constelação da cólera e do tempo — ou da cólera e da História. No decurso dos nossos decénios, caracterizados pelo neo-analfabetismo religioso, esquecemo-nos praticamente de que o discurso de Deus, no monoteísmo, inclui também sempre um Deus colérico. Ele é o grande impossível 35


da nossa época. E se ele estivesse a trabalhar, subterraneamente, para voltar a ser nosso contemporâneo?‖ (idem, ibi, pp.57-58). Quanto a nós, não é, decididamente, a Divindade das religiões monoteístas institucionalizadas, que se espera venha a voltar, nos seus cenários de cólera, afinal configurados pelos humanos... O que é importante e decisivo, sim, é que os Humanos assumam, por inteiro, os seus imaginários, a começar pelos teológicos. E, aí, comecem a re-descobrir, no Deus/‘intimior intimo meo‘ (residente nas suas consciências individuais-pessoais) todo esse potencial de Cólera/Indignação (que as Tradições religiosas haviam ensinado) e todo o caudal de Coragem e Solidariedade, que é imprescindível, para prosseguir na Luta pela superação de um Mundo desumano e edificação de um Mundo humano, a partir da plena afirmação dos Sujeitos humanos individuais-pessoais.

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* POR QUÊ E COMO EMERGE, NO CÉU DA HUMANIDADE, A IDEIA DE DEUS: (GEOMETRIA NUCLEAR DO FENÓMENO): Há três grandes ideias/realidades que a Espécie humana é chamada a perceber e a entender, até ao seu âmago: Deus, Lei, Consciência. Sem entender, de modo crítico, sério e honesto, esta trempe de ideias/realidades, a Humanidade não poderá ter as condições adequadas para se emancipar e adultizar, para, em suma, se libertar de todas as cadeias, grilhões, dependências, servidões. Desde logo, porque as três ideias/ /realidades apresentam-se como noções polissémicas: elas encerram, inevitavelmente, duas faces (como acontece às moedas e às medalhas): a positiva e a negativa, a da recompensa e a do castigo, a do prémio e a da punição, a da inclusão e a da exclusão, a da aprovação e a da reprovação. Ora, em virtude de termos postergado ou esquecido o célebre Princípio socrático do ‗Dois-em-Um‘ (= dois agentes ou duas posições, normalmente antitéticos, que se perfilam como presentes à Consciência individual-pessoal e a obrigam a dialogar, logo interiormente, e a decidir-se diante das instâncias práticas da vida...), os Humanos e as Sociedades (na Civilização/Cultura do Ocidente) embarcaram facilmente na teoria/doutrina (platónica e paulina) dos Dualismos metafísico-ontológicos, com to37


do o cortejo de vícios e desviações conhecidos, a começar pelas duas pilastras centrais: o Monismo Gnóseo-Epistemológico e a religião laica do Objectivo-Objectualismo. Com esta armadura, a Cultura/Civilização do Ocidente construiu ou reforçou a concepção de uma Divindade (objectualizada) transcendente e extrínseca, tal como se verificou, historicamente, nas três religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘. O primeiro postulado trágico de tal concepção foi a recusa e o abandono do Socratismo e do Jesuanismo. Ao mesmo tempo (e na mesma pegada), a Cultura/Civilização ocidental abandonou e repudiou a realidade (inefável!...) dos Sujeitos humanos (livres e responsáveis), enquanto tais. Por tudo isto, por exemplo, o Mecanicismo cartesiano, os positivismos morais e jurídicos e a magia suprema e delirante das Tecnologias, em geral, foram tão bem acolhidos e postos em marcha na Modernidade ocidental... e, por outro lado, não só prosseguiram escravaturas e servidões de todo o tipo, como os próprios regimes democráticos estiveram sempre a saque e sob a espada de Dâmocles das ditaduras e das tiranias!... Comecemos, porém, com a semântica linguística da própria noção de céu. O lexema português procede etimologicamente do vocábulo latino coelum; e este, por sua vez, parece derivar, etimologicamente, da raiz khol (= tâlamo nupcial), no sânscrito. Como se vê, em todo este percurso histórico-linguístico, ao rés-do-chão da semântica das palavras em causa, ainda não assomou nenhum significado concernente aos elementos do Quadro típico do Dualismo metafísico-ontológico e de qualquer Divindade transcendente e extrínseca. Assim, o ‗Céu‘ teológico, nas três religiões monoteístas, foi construído a partir de próteses semânticas, incorporadas na semântica original da palavra em causa. Agora, duas notações paramétricas em torno das ideias/realidades da Trempe: Deus configura-se, sempre, sob duas faces: a) função providente/protectora e assistencial; b) função julgadora e condenatória. Não é sem razão que todas as Mitologias religiosas operam, ab initio, uma sorte de desdobramento discursivo entre a realidade positiva da Divindade e a sua realidade negativa e condenatória (que pode metamorfosear-se em estimulante e tentadora, como ocorre com os Nomes Satan,, Lúcifer, Demónio...). A Lei (na organização das Sociedades humanas) é igualmente uma realidade com duas faces: a) é o lugar do encontro das pessoas/cidadãos (como a definimos, no C.E.H.C.); b) e é a baliza/pauta, na base da qual serão julgados e punidos os infractores ou transgressores da legislação em vigor. No concernente à Consciência, é 38


duplamente comprovada a sua realidade com duas faces. Em primeiro lugar, ela é, em termos estruturais-operativos, a) conhecimento objectual; b) e testemunha desse mesmo conhecimento (esta agência dos Sujeitos humanos sabe que sabe). Em segundo lugar, ela é, em termos axiológicos, uma agência ético-moral que, ora te diz que pensas e ages bem (função de aprovação), ora te diz que pensaste e agiste mal (função de reprovação). Para percepcionarmos, criticamente, a ideia/realidade de Deus e a sua necessária e indispensável superação, é mister ter presentes, no processus evolutivo da Antropogénese, a gramática, anterior, de funcionamento do ‗Homo Sapiens tout court‘ (onde o Poder se perfila num esquema geométrico de Separação), e, depois, a gramática, posterior, de funcionamento do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ (onde o Poder se configura num esquema geométrico de Integração societária). Neste horizonte evolucionário, convém prestar atenção a dois parâmetros essenciais estruturadores: A) Constituição antropológica do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘: Desde logo, este paradigma Específico afirma-se como um Ser que sabe que sabe: o ‗Dois-em-Um‘ de Sócrates exprime, muito bem, este seu estatuto ou condição existencial estruturante. Eis por que, na Linguagem e no Discurso filosófico, o próprio Princípio de Identidade se configura, no seu enunciado completo, como Princípio de Identidade e (Não)Contradição, e se formula, de modo discursivo objectivo-objectual, nos termos seguintes: ‗uma coisa não pode ser e não ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto‘ (na sua formulação rigorosa, é exigida semanticamente a reduplicação). Neste horizonte crítico, é óbvio que o Diálogo socrático sempre constituiu e continua a constituir o melhor Método (

Caminho), para a realização efectiva da

genuína e autêntica Humanitas. Desde logo nos dois planos antropológicos articulados: — no da elaboração dos conceitos/noções, que irão servir a Filosofia e as Ciências; — no das práticas do ideário democrático e da constituição de um Regime Democrático digno do nome. B) No concernente aos Valores Axiológicos, a gramática do ‗Homo Sapiens //Sapiens‘ (em contraponto à do ‗Homo Sapiens tout court‘) estabelece, iniludivelmente, o primado (absoluto) do justo e da justiça sobre o verdadeiro e a verdade. Mais: em termos da vera Gramática Axiológica, que tem o seu campo específico de aplicação no mundo da Antropologia, é, justamente, esse primado (indiscutido... na

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medida em que o justo é muito mais universal do que o verdadeiro) que postula e implica, operacionalmente, o primado (axiomático) do Saber sobre o Poder. Deve, aqui, advertir-se que é precisamente, à rebelia do primado do Saber sobre o Poder que (dis)funciona a consabida distinção/separação opositiva, que nos fala, in aeternum, desses dois universos distintos e separados que dão pelos nomes de Teoria e Prática... ou seja, a sempiterna corveia que a Humanidade tem de pagar, em termos de teoria/doutrina societária aplicada, ao predomínio absoluto da Cultura do Poder-Dominação d’abord. Ora, é nesse horizonte crítico, próprio do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘, que surge, originalmente, a Ideia matricial e pura da Divindade (a qual tem a sua fons et origo naquele sentimento de Aurélio Agostinho, na linha dos Celtas, expresso na frase do ‗intimior intimo meo‘: ela (a Divindade) é-me mais íntima a mim do que eu me sou a mim próprio. Tal Deus configura-se, no sacrário da Consciência de cada Indivíduo-Pessoa, como a suprema caução do Justo e da Justiça, em todos os debates e pleitos a que pode assistir a Consciência individual-pessoal, perante os outros, na habitual e mundana situação de Multiplicidade das consciências individuais-pessoais, que tem lugar no Mundo!... Esta noção da Divindade, não só dispensa perfeitamente, como anula e destrói a ideia tradicional (que se tornou realidade idolatrada no Imaginário das consciências dos humanos) de um Deus transcendente e extrínseco , Criador do universo. A esta noção de Deus, os Gnósticos judeo-cristãos primevos davam, justificadamente, o nome pejorativo e sarcástico de ‗Demiurgo‘!... Com toda a razão. Assim, no horizonte crítico (que é o do C.E.H.C.), a Ideia de Deus emerge, precisamente, a partir dessa constituição natural que é o famoso ‗Dois-em-um‘ de Sócrates, — o qual impede ou evita, ao mesmo tempo, a) que se faça justiça (a justiça sentida pelo primeiro Eu...) pelas próprias mãos: exclusão, por conseguinte, dos meios violentos e físicos, e adopção exclusiva dos meios inteligentes e pacíficos; b) e, nessa condição, postula, naturalmente, a existência de um Juiz superior, capaz de fazer aquela Justiça que traga consigo a vera Paz, e que os dispositivos e meios humanos (directos ou indirectos...) não foram capazes de cumprir. Desta sorte, a Divindade seria o último recurso ou instância, nos processos humanos, onde (por força dos mal-entendidos ou das malevolências, tantas vezes convertidas em ‗2ª natureza‘...) a Justiça (sentida e experienciada pelos diferentes Eus) não foi realmente cumprida. É de advertir, aqui, que tais funções de Juiz supremo, atribuídas à Divindade, não se podem confundir, de modo algum, com os predicados e o scenario do Juiz Su40


premo apocalíptico, que, segundo os textos canónicos do N.T., dita o prémio ou o castigo aos seres humanos, no Dia do Juízo Final... De resto, a sistémica Teoria da História, aí implicada (pesem embora as pequenas variantes das três religiões monoteístas: judaica, cristã, islâmica), paga, inexoravelmente, o seu tributo à religião laica do Objectivo-Objectualismo, que fez sua profissão de fé, suprema e básica, a destruição e a eliminação dos Sujeitos humanos livres e responsáveis, dotados de Consciência reflexiva e crítica. Nesta problemática, continua a valer, apodicticamente, o dilema encalacrante dos existencialistas ateus: Ou Deus ou o Homem (os Humanos, entenda-se)! Não há meio termo... E os anarquistas a reforçarem esta mundividência crítica, com o seu lábaro típico: ‗Ni Dieu ni Maître‘!... A Cultura Ocidental hodierna não tem soluções para resolver os graves problemas políticos à escala do Mundo, porque também não as tem para resolver os graves problemas teológicos e religiosos, à escala do Planeta. E ela não tem as soluções adequadas, certas e fecundas, porque abandonou e repudiou, desde há muito, o seu filão mais autêntico, saudável e fecundo, — justamente o que procede do Socratismo e do Jesuanismo. Quem se apresenta, aí, para ajudar a resolver, decisivamente, problemas tão estruturais e sobredeterminantes como os da opção (consciente e crítica) entre a Guerra e a Paz (a NATO pretende reforçar-se e alargar-se, na Cimeira de Lisboa, Nov. de 2010), Imperialismo-Sim ou Imperialismo-Não (no hemisfério político e no hemisfério económico, onde é a iniludível Ditadura do ‗Free Market‘ que impera; o Conflito israelo-palestiniano, que está apodrecendo de tanto se eternizar; os problemas sérios arrolados por Samuel P. Huntington (no seu livro ‗O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial‘, Gradiva, Lisboa, 1999), aos quais se vieram a adicionar os decorrentes do Terrorismo dos fundamentalistas islâmicos (a partir do 11 de Setembro de 2001) e que o Ocidente (imperialista) começou, erradamente, a pretender resolver com os meios da guerra clássico-tradicional: foi mais fácil escamotear e dar como ‗artificiosos‘ os problemas levantados por S.P.H.!... O jornalismo de hoje faz gala das mais atrozes e gritantes superficialidades. Não sai das malhas do mais requentado empíreo-criticismo. ‗Deus é ilegal‘ na Europa.... é o título de uma ‗manchete‘ informativa, a propósito do livro ‗O Regresso de Deus‘ (Quetzal, Lisboa, 2010), de John Micklethwait e Adrian Wooldridge (cf. ‗Expresso‘, 13.11.2010, p.37). Que Deus é esse acerca do qual se diz que é ilegal?!... Que 41


Deus é esse acerca do qual se anuncia e proclama, empenhadamente, o seu regresso?!... Vivemos num mundo de loucos e estúpidos que, pelos vistos, se quer cada vez mais ignorante... Aí procura, sofregamente, o jornalista declarar que ―a Europa está sozinha no ateísmo. Com o seu habitual eurocentrismo, a elite europeia consagrou o fim da religião como uma das marcas obrigatórias da modernidade‖. Depois, anuncia que, afinal, Deus e a religião ainda continuam a fazer farinha em sociedades como EUA, Índia, China, Israel, Brasil, etc., países que, segundo informa, conciliam a modernidade com a fé. Em resumo, faz-se pender o balanço histórico-crítico a favor da recuperação das religiões (institucionalizadas) e contra a progressão do Ateísmo europeu, precisamente porque não se percebeu nada das Lições (sérias e críticas) do Processo histórico (libertador) na Cultura/Civilização do Ocidente, polarizada na Europa. É óbvio que também a velha Europa tem culpas graves e sérias no cartório, na medida em que o Processo histórico libertador, exercido, decisivamente, através das revoluções dos últimos quatro séculos da Modernidade, entrou bem cedo em curto-circuito. Por isso mesmo, a Europa e o Ocidente se mostram, hoje, aflitivamente, sem leaders, tanto à escala do continente como no plano de um Planeta globalizado. Há imponderáveis na História da Humanidade (em alguns dos seus grupos societários ou patamares evolutivos), que mudaram, substantivamente, as sortes e o Futuro das Culturas e das Civilizações e do seu relacionamento recíproco. O mundo islâmico, por exemplo, apesar da sua predominância cultural e filosófica nos sécs. VIII – XII, não foi capaz de acompanhar o florão científico-cultural, que despontou revolucionariamente, na Civilização hebraico-cristã-islâmica do Ocidente, nos sécs. XVXVIII, através de Figuras como Lutero e Calvino, G. Bruno, B. de Espinosa, Copérnico, Galileu, Descartes e F. Bacon, W. Shakespeare, Newton, Kepler, Rousseau, Voltaire, Darwin e Lamarck, etc.... Ora, os padrões conseguidos, nestes estádios superiores do Desenvolvimento científico e sócio-cultural, uma vez concretizados numa dada região ou sector da História da Humanidade, não se expandem nem disseminam automaticamente, nem por geração espontânea. O Esquema que aí funciona é o mesmo que tem lugar na Escola e no esquema de relacionamentos entre mestre e discípulo. Que fez a Europa e o Ocidente, para abrir caminho, neste horizonte, muito especialmente na relação cultural/ /civilizatória com as outras Sociedades não-europeias e não-ocidentais?!... O que fize-

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ram, podemos dizer, hoje, que cabe tudo dentro do rodeo do ‗Free Market‘ e da sua inexorável Ditadura... Quem ajuda a resolver o Conflito israelo-palestiniano que, ao eternizar-se por apodrecimento e falta de responsabilidade, só está a estigmatizar os impasses estruturais que estão a impedir a evolução normal da Civilização?!... Os acordos de Oslo de 1993 foram lançados ao lixo... Os colonatos na Faixa de Gaza prosseguiram, desde a ‗guerra dos seis dias‘ (1967). Na 1ª quinzena de Nov. de 2010, Benjamin Netanyahu, em visita oficial aos USA, teve o desplante de anunciar novas construções israelenses em Jerusalém oriental (a parte árabe da Cidade santa, que fora anexada por Israel em 1967; continua a ser uma região de maioria palestiniana e, com razão, os palestinianos consideram, por isso, ‗território ocupado‘; para os israelenses, toda a cidade de Jerusalém continua a ser parte integrante da sua capital ‗eterna, una e indivisível‘...). Aos anúncios despudorados de Netanyahu, o Presidente Barack Obama reagiu (com ‗diplomacia excessiva‘...) argumentando que ‗este tipo de actividades não ajuda às negociações de paz‘ (cf. ‗Expresso‘, 13.11.2010, p.29); e a Secretária de Estado Hillary Clinton declarou que os planos do Governo israelense são ‗contraproducentes‘, relativamente aos esforços de paz que, desta sorte, podem resultar malogrados (cf. ibidem). Decididamente, é preciso que a Humanidade de hoje e, em primeiro lugar, os Judeus e o Povo de Israel assumam, de vez, a consciência histórica de que o Sionismo rígido (na esteira desse movimento posto em marcha nos fins do séc. XIX, por Leo Pinsker e Theodor Herzl, que reclamava um território bem determinado para o povo judeu) é um absurdo descabelado... entrincheirou-se no hiperurânio das metafísicas religiosas do Judaísmo e atirou borda fora todo o Processo histórico real!... Advirta-se nos considerandos seguintes: O contrário do que estamos afirmando desemboca, ainda, num absurdo maior, porque omni-toto-abrangente, a saber: o processo histórico da evolução das culturas e das civilizações estaria totalmente reduzido à caixa fechada da biogenética dos grupos étnico-societários, reivindicando os seus direitos territoriais, desde tempos imemoriais, como se a Palestina fosse ‗res nullius‘... Por outras palavras, a gramática própria dos ‗mêmes‘ (Richard Dawkins) ficaria totalmente reduzida à gramática de funcionamento dos génes. E nunca por nunca se pode misturar e confundir a própria geneologia com a genética. Trata-se, aí, de uma mundividência ideológica perversa, semelhante à dos nazís, que exterminavam os indivíduos humanos supostamente imperfeitos para, no seu lugar, promover a ‗raça ariana pura‘; ou se43


melhante à dos soviéticos, que tratavam os críticos do regime e os dissidentes do Sistema como ‗doentes mentais‘!... A nosso ver, o Sionismo hard, a História (dos conquistadores e dos vencedores... que é, afinal, a que ainda impera!...), proscreveu-o irremediavelmente; não, obviamente, sem alguma culpa ou responsabilidade (pelo menos, passiva), por parte da própria odisseia histórica do povo judeu que, desde o séc. VIII a.E.C., começou a experienciar as soluções da Diáspora. Temos, em primeiro lugar, de saber e concluir que, afinal, a Diáspora judaica e o anti-semitismo (por parte de outros povos contra os judeus) não são, apenas, produtos perversamente civilizatórios decorrentes da história cristã de dois milénios ou da islâmica de catorze séculos. Quanto ao Sionismo soft, é, para nós, de toda a evidência que ninguém, de mente honesta e sensata, poderá recusar a sua legitimidade, desde que: a) remando contra as soluções forçadas da Diáspora, tenha por objectivo a congregação territorial da Nação judaica; b) saiba, no processus, assegurar as balizas adequadas, por forma a não ofender, entretanto, os direitos territoriais historicamente adquiridos por outros povos nativos ou limítrofes. Ora, em termos históricos, podemos admitir a tese de que a Nação judaica constituiu um exemplo paradigmático de refutação e recusa das doutrinas imperialistas. Nem nas épocas de David e Salomão os Judeus alimentaram, propriamente, pretensões hegemónicas e imperialistas... Entre 722 e 681 a.E.C., o reino de Israel foi invadido, saqueado e submetido: primeiro, por Sargão II e, depois, por Senaqueribe, ambos reis dos assírios. Jerusalém foi, então, destroçada juntamente com a cidade metrópole da Babilónia. A capital dos assírios/caldeus passou para Ninive. Começou logo, aí, o primeiro movimento da Diáspora judaica, uma vez destroçado e submetido o reino de Israel. Entre 605 e 586 a.E.C., já no quadro do Império Novibabilónico, o rei Nabucodonosor II cerca, saqueia e submete a cidade de Jerusalém, capital do reino de Judá, e leva para o cativeiro da Babilónia a maior parte dos habitantes do Estado de Judá. Foi o segundo grande movimento da Dispersão diaspórica do povo judeu, até porque na Nova Babilónia, os que ficaram foram submetidos à escravatura. Só depois de a cidade de Babilónia ter sido conquistada pelas tropas de Ciro, rei dos Persas, é que, mediante o Édito de Ciro (538 a.E.C.), os judeus puderam fazer o seu regresso à Palestina, à sua terra pátria/mátria.

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Em 40 a.E.C., Herodes-o-Grande (que era idumeu!... só meio judeu, por parte da esposa) é nomeado rei dos Judeus pelo seu amigo de Roma, o imperador Marco Aurélio. Entre 37 e 4 a.E.C. (data da morte), Herodes-o-Grande empenha-se, muito especialmente, em duas grandes missões: a reconstrução do Templo de Jerusalém e, ao mesmo tempo, a missionação (ideológica) do Judaísmo por todo o Império Romano. (Se, desde a batalha de Queroneia/331 a.E.C., sob a égide do império de Alexandre-o-Grande, o Helenismo havia tido a oportunidade de se expandir por todo o Mundo conhecido, cabia agora a vez ao Judaísmo de se espalhar por todo o Império Romano.). O mandato missionário (que nós podemos encontrar nos textos canónicos do N.T., designadamente em Mt.28, 18-20, Mc. 16,15 e outros lugares paralelos, e que são de inspiração paulina) apresenta-nos um tipo de enunciados nitidamente marcado pelo espírito de conquista e dominação, muito embora com os seus efeitos directos nos planos ideológico e cultural. Não era Paulo de Tarso (o chamado ‗Apóstolo Abortivo‘, como a si mesmo se chama) do partido político-religioso dos Fariseus e cidadão romano, — título que ele invocou várias vezes para se livrar de sarilhos e da prisão?!... Herodes-o-Grande e Paulo são 2 Agentes que actuam segundo a mesma cartilha: o primeiro, no plano ideológico-político; o segundo no plano ideológico-cultural. O mandato missionário (tal como se encontra formulado e enquadrado dogmatica e ameaçadoramente nos textos canónicos do N.T.) configura toda uma mundividência objectiva-objectualista, onde os Humanos são avaliados e julgados sempre a partir de cima e de fora, que o horizonte de os vermos avaliados e julgados a partir da sua interioridade e das consciências dos Indivíduos-Pessoas livres e responsávies se dissipa por completo, a tal ponto que o quadrante pressuposto, em que se move a Espécie, não é outro, efectivamente, a não ser o do ‗Homo Sapiens tout court‘. Na recente cimeira da NATO em Lisboa, 19-20.11.2010 (cf. ‗Expresso‘ 20.11. 2010, pp.4-6), esta organização político-militar internacional, em vez de se dissolver, continua a manter-se, impávida e serena, alardeando, hipocriticamente, que alterou o seu ‗conceito estratégico‘... Continua a incensar a Cultura e a Civilização que atribuem o primado absoluto ao Poder sobre o Saber. A cartilha da segurança e o quadro societário da ‗law and order‘ são sempre induzidos e construídos a partir das Forças militares, por conseguinte, a partir de fora e de cima e não a partir de dentro, a partir das consciências e da confiança mútua entre os Indivíduos-Pessoas, considerados livres e responsáveis. Com uma raríssima inteligência crítica e perscrutadora, 45


David Gress procede à denúncia de toda esta mundividência ideológica, publicando já em 1953 a obra titulada: ‗From PLATO to NATO‘ (The Idea of the West and its Opponents), The Free Press, New York..., 1998. O que, justamente, é criticado e repudiado são os fundamentos civilizacionais de ordem filosófico-ideológica, que se acham na base dessa mundividência ocidental. A Cultura Ocidental da Conquista e da Dominação (mais cristã do que judaica, ao longo dos dois milénios de História) tem a sua raiz naquelas três décadas da Missionação do Judaísmo, empreendida e protagonizada por Herodes-o Grande; e não se pode esquecer nem postergar que o seu berço (no concernente à dinâmica operatória) foi precisamente o molde cultural/civilizacional do Império Romano. O Poder, apesar de tudo, predomina sempre sobre o Saber!... Eis, igualmente, por que os Cristianismos institucionalizados (ao longo de dois milénios) não são outra coisa senão o fruto (bichado) e o resultado do ideológico Cristianismo paulino, que tem a sua chancela na maior parte dos textos canónicos do N.T.. Do vero Jesuanismo, não restará, aqui, em termos estatísticos, muito mais do que uns 30%, para um entendedor judicioso e crítico. No final da guerra judaica (66-70 E.C.), as tropas imperiais de Roma, sob o comando do general Tito, após a destruição de Jerusalém, assaltam e saqueiam a fortaleza de Masada (junto ao Mar Morto), onde resistiam à invasão ca. de 900 judeus essénios, os quais optaram pelo suicídio em massa, como alternativa à submissão ao jugo imperial de Roma. Deu-se, no seguimento deste processo sócio-histórico, o terceiro grande movimento da Diáspora do povo judeu, que se disseminou por terras da Ásia Menor e da Europa, onde, ao longo dos séculos, exerceram influência cultural/ /científica importante. No quadro deste painel resumido da história do Povo judeu, podemos formular ad hominem a seguinte Questão: Com quem aprenderam os judeus da ‗guerra dos seis dias‘ e dos posteriores colonatos e ‗muros‘, os planos e projectos de Conquista e expansão dominadora, incapazes de respeitar, em pé de igualdade, os direitos territoriais dos seus vizinhos ou dos que, por esse meio, são literalmente desalojados do que consideravam a sua terra pátria/mátria, em plena legitimidade jurídica reconhecida?!... Poderíamos, na circunstância, estabelecer esta regra de três simples: os judeus (sionistas) da ‗guerra dos seis dias‘ e dos colonatos e da conquista/dominação estão para o Apoio protector da hiper-potência hegemónica (imperialista: USA), como os judeus da época de Herodes-o-Grande estiveram para o Apoio protector do Império Romano 46


e de Marco Aurélio. — Quando é que a Espécie humana vai romper e estilhaçar o odre da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord?! Este nosso Discurso crítico procura incidir, directa e expressamente, sobre matérias analíticas, que são próprias da História das culturas e das civilizações e dos seus respectivos Povos e Nações ou Nações/Estado, porque, decididamente e por princípio, não se considera vítima nem refém ou turiferário das doutrinas (ideológicas) do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, que continua a infestar, não só as religiões monoteístas, como também a mundividência laica e profana da Modernidade e da Pós-Modernidade. É tempo de dizermos Basta a tal mundividência (ideológica e perversa). *

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“DEUS É UMA MAGNÍFICA CRIAÇÃO DO CÉREBRO HUMANO” (António Damásio). SERÁ MESMO ASSIM?! EM QUE SENTIDO?! A nossa segunda pergunta acaba por ferir de morte a primeira, que se limitou a interrogar, ad hominem, a afirmação apodíctica de António Damásio, que serviu de título a uma entrevista dada a Clara Ferreira Alves (vd. ‗Expresso‘, Rev. Única, 30.10. 2010, pp.21-25), a propósito do seu livro recentemente saído a público, na edição portuguesa do Círculo de Leitores, Lisboa, 2010, com o título: ‗O Livro da Consciência‟/A Construção do Cérebro Consciente. Do livro, falaremos mais adiante. Aqui e agora, é a entrevista que nos preocupa, porque, no universo ideológico-cultural desta obra de A.D., o título da entrevista espelha bem o que, em termos culturais e civilizatórios, ficou expresso ou implicitado no texto de todo o Livro (437 pp.), e que, no horizonte crítico do C.E.H.C., constitui, pelo menos, um handicap estrutural grave. Por essa via, não saímos do horizonte da Cultura do Poder-Condomínio. É nosso hábito adquirido, no C.E.H.C., falarmos das Religiões e da Divindade em termos precisos e rigorosos, de contrário caímos no corrente flatus vocis demagógico, que, pretendendo mudar alguma coisa, no universo da Vida societária dos Humanos, acaba por deixar sempre tudo na mesma!... Desta sorte, do mesmo modo que, ao falarmos das Religiões, em discurso esclarecido e crítico, é mister fazermos referência às Religiões Institucionalizadas e ao modo como se comportam no concernente à problemática da Potestas, de igual modo deveremos referir-nos às funções da Divindade em termos críticos e rigorosos, de contrário vamos cair nos báratros do discurso empíreo-criticista banal e superficial, ou ficaremos condenados às demagogias de todos os tipos. Quando terminámos a leitura da citada entrevista, logo deixámos escrito, nas margens, o que aqui vamos reproduzir e que, bem vistas as coisas, constitui a resposta directa à nossa segunda pergunta, acima enunciada: ―Deus é uma magnífica criação do cérebro humano‖... Depende: A) Se for uma noção concebida e edificada no he48


misfério dos Sujeitos humanos, sim: constitui um coeficiente/reforço da sua própria Identidade permanente e inviolável. É de advertir, entretanto, que no discurso de A.D. e C.F.A. nunca se fala, expressis verbis, relativamente a esta Suprema Incógnita, de uma noção!... Por isso, a ambiguidade do discurso é uma constante. B) Se, porém, esse ‗Deus‘ for concebido e edificado no hemisfério dos Objectos objectualizados, enquanto Entidade extrínseca e transcendente ao Universo (supostamente por ela criado), constituído como realidade metafísica-ontológica, então a nossa resposta é decididamente não. Se aprofundarmos as implicações e consequências da Tese (teológica) corrente e tradicional, que é a da Cultura/Civilização (tradicional) do Ocidente, agora em boa parte mundializada, logo nos damos conta, criticamente, que foi ela, precisamente, que permitiu e abriu caminho, em última instância, para toda a sorte de regimes políticos Não-Democráticos, ao longo dos milénios, e que, mercê dos seus estigmas indiciários do sagrado, foi, sistemicamente, utilizada e aproveitada pelos detentores dos Poderes Estabelecidos e respectivas classes dominantes, para subjugarem e imperarem sobre as classes dominadas, exploradas e oprimidas. Com efeito, uma noção positiva e fecunda da Divindade (para o universo e a mundividência dos Humanos, em termos críticos) terá de passar, em termos linguísticos, pelos tags axiomáticos do ‗meu Deus‘ (‗my God‘, ‗mon Dieu‘, ‗mein Gott‘, etc....); ou, expressamente, em termos narratológicos, pelo enunciado célebre de Aurélio Agostinho e da Cultura céltica: o ‗intimior intimo meo‘: Aquele que me é mais íntimo a mim do que eu me sou a mim próprio‘. O que estamos asseverando, afirma-se tanto mais justo e verdadeiro, quanto nos damos conta que estão, aí mesmo, expressas e em acção as duas coordenadas fundamentais da Consciência humana: — a função de conhecimento a incidir sobre um objecto; — a função de testis (testemunha), no que tange à verdade desse conhecimento. Na entrevista, o neurocientista começa por falar das razões que o motivaram na escrita deste Livro, primacialmente na perspectiva das ciências biológicas: ―Tenho trabalhado bastante a consciência e, nestes últimos anos, houve uma acumulação de dados e reflexões, que mudaram uma boa parte dos conceitos que tinha sobre consciência do ponto de vista biológico. [...] Coisas que têm a ver com a matéria com que a consciência é feita e com os mecanismos com os quais a consciência é feita‖ (ibi, p.21).

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As principais mudanças têm a ver com os Sentimentos, o modo como eram percebidos e identificados, no processus biológico. Ao abrir a porta para os chamados sentimentos primordiais, articulou-se, em profundidade, a ligação entre os dois fenómenos distintos: o sentimento e a emoção. A.D. (ibi, pp.21-22): ―Naquilo que os sentimentos são, biologicamente, houve uma mudança quase radical, que inclui aquilo a que chamo sentimento primordial. Até agora tudo o que disse sobre sentimentos, mesmo quando os apliquei à consciência, tinha a ver com sentimentos de emoções. Há uma perturbação do corpo apreciada perceptivamente pelo cérebro e daí vem o sentimento da emoção. Numa perspectiva são sentimentos da emoção, noutra sentimentos do conhecimento. Isso mantém-se. Aparece agora a noção de um sentimento mais simples, de primeiro nível, desde que haja um cérebro com as estruturas semelhantes ao que temos, e que abaixo de nós vai até aos répteis. É um sentimento feito da representação do estado do corpo num determinado momento, harmónico, equilibrado, ou um estado desarmónico, ligado à fisiologia da dor. Esse estado não precisa de ser provocado por uma interacção entre o corpo e um objecto exterior. É o que eu chamo um sentimento espontâneo do que está a passar-se no corpo. E sem adornos. Apenas está. Aquilo que nos está a dar é uma representação de que existimos, de que a vida faz tique-taque dentro de nós. É uma ideia muito poderosa e grande parte dos outros sentimentos são variações de emoções‖. No Processo da Evolução (biogénese

antropogénese), A.D. faz jus ao pata-

mar superior da Consciência nos Seres humanos. E, no mesmo passo, ele procede à articulação inovadora do córtex cerebral e do tronco cerebral. Diz ele aí (p.22): ―Os seres humanos são a coroa de glória da biologia e da evolução. E têm qualquer coisa de distinto: a consciência humana. Como o córtex cerebral é também o aspecto mais desenvolvido da neuroanatomia, tem decorrido daí a ideia de que a consciência que nos distingue vem desse córtex cerebral. E aí está o erro. Embora a consciência humana seja mais alargada e pormenorizada, no conteúdo, do que a consciência de outros animais, isso não quer dizer que estes não tenham consciência e é evidente que têm. E é evidente que ela tem de vir de alguma parte do cérebro. E quando se começa a descer nas espécies e se chega a espécies que quase não têm córtex, têm unitronco cerebral desenhado no mesmo modelo do humano, temos de pensar se não existem aí aspectos que são precursores da mente e da consciência humanas. Existe dentro dessas

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estruturas uma riqueza, e isto não é uma construção teórica. É assente em dados biológicos concretos sobre aquilo que se passa no tronco cerebral‖. A.D. chega a afirmar, categoricamente, que ―a coroa de glória do eu autobiográfico humano é o sentimento do futuro, do que vai acontecer‖ (ibidem); mas, de facto, nada é proposto ou indiciado para, no plano societário e da Cultura/Civilização, concitar os Humanos a avançarem com Projectos de transformação das Sociedades humanas. Ter-se-ia de perguntar, ad hominem, para que serve a Consciência superior da Espécie humana!... E o Autor até poderia lá chegar, a partir, justamente, dos predicados de prevenção e planeamento, que atribui à regulação da vida, em termos biológicos: ―A vida precisa de ser regulada e aquilo que a regulação da vida mais precisa é de que não se produzam todas as sequências de eventos, que podem levar à doença e à morte‖ (ibidem). Quanto ao Dualismo metafísico-ontológico, ficamos a saber que A.D. o rejeita (pelo menos, no horizonte da cartilha do mecanicismo cartesiano), mas ficamos, por outro lado, sem saber se ele o recusa nos planos da Cultura e da Civilização. E, aqui, a resposta parece negativa, em função de todas as omissões que, nesta esfera, teriam a ver com os postulados e as consequências do Aparelho triádico construído: Cérebro/Mente/Consciência. Disse ele na entrevista (ibidem): ―Tudo está planeado no sistema e está planeado no tronco cerebral. Daqui veio-me a ideia de que o tronco cerebral é uma região única no cérebro, que faz a união entre corpo e cérebro. Falamos do problema clássico da filosofia, o problema mind/body, quando se tem dito, desde tempos imemoriais, que o espírito está separado do corpo e não há maneira de os juntar, a velha ideia do dualismo cartesiano. Ideia conveniente para uma série de posições filosóficas, mas não para mim‖. Em ‗O Erro de Descartes‘/(Emoção, Razão e Cérebro Humano), (Pub. Europa-América, Mem Martins, 1995/7ª ed.), A.D. procurou esconjurar e banir o Mecanicismo cartesiano, mas não sabemos se chegou a profligar o Dualismo metafísico-ontológico de Descartes, que é, estruturalmente, o mesmo de Platão e de Paulo e das Cristandades tradicionais. Através de ‗O Livro da Consciência‘, ele procura promover a superação daquela dicotomia tradicional, na Cultura do Ocidente, entre animais racionais (os Humanos) e animais irracionais, que levava os primeiros a ignorar e a banir, por completo, a emoção e a consciência em toda a fauna não humana. Mas os postulados, que possam decorrer do Aparelho triádico do Cérebro/Mente/Consciência

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não têm pé para a pegada, que é necessária e urgente em termos societários, culturais e civilizatórios... A nossa surpresa, resultante das omissões nesta obra de A.D., agrava-se tanto mais, quanto sabemos e constatamos que o próprio Autor assume, claramente, que a Consciência faz parte do processo de regulação da vida, ao longo da história da biogénese e da antropogénese: ―desde que a mente tenha dentro dela um processo de eu‖ (ibi, p.23), que ele escande em três planos: o proto-eu (material), o eu nuclear, e o eu autobiográfico. Mais: o neurocientista é dado a percepções subtis dos fenómenos; o que se espera é só que a subtileza não o venha a atraiçoar... Não tem problemas, por exemplo, em estabelecer a distinção e não-confusão entre o inconsciente genómico e o inconsciente cognitivo (que é abundante nas diferentes personagens da literatura), ao qual se refere nestes termos (ibi, p.23): ―reacções de ciúme, agressão, de filiação, que são repetidas na história da civilização porque são impostas pelo genoma‖. Pretenderá o Autor misturar e confundir o inconsciente genómico com a ‗memória genética‘, que é um conceito, pelo menos, parcialmente contraditório?!... Sublinhamos as funções e os objectivos estruturais que A.D. atribui à Consciência: ela ―serve para nos guiar na construção de uma vida com uma homeostase mais eficiente‖ (ibi, p.24). E nesse processus, ―os neurónios são servos dos princípios do valor biológico e são servos desses parâmetros de valor com os quais é preciso jogar para criar uma vida eficiente‖ (ibidem). Sublinhamos e encarecemos, igualmente, a asserção de que há diferenças substantivas na abordagem do físico e na abordagem do biológico, e que pode haver perfeitamente provas exteriores de ordem física do ‗misterioso‘ fenómeno da consciência (cf. ibidem). É conveniente, entretanto, não enveredar por ‗superstições‘ do tipo: pressupor que a estrutura da consciência possa vir a ser decifrada como aconteceu com o ADN e a descodificação iniciada do genoma humano. Tem, pois, razão A.D. quando afirma (ibidem): ―A biologia, especialmente quando se trata de biologia do cérebro, é de uma complexidade extraordinária. Não é exagero dizer que o cérebro humano atingiu o maior nível de complexidade que é possível encontrar no universo. Aí, a abordagem bela e sistemática da física não funciona bem. Há numerosas vias para fazer a triangulação e concluir que a consciência tem uma base e processos neurais organizados; é preciso ter uma visão evolucionista do problema e juntar dados‖. — Por isso, conclui o Autor, não há propriamente sítios no cérebro onde a consciência aconteça!... 52


De facto, a triangulação que articula o imaterial e o material, no espaldar da função de testis da consciência, bem poderia, desde logo, sugerir e estimular o Autor a descobrir como se formou e plasmou a ideia de Deus...; depois, uma vez admitida, conscientemente, a perspectiva evolucionista, A.D. bem poderia aproximar-se, criticamente, da dispensa do Deus metafísico-ontológico e investir as energias psíquicas, disponíveis na Consciência dos Humanos, num projecto de Utopia necessária, capaz de transformar, de fond en comble, as Sociedades humanas. A este propósito, haverá, aí, alguém, que nos possa brandir, sobre este projecto, a espada do aforisma: ‗Quod volumus faciliter credimus‘?!... A Cultura, nas Sociedades humanas, está muito longe de ter aprendido, na íntegra, as Lições da Natureza. O próprio Autor tanto admite e conclui que ‗a Natureza é indiferente‘ ao bem e ao mal, como, para que a Evolução funcione, ela pode revelar alguns atributos morais, v.g., ‗as mães que têm apego aos filhos‘ (ibi, p.25). Por outro lado, A.D. sabe que a homeostase biológica tem de ser prosseguida no patamar sóciocultural, uma vez que a cultura e a consciência (humana) têm por objectivos e funções essenciais a regulação e a melhoria da vida, nos respectivos patamares evolutivos. Dir-se-ia, assim, que, no Processo da Evolução (biogénese

antropogénese), o

primado dos factores sobredeterminantes da Genética vai cedendo o passo (a partir da Espécie Homo Sapiens e Homo Sapiens//Sapiens) ao primado dos factores sobredeterminantes da Cultura e da Consciência. Nos domínios da homeostase sócio-cultural, há, no discurso de A.D., algumas ambiguidades e lacunas. Por exemplo, quando se refere à escravatura (ibidem): ―A escravatura, se repararmos, é um expediente do ponto de vista da sobrevida. No entanto, chegámos à conclusão de que a escravatura era horrível e dissemos não. Como dissemos não ao trabalho infantil, à violência‖. Na verdade, o argumento explicativo da sobrevida, só poderá entender-se e aceitar-se, com alguma legitimidade, no horizonte do ‗Homo Sapiens tout court‘, não no do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. Mas as ambiguidades e lacunas prosseguem no discurso de A.D. (ibidem): ―Há uma série de ajustes culturais, que estão a ser feitos e que têm a mesma finalidade que a homeostase básica: fazer com que a sobrevida seja maior e com que haja bem-estar. Não estamos apenas interessados em sobreviver, mas em sobreviver com bem-estar, porque temos um sistema nervoso que nos dá a dor e o prazer. E preferimos o prazer. E obtemos uma melhor organização da vida para nós e para o grupo. Os instrumentos

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da homeostase cultural, historicamente, são a arte, a religião, valores morais, sistemas de justiça, organização política e económica, ciência e tecnologia. Não vejo que haja outro fim para a cultura do que organizar a vida de modo melhor‖. — Dir-se-ia, em resumo, no que tange a necessária e indispensável homeostase sócio-cultural, que a lista dos seus meios e instrumentos ficou tão completa... que, no alçapão, se esqueceram os objectivos (críticos) estruturais para que eles foram cooptados!... O discurso de A.D. (já no seu livro em causa, já nesta entrevista) mostra-se atreito à mistura e confusão dos dois planos (que nós consideramos estruturalmente distintos na mundividência do C.E.H.C.): a Natureza e a Cultura. Um exemplo, capturado in actu exercito: Partindo do pressuposto, nos domínios da Cultura, das duas noções antagónicas (bem e mal), C.F.A. pergunta se ‗o mal poderia ser uma patologia da consciência‘, ao que A.D. responde: ―Podia ser, e provavelmente é. Há indivíduos que, por razões genéticas ou lesões cerebrais, são psicopatas‖ (ibidem). O contraponto entre a perguntante e o respondente, o que aqui nos mostra é um diálogo de surdos... Depois, C.F.A. aduz o caso de Hitler e do extermínio nazi, e A.D. aquiesce com a explicação seguinte (ibidem): ―Não seria alguém com quem nos apetecesse jantar. Tinha uma série de valores altamente distorcidos, mas culturalmente toleráveis se os confinasse a falar deles e escrever livros, em vez de passar à acção‖. Exprimamos, abertamente e sem sofismas, a ideia crítica do C.E.H.C., a respeito desta problemática estrutural: a ‗Solução Final‘ de Hitler e do nazismo, em última análise e em derradeira instância, constitui o resultado historicista da distinção/ /separação entre a Teoria e a Prática, que leva, por sua vez, ao primado estabelecido do Poder sobre o Saber (que é o pressuposto constituído, na Cultura (ideológica), que dá serventia ao tradicional e corrente saber científico neutro e asséptico...); consequentemente, ela é, ainda, o resultado historicista da total dissolução da formação ético-moral das consciências humanas, na Cultura institucionalizada nas nossas Sociedades. O refrão do dramaturgo inglês, Bernard Shaw (‗quem sabe faz, quem não sabe ensina‘!...) está muito mais próximo da mundividência dos Gnósticos judeo-cristãos primevos, que são a nossa ‗estrela de Belém‘!... Decididamente, este discurso (da ‗Doxa reinante‘...) sem solução de continuidade entre a órbita da Natureza e a órbita da Cultura, em 1º lugar e à superfície, é anémico e disruptor; em 2º lugar e em profundidade, é maquiavélico e perverso, e distorce, estruturalmente, a substância da própria Cultura humana qua tal. Nesse horizonte, as últimas ideias que A.D. deixou alinhadas nesta entrevista (ibidem), têm para 54


nós o sabor a um anestésico: ―A homeostase unicelular começou há milhares de milhões de anos. Na cultura, temos instrumentos de escrita há cinco milénios. A primeira grande criatividade do primeiro alvorecer cultural humano deve ter incidido sobre mecanismos de comportamento social. Não é por coincidência que aparece o Código de Hamurabi feito em pedra. O registo de regras morais. Também é possível regular o que diz respeito à dor que vem do sofrimento. Quando há destruição massiva do grupo por uma catástrofe, cria-se dor e a necessidade de inventar explicações e sistemas que cancelem essa dor‖. De seguida, faz-se referência à invenção da arte e da religião... — Na frontaria de um tal templo, o que nós vemos esculpido é o mote: ‗O conto do Vigário‘!...

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SOB OS HOLOFOTES DE W. BENJAMIN E G. AGAMBEN

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É sabido que uma CULTURA humana substantiva não pode contemporizar com qualquer tipo de historicismos, sejam eles materialistas ou idealistas: uns e outros são configurados e regidos pela cartilha do Objectivo-Objectualismo. Mas há uma Política que é necessário e indispensável fazer-se, na História e para a História humana, digna do nome. E esta não é, certamente, a dos Poderes Estabelecidos segundo a cartilha da Cultura do Poder-Dominação d’abord. (Há dois livros recentemente editados em português, com um altíssimo interesse para esta problemática: um é de Walter Benjamin: ‗O Anjo da História‘/das Obras Escolhidas de W.B., Assírio & Alvim, Lisboa, 2010; outro é de Giorgio Agamben: ‗Estado de Excepção‘, Edições 70, Lisboa, 2010). A vera e autêntica Política da História humana tem sido obliquada, distorcida, pervertida e rechaçada, ao longo de séculos e milénios, pelos Poderes Estabelecidos segundo a gramática do primado (absoluto) do Poder sobre os Saberes. ‗Quem manda pode... e quem pode não sabe o que deveria saber para governar sobre os demais!...‘. Para se dar conta, em profundidade, de toda esta problemática, é mister avançar com um intróito de ‗banda larga‘: No horizonte dos Gnósticos judeo-cristãos primevos, o que deve estar em causa e é mesmo importante e decisivo, é a dialéctica tensional entre o mundo interior dos Sujeitos (humanos) livres e responsáveis e a exterioridade das chamadas ‗Obras da Civilização‘ (v.g., segundo a concepção de K. Popper). Este dado tem sido, sistemicamente, esquecido, ignorado e ocultado pelo Processo histórico cultural/civilizatório, até ao presente. O C.E.H.C. tem procurado recuperá-lo e integrá-lo, de plenos pulmões, na sua mundividência crítica. Neste horizonte crítico — há que admiti-lo — W.B. e G.A. situam-se na ante-câmara do Humanismo Crítico; ainda não marcaram residência nos espaços centrais do C.E.H.C.. Todavia, os seus textos e obras são, em geral, de muita pertinência e importância crítica. Sobretudo, as 18 Teses de W.B. (‗Sobre o Conceito de História‘) sobre a Política da História (que constituíram uma espécie de aliança paradoxal entre o materialismo histórico marxiano e o chamado messianismo judaico) foram estudadas, cuidadosamente, por G.A. e alguns outros, e ainda hoje podem constituir um vero ‗Padrão dos Descobrimentos‘ nesta Grande Área, um vero desafio às Inteligências, tanto de religiosos progressistas como de laicos e ateus. W.B. é o 1º estudioso e intelectual a esconjurar, radicalmente, todos os historicismos, que levam sempre, inevitavelmente, a chancela do Objectivo-Objectualismo. A sua conciliação e articula56


ção do materialismo histórico e do postulado da consciência revolucionária in actu exercito, acabam por desbaratar, com perspicácia, o continuum (mais ou menos determinista/fatalista) da História, do falso Progresso e de todos os historicismos, que têm por regra a impenitente subjugação/servidão dos Seres humanos aos Poderes Estabelecidos. Desta sorte, as 18 Teses de W.B. sobre a concepção crítica da História e os textos de G.A. sobre o ‗Estado de Excepção‘ constituem veros marcos miliários, no processo de configuração de uma ‗Política por Vir‘. (Veja-se, a propósito, a recensão de António Guerreiro, in ‗Expresso‘/Actual, 20.11.2010, pp.36-38). Não obstante, confrontados com as traves-mestras do edifício filosófico-cultural do C.E.H.C., os seus textos assumem, antes, uma índole predominante de Didaxis, de Metodologia cuja função é abrir caminho para o Projecto Humano, que se deseja concretizado... quanto antes: quem sabe faz, não espera acontecer!... É, pois, por isso mesmo, que W.B. e G.A. se mostram, ainda, de algum modo, reticentes perante algumas conclusões e postulados das suas teses, uma vez que ainda são vítimas do encandeamento dessa atmosfera ideológica, que dá pelo nome de Objectivo-Objectualismo, alavancado por toda a Sistémica, corrente e tradicional, do Monismo Epistemológico. Ora, é precisamente por causa destes pressupostos que eles se tornam incapazes de aceder, ainda que em termos paradoxais, ao vero horizonte dos Sujeitos humanos livres e responsáveis, por formas a conduzir, a partir daí, as suas naus da Pesquisa, com as velas pandas enfunadas. Na humana gramática operatória/funcional, deve lembrar-se que entra, aí, de pleno direito toda a mundividência legítima da Anarquia (no sentido etimológico do termo). Uma vez ultrapassado esse Adamastor, eles poderão assumir a convicção firmada de que os Indivíduos-Pessoas humanos, enquanto Seres plenamente livres e responsáveis constituem — isso sim! — a vera âncora da fundação da Sociedade humana autêntica, cuja forja é formada, simultaneamente, pela Consciência livre e responsável e pela Experiência, — duas realidades que o Processo da Psico-Sócio-História tem negligenciado e desprezado, até ao presente. É justamente neste horizonte crítico que, por exemplo, cumprirá avaliar e repudiar como impertinentes e insensatas as críticas duras, feitas pelo papa Bento XVI (na reunião do colégio cardinalício, em 19 e 20.11.2010), em torno do que ele chamou a ‗ditadura do relativismo‘, suposto apanágio dos nossos tempos, que, no entender do papa, deverá empenhar a Igreja na ‗afirmação da liberdade de anunciar a verdade do 57


Evangelho‘ (cf. ‗Expresso‘, 20.11.2010, p.2). A I.C.R. e o papa nunca entenderam nada, ao longo de dois milénios, desse único absoluto que resta, hoje, e que são as Consciências Individuais-Pessoais dos Seres humanos livres e responsáveis. O relativismo, de que falou o papa, é equacionado e medido criticamente dentro do odre da Metafísica ontológica e do seu inalterado Dualismo, tudo gerido e comandado sob a égide da Cultura do Poder-Dominação d’abord. A Relação entre iguais dos Sujeitos humanos livres e responsáveis nunca interessou, propriamente, aos papas nem às Cristandades (paulinas) tradicionais. No quadro analítico, que agora nos ocupa, podemos destacar algumas ideias e enunciados centrais dos textos de W.B. e G.A., que mais convergem e se aproximam da mundividência crítica do C.E.H.C.. Um pressuposto comum a ambos é a Questão de saber como se articula, estruturalmente, a História com a Política e vice-versa. Na base, está o princípio, admitido, da Racionalidade da História: uma racionalidade que não vai descambar nos determinismos (objectivo-objectualistas), mas que se pode exprimir, perfeitamente, numa certa dimensão profética da História, a qual, não obstante, é sempre intrinsecamente política. Há, sem dúvida, um estro espinosiano nos textos de W.B., desde logo bem visível e notável no ‗Fragmento Teológico-Político‘ e nas 18 Teses ‗Sobre o Conceito de História‘, integradas em ‗O Anjo da História‘. E ainda, em ‗Destino e Carácter‘, ‗Experiência e Indigência‘, ‗Sobre a Crítica do Poder (der Gewalt) como Violência‘. É claro, do que se trata é mesmo da crítica de toda a sorte de violências, no plano da Cultura, não, obviamente, no plano da Natureza. É, inegavelmente, lícito e legítimo que uma época ou uma geração ‗sonhem‘ com as seguintes. Tornou-se, entretanto, implicitamente consensual, nos dois filósofos, a ideia de que a história só adquire uma dimensão política a posteriori, i.e., a legibilidade crítica (

política) de um dado facto ou conhecimento histórico só advém

a posteriori. É, afinal, a aplicação do antigo refrão clássico-helénico: ‗a ave de Minerva só chega ao crepúsculo‘!... Nesta perspectiva, dir-se-ia, então, que o texto de G.A., ‗Estado de Excepção‘, representa o ‗agora da cognoscibilidade‘ (segundo a expressão de W.B.) do momento/acontecimento anterior, que a História registou, e que a historiografia de então não havia sido capaz de reconhecer. O que em tal Esquema noético acontece é que se continua, por um lado, a incensar a santa religião (laica e profana) do Objectivo-Objectualismo, e, por outro lado, a não reconhecer nem identificar os Sujeitos humanos livres e responsáveis,

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enquanto veras alavancas da organização do Mundo e do Processo civilizatório (o projecto por que os veros anarquistas sempre têm legitimamente lutado). A propósito da circunstância em que as Teses estruturadoras de W.B. atingiram o seu clímax, escreveu António Guerreiro (loc. cit., p.36): ―As teses sobre o conceito de história são geralmente consideradas um testamento espiritual, escritas numa situação histórica e pessoal trágica, poucos meses antes de o seu autor se suicidar, em 1940 (mas algumas das suas formulações já estão presentes nos escritos da juventude). Trata-se de um documento de interrogação radical, num momento em que toda a indagação sobre o significado da história parece anulada ou foi expulsa como fim das grandes ideologias. As teses de Benjamin precedem este fim e colocam-se no limiar de uma interrogação absoluta, que será devastada pela guerra e pelo extermínio‖. É muito conhecida a pregnante Figura alegórica do Anjo da história (tese IX), inspirada num quadro de Paul Klee. Do que se trata, aí, é de significar uma visão catastrófica da História: esta surge, aí, como um montão de ruínas, acumuladas pelo passado, ao mesmo tempo que sopra do futuro um vendaval, a que o Anjo virou as costas. ―A crítica da ideologia do progresso encontra, aqui, uma expressão radical e bastante paradoxal, do ponto de vista do materialismo histórico, em nome do qual Benjamin formula o seu conceito de história. E esta crítica do progresso segue a par de uma crítica do historicismo, de uma história ‗homogénea e vazia‘, que Benjamin diz ser uma construção ideológica, responsável pela catástrofe‖ (ibi, p.27). — Na nossa terminologia, resumiríamos o processo historicista da catástrofe, com dois enunciados axiomático-críticos: tudo (dis)funcionou segundo a cartilha do Objectivo-Objectualismo, sob o pendão da Cultura do Poder-Dominação d’abord. Em consequência disso, é absolutamente preciso destronar o histórico primado do Poder (objectivo-objectualista) sobre o Saber, atribuindo o primado a este. Eis porque a ‗ditadura do relativismo‘, verberada pelo papa Bento XVI, está muito longe de atingir as fontes e as origens da vera História ‗por vir‘, a qual só pode encontrar as suas âncoras nas Consciências dos Sujeitos humanos livres e responsáveis. Na tese XV de W.B. pode ler-se: ―A consciência de destruir o contínuo da História é própria das classes revolucionárias no momento da sua acção‖, — in actu exercito, não in actu signato, como se dizia no discurso clássico. É preciso, pois, interromper, e romper definitivamente, o continuum da História dos conquistadores e vencedores, essa História tout court que, perante os vencidos só tem uma derradeira lamentação, ‗Vae victis‘!... De resto, W.B. conhecia muito bem os escritos da juven59


tude de K. Marx, designadamente as Teses sobre Feuerbach. Não está, por conseguinte, fora de hipótese ele ter-se inspirado, justamente, nos enunciados apodícticos da 3ª Tese marxiana: Os homens modificam as circunstâncias da vida social-societária; mas os educadores carecem, eles próprios, de ser educados. E essa sua re-educação tem de ser auto-educação... de contrário, a sociedade continuará dividida em duas classes antagónicas. Eis por que a coincidência entre a modificação das circunstâncias e a actividade humana (ou modificação dos próprios homens) só pode ser concebida e compreendida como prática revolucionária. Aí, os Sujeitos humanos assumiram, criticamente, por inteiro, o vasto campo dos seus Objectos, até aos azimutes em que não mais haverá Autoridades/Poderes exteriores (humanos ou divinos), nos próprios domínios da Ensinança/Didaxis. Gritarão logo os Autocratas, conservadores e tradicionalistas: Isso é absolutamente impossível!... Não, de modo nenhum: Os Humanos da Espécie Sapiens//Sapiens são Seres dotados de Consciência reflexiva e crítica. Este estatuto antropológico, uma vez cumprido, é necessário e suficiente. A operação de quebrar a cadeia do continuum da História dos conquistadores e vencedores leva W.B. à suspensão da dialéctica histórica (idealista ou materialista); leva-o a fazer coincidir a história com a historiografia, o sujeito do conhecimento (objectual) da história com o vero sujeito histórico. No ideário sistémico de W.B. (ainda que não afirmada de modo explícito), há uma firme reivindicação do primado (absoluto) dos Sujeitos humanos sobre o mundo dos Objectos do conhecimento. A idolatria universal dos Objectos deixou, definitivamente, de prestar caução aos intocáveis e sagrados Poderes Estabelecidos. É indiscutível, para W.B., o primado da Política sobre a História, o que implicou os postulados do rompimento do continuum da História e da própria dialéctica histórica, mas há uma arca de hipotecas que ficou fechada, em razão do peso enorme que, sobre a sua mundividência crítica, exerceu o messianismo judaico. Para ele, cada momento ou situação histórica podia surgir como prenhe de ‗força messiânica‘, podia ser ‗a porta estreita por onde podia entrar o Messias‘. Por tudo isto, teoriza-se, ainda, o messias e a sua entrada na história, mas nada é dito sobre a vera e autêntica emergência das (desconhecidas...) Consciências Individuais-Pessoais dos Seres humanos, enquanto Sujeitos livres e responsáveis. Nesta perspectiva, está certo A. Guerreiro, quando esclarece (ibidem): ―O messianismo benjaminiano encontra a sua tradução laica na ideia de revolução [evocação de Marx]. A relação da ordem do pro60


fano com o teológico é desenvolvida num pequeno texto esotérico, incluído no volume já assinalado e que se chama ‗Fragmento Teológico-Político‘‖. O enunciado da tese VIII: ―A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‗estado de excepção‘ em que vivemos é a regra‖, de W.B., constituiu o Leit-motiv da investigação sócio-política e filosófica de G. Agamben. O filósofo italiano, ao caracterizar o estado de excepção enquanto básica e suprema categoria, interpretativa das modernas democracias representativas liberais, suscitou muita polémica e controvérsia nas elites ‗bem pensantes‘ da Cultura ocidental. Não era para menos: o ‗Monstro‘ que ele estava denunciando e repelindo, era justamente, a biopolítica, ou seja, a redução total (sem apelo nem agravo) de uma organização da polis, (supostamente) baseada nas deliberações da Vontade e na Liberdade Responsável dos Humanos, a uma pura cadeia de mecanismos vitais/instintuais, que só uma Potestas soberana (equacionada com a ‗vida nua‘ e o ‗homo sacer‘) poderia juntar e congregar sob o camartelo da Lei!... Neste horizonte crítico, o campo de concentração (o Lager nazi) tornou-se o paradigma do Nomos político dos chamados Estados democráticos. Na 3ª parte do seu livro, ‗O Poder Soberano e a Vida Nua/Homo Sacer‘ (Edit. Presença, Lisboa, 1998, pp.113 e ss.), G.A. argumenta, de modo esclarecedor e crítico, como e porquê o campo de concentração nazi se tornou o paradigma político dos Estados modernos ditos democráticos. A genealogia do processus é simples: começa-se por promover a politização da vida (humana) em todas as suas vertentes (cf. ibi, pp.115...), independentemente dos planos natural e cultural; e logo, desse ponto de vista, são encurtadas e reduzidas as diferenças entre o Estado totalitário e o Estado ainda dito democrático. Vieram, depois, as Declarações dos Direitos do Homem (ou Humanos), no horizonte do Nouveau Régime, mas tudo e sempre no quadro da biopolítica, ou seja: o ‗súbdito‘ do Ancien Régime, que deveio ‗cidadão‘, no ‗Nouveau Régime‘, não abandonou (nem foi educado para o efeito...) a sua condição de vida nua, ao ser constituído como fundamento da moderna soberania do Estado (cf. ibi, pp.122...). O suposto abandono da sacralidade da Potestas, dos Poderes Estabelecidos, não foi metamorfoseado na necessária refundação da Identidade dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, como Sujeitos livres e responsáveis. Eis por que a Soberania e os princípios da Soberania, bem como as doutrinas políticas correntes sobre a Soberania dos Estados, continuam a pautar-se pela cartilha ‗do poder de vida e de morte‘ (vitae necisque potestas) (cf. ibi, pp.87...). No modelo 61


do Poder político em geral, ―o elemento político originário não é a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sagrada)‖. (Idem, ibi, p.88). Nas origens de toda esta trágica odisseia, o Direito Romano?... Sim, mas não só. É preciso tomar consciência histórica de que nos encontramos na galáxia da Cultura do Poder-Dominação d’abord, desde há ca. de 5 milénios e meio, desde que o matriarcado primigénio da Espécie humana foi, definitivamente, suplantado pelos draconeanos princípios e leis do Patricarcado e do ‗Poder Seco‘. Por que se continua a pactuar (em total cumplicidade e acriticamente...) com as religiões institucionalizadas?!... Escreve G.A. (op.cit., p.85): ―Se a nossa hipótese é correcta, o carácter sagrado é, antes, a forma originária da implicação da vida nua na ordem jurídico-política, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relação ‗política‘ originária, isto é, a vida que, na exclusão inclusiva, é o referente da decisão soberana. A vida é sagrada só na medida em que é apreendida na excepção soberana, e a troca de um fenómeno jurídico-político (a condição do homo sacer, enquanto insacrificável e exposto à morte) por um fenómeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos, que assinalaram, no nosso tempo, os estudos quer sobre o sagrado quer sobre a soberania. Sacer esto não é uma fórmula de maldição religiosa, capaz de sancionar o carácter unheimlich, isto é, ao mesmo tempo venerável e abjecto, de qualquer coisa: é, pelo contrário, a formulação política originária da imposição do vínculo soberano‖. O tradutor deste livro de G.A., António Guerreiro, tem motivos mais que suficientes para o celebrar com a perícopa seguinte do texto inscrito na contracapa: ―Agamben repensa e questiona o tempo actual, a política contemporânea que ‗em todo o planeta desarticula e esvazia tradições e crenças, ideologias e religiões, identidades e comunidades‘, rearticulando-a com a ontologia. A Vida Nua e o Poder Soberano ou vida natural e vida política qualificada ou o homem como animal vivo e como sujeito político ou ainda zoé e bios, perfeitamente distintos para os Gregos, foram progressivamente entrando numa zona de indiferenciação, na qual a Vida Nua se foi tornando súbdita do Poder Soberano e a política foi assumindo contornos de uma biopolítica. De Aristóteles a Auschwitz, do Habeas corpus às Declarações de Direitos, esta obra procura decifrar os enigmas que o nosso século coloca à razão histórica, numa das mais inteligentes reflexões sobre o nosso tempo‖. Em ‗A Comunidade Que Vem‘ (Edit. Presença, Lisboa, 1993), G.A. identifica, com perspicácia e subtileza, as características essenciais dos novos membros da humana Sociedade do Futuro. Designa-os a partir do padrão de ‗a Singularidade Qual62


quer‘. É esse o Ser (humano) que define a Comunidade por vir; e é, também, um tal ser que constitui o principal inimigo do Estado (soberano), tal como a História das Civilizações o conhece. É um livro que se propõe fazer a experiência crítica material da Linguagem humana; vencer as alienações correntes da linguagem, e recuperar a sua natureza linguística e comunicativa, na esteira de Habermas (a acção comunicativa) e da pragmática diferencial de A. Gramsci, baseada, precisamente, na materialidade da Linguagem. Em nome da vera e autêntica inteligibilidade, G.A. procede a uma espécie de fusão dos dois universais (heterogéneos) de Aristóteles: o conceito/ideia e a consciência individual. Como opera o processo, que procura definir e caracterizar o Qualquer (Quodlibet) da Comunidade por vir? Opera para além das falsas alternativas do Dilema: a inefabilidade do indivíduo e a inteligibilidade do universal. E qual é o caminho? O modo como os seres existem faz parte da sua essência estrutural; daí que é só nessa perspectiva que o axioma escolástico detém conteúdo e verdade: ‗Quodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum‘ (cf. ibi, pp.11 e ss.). O inteligível resulta, assim, como ‗a singularidade enquanto singularidade qualquer‘ (Gersonide). Desta sorte, reuniu-se, no processus, o que tradicionalmente se achava separado: conhecer e amar. É sabido que o individual (particular) e o universal encontram a sua origem antinómica na própria Linguagem humana corrente (cf. ibi, pp.15...). Entretanto, é igualmente sabido que os exemplos (para-deigma: o que se mostra ao lado; Bei-spiel: o que joga ao lado) constituem uma situação típica em que aquela antinomia foi superada: aí, o particular e o universal escaparam à antinomia fatal... (p.16). Nas badanas do livro, pode ler-se um bom resumo de todo o texto: A Comunidade que vem ―é, assim, formada por singularidades quaisquer, e o ser que lhe corresponde é o ser qualquer. Em vez de procurarem uma identidade própria e a forma da individualidade, os homens devem fazer do modo como são — o ser-assim — uma singularidade sem identidade e perfeitamente comum. Só deste modo o ser qualquer pode aceder à sua possibilidade mais imanente e à experiência da singularidade enquanto tal. [...] O ser qualquer é, também, aquele que pode a sua própria impotência. [Uma situação que advém, estruturalmente, por, nas origens, se ter separado o Saber da hegemonia (absoluta) do Poder!...] ―Um ser que fosse radicalmente privado de toda a identidade representável e não reivindicasse qualquer condição de pertença (o ser que define a comunidade que 63


vem), seria o principal inimigo do Estado [soberano, tradicional]. Numa altura em que alguns teóricos pensam o processo histórico da humanidade como a realização de um Estado universal homogéneo, Giorgio Agamben propõe que é necessário pensar uma política não estatal — uma política que promova o êxodo irrevogável do Estado [soberano]. Mas a política e a ética definidas pela comunidade que vem têm um alcance essencial, que é o de permitir aos homens fazerem a experiência da sua essência linguística, escaparem à alienação da linguagem e recuperarem, assim, aquilo de que foram espoliados: a sua natureza linguística e comunicativa‖. No seu artigo cuidadoso, subordinado ao título ‗A Política da História‘, em torno dos textos e mensagens essenciais de W.B. e G.A. (in ‗Expresso‘/Actual, 20.11.2010, já cit.), A. Guerreiro, ele próprio, não transpõe o limiar do C.E.H.C., ao estabelecer uma conclusão, no termo do estudo, como a que segue (ibi, p.38): ―Na sua análise radical, Agamben encontra o princípio de todo o poder estatal. E, relendo o texto de Benjamin sobre a crítica da violência (sobre a ligação de Direito e violência), Agamben defende que a violência funda a democracia. [Enquanto verificação histórica, está certo... já não o será, enquanto proposta de um projecto próprio e maduro para o Futuro!...]. ‗Estado de Excepção‘ é a teorização de uma violência, que revela a proximidade e a relação necessária entre soberania e democracia, entre violência e lei. E esta seria a condição para percebermos a nova ordem política democrática‖. Em termos criticistas, as duas últimas frases soam-nos a uma pura e resignada tautologia. Limitam-se a repisar a Tese VIII de W.B.: ―A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‗estado de excepção‘ em que vivemos é a regra‖; e, desse modo, a trazer, para o seu ponto de partida, o Problema estrutural/estruturante, posto e aprofundado, por W.B. e G.A., no sentido de se extraírem outras conclusões bem diferentes das estipuladas acima por A.G.. Pretenderá A.G. estancar o processo da Evolução Cultural, mediante o filão da crítica, com o seu apodo final referenciado à nova ordem política democrática?! Preferirá ele resignar-se com o status quo societário, onde a organização política das Sociedades humanas, ditas democráticas, se vê obrigada, necessariamente, a contemporizar com uma ordem societária, em que a lei e a violência são eternamente indissociáveis e a vera e autêntica Democracia tem de ser adiada para as calendas gregas?!... No C.E.H.C., nós começamos por definir toda a Lei (social-societária) como ‗o lugar de encontro das pessoas‘.

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Até quando haveremos de continuar embrenhados nas mistificações e ilusões, oriundas das teologias de salvação das três religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘?!... É (ou deveria ser...) sabido que a doutrina política (tida por inultrapassável, na própria Cultura do Ocidente...) da Democracia representativa/indirecta, mais conhecida como liberal, nas Sociedades predominantemente burguesas, constitui o eco e o fruto (sócio-político) directo das teorias/doutrinas do ‗bode expiatório‘ (papel/função desempenhado pelo messias!...), próprias das soteriologias judaico-cristãs-islâmicas. Nunca será demais, nem em vão, lembrar esta Tese monumental!... Até porque, desde logo, o ‗bode expiatório‘ é precisamente a categoria noética em que se encaixa o messias e a sua função salvadora. E o ‗bode expiatório‘ é, precisamente, o homo sacer, ou seja, aquele que, ao abrigo do Direito romano, pode ser morto sem que a sua morte constitua um crime. A Cultura do Poder-Dominação d’abord deu, aí, o seu nó cego, em termos jurídico-teológicos. Sobre e contra as posições críticas de W.B., assumidas no seu Texto (paradigmático) titulado ‗Sobre a Crítica do Poder como Violência‘, escreveu, em resposta, o jurista protestante Carl Schmitt o seu livro ‗Teologia Política‘ (que é, originalmente, a tentativa de refutar, driblar e iludir a verdade e a justiça da Tese VIII de W.B.). A tese central de C.S., aí desenvolvida, é a de que ‗o soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção‘!... Baseado na História (dos oprimidos e humilhados), W.B. concluía e estabelecia, criticamente, que o Estado de Excepção era a regra... C.S. estabelece e ensina que a função essencial do soberano é decidir e ditar o Estado de Excepção. Falar da função das leis e da sempre limitada soberania do Estado são matérias que, desde então, ficaram sem interesse. A base jurídica da detenção nos Lagern, no estado nazi, já não era a lei comum, mas a prisão preventiva efectuada (a Schutzhaft), a qual funcionava como um estado de excepção. O que fez G.A. no ‗Estado de Excepção‘ (já referenciado), foi, no encalço do seu livro ‗O Poder Soberano e a Vida Nua/Homo Sacer‘, continuar a denunciar e a mostrar-nos que a produção da vida una constitui uma prerrogativa da decisão do soberano, na linha do que, errónea e vesgamente, havia estipulado C.S.. G.A., no ‗Estado de Excepção‘, não tem dúvidas em afirmar as duas teses seguintes: o sistema jurídico-político, posto em marcha com a Iª Guerra Mundial, atingiu proporções apocalípticas na IIª Guerra Mundial, com o nacional-socialismo alemão. Mas o seu desenvolvimento histórico não parou aí... Palavras do Autor: ―O estado de excepção alcançou mesmo, hoje, a sua máxima extensão planetária. O aspecto 65


normativo do direito pode, assim, ser impunemente obliterado e contraditado por uma violência governamental que, ignorando, no estrangeiro, o direito internacional, e produzindo, no interior, um estado de excepção permanente, pretende todavia estar ainda a aplicar o direito‖ (idem, ibi, p.131). Nesta óptica, percebe-se bem por que razão G.A. evoca a teoria do poder soberano de Schmitt, para demonstrar, criticamente, quanto ‗a lei está fora de si própria‘ e que, à força do emaranhado dos seus formalismos, ela própria perdeu toda a sua semântica jurídica. Nesta panorâmica, é banal e óbvia a conclusão do Autor: no generalizado estado de excepção, acaba por tornar-se absoluta a impossibilidade de distinguir entre o que está fora e o que está dentro, entre a excepção e a regra; por outras palavras, é a própria excepção que se constituiu como regra, confundindo-se, absolutamente, com a norma jurídica. A gramática fundadora que nos ajuda a formar e a ter ideias claras e nítidas sobre toda esta problemática é simples: A) Nunca misturar ou confundir o natural e o cultural. B) No patamar e no horizonte do cultural (humano), é a lei, que assume as funções e os papéis do natural, dado que é ela que fixa a regra do que é essencial ao viver em comum: a lei que é ‗o lugar de encontro das pessoas/cidadãos‘ (como nós a definimos no C.E.H.C.). C) As misturas e as confusões entre o natural e o cultural só trazem consigo toda uma ladaínha de perversões, como são: a) a conversão da excepção em regra; b) a impossibilidade de estabelecer uma genuína e autêntica ‗law and order‘, digna dos Humanos, enquanto ‗sapientes/sapientes‘. Por conseguinte, segundo a gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens’.

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SOB OS ESTROS DE PICO DELLA MIRANDOLA E NELSON MANDELA Giovanni Pico della Mirandola (1463-1496), Conde de Concordia e Mirandola (onde nasceu), morre em Florença, aos 33 anos. É, sem dúvida, um dos maiores vultos intelectuais dos dois séculos, que constituíram a alvorada dos Tempos Modernos: os sécs. XV-XVI, do Renascimento e do Humanismo. A sua obra mais conhecida (escrita em latim) intitula-se ‗Oratio‘; é, efectivamente, o Discurso de Giovanni Pico, Conde de Concordia, que aqui vamos respigar. Está, na verdade, fora de dúvida que ―o seu autor, figura verdadeiramente excepcional, considerado em Itália como o humanista mais sábio, mais rico, jovem e belo do seu tempo, tem sido visto, de facto, como um dos mais notáveis representantes do Humanismo Renascentista‖ (Maria de Lurdes Sirgado Ganho, in ‗Giovanni Pico della Mirandola: Discurso sobre a Dignidade do Homem‘/ Edição Bilingue, Edições 70, Lisboa, 1989, p.9).

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A primeira característica (importante e decisiva) do pensamento deste filósofo do Renascimento: a Filosofia já não é, para ele, mera ancilla theologiae (como ainda era em Tomás de Aquino e Alberto Magno, como, de resto, continuou a ser na teologia católica pós-tridentina, dogmática e inquisitorial, até ao presente...). Há uma ratio philosophica autónoma, em confronto com a ratio theologica. Se a filosofia pode continuar a ser propedêutica para a teologia, ela já não é, decididamente, serva da teologia. ―Assim sendo, a sua meditação filosófica aparece-nos como um reflexo exemplar do Humanismo Renascentista, não um Humanismo apenas preocupado com o cultivo das humanidades, enquanto estas são consideradas disciplinarmente, mas envolvendo também o conceito de humanismo como valorização e promoção dos valores do homem‖ (eadem, ibi), p.13). Após dois anos de estudos para Direito Canónico, na Univ. de Bolonha, Giovanni Pico decidiu que o seu caminho não era esse. ―Sentiu-se, antes, atraído pela filosofia, enquanto saber universal, fundamentador e fundante, que propicia a obtenção de um conhecimento mais aprofundado acerca da realidade humana e acerca das coisas do mundo‖ (eadem, ibi, p.15). É, depois, na Academia de Florença, que ele vai encontrar o seu guru, o neoplatónico Marsílio Ficino. É aí que descobre, finalmente, o seu projecto filosófico pessoal: entrosar e pôr de acordo as duas linhas filosóficas tradicionais, a platónica e a aristotélica. Esta é a segunda grande característica do seu pensamento. Na ‗carta a Ermelao Barbaro de geneve dicendi philosophorum‘, Pico della Mirandola sentencia apodicticamente: ‗Duos agnosco dominos, Christum et litteras‘. ―Com esta afirmação ele quer vincar a relevância e a supremacia da elegância estilística, considerando-a quase como um fim em si mesma, facto que o leva também a dizer que não é homem quem não é literato‖ (eadem, ibi, pp.18-19). A tentativa de conciliar o platonismo e o aristotelismo não tem, com efeito, um significado despiciendo: se pensarmos que a obra do Doutor Angélico (que procurou recuperar, no séc. XIII, a filosofia de Aristóteles) esteve proibida e censurada, na Sorbonne, ca. de meio século, a seguir à sua morte (em 1274); se pensarmos que a escola aristotélica de Pedro da Fonseca e do ‗Cursus Conimbrigensis‘ (nos sécs. XVI-XVII) muito pouca influência grangeou fora da Univ. de Coimbra; se pensarmos que o Establishment ideológico-cultural da I.C.R. e das Cristandades, em geral, tem continuado estigmatizado, até ao presente, pelo Platonismo e pelo seu inexorável Dualismo metafísico-ontológico. 68


Escreveu o Autor (op. cit., p.87): ―Antes de tudo o mais, propus o acordo entre Platão e Aristóteles, por muitos já antes considerado possível, mas por ninguém suficientemente provado. [...]. Até mesmo Agostinho, no livro Contra os Académicos, escreve que muitos foram os que tentaram provar, nas suas subtilíssimas disputas, que a filosofia de Platão e de Aristóteles são uma mesma filosofia. Assim, João Gramático, que afirma que Platão difere de Aristóteles só para os que não percebem o texto de Platão, deixou aos vindouros a demonstração‖. Desta sorte, o projecto piqueano de juntar e pôr de acordo o Platonismo e o Aristotelismo até pode encontrar aplauso e aprovação, no horizonte crítico do C.E.H.C.... se o núcleo duro das ‗Ideias platónicas no hiperurâneo‘ for transferido para esse infinito que são as Consciências dos Sujeitos humanos, livres e responsáveis. Com efeito, o Dualismo metafísico-ontológico de Platão e de Paulo é justamente criticado e condenado, precisamente porque, e na medida em que, se configura e situa, prosopopeicamente, no universo dos Objectos objectivo-objectualizados, enquanto um ‗Tertium datur‘, do qual decorre todo o Processo (histórico) da Cultura e da Civilização!... Sobre a índole redactorial da ‗Oratio‘. Foi concebida como introdução necessária à Disputa Romana em causa, por conseguinte, com uma abrangência tal que levava o autor a tratar de omni re scibili. Estamos, pois, ―perante uma espécie de relatório, redigido segundo o método escolástico parisiense, portanto, organizado em teses, justificativo do seu labor filosófico, e onde se exprime mais um aspecto característico do seu labor filosófico, e onde se exprime mais um aspecto característico do Renascimento, ou seja, a preocupação em veicular um conhecimento enciclopédico. Deste modo, em novecentas teses, também chamadas conclusões, apresenta quer o seu pensamento pessoal, quer o pensamento dos que antes dele deram um contributo para a filosofia‖ (eadem, ibi, p.21, + p.77). O ensaio divide-se em duas partes: a 1ª diz respeito à dignidade do Homem; a 2ª concerne à questão da paz filosófica ou concórdia. Uma vez que a temática central é, sem dúvida, a da Dignidade do Homem, não é errado considerar este estudo paradigmático, como enquadrado no melhor e crítico Antropocentrismo moderno e contemporâneo. Por vezes, lembrará, avant-la-lêttre, Sartre ou Lévinas. Para abordar a questão central (a da Dignidade do Homem), ele recorre, metodologicamente, a três níveis de inteligibilidade que se devem manter articuladas: a) essa dignidade é um

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problema da razão (Dialéctica); b) é um problema da liberdade humana (Ética); c) é um problema do ser (Metafísica). É, de facto, a capacidade racional do Homem que lhe permite a tomada de consciência como ser livre. O facto de o Homem ser, ontologicamente, de natureza indeterminada (diferente, portanto, quer dos animais, quer dos seres angélicos), não envolve qualquer tipo de pobreza, antes, é sinónimo de riqueza. Por isso, ele é o mediador efectivo de todos os seres do Universo. Isso mesmo significa que ele é o artífice de si próprio; o que vier a ser depende inteiramente de si mesmo. (Cf. op. cit., pp.51-55). Empédocles, nos seus poemas, ‗simboliza com o ódio e com o amor, isto é, com a guerra e com a paz, as duas naturezas da nossa alma, a partir das quais somos levados ao céu ou precipitados nos infernos‘ (ibi, p.61). Eis por que o problema da natureza do Homem não se pode pôr a priori, mas outrossim, a posteriori. Dotado de uma Vontade, que é livre e que postula uma Escolha livre, o Homem, para se realizar numa dimensão humana, tem de estar orientado, educacionalmente, para o Bem. Uma vez que é de natureza indeterminada, o Homem está condenado à liberdade, condenado a escolher, por mandato natural do próprio Criador. Esta capacidade de autodeterminação poderá lembrar os melhores pensadores modernos e contemporâneos: configura o psico-sócio-ânthropos acima do universo puramente físico-biológico, e confere-lhe, de pleno direito, um estatuto criador de ordem ético-moral. Escreveu P.d.M. (op.cit., pp.51-53): ―Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que àquele a quem nada de especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do Universo, falou-lhe deste modo: ‗Ó Adão, não te démos um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis prescritas por nós. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do Universo, para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste, nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tiveres se-

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guramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo‘‖. Escreve, ainda, P.d.M. (ibi, p.69): ―De facto, o medèn ágan, isto é, nada em excesso, prescreve rectamente a norma e a regra de cada virtude, segundo o critério do justo meio, de que trata a moral. E o famoso gnôthi s‘autón, isto é, conhece-te a ti mesmo, incita e exorta ao conhecimento da natureza na sua totalidade, de que o homem é vínculo e quase síntese. Quem, de facto, se conhece a si mesmo tudo em si conhece, como escreveram primeiro Zoroastro e, depois, Platão no Alcibíades‖. O nosso Autor não se cansa de elogiar, substantivamente, a Filosofia, os caminhos do Diálogo, a prossecução da paz filosófica ou concórdia, quase no horizonte antecipado da Paz perpétua de I. Kant. ―A possibilidade de uma conciliação de todos os pensamentos reside precisamente aqui: a promoção da concórdia é possível a partir do movimento de recondução de cada pensamento particular à Verdade que é perspectivada como Una, Universal e Transcendente‖ (eadem, ibi, p.34). Não se esquece de lamentar e denunciar os que da filosofia pouco ou nada entenderam, ou até votam ao ridículo o amor da sabedoria... ―E digo tudo isto, não sem uma enorme dor e profunda indignação, já não contra os príncipes, mas contra os filósofos do nosso tempo, os quais acreditam e dizem que não se deve filosofar, porque não se estabeleceram prémios e recompensas para os filósofos; como se não mostrassem precisamente com esta afirmação não serem filósofos. Toda a vida destes, efectivamente, ao assentar no lucro ou na ambição, mostra que eles não abraçam, por si mesmo, o conhecimento da verdade. A mim mesmo concederei apenas isto, e não corarei, pois, por ser elogiado, que nunca filosofei senão pelo amor da pura filosofia, nem nunca esperei ou procurei com os meus estudos e as minhas meditações obter alguma mercê ou algum fruto, a não ser a formação da minha alma e o conhecimento da verdade, por mim ansiada acima de qualquer outra coisa‖ (ibi, p.75). Na verdade, ―foi a filosofia que me ensinou a depender mais da minha consciência do que dos juízos dos outros; a estar sempre atento, não ao mal que de mim se diz, mas a não dizer ou a não fazer eu próprio o mal‖ (idem, ibidem). Em conclusão, ter-se-á de afirmar, sem ambiguidades, que Giovanni Pico della Mirandola, foi, de facto, um homem raro e excepcional, que soube dignificar, acima de tudo, o trabalho filosófico, bem à maneira de Sócrates, que tudo sacrificou à Boa Filosofia e ao que aí se pressupõe e implica para o Bem e a Dignidade dos Humanos, qua tais. 71


Max Horkheimer (um dos fundadores da Escola de Frankfurt, na 3ª década do séc. XX) prossegue, afinal, no mesmo caminho de P.d.M., quando estabelece a tese seguinte (in ‗Critical Theory: Selected Essays‘, Herder and Herder, 1972, pp.229, 207): ―A separação entre indivíduos e sociedade, em virtude da qual os indivíduos aceitam como naturais os limites prescritos à sua actividade, é relativizada pela teoria crítica. Esta considera ser o enquadramento total, que é condicionado pela interacção cega das actividades individuais ... , uma função que se origina na acção humana e, portanto, o possível objecto de uma decisão de fundo e de uma determinação racional de objectivos‖. Por sua vez, o C.E.H.C. continua, no mesmo horizonte da Teoria Crítica, a desenvolver e a aprofundar, criticamente, os grandes temas intemporais da chamada Filosofia Perene, própria e específica do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘, — desde logo, a tese crucial, que nos foi legada pela Tradição e explicitada por Aristóteles: o animal racional, ou dotado de lógos, é parte integrante da sociedade!... Só isso, e basta?!... De facto, na sua obra ‗Política‘ (cf. ‗Politics‘, trad. inglesa de John Warrington, Everyman, 1959, pp.11-15; pp.7-8), o Estagirita tem um discurso aceitável no que tange a operatória das funções sociais-societárias; mas já não, de modo algum, em termos axiológicos, quando atribui ao homem a força moral para governar e à mulher a capacidade da obediência para se submeter. Mais e pior: ‗O Filósofo‘ não se deu conta da grande armadilha política, que sempre constituiu, ao longo da História das civilizações, a teoria/doutrina do Poder Separado (que é própria do ‗Homo Sapiens tout court‘, mas não do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘). À questão de saber ‗por que razão é o homem um animal político, mais do que qualquer abelha ou criatura gregária?‘, Aristóteles respondeu: ‗O homem é o único animal dotado de discurso [...]; o poder do discurso tem por finalidade expressar o que é vantajoso e o que é prejudicial, o que é justo e o que é injusto. É precisamente nisto que o homem se distingue dos outros animais: sozinho, não tem qualquer noção do bem e do mal, da justiça e da injustiça; e uma associação de seres vivos com este dom constitui uma família e um Estado‘. Entretanto, ele não se esqueceu de advertir num ponto essencial: a justiça ‗está agregada ao Estado: a sua administração, que consiste em determinar o que é justo, é o princípio de ordem na sociedade política‘ (ibi, pp.78).

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— Sendo embora muito, ainda não é tudo, em termos críticos, para os Tempos nossos contemporâneos. É que, na verdade, quando a fenomenologia dos Saberes não tem capacidade para funcionar em autonomia e se vê forçada a submeter-se ao exercício hegemónico dos Poderes Estabelecidos, não há nada a fazer, para reivindicar e defender a gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘!... Já não é possível identificar, objectivamente, os limites da coerção; já não há, em consequência, regras e princípios que permitam discernir entre a coerção legítima e a ilegítima. A Sociedade (ainda dita humana...) encontra-se, literalmente, sitiada. (Cf. Zygmunt Bauman: ‗A Sociedade Sitiada‘, Inst. Piaget, Lisboa, 2010, pp.12...). O processo hodierno da Globalização financeira/mercantilista está desbaratando e destruindo a articulação clássico-tradicional entre o Estado e a Nação, a tal ponto que parece não haver outra cartilha capaz de funcionar, a não ser a do imperialismo (ditatorial) do Mercado e dos diferentes mercados uniformizados. Foi dito, e repetido, que o projecto moderno do Estado-Nação constituía um projecto inacabado (vd. ibi, pp.18-19...), que as Revoluções políticas não foram capazes de concluir. Dir-se-á que o seu acabamento foi deixado, em herança, às forças hegemónicas e ditatoriais do Mercado e do Marketing?!... Do que não se dá conta, em termos críticos, é que o acabamento do Projecto moderno da articulação de Estado e Nação passa, necessariamente, pela plena realização do ideário da Democracia e da Liberdade Responsável para todos os cidadãos; implicadamente, passa, também, pelo estilhaçamento do odre, em que ainda vegetam as Sociedades humanas: o odre psico-sócio-cultural do Poder-Dominação d’abord. O que, por sua vez, pressupõe e implica a completa ultrapassagem da teoria/ /doutrina da ‗Potestas separata‘. Como são erráticos (têm sido...) os caminhos da História!... Hobbes inaugurou a ‗Primeira Grande Separação‘ moderna, ao reivindicar e defender a Autonomia do Poder do Estado (Nação), perante qualquer tipo de subordinação aos Poderes igrejistas e/ou das religiões institucionalizadas (supra-nacionais...). Foi um projecto abalroado, em boa parte, nos Tempos modernos e contemporâneos. Marx e Engels e o marxismo procederam ao levantamento de uma ‗Segunda Grande Separação‘ moderna, que desse pleno cumprimento, em ambiente laicizado e agnóstico, com os humanos emancipados, ao projecto da articulação do Estado e da Nação. O processo histórico anatematizou esse projecto, no fundo, porque ele pretendera erguer-se no plano do Objectivo-Objectualismo (sem ter em conta os Sujeitos humanos livres e res73


ponsáveis) e segundo a cartilha colectivista do Plano económico centralizado, de onde havia de proceder toda a actividade económica e social dos cidadãos e das empresas. O que, hoje, está na mesa e nos apoquenta, criticamente, é o que o sociólogo polaco Zygmunt Bauman designa por ‗Grande Separação, Parte Dois‘ (cf. op. cit., pp.99-100...). A ‗Grande Separação, Parte Um‘ foi constituída, historicamente, pela transição das actividades económicas do domicílio e dos ofícios dos artesãos para o mundo das indústrias modernas, ainda enquadradas na moldura dos respectivos Estados-Nações. O que agora ocorre e tem o seu curso desimpedido, no que ele chama ‗os tempos da Separação-Parte Dois‘, é que ―mais uma vez, a actividade económica se emancipou das suas amarras locais — desta feita não do domicílio, mas do Estado -nação. Mais uma vez, estipulou para si mesma um ‗território extraterritorial‘, onde é virtualmente livre de estipular as suas próprias regras. Parece que o actual ‗ancien régime‘, representado pela multitude de Estados-nação soberanos, é cada vez mais incapaz de abrandar, quanto mais pôr termo, à evasão das forças económicas do controlo democrático, que agora, como antes, se encontra localmente confinado. Pior ainda, parece também que cada novo acto de evasão intensifica, ainda mais, a impotência do ‗ancien régime-parte dois‘‖ (ibi, p.100). O que, primeiro, se lamenta e deplora, neste discurso, é a total rendição à cartilha historicista do Objectivo-Objectualismo; em segundo lugar, tem de verberar-se a ausência de conhecimento ou a ignorância do processus histórico, em que os eventos, naturalmente significantes, se desenrolam: por trás do palco das actividades económicas, supostamente globalizadas, o que impera e tudo comanda, no processo da Globalização, é a unificação, à escala do Globo, do Aparelho Financeiro, através do mercado (autónomo...) de capitais: a mercadoria real passou a 2º plano; em 1º plano é a ‗mercadoria‘ dinheiro que pontifica, absolutamente!... A clássico-tradicional soberania política assentava num tripé, onde as três pernas eram: a económica, a militar e a ideológico-cultural. Hoje, na época da Globalização financeira

económica (onde o economicismo é a cartilha corrente), é a

soberania política dos Estados-nações que está a ser bloqueada e laminada, pelo imperialismo financeiro e pelos mercados de capitais, sempre apoiados em qualquer hiper--

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potência hegemónica, em termos militares. Tudo balizado sob a Cultura ideológica do Poder-Condomínio. Traduzindo esta ladaínha de fenómenos em linguagem corrente: A globalização neoliberalista e as multi-transnacionais estão a destroçar o molde tradicional do moderno Estado-Nação. Na época, em que se sonhava com os Projectos de construção de Sociedades socialistas, ainda se procurava tempo para discutir e resolver o debate: socialismo num só país? (Lénine); ou socialismo simultaneamente em vários países?!... (Trotsky). Dir-se-á que, hoje, a Quaestio crucialis perdeu todo o sentido: a) pela negativa: parece que já ninguém se ocupa com tais projectos...; b) pela positiva: o vero e autêntico Socialismo só se pode edificar, no horizonte dos Sujeitos humanos, livres e responsáveis. O resultado subjacente é conhecido: a continuação in aeternum da Cultura/Civilização do Poder d’abord, com o implicado impedimento radical da Emancipação/Libertação dos Humanos. No horizonte crítico de b), não se pode esquecer que é, precisamente, a doutrina clássico-tradicional dos ‗Poderes separados‘, que leva ao corrente dualismo societário das funções de espectador, contrapostas às funções de actor. O encarecimento e a promoção das funções de actor obrigarão o mundo societário a virar da cartilha do Objectivo-Objectualismo para a gramática de funcionamento polarizada nos Sujeitos humanos livres e responsáveis. Nesta perspectiva, repudiar a prática do mal é a primeira preocupação do cidadão; mas há uma segunda, tão importante como a primeira: não se abster de o combater ou evitar que ele seja praticado. Habitualmente, os espectadores são instruídos ou endrominados a não resistirem ou a não se oporem à prática do mal. As Sociedades, divididas nas duas classes estruturais que são os espectadores e os actores, são, inevitavelmente, Sociedades balizadas e orientadas pela teoria/doutrina do Pastor e do Rebanho!... Como estamos tão longe da mundividência emancipadora/libertadora de Pico della Mirandola!... • PARA ULTRAPASSAR O CONFLITO ENTRE A SOBERANIA DOS ESTADOS E O PSEUDO „FREE MARKET‟

Mutatis mutandis, as relações entre os Estados (ou Estados-nações) na cena internacional, devem ser pautadas pelo relacionamento cívico entre os Indiví75


duos-Pessoas/Cidadãos e o Poder constituído democraticamente, no quadro do Estado-nação, a que pertencem. Será sempre uma ilusão perversa pressupor, ingenuamente, que o processo da globalização financeira/economicista, operada através dos mercados, pode superar, definitivamente, o Quadro dos Estados-Nações. A corveia a pagar seria gravíssima: o processus da Emancipação/Libertação dos Humanos ficaria absolutamente bloqueado e impedido de evoluir. No horizonte da Cultura sócio-política do Ocidente, a soberania dos Estados foi construída sobre dois parâmetros essenciais e decisivos: a) o que é oriundo da Cultura (dos antepassados, das entidades e instituições ancestrais...), que valoriza, historicamente, a identidade nacional, e comporta alguma diferença ou exclusão face ao estrangeiro; b) o que é procedente das dinâmicas do Mercado, e valoriza os princípios da utilidade e da abertura aos outros: (segundo a cartilha dos egoísmos individuais...). A soberania dos Estados, outrora inatacável (na sua legitimidade de princípio), está, hoje, a sofrer tratos de polé, sob as forcas caudinas dos processos das novas Tecnologias da Informação/Comunicação, bem como da Globalização financeira económica do Mundo, através do mercado (sem pátria) de capitais. Por todo o lado se vê a soberania dos Estados em apuros... quando não a saque!... Uma vez que a Autoridade (soberana) dos Estados deixou de ser um dogma, a ingerência dos Estados mais fortes sobre os mais fracos (mesmo a título humanitário) deixou de ter necessidade de se justificar, como ocorria tradicionalmente. Ora, neste novo horizonte, em que a evolução das Sociedades, à escala global, se processa sob os comandos económico-financeiros e dos mercados, há muita gente (que se toma por sensata...) a alimentar sonhos de um Mundo sem a soberania dos Estados, que, por sua vez, são desejados a caminho da implosão. Eppure... uma vez que o Poder é, sempre, em última análise, um só, e cada cidadão (na sua singularidade qualquer) só tem a ganhar em termos psico-sócio-antropológicos, com a proximidade das agências do Poder (para assegurar e defender as suas liberdades!), a soberania legítima dos Estados e Estados-nações continua a impor-se, sans ambages. Esta situação crísica, em termos políticos, também está a forçar a diplomacia e o funcionamento dos aparelhos dos Estados a procederem com mais responsabilidade, em detrimento do cinismo e da batota habituais. (Cf. Bertrand Badie: ‗Um Mundo sem

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Soberania/Os Estados entre o Artifício e a Responsabilidade‘, Instituto Piaget, Lisboa, 2000). Decididamente: Temos de mudar de eixo e de coordenadas, na Politologia, na própria Antropologia e na Educação, se pretendemos romper o odre do ObjectivoObjectualismo (na própria prática das ciências) e a useira/vezeira Cultura sempiterna do Poder-Dominação d’abord. E, afinal, o que acontece (de positivo ou negativo...), no relacionamento entre Indivíduos-Cidadãos, tem tendência a repetir-se, em esquema análogo, nas relações entre os Estados!... Um exemplo? Sempre sob o guarda-chuva da soberania (mal ou menos bem entendida), a obrigação corrente da solidariedade entre os Estados, no espaço público mundial, por parte dos Estados mais fortes vis-à-vis dos Estados mais débeis, não se esquece, habitualmente, das contra-partidas (exigidas...) das dependências, que surgem como efeito das ajudas prestadas. Que ocorreu, aí? Em lugar de se promover a interdependência entre os Estados em pé de igualdade, caiu-se na armadilha da corporativização egoísta e hegemónica. (Cf. ibi, pp.304-305). Em resumo, não se soube aprofundar, no plano da responsabilidade (solidária) dos Estados que podem ajudar, aos Estados carenciados, o sentido de uma vera actuação justa e responsável. Como se a alternativa que restasse, fosse, apenas, a do isolamento ou do solipsismo... Dominação (aceite...) ou morte?!... Na Oficina das relações entre os Estados, é mister não esquecer que o dilema entre o dever de solidariedade e a passividade/isolamento só ocorre, na medida em que todas as actuações continuam a proceder da cartilha da Cultura do Poder-Condomínio. É, igualmente, a partir daí que se revigora e fomenta a atmosfera corrente de cinismo e maquiavelismo, engendrada pelo dogma soberanista da não-ingerência, ou do seu contrário: a ingerência não adequadamente justificada. A soberania dos Estados é uma doutrina, que está longe de se dar como resolvida e ultrapassada (vd., ibi, pp.307 e ss.). O que é preciso e urgente é integrar e aprofundar a ideia central da Responsabilidade dos Estados, enquanto contraposta correctora dos desvios da vera soberania (pp.15...). Entretanto, há uma novidade principal, que nos cumpre salientar hodiernamente: a esforçada (e tantas vezes ainda contrariada pelas ‗forças da Ordem‘...) emergência dos Indivíduos-Pessoas contra ventos e marés, em nome dos seus desígnios de emancipação e autonomia, perante os Aparelhos ciclópicos dos Estados.

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Num esquema acentuadamente geométrico, Bertrand Badie (op.cit., p.309) fez-se eco dos apelos mais instantes e activos, na vida e nas relações internacionais hodiernas, que distribuiu, de modo articulado, ―por três tipos de empreendedores (os Estados, os actores transnacionais e os empreendedores identitários), três fórmulas de mobilização (de natureza cívica, utilitária e comunitária) e três modos de representação dos indivíduos (política, funcional e etnocultural). A sua concorrência é viva, porque a sua racionalidade dificilmente se concilia: o apelo cívico e o apelo identitário contradizem-se uma vez que o primeiro é político e contratual, enquanto o segundo recusa as ideias de comunidade política e de contrato, preferindo-lhes as solidariedades a priori e não negociáveis, exclusivas, fechadas e prontas para a ‗purificação‘; o apelo cívico e o apelo transnacional não podem conciliar-se, porquanto o primeiro supõe o controlo soberano e o segundo visa precisamente a autonomia dos actores internacionais não estatais; finalmente o apelo identitário e o apelo transnacional opõem-se geometricamente, dado que este último favorece a inclusão, e aquele valoriza a exclusão‖. Não esquecer que o Autor se mantém num quadro analítico, oriundo do que nós designamos, criticamente, por Cultura do Poder-Dominação d’abord. — Como se pode ver, há geometria a mais nesta societária Estrutura dada como categoremática... Faz falta, aí, algum esprit de finesse. Identifiquemos, contudo, o problema nuclear. A nossa principal reserva crítica vai para o universo ideológico do ‗Free Market‘, aí implícito. Será que esse universo é livre, e, supostamente, o mais livre dos três espaços referenciados?! Decididamente, não. Atente-se, tão-só, nas recentes crises financeiras que atingiram a Grécia e a Irlanda (em 2010) e estão prestes a atormentar Portugal, a Espanha e, depois, a Itália. Para efeitos de pagamento e superação dos déficits e das dívidas públicas, a pauta suprema que é tida em conta são as expectativas dos mercados... a ditadura dos mercados financeiros, que surge nas vitrinas das Agências de Rating, que trabalham permanentemente ao seu serviço. Os Governos dos Estados, que foram eleitos, democraticamente, em sufrágio universal nas urnas, já não contam para nada; e a única solução que se vêem forçados a pôr em prática é trocar os programas partidários eleitorais (pelos quais foram sufragados) pelas inevitáveis ‗receitas‘ impostas pela ideológica cultura dos mercados financeiros. Como é sabido, a cartilha destes opera ditatorialmente, visto que só interessa, aí, o lucro pessoal, das empresas e das agências. Neste horizonte de catástrofe, os cidadãos são forçados a assistir ao desmoronamento patético dos últimos regimes democráticos!... 78


Numa síntese crítica, cumprirá dizer o seguinte: A nossa Tese fulcral, no C.E.H.C., é esta: Em termos críticos, não se pode pensar, adequadamente, a problemática da Soberania do Estado, sem, ao mesmo tempo, cuidar e ter em conta a preservação e a defesa da Liberdade (Responsável) dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Precisamente, porque o Poder é sempre, em última análise, um só. Não vamos afirmar que a inversa da penúltima proposição é igualmente verdadeira... pela razão simples e estruturante de que a Liberdade humana é uma expressão/realidade categoremática; ao passo que a Potestas constitui uma realidade sincategoremática. Por que é este o estatuto ontológico dos Humanos? Porque ‗o Homem é o único ente que, originariamente, é e deve ser, no qual, portanto, ser e dever-ser coincidem‘ (Miguel Reale, filósofo brasileiro, Prof. de Filosofia do Direito na Univ. de São Paulo). Nesta perspecriva, deverá saber-se que todas as supostas ‗experiências metafóricas‘ não passam de uma ilusão; e que o único rumo de salvamento e salvação é tudo fazer no sentido da edificação da Liberdade Responsável dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Significa tudo isto, originariamente, que os Humanos, como nós proclamamos no C.E.H.C., são Seres dotados de consciência reflexiva e crítica. Segundo a teoria tridimensional do Direito de M.R., a norma jurídica é uma realidade cultural, que não pode ser entendida e interpretada sem a referência aos outros dois pés da tripeça: os factos (dimensão fenomenológica), que se acham na origem da emergência da norma; e os valores (dimensão axiológica), que o Direito procura preservar e defender com a norma jurídica. Neste horizonte, o Autor considera, justamente, o Homem como a fonte dos valores, o qual, por sua vez, sendo detentor de uma ‗invariante axiológica‘, pode impedir os legisladores de cair no relativismo historicista. Para M.R., num vero Estado democrático, soberania e liberdade dos cidadãos não se excluem reciprocamente; antes, deverão conciliar-se de acordo com o axioma: ‗o Estado que fere a liberdade da pessoa, atinge a sua própria essência‘. Os valores não existem como realidades ontologicamente abstractas... eles ‗existem nas coisas valiosas‘. São recusadas as supostas ‗experiências metafísicas‘. Acerca da teoria/doutrina de M.R., concluiu muito bem Guilherme d‘Oliveira Martins, ao asseverar (in ‗JL‘, 1-14.12.2010, p.38): ―Sem liberdade não é possível a experiência axiológica, do mesmo passo que sem a justiça, que é sempre a expressão histórica da igualdade, não se mantém a convivência humana ordenada entre indivíduos e entre grupos sociais‖.

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Voltemos à Orquestra, que está actuando no fosso do Teatro. Depois de P.d.M., há outro maestro para subir ao pódio: Nelson Mandela, que, no clã real a que pertencia, era designado por Madiba. (Este vocábulo parece derivar etimologicamente da palavra mahdí que, em árabe, signfica messias, e faz parte da nomenclatura islâmica!...). Pretendemos, aqui, reunir um pequeno painel de citações e de textos antológicos, de balizamento e orientação político-cultural, do Autor da Biografia ‗Long Walk to Freedom‘ (publicada pela 1ª vez em 1994, no mesmo ano em que N.M. tomava posse como 1º Presidente eleito da Nova República multi-racial da África do Sul; há, em português, uma edição do Campo das Letras, Porto, 1995, com o título ‗Longo Caminho para a Liberdade‘). — ‗Não sou um santo, a menos que vejam um santo como um pecador que continua a tentar‘. (In ‗MANDELA: a construção de um homem‘, de António Mateus, Oficina do Livro, Alfragide, 2010, p.171). — ‗Não existe paixão em jogar pequeno, em acomodarmo-nos a uma vida que é menor do que aquela que somos capazes de atingir‘. (Ibi, p.170). — ‗Deixem reinar a liberdade. O Sol nunca se põe em tal façanha humana‘. (Ibi, p.168). — ‗Ser livre não é só retirar as algemas de alguém, mas também viver de forma a respeitar e aumentar a liberdade dos outros‘. (Ibi, p.167). — ‗Há um tempo na vida de qualquer nação, em que restam apenas duas opções: submetermo-nos ou lutarmos. E esse tempo chegou à África do Sul. Nunca nos submeteremos, e não temos alternativa a ripostar com todos os meios, ao nosso alcance, em defesa do nosso povo, do nosso futuro e da nossa liberdade‘. (Ibi, p.170). — ‗Seja qual for a sentença que este tribunal considere adequado impor-me, pelo crime de que sou acusado, ficai cientes de que, uma vez cumprida a pena, ainda me guiarei, como todos os homens, pela minha consciência. Ainda serei guiado pelo meu desagrado contra a discriminação racial da minha gente. Quando acabar de cumprir a minha sentença, retomarei, da melhor forma ao meu alcance, a luta pelo fim dessas injustiças até à sua abolição‘. (Ibidem). — Graça Machel (actual esposa) sobre a herança cultural do Madiba para a humanidade e as gerações futuras: Esse sentido de dignidade, de perseverança e do que é bom. De nunca se afastar do que é justo, da protecção dos mais vulneráveis. O que o torna tão impor-

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tante é que nos momentos de indefinição ele surge e, em três palavras, separa as águas e redefine a direcção. E isso surge naturalmente nele, sem esforço. ―É uma liderança profundamente humana, onde se olha para o outro, criamos uma empatia e nos oferecemos a nós mesmos. É isso que ele faz!‖ — Testemunha Graça Machel. Fomos verdadeiramente abençoados por o ter connosco nestes tempos conturbados. (Ibi, p.163). Assim, uma vera e não equivocada soberania dos Estados tem muito a aprender, não só com a personalidade política e sócio-cultural de Nelson Mandela, mas também com o padrão das posições por ele assumidas, enquanto combatente estrénuo pela Liberdade (plural) de toda uma Nação e como Presidente da nova República da África do Sul. N.M. nasceu na região do Transkei (África do Sul), em 18.7.1918. Depois de se haver filiado no Congresso Nacional Africano, em 1944, foi como elemento do Partido da Oposição que protestou contra as políticas de apartheid do Partido Nacional, até vir a ser preso em 1962, — uma prisão que perdurou mais de 27 anos. Foi neste período que se foi afirmando e solidificando a sua reputação como símbolo e referência permanente do Movimento anti-apartheid. Liberto da prisão em 1990, recebe o Prémio Nobel da Paz em 1993, e em 1994 toma posse como o 1º presidente, democraticamente eleito, da República da África do Sul. São do próprio N.M. as seguintes palavras: ―Na vida real lidamos, não com deuses, mas com seres humanos comuns, como nós próprios: homens e mulheres cheios de contradições, estáveis e inconstantes, fortes e fracos, célebres e infames, pessoas em cujo sangue a larva do estrume luta diariamente contra pesticidas potentes‖. (Nelson Mandela: ‗Arquivo Íntimo‘, Carnaxide, 2010, p.XVIII). No prefácio a esta notável e surpreendente Antologia de textos, Barack Obama deixou escrito: ―Através das escolhas que fez, Mandela deixou claro que não temos de aceitar o mundo como ele é — e que podemos contribuir para que o mundo seja aquilo que deveria ser‖ (ibi, p.XI). ―De facto, a sua vida conta uma história que é o oposto de cinismo e da falta de esperança, que tão frequentemente afligem o mundo em que vivemos. Um prisioneiro tornou-se um homem livre; uma figura da libertação tornou-se uma voz apaixonada da reconciliação; um líder partidário tornou-se um presidente empenhado em promover a democracia e o desenvolvimento. Afastado dos seus deveres oficiais, Mandela continua a trabalhar pela igualdade, por melhores oportunidades

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e pela dignidade humana. Tem feito tanto para mudar o seu país, e o mundo, que é difícil imaginar a história das últimas décadas sem ele‖ (idem, ibi, pp.XI-XII). É bom darmo-nos conta de que ―por detrás da história que se fez, existe um ser humano que escolheu a esperança em detrimento do medo, que escolheu o progresso em detrimento das prisões do passado. E tomo plena consciência de que, mesmo que se tenha tornado uma lenda, conhecer o homem — Nelson Mandela — é respeitá-lo ainda mais‖ (idem, ibi, p.XIV). O que o padrão N.M. (como, de resto, tanti altri, P.d.M., M.R., and so on) nos faz ver e sentir é, acima de tudo, a Tese paradoxal de que os Seres humanos são, a um só tempo, educáveis e plasmáveis e infinitos concretamente singularizados. Daí, a importância decisiva da EDUCATIO, muito mais que da Instructio, a qual, na Modernidade ocidental (contemporaneamente globalizada) tem subsumido e laminado quase todo o vasto mundo da Educação propriamente dita. E convém advertir que o Processo Educativo não pode contar apenas com as admoestações e os conselhos de Professores e Educadores, com as aprendizagens feitas nos compêndios de civilidade ou, ainda, nos livros de Moral e Direito; ele tem de contar, igualmente, por definição, com as aprendizagens efectuadas nos livros de História, nas obras literárias, em geral, e, acima de todas, nas tragédias gregas. N.M. conhecia muito bem toda esta Gramática Educacional, própria de uma Cultura humana substantiva. Alguns excerptos dos textos antológicos, em referência, que podem comprovar esta atmosfera pedagógica e cultural. — (Da carta à activista anti-apartheid, Sheena Duncan, 1.4.1985): ―Os ideais que acalentámos, os nossos sonhos mais íntimos e as nossas esperanças mais ardentes podem não ser concretizados no nosso tempo de vida. Mas isso não é o mais importante. A consciência de termos cumprido o nosso dever e de termos estado à altura das expectativas dos nossos contemporâneos é em si mesma um experiência gratificante e uma conquista magnífica‖. (Op. cit., p.243). O milieu psico-sócio-cultural não pode ser outro senão o optimismo fundado e a razoável esperança no Futuro. Também há um legado e uma tradição de combate e luta, que é mister transmitir às novas gerações! — Verne Harris (Gestor do Projecto ‗Conversations with myself‘, o título original da presente Antologia de textos de N.M.): ―O período entre 1990 e 1994 foi um tempo de sangue e medo na África do Sul. Milhares de pessoas morreram, vítimas da 82


violência política. Eram frequentes os massacres como os que ocorreram em Sebokeng, Boipatong e Bisho. Durante todo esse período existia um medo real de um golpe da direita com o apoio das forças armadas. O pragmatismo conduziu às negociações e à política de reconciliação. As conversas que Mandela manteve com Richard Stengel e Ahmed Kathrada sobre o projecto da sua biografia autorizada decorreram ao mesmo tempo que ele procurava manter o país unido (antes de Abril de 1994) ou estava mesmo a governá-lo (a partir de Maio desse ano)‖. (Op. cit., pp.320-321). — (Do manuscrito autobiográfico escrito na prisão e mantido inédito: op. cit., p.325): ―A roda da vida [...] está perra do óleo seco e da ferrugem, mas nós conseguimos fazê-la chiar e girar para trás e para a frente, e vivemos na esperança e confiantes de que um dia haveremos de ser capazes de fazer com que ela dê a volta por inteiro, não para que os exaltados sejam humilhados e os desprezados sejam exaltados, mas para que todos os homens — os exaltados e os humilhados da terra — possam viver como iguais‖. — (De um ficheiro pessoal: notas tomadas numa reunião em Arusha/Tanzânia, durante o processo de paz do Burundi/16.1.2000: op. cit., pp.402-403): ―Ao estudar a história mais recente do vosso país, parece não existir uma consciência plena dos princípios fundamentais que devem motivar qualquer líder: a) Existem homens e mulheres bons em todas as comunidades. Em particular, há homens e mulheres bons entre os Hutus, os Tutsis e os Tuia; o dever de um verdadeiro líder é o de identificar esses homens e mulheres bons e atribuir-lhes tarefas de serviço à comunidade. b) Um verdadeiro líder deve trabalhar arduamente no sentido de reduzir as tensões, especialmente ao lidar com questões sensíveis e complexas. Os extremistas normalmente prosperam sempre que existem tensões, e a emoção tende a sobrepor-se ao pensamento racional. c) Um verdadeiro líder utiliza todas as questões, mesmo as mais graves e sensíveis, para assegurar que saímos do debate mais fortes e mais unidos do que antes. d) Em qualquer disputa, acaba sempre por se atingir um ponto em que nenhuma das partes detém o monopólio da razão ou a totalidade das culpas. Em que o compromisso é a única alternativa, para aqueles que seriamente pretendem a paz e a estabilidade‖. Parece bem o resumo de um manual da Boa Liderança! — (Dos rascunhos sobre os anos presidenciais: 16.10.98: op. cit., pp.406-409): ―Existe um respeito universal e um sentimento de admiração por aqueles que são hu83


mildes e simples por natureza, e que depositam uma confiança absoluta em todos os seres humanos independentemente do seu estatuto social. São homens e mulheres, conhecidos e anónimos, que declararam guerra total contra todas as formas de violação dos direitos humanos, em qualquer parte do mundo em que tais excessos têm lugar. ―São pessoas em geral optimistas, que acreditam que, em qualquer comunidade do mundo, existem homens e mulheres bons que acreditam na paz como a arma mais poderosa, na busca de soluções duradouras. A situação real no terreno pode justificar o recurso à violência, que mesmo os homens e mulheres bons podem ter dificuldade em evitar. Mas mesmo nestes casos, a utilização da força deverá ser uma medida excepcional, cujo objectivo primordial deverá ser o de criar o ambiente necessário para soluções pacíficas. São estes homens e mulheres bons que constituem a esperança do mundo. Os seus esforços e os seus feitos são reconhecidos para além da morte, mesmo para além das fronteiras dos seus países, tornam-se imortais‖.

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AINDA HAVERÁ RECEITAS VÁLIDAS E FECUNDAS PARA A HUMANIDADE E O PROCESSO HISTÓRICO-CIVILIZACIONAL, PERANTE AS HECATOMBES E AS CATÁSTROFES CONTEMPORÂNEAS, „NATURAIS‟ OU ARTIFICIAIS?! E SE HOUVER, QUAL A „FONS ET ORIGO‟ DA SUA PROCEDÊNCIA?!

Para se entenderem e poderem conviver pacificamente, os Humanos precisarão, antes e acima de tudo, de tomar a linguagem (e os próprios meios e técnicas de comunicação social) a sério, orientados por uma gramática de vida balizada pela honestidade e pela sensatez. Sobremaneira, as línguas semitas ensinaram-nos a utilizar as palavras e os vocábulos em geral, tendo sempre em referência o quê e o quem, visto que os nomes são assumidos como a expressão fiel e directa da realidade. Haverá, ou não, Enigmas ainda por desvendar sobre os Humanos e a organização das Sociedades humanas?! É óbvio que sim... ao ponto de resultar fraudulento e conformista o slogan tradicional que prossegue repetindo, ao som da ‗corda do sino‘: ‗Nihil novi sub sole‘!... Na nossa galáxia crítica, como se afigura falso o parergo da Informática actual, que o próprio McLuhan brandiu em tom crítico e sarcástico: ‗o Mensageiro é a Mensagem‘!... Foi, justamente, por ter pensado segundo esta cartilha

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estrábica, que o Apóstolo Paulo fundou o Cristianismo tradicional, atirando borda fora Jesus e o Jesuanismo. É, igualmente, por seguirmos a cartilha errada, que continuamos a dar corda a axiomas do tipo: ‗Le Roi est mort... Vive Le Roi!...‘ Como se o Rei (ou imperador ou presidente) não fosse, em boa verdade, outra coisa senão o seu ritualístico ‗guarda roupa‘. Até quando havemos (os indivíduos-pessoas/cidadãos) de ficar condenados ao universo mecanicístico da Exterioridade e das Banalidades mais insonsas e absurdas, sem direito, sequer, à palavra, indignada, da revolta e da afirmação da Identidade?!... Até quando havemos de ficar confinados ao mundo do empíreo-criticismo, já objurgado e proscrito, muito justamente, por Vladimir Ilitch Ulianov (Lénine), no tempo em que ele procurava erguer, no plano teórico-doutrinal, o projecto de uma Sociedade Alternativa, no horizonte do Socialismo?!... Se o projecto socialista de Lénine abalroou, foi em última análise, por se ter configurado no estrito horizonte do Objectivo-Objectualismo. As suas críticas às doutrinas do empíreo-criticismo de Ernst Mach continuam certas e fecundas. Em Novembro de 1989, caiu o ‗Muro de Berlim‘, e em Agosto de 1991, colapsou a URSS. Porque, ao longo de sete décadas, ela foi balizada e orientada pela cartilha do Despotismo iluminado, e o seu Socialismo não passou de ‗capitalismo monopolista de Estado‘; além disso, esteve estrutural e constantemente ameaçada, durante esse lapso de tempo, pelo Sistema capitalista e pelo seu tão celebrado ‗Free Market‘, absoluta e ditatorialmente omni-envolventes. Deve, entretanto, saber-se que, tanto no campo do ‗Socialismo convencional‘, como no do chamado ‗Free World‘, não se conhecia nem praticava outra atmosfera ideológica senão a do empíreo-criticismo machiano. O que, de resto, prossegue absolutamente, nos dias de hoje, com as modas e o marketing a enfunarem as velas da ‗Nau catrineta‘!... Se advertirmos bem nos fenómenos, o processo da Revolução socialista de Outubro, na Rússia dos czares, já havia começado estruturalmente mal: os bolschói (de orientação radical), que não passavam de um pequeno grupo, foram eles que tomaram as rédeas do processo revolucionário em curso, em contraste com os menschói (de orientação social-democrata), que eram, em número , muito mais que os primeiros. Não passou pela cabeça aos bolcheviques empreender o alargamento maioritário das adesões (por ilustração e convicção, não à força...), para que o P.R.E.C. pudesse vingar democraticamente. Desta sorte, a doutrina do Despotismo iluminado (já bem experienciado no Processo Revolucionário da Rev. Francesa de 1789-99) começou, 86


desde logo, a fazer parte integrante da ementa diária, na nova Rússia, que, por isso, se tornou incapaz de fazer emergir o ‗Homem Novo‘, por que tanto se aspirava. É ilusória e mistificadora a posição doutrinal de Gershom Scholem (o famoso teólogo judeu do séc. XX), quando admoesta os seus leitores no sentido em que pesquisar em busca de um conhecimento último redunda sempre em decepção, visto que não há enigmas, no mundo humano... mas, tão-só, as aparências deles. Este é um caminho errado, para o C.E.H.C.. Ilustrar essa posição doutrinal com a conhecida parábola do camponês, descrita por Kafka em ‗O Processo‘, só agrava a mistificação: o camponês chegou diante da porta da Lei, que se acha vigiada por um guarda; permanece aí a vida inteira sem conseguir entrar; por fim, vem a saber que a porta estava guardada para se poder entrar nela: em suma, a porta estava aberta e guardada para o nada, por um guardião que, (supostamente), nada guardava. Como se vê, tudo depende da Primeva suposição intencional. É por isso que a charada do ‗ovo de Colombo‘ e outras semelhantes, como esta de Kafka, não são perfunctórios círculos viciosos. A lição é óbvia: Quando não abordamos, adequadamente, o mundo da Intencionalidade e da Imaginação humanas, corremos o sério risco de ficarmos confinados à cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘, e não acedemos à gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. De uma vez por todas, precisamos é de desvendar o enigma e desfazer o embuste do ocidental Iluminismo setecentista/oitocentista. O princípio kantiano era justo e perene e inviolável: Sapere Aude! Obtem a coragem de Saber, uma vez que o primado eterno, para a humanização da Espécie, é o do Saber sobre o Poder, e não o contrário. Mas, para que as promessas do Saber e da Razão se possam cumprir, é preciso que o sapiente não se esqueça de dar o passo ulterior, no processo do Saber: opere a transição do Saber simples (e mais ou menos ingénuo) para o plano do Saber crítico (‗ao quadrado‘: ele sabe que sabe). Como é sabido, a dialéctica do Iluminismo ocidental deixou-se ficar prisioneira do mito da razão e da luz, que logo engendrou, com a maior das facilidades (porque o lastro ideológico da Cultura científica do Ocidente era o mecanicismo, embasado, ainda por cima, numa atmosfera religiosa de determinismo...), o seu contrário, a saber: a penumbra e a treva, a distância e o segredo, porque o Poder e os poderes não podem deixar de ter o seu guarda-roupa próprio... Os ocidentais foram, assim, industriados para considerar o imperativo da transparência (na família, na profissão, na ‗corporation‘ e nos ofícios e deveres do Estado) ‗cum grano salis‘: nem tudo pode 87


ser confidenciado e revelado; há um reino inultrapassável de segredo, onde a discreção, a reserva e a opacidade têm o seu lugar próprio!... Dir-se-ia que Siddharta Gautama (que se tornou o Buda ou Iluminado) e o Budismo, em geral, perante o painel característico da Cultura ocidental, emergem, sem dúvida, num horizonte de muito maior honestidade e sabedoria, quando nos ensinam aquela Lectio simples e generalizada de que todo e qualquer ser humano se pode converter num buda ou iluminado. Com tais cuidados e preocupações, eles mostram-se muito mais próximos da ‗fons et origo‘ de todas as coisas, no universo humano, qua humano: a Consciência (esclarecida, ou iluminada) dos Indivíduos-Pessoas, enquanto Sujeitos humanos livres e responsáveis. E, não obstante, há tanta pérola perdida (ou esquecida/abandonada) nas origens históricas (tripartidas: Hélade, Hebreia, Roma) da Cultura/Civilização do Ocidente! Nós — ocidentais — mercê do próprio processo da Mundialização, encetado nos alvores da Modernidade ocidental, e hoje em vias de uma completa expansão mediante as novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, parece que a tudo (e a todas as etnias e civilizações...) nos habituámos... já não oferecemos resistência, já quase não somos capazes de indignar-nos, diante das maiores catástrofes ou hecatombes. Ora, jamais podemos esquecer que é sob o signo da Cólera (Ménis) de Aquiles, na Ilíada (atribuída a Homero), que nós, ocidentais, podemos, hoje, continuar a combater os sociologismos e os positivismos mais descarados, que muitos cientistas volvidos em ‗cães de guarda‘ do Establishment estão sempre prontos a vender, bem como os oportunismos mais desconcertantes (como o neoliberalismo capitalista das últimas três décadas), que os oficiais da Gouvernance e da Administração dos Estados continuam apostados em propor às massas trabalhadoras e às Sociedades, cavando a sua ruína cada vez mais fundo. Na esteira do criticismo nietzscheano e da melhor filosofia existencialista do séc. XX, tem razão o filósofo alemão Peter Sloterdijk (in ‗Cólera e Tempo‘, Relógio D‘Água, Lisboa, 2010,, pp.57-58), quando escreve: ―Assim, o caminho que conduz à compreensão das catástrofes que acabámos de sofrer e das que se anunciam, passa num primeiro tempo pela recordação da teologia. A associação da cólera e da eternidade era um axioma cristão. Teremos de mostrar como, a partir daí, se pôde desenvolver a constelação da cólera e do tempo — ou da cólera e da História. No decurso dos nossos decénios, caracterizados pelo neo-analfabetismo religioso, esquecemo-nos pra88


ticamente de que o discurso de Deus no monoteísmo incluiu também sempre um Deus colérico. Ele é o grande impossível da nossa época. E se ele estivesse a trabalhar, subterraneamente, para voltar a ser nosso contemporâneo? Antes de chamar de novo a atenção para esse personagem soterrado nos escombros da História, é útil examinar mais precisamente as condições gerais da economia da cólera‖. O filósofo eslavo Slavoj Zizek está certo ao salientar que ‗as análises mais importantes deste livro são as consagradas às mutações judaico-cristãs da Cólera. Na Grécia Antiga, a Cólera podia ser expressa directamente. Mais tarde [sobremaneira, nas terras das Cristandades], só foi possível a sua sublimação, o seu adiamento, o seu recalcamento ou a sua transferência psicanalítica‘ (vd. contracapa). Desde o séc. IV que, nas Cristandades paulinas, o que tem efectivamente vigorado, como modelo estereotipado, é a teoria/doutrina do Pastor e do Rebanho. Aos cristãos, foi inalteravelmente pregada a doutrina da humildade e da obediência aos superiores... que, supostamente, tudo faziam bem!... A Cólera do Deus judaico-cristão dissolveu-se: a) porque a prótese da Divindade transcendente e extrínseca dissipou-se ao fazer a sua ‗kénosis‘, mediante o dogma da Incarnação; b) porque, posteriormente, não se chegou a operar a metamorfose agostiniana do ‗Deus intimior intimo meo‘. Por tudo isso, o que prossegue, historicamente, é a consabida ‗carneirada de Panúrgio‘ (F. Rabelais)!... O panurgismo é, de facto, a religião laica do ‗Homo Sapiens tout court‘. As três religiões monoteístas de ‗O Livro‘ bem se esforçaram, historicamene, (enquanto o paradigma metafísico da Divindade transcendente e extrínseca pôde funcionar efectivamente), por edificar esse Banco da Vingança metafísica, em nome e sob o signo do Deus irado (muito mais o do A.T. que o do N.T., como é óbvio...)... Mas, quando o paradigma abalroou, os rebanhos ficaram entregues à sua sorte, i.e., ao arbítrio (ad nutum) dos seus pastores!... Os Tempos Modernos, por diversos meios e factores que mudaram as bases do Mundo, foram preparando o Processo psico-sócio-histórico para uma viragem, de fond en comble, nas Culturas e na Civilização das Sociedades humanas. Mas a Lição nao foi apreendida, de modo estrutural e generalizado. As religiões institucionalizadas continuaram a sobredeterminar as vidas dos humanos em Sociedade, e os seus imaginários universos metafísicos não foram suficientemente desconstruídos. (Por exemplo, filósofos como I. Kant ou J. Derrida foram muito pouco ouvidos e seguidos...). Ora, horizonte da Grande História das Civilizações humanas e no Processo da Psico-Sócio-História, não são os teoremas metafísicos que contam; são, outrossim, os 89


princípios antropológicos das melhores Estratégias para os processos culturais e civilizatórios da Espécie humana, os quais se podem resumir nestes dois axiomas: A) Manter vivo o pensamento estratégico (que, por definição, é anti-metafísico). B) Manter, preservar e defender a boa convivência dos Seres humanos em Sociedade, assegurando, a todos (ao maior número possível...), a boa qualidade de vida. Na História das Sociedades humanas, o que é mais importante e decisivo é, inquestionavelmente, a preservação e a defesa do modo civilizado da Convivência humana. Basta, por conseguinte, de cóleras metafísicas/teológicas, (oriundas das forjas das religiões institucionalizadas), cuja destinação é a de serem sempre diferidas no tempo histórico. O próprio processo da Globalização contemporânea (no que ele pode encerrar de positivo) induz-nos, precisamente, a esta solução estratégica (não-religiosa institucionalizada). Estamos, assim, a fazer pontaria para as próprias âncoras primeiras das potenciais expressões e movimentos da Indignação e da Cólera, que são os Sujeitos humanos livres e responsáveis enquanto o último absoluto, que não pode ser iludido nem elidido. Neste horizonte, é óbvio que tem interesse (na esteira, por exemplo, do ‗Two Treatises of Government‘/1689, de John Locke), porfiar na consolidação da gramática expressa na tríade: preservação dos direitos fundamentais à vida, à liberdade e à propriedade; sem esquecer, hoje, o direito à lingua materna/paterna, esse sacrário onde cada ser humano tem o direito de plasmar ‗o seu deus‘, ao mesmo tempo que afirma e constrói a sua Identidade individual-pessoal. A este painel estrutural, convirá adicionar o imperativo, psico-sócio-antropológico, de F. Nietzsche (duzentos anos depois de Locke) do não-ressentimento. Se quisermos assistir à emancipação da Ética/Moral, não podemos ignorar o imperativo nietzscheano: o seu contrário, ou seja, o espírito de ressentimento é oriundo de uma ‗humildade vingadora‘, que foi forjada, precisamente, no universo das religiões monoteístas. O futuro universo dos Humanos (se os houver...) terá de passar pelo pós-monoteísmo (e pela Pós-Modernidade, mas entendida de modo positivo e crítico). Infelizmente, as sociedades ocidentais estão demasiado cristianizadas, o mesmo é dizer, domesticadas e controladas... a atmosfera ideológica do Rebanho assola-as e devasta-as como um dilúvio!... Peter Sloterdijk (no seu já referenciado ensaio político-psicológico) bem se esforça por nos lembrar e sugerir que a 1ª palavra da (Alma) da Europa começa justamente com a ‗Cólera‘ (Ménis) de Aquiles, filho de Peleu, — esse que é o mais digno e tremendo dos afectos humanos, que não pode tolerar 90


a contestação (cf. op. cit., pp.11 e ss.). A Cólera faz a sua aparição no berço da Civilização do Ocidente, precisamente na Acaia de Aquiles, logo na primeira frase da ‗Ilíada‘. A grande questão residia, então, em saber como enfrentar a irrupção da cólera na vida dos mortais!... Quem, no Mundo dito pós-moderno de hoje, quer saber da cólera heróica e do desassossego que esta Lectio pode trazer ao demasiado banal e rotinado convívio dos humanos, marcado por encontros e desencontros, já incapazes, de antemão, de produzir os efeitos pretendidos?!... Quem quer saber, hoje, desse mundo timótico do orgulho e da guerra, em demanda da dignidade e da nobreza, de virtudes que, afinal, a história podia registar para além da morte?!... Nada de misturar as águas... É claro que não se trata, aí, da ‗celebração da violência‘, nos esquemas estereotipados da Tradição. Em face disso, a sensibilidade hodierna só conhece uma palavra: reprovação. Do que se trata, aí, nuclearmente, é da dignidade da vida, de uma vida vivida modo humano (cf. ibi, pp.13-14...). Na cólera dos heróis — advirta-se bem — está, para os Gregos clássicos, o índice icónico que distingue e separa a mono-arquia da Natureza (Physis), que tudo dá, e a emergência da Cultura humana qua humana (p. 14). A este nível, enganam-se os teólogos quando ao mito, que procura transfigurar o mundo existente, contrapõem a profecia, que procura cavar distância e tecer crítica em confronto com o existente: a esse nível, o mito é tão profético como o profetismo é ainda mítico. No hebraísmo posterior ao captiveiro da Babilónia, a linha doutrinal de obediência aos Poderes estabelecidos levou a melhor sobre a linha da crítica social e do profetismo denunciador do status quo. Vistas bem as coisas, a Cólera, em si mesma, é a irrupção (psico-sócio-histórica) do espírito indignado com os acontecimentos ou a situação criada. Séneca explicita bem o problema, quando escreve (in ‗De Ira‘, Liber primus, 6, p.9: ―a natureza humana não é, pois, ávida de castigar; a cólera também não é da natureza humana, porque ela é ávida de castigar‖. As mudanças no aparelho axiológico, Peter Sloterdijk dá-se conta delas quando escreve, por exemplo (op. cit., p.23, nota): ―Podemos estabelecer uma longínqua analogia entre a domesticação filosófica da cólera nos Gregos e a civilização da cólera de Deus na teologia dos ‗textos dos padres‘ do judaísmo pós-babilónico, na qual o deslocamento do centro de gravidade para os pecados individualizados retira as suas condições de existência aos discursos ameaçadores e proféticos que anunciam a cólera punitiva e destruidora dos deuses‖. 91


Se a ‗Ilíada‘ disserta sobre a Cólera (Ménis), a ‗Odisseia‘ fala-nos da Astúcia (Métis), própria dos empreendimentos humanos (cf. ibi, p.16). No mundo de Homero (seja ele uma personalidade singular ou um colectivo de rapsódoi), não estamos perante seres humanos que possuem as suas paixões; estamos diante de paixões que possuem os seres humanos. Os efeitos psico-sociais do monoteísmo emergente (= Deus uno e único) ainda não haviam tomado corpo. Na verdade, ―o monoteísmo teórico só pode chegar ao poder, quando os filósofos postularem seriamente o sujeito da frase como princípio do mundo. Então, certamente, também os sujeitos hão-de ter as suas paixões e hão-de controlá-las como seus donos e senhores. Até lá, reinará o pluralismo espontâneo, em que sujeitos e objectos permutam constantemente de lugar‖ (idem, ibi, p.19). No que tange às funções genealógico-culturais do monoteísmo, as funções psicogenéticas que deram origem à identificação dos sujeitos nas frases, também elas terão de submeter-se a uma gramática psico-linguística que adoptou, como Regra axiológica/ontológica, o mesótès, a justa medida. Foi, justamente, por não ter seguido esta Regra, que Platão (Aristocles, de seu nome próprio) expulsou (esperamos, hoje, que não definitivamente...) a Ménis (Cólera) do universo da Cultura, bem como o Thymós ou ‗coragem varonil‘. Tudo começou com a instauração do Dualismo metafísico-ontológico. Escreve P.S. (op. cit., pp.22-23): ―Platão introduz um entusiasmo paradoxal de tipo novo: a sóbria mania da contemplação [objectivo-objectualista] das ideias sobre que se apoiará a nova ciência da ‗filosofia‘, que ele fundou. Sob a influência desta disciplina, a psique ‗maníaca‘ esclarecida por exercícios lógicos afasta-se, definitivamente, dos seus inícios ‗ménicos‘ — deu-se início à expulsão da grande cólera para fora da cultura‖. Como é sabido, a Ira ou Cólera é o 4º dos 7 pecados capitais da Cristandade. O cristianismo e a psicanálise sempre se têm dado as mãos para assegurar a ‗law & order‘ dos servos, humilhados e submetidos e preservar e defender a sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. Escreve acertadamente P.S. (op. cit., p.30): ―O futuro das ilusões está garantido pela grande coligação: cristianismo e psicanálise podem continuar a defender, com êxito, a sua pretensão a circunscrever os últimos horizontes do saber sobre o ser humano, enquanto se entenderem a manter um monopólio para a definição da condição humana pela carência constitutiva, que antigamente era mais conhecida pelo nome de ‗pecado‘. Sempre que a carência está no poder a ‗ética da falta de dignidade‘ dirige a dança‖. 92


De resto, a Cultura do Poder-Dominação d’abord tem sido promovida e alimentada, no Ocidente, desde os seus cavoucos, no imaginário-metafísico dos humanos. O nosso Autor identificou bem ‗os dois mais poderosos órgãos da captação metafísica e política da cólera na civilização ocidental, a teoria católica da cólera de Deus e a organização comunista das massas anticapitalistas e antiburguesas‘, para afirmar, in fine, que eles ‗não resistiram ao teste do tempo e à mudança de mentalidade‘ (ibi, p.249). Por isso mesmo, os próprios Projectos de Regime Democrático (nos últimos três séculos da Modernidade) têm soçobrado, uns atrás dos outros. Já são muito poucos os ‗cidadãos‘ submetidos capazes de exercitar a ira ou cólera. ―Após a sua regressão ao patamar universal e difuso do desprazer, ela abandonou toda e qualquer possibilidade de ser captada, transformada e enformada. Já não sabe rigorosamente nada da estreita relação entre o sentimento dos valores, a sensibilidade do direito e a capacidade de indignação — essa matriz da cultura democrática da irritação‖ (idem, ibi, p.248). A ira ou cólera tem os seus dois conhecidos irmãos timóticos, que dão pelos nomes de orgulho (legítimo do que foi feito) e necessidade (ontológica) de autoafirmação dos indivíduos pessoas/cidadãos. São estes dois irmãos que hão-de edificar o Futuro (se o houver) das verdadeiras Sociedades humanas. ―O que realmente chegou a um termo, o que aparece agora completamente desagregado é a constelação psico-histórica do pensamento da vingança, reforçada pela religião e pela política, que marcou o espaço processual cristo-socialo-comunista‖ (idem, ibi, p.264). O ressentimento (condenado por Nietzsche) tornou-se genial na sua eficácia, enquanto o aparelho psico-sócio-histórico o assumiu e tratou como expressão daquele exigente sentimento (colérico) de justiça para o mundo. Durante essa era, ele ‗podia refugiar-se na ficção que tratámos aqui pormenorizadamente: a teologia da cólera de Deus e a economia timótica mundial do comunismo‘ (idem, ibi, p.265). ―O que estava em jogo nos dois sistemas era nem mais nem menos que a rectificação das contas do sofrimento e da injustiça de um mundo sem equilíbrio moral. Ambos ensaiavam a missão consistente em positivar o ressentimento, para manter desperto o sentido da inadmissibilidade do mundo de injustiça. É aos seus esforços que devemos a formação, na civilização ocidental, do fenómeno altamente improvável que é a ‗crítica‘ — na medida em que se entenda por isso o espírito, inflamado por um ressentimento que se tornou genial, da insubmissão para com os factos puros e, 93


mais especificamente, para com os factos da injustiça. A ‗crítica‘ neste sentido não é um privilégio absoluto do Ocidente, ainda que se tenha nele implantado na sua forma tradicional; está presente em todas as culturas que conseguiram escapar da dominação dos motivos servis, holísticos, monológicos e masoquistas. Quando se faz questão de afirmar a universalidade das possíveis formas democráticas da política e da vida, haverá que ter em conta as culturas da deliberação, da prática do debate e as tradições de crítica dos ‗outros‘ como fontes de democracia regional [Amartya Sen]‖ (idem, ibidem). Esta visão (que é a de P.S.), o C.E.H.C. considera-a, ainda, atrofiada e afunilada. Há, na História (não oficial) da Cultura/Civilização do Ocidente, o outro filão (ignorado...), que passa pelo Socratismo e pelo Jesuanismo. Neste horizonte alternativo, continuar a assumir a CRÍTICA (social-societária) como um fenómeno construído e estigmatizado na via do ressentimento (clássico-tradicional), constitui uma solução (propedêutica) errónea, tanto mais que, desse modo, não chega nunca a discutir-se, criticamente, o que está verdadeiramente em causa, a saber: a Cultura do Poder-Dominação d’abord. É justamente este Adamastor, que é mister destruir e ultrapassar, para podermos descobrir soluções verdadeiramente Alternativas para as Sociedades humanas.

PARA UMA REVISÃO CRÍTICA DA HISTÓRIA É preciso aprofundar e desenvolver o que, na Cultura do Ocidente (e nos espaços sócio-históricos das três religiões monoteístas) foi mais longe e mais fundo: a descoberta da Luz natural da Razão como propriedade comum a todos os Seres humanos (enquanto penhor e armadura das suas Consciências reflexivas e críticas).

Seja, aqui, evocado, apenas, um painel de dois marcos, como ancoradouro e bússola de orientação. O 1º é, paradoxalmente, do próprio Apóstolo Paulo (o vero fundador do Cristianismo tradicional) e encontra-se em Rom. 1, 18-20. O intuito e o propósito patentes do parenético discurso escrito de Paulo é que todos os homens, se94


jam eles gentios ou judeus, carecem de justificação. Mas, a isto mesmo subjazem três teses fundamentais, que o Apóstolo aduz, e que podem, até, demonstrar o contrário do pretendido, a saber: a) Foi revelada a Ira de Deus sobre toda a impiedade e a justiça (a pseudo-justiça...) de todos aqueles homens que aprisionaram a verdade de Deus e a tornaram refém na injustiça; b) as coisas invisíveis de Deus tornaram-se manifestas e cognoscíveis neles e nas criaturas do mundo; c) a simples inteligência dos homens pode penetrar nos predicados e propriedades da divindade, de tal modo que eles se tornam indesculpáveis, quando prevaricam ou os contradizem. Nesta ordem de ideias, pode logicamente concluir-se que a plena assumpção da sua Consciência reflexiva e crítica, por parte dos Humanos, sufficit. Por esta via, até poderia ter já surgido, há dois milénios, o Homo Sapiens//Sapiens, em vez do Homo Sapiens tout court: se em lugar da implantação societariamente imposta (porque os cismas e as heresias foram sempre condenados pelas Autoridades estabelecidas...) do Cristianismo paulino, se tivesse deixado emergir, naturalmente, o Jesuanismo. Com efeito (tal como pretende o Apóstolo), se judeus e pagãos precisam, todos, de justificação (que os salve...), é porque se acham todos em-pé-de-igualdade: os judeus não estão em melhor situação que os ditos pagãos!... O 2º marco dimana das balizas e da orientação da obra do maior filósofo das Luzes, Immanuel Kant, que dá pelo título: ‗A Religião dentro dos Limites da Simples Razão‘. Nem seria de esperar outra coisa da inteligência do maior expoente do Iluminismo ocidental do Setecentos. Os que procuram minimizar a importância revolucionária desta obra, em termos culturais, reduzindo a sua influência ao puro domínio moral, são, afinal, os mesmos que desvalorizaram a luta travada e sofrida pelo Autor, diante do ‗iluminado‘ rei Frederico Guilherme II, por causa da publicação do ensaio ‗O Conflito das Faculdades‘; são os mesmos que desdenharam da obra de rotura que foi ‗Prolegómenos para toda a Metafísica Futura‘; são os mesmos que não lobrigaram o alcance do seu ensaio ‗Fundações da Metafísica da Moral‘. Ao longo dos dois milénios de Cristandade, o Enigma da Humanidade (que os Gnósticos judeo-cristãos primevos, formados na Escola de Alexandria, haviam esboçado, com penetração e sagacidade) tem sido, sistemicamente, ignorado e esquecido, — dir-se-á propositadamente tendo em conta o património dos saberes debitados às massas populares e às suas elites pelos Poderes societariamente estabelecidos. Em vez da dinâmica e da dialéctica, que procedem do ‗mundo interior‘ (consciência reflexiva e crítica de cada indivíduo-pessoa/cidadão) para o societário ‗mundo exte95


rior‘, organizaram-se mecanicisticamente as Sociedades humanas na base da dinâmica do Alto e do Baixo, do Superior e do Inferior: neste horizonte, é dos Poderes Estabelecidos que dimanam todas as iniciativas e factos sociais... De tal maneira que, a este nível, as diferenças de procedimentos/comportamentos que a sócio-história poderá registar entre, v.g., regime monárquico e regime republicano, são de pouca monta!... Neste horizonte, alavancado na doutrina platónica/paulina do Dualismo metafísico-ontológico, que se encarregou de estruturar as hierarquias societárias substantivas na dependência do divino Princípio mono-árquico (tudo engendrado, deterministicamente, num universo objectivo-objectual), a dinâmica e a dialéctica entre a Interioridade e a Exterioridade deixaram de operar e estar presentes, em termos decisivos, para a edificação do Mundo humano: a Consciência reflexiva e crítica de cada Indivíduo-Pessoa/Cidadão não conta para nada. A economia global até poderá dispensar perfeitamente o seu contributo próprio e específico. Só que a cláusula (de vida ou morte...) deste receituário psico-sócio-antropológico é a seguinte: esperava-se dar livre curso à evolução e ao desenvolvimento do Homo Sapiens/Sapiens? — Não podia ser — O que emergiu, na Psico-Sócio-História, foi a Cultura e a Civilização do Homo Sapiens tout court, forjado segundo a cartilha dos Poderes separados. No carrefour sócio-histórico das civilizações, é já habitual fazer-se a pergunta: Que fez a Cultura da Europa e do Ocidente diferente das outras culturas e civilizações do Planeta? A esta questão, costuma responder-se, sumariamente, como segue: a Reforma (na história da Cristandade ocidental), a Revolução científica (nos dois planos: especulativo-teórico e técnico-prático), e a Revolução industrial (cujo pioneirismo foi expressamente assumido pela Grã-Bretanha, a partir de 1760). Convirá, entretanto, saber que estas três colunas estão de tal modo entrosadas, que elas constituem, na realidade (em termos psico-sócio-históricos), três pernas da mesma tripeça. Curiosamente, a intuição estrutural, que nos permite estabelecer tal conclusão, já se encontra ‗in ovo‘ na perícopa referenciada de Paulo aos Romanos, bem como no salientado livro de I. Kant. Deve, aqui, chamar-se a atenção para uma espécie de rift, que emergiu historicamente na tripeça referenciada: as sucessivas revoluções sociais (modernas), (designadamente: 1689, 1776, 1789, 1917, para só mencionar as mais importantes) não figuram, justamente, na tripeça referenciada. Pode adivinhar-se perfeitamente a razão da negativa: os Poderes políticos societários mudaram apenas de fato, não de gramáti96


ca no exercício da Potestas (soberana). Por isso, os historiadores críticos das Revoluções sociais, na Modernidade, dirão, nos almanaques das suas crónicas e juízos históricos, que as Revoluções sociais modernas abalroaram ou fracassaram. Ora, em boa verdade, dir-se-ia que, afinal, não era mesmo de esperar outra coisa. Não têm sido as Sociedades ocidentais (e as restantes, em geral, no resto do Globo) politicamente balizadas e orientadas pelo que nós chamamos, no C.E.H.C., a Cultura do Poder-Dominação d’abord?! A História oficial não tem ditado nem registado outra cartilha de operações. Por que não foi posto em prática, ao longo de dois milénios e meio, primeiro, o Socratismo, e depois, o Jesuanismo?!... Os dois filões que ainda poderão restituir, à Cultura/Civilização do Ocidente (se na praxis e na pragmática societárias forem seguidos e respeitados!), a sua ascendência sobre as restantes civilizações e culturas do Planeta. A gramde desgraça é que as três religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘ (judaísmo, cristianismo e islamismo) não têm desistido, historicamente, de incensar e praticar a Cultura da Conquista e da Dominação, a sempiterna cartilha do PoderCondomínio. Dogmáticas, ortodoxias, inquisições; integrismos católicos ou cristãos; fundamentalismos islâmicos que desembocam em actuações obscenas e nefastas como as da Al-Qaeda ou no uso obrigatório da burka e do tchador, ou, ainda, na punição da mulher supostamente adúltera com as cincoenta chicotadas da praxe; o irredentismo sionista, que, em nome da suposta ortodoxia, põe acima de tudo uma ‗dogmática‘ ultrapassada do hebraísmo, impedindo na prática societária a convivência pacífica entre israelenses e palestinianos, na Palestina e no Médio Oriente, segundo o princípio, já consagrado, dos dois Estados e uma só capital geográfico-cultural. Como a História tem registado, sempre que uma das três religiões detém o Poder soberano (em termos geográfico-culturais) sobre as outras duas (ou ainda outras ‗estranhas‘ às três), logo a detentora da hegemonia faz, por definição, a vida difícil às restantes religiões. As excepções conhecidas, na história medieval, vão para o califado de Córdoba e os chamados reinos de taifas; na história moderna, para alguns raros períodos de convivência pacífica de cristãos, católicos, ortodoxos, judeus e muçulmanos, na Bósnia Herzegovina, a qual, a partir da anexação ao império austro-húngaro, em 1908, logo trouxe, no bojo, em 1914, o detonar da Iª G.M., com o assassinato por um estudante bósnio do arquiduque Francisco Fernando. Depois dos conflitos étnico-religiosos, a partir da independência da república em 1992, foi necessária a presença

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de soldados das Nações Unidas para pôr termo aos conflitos, com os acordos de Dayton, em 1995. A conclusão fundamental e patente é simples: nenhuma das três religiões institucionalizadas se acha moral e teologicamente capacitada para a convivência pacífica e democrática, em pé-de-igualdade, com as demais. Não reivindica, afinal, cada uma, para si, em exclusividade, a condição/qualidade do seu Deus uno e único?!... Costuma argumentar-se, sobremaneira nas áreas culturais da Cristandade, depois do Concílio ecuménico Vaticano II (é bom advertir...), que o Cristianismo se encontra doutrinalmente melhor apetrechado para a convivência pacífica, do que o Islão ou o Judaísmo; e que há, portanto, diferenças típicas no comportamento e nas actuações da Cristandade, no concernente às atmosferas ideológicas criadas relativamente ao Adamastor que é, sempre, o exercício de um Poder considerado, originariamente, sacro. Esta ‗Quaestio‘ está muito longe de ficar adequadamente resolvida, enquanto as pressupostas e presumidas melhorias da Cristandade e do Cristianismo não forem, historicamente, imputadas e atribuídas ao que nós, no C.E.H.C., chamamos Socratismo e Jesuanismo, os quais se configuram nos antípodas do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e de Paulo e bem assim nos antípodas dos Cristianismos e das Cristandades tradicionais, ainda hoje vigentes (a Ocidente e a Oriente). Não obstante, ao longo da Psico-Sócio-História dos últimos dois milénios e meio, aos lados do caudal central/oficial do rio da Metafísica dualista/ontológica (religiosa ou secular/ profana), alguns ribeiros e riachos fizeram o seu sulco geofísico e societário pelas vias do anarquismo (ana + arquia = para além da ordem estabelecida) ético-moral, à espera que um Dia pudessem engrossar psico-social/societariamente, ao ponto de subverter e ultrapassar/secar o velho rio principal do Poder-Dominação d’abord. Neste horizonte de avaliações e confrontos, não é difícil concluir e asseverar, criticamente, que o paradigma gnóseo-epistémico do Islão (e em boa parte do Hebraísmo/Judaísmo) é, nuclearmente, o do ‗Poder pelo Poder‘ (o que nós chamamos ‗o Poder seco‘). A pauta, que aí vigora e funciona, é a da Dialéctica Amigo/Inimigo, à boa maneira da tipologia concebida e estruturada pelo jurista e politólogo alemão Carl Schmitt. Para ele, ‗Amigo‘ e ‗Inimigo‘ não são grupos sociais, mas ‗categorias‘ metafísicas: não é o Estado que procede do Direito, é o Direito que, enquanto tal, procede do Poder do Estado. Querer falar de ‗Estado de Direito‘ não tem sentido no horizonte schmitteano.

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C.S. pertenceu à ‗Escola de Viena‘, fundada por Hans Kelsen, que explorou a chamada teoria pura do Direito, ao ponto de construir o moderno edifício completo do Positivismo jurídico. Aí, as análises jurídicas, perante a oposição categórica estanquizada entre ser e dever-ser, são forçadas a arrumar toda a fenomenologia jurídica nos domínios do ser; o mundo do dever-ser, na medida em que depende e procede da consciência individual-pessoal, fica, ipso facto, do lado de fora do mundo jurídico, propriamente dito. Dir-se-ia que, neste horizonte, ficou consumado, no plano jurídico-político da organização das Sociedades humanas, o platónico-paulino Dualismo metafísico-ontológico. Ora, no Islão (mais que na tradição teológico-jurídica do Judaísmo) e, dentro do mundo islâmico, mais na tradição doutrinal dos xiitas do que na dos sunitas, a cartilha que vigora é a do paradigma epistémico-jurídico de Schmitt e Kelsen. Eis por que, nos seus dois ramos, está inscrita, nos seus pendões, a ‗guerra santa‘ (jihad), contra os ‗infiéis‘. Muito embora as interpretações deste imperativo religioso-moral sejam diferenciadas nos dois campos, mesmo no concernente aos seus próprios conteúdos semânticos. Afirmar e defender que o Cristianismo paulino e a Cristandade tradicional não incorreram, historicamente, nos mesmos vícios e tentações é francamente errado e não corresponde à sócio-história registada pela Cultura/Civilização ocidental e em vias de mundialização. Todavia, na Cultura Ocidental, encontramos textos e documentos padronizados de um alcance crítico mais vasto, que não se encontram nos espaços das outras religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘. Por exemplo, os textos de Paulo e de Kant, já referenciados. Mas estes e outros textos não se acham, aí, arrolados em nome do Cristianismo (paulino) e da Cristandade, como já se advertiu. Assim, poder-se-ia argumentar, apesar de tudo, que nos cristianismos tradicionais, de origem paulina, há, efectivamente, uma sorte de mediação objectivo-objectual, que vai tomando corpo no Processo histórico, num esquema de Demanda e Procura da Verdade, à luz natural da Razão humana, — um fenómeno que sempre envolveu, historicamente, muita tensão e luta contra as posições dogmáticas, sustentadas pelos Poderes estabelecidos. Como a História demonstrou, a Inteligência e o Saber /Sabedoria sempre emergiram mais nos arraiais dos submetidos, explorados e oprimidos, do que nos espaços superiores dos detentores do Poder soberano e seus representantes. É, de facto, nessa galáxia, que se espera, um Dia, vir a edificar o perfeito Estado de Direito e o regime político da Democracia directa, onde todos os Indivíduos99


-Pessoas/Cidadãos possam ser, finalmente, reconhecidos como dotados de Consciência reflexiva e crítica. Nesta perspectiva crítica, alguns textos dos evangelhos canónicos do N.T. (sobremaneira, os de inspiração paulina) precisam de ser revistos e ultrapassados. Ainda não está propriamente neste caso a perícopa de Mt., 28, 18-20, atinente à missão apostólica universal, desde que ela seja levada a cabo, no pleno respeito pelas consciências adultas e críticas dos Humanos: ―Aproximando-se, Jesus falou-lhes assim: ‗Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que eu vos prescrevi. Quanto a mim, estarei convosco sempre, até ao fim do mundo‘‖. Mas já não se acha na mesma situação a perícopa paralela de Mc. 16, 15-16: ―Ele disse-lhes: ‗Ide por todo o mundo, proclamai a Boa Nova a toda a criação. O que acreditar e for baptizado, será salvo; o que não acreditar será condenado‘‖. — A punição foi cominada por um juiz exterior... E o último juiz (como Jesus ensinou na sua Mensagem evangélica autêntica), para o Homo Sapiens//Sapiens, é o Juiz interior da sua própria Consciência. É, porém, aceitável o que se acha escrito em Lc. 24, 46-48: ―e ele disse-lhes: ‗Assim estava escrito que o Cristo havia de sofrer e ressuscitar de entre os mortos ao terceiro dia, e que em seu Nome o arrependimento em vista da remissão dos pecados seria proclamado a todas as nações, a começar por Jesusalém‘. Disto vós sois testemunhas‖. Já é menos aceitável (em virtude das confusões que daí podem advir...) a perícopa paralela que se encontra em Jo. 20, 21-23: ―Ele disse-lhes uma vez mais: ‗A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, assim eu vos envio‘. Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: ‗Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, eles ser-lhes-ão perdoados; aqueles a quem os retiverdes, eles ser-lhes-ão retidos‘‖. Em termos sistémicos, cumpre-nos, neste contexto, esclarecer o seguinte: Sempre que se configura um Juízo/Julgamento ab extra (em confronto com o universo humano da Espécie Sapiens//Sapiens), um Julgamento que procede dos espaços (transcendentes e extrínsecos) exteriores aos Seres humanos (seja o Deus-Pai, seja os que foram, supostamente, constituídos como representantes do Poder divino), estamos num horizonte desviacionista em relação à pauta do Homo Sapiens//Sapiens. É, afinal, o paradigma parabólico do Juízo Final teológico, a conduzir, qual cavalo de 100


Tróia, do Exterior, todo o Processo da História humana!... Isto, decididamente, não é próprio da gramática de funcionamento do Homo Sapiens//Sapiens. O Islão sempre teve muita dificuldade em livrar-se da ‗rançon‘, dos estigmas do ressentimento e da vingança, em virtude do seu estrutural paradigma epistémico-jurídico schmitteano/kelsiano. Referindo-se aos dois aviões que, em 11 de Setembro de 2001, foram lançados contra o World Trade Center de Nova Iorque, escreveu Peter Sloterdijk (op. cit., p.262): ―Compreendemos que não foi uma demonstração de força islamista, mas o símbolo de uma total falta de recursos, que só poderia ser compensada pelo sacrifício humano, sacrifício camuflado pelo sagrado. Nenhum Marx do islamismo poderia alguma vez afirmar que a tecnologia moderna se desenvolveu no seio da civilização ocidental, mas só chegará à sua plena determinação nas mãos de utilizadores islâmicos. A lição do 11 de Setembro é que os inimigos do Ocidente esperam tudo exclusivamente da reversão vingadora das ferramentas ocidentais contra os seus criadores. O islamófilo F. Nietzsche teria hoje de rever os seus juízos. As críticas que ele exprimia na sua maldição contra o cristianismo adaptaram-se, como que nas suas costas, a outros destinatários. O islamismo radical de hoje é o primeiro exemplo de uma pura ideologia vingativa, que só pode punir, mas não faz nada‖. — É caso para retorquir, que também P.S. carece de rever, criticamente, a sua concepção do Cristianismo... Mas o discurso de P.S. já se nos afigura mais incontestado quando procede ao balanço crítico da recepção das tradições bíblica e corânica (op. cit., pp.259-260): ―O leitor desprevenido do Corão não pode deixar de ficar impressionado, ao constatar que um livro sagrado, sem temer contradizer-se, é capaz de, praticamente em todas as páginas, ameaçar com o fogo eterno os inimigos do Profeta e da fé. Não se sai deste desconcerto ao ouvir as explicações dos eruditos, que pretendem explicar as passagens polémicas do Corão no seu contexto histórico: o Profeta, dizem eles, exerce aqui uma espécie de crítica pré-socialista dos ricos da sua época, os comerciantes de Meca, arrogantes e desrespeitosos, que já não queriam ouvir falar dos valores igualitários e generosos da cultura tribal da velha Arábia. Era a esses valores que se atinha a doutrina de Maomé, quando obrigava os seus seguidores a ajudar os mais fracos. Mesmo a alusão que, à primeira vista, parece plausível, ao privilégio monoteísta do zelo em prol de Deus e contra os infiéis, não fornece uma explicação completamente adequada, pois é igualmente claro que ninguém se preocuparia com as passagens obscuras do Corão, se não houvesse esses bandos de seguidores de Deus que agrupam milhões de 101


pessoas ávidas de violência e em busca de palavras para justificar as suas acções futuras (ao passo que as passagens quentes comparáveis dos salmos vingativos do Antigo Testamento há muito tempo deixam frio o público esparso da igreja e da sinagoga)‖. Enttretanto, é inabalável o imperativo categórico que, ao longo da História e cada vez mais hoje em dia, nos impele para o acesso ao patamar evolutivo do Homo Sapiens//Sapiens, tendo em conta, no horizonte da própria Cultura do Ocidente, a triste e terrível odisseia das modernas Revoluções fracassadas: ―Desde os acontecimentos que se seguiram à tomada da Bastilha, a história ideológica e política da Europa é tecida da esperança que põem os desiludidos na segunda revolução, a verdadeira, a real, a integral que virá contentar a posteriori os enganados e abandonados dos grandes dias. Daí o slogan histórico ‗A luta continua!‘ que vamos encontrar, mais ou menos explicitamente, em todos os movimentos dissidentes, desde os radicais de 1792 até aos altermundialistas de Seattle, Génova e Davos. Depois de, em 1789, o Terceiro-Estado vitorioso se apropriar do que lhe era devido, os perdedores da época querem também eles usufruir — quero dizer, os oradores do Quarto-Estado, os que haviam sido excluídos do festim da burguesia‖ (idem, ibi, p.133). — É por tudo isto que nós, hoje, proclamamos que uma Revolução socialista, que o seja de verdade, tem de ser edificada a partir dos Sujeitos humanos livres e responsáveis, e não sobre programas objectivos construídos no universo do Objectivo-objectualismo. Esta parece ser, ainda, a perspectiva de Peter Sloterdijk... Nesta floresta de problemas, com muito poucas clareiras, há toda uma série de questões que nunca é agitada e resolvida: a que se prende, nuclearmente, com a possível convivência pacífica e, ao contrário, os reais e dramáticos conflitos e guerras entre as diversas culturas/civilizações. No que à própria ascendência destinada da Cultura Ocidental concerne sobre as demais culturas/civilizações, a maior parte dos pensadores e eruditos, endrominados nas teorias do Monismo epistémico (avalizado segundo a pauta das ciências físico-naturais), já descrê disso, hoje, absolutamente. A maior parte deles, nesta problemática, já cedeu, a todo o pano, às implacáveis leis do sempre ditatorial ‗free Market‘ e do Economicismo neocapitalista, sob o pressuposto genérico de que a Economia e o Mercado são necessários e suficientes para operar a mundialização (política e cultural) das diferentes Sociedades humanas. Neste erro desviacionista laboram P.S. e muitos outros pensadores. Inspirado num certo optimismo ingénuo, tão próprio e típico do iluminista séc. XVIII ocidental, o próprio I. Kant deixou-se cair, aqui ou além, nessa tentação sedutora. 102


Ora, à luz do Humanismo Crítico, esse caminho constitui um ERRO grave e grosseiro... que, em última análise, é do mesmo teor da falsa legitimidade de qualquer Despotismo iluminado. A contraprova desta Tese central encontra-se, precisamene, na própria Casa da Cultura/Civilização do Ocidente, onde as Sociedades nacionais estão, manifestamente, tão mal organizadas, que nem foram capazes de superar as graves bolsas de pobreza e miséria, nem foram capazes de resolver, a bem da implantação dos regimes democráticos, a triste e estrutural realidade dos ‗Poderes separados‘. Desta sorte, a conclusão crítica resulta óbvia: A mundialização ou universalização das Sociedades humanas, que não pode deixar de ter em conta a plena afirmação das Identidades singulares das respectivas Nações, para ser legítima e eficaz tem de proceder de veras e autênticas Culturas substantivas nacionais. O que implica, ou pressupõe, na própria Casa nacional, a prática do primado do político sobre o económico. Se a Cultural de uma Nação/Estado se acha domesticada e controlada pelo dito Mercado globalizado, ela só terá que resistir para sair dessa situação... de contrário, está perante uma morte anunciada. O que se verifica, em termos fenomenológicos, no painel destas nossas reflexões críticas? Que, historicamente, queira-se ou não, o Processo psico-sócio-histórico atribuiu um destino especial e uma natural ascendência própria, à Civilização/Cultura do Ocidente, no confronto com as outras culturas/civilizações. Que tal ascendência não redunda em qualquer privilégio para a nossa Cultura/Civilização; antes, deverá constituir a fonte das nossas mais importantes preocupações e cuidados. É que uma Verdade/Novidade, que irrompeu uma vez, no Processo histórico e numa dada região do Planeta, em virtude de circunstâncias especiais, aí verificadas, é errado presumir e pressupor que ela irá tomar corpo, espontaneamente, em qualquer outra região da Terra. Segue-se, daí, que há coisas, acções ou comportamentos que se aprendem e têm de ensinar aos outros; e que, se não houver vias e canais para transmitir esse legado patrimonial, a Psico-Sociogénese não poderá, globalmente, dar o esperado e necessário passo em frente; e que essas vias e canais só se poderão configurar no xadrez de veras culturas substantivas nacionais.

OBSTÁCULOS CICLÓPICOS PELA FRENTE

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Das dificuldades e peripécias em ulrapassar o desgraçado mundo do tradicional Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo

Rómulo de Carvalho (1906-1997), (também conhecido pelo seu heterónimo, o poeta António Gedeão), o Professor, deixou escrito no seu livro póstumo ‗Memórias‘ (ed. da Fundação Gulbenkian, Lisboa, 2010, §127, in fine): ―Quando é que os homens entenderão que tudo quanto pensam está condicionado pela sua natureza humana, e que não devem estender ao Universo aquilo que se passa em casa deles? (...)‖. — Ainda que a natureza humana seja uma realidade plasmável e ainda em curso, como nos ensina a Antropogénese, essa era já, igualmente, a concepção crítica dos Gnósticos judeo-cristãos primevos, que reivindicavam o primado (absoluto) do Saber sobre o Poder. A ‗certeza‘, por exemplo, de que o Universo foi criado por uma Divindade criadora, e não pelo Demiurgo, como pressupuseram os Gnósticos, não passa de um ‗delirium tremens‘, a carecer de cura psicológica e psicanalítica/revolucionária!... Quanta falta nos faz todo um propedêutico Programa curricular, (balizador e orientador dos Sistemas Educativos nacionais), capaz de combater e superar, de vez, todas as ‗doenças‘ mentais e culturais oriundas do Monismo Epistémico, ancorado nas ciências físico-naturais, por forma a preparar as presentes e as novas gerações para o novo horizonte crítico, balizado pela Dualidade Epistemológica, repartida pelo campo da epistéme das ciências físico-naturais e pelo campo da epistéme (qualitativamente distinta) das ciências psico-sociais e/ou humanas!... A propósito da expulsão de Camilo e do seu ‗Amor de Perdição‘ dos programas curriculares, Arnaldo Lopes Marques, ainda que se bata pelo direito das Humanidades ao seu lugar próprio nos programas curriculares, começa a fazê-lo de um modo desajeitado, quando escreve (in ‗JL‘/Ed., 15-28.12.2010, p.6): ―Dir-se-á (...) que a aceleração da vida moderna não se compagina com o ‗ócio humanista‘, gratuito e sem objectivos imediatos, e que é impossível travar a concepção utilitarista da educação, segundo a qual a escola deve adaptar o ensino dos alunos às suas futuras profissões. E que lutar contra o princípio da realidade é quixotesco‖. Mas ele melhora nos dois parágrafos seguintes: ―Não deixa, no entanto, de ser profundamente lamentável não haver, entre nós, um debate sobre o que é que a escola básica e secundária deve fornecer aos seus alunos, porquanto se trata de uma questão axial. A escola está progressivamente a ex104


cluir as humanidades do seu seio, sob o pretexto de nem todos estarem preparados para aceder à mensagem humanista de que somos herdeiros, mas recusa-se a assumir esse fracasso. Em vez de enfrentá-lo, faz perversamente ‗fuga para a frente‘, com os seus novos bezerros de ouro: o facilitismo disfarçado de inclusão, o entusiasmo bacoco pelas novas tecnologias, a imposição de áreas disciplinares que são uma espécie de ‗terra de ninguém‘ do conhecimento, o abraçar do modelo profissionalizante a que se retire a componente ‗elitista‘ e ‗abstracta‘ das humanidades. Tudo em nome de uma putativa aquisição de competências que não desencaminhem os jovens da ‗ligação à vida‘! Caminha-se, enfim, para uma escola desprovida de memória e intelectualmente exangue. ―Que não se discuta o bastante este movimento que tende, perigosamene, a afastar da escola o papel de transmissora da nossa herança cultural não augura por certo nada de bom‖. — Nas últimas duas décadas, Portugal (país periférico na U.E. e à escala do neoliberalismo capitalista global), tem-se afirmado como campeão no processus de laminação de toda a sorte de cultura substantiva. (O nacional esvaziou-se). A Cultura/Civilização do Ocidente padece, em termos mortíferos, de todos os estigmas e consequências negativas e letais do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, sempre alavancado pelo Monismo Epistémico e ancorado na Teoria /doutrina dos Poderes separados e da ‗separação de Poderes‘ (religioso/secular; teológico//político). A teoria/doutrina, que nos foi transmitida pelos Gnósticos, por Sócrates e Jesus, por Averróis e I. Kant, encontra-se nos antípodas: é o conhecido Dualismo Epistemológico, o qual se relaciona com o Dualismo metafísico-ontológico (de Platão e Paulo), numa relação recíproca de proporcionalidade inversa: quanto mais de D.E., tanto menos de D.M.-O.. Gonçalo M. Tavares atirou-se a um empreendimento grandioso e arriscado, ao conceber, escrever e dar à estampa uma espécie de contra-epopeia, em atmosfera cultural pós-moderna, que pretende ‗glosar‘ e rivalizar com o Épico nacional/luso Camões, emparelhando com o ‗super-Camões‘ F. Pessoa, na obra que dá pelo título ‗Uma Viagem à Índia (Caminho, Lisboa, 2010). É, sem dúvida, uma obra que ajudará, em termos críticos soft, no necessário e indispensável desassossego contemporâneo; mas está longe de lançar os fundamentos de um Mundo humano alternativo. Os seus esquemas mentais e categoriais ainda são os tradicionais e modernos, por mais corda que dê ao seu ‗herói‘ Bloom, mediante os esforços aturados de uma Imaginação/sensibilidade aberta aos processos da singularização multitudinária. 105


Numa entrevista dada ao ‗Expresso‘ (Atual: 6.11.2010, pp.9-12), o Autor deixou que lhe destacassem em título esta tese: ‗A Crença é um dos pontos centrais do meu trabalho. Os meus Livros falam das Máquinas, mas em confronto com a Crença‘. Está visto... o Autor confessa-se, ele próprio, ainda refém de um mundo dualista, em termos metafísico-ontológicos, — um mundo, em suma, que é, ainda, o resultado de um paradigma (psicológico) esquizofrenado da Humanidade, tal como o conhecemos na tradicional e cristã Cultura do Ocidente. Um paradigma que, na esteira de Platão (que traiu Sócrates) e de Paulo (que traiu Jesus), foi completado, na sua arquitectura, pelas dualistas religiões institucionalizadas de ‗o Livro‘, a começar pela Igreja Católica Romana (I.C.R.). Disse aí o Autor, em resposta à pergunta se era baptizado (p.10), metendo abundantemente os pés pelas mãos, sem se dar conta das contradições: ―Sou. Mas não é a crença de ser crente. Quero perceber o que é ser crente. Vejo a crença como ‗um a mais‘. Perante um crente, nunca me sinto mais reflexivo ou racional. Fico numa situação de inferioridade. A crença é um dos pontos centrais do meu trabalho. Um crente tem uma energia e uma força que eu não tenho. Os meus livros falam das máquinas, mas em confronto com a crença. Em ‗Aprender a Rezar na Era da Técnica‘, parti de uma imagem que nunca aparece no livro — um homem a rezar ao lado de uma máquina indusrial de grandes dimensões, em funcionamento, e dois sons a competir: o som da máquina e o som da oração. [Vai buscar o computador onde há vários anos escreve. Tem molas a segurá-lo. Fita-cola. É um objecto do séc. passado que, a cada momento, parece que vai desfalecer. Apagar-se.] É um computador em que ainda escrevo muito. Uso-o sempre em viagem, mas é absurdo, porque é absolutamente frágil. O ecrã não se segura sozinho, precisa de livros de suporte‖. É uma obra que se limita a embarcar na corrente da história sem sentido do mundo... Não aspira a mudar o Mundo e a Sociedade. Se inovações há, aí, elas configuram-se no armazém da história da Literatura. Mistura de romance e de epopeia, a obra procura ser, acima de tudo, uma tentativa de exercício literário, desafiando uma forma pós-moderna de epopeia. A avaliação que fez da obra António Guerreiro (ibi, p.12) corresponde razoavelmente à realidade: ―‘Uma Viagem à Índia‘ é um romance que supõe o seu próprio falhanço — assim como ‗O Homem sem Qualidades‘ [de Robert Musil, ed. da Dom Quixote, Lisboa, 2008] nunca poderia deixar de ser um romance incompleto — e o elabora de maneira grandiosa. Ele é a narração, em verso, de uma aventura espiritual e 106


confronta-se, afinal, com a prosa do mundo, que absorve completamente a vida e a reduz a nada. O seu herói é, então, o do niilismo completo. O seu falhanço é o triunfo da ideia, do conceptual, do abstracto, com um elevado grau de autonomia e desenraizamento em relação à efabulação romanesca e à experiência que lhe serve de matéria. A fábula, aqui, é a do pensamento — este romance saiu defnitivamente da época da representação‖. Tem razão o crítico literário A.G. ao catalogar o romance épico de G.M.T., com o seu ‗herói‘ Bloom, impessoalizado e desenraizado, nas categorias de uma pretensa ‗ética de Esquerda e uma epistemologia de Direita‘ (ibidem). E conclui a sua avaliação como segue (ibidem): ―Órfão de toda a grandeza, apesar da viagem que empreende, ele é a figura da impossibilidade de salvação do mundo e o sinónimo de um transtorno metafísico. Mais do que uma personagem, é um princípio irradiante, nome da bloomificação do mundo. É a excelentíssima figura de um pessimismo histórico, cultural e antropológico‖. O ‗herói‘ Bloom do romance/epopeia nem sequer é, propriamente, um specimen do ‗Homo Sapiens tour court‘... será, antes, uma sorte de ‗Homo Zappiens‘ (do verbo inglês zap, zapped, zapping = matar ou destruir), à maneira de uma criança irrequieta e rabina, forjada, na melhor das hipóteses, nos media contemporâneos que tudo avassalam e não deixam de actuar ao serviço da Conquista e da Dominação, sempre orquestradas pelos Poderes Estabelecidos. (O livro de João de Almeida Santos: ‗Homo Zappiens‘, sobre o feitiço da televisão e a emergente e generalizada ‗democracia televisiva‘ é ilustrador de toda esta fenomenologia.). No prefácio de Eduardo Lourenço, titulado Uma viagem no coração do caos, anteposto à obra, pode ler-se na conclusão (ibi, p.20): ―Uma Viagem à Índia é uma navegação parada e fulgurante da nossa alma de pós-modernos, fugitivos e perseguidos, como um herói de banda desenhada entre os recifes simétricos de um Poder sem rosto, que nem precisa de existir para nos servir de Destino e uma universal Ilha de Amores tarifados, de onde desapareceu até a lembrança de que alguma vez, como na história de Pedro e Inês (de Bloom e Mary), Poder e Amor tivessem dormido na mesma cama‖. Depois de um leitura atenta e interessada da obra, nós escrevemos esta nota a seguir ao texto de E.L.: ―A obra situa-se, de facto, na encruzilhada desesperante de uma Pós-modernidade, puramente negativa, que ainda não encontrou a sua vertente positiva, uma vez que se mantém enredada na floresta objectualista das Banalidades 107


e das Superficialidades cotidianas, as quais se pretendem generalizadas e feitas estruturas absolutas do Mundo!...‖. ―Embora obra, sem dúvida, com algumas preocupações críticas, em várias vertentes, ela navega e vive, ainda, sob o jugo draconeano da Potestas d‘abord, que não é, de modo algum, capaz de denunciar e proclamar, no horizonte propedêutico da necessária Ana + Arquia, a demanda emergente do ‗Novus Ordo‘ (cf. v.g., canto IX, estrs. 34, 86)‖. Muito singela e honestamente, acrescentámos, ainda, nessa nota crítica: ―Pretende a obra fazer profissão de fé na nova atmosfera ideológica da Pós-Modernidade, entendida esta à maneira de um ‗albergue espanhol‘ ou de um ‗bazar chinês‘... Com efeito, ainda não assoma, aí, a pauta de uma dimensão reflexiva e crítica, que faça jus ao ‗pensar ao quadrado‘, susceptível de facultar a edificação de um novo e radical (de raiz...) Projecto honesto e sério, no sentido de reconstruir a Espécie Humana, qua tal!‖. Para comprovar os nossos juízos críticos, podem compulsar-se alguns tópicos ou loci da obra em causa, que passamos a referenciar: — o modo superficial e fútil como é vista a Europa (Canto III, Estrofes 8 e 9); — sobre a moral que se ensina na Europa (C. III, Estrs. 14 e 15); — sobre a tecnologia que pede meças à Natureza (C. III, Estr. 72); — há mais inimigos em tempo de paz do que em tempo de guerra (C. III, Estr. 108); — a guerra inventada por insensatos ou distraídos (C. IV, Estr. 44); — a distância traz aperfeiçoamento da humanidade (C. IV, Estr. 48); — a proximidade anula o progresso (C. IV, Estr. 49); — os dois mundos: o dos felizes e o dos infelizes (C. IV, Estr. 35); — o contraste entre a Linguagem (Cultura) e a Natureza (C. V, Estrs. 94-96); — os países que nasceram do lado errado (C. VII, Estrs. 30-31); — a religião no reino do indefinido (C. VII, Estr. 37); — o que enoja varia menos, no universo humano, do que aquilo que entusiasma (C. VII, Estr. 47); — nenhuma profissão é santa, só certos homens o são (C. X, Estr. 123); — o modo fatalista e hierárquico do actuar dos deuses (C. I, Estrs. 21-23); — a educação enquanto modo de evitar a guerra (C. I, Estr. 69); — os deuses poluem de cima para baixo, os homens de baixo para cima (C. II, Estr. 10); — um humano nunca se mistura com outro humano (C. II, Estr. 59). Nesta obra. não nos encontramos, por certo, no grau zero da Boa Filosofia, que, na sua condição de esparsa, ou seja, não sistémica, sempre ocorria nas obras literárias consideradas clássicas, sejam elas antigas ou modernas. O que, aqui, toma corpo é um puzzle multitudinário e heteróclito, que, por não evidenciar um pensamen108


to suficientemente estruturado, chega a pôr em dúvida, quanto a nós, a sua condição de uma boa obra literária. Antes de publicar, em 1865, em jeito de padrão exemplificativo, as ‗Odes Modernas‘, Antero de Quental, ainda como estudante de Coimbra, envolvido nas lutas estudantis e apoiando-se nos melhores movimentos progressistas europeus, deu à estampa o folheto ‗Bom Senso e Bom Gosto‘, o qual veio a desencadear a famosa Questão Coimbrã, em cujos arraiais se encontrava, do lado conservador e formalista/literário o velho patriarca das Letras António Feliciano de Castilho. A partir daí, não mais será legítimo, na História da Literatura lusa, separar o que sempre deve estar unido na boa obra literária: a forma literária e o conteúdo de um pensamento suficientemente estruturado. A boa resolução da Questão Coimbrã, na linha progressista e verista do Grupo de Antero, não tem, afinal, nada de misterioso e enigmático. Ela assenta a sua base no primado, incontestado, dos Saberes (reais e críticos) sobre os Poderes (formais e conservadores). A Cultura do Poder-Dominação d’abord procede à inversão geométrica do díptico e actua como a rã da fábula... ao passo que a Cultura da Liberdade Responsável primacial e primordial segue, muitas vezes, o paradigma surpreendente do Ovo de Colombo. Sempre dogmática, uniformizadora, e mais ou menos fanatizada, a Cultura do Poder-Condomínio não tem pejo em recorrer, por definição e estrutura societária, aos processos inquisitoriais, para domesticar e controlar o mundo dos Saberes. Os que, porfiadamente, se dedicam ao Conhecimento (a chamada ‗Economia do Conhecimento‘ hodierna não passa de uma blague e uma fantochada ao serviço dos Poderes Estabelecidos...) estão, em termos institucionais, ameaçados de morte!... Península Ibérica/1533. Nesta data, Rodrigo de Manrique, filho do inquisidor-geral Alonso Manrique, que deviera persona non grata da Instituição, descreve, com eloquência, a situação geral, numa carta dirigida a Joan-Lluis Vives, a propósito da prisão anterior do humanista conceituado Juan de Vergara (cit. in ‗A INQUISIÇÃO: o Reino do Medo‘, de Toby Green, Edit. Presença, Lisboa, 2010, p.310): ―Quando considero a distinção do seu espírito, a sua superior erudição e (o que valorizo menos) a sua conduta irrepreensível, sinto grande tristeza por temer que algo de muito mau possa acontecer a este homem excelente. Ao pensar na intervenção de muitos que o caluniaram, tremo ao pensar que ele caiu nas mãos de homens a quem falta dignidade e cultura, que odeiam homens de valor e que julgam estar a fazer um trabalho 109


bom e piedoso ao fazerem desaparecer estes homens sábios por causa de uma só palavra ou de uma simples anedota. Tem razão no que diz: o nosso país é uma terra de inveja e arrogância; podia acrescentar: de barbaridade. Pois já se percebeu bem que não se pode ter um certo grau de cultura sem se ser um poço de heresias, de erros e de máculas cristãs-novas. Por conseguinte, o silêncio foi imposto aos letrados, e quanto aos que atendem ao apelo da ciência, como diz, foi-lhes incutido um grande terror‖. Paradoxalmente embora, o terrorismo hodierno, disseminado longe lateque, através do Globo (depois do 11 de Setembro de 2001), pelos grupos fundamentalistas islâmicos, é neto, em herança directa, dos regimes Inquisitoriais que a História ocidental registou; e os diversos Terrorismos de Estado, de que não estão isentos os Estados-nações cristãos, são filhos directos dos tradicionais Regimes Inquisitoriais/Ditatoriais, apesar do travestimento que fizeram no guarda-roupa moderno da doutrina democrática. Afinal, prossegue, aí, pesporrente e ditatorial a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord... Só temos de perguntar: Até quando?!...

O ADAMASTOR DO OBJECTIVO-OBJECTUALISMO!...

As contradições da dialéctica do Iluminismo (oitocentista/novecentista) prosseguiram pelos caminhos errados dos métodos (antigos, medievais e modernos) da Cultura Ocidental, porque não se rompeu o odre da pseudo-religião laica e profana do Objectivo-Objectualismo.

A saga recente de Julian Assange e da WikiLeaks foi o trampolim suficiente para trazer, para o primeiro plano da Comunicação social, toda essa mística requentada dos segredos diplomáticos que, uma vez revelados, só exprimem a decepção amarga daquelas revelações que, afinal, nada revelam!... Como é fácil e corrente, nos meios da Diplomacia, faltar-se à verdade conhecida como tal ou fazer-se passar por verdade aquilo que é mentira!... Em suma jogar às ‗mascaradas de carnaval‘ (as mascaradas da ‗Corte‘...), as mais despudoradas e letais!...

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A gramática original do Iluminismo preconizava a Racionalidade e a Transparência, tanto no discurso como nas actuações e atitudes, em nome da Verdade da Vida, tomada como Regra. Mas as promessas do Saber (o ‗sapere aude‘ kantiano, dirigido a todos os cidadãos) e da Razão, que nos advêm da gramática do Iluminismo, as Sociedades dos últimos três séculos viram-nas fracassar redondamente. O mito da Razão e da Luz engendrou os seus contrários; mais e pior: quanto mais tudo surge transparente e sem enigmas, mais é sentida a necessidade, por parte dos Poderes estabelecidos e seus Aparelhos institucionais, de pressupor e estabelecer um reino reservado de opacidade e segredo. Em última instância ou análise, isso acontece assim, porque não se saiu do hemiciclo (globalizado em geometria esferóide) do Objectivo-Objectualismo. Não se atingiu o nível profundo das veras âncoras sociais-societárias, que são as Consciências dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Na verdade, só elas, num processus de viva dialéctica tensional, detêm a capacidade e a dinâmica susceptíveis de ultrapassar as contradições do Princípio de Identidade e Não-Contradição. Assim, quando a lógica da Inteligência/Razão é assumida e resolvida, apenas ou primacialmente, no hemisfério do Objectivo-Objectualismo (sob os comandos e a chefia dos Poderes estabelecidos), as contradições lógicas e societárias não deixarão de se avolumar como Torres de Babel. Eis por que as contradições da dialéctica do Iluminismo se multiplicaram e avolumaram, de modo ciclópico, nos últimos três séculos. Dir-se-ia, pois, que o Nouveau Régime (resultante das Revoluções sociais e políticas modernas) não alterou o Ancien Régime, de modo satisfatório e substantivo. Muito longe disso... Apenas se limitou a vestir a ‗nova criatura‘ num guarda-roupa diferente!... ‗Ecclesia docens‘ e ‗Ecclesia discens‘; elites e massas; dirigentes e detentores do Poder, dirigidos e súbditos; a própria grelha das classes sociais, que vinham da antiga escravatura e da servidão da gleba, na Idade Média, tudo isso permaneceu substantivamente, na Idade Moderna ocidental, apenas com alguns retoques no vestuário. A própria monarquia compaginou-se com os regimes republicanos, sob os modelos do constitucionalismo, o que permitiu que o ‗hereditário‘ (monárquico) se misturasse e confundisse com o ‗adquirido‘ (republicano), à semelhança da combinação de natural/genético e dados adquiridos na escala antropológica e na antropogénese geral. Numa palavra, o Dualismo metafísico-ontológico, que se acha na base estruturadora de todo este universo ideológico, manteve-se na Cultura moderna ocidental, a 111


tal ponto que não podia haver outros regimes democráticos a não ser os da democracia representativa (liberal — dizia-se —, mas dentro de um liberalismo que nunca poderia ser o de todos os cidadãos...), e o poder (apenas político...) estabelecido, dizendo-se, embora, oriundo do sufrágio pretensamene universal, prosseguia com a sua aura ideológica do sagrado e do secreto, tão do agrado do Ancien Régime. Literalmente, ter-se-á de confessar e declarar que não se tocou na Grund-Struktur foncier da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. Em resumo, se ‗a Cultura é um guia de escolhas para o futuro‘ (como defende, em princípio, João Caraça, in ‗JL‘, 1-14.12.2010, pp.36-38), o certo e sabido é que, nas nossas Sociedades ditas democráticas, nem todos podem fazer as escolhas que lhes dizem repeito, quer no concernente aos seus próprios desejos e vocações, quer no atinente ao bem comum que a todos diz respeito, a partir do seu estatuto de cidadãos/cidadãs. J.C. assevera e defende, nesta entrevista, uma ideia central, em termos de Cultura crítica, de base científica, a saber: ‗a ideia não é mudar tudo; mas a mudança é permanente‘ (ibi, p.36)... só que as ideias chamadas perigosas são sistemicamente esconjuradas e proscritas pela ideologia do Establishment luso, de tal modo que não pode haver pensamento estratégico autónomo. O filho desse grande Intelectual revolucionário, que foi Bento de Jesus Caraça, bem se esforça por recuperar a herança criticista do pai, designadamente no que tange à superação da divisão/oposição tradicional entre elites e massas, por ele preconizada: por exemplo, essa ideia perigosa de ‗não haver oposição entre cultura das elites e das massas, como defendia o meu pai (Bento de Jesus Caraça), nos anos 30, porque a cultura é um todo, onde se articulam as várias culturas de grupos da sociedade, sendo ela própria um palco de conflitos, de negociações e consensos‘ (ibi, p.37). J.C. sabe que a Identidade nacional assenta sobre três factores: ―Património, Cultura e ideia de Futuro. Uma sociedade com Património, sabe de onde vem. Sem Cultura, não existe por definição. E a ideia de Futuro é fundametal. Sem projecto não há identidade‖ (ibidem). Umberto Eco repartia os intelectuais em dois grupos distintos: os ‗integrados‘ e os ‗apocalípticos‘; mas esqueceu-se de discernir no grupo dos ‗apocalípticos‘, o subgrupo dos contestatários utopistas consequentes. J.C. parece enquadrar-se no grupo dos ‗integrados‘, quando procede à seguinte análise da situação nacional (ibidem): ―Vivemos num mundo onde a soberania tem sido erodida, nomeadamente com a globalização, que implica uma série de actores fora das nossas fronteiras, que não depen112


dem dos governos e que têm influência política sobre o que se passa. Nos tempos que correm não é preciso dizer mais nada. E um grito de mais autonomia, aqui, é realmente contra uma série de poderes e logo imediatamente contrariado, vilipendiado‖. Entretanto, ainda lhe sobra alguma coragem crítica, para apostrofar (ibidem): ―Quando dizemos que são as livres forças do mercado que regulam a sociedade, o que se está a querer dizer é que são os tubarões que vão mandar‖. Dir-se-á que as posições de J.C. são as de um resistente resignado. Ao patrocinar a elaboração e a publicação do livro anunciado ‗Ideias Perigosas para Portugal‘, ele sabe, muito bem, que se tem de apostar nos instrumentos da Educação: ―Temos que educar pessoas que saibam pensar pelas suas cabeças. É a única maneira. E é realmente importante termos ideias próprias que propomos aos outros‖ (idem, ibi, p.38). De resto, ―esta é a beleza da democracia, termos as decisões suportadas por um maior número de intervenientes, Aqui está uma daquelas ideias perigosas que tem de ser continuada. Se algumas têm prazo de validade, é melhor nunca deitar esta fora‖. — A democracia representativa liberal, nos seus estereotipos habituais. À rebelia desta galáxia da Democracia, que tão dificilmente vai forcejando um novo Caminho, o que tem acontecido, ao longo de mais de dois milénios de História da Cultura/Civilização do Ocidente (hoje em transe de globalização), é a sistémica mordaça, domesticação e controlo do mundo dos Saberes, por parte dos Poderes societariamente estabelecidos. Esta nossa Civilização/Cultura sempre se tem pautado pelo Poder-Dominação d’abord, nas suas expressões e manifestações oficiais, — o que nunca foi oficialmente contestado, à excepção das mensagens e vidas primigénias exemplares de SÓCRATES e de JESUS. Todos os seus adversários ou inimigos eram considerados herejes ou cismáticos, subversores da ‗Law & Order‘. Eis porque a Cultura/Civilização do Ocidente foi historicamente cauterizada por sistemas dogmáticos e inquisitoriais, e por processos subsequentes, considerados inovadores, que, não obstante, mantiveram imperturbável o uniformismo societário e a unidimensionalidade na Moral e nos Costumes, bem como nos padrões antropológicos. Ora, o vero e autêntico primado é detido pelo Saber, não pelos Poderes. Esse precursor da vera e autêntica Modernidade ocidental, que é Michel de Montaigne (no séc. XVI), sabia-o e demonstrou-o muito bem nos seus famosos ‗Ensaios‘. Descendente de ‗cristãos-novos‘, ele é o vero fundador da Antropologia criticamente moderna. Adepto do cepticismo pírrico (que sustenta, ao mesmo tempo, que a razão sozinha é insuficiente para o conhecimento do universo e que os sentidos só nos mostram a 113


aparência das coisas; daí que não devemos fazer juízos apriorísticos...), Montaigne discerne com sagacidade a distinção e a distância entre a intenção e a acção e profliga o parergo corrente que ele enuncia como segue: ‗as pessoas consideram bárbaro tudo o que lhes é estranho‘. (Cf. Toby Green, op. cit., p.298, p.448). M. enaltecia a liberdade de pensamento e de expressão. ―Quanto à Inquisição, era precisamente aquela liberdade de pensamento o elemento mais perigoso e o que era mais necessário punir; [apesar de não ser criado como criptojudeu], poderá surpreender alguém que um descendente das suas vítimas exaltasse as ideias que a Inquisição considerava mais perigosas?‖ (idem, ibi, p.298). Convém não esquecer que a moderna visão científica do Mundo é filha directa do cepticismo pírrico (do fil. grego Pírron de Élis: c. 360-270 a.E.C.), adoptado por Michel de Montaigne. Nesta vertente, por mais paradoxal que pareça, até a própria I.C.R., na sua doutrina da Contra-Reforma, se socorreu do argumento de M., ‗ao decretar que a fé é o único caminho para alcançar a salvação‘ (cf. ibi, p.300); estava aberto o caminho que iria converter o dogma da fé numa opção racional, entre outras!... Dentro do círculo noético-heurístico, encarado agora criticamente, nunca mais se poderia invocar o conhecimento como o mal da humanidade e a implicada ignorância, imposta pela religião, como elemento fundamental da fé religiosa. Mas os movimentos do Conhecimento crescente (a Investigação e a Pesquisa) deixaram de constituir uma Ameaça estrutural, ao longo dos cinco sécs. posteriores da Cultura/Civilização do Ocidente?!... É óbvio que não, como toda a Gente (académicos ou não, chefes religiosos ou políticos) pode constatar, É só abrir os olhos e ter alguma vontade de ver, não apenas olhar. Com efeito, ao fim e ao cabo, as Sociedades que não são capazes de se conduzir, nos seus procedimentos e nas suas praxeis societárias, pela gramática (democrática) do primado do Saber sobre o Poder, mais cedo ou mais tarde, acusam patologias de tipos diversos e tornam-se neuróticas (vd. ibi, pp. 325-355), ou esquizofrénicas/paranóicas (vd. ibi, pp.356-381). Um só exemplo dessa Sociedade inquisitorial neurótica do séc. XVII, em Espanha (cf. ibi, p.335): ―Chamizo foi condenado por desflorar numerosas beatas. Os sintomas provocados pelo seu método de confissão estavam fora do alcance da explicação inquisitorial: ―Logo que se confessam aos seus guias, estas mulheres sentem uma estranha afeição por eles e perdem-se em grandes tentações da carne. Não tardam a sentir ímpetos loucos, vão procurar os seus guias espirituais e eles beijam-nas, abraçam-nas, 114


põem-lhes as mãos nos seios e cobrem-lhes o coração, garantindo-lhes que aqueles contactos não são pecaminosos, que os promovem para que elas se sintam felizes, para as consolar e para as ajudar a libertar-se daquelas sensações... e algumas delas vão para além destes contactos, enfiam as línguas na boca deles, tocam-nos nas partes íntimas e atiram-se nuas para cima da cama, juntamente com eles‖. — Os alumbrados e alumbradas de Sevilha da década de 1620 ficaram célebres, na história da Inquisição espanhola. Esta atmosfera espiritual e ideologicamente fanatizada repercutia os seus efeitos em termos sócio-doutrinais, no próprio âmbito sócio-político. A propósito da tripulação do navio Nuestra Señora de Monserrate (que fez a viagem de Cacheu, na Guiné-Bissau, para Cartagena das Índias, na Colômbia, em 1634, T.B. (op.cit., p.321) faz-nos a seguinte recensão crítica. ―O secretário [à chegada do navio] tratou de fazer um exame minucioso. Mas não encontrou livros proibidos pela Inquisição e sentiu-se satisfeito por terminar a inspecção sem tomar qualquer medida. Os livros proibidos seriam anátema para a Inquisição, mas as terríveis condições do contrabando de escravos não mereceriam qualquer menção do lacaio do Santo Ofício. A inacção do funcionário justificava-se teologicamente, pois a Santa Sé concedera uma certa legitimidade ao tráfico de escravos, considerando-o uma maneira de salvar almas. Na realidade, quantas mais almas se amontoassem naqueles pútridos santuários de madeira apodrecida a rolar pelo oceano, melhor. O que certamente revela que nenhum dogma é suficientemente divino, para justificar um apoio firme da nossa parte‖. Combatendo, não só o tráfico de escravos, mas a própria condição da escravatura, foi preciso esperar pela obra célebre de Bartolomé de las Casas, ‗A Brevíssima Descrição da Destruição das Índias‘ (em 1659-1660), que o jesuita Francisco Minguijon logo censurou em 1659 e fora, posteriormente, incluída no Index Librorum Prohibitorum. No seu parecer, podia ler-se: ―as histórias injuriosas para a nação espanhola devem ser apreendidas... mesmo que contem a verdade‖ (cit. ibi, p.321). Tudo e sempre dentro da cartilha da Potestas d‘abord. A hermenêutica da Verdade objectiva, no hemisfério das ciências psico-sociais e/ou humanas não passa de uma ilusão beata!... Procedendo ao balanço sócio-cultural e histórico dos processos da Inquisição e do ambiente societário, escreve Toby Green (op.cit., p.324): ―A ideologia que sustentava o processo provocou o declínio dos países peninsulares em dois aspectos funda115


mentais: primeiro, por fomentar uma filosofia, o cepticismo, que vibraria um golpe mortal na Inquisição durante o Iluminismo e, segundo, por ajudar a estagnação da cultura, a partir da qual a Inquisição se desenvolvera, tornando-a incapaz de combater a ameaça que emergiu durante o século XVIII‖. Em termos gerais, esta situação psico-societária/cultural foi o resultado de um modus operandi, onde campearam os efeitos e consequências perniciosos e mortíferos de um suposto ‗Bem‘, superiormente imposto (em nome de uma suposta Divindade...), por procedimentos hierárqucos e dogmáticos, sempre norteados por uma pretensa cartilha objectivo-objectualista. Ora, à luz desta diabólica ‗Forja ideológica‘, ter-se-á de concluir que a ignorância estúpida e forçada da Inquisição no Poder e o despotismo iluminado das ‗Lumières‘ e do ‗Enlightenment‘ e da Aufklärung dos sécs. XVIII e XIX e XX, como moeda nova e redentora da Cultura ocidental, não são outra coisa, em última análise, senão as duas faces da mesma medalha, que é a sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. Hoje, estamos perfeitamente nas condições criticistas adequadas para percepcionarmos esta tese: na era do que nós chamamos, no C.E.H.C., a Pós-Modernidade positiva e crítica.

„LUMIÈRES‟ CASADAS COM O DESPOTISMO ILUMINADO

O Despotismo iluminado das Lumières não chegou a romper o odre da Inquisição e do „Santo Ofício‟ da I.C.R.: a Cultura do Poder-Condomínio.

Entretanto, os ideológicos ventos ciclónicos que, no séc. XVIII, irradiaram dos movimentos da Franco-maçonaria para as nações ibéricas, dominadas pela Inquisição, começaram a produzir os seus efeitos no desassossego societário. Fernando VII de Espanha (que sucede a Filipe V em 1746) foi instado pelo seu confessor, o jesuíta Francisco Rávago, a publicar (em 2 de Julho desse ano) um édito contra os maçons, cujo número (assustador) era avaliado, nessa altura, segundo os livros e as declarações públicas da sua Congregação, em quatro milhões. (Cf. op.cit., p.356, p.360).

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Como era de prever, ―o influxo de uma nova aristocracia francófona trouxe problemas à Espanha. A França estava no centro do Iluminismo do século XVIII, cujos princípios a Inquisição elegera como os grandes inimigos do seu último século de vida. Durante os primeiros anos do reinado de Filipe V, os criptojudeus de Portugal deram o lugar a novos alvos: os pensadores iluministas, conhecidos por jansenistas ou pedreiros-livres‖ (idem, op. cit., p.356). Mas os movimentos sócio-culturais são lentos a produzir efeitos de monta nas estruturas da Sociedade; em Portugal, só na 1ª metade do séc. XIX começam a assomar os movimentos revolucionários (para além das obras do Iluminismo pombalino na 2ª metade do séc. XVIII: a revolução liberal de 1820 e a nova Constituição de 1822; a Carta Constitucional de D. Pedro IV (I do Brasil) e o movimento mais radical e popular do Setembrismo, em 1836. O peso terrivelmente negativo e pernicioso, em termos psico-sócio-culturais, da Inquisição nos dois países ibéricos, ainda hoje é difícil avaliá-lo adequada e criticamente. Escreveu o nosso autor (op. cit., p.33): ―De 1478 a meados do século XVIII, a Inquisição foi a instituição mais poderosa da Espanha e das suas colónias das Canárias, da América Latina e das Filipinas. No vizinho Portugal e nas colónias portuguesas da África, Ásia e Brasil, a Inquisição foi uma entidade da maior importância durante 250 anos, a partir de 1536. O que significa que a Inquisição foi uma força significativa em quatro continentes e durante mais de três séculos; falamos de um período que se estende desde a unificação da Espanha no reinado de Fernando e Isabel, no século XV, até às Guerras Napoleónicas‖. A intenção do livro em causa de Toby Green — escreve o próprio Autor (ibi, p.34) — ―é adoptar uma perspectiva mais abrangente, tentar avaliar o significado de toda a horrorosa instituição. A Inquisição lançou nada menos do que as primeiras sementes do Estado totalitário, do abuso racial e sexual‖. Esta aproximação e articulação entre as ideologias conservadoras e tradicionalistas e as ideologias modernas totalitaristas (aqui incluídas, obviamente, as marcadas e inspiradas pelo Despotismo iluminado) não podem esquecer-se nas análises críticas do Processo histórico, em chave de Emancipação/Libertação dos Humanos e suas Sociedades. É, com efeito, na década de ‘80 do séc. XV, que os aparelhos institucionais da Inquisição surgem em Espanha; e surgem aí, por iniciativa da Realeza e sob o seu ceptro institucional. A Inquisição surge em Espanha, no reinado de Aragão; é reinstaurada em 1478 pelos reis católicos Fernando de Castela e Isabel de Aragão. Foi estabelecida como Conselho Supremo da Realeza, por bula de Sisto IV. Intimamente 117


ligada à Coroa, tinha à sua frente o Grande Inquisidor, que era nomeado pelo rei e aprovado pela Santa Sé. Em 1484, Tomás de Torquemada (o 1º inquisidor-geral) cria o primeiro regimento de actuação da Inquisição Espanhola. Em Portugal, a Inquisição surge ca. de meio século depois, em 1536, no reinado de D. João III, que havia solicitado a Roma a sua instalação em território luso. Houve, sem dúvida, algumas diferenças na institucionalização e no funcionamento dos aparelhos inquisitoriais nos dois países ibéricos. Em 1482, o papa Sisto IV teve de intervir, junto da Inquisição Espanhola, no sentido de que ela só poderia continuar, se fosse aprovada pelos bispos respectivos da Nação (cf. T.G., op. cit., p.67). ―Em Julho de 1485, os Reis Católicos foram ao ponto de ordenar que as autoridades eclesiásticas de Toledo suspendessem bulas papais obtidas por cristãos-novos para os proteger do novo tribunal‖ (idem, ibi, p. 68). O papado deixou de intervir daí em diante. As pequenas diferenças na actuação das duas Inquisições dos países ibéricos têm, substancialmente, mais a ver com as índoles dos dois povos em referência, argamassadas ao longo das respectivas odisseias sócio-históricas e culturais. Todavia, em ambos os países, a nova atmosfera ideológico-cultural, criada pelo Tribunal da Inquisição, constituiu o fim da antiga tolerância e da convivência pacífica entre os fiéis das três religiões d‘‗O Livro‘. O que principiou a fazer caminho foi a sectarista pedagogia do medo e do terror, em cuja bandeira se inscrevia essa conclusão demencial, formulada de modo interrogativo: ‗Quem duvidará de que o que neste tribunal parece ser severidade é, na realidade, um remédio ordenado pela compaixão, para tratamento dos delinquentes?‘ (cf. ibi, p.43). Ora, em termos humanísticos, esta é uma conclusão de autoridades celeradas, integristas/fundamentalistas fanatizados, que não conhecem nem respeitam os Indivíduos-Pessoas humanos, qua tais, e suas consciências. Ao longo de dois milénios de história cristã, tal posição ideológico-cultural só poderá ser contrariada e radicalmente criticada pela mundividência esclarecida dos Gnósticos judeo-cristãos primevos, que rechaçavam o dualismo metafísico-ontológico, com as suas noções tradicionais de bons e de maus, de Deus e do Diabo!... Todos os Poderes estabelecidos, que se tomam na conta de omnipotentes e soberanos, geram nas estruturas societárias situações/padrões de esquizofrenia e paranóia; não sabem, de todo em todo, respeitar minimamente as consciências dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos (isto pressupõe, por definição, práticas democráticas). O que eles promovem é a sempiterna teoria/doutrina do Rebanho humano. 118


Na tentativa de vencerem as actuações contrárias e os seus inimigos, eles adoptam, sistematicamente, a figura do bode expiatório. Foi o que se passou na Inquisição Espanhola, depois da captura de D. Pablo de Olavide (em 14 de Nov. de 1776), um intelectual livre, que não temia mostrar-se como adepto do Iluminismo francês. Logo fizeram correr uma cançoneta do teor seguinte: ‗Olavide é luterano/Pedreiro-livre, um ateu; /Um pagão, um calvinista, /É judeu e ariano‘. (Cf. op. cit., p.376). As ameaças ao Santo Ofício foram alargadas, gratuitamente, a todos os males conhecidos!... São estupidamente patéticos os sentimentos e os juízos dos próceres da Inquisição, no último quartel do séc. XVIII, quando ela já entrava em retirada, perante as avalanches das novas ideias do Iluminismo francês (designadamente, Voltaire, Montesquieu, Rousseau). Por exemplo, o frade Andrés de la Asunción, ao censurar meticulosamente o livro (dado à estampa em Madrid, em 1776) ‗The Clamour of Truth‘, o que ele, aí, mais verberava era a situação de tais autores serem ‗cúmplices na tolerância‘ (cf. ibi, p.378). O que lhe dava a volta às tripas eram frases como estas: ―Tolerai os vossos irmãos, qualquer que seja a religião deles, tal como Deus as tolera‖; uma tal atitude obrigava um bom católico a ―dissimular, a manter o silêncio, a sofrer as zombarias acerca da vida monástica, ou do clero, da Inquisição... temos de comer com eles, viver com eles, falar com eles‖ (cit. ibidem). Mas havia, ainda, outras ideias que traziam engulhos e calafrios ao frade: ―A paciência e a brandura... são as mais fortes das armas... e o seu uso nunca será excessivo‖. Chegar-se-ia ao caso de ―não sentir cólera nas relações com os ímpios, o estrangular da fúria sagrada que satisfaz a santa vingança contra quem ofende o Criador?‖ (cit. ibidem). Era, afinal, toda uma ‗Casa‘ a cair em frangalhos, por obra e graça de ‗efeitos sísmicos‘!... A Inquisição em Espanha foi suprimida em 9 de Março de 1820, por decreto de Fernando VII, obrigado, através de uma revolta, a aceitar a Constituição liberal de Cádis (promulgada em 12 de Março de 1812), a qual constituiu o princípio do fim dessa horrorosa e demencial Instituição. Em Portugal, a abolição oficial da Inquisição deu-se em 1821, depois das fortes ferroadas que sofreu, no período pombalino (década de 50 do séc. XVIII). Citando M. Defourmeaux ‗L‘Inquisition Espagnole et les Livres Français au e

XVIII Siècle‘ (P.U.F., 1963), escreve o nosso Autor (op.cit., p.383): ―Disfarçados de defensores das liberdades, eles trabalham, na realidade, para a destruição da ordem política e social e, por conseguinte, da hierarquia da religião cristã... desta forma 119


pretendem fundar a sua liberdade quimérica sobre as ruínas da religião, uma liberdade que erradamente presumem que foi concedida a todos os homens pela natureza que, afirmam com temeridade, fez todos os homens iguais e dependentes uns dos outros‖. Agora, o comentário do Autor a enquadrar a tese hermenêutica de M.D. (ibidem): ―Podemos, assim, enunciar os inimigos e os amigos da Inquisição em 1789: os inimigos eram a liberdade, a igualdade e a fraternidade; os amigos eram o status quo e a hierarquia. A instituição continuou empenhada, com ardor, nas suas tentativas de censura. A proibição de livros e as buscas nas livrarias tornaram-se a sua principal função. Os arquivos secretos incharam com novos processos, pois os livros que promoviam o que o Santo Ofício considerava ideias ultrajantes eram publicados em número crescente‖. Contudo, o ‗Nouveau Régime‘ (saído da Revolução de 1789-95) não trouxe, urbi et orbi, o horizonte alternativo de um Mundo inteiramente novo, a começar logo pelo período de ‗La Terreur‘, nos inícios da 2ª fase da Revolução: o Despotismo iluminado prosseguiu, everywhere, como cartilha do exercício normal do Poder e das Mudanças sociais... até aos dias de hoje!... Os totalitarismos modernos (fascismos, nazismos, estalinismos, franquismos, salazarismos, democracias representativas ‗musculadas‘...) são herdeiros directos de toda a mundividência ideológica do ‗Ancien Régime‘ e, muito especificamente, da Inquisição e do espírito inquisitorial, que tem estigmatizado, sistemicamente, a Cultura dita cristã do Ocidente. O próprio modus faciendi ditatorial dos Mercados, que são habitualmente trombeteados como o espaço das liberdades por excelência, não se acha isento, como é óbvio, de tais estigmas. Deve aqui fazer-se referência a uma das obras maiores dessa filósofa do político e da política, que é Hannah Arendt: ‗As Origens do Totalitarismo‘ (Dom Quixote, Lisboa, 2008/3ª ed.). Um Livro distribuído por três partes, treze capítulos, e com 674 pp. nesta edição lusa: nem uma só referência (a nível de capítulo ou de subcapítulo) às origens inquisitoriais dos Totalitarismos modernos, ou seja, à continuação dos métodos e processos da Inquisição nos totalitarismos modernos e contemporâneos. Esta é a verdade sócio-histórica incontornável, por mais que estas teses custem a admitir aos turiferários e louvaminheiros acríticos da Modernidade ocidental!... No parágrafo que vamos transcrever, o nosso Autor fez jus, em boa parte, a esta nossa avaliação crítica mais alargada e global (ibi, p.387): ―A violência não era 120


certamente algo de novo no mundo. O que era novo, e extravasou para além dos limites da Península Ibérica, era a institucionalização da violência. O poder da Inquisição era um símbolo da força crescente do Estado, uma força que acompanhou a modernização. Foi o início do totalitarismo. E, ainda assim, no mundo da Inquisição, o apoio popular à agressão, expansão e perseguição encontrou sempre uma certa resistência‖. Dir-se-á que a Cultura oficial do Ocidente, dita cristã, está toda ela cauterizada, desde o paulinismo no N.T. canónico, por uma praxeologia uniformista de ordem sistémica, muito embora tenha assumido actuações repulsivas, nas práticas da Inquisição e do Santo Ofício (agora, Dicastério para a Doutrina da Fé...) e, em geral, prossiga assumindo a mesma pragmática essencial, meio-travestida de alguma ‗tolerância forçada‘, no comportamento generalizado dos próceres da I.C.R.. De resto, a cartilha do uniformismo, na Civilização/Cultura do Ocidente, atinge os próprios meios e processos da publicidade e das modas e do marketing (consumista...) da nossa contemporaneidade. Tinha razão (na passada década de ‘60) Herbert Marcuse, nas suas três obras principais, que então foram erguidas como bandeira crítica do Movimento Estudantil de Maio/1968: ‗Razão e Revolução‘; ‗Eros e Civilização‘ e, acima de todas, ‗O Homem Unidimensional‘. No Processo civilizatório, havia sido levantado um Farol crítico para a Navegação... Mas essa foi uma Revolução abalroada, como a de 1848, a que K. Marx chamou de ‗Primavera dos Povos‘!... Resta, agora, saber se essa dezena de revoluções (pretendidamente pacíficas) que, desde Dez. de 2010, foram empreendidas no mundo árabe/islâmico, e parece que ainda estão, pelo menos, parcialmente em curso (Maio de 2011), — resta saber se vão ter ou não, mutatis mutandis, a mesma ‗má sorte‘ (?!...) da ‗Primavera dos Povos‘ de 1848, ou da ‗Revolução do Maio 1968‘!... (Vide sobre a temática em causa: ‗Manière de Voir‘, Junho/Julho de 2011: ‗Comprende le réveil arabe‘.). Sabe-se que já cairam muito mais de um milhar de vítimas nos diferentes países afectados... Com o regime ditatorial de Bachar-Al-Assad, na Síria, a assumir o papel de campeão da repressão e da matança das populações, que se manifestam contra o regime. Na origem destes movimentos, está todo um mundo de desigualdades e de problemas sociais lancinantes. É contra esta situação que se ergue a movimentação das massas populares pela liberdade de palavra e de acção e pela recuperação de alguma dignidade humana. Há um pessimismo inveterado de que, habitualmente, se fazem eco os analistas ocidentais, nas mesas redondas em torno destas ‗revoluções pacíficas‘... Via de re121


gra, não se esquecem da Questão crucial: ‗Estarão as populações árabes/islâmicas prontas ou amadurecidas para a democracia‘?!... Também, aqui, os ocidentais se esquecem, em geral, das corveias do colonialismo e do imperialismo que o Ocidente impôs, historicamente, ao mundo árabe/islâmico. A balança da Sócio-História continua desequilibrada pelo cinismo e pela hipocrisia!... Na perspectiva da edificação do Futuro, o diapasão foi evocado por Alain Gresh, ao escrever, na conclusão do seu estudo de abertura (ibi, p.10): ―‘Nem Leste nem Oeste‘, recitavam os manifestantes iranianos em 1979, afirmando a sua vontade de confrontação, tanto face aos EUA como face à URSS. ‗Nem com o Ocidente nem contra ele‘, poderiam gritar os manifestantes de hoje através do mundo árabe, os quais afirmam uma vontade de independência e de soberania, num mundo que eles sabem multipolar. Eles julgarão o Ocidente, pela sua capacidade em defender os princípios de justiça e do direito internacional em todo o mundo e, designadamente, na Palestina. Mas eles não mais aceitarão que o seu governo utilize a luta contra o Ocidente, para impor a ditadura‖.

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MUDAR REALMENTE AS SOCIEDADES E O MUNDO — É PRECISO E URGENTE!... * O célebre autor de ‗Il Gattopardo‘, Principe di Lampedusa brandia, com ironia e sarcasmo q.b., o slogan: é precido mudar alguma coisa para que tudo possa ficar na mesma!... Esta doutrina estratégica tem sido admitida e praticada, historicamente, pelos diferentes Establishments, ao longo da história das Sociedades humanas. Denunciá-la é chover no molhado... A doutrina estratégica dos ‗pequenos passos‘ (inclusivè a leninista ‗dos dois passos à frente e um atrás‘...) revelou-se, historicamente, inútil e mesmo perversa ... na medida em que anestesia as massas populares para aceitarem a obediência e a submissão, em vez de assumirem a indignação e a revolta para enfrentar as necessárias e indispensáveis mudanças reais. No máximo, ela dá serventia ao Despotismo esclarecido. Nada mais... É absolutamente necessário e indispensável ultrapassar, em termos psico-sócio-culturais, aquela situação paradigmática tradicional, muito bem identificada, sarcasticamente, pelo poeta luso António Aleixo: ‗P‘rà mentira ser fecunda/e atingir profundidade/tem de trazer à mistura/qualquer coisa de ver-

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dade‘. Em suma, será preciso invocar e erguer a nova/antiga bandeira jesuânica: ‗Que a tua palavra seja: Sim, Sim. Não, Não. O que está a mais é do mau que procede‘ (Mt., 5, 37).

OS SINOS DOBRAM PELOS INTELECTUAIS CONTESTATÁRIOS A Pós-Modernidade tout court habituou-se (desde há cerca de três décadas) a funcionar sob a cartilha do ‗pensiero debole‘ (bem caracterizado por Gianni Vattino). Outras formas eufemísticas (mais ou menos equivalentes) identificaram a Sociedade em que vivemos (desde a ‗Queda do Muro de Berlim‘ em 1989 e o ‗Colapso da URSS‘ em 1991, para estabelecer o marco divisório mais aparente) e chegaram a dar títulos a livros, tais como: ‗A Sociedade do Espectáculo‘ de Guy Debord; ‗A Derrota do Pensamento‘ de Alain Finkielkraut; ‗A Era do Vazio‘ e ‗O Império do Efémero‘ de Gilles Lipovetsky. À superfície, dir-se-á que a Dinâmica forte da Modernidade ocidental desembocou no movimento inercial da Pós-Modernidade, onde o individualismo e o liberalismo dos poderosos e dos ricos vieram a triunfar à custa da exploração e da opressão dos trabalhadores e das massas populares, bem como a expensas dos cidadãos e dos seus direitos inalienáveis, cuja defesa e segurança já não são garantidas, como antes, pelos seus respectivos Estados; o imperialismo (a um só tempo subtil e grosseiro/grotesco...) dos Mercados, no processus da globalização tecnológica e financeira, impôs-se, absolutamente, aos Estados-Nações (em nome do Pseudo ‗Free Market‘). A nova situação pode resumir-se como segue: O Economicismo (o que Aristóteles denunciara sob o termo de khrematística) levou a melhor sobre a Política, a Política Democrática dos Povos, que deveria manter-se, segundo a tradição clássica, no seu lugar do comando social-societário. Os indivíduos, no novo contexto, foram espoliados da sua condição bio-cultural de pessoas livres e responsáveis. Começou, então, a fazer o seu caminho o ‗pensiero debole‘, identificado criticamente pelo filósofo italiano G. Vattimo. Ora, o C.E.H.C. continua a resistir, encolerizado e sem dar 125


tréguas; e a tersar armas por um Pensamento Forte, como é próprio e específico da gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. por isto mesmo, a nova Era (em que sobrevivemos...) deverá ser designada e assumida como Pós-Modernidade positiva e crítica, com o objectivo de estilhaçar, de vez, as armadilhas e as emboscadas dos ricos e dos poderosos e dos ‗ingénuos‘, sem esquecer as ‗fraquezas do pensamento‘, tão fácil e ingenuamente admitidas por tantos intelectuais, que se tornaram ‗chiens de garde‘ do Establishment. Como e por quê o C.E.H.C. decidiu noivado e casamento com ‗La Pensée Forte‘?! Uma Resposta sumária: o Pensamento humano, enquanto fruto da Árvore que é o Cérebro e a sua Mente Consciente (como ensina António Damásio), sendo embora uma realidade espiritual para todos os efeitos e funções, ele é, igualmente, uma realidade com propriedades físicas (como advertiu muito bem Ludwig Wittgenstein), do tipo das possuídas pela ‗matéria eterna‘!.. Ora, para o C.E.H.C., há um só Infinito qualitativo: a Consciência de cada Indivíduo(humano)/Pessoa, dotada das capacidades da reflexão e da crítica e, eo ipso, de uma Autonomia individual-pessoal. Neste horizonte, estão arredadas, por definição, da arquitectura psico-sócio-antropológica, da caminhada existencial dos Humanos, nas suas Sociedades, todas as tentações e ciladas decorrentes da religião laica e profana do Objectivo-Objectualismo, o qual emergiu — deverá saber-se — na história das culturas e das civilizações, como irmão gémeo do Dualismo metafísico-ontológico (próprio das três religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘). Desta última realidade conectiva (agora enunciada) nunca se deram conta, criticamente, as tão celebradas Ciências positivas e experimentais da Modernidade Ocidental. Sempre têm preferido (para evitar as necessárias ‗guerras‘ com as religiões institucionalizadas...) o Discurso sistémico do Paradoxo e a consabida Separação estrutural entre a Teoria e a Prática, amancebada com o vezo do Paradoxo. 2010-2011: Establishments hodiernos. Diante do cortejo destas entidades, aparentemente diversificadas mas, na realidade, muito mais uniformizadas do que era de esperar (se o Desenvolvimento autónomo de cada uma delas tivesse lugar na panóplia dos Estados-nacões...), é legítimo levantar a Questão crucial: os Intelectuais contestatários (em nome de uma Humanidade digna e das boas e justas Sociedades humanas), serão eles ainda possíveis?!... Ou ter-se-á convertido, a grande maioria deles, à condição de ‗intelectuais orgânicos‘, identificados com os objectivos e os interesses dos Poderes Estabelecidos nas suas respectivas Sociedades nacionais?!... (Usamos 126


aqui a expressão, como é óbvio, em sentido diferente do de A. Gramsci, onde o referente da expressão eram as massas trabalhadoras e os operários, no terreno, a braços com as suas lutas de emancipação/libertação da exploração e da opressão.). É claro que, hoje em dia, na Pós-Modernidade positiva e crítica, a linha divisória sobre a possibilidade ou impossibilidade dos Intelectuais contestatários passa, precisamente, pela boa resolução do dilema estrutural/estruturante: Primado do Saber sobre o Poder ou primado dos Poderes sobre os Saberes, como acontece, generalizadamente, nas Sociedades contemporâneas, desgovernadas segundo as ideologias da Potestas d’abord. Assim, é à puridade que hoje se põe a Questão (do fermento na massa): Como se deverá conciliar, hodiernamente, uma Cultura sábia e fundamentada e uma prática militante, trabalho intelectual (plenamente responsável e autónomo) e acção contestatária, com o desígnio de transformar (in melius) a Sociedade em que se vive?! O sábio e o político oficial de turno encontram-se cada vez mais separados um do outro!... Os académicos continuam a admitir e a aceitar a crítica, mas já não a integram, por norma, na investigação da dimensão política de todos os problemas sociais, em suma, já não se dedicam à pesquisa da praxis societária, em termos críticos e holísticos. O seu estatuto de privilégio classista funciona como legitimação do seu propósito, limitando-o, desde logo, sem uma questionação ulterior. Desta sorte, o pensamento crítico hodierno acha-se cada vez mais aprisionado (e castrado...) nos enclaves fechados das Universidades e Politécnicos. E, se por vezes eles dão sinais de que há coisas a mexer, é quase inevitavelmente em função das mercadorias e da dinâmica dos mercados, não em função da Verdade e da Justiça, em que deverão funcionar e viver as Sociedades humanas qua tais. Depois da Queda do Muro de Berlim (1989) e do Colapso da URSS (1991), as Sociedades políticas e os Estados-nações deixaram de contar, em grande parte, com os conflitos ideológicos, próprios da época da chamada ‗convivência pacífica‘ entre os dois Blocos!... Desta feita, as Sociedades humanas entraram numa via mais acelerada de uniformização dos seus movimentos e processos. O livro que melhor assinalou este Processo sócio-histórico, na década de ‘60 do séc. XX, foi, sem dúvida, ‗O Homem Unidimensional‘ de Herbert Marcuse. O ‗homo oeconomicus‘ encontrava-se já, em passo acelerado, no exercício da sua órbita de uniformização, em ritmos exasperados. O neoliberalismo capitalista globalizado das décadas que se seguiram à de ‘80 constituiu a coroa de glória do mais draconeano e reducionista ‗‘homo oeconomicus‘. (O estudo sobre os intelectuais contestatários, levado a cabo por Pierre Rimbert, e titula127


do ‗La pensée critique dans l‘enclos universitaire‘ (in ‗Le Monde Diplomatique‘, Jan. de 2011, p.1 e pp.26-27) dá-se conta desta triste e desoladora realidade social-societária). Perante o Leviatão do Sistema Económico, o que aparece em cena são manifestações populares e algumas (dispersas e anódinas...) análises eruditas. Não há projectos políticos globais, de natureza crítica, a postular a transformação das Sociedades, nas vias desejadas e esperadas pelo Senso Comum crítico. As instituições ‗colonizaram‘ os intelectuais de turno que havia... O pensamento crítico tornou-se prisioneiro da clausura universitária, um reduto protegido das academias e universidades. Por um lado, aguçou o engenho e desmultiplicou-se; por outro, especializou-se academicamente e alinhou com as normas e o enquadramento próprio das instituições universitárias. Não foi difícil esta evolução, a partir já dos anos ‘60 e ‘70 do séc. XX. Pela própria índole e estatuto do seu trabalho, o intelectual acha-se dividido entre o sabedor e o político (daí que o seu trabalho intelectual ora pende para o foro do Poder, ora para o do Saber: e assegurar um comportamento e uma ética pautada pelo primado do Saber sobre o Poder não é nada fácil, na Cultura do Poder-Condomínio). (Paul Nizan denunciou muito bem estas situações contraditórias no seu livro ‗Chiens de garde‘, Agone, Marselha: 1932 1998). Que bom seria que Sociedades vivas e dinâmicas fossem capazes de articular, nas suas estruturas institucionais, os órgãos das direcções políticas, os dos produtores de ideias e os da mobilização das forças sociais. Se os males da ‗Crise‘ financeira/económica são hoje globais, também os remédios para a ‗Crise‘ deveriam ser globais, o que implica roturas com a tradição e o passado e o levantamento de Projectos críticos para as Sociedades humanas, à escala do Planeta. Uma conferência recente, na Goethe Universität de Frankfurt, em torno do tema ‗Heranças coloniais, contestações pós-coloniais: descolonizar as ciências sociais e humanas‘, procurava ilustrar a pertinência epistemológica e metodológica de uma perspectiva (feminista) pós-colonial em diferentes disciplinas das ciências sociais. Trata-se, porém, de pirilampos na noite... Ser radical é avançar até à raiz dos problemas, como lembrou K. Marx. Neste horizonte criticista, poder-se-iam mencionar, desde logo, três filósofos contemporâneos que, por não atingirem o paradigma latente do ‗Psico-Sócio-Ânthropos‘, designadamente no concernente à ‗revelação religiosa‘ e à natureza das ‗religiões institu-

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cionalizadas‘, deixaram a meio caminho os seus projectos críticos globais de Mudança das Sociedades humanas. (Estamos a pensar em Boaventura Sousa Santos, Alain Badiou, Slavoj Zizek). Consideremos, aqui, tão só, o caso do filósofo francês Badiou. Interroga-se, justamente, sobre os modos e as vias de realizar o ideal comunista e as condições de construção da vera Igualdade entre os Humanos em Sociedade. Mas o autor do livro encomiástico sobre S. Paulo (‗SAINT PAUL: la fondation de l‘universalisme‘, PUF, Paris, 1997/119 pp.) entende que, para poder cumprir os seus desígnios, tem de afirmar e defender a necessidade de uma ruptura radical com o consenso democrático, e não pela via (muito mais radical...) do aprofundamento crítico deste. A.B. mostra-se atento à necessidade de denunciar as mordaças que impendem sobre o funcionamento da economia capitalista e do sistema da democracia representativa. ―Partidos e sindicatos são votados, em toda a lógica, a serem colaboradores do capitalo-parlamentarismo, e a esquerda revela assim a sua ‗baixeza constitutiva‘. A liberdade de pensamento e de escolha, oferecida pelo liberalismo como pelo reformismo, é ilusória, inclusive no que tange a sua expressão através do sufrágio universal. Encontrando-se o indivíduo submetido às influências, aos egoísmos, às ignorâncias, a ‗recorrente estupidez do número‘, também designada por lei da maioria, não pode ser outra coisa senão tirania da opinião‖ (Evelyne Pieiller, ibi, p.27). Que faltou, aí, no horizonte crítico de A.B.? A evocação refundadora do Diálogo socrático a interligar os indivíduos na sociedade, por definição, em pé de igualdade (o que postula a exclusão das religiões institucionalizadas, enquanto tais). Por isso mesmo, A.B. acaba por admitir e aceitar essa constante do pensamento da Direita, que define a natureza humana como ávida e egocentrada, ‗naturalizando‘ desta sorte o sistema capitalista, que pretende exorcizar e condenar; nessa mesma linha, ele aposta na fecundidade da díade opositiva entre elites e massas. O distanciamento e um certo desprezo das massas, por parte das elites, são, assim, justificados em nome de um ideal revolucionário: ―o da igualdade verdadeira, que implica que ‗os outros existem exactamente como eu‘. Causa-lhe mossa o que ele designa por ‗a animalidade‘: o apegamento a si, à sua identidade, este mau fundo espontaneamente levado a preferir-se a si e que se expande na possessão. Sufrágio universal, sufrágio dos egos...‖ (eadem, ibidem). Eis por que, no horizonte crítico de A.B., a saída da caverna dos egos não é, nem progressiva nem programável; acha-se, tão só, na estrita depen-

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dência de ‗l‘événement‘. Nesta óptica, o que acaba por ser sobredeterminante é a ‗revelação religiosa‘. Dir-se-á, com o salmista: em tal horizonte, ‗nihil novi sub sole‘!... Podemos tomar o caso de A. Badiou (que tão generosamente se tem esforçado por reabrir o caminho para a reconstrução desse ‗ideário magnífico‘ que é o Comunismo) como paradigmático. A sua arquitectura ideológico-filosófica, volens/nollens, continua, ainda, a pagar o seu tributo inexorável, por formas tácitas e implícitas, ao que o C.E.H.C. tem denunciado vigorosamente, na Cultura/Civilização do Ocidente: o Dualismo metafísico-ontológico (de Platão e Paulo) e, no espaldar desta Cadeira magistral, a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. A I.C.R., ao longo da sua Tradição e Magistério bimilenares, não se tem ela encarniçado em reivindicar as duas classes societárias principais: a Ecclesia docens e a Ecclesia discens, ou seja, a distinção opositiva entre as elites dirigentes e as massas populares?!... A investigação crítica, capaz de desconstruir e impugnar a construção ideológico-filosófica de A. Badiou, nas suas estruturas básicas, terá de remontar, na História da Filosofia, a Sócrates e, mais além, até à axiomática do páleo-egípcio clássico, o deus Hermes Trismegisto (precursor de Mercúrio e das divindades clássicas das Comunicações). A sua mensagem é simples e estruturadora de todo um Mundo cultural uno e indiviso: ―Um divide-se em dois... é sinal de vida; dois fundem-se em um... é sinal de morte‖. Trata-se , aqui, em termos de crítica análise semântica: a) da vida biológica e da biogénese; b) da vida cultural, que surge na Cultura como uma espécie de ‗segunda natureza‘, própria dos seres que sabem que sabem, i.e,, dotados de uma inteligência reflexiva e crítica, ou seja, uma Inteligência consciente. O axioma de Hermes Trismegisto é óbvio que não se aplica à construção (artificiosa e súbdola...) do Dualismo metafísico-ontológico, nos horizontes de Platão e Paulo... Isto seria o cúmulo dos absurdos. Ora, é precisamente esta re-fundação que, v.g., o filósofo francês Alain Badiou pretende recuperar, em última instância, para fundamentar o que ele chama de verdadeiro comunismo. A vera Identidade dos Seres humanos, qua tais, não se pode preservar e defender por essa via... numa Sociedade que prossegue dividida, estruturalmente, em classes sociais, baseadas, por sua vez, na divisão opositiva original entre o sagrado e o profano, entre os sacerdotes e os leigos, entre Ecclesia docens e Ecclesia discens. A arquitectura ideológica de A.B. pressupõe, por definição da sua teoria, que as religiões institucionalizadas se mantêm na sociogénese comunista da humanidade, — o que resulta em uma ‗contadictio in terminis‘!... 130


Apesar de tudo, deparamos com um A.B. contundente e desassombrado nas 7 pp. do seu estudo sobre La ética y la cuestión de los derechos humanos (difundido pelo Grupo Acontecimento, nº 19-20/2000, através da Web. Algumas perícopas desse trabalho que dão o tom: — ―Os direitos humanos são actualmente uma ideologia do capitalismo globalizado. Esta ideologia considera que há uma única possibilidade no mundo: a submissão económica ao mercado e a submissão política à democracia representativa. Neste pé, o homem que tem direitos é o homem que tem esta dupla submissão. Ou então, o homem que tem direitos é uma simples vítima. Tem que despertar piedade‖ (p.1). No seguimento do texto, porém, ele não se dá conta de que este dualismo societário, nas sociedades capitalistas, é, afinal, respaldado pelo Dualismo metafísico-ontológico (platónico e paulino). Basta-lhe pensar que o seu homem sofredor e sujeito de direitos tem o direito de se revoltar e inventar uma nova possibilidade para a organização do mundo. Isso é, para ele, o Evento!... ―Chamaremos homem também àquele que diz que o impossível é possível, e ao longo de toda a história dos homens houve quem pôde dizer que o impossível era possível‖ (idem, ibi, p.2). A.B. está atento ao confronto inevitável entre as duas culturas: a da emancipação/libertação e a da conservação/dominação (ibi, p.3); e sabe que as potencialidades da 1ª são muito inferiores às da 2ª. Ele chega a dar-se conta de que ―têm sido os governos de esquerda em França quem literalmente desencadeou as forças neoliberais...‖ (ibi, p.5). Ele sabe que o direito à igualdade (social) entre os seres humanos não é uma coisa natural; é, antes, o resultado de uma invenção cultural (p.5). A. B. está, igualmente, atento à reivindicação das raízes sociais/identitárias para a vinculação dos indivíduos-pessoas ao seu milieu de vida: ‗ou haverá um caminho de singularidades ou a humanidade não será algo muito diferente das formigas‘ (p.6). ‗Não há possibilidade de um pensamento político novo sem vínculos profundos, fortes, sustentados com as classes populares‘ (ibidem). ―Os direitos humanos são os direitos a uma política que se inventa, o direito à liberdade e o direito a um pensamento rebelde, o direito infinito das possibilidades, o direito a fazer aquilo que ninguém fez, o direito a declarar que é possível aquilo que tem sido declarado impossível, o direito a usar livremente em política as palavras que se pretende fazer desaparecer: operário, camponês, desempregado‖ (ibidem). Em resumo: K. Marx brandiu o dilema encalacrante: socialismo ou barbárie; nós, hoje, temos de brandir um dilema mais (omni-toto-abrangente) largo e profundo: política ou barbárie (ibi, p.7).

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Para alguma coisa deve servir a Utopia (como reivindica Eduardo Galeano, in ‗Paroles Vagabondes‘: cf. ‗Manière de Voir‘ cit., p.29): é que, na verdade, é absolutamente plausível, para o senso comum crítico, um Mundo Alternativo. Quando, por exemplo, se assume, como bússola e norma, que ‗a coordenação da sociedade civil dinamizada implica a democratização do Estado e a socialização (não a supressão) dos mercados‘ (L.C., ibidem). O que está justamente em causa, em todo este Processus histórico, é a necessária e indispensável transição de Paradigmas humanos: do ‗Homo Sapiens tout court‘ (=‘Homo Sapiens/Demens‘, ‗Homo Sapiens/Nequam‘, ‗Homo Sapiens Rapiens‘), para o Homo Sapiens//Sapiens‘. Com efeito, é a própria Lei draconeana do ditatorial pseudo ‗Free Market‘, erguida pelo neoliberalismo capitalista global que, hoje em dia, está ameaçando ferozmente a própria liberdade de associação nos domínios das Cooperativas (como está acontecendo em França e noutros países...): estas vêem-se obrigadas a cumprir uma legislação comum de concorrência forçada, i.e., não livre, diante do simples facto/ameaça de perderem as respectivas subvenções do Estado (cf. ibi, p.23). É a própria liberdade de associação, nos domínios da Economia, que está ferida de morte. Entretanto, a bandeira crítica da famigerada ‗Crise‘ contemporânea encerra um significado nuclear, em que é preciso atentar: o processo começou com as ‗Gouvernances‘ de M. Thatcher e R. Reagan, embarcadas nas naus das novas T.I.C.‟s e do monetarismo de estrita observância à Friedman; neste contexto, a palavra d‘ordem era pronunciada por A. Pinochet que punha termo ao plano do Socialismo democrático de S. Allende, no Chile. Entretanto, são os chineses pobres que emprestam aos americanos ricos, para que estes mesmos americanos ricos possam comprar o que eles próprios fabricaram (cf. ibi, p.3). De igual modo, são , agora, os países periféricos e os menos desenvolvidos, que alimentam o fausto e a boa vida dos países ricos!... Numa palavra, assim como os pedagogos e os críticos de turno continuam a calar muita informação necessária e essencial, assim também, como é sabido, os cães só mordem, de facto, aqueles que têm medo... Em suma, continua em vigor o parergo: meio mundo engana outro meio!... Neste horizonte, onde impera a lei do mais forte e da Potestas d‘abord, não é difícil perceber o estado lamentável e contraditório em que se acha a Comunicação social dos Media tecnológicos (nas últimas fases da Web), onde as instituições públicas (embaixadas e empresas, entre outras) e os próprios Estados acusam, cada vez mais, dificuldades em conservar os segredos que é mister preservar. (Cf. ibi, pp.6-7). 132


Escreve Felix Stalder (ibi, p.7): ―Antes de criar WikiLeaks, Assange descrevia a estratégia de luta contra os poderes como segue: ‗Quanto mais uma organização é injusta ou ciumenta dos seus segredos, tanto mais o medo da fuga atinge a paranóia junto dos seus dirigentes e na turma dos decisores. [A divulgação de documentos] conduzirá, inevitavelmente, a um empobrecimento dos mecanismos de comunicação interna, a uma maior retenção da informação, e, em consequência, a um declínio dos conhecimentos, ao nível da organização inteira‘‖. Nem era de esperar outra coisa: ‗À bon entendeur un demi mot suffit‘!... Quanto ao segredo e às suas fugas, sob o ângulo da hiper-potência hegemónica, Serge Halimi (ibi, p.1) evoca, com pertinência, a posição lacónica e altaneira de Robert Gates, patrão do Pentágono: ―Os governos que tratam com os Estados-Unidos, fazem-no porque isso é do seu interesse. Não porque gostam de nós, nem porque confiam em nós, nem porque acreditam que nós sabemos guardar um segredo‖. — Potestas d‘abord everywhere. Que mais se poderia esperar da única hiper-potência hegemónica (sobrevivente à ‗Guerra Fria‘)?!... O que, aí, é expresso e patenteado não é outra coisa senão a ideologia do Primado absoluto do Poder sobre os Saberes. Por este caminho, não haverá Futuro (digno do Nome) para a Humanidade. Os caminhos da vera e autêntica Democracia não se fazem pelas vias tortuosas do Pseudo „Free Market’ e das encadeadas ditaduras de turno dos Mercados. Aqui, o que acontece são os intermináveis jogos (tipo esconde/mostra...) das Economias dos Estados e das Multinacionais (que tantas vezes suplantam, nos montantes dos P.I.B.s, a escala dos primeiros...), as quais desembocam nas encadeadas ditaduras de turno dos Mercados. Esta situação paradigmática, como é sabido, conduz, estruturalmente, aos comportamentos e às doutrinas do não-respeito sistémico dos Direitos Humanos, em 1º lugar, e dos Direitos dos Cidadãos, em 2º lugar. A situação-padrão pode caracterizar-se como segue. No seu estudo, De Brest à Vladivostok, ‗grand jeu‘ autour du pétrole et du gaz, (in ‗Manière de Voir‘, Fev.-Março de 2011, pp.54-63), Régis Genté escreveu a concluir (ibi, p.63): ―Para além destas diferenças, os ‗pequenos países‘ poderiam muito bem sair a ganhar do ‗grande jogo‘: eles seriam, desde logo, menos constrangidos a seguir a via imposta pelas potências dominantes. Se, por exemplo, o discurso democrático do Ocidente é prejudicial aos interesses dos dirigentes centro-asiáticos ou caucasianos, eles podem sempre virar-lhe as costas, uma vez que Pequim e Moscovo não são nada exigentes na matéria... A dizer a verdade, Washington ou Bruxelas também nunca o são. Os imperativos 133


estratégicos conduzem-nos, frequentemente, a relegar os direitos humanos para segundo plano, o que descredibiliza consideravelmente os valores ditos ‗ocidentais‘, nos quais os poderes da região não vêem senão uma arma ideológica. Desde 2003, para abafar as críticas, os seus dirigentes fazem rodar, mês após mês, um discurso a seu jeito, ‗oriental‘, para construir, entre eles, a democracia. Entretanto, a corrupção reina como senhora no ‗grande jogo‘: o maná do petróleo e do gás, indiscutíveis riquezas nacionais, escapa, no essencial, ao controlo democrático dos habitantes destes países‖. Como se poderão ultrapassar tais situações, em boa e honesta verdade? Eis a grande Questão que se tem de formular, diante das muralhas da cidade. Em Março de 1975, Frédéric Langer escrevia um artigo titulado: Vision apocaliptique et optimisme volontaire (ibi, pp.68-69). Podemos dizer, infelizmente, que, hoje, a humanidade continua a (dis)funcionar com o mesmo dilema (pois é disso que se trata...) sobre o fio da navalha. O diapasão do artigo era formulado assim (ibi, p.68): ―‘Corremos para a catástrofe!‘ Desde a Bíblia aos pregadores de turno, a ameaça de um apocalipse conta na lista dos argumentos de autoridade. Após a IIª Guerra Mundial, a ideologia catastrofista profetisa o aniquilamento nuclear e a explosão demográfica. A partir dos anos ‘70, ela prospera em torno do tema da penúria energética. E, no momento presente, não é nada de bom agouro assinalar toques de alerta ou toques a finados‖. Hoje, como ontem, apesar de ultrapassado o período turbulento e angustiante da chamada ‗Guerra Fria‘, o dilema entre o horizonte apocalíptico e o optimismo voluntário (construído em sede individual, sem lastro objectivo e comum de base...) prossegue candidamente, à rebelia de uma crescente e alargada consciência crítica das situações, tal como se deveria impor. Não há maneira de vermos a humanidade atingir a sua maioridade (como postulava I. Kant)!... Após um quarto de século de experimentações de uma globalização mecanicística e predatória, que acarretou, para os trabalhadores e para os indivíduos-pessoas/ /cidadãos, mais desemprego e trabalho precário, ao lado de uma enorme perda de direitos adquiridos e consagrados nas Constituições políticas dos Estados, em suma (e tudo somado) muito mais males do que bens, é tempo de começar a centrar e a polarizar a edificação da Economia política nas raízes dos trabalhadores/cidadãos, na dimensão local, onde habitam e vivem as pessoas singulares e concretas. Isto mesmo não é outra coisa senão a adopção do primeiro princípio de uma Economia humana verdadeiramente socialista: o princípio do Contar, primeiro e acima de tudo, com as suas próprias Forças e Potencialidades. 134


É que só um Projecto (alternativo) de índole autenticamente socialista é capaz de corrigir e superar as contradições e os malefícios estruturais do Sistema capitalista. E este, sobremaneira nesta sua última fase (ainda imperante...) do neoliberalismo planetário sans ambages, o que tem posto em marcha é, precisamente, a exasperação, até ao paroxismo, dos seus malefícios e contradições estruturais: aumento do desemprego e do trabalho precário, como nunca havia acontecido; alargamento e aprofundamento do fosso entre ricos e pobres, bem como o aumento exponencial da pobreza e da miséria e da fome no Mundo; desregulamentação endémica, que acabou por submeter a Economia real a uma Finança autónoma a funcionar em catecismo predominantemente especulativo; inflação sem balizamentos; dumping social, que só conduz à situação patética e trágico-cómica, onde, por absurdo que pareça, são os pobres e os países periféricos a pagar as facturas e as despesas dos ricos e dos países centrais; aumento exponencial dos défices orçamentais e das dívidas externas (públicas e privadas) dos Estados-nações, a começar pelos mais periféricos e menos desenvolvidos e a terminar nos centrais e mais desenvolvidos. Num artigo de 2005, titulado Rouages et Ravages du Mouvement Perpétuel (ibi, pp.80-83), o eng. Philippe Mühlstein começou a abrir caminho para este novo horizonte crítico. Na janela em letra destacada, que dá o tom do artigo, pode ler-se: ―O custo dos transportes não cessa de baixar, — pretexto para fazer viajar os bens de consumo, como as pessoas, sempre mais depressa, sempre mais longe. E bem assim para escolher os lugares de produção que autorizem os lucros máximos em detrimento das condições de trabalho‖ (p.80). A dinâmica de corrupção e perversão de todo o Sistema económico começa, precisamente, aí: bens e pessoas viajam... e, cada vez, com mais velocidade, para distâncias cada vez maiores!... Não estabeleceram os preceituários constitucionais da própria União Europeia (UE) a livre circulação de capitais, pessoas, bens e mercadorias?!... No caldeirão, aparece tudo misturado: as pessoas e as coisas, os Sujeitos e os Objectos... porque se parte sempre do pressuposto de que tudo tem um preço... as próprias pessoas!... E pretendem, assim, promover a boa Cultura e a boa Civilização a todo o Planeta!... A concluir o seu artigo, P.M. deixou a recomendação magistral (p.83): ―A equação ‗bem-estar + modernidade = numerosas deslocações‘ deve ser posta em causa. A tarefa, árdua, consistirá em pôr termo a mais de meio-século de condicionamento mental, que se acha na origem de representações sociais profundamente anco135


radas, em termos históricos. Falando com propriedade, do que se trata é de mudar de cultura. A ideia de diminuir as deslocações aumentando os seus preços chocará certamente. Entretanto, num quadro inicial onde reina o ‗mercado‘, só este aumento poderá pôr fim à função de variável de ajustamento, em aval, que a organização económica neoliberal obriga os transportes a jogar. A necessidade de os regular fortemente e de relocalizar a economia faz o seu caminho na opinião social. Só falta encorajá-la politicamente, o que resulta, sem dúvida, mais difícil, porquanto a reflexão dos cidadãos está, frequentemente, mais avançada do que a dos seus eleitos‖. Na verdade, a gramática, própria e específica, do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ não se pode compadecer com os trágicos mecanismos e devastações desse movimento perpétuo do Sistema capitalista, ancorado no sempiterno princípio excludente da Propriedade privada e do Lucro d’abord, e sempre alimentado pela Cultura do Poder-Dominação d’abord. É preciso e urgente, por conseguinte, mudar de rumo. O que levou o Processo da Civilização/Cultura da Humanidade a esta situação trágica?... Nas suas origens e raízes (mais remotas) estão três Factores estruturais/estruturantes (nos quais ninguém pensa habitualmente): A) O Princípio Motor do Deus trans-cendente e extrínseco (criador do Universo), que tem plasmado o pensamento e a acção dos Humanos; B) a Separação, sistémica, entre a Teoria e a Prática; C) a Mis-tura e a Confusão entre as Pessoas e as Coisas, os Sujeitos e os Objectos. Uma advertência final sobre a concepção da História, que deve ser assumida numa perspectiva duplamente crítica: A) em referência aos Objectos de que trata; B) em relação aos Sujeitos (humanos) que são os autores ou agentes daqueles. Quando, efectivamente, dizemos que a História é elaborada segundo a cartilha das exigências, critérios e dimensões económicas e sociais (à boa maneira marxista...), estamos ainda a ser vítimas da religião secular e profana do Objectivo-Objectualismo. (Cf. ‗Le Nouvelle Observateur‘, 7-13.10.2010, ponto 8 e quadro ao lado). A confirmar isto mesmo, do avesso, convirá advertir, por ex. a respeito da escravatura generalizadamente aceite (antes de meados do séc. XIX) dos negros e do tráfico negreiro, que a religião institucionalizada (os cristianismos e o catolicismo) funcionava, aí, como aparelho ideológico legitimador da escravatura dos negros, sob o pretexto de os arrancar do paganismo (cf. ibi, pp.20-21). Na verdade, o historiador crítico, para se empenhar honestamente na gramática da História como saber científico (não como ideologia ou cultura ideológica), terá de actuar com os sentidos bem abertos, v.g., aos fenómenos históricos descobertos atra136


vés da serendipidade (serendipity): segundo o Dic. Houaiss, esta consiste na aptidão, faculdade ou dom de atrair o acontecimento de coisas felizes ou úteis, ou de as descobrir por acaso. No plano das ciências, trata-se, portanto, de casos históricos, onde ocorreram descobertas felizes e inesperadas, as quais ficaram a dever-se a uma inteligência atenta e circunspecta do investigador e à dimensão do acaso, com exclusão, pois, do simples factor da lógica linear ou da necessidade histórica. (O ‗Expresso‘ de 27/11/2010, na Revista Única, pp.68-72, arrolou uma lista de 10 casos científicos, a que deu o título ‘10 ocasos da ciência‘, em que é sempre bom meditar.). Desta sorte, o Método histórico, que adoptou como Regra suprema, a grelha analítico-crítica da Dualidade crítica (em referência aos Objectos e em relação aos Sujeitos) só tem a ganhar com a aprendizagem dos meios e da sensibilidade próprios da serendipidade. Dir-se-á que as ocorrências históricas onde esta tem lugar representam, efectivamente, o locus privilegiado para essa aprendizagem. *

LITERATURA: ROMANCE OU ENSAIO?!...

Ao longo dos seis séculos da Modernidade ocidental (a começar com o Humanismo e o Renascimento nos sécs. XV e XVI), a Cultura/Civilização do Ocidente foi assistindo, progressivamente, ao lado da autonomização institucionalmente estanquizada das Teologias (vinculadas, por estatuto, às diferentes confissões religiosas), à institucionalização das Ciências positivas e experimentais (cada vez mais diversificadas no seu processus de especialização); ao movimento crescente de autonomização das Filosofias (expressas nos Tratados das diversas áreas ou especialidades, que as Teologias do Establishment sempre procuraram censurar e amordaçar...); e, em geral,

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à promoção e à prosperidade da Literatura e das Artes, nas suas diferentes formas literárias e modalidades artísticas. Quanto às políticas, que presidiam aos regimes e aos governos dos Estados-nações, só nos três últimos séculos (na era das Revoluções...) começaram a surgir os primeiros estudos sistemáticos, mais polarizados nas matérias do que nas formas e, em quase todos os casos, moldados no género literário do Ensaio. Dir-se-ia que os Tratados políticos autónomos só começam a emergir, timidamente, depois da IIª Guerra Mundial (já na 2ª fase da história da Sociologia contemporânea e das Ciências sociais, em geral). O Tratado Teológico-Político de Bento de Espinosa (1632-1677) constituiu uma excepção no seu tempo. Entretanto, o Movimento das Ciências positivas e experimentais (que havia criado as condições para a instituição do Progresso Tecnológico) e a dinâmica vigorosa das Tecno-ciências, primeiro, e, já no séc. XX, das chamadas Tenociências de Aparelho prosseguiram, na sua caminhada (cumulativa e imbricada...) triunfal, até aos dias de hoje. O Processo histórico foi fazendo o seu Caminho nesse horizonte, a tal ponto que o Progresso tecnológico foi, pura e simplesmente, misturado e confundido com o Progresso da Civilização (o que redundou num gravíssimo Erro histórico, com as suas sequelas: a História foi travestida de historicismo, naturalmente ao serviço dos Poderes Estabelecidos e da sempiterna Cultura do Poder-Condomínio). Neste contexto, Matthew Arnold (1822-1888), na 2ª metade do séc. XIX (em plena ‗revolução industrial‘ inglesa), viu-se obrigado a brandir o Discurso (crítico) das duas culturas (a das ciências e tecnologias, dum lado, e do outro, a das Humanidades), justamente em defesa dos princípios humanísticos (abastardados...), contra as marés altas do materialismo e do positivismo do processo civilizatório. E deverá, aqui, advertir-se que, em última instância, M.A. estava no caminho certo, atendendo à teoria-doutrina do C.E.H.C. que defende a Dualidade Epistemológica, contra o imperialismo absurdo do Monismo Epistémico, que vai desembocar na sacrossanta religião (secular e profana) do Objectivo-Objectualismo. Ora, no quadro sumariamente descrito, os famosos Ensaios de Michel de Montaigne (1533-1592), onde se exprimem, espontaneamente, os sentimentos e as ideias críticas sobre o Humanismo concreto e situado da sua época, constituem, sem dúvida, o paradigma de excelência (na história da Cultura do Ocidente) do que podemos chamar, na acepção mais ampla e profunda, a Reflexão filosófica, ainda não arregimentada no molde sistémico dos Tratados filosóficos (como veio a acontecer, 138


posteriormente, na Cultura moderna do Ocidente, muito especialmente a partir do padrão dos sistemas filosóficos, que foi o Cartesianismo). Por isso mesmo, os Ensaios de Montaigne bem merecem a grinalda desse género literário que, na História das Literaturas (nacionais... como se impõe, por princípio e enquadramento linguístico, antes de tudo) dá pelo nome (modesto... mas onde o pensamento é forte, apesar de muitas vezes duvidoso e céptico!...) de Ensaio. Jacques Derrida (na 2ª metade do séc. XX) produziu e deixou-nos, em legado, uma obra notável, centrada sobre o Projecto criticista da Desconstrução dos sistemas filosóficos. O seu programa crítico da Desconstrução dos sistemas filosóficos (arquitectados no espaço separado dos Tratados... encarniçadamente teóricos, por oposição à praxis e à pragmática da vida cotidiana) respondia ao desígnio salutar de aproximar a Reflexão filosófica da Vida e do que se consideram os géneros literários propriamente ditos (no caso em questão, o ensaio). Este movimento foi positivo e fecundo. (Em Portugal, encontrou um émulo contemporâneo, por ex. em Eduardo Lourenço). Contribuiu para democratizar e socializar a Filosofia e a Reflexão filosófica. No horizonte das Ciências positivas e experimentais e das Tecnociências, não houve, nos últimos três séculos, nenhum movimento, propriamente dito, de projecto/ /programa crítico da Desconstrução, fundamentalmente por duas ordens de razões: a) o que tem imperado, absolutamente, é o Monismo epistémico, ancorado no hemisfério das ciências físico-naturais, o qual acaba por tratar o outro hemisfério das ciências psico-sociais e/ou humanas, segundo a mesma cartilha; b) o que tem predominado, absolutamente, na organização e funcionamento das Sociedades humanas, é a Cultura do Poder-Dominação d’abord, que estabelece, inexoravelmente, o primado absoluto do Poder sobre os Saberes. Foi em meados da década de ‘60 do séc. XIX que Antero de Quental (18421891), ainda como estudante de Coimbra e empenhado nas lutas progressistas da Europa, publica o opúsculo ‗Bom Senso e Bom Gosto‘, que deu origem à célebre Questão Coimbrã. Quase em jeito de prova real e demonstração dos seus objectivos e intenções, o poeta edita em 1865 o livro de poemas titulado ‗Odes Modernas‘. Esta saga de Antero e do seu grupo, em luta contra o conservadorismo esteticista barroquístico, na Literatura, representado, na época, pelo patriarca das Letras, António Feliciano de Castilho, constituiu, sem dúvida, um padrão literário crítico, digno de funcionar como paradigma da Verdade estética em todas as Literaturas do Mundo.

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Quais eram, no essencial, os intuitos e os objectivos de Antero e do seu grupo de Coimbra, nessa circunstância histórica prototípica? Tersar armas e reivindicar, para o mundo da linguagem e do discurso literários, a presença viva e forte da Reflexão filosófica, do exercício responsável do Pensamento. A sua pretensão alargava-se, longe lateque, da prosa à própria poesia (que, por requerer mais cuidados técnicos formais, no concernente à métrica e à rima dos versos, poderia razoavelmente conduzir ao atenuar de tal preocupação...), em suma, a todos os géneros literários. As demonstrações de excelência desse Movimento literário, numa ampla e profunda dinâmica de Renovação, foram feitas, abundantemente, por esse Homem excepcional, que tanto brilhou na prosa como na poesia (foi um dos três maiores sonetistas da Língua Lusa!), nas virtudes cívicas como no seu carácter revolucionário (socialista da linha proudhoniana, ele escreveu, ainda, ensaios sistémicos, no horizonte da melhor filosofia alemã da época). Mas, em definitivo, tem a Literatura de ser Filosofia?! — Não. Basta-lhe que acolha, na sua home própria e específica, a Reflexão filosófica, como parte integrante e básica da Humanitas holística. Uma vez constituídas como áreas disciplinares autonomizadas na História geral da Cultura, as diferentes modalidades literárias, científicas, filosóficas e artísticas poderão prosseguir a funcionar dentro dos seus espaços próprios, desde que não resulte prejudicada a gramática holística da Humanitas: é que, nesta matéria de base, todo o reducionismo é deletério. Estamos a proceder a estas advertências críticas, porque, na nossa contemporaneidade, o Romance clássico-tradicional, que primava, a um só tempo, por preocupações estético-literárias e humanístico-críticas, transformou-se no cancro da Literatura, simultaneamente, por ser, de facto, numa boa maioria dos seus espécimes, o género literário de maior difusão e impacto na Opinião pública, e pelas marcas negativas, que tem vindo a adoptar, de anestesia do pensamento crítico e de embotamento das consciências humanas. Eis por que se tornou importante e decisivo celebrar a tese de António Guerreiro (in ‗Expresso‘/Atual, 15.01.2011, p.32), até para se poder encontrar algum bálsamo e arrimo, na necessária e indispensável desconstrução filosófica do contraditório e desgraçado Mundo em que vivemos. Reza assim: ―O regime que governa hoje o romance é o da proliferação cancerosa e o da mediocridade mimética, responsável por uma globalização romanesca, que faz deste género hegemónico um instrumento de dominação‖. O que produzem as obras e os best-sellers (sobretudo anglófonos...), 140


que se encaixam nesta classificação, é a promoção do não-pensar-criticamente, a sustentação da sempiterna teoria do Rebanho, nas Sociedades humanas!... A noção do romance como cancro da literatura (formulada, em 2001 pelo teorista da Literatura francês Henri Meschonnic), emergiu naquela árvore da história contemporânea onde havia triunfado o jornalismo e haviam proliferado, antes, as técnicas de storytelling e o tipo da ‗reportagem universal‘, de que falara Mallarmé no final do séc. XIX. Paul Valéry fustigava já no princípio do séc. XX a mediocridade mimética em muitas narrativas romanescas. Num texto de 1966, Roland Barthes, procurando dar ênfase à narrativa romanesca, ao récit, que se acha na sua base, argumentava que ‗são inumeráveis as narrativas do mundo‘. Tais advertências críticas eram feitas sob a bandeira de que, no universo humano, pensamento e linguagem/discurso devem subsistir e resistir sempre, na sua união indissolúvel, assinalando everywhere, a identidade e a pluralidade dos Humanos. Ainda predominava, então, o respeito pela pauta do realismo social e literário... e ainda não tinham emergido os modelos literários subservientes aos projectos neoliberalistas da conquista e da dominação planetárias, uniformistas e imperialistas do Mundo. Assim, para que o romance possa ser boa literatura, ele tem de atender às advertências críticas de Valéry e de Barthes. Tem de ser produzido no escritório do bom escritor, que tem algo a comunicar e a revelar aos seus semelhantes humanos; não pode ser ‗fabricado‘ na oficina dos agentes ou ‗cães de guarda‘ do Establishment. A linha Maginot, que separa a boa da má globalização actual do Mundo também passa pelas áreas da Escrita. A má globalização do Mundo (a que está em curso...) é absolutamente incompatível com uma autêntica República democrática das Letras. Com efeito, o romance contemporâneo, que se fez serventuário (prostituído) do mau e falso processo de Globalização, é a peste literária hodierna tombeteada pelos jornais de turno e recenseada pelos turiferários de serviço, em nome da promoção dos Poderes Estabelecidos. A tais agentes do Establishment, no concernente, por exemplo, às Identidades nacionais, não interessa, para nada, nem a Língua/Linguagem nacional, nem a sua Literatura e História da Literatura. E um Povo-Nação, que perdeu a sua Memória, não poderá esperar outro Futuro a não ser o da servidão e da dependência externa (e interna...). Vítimas do uniformismo (e das modas...) imperialista, e organizadas cada vez mais em estruturas piramidalizadas, as sociedades actuais estão a disfuncionar em 141


crescendo, segundo a cartilha procedente da ‗Teoria do Rebanho humano‘. Estava certo o investigador Pedro Magalhães (do Instituto de Ciências Sociais da Univ. de Lisboa), ao afirmar em entrevista recente (dada ao jornal ‗Público‘ de 8 de Jan. de 2011): ―A comunicação social não procura as pessoas que têm know-how sobre os diferentes assuntos, e essas pessoas também não se deixam procurar‖. Dir-se-á que este é o ‗fado‘ orgânico das democracias representativas liberais e da sua gramática ‗congénita‘!... Sempre atento criticamente a tais realidades, o ilustre sociólogo francês Pierre Bourdieu brandia, nestas circunstâncias, o conhecido refrão inglês: ‗The less you know, the better off you are‘. Explicitando em língua vernácula: quanto menos sabemos, tanto mais somos endrominados, instrumentalizados e enganados, amordaçados e controlados. Em convergência com a nossa mundividência crítica, António Guerreiro (in ‗Expresso‘/Atual cit., p.34) estabelecia a tese: ―O resultado é que, em vez das formas de racionalização da sociedade e socialização da cultura, em que jornalismo e universidade desempenhavam funções complementares e solidárias, temos hoje um campo jornalístico encerrado nas suas regras comunicativas, que abandonaram toda a ambição de universalidade própria das atividades intelectuais, enquanto a elite universitária se tornou um grupo social que se ocupa sobretudo de si mesmo e tende a perder o seu papel orientador para o conjunto da sociedade‖. Diz-se que a nossa é a época da Comunicação e do Divertimento!... Neste contexto, chega-se à conclusão (que se admite objectiva-objectualisticamente...) de que é complicada e complexa a Relação do Jornalismo com a Universidade e o Ensino Superior, em geral, enquanto bússola de orientação das Sociedades humanas. É óbvio que a culpa maior não será dos jornalistas, mas dos sucessivos Governos e dos políticos de turno... que prosseguem dando serventia ao neoliberalismo capitalista planetário, o sistema político-económico mais selvagem e predador da História. A chamada empresarialização das Universidades (em curso em Portugal e em outros países da U.E.), sob a categoria jurídica de ‗Fundações‘, caminha no mesmo sentido perverso. ‗Panem et circenses‘: era o slogan da doutrina política do Antigo Império Romano, perante as suas populações; a ‗Gouvernance‘ hodierna parece que já não precisa de se preocupar com a alimentação das populações... o Divertimento tornou-se mais importante (com o subsequente cortejo das desregulações e das anomias mais perversas e selvagens).

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É, de facto, neste horizonte do ‗Divertissement‘ d‘abord e everywhere (na esteira dos ‗circenses‘ da Latinidade da Antiga Romanitas imperial), que o Romance, enquanto suprema espécie literária internacional (sobremaneira em língua inglesa como ‗koinè diálektos‘...) se tornou a ‗literatura de entretenimento‘ por excelência, precisamente, na época do que podemos considerar a ‗Pós-Literatura‘. Este tipo de romance (podendo embora ser escrito em qualquer outra língua... e depois traduzido) tornou-se absolutamente hegemónico e o seu desígnio não é (seguramente...) o de acordar as consciências humanas e ajudá-las a levantar-se da exploração e da opressão (cívicas, profissionais, políticas). O que aqui se lamenta e profliga não é o Romance como género literário aberto, naturalmente, a todos os discursos; mas, precisamente, esse tipo hegemónico e pandémico de romance, com variações ad infinitum, e que, na realidade, tanto Valéry como Barthes, consideraram morto, por definição. É que, na vera e autêntica História, nada se repete (como já intuira Heráclito, na Grécia Clássica). Contudo, a Weltanschauung, marcada pelo Dualismo metafísico-ontológico, que nos é imposto na Cultura/Civilização do Ocidente, impede-nos, absolutamente, de adoptar essa gramática da História. A situação da doença mortal do Romance é bem caracterizada por A.G. (ibidem), quando escreve: ―Objecto de imitação infinita, o romance é também objecto de uma produção editorial, para a qual se tornou essencial a fabricação de romancistas. A máquina de fabricar histórias e de fazer da literatura o reino da instrumentalização e da mentira (que é, na verdade, o verdadeiro nome da ‗ficção‘, quando por razões comerciais, se passou a dividir os livros em duas categorias: ficção e não-ficção) acaba por ter este resultado paradoxal: o imperialismo do romance tornou-se a sua doença interna‖. Essa divisão em duas categorias (ficção//não-ficção) é o esquema seguido, por ex., pelo magazine inglês (internacional) de difusão e venda de livros, que dá pelo nome ‗The Good Book Guide‘ (sem dúvida, um dos mais acreditados). Do que, regra geral, não se dá conta é que todos esses trends perversos e desorientações são accionados e ocorrem sob os efeitos e influências deletérios do Método do Monismo Epistémico, sempre presente e actuante, cuja produção primigénia é a formação da Religião secular e profana do Objectivo-Objectualismo (que, por seu turno, constituiu a forja teórica do Capitalismo moderno, segundo o catecismo conhecido de Adam Smith).

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O SCARECROW DO MULTICULTURALISMO ENTRE O IMPERIALISMO E A DEMOCRACIA

Por que têm resultado gorados os processos do Culturalismo contemporâneo, tão apregoados ao longo das últimas três décadas? Por que têm falhado os projectos e os programas (político-sociais) do Culturalismo, como, por exemplo, na Alemanha (cf. ‗Newsweek‘, 15.11.2010, p.14), onde as soluções da miscigenação muito raramente chegam a ter lugar; como na França, no Reino Unido e em outros países desenvolvidos da U.E., onde os nacionais de um dado país e os seus i-migrantes continuam com os seus padrões de vida diferenciados, em termos económicos e sociais?!... A fenomenologia das causas encontra a sua explicação em duas ordens de razões: A) O que predomina e campeia, absolutamente, everywhere, é a cartilha do economicismo, própria do Sistema capitalista; aí, os Sujeitos humanos são percepcionados e avaliados, apenas ou primacialmente, como agentes de produção e consumidores... o resto é paisagem!... B) A estafada Questão do Multiculturalismo é, incontornavelmente, uma Questão básica da Educação (activa e passiva), a que os Sistemas 144


Educativos nacionais da U.E. (estruturalmente enfeudados ao Sistema capitalista) não estão preparados para dar a resposta adequada: por isso, a própria integração plena dos diversificados grupos nacionais de imigrados não tem sido eficazmente levada a efeito, mesmo que seja, tão somente, na área da Instrução e da Educação. Em chaveta panenvolvente, a Lectio, resultante da análise crítica da situação padronizada, é para nós óbvia: por definição estrutural, o Sistema capitalista de funcionamento das Sociedades (sobremaneira nesta sua derradeira fase do neoliberalismo globalizado) é absolutamente incapaz de acolher e sustentar as boas e adequadas soluções na matéria em torno da problemática do Multiculturalismo. Os handicaps e as contradições começam aí. O Multiculturalismo, neste contexto, não passa de um ‗scarecrow‘, um espantalho nas searas, para que a passarada predadora do grão não se aproxime!... Uma simples Regra de Bom Senso (crítico!) dir-nos-ia que é absolutamente necessário e indispensável regular o Capitalismo, que se tornou, por definição, um sistema selvagem e predador, uma vez deixado às sortes da sua cartilha objectivo-objectualista, que nunca é, por estrutura societária, impessoal e neutra: leva sempre a água ao moinho dos possidentes e dos poderosos... Para além (ou aquém...) da simples lei universal do Lucro, é um imperativo ético-político elementar pensar e estabelecer os resultados que se pretendem, em nome da boa ordem social-societária. Há-de chegar, um dia, o tempo oportuno de brandir esta exigência básica, contra todas as cartilhas do empíreo-criticismo e dos perversos jogos de moda em desfiles públicos para encher o olho, como se a hybris da Luxúria, no sentido mais amplo, fosse uma marca digna da Humanitas!... (Cf. nº cit. da ‗Newsweek‘, p.38: medite-se bem na entrevista dada pelo Prof. da Columbia Univ., Jagdish Bhagwati, subordinada ao título: ‗Stop Worrying About China‘s Currency‘. Aí, o Economista mostra-se justamente em sintonia com o ministro das Finanças alemão, que atacou severamente as políticas económicas dos U.S.A. no sentido da desvalorização artificial do dolar). Matérias relacionadas de modo directo ou indirecto com o Multiculturalismo e os problemas não resolvidos que elas suscitam, podem encontrar-se nos seguintes livros de vanguarda de Boaventura de Sousa Santos (presidente do Centro de Estudos Sociais da Univ. de Coimbra: C.E.S.) ou de Autores vários, mas por ele organizados: ‗A Crítica da Razão Indolente‘ (Contra o Desperdício da Experiência), Edições Afrontamento, Porto, 2000; ‗Globalização‘ (Fatalidade ou Utopia), [Org. de B.S.S.], Edições Afrontamento, Porto, 2001; ‗Conhecimento Prudente para uma Vida De145


cente‘ (Um Discurso sobre as Ciências‘ revisitado), [Org. de B.S.S.], Edições Afrontamento, Porto, 2003; ‗Reconhecer para Libertar‘ (Os Caminhos do Cosmopolitismo Multicultural), [Org. de B.S.S.], Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003. Trata-se, aí, sem dúvida, de boas obras como oficinas de trabalho ou biblioteca de estudos. Não chegam, porém, a constituir-se como bússolas de orientação segura, no mar encapelado da Psico-Sociologia hodierna. Nesta vertente, ser-nos-á mais útil e pertinente, por ex., o livro de Manuel Reis (Presidente do C.E.H.C.): ‗Em Demanda do Multiculturalismo Crítico‘ (Hipóteses/Teses de Trabalho), Edicon, São Paulo, 2007. Não é nada fácil dissertar sobre os fenómenos do Multiculturalismo e sua problemática real (não fictícia), para além da sua instrumentalização enquanto ‗modos de uso linguístico‘ demagógicos e apologéticos, cuja preocupação e desígnio não são outros senão dar serventia e protecção ao Establishment e aos Poderes Estabelecidos. A Cultura/Civilização do Ocidente, ancorada na Potestas d‘abord, é astuta e tem as suas manhas (ruses), por vezes incontornáveis. Um pequeno painel de Questões estruturais (sempre adiadas...), para captarmos melhor a problemática real: — Multiculturalismo//Classes sociais (no sentido marxiano): o malogro e o handicap do primeiro é o resultado da inegável permanência estrutural das segundas, precisamente na época do neoliberalismo capitalista global, em que se pretendem dissolver as segundas e funcionar, societariamente, como se as classes sociais nunca tivessem existido (o que só é possível, porque se iludem e eludem, sistemicamente, os problemas relacionados com a Potestas d‘abord). — Não há Indivíduos-Pessoas humanos sem uma cultura própria e singular (o que se poderia chamar a sua cultura nativa). A cultura nativa ou nacional (no âmbito mais alargado da nação) ou se desenvolve autonomamente, ou é substituída ou superada por outra cultura, com o consentimento ou sem o consentimento do Indivíduo-Pessoa/Cidadão. Nesta vertente, o primeiro princípio é o do respeito pelas identidades e culturas dos Indivíduos-Pessoas, porquanto é a própria gramática da Democracia autêntica que se acha alavancada na concepção do Indivíduo-Pessoa autónomo, actor e autor das suas próprias escolhas e deliberações. Neste horizonte, os movimentos políticos que, no séc. XVIII, deflagraram, em esquema revolucionário, norteados pelas ‗Lumières‘, temos de concluir que eram bífidos: tomaram corpo na vertente dos Objectos, segundo a cartilha do Objectivo-Objectualismo e entraram na sempiterna Nau da Cultura da Potestas d‘abord; os Sujei146


tos, livres e responsáveis, ficaram eclipsados. Nesta óptica, construiu-se a chamada ‗Nação cidadã‘, num guarda-roupa estritamente jurídico-legal/formal; a Nação cultural ficou adiada para as calendas gregas... Desta sorte, todos os Estados-nações se vieram a constituir, posteriormente, em regime de anti-Luzes, até ao presente. (Cf. Zeev Sternhell: ‗De La Nation Citoyenne à la Nation Culturelle: Anti-Lumières de tous les pays...‘, in ‗Le Monde Diplomatique‘, Dez. de 2010, p.3). A própria definição de nação, na ‗Encyclopédie‘ de Diderot e d‘Alembert, é fisicalista e mecanicista: ‗une quantité considérable de peuple, qui habite une certaine étendue du pays, renfermée dans de certaines limites, et qui obéit au même gouvernement‘ (vd. ibidem). Foram, aí, totalmente omitidas as dimensões (naturais) da história, da cultura, da língua e da religião, que envolvem e caracterizam o Indivíduo/Cidadão. O Monismo epistémico e a religião do Objectivo-Objectualismo contribuiram, decisivamente, para fundar e respaldar essa falsa mundividência. Assim, quando Nietzsche assevera a morte de Deus, isso implicou, ipso facto, a morte da Sociedade, na exacta medida em que era suposto, tradicionalmente (o integrismo religioso representa essa bandeira), que a Questão social seria resolvida por Deus e pela Caridade dos bons cristãos!... Em suma, as Lumières pretenderam lançar os princípios universalistas da edificação do Regime Democrático; mas, ao erguerem o seu edifício no plano do puro Objectivo-Objectualismo, elas perderam de vista as identidades reais dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Esqueceram ou ignoraram, na base da sua construção, que o único absoluto do Mundo é a consciência individual-pessoal de cada Cidadão. Eis por que os socialismos e os comunismos do séc. XX, ao pretenderem atribuir o primado à noção de comunidade sobre a de indivíduo, não edificaram Comunidade nenhuma... limitaram-se, tão só, a prolongar as formas clássicas do chamado ‗capitalismo de Estado‘ (John K. Galbraith dixit). É o que ocorre quando se embrulha a teia dos problemas, em vez de a deslindar e analisar criticamente, com lucidez e honestidade. Na verdade, o elenco dos problemas estruturais/estruturantes é, antes e acima de tudo, de ordem antropológica e, aqui, de índole gnóseo-epistemológica: há sempre, perante os irrecusáveis Dilemas da Praxis societária, um Tertium datur a identificar como solução (salvífica). A universalidade dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos não é a universalidade fisicalista, própria das ciências físico-naturais. Entre a universalidade física e a singularidade concreta, há o tertium datur da universalidade configurada pela Epistéme pró147


pria das ciências psico-sociais e/ou humanas. Nesta clarabóia do edifício cultural e sócio-antropológico, a teoria do filósofo italiano Giorgio Agamben, em torno do conceito psico-sócio-cultural do ‗uomo qualunque‘ constitui, sem dúvida, a solução mais adequada. Na verdade, quando se fala a sério de Multiculturalismo, é preciso ter o cuidado prévio de atentar, criticamente, nas duas vertentes da análise: a passiva ou objectivo-objectual, e a activa, referenciada aos Sujeitos enquanto actores e autores. De contrário, ficaremos eternamente enredados nas malhas do Objectivo-Objectualismo. Dá-se, agora, conta da complexidade e das muitas dimensões da grelha analítica!... Um caleidoscópio com duas faces... O que aconteceu com os reducionismos e os ‗camaleonismos‘, por que tem passado o Catecismo (ocidental...) dos Direitos Humanos, desde a Revolução Francesa de 1789-95, está ocorrendo, nas últimas três décadas, mutatis mutandis, com as modulações prismáticas do tão celebrado Multiculturalismo. Num artigo (penetrante e arguto) de António Guerreiro, titulado Multiculturalismo: Modo de Usar (in ‗Expresso‘/Atual, 13.11.2010, pp.36-38), pode advertir-se, logo no intróito, na necessária machadada crítica que o tema requer: ―O multiculturalismo teve sempre alguma dificuldade em fixar-se como conceito, mas instalou-se com grande eficácia nos planos programático e ideológico, tendo-se tornado origem de abundantes e acesas polémicas, a última das quais na Alemanha‖. É bom recordar, aqui, a propósito da controvérsia recente sobre o Tema, na Alemanha, que na encíclica ‗Mit brennender Sorge‘ (14/3/1937), escrita em alemão e dirigida ao povo da Alemanha, Pio XI esteve prestes a condenar, in radice, o racismo e o anti-semitismo, ao estabelecer a tese: ―Quem tender a divinizar por um culto idólatra a raça, o povo e o Estado, viola a ordem divina das coisas‖. (Cf. ‗Os Segredos do Vaticano‘ de Bernard Lecomte, ASA, Alfragide, 2010, pp.40 e ss.). O texto da encíclica fustigava o racismo enquanto ‗doutrina do sangue e do solo‘, mas ainda não condenava o anti-semitismo de modo definitivo e claro. (A tradicional consciência católica no que tange ao anti-semitismo era cúmplice na matéria, até nas suas fórmulas litúrgicas...). Entretanto, o papa Pio XI (o antigo bibliotecário Acchile Rati) era um leitor interessado e assíduo dos textos do jovem jesuita norte-americano, John LaFarge, designadamente os que este havia compilado em livro, editado em 1937, com o título ‗Interracial Justice‘, precisamente contra a discriminação racial.

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Pretendia, aí, o jesuita progressista defender a tese central de que a raça não tem qualquer fundamento científico, qualquer base ideológica; mais: o razismo, nos seus desenvolvimentos rascistas, opõe-se claramente ao que é um dos fundamentos do cristianismo: a unidade do género humano. (Cf. ibi, p.41). O papa em causa parece ter convocado o jesuita para uma audiência em Castel Gandolfo, em 22.6.1938, com o intuito de publicar uma 2ª encíclica sobre a mesma temática comum, que seria preparada por LaFarge. Mas o papa veio a morrer no ano seguinte... e quem lhe sucedeu foi o chamado ‗Papa de Hitler‘, Pio XII. (Foram as sobras do ‗catolicismo integrista‘, que se formara muito especialmente durante o longo pontificado de Pio IX e se prolongaram ao longo dos pontificados de Pio X e de Pio XII, ou foi isso, antes, a ‗sexta-feira santa‘ da Igreja Católica, que abriu caminho ao ‗Aggiornamento‘ de João XXIII e seu ‗Concílio Vaticano II‘, que logo foi driblado por Paulo VI e por João Paulo II e Bento XVI?!...). A Cultura do Ocidente (inveteradamente amiga do paradoxo, desde há dois milénios muito especialmente, em virtude do Dualismo metafísico-ontológico paulino e das Cristandades constituídas na sua peugada), mesmo nas suas elites de vanguarda, tem o condão de converter os melhores ideários em pechisbeque, quando não em programas de acção estigmatizados pela perversidade Passou-se isso com a história atrabiliária dos Direitos humanos, desde as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789); e estamos a passar por uma situação análoga, nas últimas três décadas, em que se tem procurado hastear a bandeira do Multiculturalismo. Nunca é de mais insistir nesta Tese, porque há, de facto, vícios congénitos de método, na assumpção de tais posições. Na verdade, a simples instrumentalização e redução dos Sujeitos humanos a Objectos destróiem, ipso facto, o ideário democrático e fazem o jogo de toda a sorte de imperialismo. Eis por que tanto o cumprimento dos Direitos humanos como o Multiculturalismo honesto e sério só podem ser compatíveis com a prática e o regime de uma Democracia autêntica. É naquela atmosfera ideológica contraditória e paradoxal que, por exemplo, na França (país de imigração), o presidente Sarkozy solicitava, recentemente, os bons ofícios de um ‗Ministério da Identidade Nacional‘ (!...) para, na base de uma língua nativa própria e de uma identidade nacional definida, mas percepcionadas de modo ideológico-mítico, o ajudar a resolver os problemas sociais e culturais dos ciganos da Roménia. Ora, o teorema da identidade nacional brandido neste esquema analítico é 149


sempre de mau conselho. Outro exemplo, que vem da vizinha Alemanha. Em meados de Outubro de 2010, Angela Merkel, num congresso da Juventude Democrata-Cristã, em Potsdam, (a propósito dos ca. de quatro milhões de turcos imigrados na Alemanha), fez referência a um debate adiado ao longo de 50 anos nestes termos cáusticos: ―A concepção multicultural, que diz que nós vivemos lado a lado e somos felizes uns com os outros, essa concepção falhou, falhou absolutamente‖. (Cf. art. de A.G., p.36). Em resumo: na sua grande maioria, os turcos imigrados na Alemanha vivem aglomerados em bairros na periferia das grandes cidades, para onde começaram a vir no início da década de ‘60 do séc. XX, sob o título eufemístico de Gastarbeitern (trabalhadores convidados). ―Multikulti é a palavra para uma versão muito alemã (própria de uma Esquerda verde e alternativa, que emergiu nos anos 70) do multiculturalismo não reconhecido oficialmente e, por isso, sem representação no discurso público‖ (A.G., ibi, p.38). Dir-se-ia, pois, que na Alemanha, em confronto com a França, há mais modéstia e menos basófia no discurso que aborda a problemática da imigração. Por não se ter reconhecido como país de imigração (a anterior divisão das 2 Alemanhas contribuiu para o efeito...), a Alemanha adiou durante quatro décadas a discussão séria sobre a sociedade multicultural. Angela Merkel não iludiu a afirmação desassombrada do Senador das Finanças do governo da cidade de Berlim, Thilo Sarrazin (do Partido Social-Democrata), a propósito da noção de ‗Multikulti‘ (no seu livro polémico que dá pelo título: ‗Deutschland schaft sich ab‘, i.e., ‗A Alemanha autossuprime-se‘): ―Eu não tenho de reconhecer quem vive do rendimento social, não se preocupa com a educação do seu filho e constantemente produz novas raparigas de cabeça tapada com lenço‖ (cit. ibidem). O Autor chegava a confrontar os índices de natalidade dos nativos alemães e dos imigrados turcos. A biologização do confronto demográfico entre as duas comunidades culturais, dentro da formatação do mesmo quadro nacional, não só teve o condão de sobressaltar os alemães com as más memórias do nazismo, mas também se prestou à denúncia de um mal-estar generalizado em toda a Cultura Ocidental: não é, seguramente, por esta via que se edifica o bom e positivo Multiculturalismo. Em suma, não saimos do ponto de partida: ‗Cada Nação por si e Deus por todas!...‘. Com efeito, é bom dar-nos conta de que aquelas situações dos imigrados, justamente criticáveis, acontecem, no fundo, porque a Economia política das Nações continua a ser regida pela cartilha suprema do Sistema capitalista smitheano!... Que

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nunca é posto em causa, na análise radical da problemática da imigração, em todo o nosso triste e trágico ‗Mapa-mundi‘ contemporâneo. A.G. evoca, com pertinência, a teoria/doutrina do filósofo canadiano Charles Taylor (numa conferência dada na Univ. de Princeton, em 1992), que se baseia no princípio do ‗reconhecimento‘ (‗Politics of Recognition‘) dos imigrados, por parte dos cidadãos nativos. ―Taylor ocupava-se precisamente da questão do reconhecimento, enquanto operador fundamental do Multiculturalismo, tal como ele se manifesta nas sociedades democráticas. Reconhecer as identidades culturais e as especificidades dos membros de uma sociedade pluralista é a típica via americana do multiculturalismo. E a exigência de reconhecimento político de uma especificidade cultural não seria de modo nenhum incompatível com o universalismo da vida política. A tese de C.T. é a de que a falta de reconhecimento das minorias culturais leva-as a um ódio paralisante contra si mesmas. O que está subjacente à exigência do reconhecimento é um princípio de igualdade universal. Trata-se de uma política da diferença que denuncia as discriminações‖ (ibidem). Não esquecer que a doutrina de Charles Taylor é edificada em nome da gramática da Democracia e da convivência pacífica entre os diferentes povos e culturas da Terra. Não entra, aí, a análise aprofundada do funcionamento do Sistema capitalista, sem rede, e, neste contexto, a verificação da sua incompatibilidade absoluta com os princípios democráticos. A.G. continua o seu texto assim (ibidem): ―A questão que sempre se colocou em relação ao multiculturalismo é se se deve reconhecer, e até favorecer, os particularismos culturais, ou se, pelo contrário, o tratamento dado a cada um deve ser impermeável às diferenças e ter, apenas, em conta o que é idêntico em todos. Reconhecemos, aqui, na primeira hipótese, a via americana do multiculturalismo e, na segunda, a via francesa. Incidindo sobre noções opostas, estas duas políticas multiculturais são fundadas num mesmo princípio de respeito e tolerância‖. Duas advertências essenciais sobre o enquadramento pressuposto destas duas vias ideológico-doutrinais da tolerância e do multiculturalismo: A) Ambas são nitidamente ocidentais, pressupondo, na base, o paradoxo como método de trabalho: ambas se apoiam na distinção estrutural entre a teoria e a prática, entre os princípios teóricos e a praxis societária (embora em momentos ou situações diferentes...). B) Ambas pressupõem ou postulam, para se cumprirem até ao fim, sem ambiguidades, o despojamento (e a superação) do Sistema capitalista selvagem, que é, por definição e funcionamento, enquanto societariamente hegemónico, contraditório com o ideário da 151


Democracia (o que estamos asseverando é à rebelia do que se tem aprendido tradicionalmente nas escolas...). Não esquecer que a Cultura do Ocidente sempre teve muitas dificuldades em conciliar e harmonizar o que é comum e universal (nos humanos) e o que é próprio de cada indivíduo singular e concreto: a) por causa dessa (básica e suprema) filosofia ideológica, que se chama Dualismo metafísico-ontológico; b) por causa das correntes e estruturais dificuldades nas práticas exigentes do horizontal Diálogo socrático (maiêutico e político). Cedendo à tentação de uma ilusória e falsa teoria do ‗fim da História‘ (F. Fukuyama), o neoliberalismo capitalista globalizado das últimas três décadas (desde a revolução islâmica de Komeyni, no Irão, em 1979, que foi o início do fim do séc. XX, pelo menos em pé de igualdade com a data de 1989/Queda do Muro de Berlim...) pretendeu queimar todas as etapas da História, — desde logo acabando com o estatuto próprio (marxiano) das classes sociais e dissolvendo a própria ‗consciência de classe‘ (mediante as promessas triunfais das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação), que Georg Lukács havia reelaborado na década de ‘20 do séc. XX: (Cf. ‗História e Consciência de Classe‘, Pub. Escorpião, Porto, 1974). Eppure... a realíssima tragicomédia das classes sociais, iludidas e elididas, permanece à espera de uma real e crítica Solução adequada (que não pode ser a adoptada nas últimas três décadas). Da Direita à Esquerda, no inteiro leque partidário, as diferentes classes sociais foram encurraladas numa ‗classe média‘, que não passa de um albergue espanhol de referência, para poder manipular as restantes classes sociais omitidas. Tem, pois, razão A.G. (ibi, p.39), na sua escritura crítica, quando afirma: ―Por isso é que assistimos hoje, em todo o espectro político, à tragicomédia, onde se representa a reconciliação de tudo com o seu contrário: a poupança com o consumo, o capital com o trabalho, o ‗crescimento‘ com a abstinência, o espectáculo mediático com a democracia, o valor de uso com o valor de troca, a política económica com a economia política. Nesta dança sacrificial pela salvação a todo o preço de velhos potentados político-ideológicos que bloquearam o horizonte, renunciou-se completamente a explorar novas possibilidades e a reconhecer que, tal como fora anunciado por uma mente lúcida [G. Agamben], o estado de excepção se tornou a regra e a bancarrota que tanto receamos já se deu‖.

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— Por isto mesmo, em vez de algum ‗crescimento‘ económico esperado, assistimos ao ‗decrescimento‘ (nos salários e no P.I.B.), mas nunca na via, necessária e indispensável, de converter uma Economia política, hegemonizada pela Finança dos Bancos Centrais e por uma cultura imperialista ou não democrática, numa vera e autêntica Economia Social, capaz de responder às reais necessidades das populações e dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos

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MUDANÇAS DE POLÍTICAS, GOVERNOS E REGIMES NO MUNDO ISLÂMICO PELA VIA DE „PROGRAMADAS‟ REVOLUÇÕES PACÍFICAS

Janeiro, Fevereiro... de 2011. O inesperado em termos geopolíticos, pelo menos à luz dos Observatórios sociológicos e políticos do Ocidente, começou a acontecer: Revoluções (porquanto não se trata de simples revoltas, mesmo à escala de multidões...), pretendida e programadamente ordeiras e pacíficas, de populações enraivecidas e revoltadas com as actuações dos Poderes Estabelecidos, saíram à rua, nas capitais e grandes cidades de cerca de uma dezena de países islâmicos, com o objectivo de obrigar os respectivos Governos e lideranças de turno a mudar de rumo: mudança de políticas, de governos, ou mesmo de regime. A corda revolucionária teve início na ‗revolução de jasmim‘, na Tunísia; logo se estendeu à Argélia, a Marrocos, ao Egipto, ao Yemen, à Síria, à Arábia Saudita, à Jordânia, à Líbia e ao Sudão. (Cf. informação nos jornais televisivos; ‗Newsweek‘ de 7.2.2011, pp.22-28, p.14; ‗Le Monde Diplomatique‘, Fev. de 2011, p.1, pp.9-13). Quem, nos Observatórios políticos da Cultura ocidental (supostamente mundializada...) — gente hegemónica e paternalisticamente empantufada vis-à-vis das outras culturas e civilizações — podia esperar que a Cólera e a indignação, perante os Poderes Estabelecidos, de grandes massas populacionais, nos países islâmicos, fossem, não só Acontecimento e Notícia, mas programada Vontade colectiva revolucionária, no sentido de mudar, pela via pacífica (não armada), o curso das tristes e trágicas realidades societárias quotidianas?!... Tal como nos países da Civilização ocidental, onde as novas T.I.C. foram introduzidas de modo atrabiliário e prepotente, nas últimas duas décadas, desencadeando níveis e índices de desemprego, na chamada população activa, como nunca antes se havia visto, assim também ocorreu o mesmo fenómeno nos países árabes/islâmicos, com todo o cortejo dos seus efeitos negativos, reforçados e alargados pelas situações 154


generalizadas de pobreza e miséria e fome, ao lado de elites e lideranças distanciadas, prepotentes e corruptas. Neste contexto, a Cultura do Ocidente deveria saber que o Islão moderado politicamente funciona, nos países islâmicos, como Ajuda e Arrimo social/societário, o que por vezes não é conhecido nos arraiais da Cristandade (v.g., as chamadas ‗irmandades muçulmanas‘, no Egipto, bem caracterizadas por Edward W. Said). Com efeito, nunca será de mais considerar como Factor primacial e decisivo da Crise actual, mundialmente generalizada, a introdução das novas T.I.C. de modo atrabiliário e não adequado, mais como mercadoria para vender e fazer lucros fáceis e sumptuários do que como instrumentos de trabalho, bem distribuídos e melhor aplicados. Este é um dado, que os economistas e os sociólogos encartados, bem como as análises económico-financeiras têm esquecido ou ignorado sistemicamente. Como o investigador que, tendo os óculos na cara, percorreu a biblioteca inteira a ver se os achava!... Entretanto, por paradoxal que pareça, até se poderia considerar que a situação revolucionária foi detonada através da utilização da ‗Google‘ (cf. ‗Newsweek‘ cit., p.14)... Foi-se, assim, constituindo e formando, sob o signo da ‗Google‘, uma espécie de ‗horizontal company‘, o que deu origem à fundação de uma Geopolítica horizontal, em lugar da tradicional/tradicionalista de índole vertical/hierárquica. A tal ponto que, aos ouvidos dos intervenientes no processo, podia soar e obter acolhimento a proclamação solene: ‗Imperialism and territorialism are increasingly obsolete. Despite all the protests, globalization instills peace‘ (ibidem). Dê-se aqui de barato que, nestes tempos de Pós-Modernidade (que nós, no C.E.H.C., fazemos questão em qualificar de positiva e crítica, por causa dos enganos e ilusões...), há, efectivamente, uma sorte de atmosfera (ideológica) de paz e descontracção, que não existiu durante o período da ‗Guerra Fria‘ (até ao colapso da URSS, em 1991). E, sem dúvida, não será errado admitir que a generalização das novas T.I.C. terá contribuído fortemente para a implementação da nova atmosfera ideológica, que por elas continua a ser alimentada e sustentada. Não obstante, é igualmente bom saber, criticamente, que não são, em si mesmos, os novos meios de informação e comunicação que vão transformar, de fond en comble, as Sociedades humanas, que, num golpe de mágica, assistiriam à sua transição (na aparência) dos tradicionais esquemas ou regimes verticais e imperialistas para esquemas ou regimes horizontais e democráticos. 155


Como é bem sabido, por exemplo, a pressuposta Aliança horizontal, que tomou corpo entre os Estados-nações e foi, de algum modo, forjada pela Globalização tecnológica, ao promover a informação e o comércio entre países e povos, ela não alterou, contudo, substantivamente, o modo predatório e onzeneiro de funcionar do Sistema capitalista, everywhere. Esta é uma verdade à Mr. de Lapalisse. Começar a saber, por informação alheia, que outro Mundo é possível, não significa, desde logo, que o leitor ou ouvinte vai envidar esforços para concretizar o projecto!... Precisa, primeiro, de ser ilustrado e persuadir-se ou ser persuadido a concretizá-lo. (A propósito, pode consultar-se o livro, cheio de interesse e actualizado sobre a problemática em causa, de Gustave Massiah, titulado: ‗Une Stratégie Altermondialiste‘ (La Découverte, França, 2011)). Se, de facto, todos esses cuidados e preocupações não estiverem ancorados numa Cultura autónoma e substantiva, assumida pelos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, tudo se dissipará como bolas de sabão!... O poeta e ensaísta Charles Baudelaire (18211867) preocupado com os seus ensaios de estética e autor da obra célebre ‗Les Fleurs du Mal‘, conhecia muito bem estas exigências holísticas: um holismo — dir--se-ia — pós-moderno, quando asseverava a tese de que toda a estética é sempre uma moral e uma política, uma visão do mundo e uma necessária e imprescindível hierar-quia de valores. Essa gramática da Cultura substantiva e autónoma era igualmente bem conhecida, em França, pelas políticas do Front populaire e do Conseil nationale de la Résistance (CNR); mas deixou de o ser sob a gouvernance de Sarkozy, que pro-curou desbaratar a epistemologia e a metodologia independente da História, sobrema-neira nos curricula adoptados nos Liceus franceses. Perderam-se as preocupações salutares, que obrigavam à distinção e não confusão entre as exigências de uma Cultura substantiva e autónoma e a discussão das questões políticas de turno. (Cf. ‗Le Monde Diplomatique‘, nº cit., p.27). Ora, hodiernamente, (em tempos de uma Pós-Modernidade positiva e crítica), todos os projectos e planos deixarão de ser válidos e fecundos, a médio e longo prazos, se não dimanarem da autonomia de uma Cultura substantiva, que deve ser sempre pressuposta como Alavanca de Arquimedes, em ordem à boa e adequada resolução das questões políticas e económicas. Esta orientação crítica impõe-se tanto mais, quanto a Educação e os Sistemas educativos nacionais se acham submetidos e sistemicamente instrumentalizados, como veras ‗indústrias do espírito‘, pelos sucessivos Governos nacionais, em nome dos interesses prevalecentes das elites domi156


nantes e dos Poderes Estabelecidos. (Tais actuações foram sábia e pertinentemente denunciadas pelo Manifesto do Centro de Estudos do Humanismo Crítico//CEHC/ /AMÉRICA LATINA, em 10.11.2010, subordinado ao título: ‗Educação: Uma Indústria Societária‘). Por terem perdido o timão de uma Cultura substantiva e autónoma, as naus dos Estados-nações do Ocidente deixaram-se capturar na tragédia de duas guerras mundiais super-mortíferas, ao longo do séc. XX; mostraram-se incapazes (os ‗dois Blocos‘...) de corrigir adequadamente o Sistema capitalista selvagem e predador; deixaram-se enredar, depois, num assustador período de ‗guerra fria‘, para, no final do séc. XX (1989, segundo Eric Hobsbawm), deixarem a Humanidade com uma triste herança, que é, afinal, a corveia de sempre, estigmatizada por esse espírito malsão da conquista e da dominação, sempre presente, aliás, no desejo/impulso da Hegemonia mundial, e pela proverbial sobranceria paternalista, com que sempre têm encarado e tratado as outras culturas e civilizações da Terra. Nunc ad rem. Consideremos, sumariamente, algumas situações e marcos mais salientes das últimas duas décadas. No concernente, por exemplo, ao chamado mundo islâmico, prosseguem a sua actuação bífida e perniciosa os cinco Erros principais da Cultura/Civilização Ocidental: A) A tentação e a armadilha de reduzir o Islão à cartilha dos seus fiéis de estrita observância, comummente denominados fundamentalistas (do tipo dos talibãs e do grupo de Ben Laden); em suma, os que aderiram à jihad belicista (supostamente pregada pelo Profeta, e que o Corão não contradiz inteiramente...). Neste caso, toma-se a parte pelo todo (sendo sinédoque, gramaticalmente, é, em termos de Lógica holística, um erro crasso...). B) A tendência que leva a considerar e a assumir o Islão, num esquema homogéneo e uniforme, independentemente das suas duas modalidades religiosas (e políticas...) principais: o sunismo e o shiismo (sem esquecer os fatímidas); esta posição é acompanhada pela presunção (tácita) de que todas as populações do mundo islâmico se acham, de igual modo, vinculadas aos seus imãs e sheiks, como se, internamente, nas sociedades em causa, não houvesse uma certa atmosfera ideológica de secularismo e laicidade, à semelhança do que ocorre nas cristandades (muito embora em grau inferior). C) A tentação/tendência generalizada (na esteira do celebrado livro de Samuel P. Huntington: ‗O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial‘, Gradiva, Lisboa, 1999) de pressupor, doutrinal e ideologicamente, que a situação contemporânea do Mundo envolve, necessariamente (há quem ainda evoque a dialéctica he157


geliana da História...), um Conflito de Civilizações, que será protagonizado pelas grandes Religiões institucionalizadas, designadamente o Islão. D) A tentação/tendência de actuar, permanentemente, em esquema de Conquista e Dominação, integrando sistematicamente, não apenas os produtos materiais (descobertos ou roubados/furtados), mas as Outras Gentes num ‗Eu-Mesmo’ imperialista, através da cartilha (imposta universalmente) do Economicismo objectivo-objectualista, como se o Ocidente não estivesse, ipso facto, a ditar e a impor a religião laica (alternativa e de substituição...) do sacrossanto Objectivo-Objectualismo, cujo primeiro postulado consiste na prática universalizada do Economicismo capitalista. (É ainda nesta atmosfera ideológica que, por exemplo, Daniel J. Boorstin, pretendendo embora exprimir um intuito diferente, escreveu o seu livro monumental: ‗Os Descobridores‘: De como o Homem procurou Conhecer-se a si mesmo e ao Mundo. Gradiva, Lisboa, 1994/2ª ed.). E) A tentação/tendência de adoptar e praticar, sistematicamente, em relação aos Estados-nações do mundo islâmico e a outras culturas/civilizações, a consabida pauta axiológica ‗dos dois pesos e duas medidas‘: v.g., quando os Governos do Ocidente (a começar pelos USA, a hiperpotência hegemónica) estabelecem alianças de conveniência com regimes instalados (islâmicos ou não), que se sabe serem manifestamente corruptos e/ou ditatoriais!... Isto mesmo só acontece, porque a Cultura do Ocidente abandonou e repudiou, há muito, a gramática (primacial) de uma Cultura substantiva e autónoma, para, vendendo a alma ao Diabo, fazer profissão de fé na universal e ditatorial religião laica do Objectivo-Objectualismo. Alguns factos, surpreendentes, paradoxais, patéticos, a comprovar as inércias negativas deste horrível Carro de Jagrená. A guerra no Afeganistão (... dura, sem conclusão positiva..., há 10 anos), que foi decidida por G.W. Bush, para resolver um problema/situação trágica, sem dúvida, mas cujo âmbito próprio seria um Tribunal plenário, apesar de tudo... No seu percurso, essa guerra foi arrastando outros países amigos integrados na NATO. Até parece que o Ocidente (a começar pelos USA) não consegue sobreviver sem adversários ou inimigos: ontem era o ‗comunismo soviético‘ e seus filhotes... hoje são os islamistas!... Egipto: Cairo (1 e 2 de Fev. de 2011, nos 8º e 9º dias do processo revolucionário): as massas populares em cólera e revoltadas perante o desemprego, em números assustadores, perante a pobreza e a miséria, sem falar da corrupção e do clientelismo, pretenderam uma Revolução pacífica, contra uma gouvernance incapaz e um Presidente/ditador que se encontra no Poder desde 1982, a título de ‗estado de emer158


gência‘!... O que as televisões fizeram passar nos ecrãs, é pura e simplesmente patético. As populações que, aos milhões, se manifestaram nas praças centrais da capital (designadamente na praça Tahrir) e de outras grandes cidades como Alexandria e Suez, pretenderam um processo revolucionário por meios pacíficos, capaz de conduzir à demissão do Governo de turno, mas também ao fim do regime ditatorial de Hozni Mubarak, que se encontra identificado com o poder supremo do Egipto, há quase 30 anos. Os slogans que as populações brandiam eram claros e lacónicos: Queremos pão, paz, trabalho, liberdade e democracia. Neste contexto, são intrigantes e patéticas as pretensões e as proclamações do ditador/presidente: Que não sairá do Egipto nem abandonará o Poder; que não se irá candidatar às eleições de Setembro próximo; que nomeará um novo Governo; que não pode deixar ‗o Poder cair na rua‘ e que é preciso operar uma transição pacífica do Poder. Entretanto, os apoiantes do presidente/ditador, que nos primeiros dias nem sairam à rua, começaram a encher-se de coragem e a afluir às ruas e praças e, com a ajuda dos elementos disfarçados da polícia, surgiram as primeiras mortes em série dos manifestantes!... Há momentos destes, na história dos processos revolucionários: assim como o dinheiro vale por ter a chancela do rei ou do presidente (como diziam os economistas durante a Monarquia...), de igual modo, uma ligeira demora (fruto da teimosia ou da falta de clarividência) do detentor do Poder supremo pode, inesperadamente, desencadear uma chacina em massa. ‗Mudam-se os tempos, muda-se a vontade; muda-se o ser muda-se a confiança‘! Já dizia o Épico luso. Como seria bom e fecundo que os próprios governantes e detentores do Poder começassem a dar-se conta de que é o próprio Tempo histórico a impor a mudança nas atmosferas ideológicas das sucessivas gerações!... Ou será que, para ‗essa gente‘, continua a vigorar e a reger o parergo de Lord Acton: ‗O Poder corrompe sempre, e o Poder absoluto corrompe absolutamente‘?!... Ora, neste 2011, que irá comemorar, em 11 de Setembro, o 10º aniversário do trágico atentado ao World Trade Center, é preciso recordar, igualmente, as esforçadas Iniciativas Altermundialistas do Forum Social/Mundial de Porto Alegre (no Brasil); e aquela Cimeira de Génova (na Itália) do G8, que veio a concitar 300.000 manifestantes, contra o Evento (manipulador...) dos mais ricos e poderosos da Terra. E, agora, no novo clima ideológico da Pós-modernidade, será de bom conselho não esquecer, para o futuro, as padronizadas revoluções pacíficas, que fizeram o seu curso nos países islâmicos, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2011. Desemprego em massa (co159


mo nunca se vira), a costumada opressão dos Poderes Estabelecidos, a corrupção habitual dos dirigentes, uma exploração desenfreada que impõe como solução o emprego precário, a pobreza e a miséria... quase todos os trabalhadores e cidadãos são atingidos, sobremaneira numa situação de Crise económico/financeira, que alastra por todo o Mundo. Os países árabes e islâmicos não fazem excepção à regra. O Egipto (um país com 84,5 milhões de habitantes e onde 2/3 da população tem menos de 30 anos) tem um PIB per capita que o situa no 137º lugar, na lista mundial, entre os dois micropaíses do Pacífico, Tonga e Kiribati. Se, na China, os cidadãos sabem que não têm liberdade mas, em troca, têm alguma esperança na melhoria da sua vida material, no Egipto é reprimida a liberdade económica, a política e todas as restantes; e 40% da população vivem com dois dólares por dia. O que lhes vai valendo, no O.G.E., são os dez mil milhões do Turismo, cinco mil milhões de rendas do canal de Suez e dois mil milhões de dólares anuais de ajuda norte-americana para o Exército. O lugar comum, na política internacional do Ocidente, de que Israel é o único país democrático no Médio Oriente, é uma banalidade de base, que pode ruir diante da primeira análise crítica em profundidade. Por exemplo, as Irmandades muçulma-nas no Egipto batem-se por formas democráticas de regime político. O Ocidente tem de abandonar, decididamente, a teoria ‗dos dois pesos e duas medidas‘ e os seus preconceitos do ocidentalo-centrismo. Quando vai aprender que são, precisamente, as ditaduras que fabricam os terroristas?!... Com efeito, ―é moralmente inaceitável avalizar ditaduras como as de Mubarak ou Ben Ali, a pretexto de serem barreira ao fundamentalismo islâmico. Não só não são, como o alimentam, ao esmagar os direitos individuais mais básicos e frustrar as esperanças dos cidadãos. Os terroristas do 11 de Setembro vieram do Egipto de Mubarak e da Arábia Saudita. E não da Faixa de Gaza, do Líbano ou do Irão...‖ (Rui Cardoso, in ‗Expresso‘, 5.2.2011, 1º cad., p.6). Deixou de ser legítimo, aos ocidentais, admirarem-se (como meninos de bibe...), espantados e paternalisticamente sobranceiros, com a cólera e a indignação das revoluções pacíficas das massas populares, no mundo islâmico. O que há a fazer é aprender com os Factos e as Situações. Não há nenhum ‗fim da História‘, no horizonte, a comandar e a superintender nos processos revolucionários. O que tem a fazer o bom historiador ou o investigador em ciências psico-sociais e/ou humanas é, na antecâmara do seu ‗laboratório‘, mandar pró inferno as ideologias de turno confundidas com os próprios conteúdos da investigação; e na câmara do seu ‗Lab.‘, confrontar-se 160


com a realidade, em termos críticos, sempre na busca esforçada das soluções adequadas. Desde logo, em vez das acomodações e dos rodeios para sustentar o ‗status quo‘, ele defrontar-se-á com a exigência básica de um pensamento radical. Cuidarão os ocidentais que são senhores da Verdade? Não... A sua Verdade está saturada de paradoxos e contradições. O despotismo iluminado e o típico paternalismo, perante as outras civilizações e culturas, ainda constituem a regra. Hoje, e cada vez mais, os diferentes povos, as diferentes culturas e civilizações da Terra — dir-se--ia que se encontram (não na estaca zero...) numa base comum de humanidade, onde é mister edificar, criticamente, um vero e autêntico Projecto de Democracia real (não apenas nominal e fictícia), capaz de assegurar um desenvolvimento (económico, social e cultural) sustentado. Quando (como ainda ocorre, v.g., na Argélia: cf. ‗Le M.D.‘ cit., pp.12-13) a corrupção é considerada e admitida como uma normal prestação de serviços, não se pode falar, aí, de práticas democráticas. Mas não estão, porventura, prenhes de prepotências e despotismos os regimes de Democracia liberal/representativa, no Ocidente? Este estigma (que as Lumières ainda embalaram no seu berço) é muito frequente nas práticas da civilização/cultura do Ocidente. Muito mais do que se imagina... Que é o positivismo jurídico, na sua fase demencial, senão o eco disto mesmo? Um caso ocorrido num Tribunal luso em 2011: o alegado criminoso havia cometido suborno intencionalmente expresso e confessado. Como a parte passiva do suborno não detinha competência jurídica para conseguir o benefício por parte do subornante, o juiz absolveu a parte activa do suborno. Terá sido, apenas, um ‗acto falhado‘... É nossa convicção fundada a tese seguinte (que pode suscitar surpresa): se os políticos ocidentais actuassem com honestidade e Verdade, (expurgando, de vez, a teoria/doutrina ‗dos dois pesos e duas medidas‘), vis-à-vis das outras civilizações e culturas, usos e costumes alienígenas, como, por ex., o tchador e a burka (que tanto humilham e submetem a mulher muçulmana), o tabu religioso da excisão, — todas essas indecências subiriam à tona, seriam facilmente discutidas (num Debate civilizacionalmente aberto e crítico) e muito mais facilmente eliminadas do campo humano comum. Mesmo no caso da actual revolução pacífica no Egipto de Hozni Mubarak (é de notar que, nas duas semanas principais de agitação e actuação revolucionárias, na batalha pela Liberdade e Democracia, morreram 300 pessoas), os políticos do Ocidente poderiam assumir posições mais pertinentes, incisivas, contundentes. Represen161


tantes da U.E. limitaram-se a uma intervenção lacónica, no plano dos princípios: é preciso responder às manifestações populares com reformas, não com a repressão. Barak Obama, por parte dos U.S.A. (que têm agenciado financeiramente o Exército do Egipto) terá solicitado a Mubarak que a transição seja operada já!... É óbvio que, nas diversas situações que envolvem problemas e decisões sérias, as atitudes e actuações dependerão dos princípios doutrinários de que os actores estão (ou não) enformados. Na presente circunstância, depois da posição, anunciada pela speaker, do Conselho da U.E., reunido para ajudar nas decisões políticas do Egipto, o Primeiro Ministro inglês, David Cameron (em jeito de quem tenta corrigir e completar a conhecida posição desassombrada de Angela Merkel, no congresso da Juventude democrata-cristã, ao proclamar que o Multiculturalismo fracassara e que a integração social dos imigrantes na Alemanha tinha sido um fiasco...) teve a ousadia de esclarecer o diferendo, afirmando: contra o passivo [que tem trazido problemas...], do que nós necessitamos é de um liberalismo activo. A nosso ver, a declaração de Cameron é, pura e simplesmente patética! Como se o liberalismo (capitalista), passivo ou activo, pudesse vir a resolver, algum dia, a plena integração dos imigrados nas comunidades nacionais de chegada... Hoje em dia, há muitas pessoas com o comportamento de zombies: repetem palavras que aprenderam na escola ou na família; mas já não sabem o que estão a dizer nem a que situações e realidades elas se aplicam. Com efeito, a plena integração dos imigrados nas respectivas comunidades nacionais de chegada, ao postular o cumprimento da gramática do respeito (básico) dos Direitos Humanos, para todos os sectores étnicos, integrados nas Sociedades nacionais, implica, necessariamente, outro Modelo de organização das Sociedades humanas. Este Modelo é edificado no Quadro de uma Sociedade vera e autenticamente socialista, ancorada, decisivamente, nos Sujeitos humanos, qua tais, e não segundo a cartilha objectiva-objectualista, própria das consabidas democracias liberais/representativas. O Dualismo metafísico-ontológico (platónico e paulino), que tem constituído a Alavanca de Arquimedes da Cultura/Civilização do Ocidente até ao presente, permitiu, na sua forja icónico-simbólica, o desencadeamento, nas últimas 3 décadas, de todo um movimento paroxístico de mecanicismo tecnológico e materialismo irredento da vida quotidiana (onde, aristotelicamente, só conta a via dos instrumentos tecnológicos como meio de emancipação-libertação), a tal ponto que o que veio a imperar foi a religião laica do Objectivo-Objectualismo, com o completo abandono e desprezo 162


dos seres humanos, enquanto Sujeitos livres e responsáveis. Este é, obviamente, um caminho errado, que se impõe corrigir e rectificar quanto antes, nos espaços do que o C.E.H.C. designa pela Pós-Modernidade positiva e crítica. Desde a década de ‘60 do séc. XX (quando se esperava que vingasse a ‗revolução do Maio/68‘!...), as ciências sociais e humanas entraram em ruína, acelerada pela traição dos intelectuais ao serviço do Establishment. O processo inercial foi introduzido, no início, de modo dissimulado, como um vero cavalo de Tróia: foi este o papel e a função da Linguística estruturalista, enquanto ‗ciência farol‘ de todas as ciências psico-sociais e/ou humanas. No encalço deste novo mapeamento do percurso a fazer, vieram os chamados ‗cultural studies‘ (peregrinos e serviçais dos Poderes Estabelecidos), que destronaram a importância central e decisiva, que detinham, tradicionalmente, Disciplinas como a Filosofia e a História. Por seu turno, as Universidades, enquanto centros de um Saber autónomo, reflexivo e crítico, capaz de tudo teorizar com fundamento, foram-se metamorfoseando e convertendo em laboratórios e oficinas de aplicação social-societária, em nome e a mando dos sucessivos Governos e dos Poderes Estabelecidos. A tal ponto que, hoje em dia, a palavra d‘ordem vai no sentido de transformar Universidades e Politécnicos em Fundações (atenção à semântica economicista do jargão): para cúmulo, de direito privado. É sabido e óbvio que a situação/condição dificílima, em que se encontram as ciências sociais e/ou humanas, em termos próximos, procede: a) de uma nova atmosfera ideológica dita pós-moderna, onde foi abandonada a teoria (reflexiva e crítica) e a investigação teórica; b) de um novo regime de organização e funcionamento das universidades, que procuram responder, cada vez mais, a critérios economicistas, deixando-se, assim, cristalizar em sistemas fechados, corporativos e hierarquizados, de autoridade e legitimação. Em termos remotos, essa situação/condição difícil e de vero parente pobre, tem de reconhecer-se que é estrutural, na medida em que as ciências psico-sociais e/ou humanas são intrinsecamente atraiçoadas pela Teoria/doutrina do Monismo Epistémico e açaimadas pela sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. (O que, de resto, tem sido, programaticamente denunciado pelo C.E.H.C.). Desde logo, ao lado do Templo das ciências físico-naturais (com a sua epistéme própria), o que tem faltado, na história cultural do Ocidente, é o Pórtico de Abertura de um outro Templo, dotado de outra gramática epistemológica. Dualidade Epistémica, portanto: eis o caminho e o Método. 163


Está certo, por conseguinte, António Guerreiro, quando escreve (no seu artigo Ciências Sociais em Ruína, in ‗Expresso‘/Atual, 5.2.2011, pp.30-32; p.30): ―As ciências sociais e a história estão hoje num beco sem saída. Num campo dividido entre especialidades e subespecialidades, os discursos sobre a interdisciplinaridade parecem não passar de vestígios de uma abertura vivida, como se se tratasse de um projecto utópico de conhecimento, durante quase um século‖. Desta sorte, os projectos criticamente ambiciosos, que ainda nas décadas de ‘60 e ‘70 marcaram a sua presença no campo da Sociologia, foram definitivamente abandonados, no período seguinte, a favor dos Estudos Culturais, primeiro, e depois, das Ciências da Comunicação, e logo a seguir, a favor de uma Filosofia Política, cada vez mais afunilada... do tipo da que foi expressa e desenvolvida por F. Fukuyama no seu livro: ‗O Fim da História e o Último Homem‘ (Gradiva, Lisboa, 1992), onde a pauta analítica e avaliativa não é outra senão a da cartilha reducionista e imperialista do Objectivo-Objectualismo. Se caminhos havia abertos eram todos para dar serventia ao Establishment e aos Poderes Estabelecidos. A tal ponto se chegou no requinte selvagem da nova Atmosfera ideológica da chamada Pós-Modernidade (sem adjectivação), que, por exemplo, as noções de revolta e de revolução são facilmente trocadas e tomadas uma pela outra, na opinião corrente e pública, desde logo, porque aos olhos dos menos ilustrados e mais preconceituosos, uma revolução que se preze não se faz sem violência e sangue, com largas massas chacinadas. Eppure... começámos a assistir a revoluções quase pacíficas, desde o 25 de Abril de 1974, na Lusolândia! Sinal de novos tempos que se aproximavam?!... A regra da humanização, enquanto desenvolvimento normal da Árvore da hominização, é conhecida e simples: Quanto menos Violência (física) houver, no processo histórico da Civilização, mais Inteligência e Consciência haverá!... Ora, nas décadas de ‘60 e ‘70, ainda se fazia questão em distinguir, com nitidez, os conceitos de revolta e de revolução: o 1º polarizava-se no horizonte (indeclinável) dos Sujeitos individuais-pessoais e seu mundo da Subjectividade: eclipsava-se, aí, de algum modo, o tempo histórico; o 2º conceito lançava a sua âncora sobre o tempo histórico, e procurava incidir, programaticamente, sobre a Objectividade e Objectualidade dos processos históricos. Neste contexto, quando se falava de ‗revolução permanente‘, o que, acima de tudo, se pretendia significar, era a necessária união do Subjectivo e do Objectivo, e, por essa via, a obrigação de alertar os companheiros para uma necessária e permanente consciência revolucionária. Hoje, ao falar164


-se de ‗revolução permanente‘, o que logo salta à nossa percepção é uma espécie de curto-circuito (capaz de decapitar tanto a revolta como a revolução)!... A.G. (ibi, p.33) caracterizou bem os dois conceitos nas linhas seguintes: ―Enquanto a revolta é a emergência repentina de uma insurreição, não implicando, em si, uma estratégia de longa distância, a revolução é um complexo estratégico de movimentos insurreccionais orientados para objectivos finais. Assim, a revolta é aquilo que suspende o tempo histórico e instaura um tempo em que tudo o que se realiza vale por si, independentemente das suas consequências. Já a palavra ‗revolução‘ designa todo o complexo de acções realizadas por quem quer mudar, no tempo histórico, uma situação política, social, económica, elaborando os seus planos tácticos e estratégicos, num tempo que se mede em duração e em termos de causas e efeitos. A ‗revolta‘, pelo contrário, pode ser descrita como uma suspensão do tempo histórico: quem participa numa revolta empenha-se numa acção da qual não sabe nem pode prever as consequências‖. *

DA AXIOMÁTICA MALTHUSIANA SOBRE A POPULAÇÃO DA TERRA, BASEADA NA HOMINIZAÇÃO, À PROBLEMÁTICA ACTUAL DA HUMANIZAÇÃO DA ESPÉCIE

É sobejamente conhecida a chamada ‗lei‘ de Thomas Malthus (1766-1834), que veio a público em 1798: O número de nascimentos e a população crescem em progressão geométrica; a produção de alimentos e os recursos alimentares (disponíveis) aumentam, apenas, em progressão aritmética. Desde já, a própria ‗lei‘ do cresci165


mento da população em escala geométrica, acompanhada do crescimento dos recursos alimentares em escala aritmética, não só é tributária da religião laica do ObjectivoObjectualismo, como também da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord e da sua directa expressão no Sistema capitalista. (Vd. estudo: There will soon be seven billion people on the planet, in ‗National Geographic‘, Jan. de 2011, pp.3269; p.43). O pastor protestante e economista esteve à altura do seu tempo... até para estabelecer teses ‗incómodas‘, que lhe trouxeram dissabores, malquerenças e ódios, já entre os seus contemporâneos e nas gerações seguintes. Um dado de que o pastor, por certo, não se deu conta: a problemática, que o levou a estabelecer a dita ‗lei‘, tomou corpo, inevitavelmente, no quadro do Sistema capitalista, onde os Sujeitos humanos são objectivados e objectualizados como coisas ou mercadorias e a principiologia que vigora é a Lei do Lucro d’abord. Por outro lado, a Malthus (apesar de pastor...) não interessava o vero e autêntico processus bio-cultural e histórico da humanização crescente da Espécie; como, de resto, não interessa ao Sistema capitalista qua tal. Um e outro contentam-se com o processo histórico civilizacional da hominização, dentro da pauta do ‗Homo Sapiens tout court‘. Além disso, deve advertir-se, aqui, que, em virtude da índole dos problemas em causa, estamos, em termos epistémicos, mais no horizonte das ciências sociais e/ou humanas do que no horizonte das ciências físico-naturais. A pauta e a densidade da verdade/lei diferem, qualitativamente, nos dois hemisférios das ciências. Mais uma advertência preliminar neste intróito. Desde que Malthus estabeleceu a dita ‗lei‘ até ao presente, com mais ou menos verosimilhança, o axioma malthusiano tem sido considerado e respeitado, pelo menos, como bússola de orientação. Dir-se-ia, de resto, que ele se aplica, grosso modo, como uma luva ao que, tradicionalmente, se tem chamado, no filão crítico do Ocidente, a ‗Sociedade dos dois terços‘... o restante 1/3 é votado à privação, à fome e às doenças endémicas e pandémicas (estão a mais...), seja em nome do malthusianismo, seja em nome do neomalthusianismo. A partir dos anos ‘60 e ‘70 do séc. XX, chegou-se à conclusão e divulgou-se a ideia, na opinião pública internacional, (a partir de actores e assistentes que operavam na F.A.O.), de que havia, afinal, recursos alimentares para todas as populações da Terra, a partir dos meios tecnológicos disponíveis: o que se tornava necessário e imprescindível era uma adequada Distribuição e comercialização dos recursos alimentares, no quadro da economia política oficial, uma vez que estas obrigações e tarefas 166


não poderiam ficar restringidas e confinadas à chamada economia social e às obras de caridade ou misericórdia das religiões institucionalizadas. Este mandato tornou-se, hodiernamente, ainda mais imperativo, ao tomar-se conhecimento de que quase metade dos Alimentos do Mundo vão parar ao lixo: ou porque sobraram, ou porque os prazos caducaram e eles não puderam ser recuperados. Como, porém, é sabido, o Sistema capitalista (que perdura, ainda hoje...) não tem emenda possível. Ora, o que é preciso é superá-lo, em termos psico-sócio-históricos: porquanto ele, em casamento perfeito com a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, (não com os regimes democráticos... como se tem pregado ilusória e erroneamente), só tem contribuído para a suspensão e a regressão do próprio processo evolutivo da Antropogénese, que, do patamar da hominização (pelo menos a partir da alvorada dos Tempos Modernos) deveria ter operado a transição para o patamar da humanização. É sabido da história demográfica das populações sobre o Planeta, que a taxa de mortalidade (com o crescente aumento da longevidade) decaiu, nos últimos duzentos anos, bem como a taxa de natalidade, embora numa regressão mais lenta. De resto, enquanto foi diminuindo a taxa da mortalidade infantil e pré-natal, ao mesmo tempo, os casais constituídos começaram a ter menos crianças (cf. ibi, pp.44-45). Surpresa na articulação destas duas variáveis? Não. Em primeiro lugar, é a expressão da lei biogenética da complexidade crescente, em termos sócio-biológicos; em segundo lugar, é a expressão e o eco dessa mesma lei, nos planos sócio-cultural e civilizacional. Desta sorte, não nos deveria ser legítimo ficar quietos e transquilos, perante o Fenómeno assombroso da pura e simples emergência de uma hominização, que veio a ter impacto massivo em todo o Planeta, ao ponto de criar uma nova era geológica (como supôs o autor do presente estudo, Robert Kunzig: p.63). É preciso, por conseguinte, não continuar a esquecer, no processus evolutivo da Antropogénese, a vera e autêntica humanização da Espécie. (A propósito da problemática evolutiva da Antropogénese, será sempre de bom conselho reler e estudar a Obra desse grande Evolucionista que foi o páleo-antropólogo Pierre Teilhard de Chardin. Da sua vasta Obra, destacamos, aqui, dois dos seus livros, atendendo à sua importância e pertinência para o Conhecimento da Espécie Humana: ‗O Fenómeno Humano‘, Liv. Tavares Martins, Porto, 1965; ‗La Place de l‘Homme dans la Nature‘, Éditions du Seuil, Paris-VIe, 1956.).

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Atentemos neste sumário do painel sobre o crescimento da população da Terra, referenciado no estudo em causa do magazine da ‗National Geographic‘ (nº cit., pp.40-41): Em 1800 — 1 bilião (mil milhões) de indivíduos humanos; em 1930 — 2 biliões; em 1960 — 3 biliões; em 1974 — 4 biliões; em 1987 — 5 biliões; em 1999 — 6 biliões; em 2011 — 7 biliões; em 2024 — 8 biliões; em 2045 — 9 biliões. A partir do confronto crítico destes dados (que não deixarão de surpreender os mais atentos à Evolução/Involução da Espécie dita humana), é mister extrair algumas conclusões e identificar algumas constantes: Se o intervalo entre o estalão de 1 bilião e o estalão de 2 biliões, teve uma duração de 130 anos, e o que ocorreu entre o estalão de 2 biliões e o de 3 biliões durou ainda 30 anos, já o que ocorre entre o estalão de 3 biliões e o de 4 biliões, durou apenas 14 anos; entre 4 biliões e 5 biliões, 13 anos; entre 5 biliões e 6 biliões, 12 anos; entre 6 biliões e 7 biliões, igualmente 12 anos; entre 7 biliões e 8 biliões, de novo 13 anos; entre 8 biliões e 9 biliões, é que o délai nos parece, agora, começar a dar mais descanso. Ilusões, apenas, ou a abertura para um novo horionte, que, em confronto, por ex., com o intervalo dos 30 anos (para não falar já do intervalo dos 130 anos), nos poderia indiciar ou assinalar uma mudança de eixo qualitativa da Humanidade no seu conjunto?! Uma tal mudança de eixo, contudo, precisaria de se reflectir e expressar (segundo o léxico de Teilhard) numa clara e nítida transição da ‗socialização por expansão‘ (presente ao longo de quase toda a Idade Moderna) para o novo patamar da ‗socialização por compressão‘. Quer isto dizer: mais cultura e inteligência, mais consciência reflexiva e crítica nos Indivíduos humanos. Implicadamente, uma atracção muito menor pela simples proliferação natural da Espécie... Todavia, porque é ainda o Sistema capitalista a reger e a imperar (a cartilha vigente converteu os Sujeitos em Objectos e as Pessoas em Coisas), a multiplicação material da Espécie continua a prevalecer sobre a espiritual; e, em tal horizonte, não se estranhará que os intervalos entre as sucessivas unidades de biliões se mantenham com pequenas diferenças, em vez dos intervalos mais dilatados (semelhantes até ao de 130 anos), os quais, numa pauta axiológica invertida, poderiam exprimir mais peso e importância da Consciência e da Inteligência, na vida e na vivência cotidiana dos Humanos. No painel do crescimento demográfico (em análise) das populações da Terra, onde, desde logo, causa espanto e susto o encurtamento básico dos intervalos entre as sucessivas unidades de biliões, é, todavia, conveniente identificar algumas constantes, apoiadas num estatuto de regularidade: — Quanto mais instrução e educação forem 168


facultadas às mulheres (nos diferentes Sistemas Educativos nacionais) tanto menos filhos elas virão a procriar ao longo da vida. A dimensão intelectual/espiritual pesará mais nas suas vidas do que a dimensão material. Neste contexto, é bom recordar que, nos USA, 64% dos nascimentos procedem de mães acima dos 35 anos. — A dizer a verdade, não é tanto o crescimento da população (à razão de 80 milhões por ano), que vai danificar e esgotar mais depressa o Planeta... mas, outrossim, o frenesim vigente do Consumismo sem limites, alimentado e imposto pelo Sistema capitalista. —Uma outra constante pode ver-se no seguinte enunciado: Quanto menos desenvolvido é um país (desenvolvimento sustentável), tanto mais elevado é o índice do seu crescimento demográfico (cf. ibi, pp.50-51, pp.52-53). Esta regra da proporcionalidade invertida é, hoje, muito enfraquecida por mór do processo da Globalização e por efeito das migrações em massa, dos países pobres e menos desenvolvidos para os mais ricos e desenvolvidos. Há, entretanto, um grave problema, que se tem de pôr hoje, à puridade, e com o máximo de clareza: as ciências da investigação e da exploração da Terra chegaram à conclusão de que os países pobres, com programas para se libertarem da pobreza e da miséria (que, por outro lado, têm os mesmos direitos que os ricos tiveram outrora) não poderão adoptar, hoje, rotas análogas para a sua libertação e desenvolvimento, visto que o Planeta se esgotaria rapidamente e a vida humana tornar-se-ia simplesmente impossível. Este non sequitur, para os países pobres e subdesenvolvidos, implica, obviamente, as necessárias e indispensáveis ajudas, por parte dos países ricos e desenvolvidos. Em termos históricos, é uma espécie de corveia que os países ricos têm de pagar, actualmente, aos países pobres, pela pilhagem de matérias primas e riquezas da Natureza, levada a efeito no passado. Trata-se, aqui e agora, de uma Obrigação ética e jurídica, no plano internacional/mundial. Mutatis mutandis, dir-se-ia que o que aqui vige é a sabedoria encerrada naquele provérbio índio, que reza assim: ‗Nós não herdámos a terra dos nossos antepassados, pedimo-la de empréstimo aos nossos filhos‘! Uma tal solução postula, com toda a evidência, o abandono do Sistema capitalista selvagem, tal como foi conhecido na fase do neoliberalismo capitalista global. Implicará, portanto, ipso facto, a edificação de veras e autênticas Sociedades socialistas, tanto nos países subdesenvolvidos como nos desenvolvidos, visto que o desenvolvimento dos ricos foi levado a cabo à custa dos pobres. A Economia política tem de ser refontizada nos seus veros Sujeitos de origem (que não são objectos nem coisas...): os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. 169


Na verdade, neste contexto crítico, qualquer cidadão se dá conta de que é o próprio ritmo (acelerado) do aumento da População (humana) na Terra, que postula e exige a imediata mudança, programada, do Sistema capitalista pelo vero e autêntico Regime Socialista de organização e funcionamento das Sociedades humanas. Onde está a planificação e a administração geoeconómicas e paisagísticas dos territórios nacionais? Há, actualmente, 21 cidades no mundo, com população concentrada acima dos 10 milhões. E serão muito mais em 2050. O massacre/genocídio de 800.000 ruandeses, em 1994, não resultou, apenas, dos ódios étnicos, mas da sobrepopulação, procedente da extremada divisão dos terrenos agrícolas, que não dava para a fixação de uma família de rendeiros (cf. ibi, p.62). Irritar-se com as doutrinas malthusianas ou neomalthusianas não adianta nada. De resto, a Malthus, foi-lhe possível fazer a denúncia objectivo-objectualista, porque, sabendo-o ou não, todo o seu Quadro foi edificado dentro do Sistema capitalista. É por isso que, mesmo recusando-o, chegamos à conclusão de que T. M. tem razão, pelo menos à escala global!... Neste horizonte sombrio e trágico a exigir medidas urgentes, é óbvio que as primeiras apostas, para encarar e resolver os prolemas da sobrepopulação, têm de visar o planeamento familiar, administrado e conduzido, não de modo ditatorial e belicoso, mas ao jeito de uma pedagogia cultural, integrada nos próprios Sistemas Educativos nacionais. Todavia, é sempre de advertir, no plano dos princípios e da boa doutrina, (como nos é exigida numa análise honesta e crítica das situações), que o primeiro problema a requerer solução adequada é o da pobreza das populações, não o da sobrepopulação. É disto mesmo que é preciso tomar consciência, quando deparamos com favelas ou bairros de lata, nas periferias das médias e grandes cidades (cf. ibi, pp.61-63). O próprio autor do estudo em referência (Robert Kunzig) admite e promove esta orientação crítica ao escrever (ibi, p.62): ―a fixação nos números da população não é o melhor caminho para enfrentar o futuro. Gente encaixotada em bairros de lata carece de ajuda; mas o problema que precisa ser resolvido é a pobreza e a falta de infra-estruturas, não a sobrepopulação. Dar a cada mulher o acesso aos serviços do planeamento familiar é uma boa ideia, — ‗a única estratégia que pode fazer a maior diferença na vida das mulheres‘, como refere Chandra. Mas o mais agressivo programa de controlo da população imaginável não salvará Bangladesh da subida do nível do mar, nem o Ruanda de um novo genocídio, ou todos nós dos nossos enormes problemas

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ambientais‖. — Dir-se-á que a Humanidade entrou num Carro de Jagrená desgovernado, que a vai levar, inexoravelmente, ao abismo!... Há, por exemplo, quem pense (como Brian O‘Neil, do National Center for Atmosphere Research) que, se o factor população vier a ser reduzido até ao nível de 7,4 biliões, em 2050, as emissões de CO2 seriam reduzidas em 15 per cento. Mas há, por outro lado, quem advirta, com razão, (como Joel Cohen), que estão errados os que defendem que a totalidade do problema reside na população como factor dominante (cf. ibidem). Como já se deu conta, a complexa problemática ecológica é de tal modo grave, que, para diminuir e pôr fim, quanto antes e com urgência, ao Aquecimento Global, é imperioso começar, desde já, a fazer a transição das energias fósseis e poluentes pa-ra as energias alternativas. É claro que o número de gente também conta... Mas é, sem dúvida, mais importante e decisivo, para o futuro da população do Planeta, tirar, cada vez mais, as pessoas da pobreza e da miséria. A tese central de Robert Kunzig (o autor do estudo em presença: p.63) pode bem ser a seguinte: ―É demasiado tarde para evitar que nasça a nova classe média de 2030; mas não é demasiado tarde para mudar o modo como eles e o resto de nós todos iremos produzir e consumir alimentos e energia‖. Esta tese (resultando embora acertada, dentro dos condicionalismos psico-sociológicos actuais) está marcada, ainda, pelo vicioso Monismo epistémico e funciona segundo uma cartilha ideológico-política, que, implicitamente, dá o Sistema capitalista (omni-toto-envolvente), como um dado natural inultrapassável, para a humanidade. Nesse quadrante, é mais crítica e sensata a advertência de Joel Cohen (cit. ibidem): ―Procura fazer com que todas as crianças sejam bastante bem alimentadas para aprenderem na escola, e sejam bastante bem educadas para resolverem os problemas que terão de enfrentar como adultos‖. Dir-se-ia que a grande Lição (ainda escondida...) dessa ‗lei de ferro‘ de T. Malthus (em 1798) consistiu, precisamente, em alertar a humanidade do futuro para o pechisbeque ou contrafacção, a ‗mercadoria falsa‘: seja no concernente aos Objectos (mercadorias) legitimamente objectualizados/coisificados, seja no atinente aos Sujeitos humanos, que não devem ser coisificados nem reduzidos a mercadorias. Esta é a base estruturadora e inultrapassável para a edificação do Projecto do Socialismo autêntico e honesto (i.e., não falsificado...)!

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Neste nosso horizonte crítico, a grande Desgraça que é frequente ocorrer é que (quase) todas as investigações sobre a problemática do crescimento da População seguem (religiosamente...) a mesma cartilha adoptada sistemicamente, v.g., por Paul Ehrlich (da Univ. de Stanford), no livro que dá pelo título: ‗The Population Bomb‘ (1968): ‗hundred of millions of people are going to starve to death‘. ‗The cancer of population growth... must be cut out‘... ‗by compulsion if voluntary methods fail‘. — Será que tem mesmo de continuar a ‗lei de ferro‘ do despotismo iluminado e a sempiterna Cultura do Poder-Condomínio?!... É indiscutível que, relativamente a tais prognósticos, a própria ‗Revolução Verde‘ veio alterar significativamente os dados tradicionais da situação, já considerada como problema explosivo!... Escreve R.K. (ibi, p.45): ―Quando baixa a mortalidade infantil, os casais têm habitualmente menos crianças, — mas esta transição leva ordinariamente uma geração, pelo menos, para se concretizar. Hoje, nos países desenvolvidos, uma média de 2.1 nascimentos por mulher manteriam uma população estável; no mundo em desenvolvimento, a ‗replacement fertility‘ é um pouco mais alta. Durante o período que leva a taxa de natalidade a pôr-se em ordem no quadro do novo equilíbrio com a taxa de mortalidade, a população explode‖. Em suma, o horizonte limitado (pela própria gramática da Modernidade...), que nos impunha um método analítico de funcionamento dentro do quadro de T. Malthus, viu-se quase completamente estilhaçado, desde logo, em virtude das novas coordenadas, oriundas da complexa problemática ecológica (ex extra); e, logo a seguir (ex intra), em virtude das contradições e disfuncionamentos graves do Sistema capitalista, que só mentes demenciais e apocalípticas cairão na temeridade horrorosa de prolongar por mais tempo!... Neste tempos de Pós-Modernidade positiva e crítica, do que a Humanidade precisa, basicamente e acima de tudo, é de hastear, no horizonte do presente e do futuro, a Bandeiura da Paz permanente: só por esta via, em Sociedades democráticas organizadas na base da Liberdade Responsável, poderão crescer e evoluir, exponencialmente, a Inteligência e a Consciência dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. É o único caminho aberto para o sonho/utopia da vera Autonomia dos Indivíduos-Pessoas, que se acha na Grund-Struktur de qualquer Sociedade humana digna do nome. Esta poderá ser muito bem a grelha de exigência e promoção de uma vera e profunda Revolução Cultural, por que todos podemos bater-nos, em nome, cumulativamente, de uma vera transição da hominização para a humanização da ESPÉCIE. 172


Alguns marcos miliários, que poderão ser assinalados como precursores deste novo horizonte de uma certa humanização em marcha: Revolução do 25 de Abril de 1974: a lusa ‗revolução dos cravos‘, que pôs termo, pacificamente, a uma ditadura; Revolução iraniana de 1979 (destituição do Xá da Pérsia Reza Pahlavi e entronização do Ayatollah Komeyni, enquanto chefe de uma revolução islâmica shiita; Queda do Muro de Berlim (1989) e Colapso da URSS (1991); a Revolução polaca do Solidariedade (Solidarnosc (1989); a ‗Revolução do Jasmin‘ (Tunísia: Janeiro de 2011) (cf. ‗Expresso‘ de 21.1.2011, p.28). Outras reformas, revoltas e/ou revoluções que, como nas pedras alinhadas do jogo de dominó, se irão seguir, no mundo árabe-islâmico, à escala de cada Estado-nação.

Pretender, portanto, encarar e resolver (segundo o método dos ‗compartimentos estanques‘ da Modernidade) o problema da sobrepopulação do Globo (identificado como tal há pouco mais de dois séculos), com as soluções tradicionais da pura e simples limitação quantitativa da taxa de natalidade, confrontada com a taxa de mortalidade (infantil e adulta), constitui, hoje, uma via ideológica de mentes unicórneas, — o que, de resto, já fora denunciado, nos anos ‘60 do séc XX, por Herbert Marcuse no seu livro ‗O homem unidimensional‘. Há mais problemas igualmente graves para resolver, imbricados uns nos outros, até à sua base estrutural/estruturante, que é a condição degradada do Psico-Sócio-Ânthropos e a sua escala pan-envolvente. A Terra-Mãe continua a ser a Casa comum da Humanidade; apesar de, no encalço das viagens interplanetárias, sempre dinamizadas pelo espírito de conquista e dominação em busca da ‗last frontier‘, poderem surgir alguns astros (a Lua? Europa, satélite de Júpiter?...) para a possível resolução da pletora da humanidade na Terra. É, pois, o Planeta Terra que aos Humanos, dignos do nome, cumpre cuidar e preservar, da melhor forma e a bem de todos. Face à crescente degradação dos Ambientes e das condições de vida na Terra (no concernente aos humanos e às restantes espécies biológicas), e perante a Complexidade enorme da problemática ecológica (com um leque de causas multifactorial), essa é, hodiernamente, a gramática de actuação e comportamento a ter em conta, visto que se afigura omni-toto-abrangente. E para grandes males, grandes remédios!... Sob a condição estruturadora de refontizarmos as diferentes vias de soluções na Cultura da Liberdade Reponsável dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos e sua Consciência. As 173


ilusões e os enganos, sobredeterminados pelo tradicional Despotismo iluminado, bem como pela religião do Objectivo-Objectualismo, já não fazem sentido e constituem um atraso de vida. As necessárias e imprescindíveis Defesa e Preservação do Meio-Ambiente Natural (com a imediata correcção das degradações inerciais já ocorridas) constituem o mandamento nº 1 para todas as Sociedades humanas do presente e próximo futuro: é a própria sobrevivência da Espécie humana que está em causa, bem como, muito simplesmente, as condições de vida na Terra. Esta magna problemática não começará a ser resolvida, com verdade e eficácia, sem passar pelo Diálogo cidadão e pelas intervenientes manifestações esclarecidas das populações em causa (por uma ou outra razão...). A opção por este caminho (pluralista, centrado nos Sujeitos reais, e não apenas nos objectos objectualizados) é tanto mais premente e primacial, quanto as Sociedades humanas hodiernas se configuram, até por força dos elevados níveis tecno-científicos ou que operam, cada vez mais afuniladas e enclausuradas: quase deixou de haver, nos tempos que correm, debate aberto em espaços públicos, que muito justamente Karl Popper considerava próprio do que ele chamava ‗Sociedade Aberta. O que assim se está a preconizar e a impor, sem hesitações, na maior parte das situações e dos casos problemáticos pendentes, é a prevalência do sentido vectorial comprovado nas manifestações esclarecidas das populações e no Diálogo cadadão, sobre as próprias orientações procedentes das instituições societárias, com as respectivas competências científicas e tecnológicas ideologicamente instaladas. É preciso evitar e impedir vias de sentido único!... De resto, deve advertir-se que o próprio uso instrumental da Ciência (como decorre da sua gramática sócio-antropológica) e a pressuposta competência científica dos ‗peritos‘ devem passar pelo crivo desse Debate cidadão aberto. Foi, de facto, em tal horizonte, que se vieram a instaurar os CIRVER (Centros Integrados de Recuperação, Valorização e Eliminação de Resíduos); e, no seu seguimento, as soluções práticas, capazes de combinar a coincineração de resíduos industriais perigosos (medida mais económica...) como os CIRVER. Estas teses, grosso modo, foram defendidas e fundamentadas de modo brilhante pela académica Helena Mateus Jerónimo (docente do I.S.E.G.), no seu livro: ‗Queimar a Incerteza. Poder e Ambiente no Conflito da CoIncineração de Resíduos Industriais Perigosos‘ (Edit. pela Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2011). Este é, sem dúvida, o caminho do estudo aprofundado dos problemas no que o C.E.H.C. designa por hemisfério dos objectos. De igual modo, há, paralelamente, 174


todo um caminho a percorrer no hemisfério dos Sujeitos livres e responsáveis (dotados de consciência reflexiva e crítica), — a propósito, por exemplo, de todas as matérias que dizem respeito ao Multiculturalismo: um jargão que se tornou, mediante o catecismo das ideologias como instrumento do Poder, muito mais moeda de troca do que valor de uso (na linguagem marxiana). Na esteira de Michel Foucault e da sua investigação sobre a Arqueologia do Saber (no caso concreto, as ciências humanas) é, ainda hoje, útil e de bom conselho a leitura ou releitura da sua obra metodológica maior: ‗As Palavras e As Coisas‘ (Portugália Editora, Lisboa, 1968). Nesta perspectiva, por conseguinte, é preciso e urgente proceder à investigação crítica da arqueologia do Multiculturalismo e das suas funções ideológico-políticas nas Sociedades contemporâneas. Pretende este painel de postulados críticos significar que é preciso, quanto antes, trazer Verdade e Justiça, tanto às ciências da Terra e da degradação do Planeta, como às ciências históricas da Cultura e da Civilização e, na base de ambas, ao Psico-Sócio-Ânthropos. Não é mais legítimo, aos dirigentes e governantes, continuarem enganados e a enganar as populações submetidas, com a parafernália ideológica do Poder d’abord, que tudo procura instrumentalizar!... Temos, diante de nós, o ‗Manifesto for Egypt‘ de Mohamed El-Baradei (que foi, primeiro, publicado na Web, na véspera do regresso ao Egipto dos líderes da Oposição, e transcrito, depois, no ‗Newsweek‘ de 7.2.2011, p.28). O seu autor foi, desde logo, detido à sua chegada, pelo regime do Presidente/Ditador H. Mubarak. As teses que aí são afirmadas, à puridade, são lancinantes e disruptivas para o status quo; pretendem ultrapassar todos os enganos e equívocos ideológicos, numa situação decisiva, como foram as duas semanas de uma revolução que se quis pacífica (por parte das massas-populares em cólera, gritando: ‗Irhall‘ = ‗Be gone‘: vai-te embora, que não és desejado), mas contou ainda com mais de 300 mortos... Resumindo as ideias centrais: — critica severamente a Secretária de Estado Hilary Clinton, que entendia a situação no Egipto como ‗stable‘ e ‗looking for ways to responde to the legitimate needs and interests of the Egyptian people‘: a pseudo-estabilidade resume-se a 29 anos de ‗leis de emergência‘ e um presidente com poder imperial durante 30 anos; — os USA são séria e radicalmente atacados por adoptarem a política ‗dos dois pesos e duas medidas‘ (‗double standard‘), tornando-se cúmplices com os regimes autoritários, desde que eles assegurem os seus interesses, no Médio Oriente e no Mundo; — é denunciada como falsa a política norte-americana, no con175


cernente ao mundo árabe, polarizada no dilema: ou regimes autoritários ou jihadistas islâmicos; — é fortemente condenado o erro da política internacional norte-americana, que estabelece, sistemicamente, a equação Islão político = Al Qaeda; evoca a ‗fatwa‘ que um grupo de muçulmanos ultra-conservadores promulgou contra ele, compelindo-o a arrepender-se sob pena de morte; — lamenta que a população não seja autorizada a subscrever, com o seu B.I., qualquer documento a exigir a mudança de regime, mas, em contrapartida, estiveram na praça Tahrir mais de um milhão de pessoas a reclamar reformas democráticas fundamentais. Agora, somos nós a adicionar uma nota sobre a ‗Muslim Brotherhood‘, que, no Egipto de Hosni Mubarak, se tem posicionado na Oposição ao regime. A ‗Irman-dade Muçulmana‘ foi fundada em 1928 por Hassan al-Banna, como uma espécie de células paramilitares segundo a cartilha fascista de então. Por vocação e tradição, os ‗Irmãos Muçulmanos‘ (apesar de alguns desvios ocorridos, alimentando a violência e o terror...) prestam assistência social e de misericórdia de vários tipos, às populações, que não são socorridas pelas instituições oficiais do Estado. Hoje, a ‗Irmandade Muçulmana‘ conta mais de 100.000 associados (cf. ‗Newsweek‘, 14.2.2011, pp.27-29). Trata-se, pois, em geral, de gente ideológica e doutrinalmente bem apetrechada: as suas elites, o que pretendem é que o Poder (constituído oficialmente) recue até às suas bases, que são o povo real, de sorte que, nos seus detentores, toda a Sociedade esteja verdadeiramente representada. Um desiderato/exigência, que não deixa de ser, igualmente, próprio da boa Cultura do Ocidente. Zbigniew Brzezinski (conselheiro do Presidente Jimmy Carter, durante a queda do Xá e a revolução no Irão de 1979), que tem falado de algumas ‗revoluções pacíficas‘ na Europa, é um homem atento à ‗revolução demográfica‘ no Médio Oriente, a que deu o nome de ‗political time bomb‘ (cf. ‗Newsweek‘, 7.2.2011, p.52). Entende ele, na base, que há hoje, no mundo, uma população de jovens, entre 80 milhões e 130 milhões, procedente de uma classe média baixa socialmente insegura, cheia de cólera, paixões, frustrações e ódios. É uma população de revolucionários à espera da hora!... Uma sorte de ‗bomba-relógio política‘. A propósito das revoluções, que tiveram lugar na Tunísia, no Egipto, no Yemen, e em outros países árabes-islâmicos, ele faz a seguinte advertência (ibidem): ―Todas as revoluções são jovens. O que é novo é a escala da numerosa juventude desafectada e o nível da sua consciência política. Aos slogans partilhados, cumpre acrescentar que há, aí, uma boa quantidade de ideologia, à mistura com emoção e ódio e nacionalismo‖. 176


Mais que a democracia, segundo o catecismo formal do Ocidente, o que essa juventude pretende são os meios adequados para a realizar: ―O que essa gente jovem pretende é a dignidade política. A democracia pode reforçá-la. Mas a dignidade política pode também envolver a auto-determinação étnica ou nacional, a auto-definição religiosa, e os direitos humanos e sociais. Tudo isto tem, agora, lugar num mundo ligado electronicamente, onde os jovens se encontram com uma aguda consciência das iniquidades económicas, raciais e sociais‖ (idem, ibidem). Poderia até falar-se de um conflito de gerações encoberto, que alguma boa ‗globalização‘ está, igualmente, a promover. Será, desta vez, que vamos começar a assistir à demolição inicial do ‗eterno retorno‘ historicista da Cultura do Ocidente?!... Neste complexo contexto analítico (agora, muito mais complicado, porque ocorre realmente à escala mundial), é caso para protestar: Andamos todos (a Ocidente e a Oriente, a Norte e a Sul) iludidos e enganados, não só pelos detentores dos Poderes Estabelecidos, mas também pela grande maioria das Instituições académicas do Saber, que lhes fazem a corte e lhes respaldam as decisões e as actuações. Fala-se, hoje, muito das crises financeiras e económicas, como se aí residisse o centro dos centros do Mal-Estar da Civilização. Ora o que a Realidade acusa, à luz dos holofotes da Crítica do C.E.H.C., é uma gravíssima Crise de Valores, de uma vera Ética/ /Moral, capaz de servir de alicerce substantivo da organização jurídica e política das Sociedades humanas. A religião laica do Objectivo-Objectualismo, que serve de base e bússola à cartilha do Economicismo imperante, eclipsou, por completo, os Sujeitos humanos (individuais-pessoais), dotados de Consciência reflexiva e crítica. A Economia e a Política, a Cultura, a Ética/Moral e a boa Ordem jurídica é a eles que se destina; porque são eles, justamente, a fons et origo de todos estes patamares ou camadas da Realidade.

A teoria/doutrina do C.E.H.C. sobre a Consciência Individual-pessoal como Alavanca de Arquimedes dos Sujeitos humanos livres e responsáveis, capazes de edificarem um Mundo humanizado, toto coelo diferente do tradicional e contemporâneo Mundo desumanizado, tem, obviamente, os seus fundamentos científicos inabaláveis: A) desde logo, no exigido, pela Evolução e pela Antropogénese científica, processus de socialização/humanização, em contraste com o simples processo da hominização biológica, que tem estado tradicionalmente em curso, sob o camartelo da 177


Cultura do Poder-Condomínio; B) nos postulados decorrentes da Psicologia científica humanística, que foi possível edificar ao longo do século XX, contra os ventos e as marés contrárias das correntes mecanicísticas e behaviouristas (onde se pode assistir ao auge da perversidade no ‗behaviorismo‘ de F. Burrhus Skinner). Estamos a chamar à colação o principal expoente da Psicologia humanística de teor científico, cuja obra se tornou um farol, no Ocidente, especialmente depois da IIª Guerra Mundial: Carl Rogers (1902-1987). A sua obra científica assumiu um vero carácter revolucionário na Cultura do Ocidente (europeu, americano, australiano). A sua oposição e combate sem tréguas às teorias behavioristas dos psicólogos de turno, quase sempre ao serviço do ‗Establishment‘, como fiéis ‗cães de guarda‘, são firmes e convictos e contundentes. É, sem dúvida, o principal fundador da Psicologia humanística científica, no séc. XX, depois de Merleau-Ponty e Georges Politzer. Durante duas ou três décadas, ele foi o Mestre, no Ocidente, de uma Psicologia humanística e de uma Cultura substantiva, centrada sobre os Sujeitos humanos, livres e responsáveis. Da sua vasta obra, é mister salientar duas, no plano estratégico e propedêutico: ‗On Becoming a Person‘ (1961); ‗Freedom to Learn‘ (1969). No plano prático-pragmático, ‗Psychotérapie et Relations Humaines. Théorie et pratique de la thérapie non-directive‘ (2 vols.), em colab. com G. Marian Kinget (1960). Carl Rogers foi o criador dessa iniciativa, tão celebrada, nos anos ‘60 e ‘70, que dá pelo nome de ‗Grupos de encontro‘, constituídos num pé de igualdade e de total liberdade de expressão, os quais se difundiram um pouco por todo o Ocidente. Deslumbrado com o seu êxito, o próprio Autor considerou-os como ‗a invenção social mais importante do século‘. Sensivelmente na mesma época, Ivan Illich reivindicou ‗Une Société sans école‘ (Seuil, Paris, 1971), porque era, e continua a ser necessário, ultrapassar um paradigma de Escola enfeudado ao Sistema Educativo nacional, por sua vez domesticado/controlado pelos Poderes centrais do Estado-nação. Lê Thành Khâi dissertou, objectiva/objectualmente, sobre ‗A Indústria do Ensino‘ (Liv. Civilização-Editora, Porto, 1970), considerando que era perfeitamente justa e indiscutível a aplicação da Análise económica à Educação, enquanto verdadeira ‗indústria‘, dado que o que deve pretender um Sistema Educativo é proporcionar a sua contribuição, numa perspectiva do Desenvolvimento económico e social da Nação, para uma combinação óptima dos ‗factores de produção‘.

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Entretanto, estava a ser estruturalmente pervertido todo o mundo da Psico-Pedagogia, mediante os programas nacionais da chamada ‗Pedagogia por Objectivos‘. Deve, aqui, observar-se que esta atmosfera perversa, que, nos anos ‘70 começou a invadir, como epidemia, o mundo da psico-pedagogia, adveio, de empréstimo das escolas de Economia e Gestão, que, na época, afinavam pelo diapasão de George Odiorne: ‗Gestão por Objectivos‘ (Liv. Clássica Editora, Lisboa, 1972). Quando os sintomas do mal-estar da civilização ensinam mais que a realidade chata!... Não diz o povo, com razão, que o pobre entra em desconfiança, quando a esmola é grande?!... Fios enleados e linhas contraditórias, como se dá conta... e o Carro de Jagrená prossegue sem emendar o caminho no bom e justo sentido!... Mas há sempre quem, indignado, diz Não à inércia e aos caminhos errados. Foi o caso de Carl Rogers e tantos outros, que não foram escutados pelos próceres do Establishment. A chamada Pedagogia Não-directiva fez escola. Continuou a ser celebrada, por ex., por Hubert Hannoun in ‗A Atitude Não-directiva de Carl Rogers‘ (Livros Horizonte, Lisboa, 1980). E com incidências, como é evidente, na problemática própria do foro do Poder. Consulte-se, nesta óptica, o livro de Bruno Biasutti: ‗Guia para uma Educação Não-repressiva‘ (a civilização contra a criança?) (Moraes editores, Lisboa, 1977/3ª ed.). Na verdade, a personalidade bem formada de um Indivíduo-Pessoa é uma construção (dinâmica, polarizada na consciência pessoal), de dimensão multifactorial, baseada nos dois hemisférios do edifício da vida consciente de si: A) Sujeito; B) Objectos. Para que a personalidade resulte bem formada, a relação entre os dois hemisférios tem de ser equilibrada e saudável. Essa relação, por seu turno, ao contar com a personalidade bem formada, não pode, absolutamente, dispensar o molde envolvente do modelo de actuação do Sujeito. Esse molde terá de incidir na dimensão inclusiva dos outros e do mundo, i.e., na construção, desde logo, de uma atitude amorosa, perante o outro e os outros da mesma Espécie. (Só neste horizonte se poderá plasmar o ‗uomo qualunque‘ de G. Agamben, que já é uma sorte de bissectriz entre o singular e o universal físicos...). Como se constrói e forma a Atitude amorosa diante dos outros? Em primeiro lugar, e na sua origem histórico-cultural, está o consabido Diálogo socrático, em todas as suas expressões e escalas psico-sócio-antropológicas. Em segundo lugar, dir-se-á que pode configurar-se a pedagogia não-directiva de Carl Rogers. Que nos ensina C.R., nesta pendência?

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O indivíduo-pessoa tem um sistema próprio de Auto-regulação, que lhe permite, simultaneamente, auto-motivar-se e avaliar a sua própria experiência com os outros e face ao mundo. Como é que C.R. fundamenta a auto-determinação dos indivíduos e a pedagogia não-directiva? As suas teses são simples e óbvias. O que é preciso saber e ter em conta é que elas se situam nos antípodas dos indivíduos domesticados e controlados e submetidos hierarquicamente, que preenchem os lugares dos pseudo-humanos nas nossas sociedades desumanizadas. Em resumo: o Indivíduo‘é capaz de se dirigir‘; ele ‗tem poder suficiente para tratar de maneira construtiva todos os aspectos da sua vida, que possam chegar ao campo da sua consciência‘. Tem capacidade de autodirecção, i.e., capacidade de ‗experimentar conscientemente os factores da sua inadaptação psicológica, ou seja, as incongruências entre o conceito do ego e as suas experiências‘. Nesta perspectiva, é óbvio que, saber ouvir e escutar os outros, não só pode curar, como constitui a base de uma vida positiva dos indivíduos, que os Poderes Estabelecidos continuam a igno rar sistemicamente. Eis por que, na base psico-sócio-antropológica, cada Indivíduo-Pessoa, não só carece do outro (a presença do outro) para ser ouvido, mas também enquanto efectiva terapêutica psicológica. O caminho psico-pedagógico mais elementar e básico é, por conseguinte, o de saber ouvir o outro com simpatia (não apenas empatia...), sem juízos pré-concebidos, respeitando, por inteiro, a sua interioridade (como já ensinaram os Gnósticos judeo-cristãos primevos). O que Carl Rogers observou, como terapeuta, nos seus pacientes e nos deixou como legado, pode resumir-se como segue: a) um sentimento positivo a respeito de si mesmo, uma vez que ninguém o desvalorizou; b) a descoberta do sentimento positivo de outrem para si mesmo, dado que foi respeitado na relação; c) a descoberta dos seus próprios sentimentos positivos para com outrem e, nesse vector, a necessidade de uma estrutural relação afectiva com os outros, em geral. Desta sorte, não é errado concluir-se que o próprio Amor possui energia curativa. Alberoni, a propósito do tema, falou de um processo de enamoramento. Deve advertir-se que, neste enquadramento crítico, os vícios do narcisismo só surgem, no processo psico-pedagógico, ut Diabolus in Musica, por efeito de uma total inversão da mundividência ideológica: pela porta do cavalo, reentrou o Império do Objectivo-Objectualismo, e uma vez que, aí, é sempre o Poder que molda e ‗mata‘ os indivíduos, hierarquizando-os e submetendo-os, a cartilha oficial, que se configura, é a da conquista e dominação dos outros à imagem do ‗ego ipse‘, a cartilha vulgar e corrente 180


da desconfiança perante os outros, da coisificação e do desprezo de todos os outros, desde que eles não se identifiquem com os meus sentimentos e ideias. Ora este é, sem dúvida, um mundo desumano, a girovagar (em curto-circuito) ao contrário da gramática do mundo humano. Em resumo: enquanto não se recuperar (à escala da Civilização Ocidental e de uma Civilização dita humana (?), em transe de globalização) o quadro e a gramática de uma vera Cultura substantiva humanizada, não haverá outra saída no horizonte a não ser a continuação da religião profana e laica do Economicismo, ancorado no imperalista Objectivo-Objectualismo, sob o estafado estandarte da Cultura do Poder-Dominação d’abord. Na sua Conferência electrónica (de 27 de Nov. de 2010), subordinada ao título ‗Os Desafios da Educação para além do Saber Escrever & Ler‘, o CEHC/América Latina deu-se bem conta desta problemática e do gravíssimo bêco sem saída, em que se encontra a Cultura do Ocidente e o Mundo, ao escrever o seguinte: ―E agora, no alvorecer do séc. XXI, no rescaldo da descolonização, em países submetidos politicamente a regimes ditatoriais, principalmente na Europa das máscaras ideológicas, como integrar societariamente as famílias que imigram fugindo das guerras civis? A política pública da Educação ocidental-europeia vê a situação de duas maneiras: 1 — Deixar que a massa de imigrantes, na maioria de origem muçulmana, se encaixe na linha sub-proletária do trabalho clandestino e sob a mão criminosa de sindicatos-máfias, e por essa via aprendem a comunicar oralmente; 2 — Alfabetizar societariamente a massa de imigrantes no limite do aprendizado ler-escrever e deixá-la à própria sorte, mas dando-lhe a possibilidade de acreditar numa integração precária em nova Casa-nação. Não se discute, na Educação pública das nações ‗afectadas‘ pela migração europeia, o valor sociocultural para a integração verdadeira dessas famílias: Que fiquem por aí, que se encaixem como puderem, pois serão sempre gente-de-fora na nossa terra‖ (p.2). O que este enquadramento crítico-analítico põe de manifesto são duas coisas geminadas: a) não há uma Cultura substantiva, na Nação de acolhimento dos imigrados; b) o que impera, absolutamente, é o Economicismo puro e duro: os imigrados serão sempre, aí, gente de segunda classe; possivelmente, confundidos com os peregrinos, os turistas ou os párias!...

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Os Autores do estudo em presença sabem muito bem o que a Cultura do Ocidente, nestas situações-padrão, não gosta de ver e omite: ―A questão não está no aprender a ler e a escrever para a integração de alguém numa Língua/Nação; a questão está no universo sociocultural e sem fronteiras, que se apresenta além da alfabetização: a Liberdade de estar e ser Humanidade em qualquer lugar da Terra‖ (ibidem). Por isso mesmo — concluem os Autores (ibidem) —, o que se faz, na melhor das hipóteses, é ―dar-se preferência à aculturação/Inclusão, em vez da fraternal integração sociocultural, com as suas sadias e naturais divergências‖. Em suma, teme-se sempre que o odre ideológico, constituído e moldado pela Potestas d‘abord do Estado de acolhimento, seja perfurado e rompido em demanda de planos e horizontes mais vastos da Humanidade, enquanto tal. O que neste Quadro crítico-analítico se denuncia e demonstra, mais uma vez, é que os Estados e as respectivas sociedades nacionais se encontram, ainda, organizados sob a bandeira do Poder-Dominação d’abord, onde o primado é sempre, inexoravelmente, do Poder sobre o Saber. Que diz Boaventura de Sousa Santos (B.S.S.) sobre o seu Projecto e o Regresso dos Espelhos? (Cf. ‗JL‘ de 12-25.1.2011). Na sua entrevista ao ‗JL‘ (ibi, p.27), ele procede à revelação do seu projecto nestes termos: ―O meu projecto é de auto-reflexividade. A Europa tem de começar a olhar para si, a partir das experiências daquilo que fez no mundo e daquilo que o mundo fez por si, sem a Europa ou apesar da Europa‖. ―Tem de ver tudo o que resultou da sua própria acção, com muitos aspectos positivos e outros negativos. A Europa sempre se reflectiu como superioridade não questionada, o que fez com que todos os outros não gostassem muito do que viam, porque a solução era adoptar os modelos europeus. Finalmente, é o regresso dos espelhos, não das caravelas. A Europa tem que se ver ao espelho, com base em toda essa experiência histórica e o que vê...‖ (ibidem). Confessando a sua vocação de investigador, o ‗sociólogo público‘ (como é chamado) proclama, numa tonalidade de modéstia: ―Sou um aprendiz inveterado. Interessa-me a sabedoria das pessoas com quem trabalho‖ (ibidem). Quanto a nós, no C.E.H.C., partilhamos, por inteiro, esta atitude e os respectivos sentimentos. Já não poderemos subscrever o mesmo sobre o Projecto de B.S.S. (desenhado e balizado nas 6 pp. referenciadas do presente ‗JL‘). Depois de lermos atentamente as duas peças publicadas no referido ‗JL‘ (a entrevista e o texto, elaborado sponte sua, ‗Boaventura, de A a Z‘), preparámos uma es182


pécie de Manifesto, com o título ‗B.S.S. e o C.E.H.C.‘ (datado de 16 de Jan. de 2011): é um confronto crítico, muito sucinto, (apenas 4 pp. A4), que enviámos, para conhecimento e opinião crítica, a 6 Profs. Amigos, em Portugal, e ao C.E.H.C./Escritórios América Latina (ao cuidado de João Barcellos/Cotia: São Paulo). A partir de 2.2.2011, (logo que o Texto do Manifesto foi passado a edição electrónica na Rev. Noética da Web, a partir de São Paulo/Br.), o C.E.H.C./América Latina procedeu a Conferência electrónica entre os seus associados nos vários Continentes, e Mário G. de Castro preparou, em conclusão, um resumo de 13 pp., titulado ‗Nós e o Mundo‘, que será, em breve, integrado numa edição impressa da EDICON (São Paulo), na colecção Palavras Essenciais/6. A súmula da nossa posição crítica, no Manifesto, pode definir-se e balizar-se no seguinte Quadro: A) Entre B.S.S. e o C.E.H.C., há diferenças substantivas e de tomo nas respectivas mundividências críticas e correspondentes Projectos para as mudanças necessárias e imprescindíveis a operar no Mundo. Queremos um Altermundialismo a sério e a partir das raízes; não apenas o projecto de uma ‗confissão de boca‘... Assim, numa posição crítica aberta e honesta, podemos falar de Convergências e Divergências, num Projecto in fieri. B) Em nome da comodidade funcional das operações de confronto entre as duas entidades, socorremo-nos, na nossa análise crítica comparativa, da Figura geométrica da Circunferência (ou da Esfera, em três dimensões). A conclusão afigurou-se-nos clara: em dois ângulos rectos (= 1 ângulo raso) podemos, aparentemente, estar de acordo; nos outros dois ângulos rectos (= 1 ângulo raso) dissentimos substantivamente. C) Como, entretanto, no universo humano, todas as coisas se acham interligadas a tudo, e o princípio axiomático dos filósofos da Escolástica medieval (‗bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu‘) continua, ainda hoje, válido, no horizonte da Filosofia Perene, segue-se, daí, que há dois Caminhos diferentes substancialmente, e que no limite se opõem: o de B.S.S. e o do C.E.H.C.. B.S.S. e o seu C.E.S. (Centro de Estudos de Sociologia), no concernente à Antropogénese da Espécie Homo, parece ficarem satisfeitos no patamar dos ‗hominídios‘ que a Natureza foi capaz de dar à luz, no Processo da Evolução biológica; a humanização/socialização (que faz parte da Antropogénese) e só pode ser facultada por uma Cultura humana positiva e substantiva, isso parece não lhes interessar. Como acon183


teceu num programa televisivo recente da ‗National Geographic‘ sobre a possibilidade científica da conquista da imortalidade biológica, mantendo ‗virgem‘ a floresta da imortalidade espiritual das três religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘, eles até serão perfeitamente capazes de embarcar nesta Nau... Ilusões e mais ilusões (Alienações!...Como eram chamadas, com precisão, em linguagem marxiana), que estas religiões continuam a alimentar no mundo dos cientistas, que têm, afinal, muita dificuldade em configurar concepções holistas da Realidade!... O mais grave de todos estes caminhos errados, é que o processus evolutivo da Antropogénese não saiu do patamar da hominização para entrar, definitivamente, no patamar da humanização/socialização (à escala da Espécie), como é exigido pela gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘, e não apenas pelo catecismo do ‗Homo Sapiens tout court‘. A Analogia (que estamos a recuperar, a partir desse programa da ‗N.G.‘) é bastante ilustrativa e contundente de todo um processo científico, levado a meias, sem qualquer dinâmica conclusiva válida e honesta. É sobejamente conhecido o processo de divisão das células vivas, no organismo, justamente para proteger e alimentar a vida. (Este princípio axiomático já era conhecido pelo Hermes Trismegisto do Antigo Egipto). Assim, no crescimento e desenvolvimento naturais dos organismos vivos, bem como nos seus processos de senescência e envelhecimento, a divisão celular (operada por efeito dos telomeres e pela telomerase) é sinal de vida e salutar. Por seu turno, a não-divisão das células (a sua tentação de ‗imortalidade bíblica‘) é sintoma de doença e marca de carcinoma, como bomba/relógio a prenunciar, antes do seu tempo de vida, a morte do organismo em causa. Os telomeres e a telomerase cumprem a sua função, no desenvolvimento da vida e no desenvolvimento da morte!... Os telomeres são a extremidade livre de uma célula (cromossoma, na origem), formada por sequências repetidas de ADN, que tem como função garantir que os ciclos de replicação sejam completos. Desta sorte, a telomerase é uma substância bioquímica bífida, que tanto dá para promover a divisão (salutar) das células e o crescimento do organismo vivo, como pode acelerar a sua morte, enquanto sintoma de câncro, a partir do momento em que pôs termo à divisão normal das células (na multiplicação de clones por mitose dando origem a metástases). Ora, o Projecto de B.S.S. ostenta, claramente, essas características bífidas, típicas da telomerase. Eis por que B.S.S., contentando-se com o processus elementar, na Antropogénese, da hominização, sem aceder ao da humanização/socialização da 184


Espécie... — ele nunca pode ter a coragem de pôr em causa a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord; mais: não se dá conta dos malefícios intrínsecos e extrínsecos, que ela desencadeia. Do mesmo modo, ele não pode ter a sensibilidade para identificar a Alavanca de Arquimedes da Cultura do Poder-Condomínio, que é, precisamente, o Dualismo metafísico-antológico de Platão e Paulo, e a maquinaria ideológica, daí decorrente, que dá pelo nome de Religiões institucionalizadas. Eis, também, por que ele não põe em causa, no horizonte das práticas das Ciências e da própria Filosofia, o estafado Monismo Epistémico, bem como a sua geminada religião, profana e laica, do Objectivo-Objectualismo. Acerca da problemática nuclear do Poder, como acontece, em regra, com as diferentes teorias/doutrinas políticas, oficiais na Cultura do Ocidente, — também ele não saiu da jaula de Niccolò Machiavelli (1469-1527) e da sua obra paradigmática ‗O Príncipe‘ (c. 1513), bem como da doutrina política que leva a sua chancela até ao presente: o maquiavelismo. Não esquecer que a doutrina desenvolvida por N.M. nos ‗Discourses on the First Ten Books of Titus Livius‘ (c. 1519) é perfeitamente complementar da expendida na obra por que ficou mais conhecido. O que, aí, adeja ao vento é a Bandeira da Potestas d’abord! Uma concepção do Poder, estabelecida por uma ciência política independente, onde Ética e Política se encontram separadas por abismos, vis-à-vis uma da outra. (Não esquecer que T. Hobbes (1588-1679), o grande pioneiro da ‗Great Separation‘ da Modernidade, embarcou no mesmo Paquete de N.M.). A isto, o C.E.H.C. diz e proclama: Basta, de uma vez por todas. Todos esses constituem, afinal, os caminhos errados, que a vera Cultura do Ocidente já deveria ter, há muito, considerado errados, a partir, justamente, das Mensagens gémeas de SÓCRATES e de JESUS. (Entre outras obras, vide ‗Sócrates e Jesus: Esses Desconhecidos!.../As Duas Revoluções Gêmeas’, edição da EDICON, São Paulo, 2001; Editora Estante, Aveiro, 2006. ‗Despaulinizar o Novo Testamento Sob o Signo do Jesuanismo‘, edição da EDICON, São Paulo, 2007; ‗Traição de São Paulo‘, Editora Ideal e Centro de Estudos do Humanismo Crítico, Guimarães, 2007).

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EM NOME DA PLURALIDADE DO PENSAMENTO E DA CULTURA: EXERCÍCIOS DA CRÍTICA CONTRA AS ARMADILHAS PERMANENTES DO „PENSAMENTO ÚNICO‟ E DO AFUNILAMENTO CRESCENTE DA CULTURA (EM SOCIEDADES ESTIGMATIZADAS PELA POTESTAS-DOMINAÇÃO D’ABORD).

A Dynamis (energia estrutural corrente) da Humanitas (original/originante) do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ é constituída, original e estruturalmente, por duas partes ou dimensões (reunidas em pares de opostos aparentes); são as próprias condições efectivas de vida que impõem, a essas partes ou dimensões, que se mantenham simbioticamente unidas, como é ordenado pela própria gramática bio-psico-sócio-antropológica. São elas (as partes ou dimensões): Interioridade (vida interior, espiritual)// //Exterioridade (vida material e condições materiais de existência); Subjectividade (de Sujeitos que se constituem como Seres conscientes, livres e responsáveis)//Objectividade (o ‗Dasein‘ que emerge na materialidade do Mundo e perante as operações do Conhecimento, capazes de identificar objectos ou coisas); Sensibilidade (tudo o que diz respeito aos Sentidos externos e internos, às Artes ou à Estética e à própria demanda da Ciência e das Técnicas)//Inteligência e Inteligibilidade (a capacidade de entendimento e da criação de novos mundos). Nesta perspectiva, a Razão e a Racionalidade constituem-se como funções subalternas do par de opostos aparentes Sensibilidade//Inteligência. Os diferentes pares de opostos aparentes, que se acham em construção no Estaleiro psico-sócio-antropológico, são superados e unificados de modo indissolúvel, pelas funções vigilantes da Consciência crítica dos Sujeitos humanos, Individuais-Pessoais. Essa Consciência, reflexiva e crítica, não pode ser, por definição antropológica, avaliada por agências externas e superiores, no esquema da sua redução a objectos ou coisas. Esta mesma é a conditio sine qua non para a eliminação (no Edifício psico-sócio-antropológico) dos chamados ‗Poderes separados‘ (ou sagrados/diviniza-

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dos); ao mesmo tempo, ela configura, justamente, o molde onde podem perfeitamente coabitar a Liberdade Responsável dos Indivíduos-Pessoas e os limites naturais do exercício dos Poderes, que vierem a ser estabelecidos. Quando se fala da gramática da DEMOCRACIA, não se podem esquecer as suas origens. É nesse horizonte crítico que os ocidentais, hoje, têm muitas dificuldades sérias em descortinar que tipo de sociedade irá resultar destas revoltas/revoluções das massas populares, em mais de uma dezena de países árabes-islâmicos (o que El-Baradei designou por ‗Primavera Árabe‘)... se o caudal vai ou não desaguar num regime democrático aceitável, seja ele laico ou islâmico. No Egipto e na Tunísia, o Exército funcionou como instrumento de segurança interna, o que é uma anomalia. Irá ter aplicação o ‗modelo turco‘ (da 1ª metade do séc. XX), onde as Forças Armadas dirigiram o processo de secularização da sociedade, servindo de tampão aos fundamentalismos islâmicos? Mas na última década, até a Turquia recuou significativamente no seu laicismo, — o que tornará mais difícil a aplicação do ‗modelo turco‘ nos dois países mais preparados para o efeito: a Tunísia e o Egipto. Todavia, o que neste puzzle de problemas se impõe, antes e acima de tudo, é o respeito pelas consciências dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, e que o Ocidente não caia na tentação, em nome da própria gramática democrática, de actuar, face ao mundo islâmico, com a teoria/doutrina dos ‗dois pesos e duas medidas‘. Ainda não saímos, felizmente (em termos culturais e civilizatórios), da ‗galáxia de Gutenberg‘ (iniciada com a invenção da tipografia, em 1450); até porque essa galáxia já havia, de algum modo, feito a sua emergência real, no séc. II da Era Cristã, quando se começou a generalizar (através dos copistas) o chamado ‗codex scriptus‘ da Bíblia, na Cristandade, em contraste com os rolos de pergaminho, utilizados anteriormente pelos hebreus. De tal maneira se impôs, ao longo de quase dois milénios, este novo meio de escrita e leitura, enquanto instrumento da Traditio religiosa e cultural e da transmissão dos Saberes adquiridos, que, no período do Renascimento, se veio a dar o nome (analógico) de ‗codex vivus‘ à Natureza, em confronto com o ‗codex scriptus‘ da Sagrada Escritura. Se continuam a exercer algum fascínio as promessas contidas no livro digital ou electrónico, deve saber-se que, hoje em dia, a resistência do tradicional livro impresso é, felizmente, ainda maior: as funções e as vantagens desta invenção tecnológica (que perdura ao longo de quase dois milénios) continuam a afirmar-se e a robus-

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tecer-se, na tormentosa época actual do seu confronto com o famigerado livro electrónico. As razões e os argumentos, para este Facto, podem perfilar-se em três planos: A) o livro impresso continua a ser mais cómodo e funcional no seu manuseamento, para quem estuda e investiga; B) por paradoxal que possa parecer, o material de suporte do livro impresso tem uma durabilidade incomparavelmente maior, em confronto com o material de suporte do livro electrónico; C) esta terceira razão é muito mais séria: a Internet, em geral (seu uso e abuso... de modo não ou pouco adequado), está a diminuir e a enfraquecer, drasticamente, a nossa (tradicional) capacidade de concentração e de estudo. Ela está, por conseguinte, a forçar-nos a uma marcha, ‗em passo de ganso‘, para o ‗Pensamento único‘ e o afunilamento da Cultura, — a qual já estava a ser pressionada e reforçada por factores externos, próprios do Processo civilizatório (sempre alavancado na concorrência e na competição capitalistas...), muito especialmente na época posterior à IIª Guerra Mundial. Só por eufemismo e sarcasmo q.b. poderemos admitir o título do artigo de António Guerreiro (de resto, criticamente bem articulado e fundamentado), no ‗Expresso‘ de 12 de Fevereiro de 2011 (‗Actual‘, pp.30-32): ‗O Livro Digital e o Demónio da Analogia‘. Quando a nossa maneira de conceber e escrever sobre as coisas, já perdeu o sentido complexo do léxico referenciado à Realidade real, e prefere o emprego de hipálages ou enálages, para edulcorar o texto... Dir-se-ia, nesta situação, que já saímos do universo diversificado da Realidade e da ‗lei natural‘, para o templo construído do ‗positivismo jurídico‘ e horizontes quejandos, que nos vão compelindo, irresistivelmente, para o ‗pensamento único‘. Mas o nosso Autor prestou-nos um bom serviço ao fazer referência a Bill Gates e à sua posição crítica sobre o livro electrónico, nos seguintes termos (ibi, p. 31): ―Causou algum frisson a seguinte afirmação de Bill Gates, o presidente da Microsoft: ‗A leitura no ecrã é ainda muito inferior à leitura no papel. Mesmo eu, que tenho ecrãs de alta qualidade e me vejo como pioneiro do modo de vida Internet, assim que um texto ultrapassa quatro ou cinco páginas, imprimo-o e gosto de o ter comigo e de o anotar. É uma verdadeira dificuldade para a tecnologia chegar a este grau de comodidade‘. Parece então — e este é um ponto importante — que o modelo de leitura a que o livro desde sempre fez apelo, e que implica, entre outras coisas, um tempo próprio, não é o mesmo modelo de leitura e de operações a que induz a rede e o ecrã‖. 190


Prevenindo e precavendo a Opinião pública e as Elites responsáveis (governamentais e não-governamentais), para a introdução e o lançamento, nos Mercados, das Novas Tecnologias, de modo não-adequado ou desadequadas em si mesmas (tendo em conta as funções, que eram chamadas a desempenhar), nós escrevemos, (editado pela EDICON, São Paulo, 2000), o livro que dá pelo título: ‗Em Torno das Novas Tecnologias e da Nova Economia‘ e pelo subtítulo explicativo: ‗As Duas Irmãs Siamesas no Contexto do Capitalismo Neoliberalista Pós-Moderno, ou seja, do ‗Capitalismo para Todos‘!...‘. — Ora, o Capitalismo para todos (preconizado por Margaret Thatcher e Ronald Reagan) foi uma bandeira, que não passou de uma miragem, porquanto a sua doutrina constitui uma ‗contradictio in terminis‘, o mais descabelado Absurdo!... Depois de fazer alusão às três fases, por que tem passado a atitude perante o livro electrónico (entusiasmo utópico, desilusão, pragmatismo que admite ainda o sonho iluminista...), A.G. admite a imputação do fascínio pelo livro digital à utopia ideológica do Iluminismo do séc. XVIII, — o que a nós, francamente, nos parece um ‗non-sense‘. Todavia, evoca, com aplauso, um artigo de Nicholas Carr (de 2008), onde se afirma, textualmente: ‗Nós não vemos a floresta quando procuramos na WEB, nem sequer vemos as árvores, só vemos ramos e folhas‘ (cit. ibi, p.32). Entretanto, A.G. procura recolher o melhor do pensamento crítico de N.C., para reafirmar algumas das suas teses, que ―encontraram fórmulas convincentes, empiricamente verificáveis por todos nós. Como aquela, escrita num livro que publicou recentemente [N.C.: ‗The Shallows. What the Internet Is Doing to Our Brains‘/2010], em que volta à sua tese de que a Internet está a mudar o nosso cérebro, destruindo o nosso poder de concentração e incentivando formas de pensamento, que enfraquecem o poder de reflexão. Aí, diz ele que o ecrã por onde acedemos à rede é ‗um eco-sistema de tecnologias de interrupção‘‖ (ibidem). Avocar espaços próprios, psico-culturais, para os exercícios de um Pensamento autónomo e de uma Liberdade responsável, por parte dos Sujeitos humanos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, constitui, hodiernamente, um empreendimento ciclópico, porque a religião do Objectivo-Objectualismo, construída na base da Cultura do Poder-Dominação d’abord, e assessorada pelas Novas Tecnologias, já só nos proporciona produtos/mercadorias do tipo ‗pronto-a-vestir‘, é ‗pronto a comer‘!... Está, de facto, a ser concretizada, em processo acelerado, a Teoria/doutrina do Rebanho humano. 191


• Multiculturalismo e o modo como a Modernidade resolveu a „Questão Judaica‟... Lições a ter em conta. É sabido (ou deveria sê-lo...) que o Multiculturalismo tem funcionado, na Cultura/Civilização do Ocidente, como um jogo de prismas para tentar resolver mal problemas sócio-culturais reais. Muitas vezes, ele não passa de um ‗scarecrow‘ do Establishment, para desviar ou afastar as atenções e as vozes críticas diante das soluções sócio-culturais e económico-sociais... inevitavelmetne erradas. É mister, hoje, concluir-se, em termos críticos, que o Multiculturalismo da época posterior à IIª G.M., até ao presente, falhou duplamente: a) não foi capaz de proporcionar uma cultura básica efectiva, no processo de integração societária dos imigrantes a jusante; b) não preservou nem defendeu, de facto, o que é (deve ser!) comum a todos os humanos, para além das diferenças étnicas e religiosas. Os dois corolários deste catecismo vesgo de actuação, no concernente aos programas políticos/nacionais, polarizados no Multiculturalismo, podem identificar-se como segue: 1º — o patriotismo foi-se dissolvendo e erodindo como se os nativos nacionais fossem gente nómada; 2º — o economicismo tornou-se absolutamente hegemónico, e as políticas nacionais substantivas, elas próprias, foram-se dissolvendo, num processus histórico, que só pode alimentar e reforçar o neoimperialismo capitalista das sociedades actuais em que sobrevivemos!... Num discurso ad hominem (crítico q.b.), Daniel Hannam (do Partido Conservador Britânico e membro do Parlamento europeu) escreveu um artigo no ‗Newsweek‘ (21.2.2011, p.39), subordinado ao título: ‗Cameron‟s Crusade: British Prime Minister takes a whack at Multiculturalism‘. Tese central afirmada e desenvolvida: ―Através da Europa, há o reconhecimento de que o multiculturalismo falhou nos seus próprios termos, criando guetos e pondo de parte, muito especialmente, algumas mulheres imigrantes, perante a plena participação numa sociedade livre‖ (ibidem). Aduz D.H., no seu texto, que David Cameron enfatizou a distinção entre a devoção islâmica e o extremismo da jihad, para argumentar e concluir que há certos valores básicos, que uma sociedade liberal deve esperar dos seus cidadãos: ―secularismo, governo representativo, liberdade pessoal e a regra da lei. Ele advertiu que ‗a doutrina do multiculturalismo de Estado‘ havia conduzido a comunidades separadas 192


em lugar de as integrar‖. D.H. não receia asseverar que ―o multiculturalismo, por outras palavras, não foi uma resposta às exigências dos imigrantes; foi, antes, uma forma de anti-culturalismo, um pretexto para atacar qualquer manifestação de patriotismo‖ (ibidem). Como se vê, o processo até nos pode evocar, criticamente, a fita de ‗Moebius‘!... Ou, afinal, um qualquer curto-circuito, na medida em que nada se resolve, definitivamente, e nos limitamos a andar de Sila para Caríbides e vice-versa!... Uma Lição crítica (estrutural) a ter sempre em conta: A Teoria do ‗bode expiatório configura-se e é construída, precisamente, no horizonte do Objectivo-Objectualismo, sob o camartelo dogmático da sempiterna Cultura (uniformizadora/uniformista) do Poder-Dominação d’abord. A sua cartilha metodológica (que é, igualmente, ideológica) é a do Monismo epistémico (ou seja, uma epistemologia ancorada, estritamente, na epistéme das ciências físico-naturais). Sobremaneira depois do Iluminismo (setecentista e oitocentista, mas não só, porque o anti-semitismo procede já do N.T. cristão/paulino e teve expressão oficial na própria Liturgia da I.C.R. até ao Concílio Vaticano II...), a chamada ‗Questão Judaica‘ constituiu, sistematicamente, o ‗bode expiatório‘ de uma ocidental Cultura cristã; logo que esta se emancipou, na Modernidade, na sua versão secular e laica, a ‗Questão Judaica‘ acabou por configurar-se como o Ersatz compensatório da Cultura do Poder-Dominação d’abord, que tanto panenvolveu a Cristandade propriamente dita, como, de resto, toda a Cultura Ocidental secular e laica, hoje em transe de globalização. Nas duas últimas décadas do séc. XIX, com a reclamação, por parte de Leo Pinsker, de um território para o povo judeu, e com a publicação de ‗O Estado Judaico‘, de Theodor Herzl, o movimento contemporâneo, que dá pelo nome de Sionismo, tomou corpo e forma. Durante a IIª G.M., é conhecida a evolução, que veio a desembocar na ‗solução final‘ do nazismo; e nas oitavas da IIª G.M., em 1948, foi constituído o Estado de Israel, na Palestina. O ‗judeu errante‘, perseguido nas Cristandades ao longo de milénios, encontrou, finalmente, um território para a sua nação!... Os dois textos de Karl Marx, em torno de ‗A Questão Judaica‘ (que, depois, vieram a ser reunidos em livro autónomo: vd. ‗Sobre a Questão Judaica‘, Cotovia, Lisboa, 2011), sairam em 1844, numa revista, como resposta a um ensaio de Bruno Bauer (que, da Direita, passou para a Esquerda hegeliana, à qual também pertenceu Marx) titulado ‗Die Juden frage‘. A ‗questão judaica‘ que, para B.B., já girava em torno da emancipação dos judeus, podia formular-se como segue: um Estado, decla193


radamente cristão, como a Prússia, poderá abolir as restrições atinentes à participação dos judeus nas instituições civis? B.B. achava que sim. Marx, entretanto, entende que é preciso ir mais longe: o próprio conceito de emancipação política deve ser submetido à crítica. Ora, é justamente nesta perspectiva inovadora (perante o próprio fundador moderno, Thomas Hobbes, da ‗Great Separation‘ entre a Religião e a Política!...), que Marx pode entrever que a emancipação política não diz respeito, apenas, aos judeus ghetizados, mas, afinal, a todos os homens. Nesta óptica, ele considera, acertadamente, que a Religião é ‗o ópio do povo‘, — tema que formulou e desenvolveu na sua ‗Crítica da Filosofia do Direito de Hegel‘ (Editorial Presença, Lisboa, s/d). A Marx só faltou acrescentar (para evitar todos os equívocos...) a qualificação precisa do sujeito da frase: ‗a religião [institucionalizada] é o ópio do povo‘. Marx, na sua argumentação contra B.B., entende que é toda a sociedade que se deve emancipar da ‗usura e do dinheiro‘, — o que, para ele, é equivalente ao ‗judaísmo prático e real‘. Na linha da sua argumentação, tornavam-se óbvias as suas conclusões finais: não haverá emancipação sem a supressão do que ele chamou a ‗essência empírica do judaísmo, a usura e os seus pressupostos‘. Dando corpo a esta tese, ele havia afirmado, algumas pp. antes, que ‗o dinheiro é o deus zeloso de Israel, o deus que anula a existência de qualquer outro‘; mais: a emancipação social do judeu realiza-se ‗na medida em que a sociedade se emancipa do judaísmo‘. Afirmações destas valeram a Marx ser acoimado de traidor às suas origens judaicas; chegou mesmo a sair, em 1960, ‗A Questão Judaica‘ numa tradução inglesa com o título diabolizante ‗A World Without Jews‘!... Como e por quê caiu Marx nesta armadilha retórica? A) Porque não se distanciou, criticamente, o suficiente da Sociedade hegemonicamente cristã, em que vivia. B) Porque a sua grelha crítico-analítica se configura, ainda, dentro da órbita objectivo-objectualista da Modernidade. Aconteceu com Marx o que havia ocorrido com a Cristandade: embarcada, desde Paulo, no Império Romano (não foi preciso esperar pela ‗constantinização‘ da Igreja em 313...), a responsabilidade da morte de Jesus Cristo foi, ao longo de dois milénios, atribuída aos judeus; e, entretanto, sem a Potestas suprema do Império Romano, na pessoa de Pilatos, o Sinédrio dos judeus não poderia ter decidido a morte e execução de Jesus. Ora, quem, nos sécs. XIII-XV, veio a sancionar e a legitimar, superiormente, o princípio doutrinário do ‗prestamo all‘interesse‘, que se encontra, de facto, nas práti194


cas correntes da usura e da divinização do dinheiro, foi, precisamente a I.C.R.. Desta sorte, o presumível anti-semitismo de Marx não é de ordem racial; mas, outrossim, de ordem societária. E, aqui, Marx, como aliás os seus críticos ou comentadores, é vítima de um Erro epistemologicamente categorial, em virtude de, na sua análise crítica, não ter entrado em linha de conta com a presença decisiva da Potestas (imperial) absolutamente dominante: a I.C.R. (com a sua medieval ‗teoria do Sol e da Lua‘!...). A situação é análoga à daquela criatura que andou à procura dos óculos perdidos por toda a casa, e só no fim se deu conta de que os tinha na sua própria cara!... Neste imbroglio objectivo-objectualista se deixou cair o analista crítico António Guerreiro, ao escrever (in ‗Expresso‘/Atual, 29.1.2011, p.29) numa tonalidde de catedrático: ―Resta o antissemitismo patente no facto de Marx formular assim a sua descoberta: o dinheiro enquanto elemento universal do tempo presente e expressão de uma autoalienação do homem é obra dos judeus. Dito de outra maneira, é com os judeus que se dá a emergência do capitalismo, ainda que eles tenham depois perdido o lugar que detinham na dialéctica materialista da produção capitalista. A ‗questão judaica‘ torna-se assim, também, um problema de assimilação que, na tese de Marx, assume esta forma: não são os judeus que se tornaram semelhantes aos cristãos, foi a sociedade inteira que se judaizou. Isto é: a ‗essência empírica do judaísmo, do comércio e dos seus pressupostos‘ — o dinheiro, a usura e o egoísmo — encontra a sua realização na sociedade civil, que emergiu com a Revolução Francesa. Em suma: o espírito judaico é o espírito do capitalismo, não no sentido em que todo o judeu seria um capitalista, mas no sentido em que todo o capitalista é um judeu‖. A.G. chega a lembrar que o vocábulo alemão Judentum já encerrava, na época de Marx, uma semântica equivalente a ‗comércio‘, gente dada ao comércio!... Salienta, entretanto, que não são os judeus que Marx profliga, mas a fé judaica. Em suma, o que Marx recusa é toda e qualquer religião, que ele encara como uma espécie de infância da Humanidade. Mas A.G. parece ficar contente ao afirmar, ao rés-do-chão de uma história linear, que ―Marx participou na difusão de um lugar-comum da sua época, fazendo uma caricatura do judeu como um usurário, que só pensa no dinheiro‖ (ibi, p.30). Decididamente, não é por esse caminho de uma ‗hermenêutica de trapézio‘ que nós prosseguimos a nossa marcha. De facto, nem Adam Smith, na sua obra capital ‗Enquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations‘ (1776), nem Max

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Weber, na sua obra célebre ‗A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo‘ (19045), avançaram até aos equilibrismos de circo de A.G. acima esboçados. Em resumo, na era da Pós-Modernidade positiva e crítica, como nós defendemos no C.E.H.C., os vícios e os erros do Objectivo-Objectualismo e do Monismo Epistémico só se podem superar e vencer, integrando sempre o coeficiente do Poder (estabelecido) em toda a científica análise crítica dos fenómenos e suas situações. É neste horizonte, por conseguinte, que faz todo o sentido a metodologia epistémica, que nós temos identificado como ‗gramática da História ao terceiro grau‘. Dir-se-ia, nesta óptica, que a História até escreve direito por linhas tortas: depois do Holocausto nazi dos 20 milhões de judeus, o Movimento sionista não poderia desembocar senão na criação de um Estado judeu, polarizado na antiga capital do Estado de Israel (Jerusalém). A gramática da ‗História ao primeiro grau‘ fica confinada no horizonte e no plano fisicalistas; a ‗História ao segundo grau‘ (como a da gramática dos investigadores franceses dos Annales) tem em conta os enredos e as tramas sociológicas dos factos e acontecimentos; mas a vera História (própria do Psico-Sócio-Ânthropos) é uma ‗História ao terceiro grau‘, que não pode deixar de levar em conta as intencionalidades dos fenómenos sociais-societários, a dimensão psíquica dos factos e das situações. É precisamente porque as Culturas societárias vigentes (nem sequer as culturas académicas, que as dirigem e orientam...) ainda não foram capazes de se elevar à gramática da ‗História ao terceiro grau‘, que nas Sociedades contemporâneas se continua a praticar uma Lógica binarista, semelhante à lógica binária das máquinas automáticas. Exemplo: a problemática das Alterações climáticas, em consequência do ‗Global Warming‘. Dum lado, perfilam-se os críticos (estereotipados...) do ‗status quo‘; do outro, os seus defensores, per fas et nefas. Há quem esgrima, com uma ciência mais apurada (mas só no plano fisicalista...), como o astrofísico Piers Corbyn, que as teses de Al Gore, em nome do ameaçador ‗aquecimento global‘, constituem uma fraude, que só compromete o sucesso económico dos U.S.A.; e que esta teoria só serve para negociatas com as energias renováveis e para alimentar o comércio infame de direitos de emissão de CO 2. (Cf. ‗Expresso‘, 19.2.2011, Cad. Econ., p.22). Estes situam-se nos arraiais dos que não temem as ‗Alterações Climáticas‘ e preferem continuar com um Sistema capitalista irredento e invicto. O que eles temem, afinal, nos arraiais dos seus opositores (que não se can196


sam de criticar) são os projectos (críticos) emergentes de soluções socialistas, que lhes possam vir a desmantelar a ‗Casa‘ societária. Ora, quanto ao vero Socialismo, o seu projecto, no Processo histórico ao 3º grau, já foi elidido e eliminado pelos Poderes Estabelecidos, mais de uma dezena de vezes em vários países, desde a ‗Primavera dos Povos‘, em 1848, até ao presente!... — Ao que nos pode conduzir o Monismo Epistémico (que prossegue vigorando everywhere)!... Ao que nos pode levar o empíreo-criticismo de Ernst Mach, que Lénine já vituperava no seu tempo!... É que há, quase sempre, um tertium datur, que é, justamente, aquela via que a História real costuma adoptar. Um outro exemplo, para percebermos a importância das bússolas epistemológicas: Wilhelm Reich (1897-1957). É, sem dúvida, um dos fundadores mais destacados do Freudo-Marxismo; a sua obra vasta estilhaçou alguns dogmas do marxismo vulgata, como o do materialismo absoluto e o da dialéctica histórica necessitante. Todavia, ele não chegou a romper o odre do Monismo Epistémico, apesar dos esforços desenvolvidos para salvaguardar o espaço próprio e específico dos Sujeitos (humanos), do Subjectivo e da Subjectividade. Em suma, ele não chegou a entrar no que nós chamamos, no C.E.H.C., a nova era da Pós-Modernidade positiva e crítica. Dir-se-á que é, ainda, um Autor sitiado pela gramática da Modernidade. No seu livro ‗O que é a Consciência de Classe?‘ (Textos Exemplares, Porto, 1975), W.R., ao introduzir o 1º cap. sobre os dois tipos de consciência de classe (o dos dirigentes revolucionários e o das massas), lamenta que a cultura marxista cor-rente tenha ‗deixado a prática do factor subjectivo aos idealistas, [tendo-se] tornado materialista mecanicista‘ (p.12). No parágrafo seguinte (ibidem), ele estabelece o seu quadro estruturador: ―Para que seja eficaz uma política que se propõe como objectivo a conquista do socialismo e o domínio do trabalho sobre o capital, é de importância decisiva que não se contente em conhecer o efeito objectivo do desenvolvimento das forças produtivas sobre os movimentos e transformações sociais, o qual é independente da nossa vontade, mas que se aperceba também, dando-lhe a mesma importância, do que se passa nas ‗cabeças‘, quer dizer, na estrutura mental dos homens de todos os países, bairros, categorias profissionais, grupos etários e sexos, que estão submetidos a estes processos objectivos e os realizam‖. Nem Louis Althusser (in ‗Pour Marx‘, François Maspero, Paris, 1972) foi tão longe na problemática e nas orientações envolvidas nesta Tese de W.R.. 197


Desde logo, a teoria/doutrina de que há duas espécies de consciência de classe já constitui, sem dúvida, um tributo ao reconhecimento dos Sujeitos humanos e da sua Subjectividade, em graus variáveis. Escreve W.R. (ibi,, p.18): Assim, ―haveria concretamente dois tipos de consciência de classe: a da direcção revolucionária e a da massa; as quais devem convergir e concordar uma com a outra. A tarefa mais premente da direcção, para além do conhecimento preciso do processo histórico objectivo, é a de compreender: a) Quais as ideias e desejos progressistas existentes nas diferentes camadas, profissões, classes etárias e sexos; b) Quais os desejos, angústias e ideais que entravam o desenvolvimento do aspecto progressista (‗fixações tradicionais‘)‖. Dir-se-ia que W.R., na sua tese da dualidade da consciência de classe, perante o Projecto socialista e os programas revolucionários, não faz outra coisa senão desenvolver a ‗3ª Tese de Marx sobre Feuerbach‘, em esquema dialéctico-dialógico. Desta sorte, se a consciência de classe dos dirigentes revolucionários é mais objectiva e menos pessoal, a consciência de classe das vastas massas é mais pessoal e menos objectiva. ―A primeira inclui o conhecimento das contradições da economia capitalista e das enormes possibilidades da economia socialista planificada, o conhecimento da necessidade da revolução social enquanto adaptação da forma de apropriação à forma de produção e das forças históricas de orientação progressista ou reaccionária. A segunda está muito longe deste saber e destas vastas perspectivas, é feita do pequeno, do quotidiano, do banal. A primeira apreende o processo histórico e sócio-económico objectivo, as condições exteriores de natureza económica e social, às quais os homens estão submetidos; este processo deve ser compreendido, é preciso apropriar-se dele e dominá-lo se se quer ser senhor dele e não escravo‖ (na contracapa do livro). — É sempre o Saber que emancipa e liberta, em última análise ou instância; não a Potestas!... Por sua vez, os dois tipos de consciência de classe não são estanques, no concernente aos indivíduos que a eles pertencem; trata-se de tipos funcionais, com as suas dinâmicas tensionais próprias.

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DA POLÍTICA E DA CRÍTICA LITERÁRIA

• Na Linguagem corrente/quotidiana: o que é mais importante e decisivo? A Propaganda, a Publicidade, as Modas?!... Ou a prática do verdadeiro e do justo?!... O dia-a-dia dos Indivíduos/Pessoas/Cidadãos depara-se, inevitavelmente, com estas Questões e outras de teor análogo, que se lhes impõem como constantes ideológico-culturais, capazes de estruturar as balizas e a orientação de uma dada Sociedade, numa determinada via ou na que se lhe opõe: em tal situação, é imperioso ter ideias esclarecidas e energia psico-física para decidir bem. Sem uma básica tomada de cons-

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ciência sobre estas matérias, os indivíduos movimentam-se mecanicamente como zombies, bonecos de Stº Aleixo ou cabeças de gado num rebanho. Tradicionalmente, tem-se entendido e assumido que as Modas se acham polarizadas nos espaços societários dos usos e costumes dos povos e suas sociedades; que a Publicidade se refere às leis, decretos e regras emanados dos Poderes estabelecidos; e que a Propaganda concerne aos dirigentes políticos ou religiosos e suas agências. Não obstante, nos tempos nossos contemporâneos, o ‗Marketing‘ (agora avolumado e mais rapidamente difundido nas asas das novas T.I.C.‟s) assumiu de tal modo o primado sobre aquelas três realidades societárias distintas, que veio a sobredeterminar, no próprio universo básico da Economia política, toda uma atmosfera ideológica da Economicismo (capitalista). Neste contexto (que é o de uma Sociedade a funcionar em regime de condomínio fechado), Propaganda, Publicidade, Modas, — encontra-se tudo polarizado e concentrado nos Produtos/Mercadorias, destinados aos mercados e aos consumidores que a eles podem aceder. É o ‗Homo Sapiens/Rapiens‘ ou ‗Homo Sapiens/Demens‘ que aí vigora. O ‗Animal racional‘ (segundo a tradicional gramática corrente), através do ‗Animal ludens‘, transformou-se no ‗Animal consumens‘ (o que destrói e aniquila..., no oposto do ‗Animal consummans‘, de consummare = levar até ao fim uma actividade ou processo). Uma vez que se vive sob o Leviatão do Poder Separado (sacro e divinizado), não pode haver, aí, por definição, uma Organização verdadeiramente Democrática das Sociedades humanas. Por mais que o deseje e pretenda o ‗Borda d‘Água‘!... Nunca como actualmente (com um processo de ‗globalização‘ a meio-caminho, como o tolo no meio da ponte sobre o rio, sem rumo nem norte), houve tantos ‗mangas d‘alpaca‘, tanto no teatro político das Nações e da O.N.U., como nas cenas societárias da Economia política, onde patrões/empresários e analistas da Comunicação social se vão limitando à sobrevivência (profissional) do dia-a-dia. Desde 2007 até ao presente, toda a gente parece enxamear a linguagem com o discurso da CRISE (financeira, económica, e sobremaneira no ‗household management‘...). Muito pouca gente é capaz de denunciar a Crise generalizada da política e dos políticos; e ainda muito menos gente ergue a sua voz para protestar, do alto da Torre de menagem, contra a generalizada e estrutural e avassaladora Crise de Valores (humanos, ético-morais, não monetários...).

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Só se faz ‗Navegação à Vista‘: cabotagem de corsários (no mundo societário) e cabotinagem de ‗meia bola e força‘ (no mundo das artes). Neste horizonte (onde cada um olha por si e continua a ser suposto que ‗Deus olha por todos‘...), os necessários e indispensáveis Consensos, que eventualmente venham a surgir, são, via de regra, o resultado de ameaças e da imposição do mais forte; em suma, limitam-se a puras falácias (com consequências, claro...). A conversa e o discurso são, sistemicamente, estigmatizados pela sofística descarada, que já não esconde o espírito de dominação e conquista, sempre presente na indumentária!... Entretanto, já no universo da Cultura, já nos domínios da Organização societária, do que todos nós carecemos, hoje, antes mesmo da preparação de um Projecto Alternativo para as Sociedades humanas e para a Mundialização em curso, é de uma Pauta e uma Escola analítico-críticas, dignas do nome, para procedermos a um Balanço racional e inteligente do ‗status quo‘ ou ‗Establishment‘, em que sobrevivemos. É justamente nesta perspectiva que é pertinente e útil trazer à colação alguns respigos do pensamento político do filósofo francês Jacques Rancière (autor, v.g., de ‗O Espectador Emancipado‘, ed. pela Orfeu Negro), que, em Dezembro de 2010, veio à Fundação C. Gulbenkian, em Lisboa, proferir uma conferência subordinada ao título ‗A Era da Emancipação já passou?‘, integrada no ciclo ‗A República por Vir‘. A entrevista, que António Guerreiro lhe fez nessa altura, veio publicada no ‗Expresso‘/ /Atual de 11.12.2010 (pp.36-38). Vamos, a partir daqui, respigar e comentar algumas perícopas seleccionadas do texto de Jacques Rancière. Preocupação central do filósofo: pela negativa, fugir da identificação simples da política com o poder, as formas do poder e a luta pelo poder, pela razão elementar de que há política a partir de qualquer poder exercido sobre uma colectividade; pela positiva, defender a ideia de que é preciso continuar a reflectir sobre o que é um poder político (cf. ibi, p.36). O horizonte que se abre, para a semântica do poder político é claro e promissor (como diria H. Arendt): a demanda do Princípio (implicitado) da Igualdade Social, na República dos Livres e Responsáveis: ―A minha resposta é esta: um poder que se legitima por uma forma de superioridade já existente ou natural não precisa de se chamar política. Se se trata de uma situação em que são os ricos a impor a sua vontade aos pobres e os que são considerados detentores do conhecimento a guiar os ignorantes, estamos fora da política. Toda a política supõe que não exista essa espécie de superioridade ‗natural‘, essa ‗legitimidade‘ prévia ao exercício do poder. Deste modo, a política designa um poder parado201


xal, que não se baseia em nenhuma determinação ou autoridade social, mas antes num poder do ‗incompetente‘ ou de qualquer um. A minha ideia é a de que há política a partir do momento em que há a presença do poder de qualquer um‖ (dir-se-ia, escolhido à sorte. (Idem, ibidem). Há, desde logo, aqui, uma perfeita convergência com a noção do ‗uomo qualunque‘ do filósofo italiano Giorgio Agamben. J.R., para esclarecer e aprofundar a notio da política, socorre-se do confronto (científico e semântico) entre polícia e política. ―Há polícia quando há gestão de uma comunidade, governada por uma autoridade dotada de uma competência reconhecida para a exercer; e há política quando essa ordem normal das coisas é interrompida pelo poder daqueles cuja condição era o de não fazer parte dele‖. Por outras palavras, a política acontece como um Interruptor na corrente (eléctrica), constituída pelo curso normal das coisas. A mundividência crítica de J.R. distancia-se, sem dúvida, da noção de biopolítica de M. Foucault (ainda que entendamos esta noção como denúncia crítica do ‗status quo‘); J. R. recusa, expressamente, essa possível confusão, quando assevera: ―Foucault teorizava sobre as formas de poder que se exercem sobre a vida, o poder como modo de gestão da vida. De certa maneira, a biopolítica pertence ao espaço da polícia‖ (ibidem). É que, para Jacques Rancière (como, também, para nós), ―a polícia não é simplesmente um conjunto de técnicas de domínio sobre os corpos, é no fundo a configuração de um universo composto de grupos e interesses identificáveis, organização de uma totalidade que é objecto de um cálculo e de formas de negociação. E é isso que a política interrompe. Foucault teorizou, sobretudo, o poder sobre a vida. Quando se fala de biopolítica, há uma mistura de análise das técnicas do poder com uma teoria vitalista da política (bem visível em Toni Negri, que é uma espécie de junção da conceptualidade de Foucault com a de Deleuze). Quando falamos de biopolítica, não há apenas a ideia das formas de gestão da vida, há também uma concepção vitalista das formas de desenvolvimento da sociedade‖ (ibi, pp.36-38). J.R., tal como nós, está decididamente contra esta concepção vitalista da política, que foi partilhada pelo Marxismo (e seus próceres), na medida em que, nesta visão sistémica, é o próprio desenvolvimento das forças produtivas que, muito objectiva-objectualmente, faz explodir as relações de produção (na via conhecida, no Processo histórico, por dialéctica). Entretanto, o nosso filósofo não se dá conta, criticamente, do que está em causa em última análise, e sobredetermina a concepção vitalis202


ta (corrente) da política. Esse Adamastor tem um nome: Monismo Epistémico (ciências físico-naturais e ciências sociais e/ou humanas são metidas no mesmo caldeirão comum, que é o da única Epistéme conhecida e praticada: a das ciências físico-naturais). Sobre a problemática da vera Emancipação, Jacques Roncière acha-se em plena convergência com o C.E.H.C.. Também ele rejeita o modelo pedagógico do Mestre, que, pela sua ensinança, fez passar o discípulo da ignorância para a sabença, da menoridade para a maioridade, segundo a pauta adoptada pelo Iluminismo. O seu modelo, na verdade, parece aproximar-se daquele a que nós (no C.E.H.C.) damos o nome de socrático. Ele é claro e insofismável, quando assevera (ibi, p.38): ―O problema não é o da instrução e emancipação do povo, mas o de os indivíduos se emanciparem a si mesmos. Enquanto se pensar a emancipação em termos pedagógicos, como uma tarefa dos educadores que vão guiar os ignorantes, as crianças e o povo na via do progresso, está-se a reproduzir o modelo do mestre. A emancipação dá-se quando alguém se declara capaz daquilo de que foi declarado incapaz‖. Eis por que as democracias liberais, representativas e burguesas, que a Cultura/Civilização do Ocidente tem adoptado como a solução non plus ultra e pretende impor a todo o Mundo, no actual processo de globalização, — esses regimes democráticos (a dizer toda a verdade) são muito mais policiais do que políticos. O Estado funciona, aí, como uma máquina paradoxal: se o Estado é político, ele deveria referir-se ao Poder como sendo, efectivamente, de todos. Logo aí, ocorreu traição e corrupção: a máquina oligárquica apropriou-se de um Poder que é de todos. ―O princípio é o de que o Estado representa o povo, mas o que o Estado faz é organizar os meios da sua própria reprodução. O que significa que o Estado suprime, continuamente, a política, ao mesmo tempo que se levantam as vozes dos que reclamam fazer parte da discussão, das decisões. E aí começa a política‖ (idem, ibidem). O discurso canónico actual sobre a Crise e suas soluções uniformes e estereotipadas só confirma e demonstra, uma vez mais, que os agentes do Estado e supostos representantes do povo, não sairam da cartilha da polícia para dar lugar à gramática da política!... Com efeito, quando os agentes do Estado nos matraqueiam com a ideia de que só há uma única maneira de sair da Crise, ―o Estado pratica então uma forma requintada de ‗deslocalização‘. Da mesma maneira que as empresas se deslocalizam e vão instalar-se no estrangeiro, assim o Estado expatria os seus centros de decisão para o estrangeiro. O que é a Europa? É uma forma de deslocalização do Estado, encarna203


ção do poder mundial, anónimo, da necessidade económica. A Europa apresenta-se simplesmente como o império da necessidade económica...‖ (idem, ibidem). É sempre o mesmo pattern ‗político‘-policial a (dis)funcionar (como tem acontecido até ao presente, no Ancien e no Nouveau Régime): a partir da teoria/doutrina tradicional do Poder Separado (que a doutrina moderna, revolucionária, da Separação dos Poderes, religioso e político, não chegou a resolver substantivamente), a máquina dos Poderes estabelecidos (sempre com a chancela do sagrado...) é constituída, originalmente, e posta a funcionar de cima para baixo, e não (como cumpre), de baixo para cima, na base da consideração e do respeito, devidos aos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos Livres e Responsáveis. Por isso, até ao presente, o ideário e a gramática da DEMOCRACIA têm resultado, sistemicamente, eclipsados e malogrados. Na situação actual, a própria conotação médica da noção de ‗Crise‘ está a catapultar-nos, inevitavelmente, para o universo da biopolítica (que devemos sempre recusar, por pincípios psico-sócio-antropológicos): ‗o conceito de crise permite patologizar o espaço político‘ (idem, ibidem). Sempre sob os estigmas da patologia, nas primeiras décadas do séc. XX falava-se, expressamente, de ‗crise do espírito‘. É óbvio que a grande vítima de todo este discurso é o processo de emancipação. ―A partir do momento em que se declara a crise, toda a resistência à acção dos Estados e às formas de exploração, toda a afirmação emancipadora, são imediatamente traduzidas em termos de sintoma de um mal-estar‖ (idem, ibidem)!... Sobre o confronto entre as noções estereotipadas do ideário da democracia e do ideário do comunismo, (na costumada díade opositiva corrente democracia//comunismo), o C.E.H.C. distancia-se, tanto de Jacques Rancière como de Alain Badiou. É que nós ainda não saímos da religião do Objectivo-Objectualismo; nem do odre do Monismo Epistemológico. Ora o Projecto de um Socialismo autêntico e consistente tem de edificar-se, democraticamente, a partir dos Sujeitos, não dos Objectos: portanto a partir da gramática dos Sujeitos livres e responsáveis. Prestar atenção à questão de saber se há um poder que é o poder de todos é, para nós, um sofisma, o cair nas tentações do Objectivo-Objectualismo. Como são ainda visões viciadas, tanto a consideração da democracia como poder do povo (= entidade abstracta...), liberdade de expressão e representação procedente de eleições, num pólo, e no outro, a consideração da democracia como uma multidão de indiví-

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duos alienados e imbecis, que o consumismo e o espectáculo vitimizam sistemicamente. A nossa Reflexão e a nossa Crítica têm de mudar de Eixo!... Sobre as noções de consenso e dissenso (as que mais frequentemente aparecem no vocabulário político), o C.E.H.C. partilha a concepção radical, que J.R. procurou explicitar, na entrevista, por forma a desfazer ambiguidades (ibidem): ―O que eu disse foi isto: no fundo, o consenso é aquilo que é próprio da polícia, enquanto organização de um mundo sensível que se dá como indiscutível. E a política começa, pelo contrário, com o dissenso, que consiste em duas coisas: no facto de as pessoas que não são parte do poder do Estado, da gestão das coisas, se declararem competentes para fazer parte. Portanto, o dissenso faz com que actores imprevistos subam ao palco e digam que o que foi dito inevitável não o é. Uma situação é sempre uma construção. O dissenso consiste em proporcionar uma espécie de sentido comum, isto é, de relação entre as palavras, as coisas e os possíveis que se opõem à descrição dominante, que surge sempre como uma descrição única. O consenso diz: o mundo é assim, não podemos fazer nada senão ver como é que nos arranjamos. O dissenso diz que é falso dizer ‗o mundo é assim‘, porque é possível uma outra construção a partir de dados diferentes‖. — O que se está postulando não é o parergo conhecido dos revolucionários: ‗a Imaginação ao Poder‘; é, antes, e na sua base, a Imaginação (política) presente na cabeça de todos os cidadãos. Tudo se deixou cristalizar... tudo foi anquilosado e petrificado, no Esquema do Pastor e das cabeças de gado do Rebanho. Os Poderes Estabelecidos continuam, hipocritamente, a apostar no povo e nas populações (para legitimar o famigerado regime democrático), quando se trata de encomendar estatísticas às agências e institutos do ramo, para comprovar o ‗bom andamento‘ da ‗ordem/desordem‘ societária por eles arregimentada; mas não se assumem como veros representantes do Povo, quando impõem (ditatorialmente) às massas das populações toda a sorte de leis, decretos e regulamentos, (muitos dos quais excedem todos os limites da sensatez, do legítimo e do racional), como se o Povo não tivesse inteligência e vontade própria e devesse, por isso, ser tratado num plano puramente objectivo-objectualista!... Porque abandonámos, desde há dois milénios e meio, a Lição grandiosa e revolucionária, que SÓCRATES nos havia legado (o Diálogo e a Discussão, na sua base, inter-pares, para conceber e edificar a inteira Sociedade, em que vivemos), acabámos por ficar encurralados (em termos objectivo-objectualistas) nas duas posturas metafísicas antagónicas: A) a parmenideica (= os seres são permanentes e imutá205


veis...); B) a heraclítica (= os seres são movimento). Como não sabemos senão andar de Sila para Caríbides e vice-versa, não somos capazes sequer de presumir que há uma distinção essencial entre o caudal e o leito do rio (que uma outra disposição orográfica da geofísica teria construído em outro local ou região). Podemos mudar todos os trastes que temos em casa... mas não pensamos em mudar a casa para outro sítio... E se esta última hipótese se afigura impossível, por que não mudamos, nós próprios, de casa?!... • Não há Cultura substantiva, sem uma vigorosa Cultura filosófica, capaz de a alavancar e sustentar. E não há Crítica literária séria e fecunda, sem uma Crítica Filosófica substantiva, nos espaldares daquela cátedra. A partir dos anos ‘70 do séc. XX dissiparam-se os últimos vestígios de uma ‗Cultura substantiva‘, que, apesar de tudo, ainda havia na Civilização/Cultura do Ocidente. O processus histórico foi acompanhado (e sobredeterminado...) pela emergência impetuosa do movimento economicista, que deu pelo nome de neoliberalismo capitalista global, o qual, por seu turno, estava a ser acaudilhado pela difusão, everywhere, das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (T.I.C.s). Por que é que o C.E.H.C. é intransigente, na reivindicação e defesa de uma Cultura substantiva? Porque, sem os bons ofícios desta, na construção e organização do Edifício psico-sócio-cultural da Sociedade, não haverá lugar para a vera e autêntica DEMOCRACIA. A efectiva prova real desta só acontecerá quando a sistémica exclusão das periferias (imigrantes e raças migratórias como os ciganos) for, definitivamente, substituída pela sistemática integração das periferias. Enquanto isto não ocorrer, não sairemos da ‗sociedade dos dois terços‘, regida e governada pela clássica e tradicional ‗democracia liberal, representativa e burguesa‘. E, nesta problemática complexa, não é apenas a ‗cultura do trabalho‘ e o carácter nómada dos ciganos que estão em causa (como habitualmente é suposto...); é a própria edificação de uma Sociedade democrática, que tem de organizar-se de baixo para cima (não o contrário!), ou seja, a partir das Liberdades responsáveis dos Cidadãos, e não a partir dos Poderes Estabelecidos. Ora, os ciganos continuam a ser atirados, no Ocidente, para uma espécie de apartheid!... A jornalista italiana Tiziana Maiolo foi desclassificada e perseguida, porque os estereotipos ideológicos do Establishment estabelecem que ‗não se pode dizer que é mais fácil educar um cão que um cigano‘ (cf. ‗Expresso/Atual, 26.2.2011, pp.40-42).

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Como é difícil devir um ser humano nos tempos ominosos de Berlusconi!... António Guerreiro, no seu estro de bom perscrutador crítico e ironia q.b.: ―A Itália que, ao longo do séc. XX, foi um laboratório avançado de ideias políticas à esquerda e à direita, oscilando entre o melhor e o pior, é hoje, novamente, palco de um discurso sinistro, que se propagou sem pudor na esfera pública, sob o signo de uma figura que encarna uma versão degradada da comédia italiana: Berlusconi‖ (ibi, p.40). ―O espectáculo horrendo, que a Itália hoje oferece ao mundo é uma advertência para todos. Mas é também um caso digno de estudo, que não deve ser negligenciado: as distorções mais berrantes e grotescas, os cânones da velha e nunca adormecida tradição clerical e fascista, o corpo em lentíssima decomposição de um partido dinossauro convivem, aqui, com as potências desencadeadas do capitalismo global‖ (idem, ibi, p. 42). A partir das duras e trágicas experiências humanas, carreadas pela IIª G.M., começou a assomar uma nova mundividência crítica, que punha em causa todos os Sistemas filosóficos (e mesmo religiosos...), construídos no horizonte do ObjectivoObjectualismo. Este movimento crítico, no campo da Filosofia de sistemas (que era o da filosofia tradicional ensinada nas Academias e Universidades), encontrou alguns (poucos...) protagonistas, o mais credenciado dos quais foi, sem dúvida, Jacques Derrida e a sua ‗Escola da Desconstrução‘. Na verdade, do que se tratava, em última análise, era mesmo a questionação dos ‗sistemas filosóficos‘, qua tais, dentro das suas inexoráveis coordenadas do Objectivo-Objectualismo. Ao mesmo tempo que os ‗sistemas filosóficos‘ iam caindo em ruínas, por efeitos dos métodos e processos da Desconstrução, a Crítica literária tradicional (sobremaneira na Idade Moderna e Contemporânea) foi objecto de sucessivos abalos sísmicos, que a deixaram sem capacidade e vigor para balizar e nortear (como era costume) a actividade literária dos escritores. A dissolução da Crítica literária (credenciada) foi apressada pela ruína dos ‗Sistemas filosóficos‘, e porque, no lugar destes, não surgiu nenhuma Cultura filosófica, dispersa ou disseminada. Por sua vez, os escritores de Literatura, perdidos num labirinto sem bússola nem balizas, deixaram-se facilmente cair nas funções e nos lugares da serventia aos Poderes Estabelecidos e ao Economicismo reinante, ou pela via da apologia explícita (directa ou indirecta) do Establishment‘, ou pela via do adormecimento das consciências dos cidadãos através das ‗marés-cheias‘ dos livros de ficção.

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A propósito do livro de Nuno Júdice, ‗ABC da Crítica‘ (saída a público em 2010), António Guerreiro compôs uma boa recensão crítica com o título parcimonioso Notícias da Crítica (in ‗Expresso‘/Atual, 23.10.2010, pp.38-40). De modo sintomático e esclarecido, A.G. escreveu em subtítulo: ‗Um livro de Nuno Júdice sobre a crítica é um precioso documento dos equívocos enormes a que ela está exposta, numa época onde lhe foi retirado todo o terreno sólido‘ (ibi, p.38). Como poderá haver terreno sólido para a pauta dos Valores Literários, se foram dissolvidas as pautas axiológicas dos Valores Ético-Morais?!... Esta é, de facto, a ‗fons et origo‘ de todos os problemas reais. A tese central que A.G. procura salientar e desenvolver (no horizonte de N. J.) é a da hostilidade fundamental, institucionalizada, entre os críticos e os escritores. N. J. fala do descrédito e da degenerescência da Crítica literária (enquanto factores endógenos), procurando evitar a terminologia da crise (mais concernente a factores exógenos, da sociedade e da cultura ambiente). Como se fosse, hoje, estruturalmente producente, em termos filosófico-culturais, a distinção entre os dois planos. Se, na verdade, a hostilidade de fundo é a condição normal da relação entre os escritores e a crítica, então há que reconhecer que essa situação de conflito diádico é saudável. Desta sorte, tentar elidir ou eclipsar o conflito resultará, inevitavelmente, na castração da Literatura, que a História da Cultura já conheceu sobejamente. O resultado dessa elisão ou eclipse foi a redução da (boa) Literatura à servidão da cartilha da simples Estese, sem Racionalidade e Inteligência, implicando a renúncia à gnóseo-epistemologia sobre o Mundo e os Humanos. Em última análise, cair-se-á no báratro da ausência/omissão sistémica de ideias/conceitos (directores), própria de uma Pós-Modernidade descabelada e sombria. Como estava certo Walter Benjamin ao apostrofar e definir o crítico (literário) como um ‗estratega na batalha da Literatura‘! Não foi esse o sentido do combate sócio-histórico de Antero de Quental e seu grupo versus o grupo de António Feliciano de Castilho, na famosa ‗Questão Coimbrã‘?!... O grave-gravíssimo é que a maior parte da literatura contemporânea se deixou castrar e abastardar, ao serviço do Marketing internacional/global, convertida, duplamente, em cadela de guarda do ‗Establishment‘ globalizado: a) abandonou a boa Filosofia crítica e a Cultura substantiva; b) está dando serventia aos Poderes mundialmente estabelecidos. Os autores nacionais entraram em quarentena, a favor dos transnacionais e do mercado editorial, seja do entretenimento seja da ‗ficção‘ best-seller. 208


Escreve A.G. (ibi, p.40): ―A ‗actualidade‘ literária, como já se percebeu, é uma construção não apenas dos jornais mas de editores, agentes, livrarias e todas as instâncias da indústria editorial. A ‗atualidade‘ literária é o Brest Easton Ellis publicar um romance e andar uns meses pela Europa e pela América a dar entrevistas para o promover. Que escritor nacional — ou poeta que vende 300 exemplares do seu livro — pode competir, nos suplementos generalistas, com esta estrela internacional da nova República das Letras?‖ Neste contexto — já se vê — perdeu-se, por completo, a clássica função social e de orientação estética e crítica, que a Crítica facultava. Mais, e pior: consolidou-se, nos planos da Literatura e da Cultura, a orientação errada, na construção e no funcionamento da própria Sociedade: de cima para baixo, e não de baixo para cima!... Em resumo: as ‗batalhas literárias‘ (de que falou W. Benjamin) foram, pateticamente, transferidas para o mundo do Mercado. Quando (como pretende N. J.) se pretende resolver os problemas estruturais da Literatura, no campo estritamente literário, o resultado é o malogro e o impasse absoluto. Queiramos ou não, a gramática dos Tempos de Hoje já não é a da Modernidade... Tem, pois, razão A.G., quando assevera, numa perspectiva crítica (ibidem): ―Interpretação e juízo não constituem duas operações separadas, como pretende Nuno Júdice, que reclama da crítica uma veneração incondicional em relação a tudo o que é literário. ‗O crítico vai exercer o seu nefasto papel quando, em nome desse gosto pessoal, de duvidosa defesa, rejeita um texto. Essa rejeição justificar-se-ia, quando o texto não entra no que se pode considerar literatura: há evidentemente maus livros, mas o que se verifica é que não é sobre esses que a crítica incide‘. É significativo que na linguagem de Júdice, o juízo crítico adquire quase uma dimensão moral que se insinua na palavra ‗rejeição‘. Aceitando que tudo o que é literário é bom e deve ficar protegido da ‗rejeição‘ crítica, Júdice só precisa de resolver a vexata quaestio de saber, afinal, em que consiste o literário: ‗É literatura tudo aquilo que reflecte um universo pessoal, que transporta uma imagem do mundo, que converte em arte o quotidiano, o efémero, o banal‘. Demasiado vaga e um pouco tautológica, a definição? Talvez. Mas nem Jakobson fez muito melhor, quando definiu a literariedade como ‗a projecção do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático‘‖. — O quadro aqui descrito não sai da órbita ideológico-cultural, cuja bandeira suprema tem inscrito o primado absoluto do Poder (com as suas dogmáticas inexoráveis...) sobre o Saber.

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Neste horizonte, (como é evidente à luz da Pós-Modernidade positiva e crítica), o criticismo da ‗Crítica‘ (literária) continua pobre, paupérrimo. A ‗Crítica‘ hodierna está muito longe de constituir a forja ( a escola de orientação) para a edificação dos bons escritores. Estes, por seu turno, também não mais se construirão nos jardins de clausura da ‗Crítica‘. E, perante este impasse, é preciso saber que constitui um caminho errado o processo adoptado pelas indústrias editoriais, que ‗constróiem‘ escritores à medida da sua lúbrica voracidade mercantil. Nesta óptica criticista, tem de concluir-se que o ‗ABC da Crítica‘ de N. J. é não só pobre e frustrante, mas completamente ‗démodé‘‘. Avalia bem A.G., ao afirmar em conclusão (ibidem): ―Certo é que da crise da Crítica não se sai senão por vias de que Nuno Júdice jamais se aproxima: reconstituindo os fundamentos e a motivação social dessa crise. E isso faz-se com a crítica das ideologias e, sobretudo, com o que falta neste livro: pensamento‖. Mas a melhor da Boa Literatura é sempre a Boa Poesia. Tal como acontece na ‗Gestalt-Psychologie‘, onde há fundo e forma indissoluvelmente unidos, assim, também, na Boa Poesia, há força (energia) e forma, reunidas numa unidade indissolúvel. Se a Poesia se preocupa e cuida tanto os elementos formais da linguagem dos seus versos (ritmo, sonoridades, métrica e rima), é justamente para valorizar e encarecer o pensamento, que os enunciados verbais pretendem veicular e transmitir. Não se trata, aí, de um espectáculo de circo, para criar ilusões na plateia!... É, antes, isso mesmo que constitui o próprio e específico da Boa Poesia! É por isso que a palavra poética, mesmo em condições de crise e catástrofe, de desespero e falta de razões para a esperança, detém energia e capacidades para resistir às usurpações (às explorações e opressões de toda a sorte), para reagir à condição da própria ‗derrota histórica‘ da Poesia (como é a sina dos tempos em que sobrevivemos). O livro de Manuel Gusmão, ‗Tatuagem e Palimpsesto — Da Poesia em Alguns Poetas e Poemas‘, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, cumpre esses desígnios, quer no concernente aos poetas contemporâneos seleccionados, quer no que tange à selecção dos temas e mensagens. Demanda-se, aí, uma linha poética que procura a união de fundo e forma, de força noética e de forma, de acordo com a boa poetologia; e lamenta-se o maior dos males da Didáctica e da Psico-Pedagogia contemporâneas: essa triste e longa história da eliminação da Poesia dos manuais e dos programas escolares. M.G. é um intelectual crítico do Establishment que, nestas áreas do Discurso e da Linguagem, sabe resistir às tentações da cartilha (corrente) do Objectivo-Objec210


tualismo, que atraiçoa toda a palavra poética, deslocando-a do seu campo próprio e específico, que é o do fazer original da linguagem humana, para o do simples dizer isócrono e repetitivo do discurso quotidiano. É justamente porque a Poesia é da ordem do fazer exercido sobre uma língua natural e corrente, que ela pode ser considerada, muito bem, como uma forma de pensamento e conhecimento. A propósito do livro de M.G., escreve, com perspicácia, António Guerreiro (in ‗Expresso‘/Atual, 19.2.2011, p.30): ―Uma das mais veementes propostas de Manuel Gusmão é a da ‗improvável ontologia da poesia‘, derivada deste facto: o poeta não inventa uma língua, ele só pode servir-se das ‗palavras dos outros‘ (Bakhtine). A partir de uma língua comum e de uma comum faculdade da linguagem, a poesia é a experiência que consiste em pôr a linguagem a funcionar, a repetir a sua origem, a expor-se ‗em estado de nascimento‘ e como ‗origem perpétua‘‖. Roman Jakobson ( o linguista fundador e porta-voz do Círculo Linguístico de Praga) induziu em erro as universidades e academias, ao conceber a literatura como um subsistema do sistema linguístico (onde emerge a ‗função poética‘), — subsistema da linguagem literária, que se configurava como um desvio perante o sistema linguístico comum. Desta sorte, a ‗função poética‘ e a poesia (que emergem no próprio sistema linguístico comum) viram-se arrumadas no universo subalterno da literatura, sem mais. M.G. sabe que a Poesia é ‗a linguagem mais carregada de comum‘ (Meshonnic); sabe que ela não poderá sobreviver sem a sua vinculação de raiz à linguagem comum. Por isso mesmo, ele se sentiu capaz de proceder à crítica dos dogmas da Escola do Formalismo linguístico. Por paradoxal que possa parecer, o Poema é sempre um Diálogo (críptico, oculto ou, até, manifesto) na Linguagem natural e comum; por se caracterizar com uma natureza tensional, ele tem o condão de fazer estremecer a própria linguagem, nas suas origens e finalidades. Por isso, ele é, igualmente, capaz de pôr a Ética e os comportamentos em acção. Na galáxia do Diálogo socrático, original/originante, do nosso viver humano em Sociedade, nunca podemos prescindir da concepção profundamente dialógica da Poesia. (Como se poderá averiguar, iconicamente, nesse grande texto poetológico do séc. XX, ‗O Meridiano‘, onde Paul Celan, relendo Mandelstam, acaba por configurar o poema como o caminho dialógico de uma voz em direcção a um outro). Respigando este parergo, escreve A.G. com acribia (ibi, p.31): ―Sabemos muito bem o que significa esta estrutura dialógica: uma demarcação relativamente à esté211


tica lírico-romântica, que identifica a linguagem com a natureza e absorve toda a alteridade no Eu, num conceito de sujeito que é o do idealismo. E aqui reconhecemos perfeitamente o discurso de Gusmão sobre a poesia, o modo como a concebe habitada pelo problema da vizinhança íntima, complexa, conflituosa e sedutora com a filosofia. É isso que se diz no título tratadístico que encontra desenvolvimento em três capítulos: ‗Da poesia como razão apaixonada‘. Trata-se de uma ‗razão‘ que, trazendo consigo um traço de infinitude da linguagem, perturba e ultrapassa a dimensão do conceito‖. — É a eterna demanda do primado (absoluto) dos Sujeitos (humanos) sobre os Objectos; do Saber sobre o Poder; das Pessoas sobre as Coisas!...

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O PROCESSO EDUCATIVO É (DEVE SER) DEMOCRÁTICO!...

Deu-se conta, anteriormente, dos escolhos e desvios a que nos leva a concepção lírico-romântica da Linguagem humana, identificada com a Natureza: no centro dos centros está uma visão idealista do Mundo, que leva os Sujeitos humanos a integrarem no seu bojo toda a sorte de alteridades, sejam elas coisas, elementos, pessoas. Nesse horizonte, toda a actividade humana decorre, supremamente, dos Poderes separados (sacros ou naturais...). Não há uma distinção ontológica essencial entre Pessoas e Coisas; o primado absoluto é do Poder sobre o Saber. O Diálogo socrático (a vera taumaturgia de um Mundo Humano a viver em Sociedades Humanas) foi eclipsado dos céus da Humanidade. E, não obstante, o que nos revelam e demonstram as contemporâneas Ciências da Linguagem é que a Linguagem humana, qua tal, é um Sistema de dupla articulação (a do plano paradigmático e dos elementos, e a do plano sintagmático e do fraseado, onde assoma o juízo e o espírito). Neste horizonte (onde o rift humano, na Natureza cósmica, se apresenta como incontornável), é óbvio que a „linguagem‟ dos animais irracionais não se pode caracterizar como sistema de dupla articulação. Estas considerações críticas são suficientes para nos tornarem manifesta a caracterização essencial, no processus da Evolução, do Psico-Sócio-Ânthropos, no segundo patamar evolutivo, a saber: o do Homo Sapiens//Sapiens, e não o do Homo Sapiens tout court. Para o segundo patamar, emergiu, definitivamente, a brecha da 213


Cultura substantiva, contraposta à Natureza, onde todos os Poderes surgem como integrados na tessitura da Sociedade. Para o primeiro patamar evolutivo, não há Cultura substantiva. O Homo Sapiens tout court está sempre na iminência de ficar submetido à Natureza (a começar pela sua própria linguagem, que já não lhe vale como credencial para nada); é um sujeito submetido e subjugado diante dos Poderes societariamente estabelecidos. Aí, os Poderes constituídos na Sociedade são, inevitavelmente, Poderes separados, com os estigmas de uma Alteridade sacral, que os dá como indiscutíveis a priori. Para o Homo Sapiens//Sapiens, Liberdade e Igualdade (social) coabitam numa união indissolúvel. Para o Homo Sapiens tout court, a Igualdade social não passa de uma ficção longínqua; e a Liberdade viu-se reduzida à lei do pêndulo do ‗livre arbítrio‘. O acesso a uma Liberdade Responsável substantiva, ou seja, primordial e primacial, está-lhe, estruturalmente, vedado. Ora, na galáxia do Psico-Sócio-Ânthropos, configurado como Homo Sapiens//Sapiens (um ser dotado de Consciência reflexiva e crítica), no segundo patamar da Espécie ‗Homo‘, é erróneo e pejado de consequências perversas e negativas continuar a afirmar e a defender (como faz o nosso Amigo Fernando Savater) que ‗a Escola não é democrática, nem deve sê-lo. A escola é a preparação para a Democracia‘ (cf. ‗Expresso‘/Atual, 30.10.2010, p.39). Numa perspectiva substancialmente diferente, o que o C.E.H.C. assevera e defende é que o processo educativo é (deve ser) intrinsecamente democrático. A Democracia não é um regime (sócio-político/ /cultural) enquadrável no campo dos jogos de azar, ao 2º grau (i.e., onde a sorte foi confinada a metade do ‗azar‘: o vencedor e os perdedores tomaram, eles próprios, a iniciativa de se submeterem a eleições nas urnas...). A Democracia não é constituída para cada cidadão fazer, supostamente, o que lhe der na real gana... O objectivo central da Educação (que detém o primado absoluto sobre a Instrução), quer no âmbito da Família, quer no da Escola e dos Sistemas Educativos, é a Formação de Sujeitos humanos, livres e responsáveis. Ora, para cumprir tais desígnios e as tarefas adequadas que lhes correspondem, só há uma Via mestra: o Diálogo aturado e paciente entre Professor e Alunos, entre Mestre e Discípulos; o Diálogo que terá de ser adequado e oportuno, consoante as variações de idade e a percepção de crianças, adolescentes e jovens. Mas Diálogo. Não imposição (à maneira do senhorio feudal!...) de regras e normas, que não são explicadas à inteligência dos educandos, até (muitas vezes...), com a segunda intenção de os habituar à disciplina e à submis-

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são. Também, aqui, é bom recordar: aplica-se, por inteiro, o velho axioma da Moral clássico-tradicional: ‗Non facienda mala, ut eveniant bona‘. De uma vez por todas, sejamos lucidamente coerentes na composição do Edifício do Psico-Sócio-Ânthropos: Se dizemos e argumentamos que as regras e as normas e, em geral, a Disciplina devem resultar, nos educandos, como um processus de auto-assimilação e auto-imposição, enquanto sujeitos livres e responsáveis (que só o serão em devir, enquanto não atingirem a maioridade cívica), então é absolutamente importante e decisivo, na Psico-Pedagogia e nas Didácticas curriculares, (em todo o universo das Instruções científicas e das Técnicas operativas), que a Formação de Seres Humanos Livres e Responsáveis esteja sempre em primeiro lugar e que a Ética/Moral ocupe sempre a 1ª Cátedra. Fernando Savater (San Sebastián, 1947) é filósofo de professão, mas prefere apresentar-se como Professor de Ética. Na entrevista a Cristina Margato (loc. cit., p. 39), falou do seu projecto revolucionário, polarizado na Educação, nos termos seguintes: ―Defendo a criação de uma disciplina de Educação Cívica, que introduza a capacidade de agir em democracia. Deve haver uma preparação que forme cidadãos capazes de utilizar os mecanismos da democracia. Não se pode esperar que a televisão faça isso‖. F.S. parece continur a ver só a árvore da Moral, em lugar de lobrigar as ameaças que impendem sobre toda a floresta!... Explica a sua iniciativa, no quadro do que aconteceu, em Espanha, (sobremaneira a partir do golpe do Exército, Fev. de 1981), mediante a transição da ditadura para a democracia. ―Com a democracia passaram a existir duas disciplinas: Religião ou Moral/Ética. O meu livro ‗Ética para um Jovem‘ (Dom Quixote, 2005) pretendia servir como alternativa à religião. A ética é para todos. Não é exclusiva dos religiosos. Logo, essa opção parece-me um grande equívoco. Deixa de fora os laicos e as restantes religiões. Como a sociedade democrática deve ser laica, não há razão que justifique a presença da religião católica na escola pública. A religião é um assunto privado, que deve ficar na sinagoga, na paróquia, na mesquita‖ (ibidem). Sobre a democracia na e da Escola, a posição de F.S. é clara e taxativa: ―A escola não é democrática. Nem deve sê-lo. A escola é a preparação para a democracia. Uma aula é hierárquica. O professor está sempre acima dos alunos. A escola deve estar a preparar os jovens para ser cidadãos. A escola não tem os mecanismos da democracia nem deve ter‖ (ibidem). O filósofo não se sente na obrigação (intelectual e 215


ética...) de demandar Sociedades humanas Alternativas; presume, ao que parece, que a que temos pode continuar, com alguns consertos e reparações pontuais!... Não se dá conta de que todas as Sociedades (registadas na História Geral das Civilizações), até ao presente, foram organizadas e estruturadas a partir do Leviatão dos Poderes Estabelecidos com a chancela do Sagrado; e agora (cada vez mais para o Futuro...), do que estamos carecendo é de Sociedades, plenamente laicizadas, alavancadas nos Sujeitos Humanos Livres e Responsáveis. Uma realidade toto coelo diferente. Conhecíamos quase toda a obra publicada de F.S.. A entrevista do filósofo basco surpreendeu-nos e deixou-nos intrigado. Três tópicos se configuraram logo, no nosso horizonte crítico, a partir da 1ª leitura: A) F.S. tem a chave inglesa para explicar o mundo e a sociedade que temos, mas não passou daí...; B) K. Marx, na 3ª Tese sobre Feuerbach, pôs-se já, com clareza e determinação, o problema (críptico) da educação dos educadores, que a Educação e os Sistemas Educativos ainda não conseguiram resolver, até ao presente (: isso constituiu o sintoma de que ele terá, implicitamente, intuído as exigências do Sapiens//Sapiens); C) Não se pode esquecer que o Diálogo socrático foi postergado e ostracizado, ao longo de dois milénios e meio, tanto no campo da política e da organização das sociedades, como no campo dos Saberes e das Ciências (inclusive, na Psico-Pedagogia e nas Didácticas). Ora, se a Escola e o Sistema Educativo fossem, desde logo, concebidos e edificados segundo a gramática do Diálogo socrático, nunca se teria chegado a um Estatuto fundamental da Escola e do Sistema Educativo, onde a Educatio acaba por ter o estatuto alienígena da Instructio, e a Escola — como ele diz — não pode ser democrático, por definição. Na melhor das hipóteses, a mundividência psico-pedagógica e didáctica de F.S. poderia figurar, tão só, na Ante-Câmara do Edifício do C.E.H.C., rumo à construção de uma Sociedade nova, ancorada nos Sujeitos humanos Livres e Responsáveis. F.S. tem posições que nos parecem criticamente sensatas, como as seguintes: ―As aulas não são uma reunião de amigos nem um recreio. São um lugar onde se transmite conhecimento. Toda a gente aceita e entende que um treinador de futebol dê ordens aos seus jogadores. Já o mesmo modelo numa escola parece que começou a ser (erradamente) entendido como algo escandaloso‖ (ibi, p.40). ―O problema é que, numa democracia, todos somos políticos. Não há uns especialistas que mandam e outros que são guiados. Logo, todos temos de ter algum conhecimento para poder intervir na sociedade. Se a maioria é completamente ignorante, não pode argumentar nem enten216


der a argumentação. Há que evitar essa situação e aumentar o nível médio de conhecimento, para que todos possam intervir com competência‖ (ibidem). — O segredo para preservar e defender o futuro das Democracias reside, precisamene, no aumento e aprofundamento dos saberes, disseminados por todos os cidadãos da República. Mas, quando, no pórtico do Edifício da República, se inscreveu a Sentença de que a Escola não é, nem deve ser, democrática, temos sérias dúvidas e receios de que F.S. esteja porfiado em superar os problemas da Ignorância, mediante as tradicionais medidas do ‗despotismo iluminado‘!... ‗Cave canem‘. É que há mais mundo para desbravar... Para começar, a F.S., falta-lhe encarar e resolver toda a semântica e consequências implicadas na 3ª Tese de Marx sobre Feuerbach: A) K.M. criticou, aí, a doutrina materialista (tradicional e corrente), que sabe que os humanos são produto das circunstâncias sócio-históricas e da educação, mas esquece, deliberadamente, que são os humanos que modificam as circunstâncias sócio-históricas e que, nesta mesma perspectiva, o educador precisa de ser reeducado; B) esse materialismo, repudiado por K.M., funda e divide a sociedade em duas classes; uma delas está acima da sociedade: são os dirigentes, os governantes, os professores e os mestres, que impõem, à sociedade, dogmas e tabús, poderes sem saberes. C) Como se vai sair desta fita de Moebius? — Pela prática reovlucionária ou revolução permanente, que se exprime na coincidência entre a modificação das circunstâncias e a modificação dos próprios humanos. A condição sine qua non, para levar a efeito este projecto, consiste na exterminação da Divindade idolátrica do Objecto (de todos os objectos...) da Fortaleza, onde tem lugar a dialéctica tensional entre os Sujeitos e os Objectos. Aquando do suicídio de Maiakovsky, em 1930 (no encalço das primeiras ‗depurações‘ soviéticas sob o ceptro de Estáline, em 1928-9), Roman Jakobson escreveu um texto célebre com o título: ‗A Geração que Delapidou os seus Poetas‘. Ora, nos últimos quatro anos, a Crise financeira/económica, ao multiplicar exponencialmente o desemprego e a precariedade do trabalho, sobremaneira nas jovens gerações, está a exterminar a geração dos jovens, que poderiam ser, sem dúvida, o fermento da Renovação séria das Sociedades. Eles poderiam abrir os caminhos fechados do Diálogo socrático e estilhaçar o filistinismo das velhas gerações instaladas. Mais do que uma ‗geração rasca‘ (a actual geração jóvem), ela foi posta numa ‗situação à rasca‘, precisamente pelos sucessivos governos e pelos próceres do Establishment.

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É que as sociedades actuais não carecem, tão só, de alteração nas instituições sociais. Elas carecem, principalmente, de renovação dos ideários, que só as instituições culturais propriamente ditas podem facultar. Na linha do previsto por K. Marx: a modificação dos humanos tem de ser obra dos humanos; e o espírito da renovação das instituições é, por norma, própria das novas gerações, ou, então, dos anciãos que, perseguidos e amordaçados, nunca se renderam. É sintomático que as últimas revoltas/revoluções, no mundo árabe/islâmico, (cerca de uma novena até fim de Fev. de 2011), que acabaram por obrigar à deposição dos Poderes Estabelecidos, foram obra, principalmente, das jovens gerações. A chave está no princípio da auto-assimilação, da auto-educação (não no princípio das imbricações hierárquicas das hétero-educações, segundo o refrão popular luso: ‗se houvera quem me ensinara/ /quem aprendia era eu‘!... Afinal, um tributo à Submissão heteronómica). (Uma nota sobre Andrei Jdanov (1896-1948) e o jdanovismo. Em 1928, são levadas a efeito as 1ªs ‗depurações‘ no Comité Central da URSS, por ordem de Estáline. Intelectual brilhante e membro do C.C. em 1927, ele torna-se o delfim de Estáline e o teórico marxista de referência; em 1929, faz parte do Praesidium. É sob o signo do jdanovismo que decorrem as ‗purgas‘ célebres de 1936-38, no C.C. e no Gov., às ordens supremas de Estáline. É simples a axiomática do jdanovismo: toda a espécie de conhecimentos leva o estigma da ideologia... inclusive o menos ‗político‘, como a linguística, a biologia genética, a arte da guerra. O socialismo e o comunismo têm de construir-se, inexoravelmente, a partir da Forja do Poder revolucionário estabelecido. Desta perspectiva se pode dizer o seguinte: é o cúmulo paroxístico das soluções perversas, a que pode conduzir-nos a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord.). Ora, ao abrigo das implicações normativas decorrentes da 3ª Tese de Marx sobre Feuerbach (que já fazem parte da gramática do Diálogo socrático, enquanto Alavanca de Arquimedes fundadora das genuínas Sociedades humanas, qua tais), a Âncora das Sociedades humanas, enquanto humanas, é a Consciência, — a Consciência reflexiva e crítica (portanto, revolucionária, sempre que a circunstância o impuser), própria e específica do Homo Sapiens//Sapiens, ao qual pertencemos. No mundo da Educação e do Ensino, o mais importante e decisivo não é o que se faz e ensina... é, antes, o modus faciendi do comportamento e da actuação de professores e educadores. O Prof. Hanushek (doutorado em Economia pelo MIT e investigador na Univ. de Stanford), que esteve recentemente em Lisboa, não tem dúvi218


das, é peremptório: ‗É preciso afastar os maus professores da sala de aula‘ (cf. ‗Expresso‘, 15.1.2011, p.27). por ter ‗medido‘ (?!...) o impacto da qualidade dos professores no sucesso dos alunos, ele entende que ‗a reforma essencial a fazer passa por pagar mais aos melhores docentes e afastar da sala de aula os menos eficazes‘ (cf. ibidem). Entretanto, as bases e os argumentos em que se apoia, para justificar a sua pregação são de uma inocência cândida e atroz: ―Ainda não conseguimos identificar as características que fazem um bom professor. Mas o que todos sabemos é que há uns que são melhores do que outros‖ (ibidem). Mais: ele não tem pejo em afirmar (ibidem): ―O problema é que ainda não conseguimos identificar o que explica a qualidade. Apenas sabemos que há aspectos que não têm influência‖. Nesta complexa problemática da Educação e Ensino, há dados óbvios e irrecusáveis, uns positivos... outros negativos... Exemplos dos 1ºs: o acompanhamento dos filhos por parte dos pais e o possível investimento que fazem na sua educação; uma actuação profissional, empática e proficiente, dos professores e educadores, em confronto com os seus alunos. Exemplos dos 2ºs: os filhos dos nacionais e os filhos dos imigrantes são, ordinariamente, tratados de modo diferente, convertendo o multiculturalismo numa farsa; a avaliação externa das escolas obrigou-as a entrar no ‗Mercado‘ pela porta do cavalo e pela via mais perversa (com a agravante de a escola pública, na Lusolândia, ainda não possuir autonomia digna do nome, apesar da retórica demagógica dos Governos de turno...). Feitas estas advertências, é mister reconhecer que algumas das afirmações do especialista em Economia da Educação (que não deixou de ser um fiel da religião do economicismo) são clichés, que é preciso encarar cum grano salis. Por exemplo: ―Se os pais sentirem que a escola dos filhos não está a fazer um bom trabalho, devem poder escolher outro estabelecimento. Permitir esta influência traz uma boa pressão sobre as escolas‖ (ibidem). E os pais que não têm cabedal para poderem concretizar a mudança?!... Outro exemplo: ―Se, em 20 anos, todos os alunos portugueses chegassem ao nível da Finlândia nos resultados do PISA, o valor do PIB aumentaria 2,9 biliões de dólares. O factor mais importante no crescimento económico é a educação‖ (ibidem). Suporá o Prof. que se esgota, aqui, o valor (decisivo) da Boa Educação?!... Eis por que, estabelecendo o contraponto, está no caminho certo Nuno Crato, ao reinterpretar teses do prof. de Stanford, ―mostrando, em particular, que as estatísticas dos diversos países não evidenciam que exista impacto do número de anos de escolaridade sobre o desenvolvimento económico. O que condiciona o desenvolvimento 219


é, isso sim, a qualidade das aprendizagens‖ (ibidem). É claro que se pode verificar uma relação socialmente objectiva entre a boa qualidade da aprendizagem e o desenvolvimento das Sociedades. Sublinha N.C. (ibidem): ―Os estudos de Hanushek e de outros economistas dão-nos ideia da magnitude da importância da educação, mas não explicam como pode o ensino melhorar‖. É que, entre a aprendizagem (do Aluno) e a ensinança (do Professor), há uma ‗passagem de nível‘, o Abismo entre duas Consciências em presença. O que mais nos magoa e deixa exasperados, no CE.H.C., é não haver, generalizadamente, sensibilidade crítica humanística para discutir e resolver, em profundidade e altura, os problemas complexos da Educação e Ensino, sem instrumentalizar, objectualizar e coisificar os alunos em função do desenvolvimento económico das Sociedades (projecto que é sempre, sistematicamente, conduzido segundo a cartilha das classes dominantes e do Establishment). Hanushek e os economistas da educação, em geral, operam sempre segundo o mesmo catecismo: a Lógica Anti-Gnóstica do Poder-Dominação d’abord. Ora, é mais que sabido (pelo menos, contemporaneamente, desde Pierre Bourdieu) que não é com este catecismo de objectivos e funções que se pode fundar e promover uma Boa Educação e um Sistema Educativo autónomo e substantivo, perante as sucessivas políticas de turno, operacionalizadas a régua e esquadro pelos Poderes estabelecidos. Em termos icónicos, o contemporâneo pecado original, neste universo da Educação e do Desenvolvimento económico (e seu relacionamento estrutural), teve a sua expressão consagrada na obra célebre de George S. Odiorne: ‗Gestão por Objectivos‘ (Liv. Clássica Editora, Lisboa, 1972: o original deu pelo nome de ‗Management by Objectives‘ e foi editado, em 1965, pela Pitman Publishing Corporation). Estavam, assim, lançados os alicerces para a emergência do Neoliberalismo capitalista global e para a expansão da religião do Economicismo, nas duas últimas décadas do séc. XX e nos alvores deste nosso século XXI. A charada é simples de explicar: no universo da Economia política (na época, o primado já era o das Finanças sobre a Economia...), fora introduzido um novo método de Gestão, designado de gestão por objectivos. Esta mesma metodologia foi logo transposta para o universo da Educação e Ensino e da concepção e estruturação dos Sistemas educativos nacionais.

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• ... Venceu a lógica perversa dos Opostos!... Os resultados desta nova orientação estratégica, na base de uma nova metodologia, são sobejamente conhecidos: no universo económico-financeiro, estava criado o espaço livre para a emergência, expansão e difusão das novas T.I.C.s, num regime de desadequação total, que multiplicou exponencialmente, não só o desemprego e o emprego precário no mundo laboral, como também os novos problemas sérios criados à organização societária e às famílias. Ao mesmo tempo, foram surgindo, no mesmo universo económico-financeiro (cada vez mais desregulado...) as sucessivas crises financeiras, até à explosão dessa Crise financeira maior, a partir de 2007, que se tem prolongado até ao presente, com devastações sociais e depressões que parecem tornados, quer a nível mundial, quer a nível dos países economicamente mais débeis. Mas os resultados mais negativos e perversos, dir-se-ia que têm o seu livre curso, precisamente no universo da Educação e Ensino e no âmbito de funcionamento dos Sistemas educativos nacionais. Aqui, por exemplo em Portugal, (desde há ca. de cinco anos a esta parte), assistimos à maior hecatome escolar e do sistema educativo nacional, de que há memória: rankings das escolas (públicas e particulares e corporativas); uma estúpida e burocrática e totalmente alienadora avaliação dos professores e educadores, que só desnaturou o exercício da profissão docente; os mega-agrupamentos escolares (horizontais e verticais), que só contribuiram para a crescente e acelerada desertificação do país e do interior do território, em especial, além de aumentar, em lugar de diminuir, o número de alunos por turma. Quanto à famigerada Autonomia das escolas (que nunca foi a de uma vera descentralização de competências e poderes), ela não passou de uma bandeira de ilusões para calar as classes docentes e seus sindicatos e as populações em geral. Num país, estigmatizado multi-secularmente pelo espírito da Inquisição e pela Censura pública, e multi-secularmente habituado às atmosferas ideológicas do mais descabelado positivismo jurídido, será legítimo a um cidadão nacional surpreender-se, ao assistir ao triste espectáculo das instâncias administrativas do M.E. a obrigarem os professores avaliadores a avaliarem à força os seus colegas, depois de terem interposto requerimento de escusa, não só por motivo de ‗objecção de consciência‘, mas igualmente porque o próprio processo de avaliação dos docentes está em vias de ser substancialmente alterado, como fora prometido pela governação, após as gigantescas manifestações massivas dos docentes, em 2009/2010 (cf. ‗Expresso‘, 26.2.2011, p. 221


27), — o que, na mudança para o 2º Governo (minoritário) de José Sócrates, levou à substituição da ministra anterior da Educação por uma nova senhora (afinal pouco ou nada diferente da 1ª)?!... Segundo o ‗Jornal de Notícias‘ (de 26.2.2011), há centenas de professores que todos os meses estão a abandonar a profissão ou compelidos a passar à reforma, com penalizações salariais enormes, por razões de ‗desmotivação‘, ‗frustração‘, ‗saturação‘, ‗desconsideração cada vez maior relativamente à profissão‘. Parece que os professores ‗estão a mais‘, actualmente, nas escolas portuguesas!... Segundo o ‗Jornal da FENPROF‘/JF (Jan. de 2011), nas escolas do Sistema Educativo básico e secundário, foram extintos mais de 30.000 horários, o que não só pôs em causa o emprego de muitos professores como constituiu uma ameaça gravíssima para a qualidade do ensino público. Entretanto, em e-mail enviado, soube-se que, em 24.2.2011, o Governo português foi criticado internacionalmente pelo European Trade Union Committee for Education (ETUCE), presidido por Ronnie Smith. Considerava-se, aí, que ―medidas como reduções salariais, agravamento dos horários de trabalho ou aumento do número de alunos por turma em cursos profissionais, entre outras, implicam uma significativa degradação das condições de trabalho dos docentes, coloca uma severa ameaça sobre o sistema educativo português e impedirá a concretização de compromissos assumidos por Portugal no âmbito da Estratégia Europa 2020‖. Mas os resultados negativos da perversa orientação estratégica, que teve livre curso no último quartel do séc. XX e no 1º decénio do séc. XXI, fizeram-se sentir de forma draconeana nas áreas societárias da Segurança Social, não só no que tange a sua conquistada dimensão universal, mas também no concernente à extrema diversificação nos modos de a concretizar, vis-à-vis do modelo público/oficial, instaurado depois da IIª G.M.. Neste horizonte, verificam-se duas perversões imbricadas uma na outra: a) ‗gouverner pour le marché‘ é a cartilha absoluta, como foi muito bem formulado por Michel Foucault, em 1979, — o que implica a total perversão da Política; b) a crescente e hegemónica mercadorização de todas as subespécies de Segurança Social. É sabido que o modelo mutualista da S.S. esteve nos programas e nas 1ªs práticas da paradigmática Revolução Francesa; e que esse modelo, vítima de muitas predações e assaltos, embora com muitas dificuldades tem-se mantido e ainda não morreu de todo, nas tradições ideológicas e doutrinais da Europa e do Ocidente em 222


geral. A sua boa sorte e fecundidade estão dependentes do Projecto (ainda utópico...) da concretização do vero e autêntico Socialismo (construído a partir dos Sujeitos e não dos Objectos). Será que a Europa e o Ocidente, em geral, só conhecem os dois extremos, i.e., o neoliberalismo capitalista global ou o socialismo/comunismo de Estado (que já teve o seu funeral adequado)?!... É que, para encontrar aquele ‗tertium datur‘ (ou ‗mesótès‘ aristotélico), a Cultura do Ocidente terá de abandonar, definitivamente, a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord e a religião do Objectivo-Objectualismo. Em termos psico-sócio-antropológicos, é óbvio que o modelo mutualista será sempre recusado pelos padrões individualistas dos Humanos; para ganhar raízes e obter livre curso, ele carece de padrões humanos de actuação e comportamento baseados na Solidariedade. Mas estes padrões são, efectivamente, os do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘, e aqueles os do ‗Homo Sapiens tout court‘, que precisa de Divindades transcendentes e extrínsecas para se governar!... Por isso, enquanto não forem resolvidos os ‗enjeux‘ e as contradições estruturais das religiões institucionalizadas, também não serão adequadamente postos em prática os projectos utópicos de um Socialismo autêntico e de uma Segurança social universal. Entretanto, em termos críticos, convém asseverar que a gramática da vera Democracia está substancialmente dependente do cumprimento do ideário da Solidariedade (psico-sócio-humana). As Associações de Mutualidades tiveram um grande incremento ao longo do séc. XIX, na época do Capitalismo selvagem da ‗Revolução Industrial‘, na sua luta contra a miséria das massas populares e o desemprego na agricultura e a pesporrente incúria dos governantes. (Cf. ‗Le Monde Diplomatique‘/Supplément Mutualité‘, Março de 2011, pp.II-III). Quando é que a Europa se vai deixar desafiar pelo modelo mutualista?! No intróito ao Supplément citado (p.I), pode ler-se no ‗Le M.D.‘ referido: ―‘Je demande à chacun d‘entre vous d‘examiner toutes ses options possibles, de n‘écarter d‘emblée aucune solution, y compris celle de l‘assurance, pour des a priori idéologiques‘, a déclaré le président français Nicolas Sarkozy lors d‘un colloque sur la dépendance, le 8 février dernier. En évinçant ainsi la Sécurité sociale au profit de financements commerciaux privés, le chef de l‘État s‘inscrit dans le mouvement européen de merchandisation de la protection sociale. Pourtant, l‘histoire a montré la pertinence et le savoir-faire des mécanismes de secours solidaires, en particulier du mouvement mu-

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tualiste. Né il y a presque deux cents ans, celui-ci repose sur les valeurs de démocratie et de proximité avec les adhérents‖. Com papas e bolos se enganam os tolos!... Como se, no discurso de N.S., o quadro por ele intentado, estivesse asseptizado no concernente a qualquer preconceito ideológico!... Essa gente só sabe funcionar no universo ideológico do ObjectivoObjectualismo; e é só, aí, que um tal discurso pode ter cabimento, para sustentar e promover a sempiterna Alienação dos súbditos, ditos cidadãos por eufemismo sarcástico... Neste diferendo, convirá saber que o Modelo mutualista da Protecção e Segurança sociais, baseado no ideário da Solidariedade, só pode vingar no horizonte societário de uma Cultura substantiva, onde possa ter lugar ―um verdadeiro estatuto de autonomia no empenhamento individual numa comunidade de destino‖ (ibi, p.I). * A Solidariedade (como, de resto, todas as virtudes...), se não for acarinhada e cultivada, estiola e morre. Por isso mesmo, tem razão M. Gérard Andreck (presidente do GEMA: Grupo de empresas mútuas de assistência), quando afirma e defende: ―É indispensável que o direito europeu autorize a criação de mútuas europeias, para lhes permitir o desenvolvimento com armas iguais às das sociedades de capitais‖ (ibi, p.IV). Quando é que a Cultura do Ocidente vai proceder ao seu saneamento (absolutamente necessário e indispensável, nesta decisiva encruzilhada da História), libertando-se de todas as esquizofrenias e paranóias estruturais, supremamente procedentes *

Estão neste horizonte, por exemplo, as considerações críticas de Alfredo Bruto da Costa (ex-ministro dos assuntos sociais e da coordenação social, em 1979-80, durante o Governo Pintasilgo): ―Ninguém nasceu para viver em lares. Os lares são o último mal menor depois de tudo o mais não ser viável. São necessários, porque temos um estilo de vida que retira aos idosos o seu lugar na sociedade. Os serviços sociais acantonam ainda mais os idosos, consolidando o seu principal problema, que é a solidão e não poderem conviver com as outras gerações. Lares, festas, turismo ou centros de dia, tudo para idosos, reforçam a exclusão. O ideal é mantê-los no seu meio e completar aquilo de que precisam com serviços específicos. Para mostrar que isto não é novidade, refiro a Carta Social Europeia de 1961, que Portugal ratificou. Destaco o artigo 23º, sobre os idosos, introduzido após uma revisão de 1999. Diz que devem manter-se membros plenos da sociedade e participar na vida pública, social e cultural. O meu mo-delo apela a um regesso à família alargada. Pelo menos, três gerações (filhos, pais e avós) têm de estar envolvidas enquanto família única‖. (‗Proteste‘, Março de 2011, p.29). Hodiernamente, ―estamos a entrar numa visão alargada da segurança social, enquanto sistema de solidariedade que abrange toda a sociedade. O Estado introduz pequenas parcelas de esquemas não contributivos, sem mexer na lógica global. Falta dar o salto definitivo. Sem esta discussão, não me sinto capaz de debater a sustentabilidade da segurança social‖ (idem, ibidem). — Quando se raciocina com coerência, até podemos chegar à necessidade lógica da construção do vero e autêntico Socialismo. 224


do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, que tem estigmatizado, tanto as religiões monoteístas institucionalizadas, como a própria cultura secular e laica, agnóstica e ateia?!... • A muleta do Paradoxo que não chegou a prótese... Precisamente porque abandonou as Mensagens gémeas de Sócrates e de Jesus, o Ocidente tornou-se incapaz (no seu Processo civilizatório oficial) de praticar o Diálogo socrático, que é o fundamento da vera Sociedade humana, e de praticar a Justiça verdadeira, que é a pauta de organização e funcionamento da vera Sociedade humana. Voltou-se para os horizontes da Dominação e da Conquista!... A Cultura do Ocidente tornou-se incapaz de reconhecer a Alteridade dos Outros Seres Humanos, na medida em que polarizou o seu pensar e agir no Eu-Mesmo (conquistador e dominador...). Neste horizonte, cultivou uma ‗cultura ideológica‘ como se ela fosse natural... E não há ‗culturas humanas naturais‘, no patamar evolucionário do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ (onde Liberdade e Poder se encontram integrados na mesma esfera psico-sócio-antropológica). Nesse horizonte, a Cultura do Ocidente cultivou o Paradoxo e constituiu-o como o seu emblema de excelência (sobre as restantes culturas e civilizações...). O Paradoxo, onde se podem juntar e unir (em termos epistémicos) dois contrários ou, até, dois contraditórios, com a maior elegância e impunidade lógica da Mente. Ora o Paradoxo, se é axiológica e epistemicamente aceitável e legítimo, no hemisfério das ciências físico-naturais, ele já não é aceitável e legítimo, em igual grau, no hemisfério das ciências psico-sociais e/ou humanas. A pauta original, que aqui vigora, é governada pela tríade que nos fala: do princípio da Identidade singular do Indivíduo-Pessoa; do princípio do Reconhecimento dos Outros; e do Princípio do Diálogo e da Tolerância recíproca. O que vier a seguir, faz parte do guarda-roupa, dos diferentes guarda-roupas, que serão usados pelos indivíduos-pessoas singulares e concretos, nas suas Sociedades. É ao abrigo desta Pauta crítica, que terão de ser cuidadosamente interpretadas e avaliadas fórmulas ou teses, como, v.g., a do filósofo islâmico Tarik Ramadan: ‗Nada no Corão obriga a usar o tchador, e nada na Declaração dos Direitos do Homem impede de usar o tchador‘. Uma 1ª apostila crítica a estabelecer sobre esta dupla tese é a seguinte: enquanto estivermos dependentes de ‗dogmas‘ (estabelecidos 225


a partir de enquadramentos estatutárias para os indivíduos-pessoas), não saímos do odre ou reino imperial do Objectivo-Objectualismo. A 2ª apostila crítica é do teor seguinte: a tese de T.R. pode, efectivamente, (como já foi entendido por alguns), constituir fundamento hermenêutico e jurídico para aceitar, como alternativa à ‗República laica‘, a ‗República confessional‘ (neste caso islâmica...). Isso, porém — deverá acrescentar-se —, não nos permitiu sair do reino imperial do Objectivo-Objectualismo e da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. (O que, no nosso horizonte, é mesmo decisivo). Penetrando, agora, mais a fundo na interpretação crítica da tese de T.R., cumpre-nos identificar, aí, dois sofismas estruturais de tomo, que é preciso salientar e denunciar: A) Há duas subteses na Tese: a que é concernente ao Corão é de ordem negativa e diz respeito ao que se pode chamar ‗Liberdade negativa‘; a que tange aos Direitos do Homem é de ordem positiva (e universal...) e diz respeito a uma ‗Liberdade positiva‘. Invocar as duas pautas de conduta moral e cívica, desta maneira, só tem o condão de reforçar a cartilha da religião (secular e laica) do Objectivo-Objectualismo. No concernente à 2ª subtese de T.R., até se poderia argumentar que, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (estabelecida na Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de Dez. de 1948), designadamente, os artidos 5º, 19º e 25º (nº 1) podem constituir fundamento jurídico para o não-uso de tchadores e burkas e indumentárias semelhantes. B) Ao pressupor-se (na óptica de uma interpretação conjugada e holística das duas subteses de T.R.), a plena legitimidade de uma ‗república confessional‘, e ao postular-se, ipso facto, que só se está a atribuir a cada cidadão a liberdade de interpretar e entender o Corão (ou a Bíblia ou outro Livro sacro...) segundo as suas capacidades mentais, estão a cometer-se erros de omissão graves: o da existência de dois Poderes e duas gramáticas de vida, em confronto (a da república e a da confissão religiosa); e o da dupla obediência do cidadão/fiel, à república e à religião, que ao anular o possível confronto entre as duas obediências, só reforça e duplica a submissão do cidadão/fiel. Não esquecer que o Poder é sempre um só em última análise!... Por si só, este nosso axioma (no C.E.H.C.) deveria conduzir-nos e orientar-nos no sentido da República secular e laica. Laboram, por conseguinte, em erro grosseiro os que argumentam que a República laica só pode conduzir ao ‗totalitarismo‘... O pressuposto ideológico desta argumentação é simples: É esquecido ou ignorado que a Espécie Humana evoluiu e conti226


nua a evoluir; há, pois, uma dinâmica de aperfeiçoamento na psico-sócio-história e as próprias religiões institucionalizadas (enquanto Poderes separados das Sociedades civis) desaparecerão dos céus da Humanidade, quando esta atingir a vera e autêntica humanitude. Sobre a queda naquela tentação, é o feitiço que se vira contra o feiticeiro: ao juntarem-se promiscuamente os dois poderes (civil e religioso), o que a História demonstrou, em termos de geopolítica, foi a emergência dos totalitarismos políticoreligiosos, seja na versão do Cruzadismo e da Inquisição da I.C.R., seja na versão da ‗jihad‘ política conquistadora/dominadora do Islão. Advertências de base: — 1ª Preservar e defender o Pluralismo dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. — 2ª O que a bússola de orientação nos revela é que o Poder é sempre um só em última instância e que é uma realidade sincategoremática, ao lado da Realidade categoremática: a Liberdade Responsável. — 3ª Não se devem misturar nem confundir os ‗Civil Rights‘ e as ‗Liberties‘ (que a Constituição dos U.S.A., por exemplo, sempre se tem esmerado em distinguir). — 4ª Sobremaneira, a partir da Revolução Americana, a interacção verificada entre o Liberalismo e o Republicanismo tem vindo a dar origem ao Neo-Republicanismo democrático, cuja bandeira continua a ser a Tese: sem um Estado livre não há Cidadãos Livres. Este é um dado insofismável. Entretanto, não se pode esquecer que as Sociedades humanas continuam a ser concebidas e organizadas na base dos Poderes Estabelecidos, segundo as pautas decorrentes da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. De acordo, por conseguinte, com a cartilha do Objectivo-Objectualismo. E, não obstante, há um Projecto para a Espécie Humana, que nos é revelado a partir justamente do Futuro (se o houver...): a concepção e a estruturação organizacional das Sociedades Humanas a partir dos Sujeitos Livres e Responsáveis e segundo a gramática da Liberdade Responsável primacial e primordial dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Até ao presente, tem vigorado a democracia passiva (sintomaticamente... quase em regime de excepção!...), que apenas conta com a legitimidade democrática ancorada no princípio do consentimento, por parte dos cidadãos (através de eleições políticas para a governação). No Futuro, será preciso instaurar a Democracia Activa, alavancada na condição dos cidadãos enquanto Sujeitos Livres e Responsáveis.

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GUERRA OU PAZ?!

É CHEGADA A HORA DA OPÇÃO PARA A ESPÉCIE „SAPIENS//SAPIENS‟

Lev TOLSTOI (1828-1910): foi um humanista excepcionalmente empenhado e um escritor russo portentoso. A obra monumental, que o imortalizou, foi conhecida e divulgada com o título ‗Guerra e Paz‘. (O que junta aí os dois nomes substantivos é uma conjunção copulativa, não disjuntiva...) É uma bela epopeia orquestrada em torno da invasão da Rússia por Napoleão; todavia, os conteúdos e as preocupações humanistas do Autor transcendem, enormemente, o mero interesse da narrativa (que passou a segundo plano, na intencionalidade da obra). Karl von CLAUSEWITZ (1780-1831): foi um destacado general e teórico militar da Prússia. No mundo da Cultura, celebrizou-se pelo seu tratado póstumo ‗Da Guerra‘, que veio a influenciar Marx e Engels, e, muito naturalmente, os estrategistas, tanto militares como políticos. Tornou-se muito conhecido um dos seus axiomas predilectos: a guerra é, apenas, o modo de continuar a política por outros meios. Ou seja: nas decisões, que levam à necessidade de fazer a guerra, deve prevalecer sempre o ponto de vista político; mesmo na guerra, a política deve ocupar o lugar do comando. Ao abrigo de uma semântica cumulativa, dir-se-ia que, nesta perspectiva, a guerra estava a ser civilizada... o que não equivale a humanizada, como se poderá averiguar nas contraprovas da História das Civilizações até ao presente. (Temos, na mesa de trabalho, ‗The Book of War‘ (edição de The Modern Library/New York, 2000), que reuniu a obra do general chinês Sun-Tzu, The Art of Warfare, (general conhecido a partir do período dos China‘s ‗Warring States‘: 453221 B.C.), e a obra do general prussiano Karl von Clausewitz, On War. (984 pp. in paperback edition). Figura, aí, também, uma boa e criteriosa Introdução de Ralph Peters, subordinada ao título The Seeker and the Sage, e um magistral Preface to the Ballantine Edition.).

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Não vamos, aqui, entrar em caracterizações pormenorizadas dos horizontes culturais/políticos dos dois generais sobre o Fenómeno (civilizatório...) da GUERRA. Bastará deixar esboçado que há, sem dúvida, diferenças qualitativas de tomo entre as estratégias sobre a Guerra e suas práticas, na vertente da Cultura do Ocidente e na vertente da Cultura do Oriente. E no que às diferenças qualitativas concerne, parece-nos bem que o Ocidente tem, aqui, muito mais a aprender do outro lado, do que o contrário!... Sobre essas diferenças, vamos citar o parágrafo mais importante e decisivo do texto de Ralph Peters (p. VII-VIII): ―The Western text embraces war‘s necessity, which the Eastern one despairs of its inevitability, but they are united by the recognition that the human remains at the heart of each combat encounter and every campaign. Each holds a flank in our approach to war: Clausewitz is the apostle of the relentless will, convinced there is no substitute for victory, while Sun-Tzu seems a closet pacifist, wary of victory‘s hollowness. The first sought to sharpen the sword, the second to restrain it. The Prussian saw the power of the armed mass, while the Chinese pitied the suffering of the common man. Sun-Tzu believed that the outcome of a campaign was predictable, but Clausewitz insisted that, although the odds can be improved, risk is inherent in warfare. This debate across millennia continues today, and placing these two works together highlights the strengths and weaknesses — and the inestimable value — of each book‖. No Preface to the Ballantine Edition, são encaradas as hipóteses de se tratar de um ou dois master Suns (pp.17 e ss.); mas é asseverada a tese de Sun ser uma pessoa histórica (pp.27 e ss.); é reconstruída a obra ‗The Art of Warfare‘ de Sun-Tzu (pp.29 e ss.). Na análise desta obra de Sun-Tzu, salienta-se a Sabedoria e o Estado de Guerra, enquanto coisas antitéticas (pp.31 e ss.). Na visão chinesa clássica do Mundo (onde predomina a gramática confuciana, pragmática...), prevalecem as assumpções do não corrente/comum (pp.33 e ss.). Na Cultura do Ocidente, em virtude do lastro estrutural criado pela filosofia grega e pelo Judeo-Cristianismo, configurou-se toda uma mundividência balizada pela Teoria dos ‗Dois Mundos‘ (pp.35 e ss.). É o que nós temos, no C.E.H.C., denunciado sistematicamente, sob a bandeira do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo (contra as soterradas Mensagens gémeas de SÓCRATES e JESUS). Em contraponto, na visão clássica chinesa, prevalecem as assumpções marcadas pela óptica de ‗Este-Mundo‘ (pp.37 e ss.). Em ambas as vertentes, o estado de guerra é necessariamente percepcionado como arte da 230


contextualização (pp.48 e ss.), onde há que procurar vantagem estratégica face ao adversário/inimigo (pp.50 e ss.). A vantagem estratégica suprema é cumprir o ‗yin‘, i.e., tirar o máximo partido da capacidade do guerreiro em responder, o que implica ‗pôr-se na pele do inimigo‘ (pp.58 e ss.). No final deste longo Prefácio de 56 pp., foram inscritos dois versos de Sun-Tzu: ‗He who knows the enemy and himself/Will never in a hundred battles be at risk‘. No confronto sumário e global entre as duas vertentes, quem mais teme e receia a guerra, é o Oriente. Até correr o risco de nela cair o assusta!... No horizonte da doutrina e da sabedoria do Oriente, sobre a Fenomenologia da Guerra, parece, pois, inquestionável: a) a predominância axiológica da Paz sobre a Guerra; b) a importância decisiva da Estratégia da guerra, inclusive no sentido de que tudo deve ser empreendido para evitar o confronto bélico, para que a guerra não aconteça; c) na óptica dos chineses e dos orientais, seria difícil encontrar, nas suas mundividências correntes, o parergo ocidental que nos matraqueia a frase: ‗si vis pacem para bellum‘: se pretendes a paz, prepara-te para a guerra!... Este é o mote que se acha inscrito na fachada do Templo ocidental da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. Tudo isto tem as suas consequências, como é óbvio. A pauta axiológico-cultural, em que ainda se viu obrigado a pensar Tolstoi, no seu tempo de vida, impôs-lhe os dois fenómenos da Guerra e da Paz, pelo menos em pé de igualdade civilizacional. O que a História regista, quando esta principiologia é adoptada, é o peso maior, o primado absoluto da Guerra sobre a Paz. O séc. XX (o ‗short century‘ de Eric Hobsbawm) aí está, com duas monstruosas Guerras Mundiais e a fermentação de uma terceira durante a paradoxal ‗Convivência Pacífica‘, para comprovar, historicamente, com os Factos catastróficos, a principiologia referida. Eis por que, hodiernamente, nesta alvorada do séc. XXI, a teoria/doutrina, que a evidência das realidades históricas nos impõe, já não pode ser a que junta a Paz e a Guerra pela conjunção copulativa, mas, outrossim, a que as reune para, mediante a disjuntiva, as excluir reciprocamente. A responsabilidade final cabe aos Sujeitos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Há que optar, por conseguinte, em termos substantivos, entre um Mundo de Paz e um Mundo de Guerra. Na díade Guerra e Paz, o sintagma categoremático deve ser a paz, não a guerra; e o sintagma sincategoremático deve ser a guerra, não a paz. Com esta proposta, estamos a romper, de vez, o esquema tradicional que estabelecia a doutrina: ‗se vis pacem para bellum‘!... O que estamos a propor tem a ver, 231


na História contemporânea, com as práticas (revolucionárias) e a doutrina de Mahatma Gandhi, a qual se pode configurar sob a fórmula: a doutrina da não-violência activa e responsável, que decorre, precisamente, da gramática própria e específica do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. Neste horizonte crítico, há uma Lição que a Sabedoria do Oriente pode ensinar ao Ocidente: a vacina (necessária e indispensável) para acabar de vez com a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, que tem sido, sobremaneira, a bandeira da actuação e do comportamento (oficiais...) da Cultura/Civilização do Ocidente. A forja que tem alimentado essa Cultura tem nomes: é a Teoria/Doutrina dos ‗Dois Mundos‘ (o do presente e o do além; o natural e o sobrenatural...), cujas bases têm as suas origens no Dualismo metafísico-ontológico de Platão e de Paulo (o qual teve livre curso, nas três religiões monoteístas, no Cristianismo de modo exponencial). Guerra é violência sistémica e programada, violência física e psíquica, violência de todas as formas e feitios, — que muito dificilmente pode admitir e aceitar catecismos de regulação... Quando assoma um tal impulso, a palavra segredada pelo subconsciente (crítico) é: hipocrisia!... Na verdade, quando o general prussiano sentencia que a guerra é, apenas, o modo de continuar a política por outros meios, ele está a homogeneizar, de modo integrista/fundamentalista, os meios pacíficos e os meios bélicos. Desta sorte, a cartilha adoptada na Economia política e no estado corrente/comum da Sociedade é, inevitavelmente, a da guerra, da conquista e da dominação, da vitória e do triunfo sobre os adversários/inimigos. É a teoria dos ‗vasos comunicantes‘: A

B... B

A. Dado que o reino do Ter tem o primado absoluto sobre o

reino do Ser, é inútil e ocioso pensar, sequer, no princípio da igualdade jurídica dos cidadãos perante a Lei!... Uma vez que se acha estruturada e organizada nos domínios do Ter, e não do Ser (real dos Sujeitos humanos, Indivíduos-Pessoas/Cidadãos), e é balizada e orientada pelo catecismo do Objectivo-Objectualismo (supostamente impessoal e neutro...), a Economia política é bélica, facciosa e guerreira/dominadora, por definição. Ao distinguir, criteriosamente, a Economia da Pólis (de Atenas ou Esparta, ou de outras Cidades/Estados gregas) da pura Khrematística, Aristóteles (‗o Filósofo‘) deixou-nos o caminho aberto para a consideração de duas realidades, que não é lógico nem legítimo misturar e confundir. A 1ª diz respeito à esfera pública, onde estão presentes os cidadãos/pessoas e actua a governação da Pólis (em contraste com a esfera privada da

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economia doméstica); a 2ª concerne a um tipo (deteriorado e fraudulento) de produção e consumo de Coisas predominantemente materiais, cujo objectivo primordial é a sua troca no mercado (independentemente do seu valor de utilidade e função de uso). Os dicionários que nos pretendem passar a informação de que a Crematística aristotélica (khréma, khrématos = coisa) correspondia ao domínio da economia comercial, que, posteriormente, deu origem à economia política, laboram em erro: a marxiana distinção entre valor de troca e valor de uso não começou na época de Marx e Engels, ela tem uma longevidade correspondente à da Civilização humana e da história das Sociedades humanas. Mas deve saber-se que, no léxico aristotélico, a Crematística encerra uma semântica pejorativa, em confronto com a vera e real Economia da Pólis. Consideremos, num relance histórico, a semântica específica da palavra Crematística. É na Política (I, 3 e 4) que ‗o Filósofo‘ fala desta matéria. Assume, aí, o vocábulo como oposto à ‗Economia‘ (oikos = casa) ou ciência doméstica. Enquanto a Economia tem, para ele, um carácter natural, a Crematística encerra, por definição, um carácter artificial, na medida em que se empenha em produzir bens e riqueza de modo ilimitado. Na esteira da tradição aristotélica, a Crematística foi incluindo o comércio e as actividades concernentes à moeda e ao valor de troca das coisas produzidas. Por outro lado, deve observar-se que a distinção (corrente na Escolástica medieval) entre ‗artes pecuniativae‘ (relacionadas com o dinheiro) e ‗artes adquisitivae‘ (ou seja, entre Crematística e Economia), essa distinção já se sabia, então, que remontava a Platão. Foi uma distinção que se manteve em voga durante toda a Idade Média ocidental, levando as sociedades a adoptarem um padrão ético-moral do tipo: por motivos éticos, as ‗artes adquisitivae‘ continuavam a ser preferidas às ‗artes pecuniativae‘. A brecha doutrinal/cultural começou a ser aberta por Tomás de Aquino, na Summa Theologiae (II-IIae, Q. 77, Art. 4º), ao afirmar e defender (sem as determinações jurídicas necessárias...) a licitude do comércio. Desta sorte, os dois abandonos (da tradição helénica e da tradição escolástica) conduziram a que a palavra Crematística, ela mesma, caísse em desuso, com o implicado significado crítico latente, que ela encerrava. Posteriormente, no séc. XIX, acabou por ser sugerida a alteração do nome da Economia política pelo de Crematística (a significar coisas, produtos, bens económicos, em geral), por se verificar que o 1º nome estava mal aplicado. A tentativa, porém, resultou completamente frustrada (na perspectiva da sua equivalência, 233


apenas, à riqueza e aos bens materiais). No encalço desta tentativa malograda, a Crematística veio, ulteriormente, a significar (de modo hipócrita e falsário...) a economia real da produção, contraposta à economia monetário-financeira (vectorizada para a distribuição e o consumo da riqueza). No nosso horizonte crítico, há quatro lições principais a extrair deste abrégé psico-sócio-histórico: a) a economia doméstica foi subsumida (ao longo da História) no campo fortificado da economia política (clássica); b) a economia política clássica foi absolutamente dirigida e balizada pela velha Crematística (aristotélica), sempre com o seu sentido pejorativo; c) o catecismo da religião (secular e laica) do Objectivo-Objectualismo revaleceu absolutamente; d) as sociedades (ditas) humanas, constituídas sobre este châssis, são, inevitavelmente, ‗colectivistas‘ (no pior sentido...) e totalitárias (ainda que mascaradas com formas e regimes ditos democráticos). Ora, com a gramática da Economia (doméstica e política), estruturalmente atraiçoada, desde a revolução crítica de Aristóteles, as Sociedades humanas não podiam ser organizadas e estruturadas politicamente, em terreno são e firme. Por isso, ao longo de séculos e milénios, na história da Civilização/Cultura do Ocidente (e, por carambola, à escala do Mundo), o que prevaleceu foram os modelos e os regimes ‗políticos‘ do Imperium (inexoravelmente associado às Guerras misturadas com o exercício intervalar da Economia pacificada... tempo de paz era o intervalo entre duas guerras...). A própria teoria/doutrina do Estado-Nação (modelo que foi emergindo, claramente, na Cultura/Civilização do Ocidente, a partir do séc. XVII), viu-se, na Modernidade ocidental, sempre em contradição e conflito com a expansão e a predominância reais dos Impérios (que a própria organização da Economia sob a cartilha da Crematística sobredeterminava). O quadro das Sociedades nacionais, que estavam a configurar-se na Modernidade Ocidental (a partir do séc. XVII), pode, assim, caracterizar-se sumariamente como segue: 1º — Os ‗naturais‘ princípios da Política (primado do político sobre o económico) e do exercício dos Poderes (democráticos), à escala de cada Estado-Nação, resultaram completamente malogrados, em vantagem da ‗Economia política‘, sempre concebida e organizada segundo as cartilhas da Crematística e do Império. 2º — Assim, quando a Carta das Nações Unidas (assinada em San Francisco, a 26 de Junho de 1945) pressupõe, teoricamente, a igualdade jurídica (primigénia) dos diferentes Estados-Nações, uns face aos outros (independentemente da sua riqueza ou da sua força bélica), deve saber-se que um tal plano está longe de corresponder à 234


realidade sócio-histórica... e que, por isso, no próprio contexto presente, não passa, ainda, de uma ‗wishful thinking‘!... A Carta das Nações Unidas foi concebida e estabelecida no termo da IIª Guerra Mundial, em nome da defesa da Paz e da Segurança e do Bem-Estar de todos os Povos da Terra, em nome da preservação de autonomia dos Estados, não se coibindo de promover, doutrinalmente, a auto-determinação dos territórios (colonizados), que ainda não tivessem governo próprio. Em termos jurídicos, o Documento está, todo ele, baseado na afirmação de Direitos iguais e no princípio da igualdade de soberania de todos os Estados membros. A confirmar esta principiologia, podem consultar-se os artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º; 9º; 73º e 74º. Membros das Nações Unidas são todos os Estados que amam a Paz. Exige-se, aí, também, que o uso da força para resolver os problemas seja restringido o mais possível. Entretanto, logo a seguir, no tempo conhecido por ‗período da Guerra Fria‘, o processo civilizatório prosseguiu sob o pendão do primado do Poder sobre o Saber, da Força sobre o Direito e a Razão. E ainda não saímos desse odre civilizatório, depois do colapso da U.R.S.S. em 1991... até hoje!... Por tudo isso, persistem: tanto os modelos ‗político-económicos‘ do Império, como as estratégias e as Economias mílico-bélicas, alavancando toda a Construção societária, e ainda (como não podia deixar de ser...), as religiões institucionalizadas, no topo da Construção, para preencher o Imaginário dos ‗cidadãos‘ submetidos e, assim, ordeiros!... Desta sorte, quando os regimes ditos democráticos (das democracias liberais representativas) pregam o sermão (para os ingénuos e os incautos) de que o Primado é o da Política sobre a Economia, deve saber-se que essa pregação é uma ilusão e uma farsa. A dizer toda a verdade, deve saber-se que a cartilha da Economia política de hoje (dis)funciona segundo o mesmo padrão dos Estados fundamentalistas religiosos (de todos os tempos). É sabido que as Sociedades modernas (ao estilo do Ocidente) e as suas Economias políticas modernizadas fizeram profissão de fé no sentido de acabarem com os fanatismos religiosos e abrirem caminho à separação dos Poderes políticos perante as religiosos... Contudo, permanece uma ‗Quaestio ad hominem‘: Foram, definitivamente, erradicados os fundamentalismos, resultantes do Objectivo-Objectualismo, na própria concepção e na própria organização da Economia política?!... A bandeira, que prossegue sendo agitada aos quatro ventos, é a da Conquista e do Império, sempre no horizonte da Cultura ideológica da Potestas-Dominação 235


d’abord. A gramática da Ética/Moral acha-se substantivamente arredada e bloqueada nesse universo ideológico. Um exemplo categoremático: Pio XII sobre o Nazismo... culpado ou não culpado?!... O seu antecessor, Pio XI, na encíclica ‗Mitbrennender Sorge‘ (1937), havia estabelecido claramente a tese: ‗Quem tender a divinizar por um culto idólatra, a raça, o povo e o Estado, viola a ordem divina das coisas‘. A mesma encíclica fustigava o racismo enquanto ‗doutrina do sangue e do solo‘, mas ainda não condenava o anti-semitismo. Sabe-se, entretanto, a partir dos arquivos secretos, que Pio XI (em 1938/39), poucos dias antes de morrer teve em mãos o rascunho de uma nova encíclica (que mandava preparar para condenar o anti-semitismo), com o título ‗Humani generis unitas‘, que não chegou a publicar. (Cf. Bernard Lecomte: ‗Os Segredos do Vaticano‘, ASA, Alfragide, 2010, pp.40-52). (Sobre Pio XII, vd. Pierre Blet — ‗Pio XII e a Segunda Guerra Mundial: Que dizem os Arquivos do Vaticano?‘, São João do Estoril, Principia, 2001; John Cornwell — ‗O Papa de Hitler: a história secreta de Pio XII‘, Terramar, Lisboa, 2000). Sobre as manifestas cumplicidades indescritíveis de Pio XII com o Nazismo de A. Hitler, assistimos a um bom debate na estação televisiva alemã, que dá pelo nome de Neu Jerusalem (9.3.2011). Aí se explicava e fundamentava o argumento psico-sócio-antropológico, que, no mote corrente, reza assim: ‗Wer schweigt macht sich schuldig‘ (em alemão); ‗Quem cala consente‘ (em português). De facto, o que a boa filosofia popular nos diz e proclama, bem alto, sobre os telhados é simples e duro: Quem ficar calado (ignorando a voz da sua consciência...) diante das maldades conhecidas como tais, torna-se culpado e réu dos mesmos delitos ou crimes, que outros praticaram. Se os segundos foram agentes e réus activos, o primeiro foi agente e réu passivo. Esta actuação, atribuída a Pio XII, constitui o reverso da medalha do catecismo cristão, onde se acha, no verso, a fórmula do pecado contra o Espírito Santo: ‗contradizer a verdade conhecida como tal‘. Como é isto possível? — Perguntarão alguns, desconfiados. A Igreja-Estado tradicional (nas Cristandades paulinas) embarcou (desde Paulo e depois, com a chancela oficial da constantinização imperial a partir de 313) na mesma Nau sócio-histórica dos Poderes políticos estabelecidos, a funcionar, inexoravelmente, segundo a sempiterna cartilha da Potestas-Dominação d’abord. Os comportamentos e as actuações... tudo é analisado, decidido, deliberado ao abrigo dessa cartilha, que estabelece, peremptória e sistemicamente, o primado absoluto do Poder sobre os saberes. As pessoas, os seres humanos não interessam para nada... a não ser como cabeças de re236


banho ou clientes dos mercados consumistas!... A rev. ‗Forbes‘ (de Março de 2011, — foi anunciado nas televisões que o novo rol dos milionários de 2010, à escala mundial, não só havia subido a lista como também o montante dos rendimentos de cada figurão!... E não se esquecem os noticiários televisivos de adicionar a ‗profissão de fé‘ dos milionários: ‗São eles que criam a riqueza... são eles que fazem as coisas acontecer‘!... Assim vai o carnaval real do Mundo!... O CEHC tem medos e receios das máscaras reais; não das outras a fingir... Ora, é preciso sabermos que o scenario de Pio XII e o Nazismo e o scenario da ‘Forbes‟ e dos milionários constituem, em termos de categorias ético-morais, uma realidade indivisível que é, exactamente, da mesma natureza: o culto e a cultura ideológica do idolátrico Poder-Condomínio (ancorado no Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo), que nunca foi capaz de ver os outros seres humanos (da mesma Espécie) a não ser como servos ou escravos dos Poderes Estabelecidos.

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ATÉ QUANDO A MONTANHA-RUSSA DA ECONOMIA POLÍTICA, OU SEJA, A ETERNA PAZ SINCOPADA, DEFINIDA TRADICIONALMENTE COMO „O INTERVALO ENTRE DUAS GUERRAS‟, — O QUE PRESSUPÕE A GUERRA COMO REALIDADE PERMANENTE (EXPLÍCITA OU IMPLÍCITA)?!... AS OBSCENIDADES DA ECONOMIA POLÍTICA E DOS MERCADOS PRIMACIAIS E PRIMORDIAIS E O IMPERIALISMO POLÍTICO E EPISTEMOLÓGICO DO OBJECTIVO-OBJECTUALISMO!...

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Sabendo como tradicionalmente se tem entrosado os fenómenos da guerra e da paz, com o predomínio substantivo da guerra, da dominação e da conquista incessante, Hannah Arendt intuiu a realidade do que chamou ‗guerra civil mundial‘. Como, porém, morreu em 1975, não pôde ainda visualizar e assistir ao que hoje se pode chamar a ciberguerra, em todo o seu esplendor!... António Guerreiro caracteriza a situação, no que ela envolve de tradicional e de inovador: ―Exército (de hackers e de lammers), ataque, assalto, operação, sabotagem, estratégia, campo de batalha: a guerra [actual] nada tem de tradicional, mas o vocabulário básico para a descrever é o que todos conhecemos. Só que agora as palavras inclinaram-se muito mais para o lado das metáforas. E, por outro lado, evocou-se o imaginário ao mesmo tempo guerreiro e de ficção científica de filmes como ‗A Guerra das Estrelas‘ e ‗O Império Contra-Ataca‘‖ (in ‗Expresso‘/Atual, 18.12.2010, p.30). Os fenómenos mais diversificados, subtis ou camuflados, da Guerra ganharam novos espaços e dimensões: novo palco e instrumento da Guerra, a Web transformou-se, hodiernamente, no novo território virtual, a actual na esfera pública global, ao serviço dos novos meios e processos de fazer a guerra de uns povos e/ou Estados contra os outros. Nada se alterou, afinal, nos modos de funcionamento dos Aparelhos societários e nos modos de comportamento das Instituições. Deve, entretanto, recordar-se que os espaços ideológicos e os campos de actuação específicos se viram, contemporaneamente, (a partir desse marco miliário, que foi o 11 de Setembro de 2001), ainda mais confundidos e misturados: guerra (clássica), polícias, tribunais (nacionais ou internacionais). George W. Bush declarou a guerra à Al-Qaeda de Ben Laden... Foi o pior erro cometido na história mundial da doutrina e das estratégias da Guerra. Numa análise crítica, em profundidade, das Sociedades tradicionais, o ponto de vista do C.E.H.C. é claro e insofismável: a guerra é um fenómeno substantivo e permanente: não ocorre, tão só, quando estamos em presença de conflitos bélicos armados, declarados e programados; mas também, mediante outros meios e processos, nos chamados ‗períodos de paz‘, que, na história de longa duração, não passam de intervalos entre duas guerras. O que hoje designamos por campo da economia política e espaço dos mercados (neocapitalistas) está estigmatizado e minado por actuações bélicas de conquista e dominação; as redes cibernéticas da Informática constituem,

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hoje, o território virtual de eleição para a hegemonia das multinacionais e para a instauração de poderes de controlo e vigilância ocultos. O que, entretanto, pode mesmo surpreender-nos, positivamente, é que Julian Assange e o seu Grupo da WikiLeaks tenham dado início a todo um Movimento de Libertação e de Salvação Pública, em defesa dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Exactamente, no sentido contrário ao advogado pela sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord e pela cartilha do Objectivo-Objectualismo, declinada pelos próceres dos Establishments. Se houve quem considerasse J. Assange como um ciberterrorista, houve, igualmente, muitos outros que o tomaram como um novo messias dos media. (Cf. David Leigh e Luke Harding: ‗O Segredo WikiLeaks: o que é e como foi possível‘, Gradiva, Lisboa, 2011, p.9). Escreve Alan Rusbridger (editor-chefe de The Guardian): ―Até à data, não houve lixeira maciça. Só foram publicados dois mil de 250.000 telegramas diplomáticos e, seis meses após a primeira publicação dos diários de guerra, ninguém conseguiu demonstrar prejuízo de vida ou de integridade física‖. O povo simples e comum das sociedades em que vivemos é quase sempre mais sensato e inteligentes que os seus governantes, perante as misturas e as confusões entre as veras notícias (que as autoridades pretendem abafar) e a publicidade/propaganda (que os poderes estabelecidos procuram promover segundo os seus critérios e medidas). É óbvio que Julian Assange e a sua firma não funcionam segundo o mesmo espírito ideológico da Al-Qaeda. A gramática securitária dos Estados, que se tem desenvolvido exponencialmente, em virtude dos hodiernos conflitos e ataques em território virtual, (e real...), não poderá actuar, segundo o mesmo catecismo, no seu relacionamento com o 1º e a 2ª. Por outro lado, a paráfrase do compatriota de J.A., Wark McKenzie, no seu ‗Manifesto Hacker‘ (de 1986), ao antigo clamor do ‗Manifesto Comunista‘, deixou de ter qualquer sentido: ‗Trabalhadores imateriais de todo o mundo, uni-vos‘. Na situação actual, e perante a problemática presente, o que para nós é pura e simplesmente patético são as posições assumidas por altos responsáveis na governação dos Estados. Como não entendem o Mundo real, não poderão percepcionar a sua evolução. Ouça-se a posição do almirante norte-americano Arthur K. Cebrowski (em 2002): a posição de liderança dos U.S.A. é imutável; ‗não é uma posição de que possamos prescindir‘ (cf. ‗Expresso‘/Atual, cit., p.31). É igualmente patética a posição que George W. Bush deixou exarada (ibidem): ―No passado, os inimigos precisavam 239


de grandes exércitos e grandes capacidades industriais para pôr em perigo a América. Mas, agora, redes obscuras de indivíduos podem trazer-nos o caos e o sofrimento, com muito menos esforço do que aquele que é necessário para fazer explodir um simples tanque de guerra. Os terroristas estão organizados para penetrar nas sociedades abertas e virar o poder das modernas tecnologias contra nós‖. — A última frase confirma, afinal, os modos não precavidos nem adequados como as ‗forças diabólicas‘ das novas tecnologias foram postas em marcha... uma vera ‗caixa de Pandora‘!... Num discurso ad rem, escreve A.G. (ibi, p.32): ―A ciberguerra corresponde à deslocação para o espaço virtual da rede dos conflitos, que antes tinham lugar em território físico e com os meios militares tradicionais. Apesar de se terem preparado cedo para esta guerra, os Estados Unidos sofreram o maior ataque‖. É que, em termos históricos, as hiperpotências e os impérios são sempre as organizações que ostentam mais dificuldades em evoluir para Tempos Novos!... Mas, para se percepcionar toda a complexa fenomenologia da Guerra, é mister escandi-la nos quatro patamares societariamente conhecidos: a) o campo da Economia política capitalista; b) o campo da Finança no quadro do Estado soberano (ou de Agrupamento de Estados, onde a soberania dos mais fracos é perdida em benefício dos mais fortes...); c) o campo da tradicional Guerra convencional; d) o campo dos conflitos bélicos em território virtual, à escala da esfera pública global. Como se orientar, em termos éticos e políticos, perante o novo horizonte da guerra virtual em curso?! Eis a Questão, à qual não podemos deixar de responder. Poderemos, em absoluto, fazer de conta que o indivíduo é o eterno mexilhão (que não tem rocha a que agarrar-se perante o bater sistemático das ondas marinhas...), sem qualquer direito a concretizar a sua emancipação?! Gil Vicente (o maior dramaturgo da Nação lusa) diria no seu refrão conhecido: ‗Todo o Mundo e Ninguém‘!... A.G., no parágrafo seguinte (ibidem), faz-nos saber e sentir que os caminhos da emancipação dos indivíduos, diante dos prepotentes e totalitários (é da sua natureza...) Poderes Estabelecidos, passam, precisamente pela sua condição de anonimato: ―O grupo que tem desenvolvido uma actividade guerreira contra as empresas que suspenderam o financiamento e o alojamento do WikiLeaks chama-se Anonymous. Porque esta é uma guerra de anónimos que têm capacidade de mobilização e de organização e cujo regime de existência é o da proliferação. Esta guerra baseia-se em estruturas rizomáticas e desenvolve-se na escala de uma esfera

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pública global, da qual ela é a manifestação mais eloquente que até hoje conhecemos‖. Quando a poeira da Globalização tecnológica e economicista vier a assentar; quando, ao mesmo tempo, se dissolverem os projectos (perversos) das Hegemonias e dos Impérios, sempre ancorados no primado do Poder sobre os saberes; — então, sim, serão reivindicados, com consequências, os conceitos e as realidades de pátria/ /mátria e, mesmo, de nação. Terminarão as guerras por causa do Anonimato: do lado activo e do passivo. Tem, pois, razão A.G., quando se interroga ad hominem (ibidem): ―Haverá ainda lugar para a pátria, mesmo num grau mínimo, quando todas as pátrias deixaram de ser unidades políticas ou culturais e perderam a sua capacidade de acção soberana?‖ Sejamos lúcidos e claros: O que, em toda esta problemática, está em causa, em primeira ou última instância, em termos técnico-materiais e civilizatórios, é essa maquinaria idolátrica da religião secular e laica do Objectivo-Objectualismo. Neste horizonte criticista, podemos considerar que acertou no alvo o filósofo eslavo Slavoj Zizek, no seu livro ‗Da Tragédia à Farsa‘ (Relógio D‘Água, Lisboa, 2010): a Crise financeira de 2007-8 já estava prevista e sinalizada há muito; por isso, o que foi percepcionado como tragédia não passou de uma farsa, identificada com o colapso completo da utopia democrático-liberal, incensada por Fukuyama nos anos ‘90 do séc. XX: a farsa foi todo um sistema de ilusões que abalroou e se podia esperar que viria a abalroar. A ‗ironia suprema‘ dessa farsa consistiu no processo que levou à ‗socialização‘ do sistema bancário, precisamente para salvar o capitalismo!... Em vez de se abrir caminho, em direcção ao vero e autêntico Socialismo, como manda a evidência crítica da Verdade da Crise. É sabido que a Crise Financeira (que nos últimos quatro anos abalou o mundo) começou, precisamente, com as práticas correntes da especulação financeira nos mercados de capitais (as famosas ‗bolhas‘ no sector do imobiliário). Esses ‗conflitos bélicos‘, foi o próprio neoliberalismo capitalista global que os alimentou e incentivou, como nunca havia acontecido antes. António Guerreiro explicou bem como a Finança, perante a Economia política, entrou em regime de completa autarcia, a (dis)funcionar segundo a cartilha moderna (= separar para definir...) do Objectivo-Objectualismo (in ‗Expresso‘/Atual, 27.11.2010, p.38): ―A dimensão financeira constitui-se desde o início, e essencialmente, como algo separado da dimensão produtivo-industrial. Aquilo a que se tem chamado ‗desre241


gulação‘ não é mais do que uma ‗patologia‘ consubstancial ao próprio capitalismo, que nasce precisamente quando já não é a troca de mercadorias a servir-se do dinheiro, mas o dinheiro a servir-se da mercadoria, isto é, quando o incremento do dinheiro, enquanto lucro privado, é o objectivo da produção de mercadorias. Esta separação faz do capitalismo, como muitas outras forças próprias do Ocidente, um platonismo, que pretende afirmar, além da estabilidade dos seus objectivos, a existência de uma estabilidade absoluta, de uma dimensão imutável, ‗metafísica‘, em que o homem, dotado de livre arbítrio, com capacidade de iniciativa, age no ambiente ‗natural‘ da economia de mercado, em que a produção do lucro privado é o objectivo supremo da sociedade. [Daqui... a mística do capitalista: ele faz as coisas acontecer como um Deus!...]. ―Wall Street é a representação suprema do platonismo; e entra em ‗crise‘, quando a separação relativamente ao ‗real‘ da produtividade económica atingiu um tal grau que se torna insustentável; isto é, quando o sistema dos simulacros vai para lá dos seus próprios fins e surge, já não como simulacro, mas como pura e indisfarçável mentira. Se utilizarmos a imagem do capitalismo como religião, tal como o definiu Walter Benjamin (‗uma pura religião cultual, talvez a mais extrema que existiu até agora‘, sem dogma nem doutrina, em que não há distinção entre os dias de festa e os dias de trabalho), então é possível dizer que essa estrutura, essencialmente religiosa, está sempre a ser atraída para o pólo de uma Teologia maldita: Wall Street representou, recentemente, a hipóstase dessa satânica teologia. ―E tal como Deus passou a ser, na sociedade moderna, uma ausência, não uma ausência que possa ser esquecida, mas uma falta, também o capital cumpre essa função: o dinheiro é aquilo que falta. Como mostrou o filósofo Boris Groys, vivemos numa sociedade baseada numa falta. Assim, o capitalismo é uma sociedade estruturada pela ausência do capital, e que está sempre à espera de ser salva pelo investimento e por um aumento do consumo. Não temos dinheiro, mas exortam-nos a comprar; estamos exaustos de prazer, mas dizem-nos que o mandamento primeiro é gozar. Tudo deve atingir o seu ponto de extenuação, — e Wall Street é o lugar da extenuação máxima‖. A Sociedade balizada e orientada pela cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘ tornou-se, em todos os seus sectores e ramos, (e super-potenciada no carro de Jagrená da Modernidade...), uma Sociedade demencial e patológica em termos estruturais, absolutamente incapaz de resolver verdadeiramente os seus problemas e contradições 242


foncières... porque, em última análise, fez depender o seu destino e a sua própria organização societária da teoria/doutrina dos Poderes Separados e das mundividências mistificadoras, fundadas no Dualismo metafísico-ontológico de Platão e de Paulo. (As sociedades inspiradas e fundadas, nas ideologias/doutrinas das três religiões de ‗O Livro‘, enfermam, basicamente, dos mesmos vícios estruturais). Quando, efectivamente, numa Sociedade, que se pretende adulta e responsável, não há lugar para a crítica livre, deixou de poder falar-se de ‗sociedade aberta‘ (segundo o léxico de K. Popper); é toda a Sociedade, holisticamente falando, que se encontra doente e sob ameaças fatais!... Um caso paradigmático. Quando, em 1634, o navio Nuestra Señora de Monserrate, vindo de Cacheu (na Guiné-Bissau), carregado de escravos, atracou no posto de Cartagena (na Colômbia), ―o secretário tratou de fazer um exame minucioso. Mas não encontrou livros proibidos pela Inquisição e sentiu-se satisfeito por terminar a inspecção sem tomar qualquer medida. Os livros proibidos seriam anátema para a Inquisição, mas as terríveis condições do contrabando de escravos não mereceriam qualquer menção do lacaio do Santo Ofício. A inacção do funcionário justificava-se teologicamente, pois a Santa Sé concedera uma certa legitimidade ao tráfico de escravos, considerando-o uma maneira de salvar almas. Na realidade, quantas mais almas se amontoassem naqueles pútridos santuários de madeira apodrecida a rolar pelo oceano, melhor. O que certamente revela que nenhum dogma é suficientemente divino para justificar um apoio divino da nossa parte‖ (Toby Green: ‗A Inquisição/O Reino do Medo‘, Edit. Presença, Lisboa, 2010, p.321). De resto, as obras de autores como Dante, Erasmo, Lutero, Tomás More, Ovídio, Maquiavel achavam-se proibidas pelo Santo Ofício, em toda a Espanha; a própria obra de Bartolomé de las Casas, A Brevíssima Descrição da Destruição das Índias, (que nós hoje consideramos um clássico entre os textos históricos sobre a descoberta espanhola da América), foi condenada e esteve proibida em Espanha nos sécs. XVII e XVIII. Outro caso paradigmático. ―Em finais do séc. XVIII, havia queixas sobre a letra de certos hinos cantados na igreja. Algumas das pinturas de Goya foram proibidas. Era possível pôr em causa qualquer aspecto do trabalho cultural: literatura e filosofia, música e arte, pintura e teatro. A ideologia que sustentava o processo provocou o declínio dos países peninsulares em dois aspectos fundamentais: primeiro, por fomentar uma filosofia, o cepticismo, que vibraria um golpe mortal na Inquisição durante o 243


Iluminismo e, segundo, por ajudar a estagnação da cultura a partir da qual a Inquisição se desenvolvera, tornando-a incapaz de combater a ameaça que emergiu durante o séc. XVIII‖ (idem, ibi, p.324). O Adamastor, aí, era a Régua para medir... a cartilha bem definida para julgar e condenar, afinal, em matérias da Cultura, cuja primeira e última fonte é a consciência crítica de cada Indivíduo-Pessoa/Cidadão!... Nessa perspectiva, como é sobejamente manifesto, são impropriamente impostos, aos fiéis/súbditos, pelos poderes estabelecidos, os efeitos de um suposto bem, que é imposto por meios e processos dogmáticos e autoritários e/ou objectivo-objectualistas. Na verdade, o Despotismo iluminado e a Ignorância alarve são as duas faces da mesma moeda. A ‗Teologia maldita‘ (de que nos falou, muito bem, António Guerreiro, no texto supra-citado) não tem, apenas, como objecto a Divindade hipostasiada no Capital e ‗Wall Street‘ como seu símbolo icónico. Ela continua presente nos sistemas doutrinários das três religiões monoteístas institucionalizadas, na medida, precisamente, em que se trata, aí, de corpora doutrinais construídos no plano do Objectivo-Objectualismo e sua cartilha respectiva. O Universo humano é um só... e, aí, tudo está ligado a todas as coisas!... Neste horizonte crítico, torna-se evidente que os problemas da Economia política (hodiernos) e dos seus sistemas financeiros têm de ser resolvidos, em última instância, nos domínios das Teologias e das Religiões institucionalizadas, ou seja: no horizonte do Imaginário humano, onde se põe, originalmente, o Problema de Deus, com toda a sua consistência e consequências vitais/societárias. Consideremos, v.g., a situação padronizada: o capitalista milionário nunca poderá, em boa e crítica consciência, argumentar que a sua riqueza excepcional lhe permite fazer acontecer as coisas (na Sociedade...), supostamente — como ele declarou — para bem dos outros seres humanos!... Essa ‗bondade paternalística‘ tem um nome de baptismo verdadeiro: idolatria e blasfémia!... Axiomas teológicas a ter presentes (painel crítico): 1º — Tudo o que é dito acerca de Deus é sempre um homem que o profere ou revela. 2º — Segue-se daí que esse corpus de ideias, ou catecismo doutrinal, foi, ipso facto, vasado nos moldes (comuns e correntes) do Objectivo-Objectualismo (gnóseo-epistémico e político).

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3º — A Consciência de cada Indivíduo-Pessoa é inviolável (na medida em que só pode ser revelada pelo próprio...)... a tal ponto que cada ser humano tem direito (um direito original/originante), na sua experiência e na sua vida, à sua ideia de Deus. 4º — Ninguém do Exterior à Consciência do Indivíduo-Pessoa (no mundo material e no mundo espiritual), seja uma grande Personalidade, uma Religião institucionalizada, ou qualquer outra ‗religião de substituição‘, tem o direito de impor a sua ideia de Deus ou o seu catecismo teológico aos outros. 5º — O vero e autêntico Deus nunca é o construído no reino do Objectivo-Objectualismo: estão cheios de razão, por conseguinte, tanto os ateus como os agnósticos, na problematização e na recusa da Divindade. 6º — O vero e autêntico Deus (na linha dos Gnósticos judeo-cristãos primevos e da sabedoria dos Druidas, nas religiões célticas) é Aquele que é procurado e pesquisado no horizonte dos Sujeitos humanos responsáveis. Interminamente. 7º — O leque/legado dos seis axiomas anteriores desemboca ‗naturalmente‘ (cultura = segunda natureza) numa necessária e imprescindível Sociedade humana horizontal dos Seres humanos livres, socialmente iguais e fraternos.

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EM DEMANDA DAS VERAS RAÍZES DA ECONOMIA POLÍTICA QUE SÃO AS DE UMA AUTÊNTICA SOCIEDADE HUMANA, DIGNA DO NOME

Até quando o eterno conflito entre a Teoria e a Prática?!... O dramaturgo e ensaísta irlandês, Bernard Shaw (1856-1950) brandia, em termos críticos, com toda a justeza, o parergo: ‗Quem sabe faz, quem não sabe ensina‘!... Em causa, estava, precisamente, esse vezo do Paradoxo (tão estimado e encarecido na Cultura do Ocidente), que serve, operatoriamente, para afirmar o Sim e o Não sobre a mesma Questão: desta sorte, o método do paradoxo tanto te permite dizer um Sim e um Não (em termos epistémicos) sobre a mesma matéria, como te proporciona a teoria/doutrina da ‗dou246


ble mind/double bind‘, no campo da política (em todos os níveis), tão corrente e vulgar nas práticas e nas pragmáticas ocidentais. Entretanto, que te foi dito, no evangelho de Mateus, 5,37: ‗Que a vossa palavra seja: sim, sim; não, não. O que vem a mais procede do mau‘. A confirmar a mesma tese está a Carta de Tiago, irmão de Jesus (5,12), e o próprio discípulo ‗abortivo‘ de Jesus, Paulo de Tarso, na 2ª Cor. 1,17-20. Que revela ou deixa transparecer o conflito entre a Teoria e a Prática?... Estão aí implicadas, estruturalmente, duas atitutdes correntes: a) não se dá atenção e ouvidos aos nossos semelhantes e aos nossos próximos e irmãos; b) porfia-se, fanaticamente, na teoria/doutrina do Objectivo-Objectualismo. No horizonte clássico-tradicional, tem sido ensinado (regular e sistemicamente), pelo menos, desde Aristóteles, que a Economia política (a da Pólis, em contraste com a da Oikos, doméstica) é a ciência e a arte da organização da produção das mercadorias e da distribuição, à escala de toda a Sociedade a que diz respeito, dos recursos disponíveis, que são limitados, por natureza e por definição. É óbvio que, em todas essas operações, a 1ª preocupação dos funcionários do Estado terá de ser a da Boa Gestão; para os produtores, a 1ª preocupação terá de ser a da Boa Qualidade dos produtos ou mercadorias. Quando o valor de troca (prevalecente no Mercado) dissolveu ou estilhaçou o valor de uso da mercadoria, e isto ocorre sistemicamente, ficou o caminho definitivamente aberto para a autarcia (idolatrada) do sistema financeiro sobre a Economia política. Esta acabou por ser, definitivamente, atraiçoada. As raízes de uma vera Economia Política (tanto a montante como a jusante), numa Sociedade humana digna do nome, são sempre os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, — que nunca poderão ficar eclipsados, muito menos anulados. Como acontece na organização política dos Estados-Nações, onde se afirma (na base e no topo) que a soberania é limitada, do mesmo modo se deve asseverar, na Economia política, que os Recursos são limitados, nos seus três estádios encadeados: A) no das matérias-primas e da produção; B) no do comércio e distribuição dos produtos-mercadorias e artigos pelas populações-alvo; C) no do próprio consumo das mercadorias e artigos produzidos. Partindo do suposto que a gramática essencial foi aprendida nas Escolas e Academias, que acontece, depois, na Praxis e na Pragmática corrente?!... Em virtude daquela fenda abissal entre a Teoria e a Prática, e por muitas e diferentes ‗artes mágicas‘ de perversão e de corrupção, actores e agentes económicos de todo o tipo são 247


industriados em toda uma mundividência ideológica, diferente e oposta à ensinada nas Escolas e Academias; desde logo, são-lhes afagados os egos egoístas e é-lhes estimulada a volúpia do Lucro d’abord, sob o signo de uma errónea e falsa cartilha, que lhes contra-ensina que os Recursos (nos três estádios mencionados) são ilimitados!... Ao mesmo tempo, foi instilada na alma desses agentes e actores económicos a corveia da submissão ao patrão, da obediência e da resignação às ordens do Chefe. Foi assim que nasceu e se formou, nas práticas societárias, o moderno Sistema capitalista. Em consequência desse ‗corporativismo feudalizante/medieval‘, longe lateque, foi-se degradando a Natureza ambiente e o Clima, a Ecologia everywhere, até aos paroxismos apocalípticos, a que vamos assistindo hoje em dia.

• Vícios letais do Sistema capitalista contemporâneo, que estão a destruir os regimes democráticos No balanço crítico da Economia política hodierna e do modo de funcionamento dos mercados, é mister identificar, à partida, dois grandes ‗pecados originais‘, que subvertem toda a Realidade: A) a autarcia do Sistema financeiro, que, através dos mercados de capitais autónomos, se impôs ditatorialmente sobre as diferentes Economias políticas nacionais, por formas mascaradas (mediante as sucessivas flutuações das cotações, na Bolsa, das grandes Empresas, que, assim, pretendem passar por simulacros de liberalismo democrático); B) a generalização dessas empresas híbridas, que dão pelo nome de Parcerias Público-Privadas (PPP). Como atmosfera pan-envolvente da corrupção selvagem e da perversão de meios e processos, que advieram na Nau do Neoliberalismo capitalista global, cumpre destacar fenómenos e práticas societárias correntes como: deslocalização das multi-transnaiconais; precarização generalizada e estrutural do emprego e do trabalho assalariado; são as empresas multinacionais que mandam hoje no Mundo; os Estados-nações de pequena e média dimensão estão perdendo, aceleradamente, a sua soberania real; os regimes democráticos, à escala de cada Estado-nação, mercê da dinâmica do imperialismo financeiro-económico em presença, acham-se cada vez mais fragilizados e impotentes. As PPP (colocando os privados às cavalitas do Estado) acabaram por perverter o sector privado da Economia e levaram o próprio Estado a desbaratar o erário públi248


co e a hipotecar o futuro. ―Nas parcerias público-privadas fica toda a gente mal. Mas o terceiro P fica muito mal. As PPP criaram uma verdadeira indústria de que o sector privado não se devia orgulhar. Anos após anos, governo após governo, houve gente que se especializou em ‗vender‘ ao governo projectos que lhe asseguravam uma renda para décadas sem qualquer risco ou esforço. Basta ter lido um livro aos quadradinhos sobre economia para saber que isto está nos antípodas da ‗iniciativa privada‘‖ (Ricardo Costa, in ‗Expresso‘, 6.11.2010, p.36). Só em PPP (Nov. de 2010), a dívida elevase, em Portugal, a 50 mil milhões de euros, ou seja, a riqueza-que-as-novas-gerações-ainda-não-criaram, mas os sucessivos primeiros-ministros já lhes atribuíram em hipoteca. Os modelos da Democracia liberal representativa (criados pelo Ocidente), sobremaneira depois da emergência do Neoliberalismo capitalista global, desencadearam nas Sociedades, à escala mundial, situações generalizadas de verdadeira barbárie, a tal ponto que os Humanos sensatos e críticos se vêem hodiernamente compelidos a fazer soar o toque de gong: É preciso e urgente civilizar a Democracia! ―Para conter os disparates económicos e as tiranias políticas da ‗democracia pura‘, a política ocidental inventou uma coisa chamada ‗democracia liberal‘ (a versão cool da ‗República‘ kantiana), esse objecto que funde a veia democrática (voto) com a veia aristocrática (instituições como o Tribunal de Contas). Ora, em Portugal, o sistema pende em demasia para a veia democrática. Nós precisamos de redignificar as instituições aristocráticas que fiscalizam o poder democrático, e devemos fazer isso sem medo de sermos rotulados de ‗antidemocráticos‘. O controlo institucional da democracia é o ADN político do Ocidente‖ (Henrique Raposo, in ‗Expresso‘ cit., p.37). Com data de 1/9/2010 e revisão de 6/10/2010, foi divulgado, na Net, um opúsculo de 18 pp., de 4 economistas e sociólogos de craveira internacional, com o título: ‗Manifeste d‟économistes atterrés‘ (ou Manifesto dos economistas estupefactos, na edição bilingue). Por ser um trabalho sério e crítico, vamos respigar alguns dos seus temas e orientações. É raro encontrar-se uma visão assim tão ampla e profunda, de natureza crítica e prospectiva. O ‗Le Monde Diplomatique‘ (Nov. de 2010, p.1, pp.18-19) falava-nos da recusa de uma ordem societária absolutamente insuportável; o artigo sobre as novas guerras cambiais (publicado em ‗The Economist‘ e transcrito no ‗Expresso‘ de 23.10.2010, p.11) suscitava surpresa nos incautos. Mas a voz do senso crítico ilustrado, sobre esta matéria, veio no artigo do economista Jagdish

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Bhagwati, ‗Stop Worrying about China‘s Currency‘ (in ‗Newsweek‘, 15.11.2010, p.38). Curiosamente, em torno das raízes da generalizada e profunda recessão, por que estão passando as sociedades nacionais e a Economia Mundial, ninguém se tem lembrado de fazer pontaria crítica sobre a introdução desadequada das novas T.I.C.s no funcionamento da Economia e das Sociedades. Começou a falar-se disto, pela 1ª vez, (tanto quanto nos é dado saber), no já citado ‗Newsweek‘ de 15 de Novembro de 2010 (pp.35-37). Na introdução, o Manifesto citado fala-nos de dois tópicos principais: — a Crise financeira que, paradoxalmente, veio a reforçar e a impor a ditadura absoluta dos mercados; — e as medidas erradas que, no encalço, têm vindo a ser tomadas pelos diferentes Governos nacionais. O tom é dado logo no primeiro parágrafo (p.1): ―A crise económica financeira, que abalou o mundo em 2008, não enfraqueceu a dominação dos esquemas de pensamento, que orientam as políticas económicas desde há trinta anos. O poder da finança não foi posto em causa. Na Europa, pelo contrário, os Estados, sob a pressão das instituições europeias e internacionais e das agências de notação, aplicam com um vigor renovado programas de reformas e de ajustamentos estruturais que, no passado, mostraram a sua capacidade de aumentar a instabilidade económica e as desigualdades sociais‖. E a ditadura dos mercados impôs-se, de modo pesporrente, sem que os responsáveis dos Governos erguessem a voz para censurar o fenómeno: ―A União europeia está presa numa armadilha institucional. Os déficits públicos explodiram por causa da crise financeira. Mas, para os financiar, os Estados estão obrigados a contrair empréstimos caros junto de instituições financeiras privadas que, por sua vez, obtêm liquidez a preço baixo no Banco central europeu (BCE). Os mercados têm, assim, a chave do financiamento dos Estados‖ (ibidem). Ora, são irresponsáveis as medidas tomadas pelos diferentes Governos, no sentido da contracção e da recessão das actividades económicas, propriamente ditas: com a diminuição dos funcionários, está a ser ameaçado o bom funcionamento dos serviços públicos, como a Educação, a Saúde, a Justiça, etc.; a própria construção europeia está ameaçada pela crescente ditadura dos mercados. ―Quer seja interpretada como o desejo de governantes assustados de ‗sossegar os mercados‘, ou como um pretexto para impor escolhas ideológicas, a submissão sem debate a esta ditadura não

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é aceitável. Um verdadeiro debate democrático sobre as opções de política económica deve, por isso, ser aberto em França e na Europa‖ (ibi, p.2). Os quatro Autores corajosos (capazes de remar contra a corrente: Philippe Askenazy, Thomas Controt, André Orleán e Henri Sterdyniak) finalizam, assim a introdução ao Manifesto (ibidem): ―A maioria dos ‗especialistas‘ que intervêm no debate público, fazem-no para racionalizar as políticas actuais de submissão das políticas económicas às exigências dos mercados financeiros. Mas, tal como as que a precederam, esta grande crise deve dar origem a uma refundação do pensamento económico. Aliás, muitos investigadores começam a orientar-se nesse sentido pelo mundo fora. ―Saídos de horizontes muito diferentes, quisemos favorecer a expressão pública de muitos economistas que não se resignam a ver reafirmada uma orientação neoliberal, julgamos que é necessário mudar o paradigma das políticas económicas na Europa, e redigimos um ‗Manifesto dos economistas estupefactos‘ [atterrés, no fr., diz mais que estupefactos, no port.]. Esperamos que a nossa iniciativa irá contribuir, com outras, para vivificar a reflexão sobre as alternativas às políticas actuais, que ameaçam os próprios fundamentos da ideia europeia‖. Percebem-se bem os cuidados dos Autores, no concernente ao último segmento do período anterior (que escrevemos em itálico). O que se está a construir é o imperialismo financeiro/económico à escala mundial. (Esta é uma problemática tão ignorada pelos académicos, que até no livro de M. Hardt e A. Negri, ‗IMPÉRIO‘, Ed. Livros do Brasil, Lisboa, 2004, ela acaba mesmo por ser obliquada: veja-se a Parte 4. sobre o declínio e a queda do Império.). Ora, esse imperialismo, mesmo sustentado pelas asas dos mercados, não pode sobreviver sem uma Hiper-Potência política, com carácter hegemónico à escala do Mundo. A soberania absoluta do Capital vai exigir, no espaldar da Cadeira do Poder, um Estado globalmente hegemónico, capaz de garantir o controlo global de toda uma Sociedade administrada à escala global. A soberania mundial do Capital tem o seu preço político!... Assim, por este andar, a dissolução da U.E. está em marcha acelerada... O Tema central do Manifesto é a Crise e a Dívida na Europa. Os Autores propõem-nos 10 falsas evidências e 22 medidas em debate para sair do impasse (p. 3). Vamos sublinhar, sobretudo, as falsas evidências, remetendo o leitor para a discussão das medidas propostas.

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Sem surpresas (porque o processo da construção da U.E. já vem errado desde os seus fundadores...): Enquanto a China e os USA, embora de modo frágil, prosseguem na retoma económica mundial, a U.E. continua na outra via, a da luta contra os défices públicos. Desta sorte, ‗a Europa está presa na sua própria armadilha institucional‘ (ibidem). ―Os mercados detêm assim a chave do financiamento dos Estados. Neste contexto, a ausência de solidariedade europeia suscita a especulação, enquanto as agências de notação jogam no acentuar da desconfiança‖ (ibidem). As medidas adoptadas da redução crescente das despesas públicas só vão multiplicar, exponencialmente o desemprego e o emprego precário: são, por isso, irresponsáveis. É sabido que a U.E. é muito mais do que um projecto económico. Nesta óptica, ―a economia deverá estar ao serviço da construção de um Continente democrático, pacífico e unido. Mas em vez disso, é hoje imposta por toda a parte uma forma de ditadura dos mercados, particularmente em Portugal, Espanha e Grécia, três países que eram ainda ditaduras no início dos anos 1970, há apenas quarenta anos‖ (ibi, p.4). Neste horizonte, os ‗pactos de estabelidade‘ dentro de uma lógica neoliberal não resultam... são cavilha quadrada em buraco redondo!... Os poderes públicos da U.E., apesar dos desmentidos severos patenteados pela crise financeira e suas sequelas, continuam a apostar nas ―falsas evidências, que inspiram medidas injustas e ineficazes‖ (ibidem); é em face delas que os Autores ‗põem em debate vinte e duas contrapropostas‘, para que a Europa possa sair do impasse (ibidem). A falsa evidência nº 1 pretende estabelecer a tese de que os mercados financeiros são eficientes (ibi, p.5...). Este ideário falso veio a impor-se desde os finais da década de ‘70 do séc. XX. A esta forma inédita de capitalismo, chamaram-lhe uns ‗capitalismo patrimonial‘, outros ‗capitalismo financeiro‘, mas o rótulo mais vulgarizado é o de ‗capitalismo neoliberal‘. Acreditou-se (falsamente) que o livre funcionamento dos mercados de capitais constituía ‗o único mecanismo de afectação eficaz do capital‘(iidem, ibidem). E procuraram construir um mercado financeiro integrado à escala mundial, na pressuposição ingénua de que os mercados são cada vez mais ‗perfeitos‘. Este é o catecismo que ainda vigora, hoje, no G20. Atribuem-se os factores causais da Crise à desonestidade e à irreponsabilidade de alguns actores financeiros... Ora, ―a crise encarregou-se de demonstrar que os mercados não são eficientes e que não permitem uma afectação eficaz do capital‖ (iidem, ibidem). Na verdade, o 252


que move, primacial e decisivamente, os actores ou agentes financeiros, no mercado de capitais, é o Lucro d’abord (singular ou da Empresa que representam). A crença na eficiência dos mercados financeiros é exactamente da mesma categoria da crença do fiel cristão na Divindade da qual espera o milagre da cura!... E estas não são ‗brincadeiras metafóricas‘... porque a problemática é bem mais séria, grave e sistémica. Ela envolve todo o moderno Sistema Capitalista Smitheano, que foi fundado na Falsidade primordial, que transformou (por ‗artes mágicas‘ da vida dos indivíduos em sociedade) os vícios em virtudes e as virtudes em vícios!... Têm, pois, razão os nossos Autores, ao afirmar que ―a concorrência financeira não estabelece necessariamente preços justos. Pior: a concorrência financeira é, muitas vezes, desestabilizadora e conduz a evoluções de preços excessivos e irracionais, as bolhas financeiras‖ (ibi, p.6). ―O maior erro da teoria da eficiência dos mercados financeiros é o de transpor para os mercados financeiros a teoria habitual dos mercados de bens correntes. Nestes últimos, a concorrência é, em parte, auto-reguladora, em virtude do que se chama a ‗lei‘ da oferta e da procura: quando o preço dum bem aumenta, então os produtores vão aumentar a sua oferta e os compradores reduzir a sua procura; o preço vai então baixar e regressar perto do seu nível de equilíbrio‖ (iidem, ibidem). A falsa evidência nº 2 estabelece que os mercados financeiros são favoráveis ao crescimento económico (ibi, p.7...). O projecto teórico — imagine-se — pressupunha que ―a finança de mercado tomasse o lugar do financiamento bancário nos investimentos. Projecto que aliás veio a fracassar, dado que hoje, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas, em vez do contrário‖ (iidem, ibidem). O processus levou, isso sim, a uma nova concepção e dimensionação da empresa e da sua gestão. Neste novo contexto, ―os dirigentes das empresas cotadas em Bolsa passaram a ter como missão principal satisfazer, apenas, o desejo de enriquecimento dos accionistas. Consequentemente, tais dirigentes deixaram de ser assalariados, como evidencia o desmesurado aumento da suas remunerações. De acordo com a teoria da ‗agência‘, trata-se de proceder de modo a que os interesses dos dirigentes passem a ser convergentes com os interesses dos accionistas‖ (iidem, ibidem). O resultado de todo este processus é óbvio: o vero crescimento económico é laminado; as desigualdades salariais aumentam e a própria soberania política é estiolada. A conclusão é manifesta: os efeitos dos mercados financeiros sobre a actividade económica são negativos e perversos. 253


A falsa evidência nº 3 pretende afirmar que os mercados [entende-se: de capitais...] são bons juízes do grau de solvência dos Estados (ibi, p.8...). Aqui, a cascata dos erros procede da confusão sistémica entre grandezas objectivas, que podem ser avaliadas e medidas, e um título financeiro, que não passa de uma crença, uma aposta no futuro, que, em rigor, não pode ser medida e avaliada. Ora, ―nada assegura que o juízo dos mercados tenha qualquer superioridade sobre outras formas de juízo‖ (iidem, ibidem). Nesta óptica, as avaliações das agências de notação financeira são sempre contraprocedentes e perversas: ―Quando baixam a notação de um Estado, aumentam a taxa de juro exigida pelos actores financeiros, para adquirir os títulos da dívida pública desse Estado, e ampliam, assim, o risco de colapso, que tinham anunciado‖ (iidem, ibi, pp.8-9). A falsa evidencia nº 4 pretendeu afirmar que a subida das dívidas públicas dos Estados resultavam, tão somente, de um excesso das despesas (ibi, p.9...). Na maioria dos Estados europeus, isto é falso; nos últimos vinte e cinco anos, essa subida ficou a dever-se, muito mais, à debilidade do crescimento económico e à contra-revolução fiscal levada a efeito nesse período. A falsa evidência nº 5 preconiza que é preciso reduzir as despesas para diminuir a dívida pública (ibi, p.10...). A confusão inicial começa com a falsa equivalência entre a macroeconomia e a economia doméstica. ―A dinâmica da dívida depende de vários factores: do nível dos défices primários, mas também da diferença entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia‖ (iidem, ibidem). Assim, ―é falso afirmar que todo o défice público aumenta necessariamente a dívida pública, ou que qualquer redução do défice permite reduzir a dívida. Se a redução dos défices compromete a actividade económica, a dúvida aumentará ainda mais‖ (iidem, ibidem). A falsa evidência nº 6 estipula que a Dívida Pública transfere o custo dos nossos excessos para os nosso netos (ibi, p.11...). Mais uma vez se está a confundir macroeconomia com economia doméstica. ―A dívida pública é um mecanismo de transferência de riqueza, mas é-o, sobretudo, dos contribuintes comuns para os rentistas‖ (iidem, ibidem). Aqui, a atenção principal, em termos críticos, deve polarizar-se no parágrafo seguinte (ibidem): ―O aumento da dívida pública na Europa ou nos Estados Unidos não é, portanto, o resultado de políticas keynesianas expansionistas ou de políticas sociais dispendiosas, mas, sim, o resultado de uma política que favorece as camadas sociais privilegiadas: as ‗despesas fiscais‘ (descida de impostos e de cotiza254


ções) aumentam os rendimentos disponíveis dos que menos necessitam, dos que desse modo podem aumentar, ainda mais, os seus investimentos, sobretudo em Títulos do Tesouro, remunerados em juros pelos impostos pagos por todos os contribuintes. Em suma, criou-se um mecanismo de redistribuição invertido, das classes populares para as classes favorecidas, pela dívida pública, cuja contrapartida é sempre a renda privada‖ (iidem, ibidem). A falsa evidência nº 7 estabelece que é preciso sossegar os mercados financeiros para poder financiar a dívida pública (ibi, p.12...). A situação actual — deve saber-se — foi criada em decorrência de dois factores principais: a) a atmosfera ideológica da total liberalização no processo de circulação (internacional) dos capitais; b) o processus de financeirização favoreceu e aumentou consideravelmente o domínio absoluto da finança sobre a economia. ―As grandes empresas recorrem cada vez menos ao crédito bancário e cada vez mais aos mercados financeiros‖ (iidem, ibidem). ―A nível europeu, a financeirização da dívida pública foi inscrita nos tratados: após Maastricht, os Bancos Centrais, proibidos de financiar directamente os Estados, têm de encontrar crédito nos mercados financeiros. Esta ‗repressão monetária‘ acompanha a ‗liberalização financeira‘, e toma o sentido diametralmente oposto às políticas adoptadas após a grave crise dos anos 1930, de ‗repressão financeira‘ (drásticas restrições à liberdade de acção da finança) e de ‗liberalização monetária‘ (fim do regime do padrão-ouro). Trata-se de submeter os Estados, por natureza tidos como muito despesistas, à disciplina dos mercados financeiros, por natureza tidos como eficientes e omniscientes‖ (iidem, ibidem). Tais opções doutrinárias vieram a desembocar na conhecida e geral situação de impasse, na U.E.: ―O Banco Central Europeu não pode, assim, subscrever directamente a emissão de obrigações públicas dos Estados europeus‖ (iidem, ibidem). A falsa evidência nº 8 já foi reconhecida como tal por quase todos os trabalhadores e cidadãos da U.E.: A União Europeia defende o modelo social europeu (ibi, p.13...). O Projecto da U.E. nasceu e cresceu bífido, cambaleando entre uma visão social-democrata consequente, e uma visão de capitalismo liberal. Na perspectiva dos social-democratas consequentes, ―a Europa deveria dedicar-se a promover o modelo social europeu com protecção social, serviços públicos e políticas industriais. Deveria constituir uma muralha defensiva perante a globalização liberal, um meio de proteger, manter vivo e fazer progredir esse modelo social europeu. A Europa deveria 255


ter defendido uma visão específica da organização da economia mundial, a globalização regulada por organizações de governação mundial‖ (iidem, ibidem). A fracassada ‗revolução‘ jovem dos Estudantes e Trabalhadores, de 1968, constituiu o toque de finados para o modelo social europeu, e o toque de gong para a emergência do capitalismo liberal, sem rede, sob a batuta do imperialismo norte-americano. De facto, ―a Europa não quis assumir a sua especificidade. A visão hoje dominante em Bruxelas e no seio da maioria dos governos nacionais é, pelo contrário, a de uma Europa liberal, cujo objectivo é o de adaptar as sociedades europeias às exigências da globalização: a construção europeia é a oportunidade de pôr em causa o modelo social europeu e de desregular a economia‖ (iidem, ibidem). A prevalência da concorrência em todos os azimutes baratinou toda a organização emanada dos Governos nacionais e da própria U.E., fragilizou e dissolveu direitos sociais adquiridos e direitos laborais consagrados dos próprios trabalhadores. De que te falam, em resumo, os Tratados da U.E.? Da livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais. As pessoas sempre embrulhadas no mesmo rol comum, muito objectivo-objectualista. Tanto eufemismo para tanta miséria ideológica!... Afinal, ―a construção europeia surge como um meio de impor aos povos as reformas neoliberais‖ (iidem, ibidem). A Europa Social deixou de existir há muito; o que tem havido é a Europa da concorrência e da finança (cf. ibi, p.14). A falsa evidência nº 9 pretende dizer-nos que o Euro é um escudo de protecção contra a crise (ibi, p.14...). Agravando essa falsa evidência, o que se verifica é que tem sido, precisamente, o espartilho dessa unificação monetária que mais tem contribuído para o prolongamento da Crise no espaço da U.E., em contraste com o resto do Mundo. Na verdade, ―a rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, concentrou todo o peso do ajustamento no trabalho, promovendo a flexibilidade e a austeridade salariais, reduzindo a componente dos salários no rendimento total e aumentando as desigualdades‖ (iidem, p.15). Neste processo da ‗construção europeia‘, foi, de facto, a Alemanha (no encalço da unificação alemã, a partir de 1989) que ganhou a batalha da desvalorização social: ―soube gerar importantes excedentes comerciais à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma baixa do custo do trabalho e das prestações sociais, que lhe conferiu uma vantagem comercial sobre os seus vizinhos, incapazes de tratar os trabalhadores de forma tão dura. Os excedentes comerciais alemães pesam sobre o crescimento dos outros países. Os défices orçamentais e 256


comerciais de uns são a contrapartdida dos excedentes dos outros... Os Estados membros não foram capazes de definir uma estratégia coordenada‖ (iidem, ibidem). Neste contexto, a ―ausência de coordenação e, no fundo, a falta de um verdadeiro orçamento europeu, capaz de suportar uma solidariedade efectiva entre os Estados membros, incitaram os agentes financeiros a afastar-se do euro, preferindo especular abertamente contra ele‖ (iidem, p.16). A falsa evidência nº 10 trombeteou a ideia de que a crise grega permitiu, finalmente, avançar para um governo económico e uma verdadeira solidariedade europeia (ibi, p.16...). A hipocrisia dessa ideia é tanto mais pesporrente, quanto é sabido que os países da zona euro foram proibidos, pelos Tratados da U.E., de se financiar junto dos seus Bancos Centrais, passando a ficar na total dependência dos mercados para financiar os seus défices (cf. ibidem). Dir-se-ia que o que está em marcha é a política neoliberal do quanto pior melhor... ―A Comissão e a Alemanha pretendem obrigar todos os países membros a inscrever o objectivo de equilíbrio orçamental na sua constituição e vigiar a sua política orçamental por comissões de peritos independentes‖ (iidem, p.17). O cinismo chega a este ponto: ―A crise oferece às elites financeiras e tecnocracias da Europa a tentação de implementar a ‗estratégia do choque‘, tirando proveito da crise para radicalizar a agenda neoliberal. Mas tal política tem poucas hipóteses de sucesso‖ (iidem, ibidem). O vero governo económico europeu exige condições específicas para ser concretizado: ―Para avançar no sentido de um verdadeiro governo económico e de uma verdadeira solidariedade europeia, propomos para discussão — escreveram os nossos Autores (ibi, p.18) — duas medidas: a) desenvolver uma fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobre os lucros, etc.) e um verdadeiro orçamento europeu, que ajudem à convergência das economias para uma maior equidade nas condições de acesso aos serviços públicos e sociais nos diversos Estados membros, com base nas melhores práticas; b) lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública a taxas de juro reduzidas mas com garantia, e/ou por emissão monetária do BCE, tendo em vista encetar a reconversão ecológica da economia europeia‖. A estas medidas (a 21ª e a 22ª do Manifesto), nós acrescentamos uma condição estrutural decisiva, para a edificação de uma vera e autêntica União Europeia, em sintonia com o melhor filão da Cultura/Civilização do Ocidente: os modelos das Federações (de Estados) não servem, como a sócio-história já demonstrou. Precisamos de apontar para o Modelo (distinto) da Confederação de Estados-Nações. Esta 257


solução é a recomendada, por duas ordens de factores: A) os de carácter sócio-histórico (a longevidade, no processo de formação, dos Estados/Nações em causa). B) Os de índole estratégica, que se prendem com a necessária articulação e entrosamento da gramática dos regimes democráticos e da gramática de funcionamento (objectivo-objectualista, por excelência) da economia política. Como se trata de duas gramáticas antagónicas (é notória e manifesta, na macroeconomia, a propensão para o imperialismo), é preciso juntar condições e processos, que garantam a sua articulação equilibrada e harmónica. Na conclusão final do Manifesto, onde procedem ao balanço crítico global, os Autores inscreveram o tema: Debater a Política Económica, Traçar Caminhos para Refundar a União Europeia (ibidem): ―A Europa foi construída, durante três décadas, a partir de uma base tecnocrática que exclui as populações do debate de política económica. A doutrina neoliberal, que assenta na hipótese, hoje indefensável, da eficiência dos mercados financeiros, deve ser abandonada. É necessário abrir o espaço das políticas possíveis e colocar em debate propostas alternativas e coerentes, capazes de limitar o poder financeiro e preparar a harmonização, no quadro do progresso dos sistemas económicos e sociais europeus. ―O que supõe a partilha mútua de importantes recursos orçamentais, obtidos através do desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva. Tal como é necessário libertar os Estados do cerco dos mercados financeiros. Somente desta forma o projecto de construção europeia [iniciado por Jean Monnet e Robert Schuman] poderá encontrar uma legitimidade popular e democrática de que hoje carece. ―Não é evidentemente realista supor que os 27 países europeus decidam, ao mesmo tempo, encetar uma tal ruptura no método e nos objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica Europeia começou com seis países: do mesmo modo, a refundação da União Europeia passará inicialmente por um acordo entre alguns países, que desejam explorar caminhos alternativos‖. Como os povos europeus (em virtude da sua Cultura específica) desejam viver em Sociedades genuinamente abertas, é óbvio que não se lhes pode armadilhar o Projecto próprio, mediante, por exemplo, a construção da U.E. segundo a cartilha inerente aos modelos da Federação, em confronto com os da Confederação. Eis por que, por exemplo, Questões como as discutidas por Gustave Massiah (in ‗Une Stratégie Altermondialiste‘, La Découverte, Paris, 2011) dizem igualmente respeito, em pleni258


tude, aos Povos e Nações da Europa, que não poderão ficar bloqueados pelo espartilho de um modelo cristalizado de Federação. Mais: permanecem de pé e ainda sem solução (ou torpedeados pelos curtos-circuitos entretanto havidos...) problemas e desígnios para a U.E., que foram justamente contemplados em obras como: — ‗Europa: O Estado da União‘, de Maurice Duverger (Editorial Notícias, Lisboa, 1996); — ‗Pensar a Europla‘, de Edgar Morin (Pub. Europa-América, Mem Martins, 1988); — ‗A Grande Aposta para a Europa: o Desafio de 1992‘, de Paolo Cecchini, com Prefácio de Jacques Delors (Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1988).

• Cave canem perante a hodierna Economia política neoliberal em transe (acelerado...) de globalização!... Uma iniludível constatação ad hominem: a Economia política hodierna, em processo de globalização acelerada, acha-se deleteriamente estigmatizada pelo primado absoluto das Finanças e pela hegemonia dos mercados financeiros sobre o curso das Economias reais, a tal ponto que os povos e as comunidades locais e regionais acabam por ser completamente eclipsados e ostracizados. Na melhor das hipóteses (?...), estes e estas contarão, apenas, como destinatários do Consumo, — a Grande Máquina posta em funcionamento pelas Multi-transnacionais da produção e comercialização em série... Esta Maquinaria gigantesca e diabólica está a devastar (belicamente...), de modo assustador, todo o Planeta, nos seus espaços e funções mais diversificados; tornou-se imparável o processus da urbanização crescente da Terra (as mega-cidades...), com a implicada ‗desertificação‘ dos territórios, situados no interior das diferentes Regiões do Planeta. O Processo da Civilização converteu-se numa selvajaria crescente e sem freios... Foram esquecidos e ignorados os vínculos vitais que prendem os Humanos à Terra-Mãe e operam de modo singular e concreto. Ora, é por demais sabido, em termos críticos, que a Economia política real envolve sempre dimensões culturais de ordem nacional, regional e local/comunitária, que não podem ser postergadas. Como se chegou a tal situação, que é de hecatombe e catástrofe? Há dois nomes imbricados, na resposta adequada a esta Questão: a) o moderno Sistema Capitalista; b) o molde

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formatado ( na Educação dos Humanos) das três religiões monoteístas institucionalizadas. Com efeito, estão em marcha, já não um processo de transumância de populações e gados, mas processos de migração na rota de uma concentração demográfica das populações sem paralelo na longa História das Civilizações. O que tem vindo a designar-se, de modo eufemístico, como ‗a urbanização do Mundo‘. (Cf. ‗Manière de Voir‘, Dez. 2010-Jan. 2011, p.4, pp.6-9; pp.11-13; pp.14-23; pp.30-40; pp.52-59; pp.60-70; pp.71-87; pp.88-93). Uma tal Economia política e esta (des)organização das Sociedades humanas são, afinal, o que tem sido sempre ditado, primeiro, pela sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord (que fez as suas desgraças e exterminações nas Idades Antiga e Medieval, com a escravatura e o feudalismo); depois, no mesmo horizonte, pela cartilha pseudo-emancipatória da Burguesia ascendente, na moderna Civilização/Cultura do Ocidente, desde o tráfico da escravatura negra na época dos Descobrimentos transoceânicos, e, logo a seguir, na formação dos Estados-nacões europeus, sob o signo do Império, desde os sécs. XVII e XVIII. Fizeram-se ‗revoluções industriais‘ com sucesso, ao longo dos cinco sécs. da Modernidade... mas as ‗Revoluções sociais‘ resultaram, todas elas, abortadas. Não se deu conta (e ainda hoje, não se alterou substantivamente o horizonte!...) de que tal cartilha de organização e funcionamento das Sociedades humanas é errónea, porque egocêntrica, conquistadora, pilhadora, excludente e exterminadora dos outros seres humanos que, tal como nós, o são também. Essa cartilha de actuação e comportamento não respeita, minimamente, as raízes que enformam todos os seres vivos e o vínculo matricial e fecundo que liga os Humanos à Terra-Mãe. Transforma, insensatamente, os terrenos aráveis em pousio e deserto, com a simples migração das pessoas (em busca de meios de vida para sobreviver...) das aldeias e vilas, onde nasceram, para as cidades médias e as grandes metrópoles. As aglomerações urbanas e as megápoles continuam, hodiernamente, a crescer em tamanho e número, num movimento imparável que, na Modernidade, foi despoletado, principalmente a partir de 1800 (cf. ibi, pp.14 e ss.). Havia, então, só uma cidade com mais de um milhão de habitantes; em 1900, eram só dezasseis. Apesar de a cidade, desde sempre, se configurar como o centro do poder societário, a sua proliferação e aumento tem-se apresentado como um fenómeno ‗confidencial‘ (qualquer coisa semelhante ao vencimento que se aufere e não se revela facilmente aos outros...). No 260


reino do Objectivo-Objectualismo, e da Cultura do Poder-Condomínio, onde os Sujeitos humanos não contactam com os outros Sujeitos a não ser através de mediações institucionalizadas, não seria de esperar outra coisa. Articulando a geografia física e a humana, temos de convir que os 7 mil milhoes de humanos, em 2011 (cf. ‗National Geographic‘, Jan. 2011, p.41), têm estado muito mal distribuídos à superfície da Terra. A título de exemplo, convirá notar e saber que, em 2000, o número de cidades, com população superior a um milhão, tinha ascendido para 600 (cf. ‗Man. de Voir‘, cit., p.15). As sociedades actuais (à escala mundial) continuam a organizar-se e a funcionar segundo o catecismo das ‗Revoluções burguesas‘ e da Burguesia proprietária, que tomou para si o Sistema capitalista liberal e conquistador de A. Smith. E as ‗Revoluções sociais‘ não vingaram porque não emergiu o famigerado ‗homem novo‘, uma vez que os padrões (evolutivos) do comportamento humano haviam cristalizado, por completo, na Idade Moderna!... Se não houver um ‗bouleversement‘ radical, procedente do exterior, não são as sociedades humanas, formadas na escola da burguesia, que vão cuidar dos terrenos abandonados, dos territórios desertificados, das florestas amazónicas (e outras...) devassadas e destruídas... Ao ‗status‘ cristalizado da sua formação, não se poderá pedir a essas sociedades o empenhamento em tal Projecto de recuperação do Planeta, sobremaneira numa época nova, como a contemporânea, em que, às desgraças tradicionais, foram sobrepostas as procedentes das Alterações Climáticas. A razão é simples: a mundividência da Burguesia sempre tratou o Planeta Terra, não como a Casa-Mãe da Humanidade, mas como matéria-prima a descobrir e a explorar, segundo a cartilha da conquista e do ter, e não do viver e do ser. Ela nunca foi capaz de assumir o axioma: ‗Vive e deixa viver os outros‘! (Por exemplo, vis-à-vis dos ‗índios‘ e outros povos indígenas conquistados). Por que é que a Civilização (humana), no seu progresso (sempre trombeteado) se desviou da realização das Utopias, e tratou de produzir, inelutavelmente, servidão e hierarquia? Porque o que sempre tem predominado (oficial e estruturalmente) é a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. O nosso questionário ad hominem pode prosseguir com respostas afirmativas do tipo: na esteira das teses críticas de Proudhon, a propriedade do solo não passa de uma aberração. ―A teoria da propriedade como função social não tem servido, em definitivo, senão para santificar o direito de propriedade, com os seus atributos clássicos, ou seja, não só o direito de usar e disfrutar da coisa, mas também o de dispor dela‖ (Max Querrien, ibi, p.7). No 261


fundo, é o Direito Romano a ecoar no seu axioma tradicional: ‗jus utendi et abutendi‘!... A que nos conduziu um Processo civilizatório, primacial e primordialmente urbano? Ao paradoxo estrutural das ‗sociedades dos 2/3‘ (2 terços integrados, 1 terço excluído); e ao ‗paradoxe des bidonvilles‘ (cf. ibi, pp.60-61). Entretanto, curiosamente, segundo dados da ‗ONU/Habitat‘, nos países em vias de desenvolvimento, a população dos bairros de lata (favelas), em confronto com a população urbana total, tem vindo a descer, entre 1990 e 2010, dos 46% para os 33%, muito embora, durante o mesmo período, o número absoluto dos habitantes em bairros de lata tenha subido de 650 milhões para 830 milhões. Quer dizer isso que ‗1 terço‘ da população continua, absolutamente, mal alojada, ainda que haja cada vez mais ‗urbanos‘ e cada vez menos ‗bairros de lata‘. A Lição é simples e clara: o Sistema capitalista não resolve os problemas da pobreza e da miséria no Mundo, por mais voltas que dê ao seu catecismo. As pessoas inteligentes e sensatas já conhecem este Fenómeno há muito... Quando se proclama que a civilização urbana foi remodelada pela flexibilidade (cf. ibi, pp.30-34), de que se está a falar? De muitas contradições e paradoxos no processo de urbanização do Planeta, i.e., de uma civilização primacialmente urbana. Foi dito já que a Cidade, enquanto tal, tem funcionado como centro (pólo atractor) do Poder e dos poderes... Por isso mesmo, o modelo da ‗Cidade/Estado‘ (tanto na Hélade como na Itália medieval e pré-moderna) não constitui caso peregrino na História das Civilizações. Como é sabido, as cidades têm funcionado, sistematicamente, a um só tempo, enquanto lugares de anonimato e liberdade, e lugares de ajuntamento e solidariedade. Ora, as novas formas de produção e de consumo, que privilegiam o efémero, a estandardização e o nomadismo, têm necessariamente os seus efeitos nos laços e vínculos, que cada um estabelece com o território que habita. O que a flexibilidade veio a aportar a este contexto societário estrutural foi, por um lado, a dissolução dos anteriores laços de fraternidade (conjunto durável de interesses comuns) e, por outro, a introdução de relações mais superficiais e distantes, tanto no concernente ao trabalho como à vida na cidade. A nova situação vai exigir a cada Indivíduo uma maior capacidade de reflexão crítica e decisão pessoal (autónoma), sob pena de sossobrar ou passar à condição de ‗carneiro do Panúrgio‘ (Pantagruel de Rabelais). Esta posição crítica e autónoma (personalizada) é tanto mais importante e decisiva, quanto, por outro lado, o consumo 262


estandardizado ataca as referências locais anteriores e o novo local de trabalho arruina a memória partilhada pelos assalariados. Assim, se não houver capacidade de Luta personalizada e assumida em consciência crítica, as Sociedades humanas só se vão degradando, cada vez mais, nos seus processos migratórios e da supostamente livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais!... Tudo no mesmo saco!... Em suma, enquanto não fizermos uma devassa crítica holística, enquanto não formos capazes de virar do avesso todos os móveis e instrumentos que acumulámos na Domus civilizatória do Ocidente, ao longo de dois milénios e meio de Cultura objectivo-objectualista, ditada, superiormente, pelo Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, não teremos nem condições nem ânimo, para mudar de rumo, segundo a gramática psico-sócio-antropológica do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. A opção, para a Espécie, está a tornar-se uma ‗quaestio sine qua non‘: ou continuar embarcados na Ideologia tradicional da Natureza pura e simples matéria-prima, ou retomar a teoria/doutrina da Natureza/Casa-Mãe da Humanidade. Em nome da maturação na mutação evolutiva da Espécie Sapiens//Sapiens. Nada mais. De contrário, o que nos é dado esperar, será, tão só, o fim da Convivência (pacífica) com os outros Humanos da mesma Espécie e com a Terra-Mãe, visto que as duas dimensões caminham juntas, por definição e natureza. Nos tempos da Inquisição (espanhola e portuguesa), viu-se, claramente, como toda a Sociedade sobrevivia sob o reino do medo e da mais ignóbil servidão ideológica. O discurso dos agentes da Inquisição, nas últimas duas décadas do séc. XV, elevou-se ao paroxismo para ditar o fim absoluto da convivência social, na sua formulação mais servil e bárbara; leiamos sem calafrios: ‗Quem duvidará de que o que neste tribunal parece ser severidade é, na realidade, um remédio ordenado pela compaixão, para tratamento dos delinguentes?‘ (Cf. ‗A Inquisição: o Reino do Medo‘, de Toby Green, op. cit., p.43). E a I.C.R. está, aí, sempre atenta e pronta a zelar pela boa moralidade, proclamando que ‗os fins não justificam os meios‘!... Estamos, aqui, nos antípodas da mundividência, livre e responsável, dos Gnósticos judeo-cristãos primevos (que não funcionavam segundo a cartilha do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo). Ora, analisada criticamente e em profundidade, a Sociedade de hoje (à escala do Mundo) não é substantiva e radicalmente diferente da de então. A proliferação do armamento nuclear, nas últimas três décadas, não tem parado... estão já, segundo se pode saber, ca. de 2 dezenas de Estados na posse de armas nucleares. O que se ouve e 263


lê, em programas televisivos da ‗National Geographic‘, é o discurso do ‗omnia possibilia‘ na esteira do desabafo do físico atómico J.R. Oppenheimer (o capitão do ‗plano Manhattan‘ e considerado o pai da bomba atómica/b.de hidrogénio), citando o Bhagavad-Gita: o homem tornou-se a divindade da Morte!... Por outras palavras, os Poderes estabelecidos, nas Sociedades humanas, justamente por não saberem gerir o mundo dos Conhecimentos (num universo autónomo prévio aos problemas do Poder), construíram sociedades neuróticas, esquizofrénicas e paranóicas, onde o Terror e o Medo são hegemónicos. Depois... debatem-se com a gestão do Medo e do Terror... sempre a partir de avaliações, vigilâncias e controlos, instalados a partir do exterior!... Que faltou, essencial e estruturalmente, nesse universo de loucos, mandadores e mandados? — O Diálogo socrático como fundamento (primeiro e último) de uma vera e autêntica Sociedade humana: o respeito e o reconhecimento dos outros, enquanto tais, ou seja, enquanto Sujeitos humanos, dotados de reflexão crítica e de consciência, como seres livres e responsáveis que são ontologicamente. Nesta Sociedade vera e autenticamente humana, o primado absoluto é o da equidade, que se exprime no primado do Justo sobre o verdadeiro. De 1483 (desde a nomeação de Tomás de Torquemada como primeiro-inquisidor-geral) até finais do séc. XV, sob a bandeira da governação dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, a sociedade espanhola achava-se, paradigmaticamente, distribuída hierarquicamente em três comunidades religiosas, que funcionavam como ‗classes sociais‘ hierarquizadas: os nobres, clérigos e militares eram cristãos; os intelectuais, artífices e financeiros eram judeus; os agricultores e os artesãos eram, na sua maioria, mouros. Esta divisão ‗classista‘ dos estamentos societários, rigidamente hierarquizada, levava a chancela do Poder supremo dos Reis Católicos e do Poder Imperial da I.C.R., a partir do papado no Vaticano. ―As fogueiras espalharam-se desde Sevilha, no Sul, até Saragoça, no Norte. Por toda a parte, o povo estava consciente de que fora iniciado um período radicalmente novo. Em 1488, havia tantos presos que as cadeias estavam cheias e havia pessoas em prisão domiciliária. Criara-se uma atmosfera de extremismo, pelo que a expulsão dos judeus (1492) e dos mouros de Granada (1502) pareceram medidas naturais. A convivência desaparecera para sempre; depois de 1526, após a conversão forçada dos muçulmanos de Aragão, quem não fosse católico não tinha lugar na nação espanhola. O desenvolvimento da Inquisição implicava que a lealdade ao Estado exi264


gia a adesão à nova militância; um acto de agressão concebido como um expediente de carácter político tinha resultado no desmantelamento de uma forma de vida‖ (Toby Green, op.cit., p.69). Como era diferente a Sociedade espanhola nos sécs. XII-XIV, quando as três religiões monoteístas eram capazes de conviver pacificamente, na Andaluzia, em Granada (Alhambra), Córdoba (Mesquita), Valência, nos reinos de Taifas. Chegaram os estigmas sacros do Poder soberano institucionalizado, sob o camartelo da Inquisição, e só um deles podia ficar aos Comandos da Nau societária. É que, no fim de contas, o Poder é sempre um só, em última análise... E se é absoluto e sagrado, corrompe de modo absoluto e sagrado. As Sociedades organizadas a partir do Poder d’abord têm sempre o mesmo desfecho, na sua evolução: o declínio e a ruína. Como ensinaram os Gnósticos, têm uma sorte muito diferente as Sociedades organizadas a partir das âncoras que são as Liberdades Responsáveis dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. A propósito deste quadro, evoque-se, uma vez mais, a famigerada questão do Multiculturalismo, que se vem propondo em jeito de quem pretende fazer doutrina, desde há, pelo menos, duas décadas. Numa análise crítica, em profundidade, a bandeira do Multiculturalismo não passa de um scarecrow!... Recentemente, a Chanceler alemã disse, alto e bom som, num Congresso da Juventude, que o Multiculturalismo estava longe de corresponder às realidades societárias em que vivemos. Mais recentemente ainda, o Primeiro-Ministro britânico denunciou o fosso cavado entre a teoria e as práticas societárias. — Desgraçadamente, é neste jogo do ‗esconde/mostra‘, que se vai gastando o discurso político, promovendo a mudança de alguma coisa para que tudo possa ficar na mesma. Que pressupõe, em termos críticos, a realidade efectiva do Multiculturalismo (tomando, v.g., como padrão, a convivência pacífica entre as três comunidades religosas/monoteístas, na Espanha dos sécs. XII-XIV)? A existência de uma base comum de princípios humanistas, partilhados pelas três comunidades monoteístas. Essa base comum implica dois postulados práticos: a) na existência e na vida social humana dos Indivíduos-Pessoas, o que se apresenta com mais consistência (em termos categoremáticos) é a afirmação da sua Liberdade Responsável; b) em segundo lugar (em termos sincategoremáticos) vem a coordenação das actividades dos Indivíduos-Pessoas, mediante as funções exercidas pelos Poderes a estabelecer.

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Ora, as Sociedades hodiernas estão menos abertas às práticas da Liberdade Responsável do que o estiveram as três comunidades monoteístas, nos dois sécs. da Idade Média em Espanha!... Proh dolor... A teoria do Multiculturalismo (convivência de diferentes grupos étnicos ou religiosos) constitui, enquanto tal, uma espécie de toque de gong/imperativo categórico, incitando à refontização dos valores humanos comuns (antes de qualquer dimensão religiosa ou étnica). Mas a psico-sócio-história tem comprovado que o Multiculturalismo não passa de uma ilusão (enganadora...), sempre que procede da predominante Cultura do Poder-Dominação d’abord.

*

BYE-BYE, CHURCH‟S SOCIAL DOCTRINE!...

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Para podermos captar, criticamente, a ideia matricial enunciada no título deste capítulo, convirá prestar atenção a um pequeno painel sobre a vera história do Processo da Inquisição da I.C.R., por forma a reforçarmos a nossa mentalidade nos dois sentidos geminados: a) reivindicação do princípio ético-moral de que os fins não justificam os meios; b) denúncia activa e intransigente do Objectivo-Objectualismo, em todos os azimutes. Desde logo, uma questão de fundo ad hominem: Quando iremos, mesmo, sair dos estafados moldes uniformes/uniformistas das Sociedades modernas, cujo combóio histórico traz, na carruagem da lanterna vermelha, todas essas horríveis práticas medievais-e-modernas da INQUISIÇÃO, desse reino do medo sistémico (autos-da-fé, tortura e censuras de todos os tipos...), ditado e imposto pela sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord?!... É preciso não esquecer, aqui, que a cartilha do funcionamento desta (quer na vertente religiosa e igrejista, quer na vertente laica e profana) é, precisamente, a do Objectivo-Objectualismo. Convirá ainda ter presente que os modernos regimes totalitários são filhos e herdeiros, directos, das velhas práticas societárias inquisitoriais, que a História registou na nau da Civilização/Cultura do Ocidente (sempre sob o pano de fundo da Cultura da Potestas-Dominação d’abord). Atente-se no cúmulo do Objectivo-Objectualismo. É preciso saber que a Inquisição (sob a superior gestão do papado de Roma, como na medieval, ou sob a gestão política dos reis de Espanha ou de Portugal, nos sécs. XV-XIX) teve sempre, estruturalmente, fins políticos (como sabe, muito bem, Toby Green, no seu livro, cit., ‗A Inquisição: o Reino do Medo‘, pp.41-42). Ao publicar, em 1578, o ‗Directorium Inquisitorium‘ (o regimento do séc. XIV, para os processos do Santo Ofício, assinado por um inquisidor de Aragão), Francisco Peña escreveu: ‗Temos de recordar que o objectivo essencial do julgamento e da condenação à morte não é salvar a alma do penitente, mas promover o bem público e aterrorizar o povo‘ (ibi, p.41). Os inquisidores e a Inquisição funcionavam com a consciência estereotipada de que o Medo constituía o melhor meio para atingir fins políticos. Não estamos distantes de T. Hobbes que apostrofava no sentido de que a força da lei e a lei da força, conjugadas, são constituídas como ‗common power to keep men in awe‘!... O estandarte da Potestas-Dominação d’abord. Estava certo, por conseguinte, o historiador francês B. Benassar, ao afirmar que a Inquisição era, justamente, a ‗pedagogia do me267


do‘ (que, em boa verdade, ainda não foi radicalmente eliminada da face da Terra, até ao presente). O Medo havia sido elevado e potenciado à categoria de mito (não continua o refrão popular a ditar: ‗é o medo que guarda a vinha‘?...) organizador da Sociedade (hierárquica e monocrática). Conseguia-o mediante o recurso à censura, à tortura e à fogueira... sob o regime do princípio do sigilo: os acusados não podiam saber os nomes dos seus acusadores. Ora essa é, incontestavelmente, a cartilha da religião do Objectivo-Objectualismo, no mais elevado grau!... Toby Green (p.42) mostra-se confiante no princípio hermenêutico/pedagógico de que os excessos do Poder acabam sempre por destruir quem os comete... Ele próprio parece auto-iludir-se, porquanto, sem uma re-educação dos Humanos, no sentido de operarem o salto qualitativo do Sapiens tout court para o Sapiens//Sapiens, a História prosseguirá funcionando segundo a teoria (religiosa...) dos ‗Poderes Separados‘ (como a História conflituosa e bélica das Sociedades, nas Idades Moderna e Contemporânea, tem sobejamente demonstrado). Na verdade, se a sempiterna História da Cultura do Poder-Condomínio conhece bem (supostamente...) o que se tem passado, ao longo de séculos e milénios, por que não descobre ou deixa identificar o que se passa nos antípodas deste Mundo louco, — justamente o que é fundado nas Consciências (invioláveis) dos Indivíduos-Pessoas, enquanto Sujeitos livres e responsáveis, capazes de re-fundarem todo um Mundo Novo?! Se pretendemos evocar, aqui, o Tema da ‗Doutrina Social da Igreja‘ é, tão só, por razões propedêuticas e metodológicas; não é porque haja, da nossa parte, alguma predilecção especial pelos seus conteúdos semântico-doutrinais, propriamente ditos. Em termos filosóficos radicais, o Cristianismo tradicional e paulino perdeu toda a sua importância crítica, na construção do presente e do futuro da Humanidade. Contudo, uma vez que ele esteve ligado, em termos histórico-culturais, ao longo de dois milénios, à Mensagem do Jesuanismo (que não entendeu e sempre rejeitou... mas que o ajudou, pela negativa, a vislumbrar os limites de toda a acção humana comum...), a sua saga histórica pode constituir, para nós, uma Lição metodológica e propedêutica a recolher. É, de facto, nesta perspectiva, que o tema da ‗Doutrina Social da Igreja‘ tem um especial interesse criticista, para o C.E.H.C.. Volens/Nollens, aquela articulação (que a História registou ao longo de dois milénios) entre Cristianismo e Jesuanismo, (quer por vias ortodoxas, quer por vias 268


heterodoxas e heréticas...), deixou inegáveis sulcos e rastos, que não é prudente ignorar. Pode lobrigar-se um caso paradigmático do que estamos asseverando, na obra de Igino Giordani: ‗Il Messaggio Sociale del Cristianesimo‘ (1000 pp.: Nuova Edizione, Editrice ‗Città Nuova‘, Roma, 1960). Trata-se de uma obra séria de investigação histórica e teológica, da qual vale a pena fazer o ‗rendez-vous‘ do índice, muito embora estejamos em desacordo com alguns pontos de vista e teses aí defendidas. Na introdução, falou-se da Socialidade do Cristianismo (pp.5-9). Logo na 1ª p., quando lemos a obra, nos anos 60 do séc. XX, deixámos anotado à margem: ‗Foi o Cristianismo que principiou a estabelecer a dialéctica e a síntese dos opostos, num movimento intelectual e sócio-histórico de reacção a partir da Dignidade da Pessoa humana, em confronto com o Dragão do Estado mais ou menos arbitrário, mais ou menos ilimitado‘. Na p.8, o Autor estabelece a tese da limitação do Poder de Estado (que por toda a parte cai na tentação da omnipotência...), a partir da teologia da redenção, e fala da distinção, não da separação, entre a política e a religião, entre a esfera de César e a esfera de Deus. Nós anotámos, ao lado: ‗distinção de razão metodológica‘!... No livro I, fala-se da Ensinança Social de Jesus (pp.13 e ss.): da dialéctica da Incarnação e do novo princípio social, a caridade. No livro II, da ensinança social dos Apóstolos (pp.67 e ss.): da vida em comum em Jerusalem, do problema político do universalismo cristão e da vida social da Igreja. No livro III, fala-se da ensinança social dos primeiros Padres da Igreja (pp.349 e ss.), nomeadamente do Império e da Igreja no II séc., do ‗Jus Christi‘, da nova consciência civil, da educação racional e da solidariedade, do valor e uso da riqueza. No livro IV, fala-se da ensinança social dos grandes Padres da Igreja (pp. 617 e ss.), nomeadamente, do novo sujeito social, do monaquismo, das classes sociais, da justiça e da assistência social, do cesaropapismo. Tal como se tem entendido segundo os clichés correntes da História do Cristianismo e da Igreja, a chamada ‗Doutrina Social da Igreja‘, no sentido estrito e configurada na Idade Contemporânea, alimentou a intenção (mais ou menos explícita) de se apresentar como uma ‗terceira via‘ entre, dum lado, o capitalismo liberalista/ /individualista, e do outro, o socialismo convencional (= capitalismo monopolista de Estado, segundo a própria denúncia de J. K. Galbraith in ‗O Novo Estado Industrial‘/1967), de marca colectivista. Assim, a Metodologia da D.S.I. estribou-se sempre na filosofia (ideológica) do ‗tertium datur‘ e do terciarismo como gramática da sua construção. Uma tal Metodologia permitiu-lhe resistir melhor do que os seus ad269


versários (por suposto, diametralmente opostos...), à religião (laica e profana) do Objectivo-Objectualismo. (Por paradoxal que esta tese se afigure). Mais: essa postura estratégica proporcionou à Doutrina Social da Igreja a aproximação, iniludível, às teses fundadoras da Sociedade humana, enquanto tal, designadamente, a da Dignidade (inviolável) da Pessoa humana (a Tese da inviolabilidade da Consciência humana dos Indivíduos-Pessoas só o Jesuanismo a recolheu). Numa palavra, a D.S.I. procurou, desse modo, a sua construção (cultural) sobre a bigorna dos Sujeitos humanos, qua tais, não (como tradicionalmente tem acontecido), a partir do caleidoscópio dos objectos objectivo-objectuais. Se o conseguiu, ou não, mesmo em termos teóricos, é outro problema (que não cabe aqui ser analisado). Basta-nos, aqui, tão-só, a continuada insistência na estrutura terciária do Projecto, que permitiu à D.S.I. encetar a sua edificação do lado dos Sujeitos (supostamente livres e responsáveis), e não do lado dos Objectos. A D.S.I., neste horizonte, estava, efectivamente, a abrir o caminho para a concretização do Projecto do vero e autêntico Socialismo. Diremos, até, que a ‗Doutrina Social da Igreja‘, segundo esta armação de clave, corresponde à gramática dos ‗sinais dos tempos‘ (de que falou o Conc. ‗Vaticano II‘) e assume, com toda a justeza, uma tonalidade profética. Não obstante, assim entendida, não cabem na ‗D.S.I.‘ todos os documentos (emanados de papas ou de concílios). Se pusermos de parte algumas ‗constituições‘ do ‗Vaticano II‘ como a ‗Gaudium et Spes‘ ou a ‗Lumen Gentium‘ (que poderiam ser arroladas nesta biblioteca específica), o corpus doutrinal da D.S.I., dir-se-ia que é encetado com a Encíclica ‗Rerum Novarum‘ de Leão XIII (1891), prossegue com a ‗Quadragesimo anno‘ de Pio XI (1931), continua com a ‗Mater et Magistra‘ (1961) e a ‗Pacem in Terris‘ (1963) de João XXIII, com a ‗Populorum Progressio‘ (1967) de Paulo VI, e termina com a ‗Sollicitudo Rei Socialis‘ (1987) e a ‗Centesimus Annus‘ (1991: comemorando os 100 anos da ‗Rerum Novarum‘) de João Paulo II. Quanto à Enc. ‗Caritas in Veritate‘ (29.VI.2009), do papa actual Bento XVI, ela, decididamente, não pode fazer parte integrante do corpus clássico da ‗Doutrina Social da Igreja‘, em razão do espírito e da orientação doutrinal que o papa aí assumiu, deliberadamente!... Dentro dessa biblioteca da D.S.I. poderia caber, com algum acerto, por ex., o livro do sociólogo inglês Anthony Giddens, ‗The Third Way‘/The Renewal of Social Democracy (Polity Press, Oxford, 1998), pensado e construído a partir da morte constatada dos socialismos convencionais (ibi, pp.3 e ss.). Já não, de modo algum, todo o 270


projecto político de Tony Blair (anunciado em nome da terceira via...), que a história registou como ‗pechisbeque‘. Os três axiomas que nunca se poderão esquecer, em toda esta problemática: A) Os regimes democráticos exigem a perfeita compaginação e harmonia da Igualdade, da Liberdade e da Justiça: sem justiça, não há vera liberdade, sem liberdade não há vera justiça. B) A Igualdade social entre os Humanos é a conditio sine qua non do ideário democrático. C) Em última instância, o primado é da Justiça sobre a própria Verdade. Por isso mesmo, Bento XVI, na Enc. citada, ao atribuir o primado à Verdade, deixou frustrada a Justiça (que passou a ser, apenas, a ‗justiça‘ distributiva, resultado das possibilidades e das vontades dos Poderes Estabelecidos: a Sociedade deixou eclipsada a dimensão profética... implicadamente utópica e revolucionária). A metodologia adoptada por Bento XVI, na sua Enc. ‗Caritas in Veritate‘ (temos presente a edição port. da Paulus Editora, Lisboa, 2009, ‗Caritas in Veritate‘/A Caridade na Verdade), foi objectivamente concebida e configurada numa grelha com duas vertentes conjugadas: A) pela negativa, eliminou expressamente todas as possibilidades de identificação e caracterização da ‗D.S.I.‘ enquanto a conhecida clássica ‗terceira via‘ entre o capitalismo liberalista/individualista e os socialismos convencionais (= capitalismo monopolista de Estado) de índole colectivista, — o que tem de considerar-se estranho e inédito (dir-se-ia mesmo herético, utilizando a linguagem dogmática da I.C.R.), ao longo de toda a História da ‗Doutrina Social da Igreja‘ (envolvendo, latamente, nesta fórmula, todas as variantes reconhecidas do Cristianismo Social, ao longo de dois milénios, e não apenas o corpus doutrinal, a partir da ‗Rerum Novarum‘). B) Pela positiva, o papa Bento XVI construiu e arquitectou toda uma mundividência cristã estigmatizada por um vero círculo fechado a partir do Tempo presente, que é precisamente o enquadrado pelo Neoliberalismo capitalista planetário (supostamente, a derradeira fase do Sistema capitalista moderno). Neste óptica, dir-se-á, desde logo, que o papa Ratzinger cometeu a mesma caterva de erros (filosóficos e históricos) que Francis Fukuyama, no seu livro alvissareiro conhecido pelo título: ‗O Fim da História e o Último Homem‘ (Gradiva, Lisboa, 1992). Como se a História Humana e das Civilizações tivesse acabado com a suposta generalização admitida dos modelos societais e dos regimes políticos que se agrupam sob a bandeira da burguesa Democracia representativa/indirecta!...

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Como foi isso possível, no horizonte supostamente criticista do papa? O Laboratório (que tudo poderá explicar) é caracterizado, à partida, pelo encratismo ideológico (de raiz filo-maniqueísta); está submetido, estruturalmente, à sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, e adoptou, definitivamente, o catecismo do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo. De resto, a personalidade do cardeal Ratzinger (enquanto prefeito do Dicastério da ‗Doutrina da Fé‘, durante o pontificado de João Paulo II) e do papa Bento XVI já se achava bem identificada reaccionariamente, aquando dos processos de condenação dos teólogos e das teologias da Libertação (sobretudo, na América Latina e na Índia), que devem ser integrados no mesmo quadrante ideológico da recuperação dos ‗Velhos católicos‘ do grupo do bispo Lefevre e quejandos. O jornalista Peter Seewald (um velho conhecido de J. Ratzinger) publicou um conjunto de entrevistas com o papa actual no livro ‗Luz do Mundo‘ (de que se fez eco o ‗Expresso‘, 27.11.2010, p.18). Aí se diz que o Papa admite que falha, mas pouco... que às vezes se pode usar o preservativo e que o Papa não é ‗sempre infalível‘. Numa das entrevistas, o jornalista citou ‗uma top model brasileira que dizia que hoje em dia já nenhuma mulher casa virgem‘. O comentário resposta do papa: ‗A estatística não se pode transformar num critério moral. Já é suficientemente grave que as sondagens se tornem um critério das decisões políticas, em vez de se perguntar o que está certo‘. (Ibidem). Resposta sibilina, sem dúvida, mas cúmplice com a má moralidade do Mundo!... Afinal, nada mudou, no essencial. As ilusões da suposta eficiência dos mercados financeiros e as crenças e dogmas do papa da I.C.R. são da mesma natureza: na sua raiz, a relgião do Objectivo-Objectualismo. Simplesmente patético!... Ora, o primado absoluto é da Justiça sobre a Verdade, como ensinaram os Gnósticos judeo-cristãos primevos e o Jesuanismo. Os papas da I.C.R. são todos herdeiros do Cristianismo de Paulo e chefes das Cristandades que, dogmática e objectualisticamente, assumiram e pregaram o primado da Verdade sobre a Justiça, i.e., dos Poderes sobre os Saberes. Os ‗maîtres a penser‘ desapareceram de cena, nas últimas três décadas. A cultura moderna (nesta famigerada pós-modernidade insípida e frustrante...) encontra-se alavancada nos sistemas do capitalismo financeiro e nos media, que se tornaram propriedade das Multi-transnacionais. Essa alavanca e estas forjas não pretendem obrar outra coisa senão favorecer os ricos (cada vez mais ricos...) e ter do seu lado os poderosos dos Establishments. As Esquerdas (políticas...) estão a perder as últimas résteas 272


de uma Voz, que não foi capaz de se actualizar criticamente. Nos Parlamentos, nas Universidades e Academias... Nos primeiros três meses de 2011, assistimos a ‗revoluções‘ e insurreições em catadupa, no mundo árabe e islâmico. Na Europa, postas de parte as manifestações massivas contra os efeitos da persistente e teimosa ‗Crise financeira‘, assiste-se a toda uma atmosfera ideológica de fatalismo político e de ‗eterno retorno‘ nietzscheano, que nos obrigam a admitir e a aceitar que a sócio-história está, de novo, virando à direita. (Cf. o artigo sobre a matéria, de Rémi Lefebvre, in ‗Le Monde Diplomatique‘, Abril de 2011, p.3). Aí se procede, tipologicamente, à recensão do livro recente do linguista e filósofo italiano Raffaele Simone, ‗Le Monstre doux. L‘Occident vire-t-il à droite?‘ (Gallimard, coll. ‗Le Débat‘, Paris, 2010. Vid., et., revista ‗Le Débat‘, nº 159, Gallimard, março-abril de 2010). O autor do livro em questão reivindica-se do campo progressista e de esquerda, mas a sua mensagem é de um pessimismo esmagador. Considera ele que o enfraquecimento radical e o declínio irresistível da Esquerda se devem à própria cultura da modernidade, que identifica como ‗monstro doce‘. O seu ‗muro das Lamentações‘ pode configurar-se como segue: Tudo se reduz a este sistema económico-ideológico que há, o qual é favorável a uma nova direita polarizada nos media, no consumismo, no individualismo, que mina até à raiz qualquer projecto de Esquerda. R.S. desistiu das esquerdas, pelo andar da carruagem; ele já não se propõe lutar por uma nova re-fundação da Esquerda (como fizeram alguns compatriotas seus, nos anos ‘80 e ‘90, v.g., na ‗rifondazione communista‘), firme e vencedora, pelo menos a prazo. Adoptou, em definitivo, a postura da pedagogia da renúncia. R.S. tomou consciência de que o capitalismo e a dominação neoliberalista têm as suas raízes numa dinâmica cultural profunda, que a Modernidade identificou com a legitimação de toda a sorte de egoísmos. ―O capitalismo tira a sua força da capacidade, que tem, em modelar as vidas individuais, em criar sem cessar novas dependências e novas necessidades. Ele apoia-se na cultura do narcisismo: segundo Simone, ‗a paixão mais estimulada, a mais excitada, a mais suscitada da modernidade é o egoísmo, ou seja, a concentração em si mesmo‘. A sociedade consumista particpa da atenuação geral da paixão política e desmobiliza a classe operária, que já não reivindica a sua identidade, mas procura aparecer como a burguesia que ela desejaria ser‖ (Rémi Lefebvre, ibi).

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• Fim da Crítica e Resignação a Todo o pano?!... Esse é, de facto, o caminho que seguem hoje os intelectuais acomodados e submetidos ao Establishment, do tipo de Raffaele Simone. A pedgagogia da renúncia conduziu-os à condição de ‗chiens de garde‘ do Establishment. São, obviamente, incapazes de tersar armas por um vero Projecto Altermundialista, porque, básica e estruturalmente, eles não se cansam de incensar a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. Mais e pior: eles não se dão conta (criticamnte) de que puseram uma pedra tumular sobre o Processus Evolutivo da Bio-Antropogénese, confinando, em termos culturais/civilizacionais, os modelos antropológicos ao estatuto do ‗Homo Sapiens tout court‘, e impedindo a Humanidade de aceder ao estatuto do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. Estas posições são de uma gravidade inaudita e sem precedentes, na História das Culturas e da Civilização, desde logo, em termos de honestidade intelectual. O universo crítico-cultural humano fechou-se de tal modo em completo curto-circuito, que o papa Bento XVI navega nos mesmos oceanos empíreo-criticistas (E. Mach) de Raffaele Simone e tutti quanti. A ‗Caritas in Veritate‘ é, efectivamente, um monumento ao empíreo-criticismo e ao Establishment actual. O Mundo humano não se pode organizar e reger a não ser segundo as cartilhas dos Poderes Separados (divinizados e sacrossantos...) e do primado absoluto do Poder sobre os Saberes. A Caritas (que aí é enaltecida enquanto virtude superior à justiça: p.11) só pode concretizar-se dentro do quadro societário que a Ordem estabelecida tem por Veritas, — o que redunda, obviamente, em paternalismos, não na constituição da Sociedade dos eguais/livres, justos e fraternos. O Evangelho jesuânico (de que ainda restam alguns vestígios no N.T. canónico) foi totalmente eclipsado e esmagado na parafernália das religiões institucionalizadas e num ‗igrejismo‘ que não faz outra coisa senão ‗duplicar‘ os Estados. Estes, por sua vez, uma vez aprendida a Lição dos Monoteísmos institucionalizados (a Potestas sacra e a mundividência ideológica do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo), organizam-se em férreas grelhas mono-árquicas e hierárquicas (quer em regime monárquico, quer em regime republicano... as diferenças estão só no folclore). E disto não pode a Humanidade sair, segundo a doutrina de Bento XVI, expendida no documento referido. 274


Perante esta Encíclica do papa Bento XVI, dir-se-ia, na melhor das hipóteses, que estamos diante de um programa ‗válido‘, mas tão só ‗in actu signato‘, nunca ‗in actu exercito‘. Diz ele logo a abrir (p.7): ‗A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja‘!... A Justiça, enquanto a Virtude humana fundamentalíssima, foi totalmente eclipsada, por definição, neste documento. O papa embarcou, decididamente, no catecismo corrente do Objectivo-Objectualismo, o que, na melhor das hipóteses, lhe vai permitir um texto e um documento estigmatizados pelo eclectismo mais sensaborão... (Cf. p.8, p.10; p.14, p.18, pp.21-22; pp.26-27). A mobilidade laboral e a desregulamentação não deixam de ser aí justificadas e enaltecidas (pp.37-38). A potestas d‘abord é perfeitamente admitida, na medida em que pode ser corrigida, nos seus efeitos, pelo ‗sal‘ da caridade (p.45). As desigualdades sociais são admitidas e aceites (pp.4748 e ss.). Falou-se, aí, uma vez, in recto da dignidade da pessoa humana nos seguintes termos (p.47): ―A dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudo hoje, que as opções económicas não façam aumentar, de forma excessiva e moralmente inaceitável, as diferenças de riqueza e que se continue a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos, ou da sua manutenção. Bem vistas as coisas, isto é exigido também pela ‗razão económica‘‖. Como se vê, as injunções críticas sobre a grande Máquina da macro-economia (neoliberal capitalista... é preciso acrescentar), não ultrapassam a bitola do puro possibilismo e da complacência com a sua Grund-Struktur. Uma vez que a lógica do mercado é encarada de modo substantivo, não pode, obviamente, resultar bem conseguida a sua articulação com as exigências do bem comum, encaradas de modo igualmente substantivo (pp.55-59). A doutrina do Deus criador e do pecado original, segundo o papa, continua a impor-se na própria organização e interpretação da Sociedade e dos fenómenos sociais (pp.51...), a tal ponto — dizemos, agora, nós — que a mundividência fraterna e horizontalista dos Gnósticos judeo-cristãos primevos e do Jesuanismo foi completamente eclipsada do horizonte da Humanidade. Por isso, as instituições e os aparelhos societários levam sempre a chancela da Potestas-Dominação d’abord. Até ao dia do Juízo Final, dirá o papa!... Em resumo, a presente encíclica do papa Ratzinger mostra-se completamente desorbitada do eixo clássico-tradicional, em que eram pensadas e construídas as encíclicas da ‗D.S.I.‘, a saber: os fiéis-cristãos, em geral, na sua básica e comum condição de Indivíduos-Pessoas/Cidadãos de uma Sociedade humana, que é sempre preciso 275


corrigir e rectificar, transformar, em suma, na vida da Justiça e do Humanismo integral. A própria dedicatória do Documento, ordenada eclesiasticamente, segundo os diferentes estamentos hierárquicos, acusa esta orientação obliquada (p.5): ―aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas, aos fiéis leigos, e a todos os homens de boa vontade (as mulheres não foram nomeadas...), sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade‖. As consciências, reflexivas e críticas, autónomas, dos Indivíduos-Pessoas/ /Cidadãos, enquanto primeira ou última fonte e fundamento da organização das Sociedades humanas, — o papa Ratzinger e os papas da I.C.R., em geral, nunca entenderam esta doutrina, pela simples razão de sempre terem excluído e eliminado todo o pensamento e orientação doutrinal, procedentes do Jesuanismo e dos Gnósticos judeo-cristãos primevos. Há, aí, entretanto, uma verdade, que o pontífice romano não foi capaz de rejeitar (p.85): ―... a unidade da família humana não anula em si as pessoas, os povos e as culturas, mas torna-os mais transparentes reciprocamente, mais unidos nas suas legítimas diversidades‖. Contudo, esta mesma tese é argumentada a partir de ‗uma visão metafísica da relação entre as pessoas‘, oriunda da revelação cristã, ―segundo a qual a comunidade dos homens não absorve em si a pessoa, aniquilando a sua autonomia, como acontece nas várias formas de totalitarismo, mas valoriza-a ainda mais, porque a relação entre pessoa e comunidade é feita de um todo para outro todo‖ (ibi, pp.84-85). E, aqui, J.R. cita Tomás de Aquino (in ‗III Sent.‘, d.5, 3,2): ‗ratio partis contrariatur rationi personae‘ = a parte enquanto parte opõe-se à pessoa enquanto pessoa (e vice-versa); e, ainda, o mesmo Doutor Angélico (in ‗Summa Theologiae‘, I-II, q.21, a.2, ad tertium): ‗homo non ordinatur ad communitatem politicam secundum se totum et secundum omnia sua‘ = o homem não se encontra ordenado para a comunidade política, segundo a totalidade de si mesmo e segundo tudo o que é seu. As duas citações são pertinentes para a tese, que J.R. pretende afirmar. Dir-se-ia que Tomás de Aquino ainda se fez eco (embora longínquo) do pensamento e da doutrina do Jesuanismo e dos Gnósticos judeo-cristãos primevos. Mas é sabido que a Igreja paulina/tradicional e a Cristandade nunca estiveram interessadas, ao longo de dois milénios, em recuperar, verdadeiramente, esse pensamento e doutrina. A prova disto é que o próprio papa continua a traduzir mal a perícopa do aquinense: não a entendeu semanticamente, de modo adequado. J.R. disse que a relação entre pessoa e comunidade é feita de um todo para outro todo!... Ora esta é, ainda, uma lingua276


gem de tipo totalitário, não própria do ideário e da doutrina da DEMOCRACIA. O todo e a totalidade emparelham com a noção de comunidade; mas o que emparelha com a pessoa é a noção (qualitativa) de infinito (o infinito da sua consciência). O filósofo Emmanuel Levinas percepcionou e actualizou muito bem toda esta problemática no seu livro célebre ‗Totalité et Infini‘/Essai sur L‘Extériorité‘ (Martinus Nijhoff/La Haye, 1965, 2e édition). A propósito da encíclica em referência, Serge Latouche (professor emérito de economia na Univ. de Orsay, objector de consciência e autor, de parceria com Didier Harpagès, do livro celebrado ‗Le Temps de la Décroissance‘) escreveu (no ‗Le Monde Diplomatique‘ de Agosto de 2010, p.3) um artigo notável (em plena convergência com a mundividência crítica do C.E.H.C.), subordinado ao título: ‗L‟Ode popale à la „bonne‟ économie‘, justamente com o objectivo de descriptar a encíclica ‗Caritas in Veritate‘. Não podíamos deixar de trazer à colação um texto tão judicioso, acertado e crítico como este. A conclusão sumária, que nós próprios tirámos da leitura do artigo: a denúncia veemente e certeira da religião do Objectivo-Objectualismo, nas suas expressões mais celeradas. O Autor começa por zurzir (irónica e sarcasticamente) na ‗política do oxímoro‘, o que nós temos chamado a ‗política ocidental do paradoxo‘ (inaugurada pela I.C.R.), onde o Vaticano e a Igreja têm sido experientes e mestres para toda a Cultura/Civilização do Ocidente. S.L. não se esqueceu de lembrar que muitos teólogos progressistas e a Teologia da Libertação têm condenado severamente a ‗sociedade do crescimento‘ (económico-financeiro), por razões que são intrinsecamente perversas, na medida exacta em que ela não está ao serviço directo dos Sujeitos humanos, i.e., dos Indivíduos-Pessoas singulares e concretos. Estabelece aí o Autor: ―O que fere é a predominância da doxa económica sobre a doxa evangélica. A economia, invenção moderna por excelência, é configurada como uma essência que não se pode questionar: ‗a esfera económica não é eticamente neutra, nem desumana ou anti-social por natureza‘ (p.57)‖ (ibi). Daqui procedem noções institucionalizadas, que são assumidas como dogmas, nunca são questionadas: a mercadorização do trabalho, a precarização do trabalho e do emprego, a deslocalização das multinacionais. O horizonte do bem comum deixou de ser uma dimensão integrada num programa político, para se dissolver numa pura miragem. Nesta encíclica, o papa perverteu a própria tese de Paulo VI, na ‗Populorum Progressio‘ (1967): ‗o desenvolvimento é o novo nome da paz‘!... Então, esta ban277


deira fazia sentido, porque o tema prioritário era ainda o fosso entre países ricos e desenvolvidos e países pobres, em vias de desenvolvimento. Se, então, a tese de Paulo VI envolvia tonalidades trágicas, hodiernamente, na pena de Bento XVI, ela assume uma atmosfera ideológica de pura farsa!... A encíclica do papa Ratzinger faz o seu caminho ao arrepio da melhor Teologia cristã crítica e da Teologia da Libertação. ―Nem o capitalismo, nem o lucro, nem a mundialização, nem a exploração da natureza, nem as exportações de capitais, nem a finança, nem, como é óbvio, o crescimento e o desenvolvimento são aí condenados em si mesmos: a culpa é só dos seus excessos‖ (S.L., ibi). Em tom sibilino, o nosso Autor chega a fazer a declaração (ibi): ―Os nossos peritos cristãos ousariam até afirmar: ‗a mundialização é uma forma laicizada de cristianização do mundo‘‖. Nem uma só palavra foi proferida, na encíclica, ―sobre a injustiça e a imoralidade da livre-troca imposta aos países pobres; basta ajudá-los a adaptar-se: ‗É seguramente necessário ajudar estes países a melhorar os seus produtos e a adaptá-los melhor à procura‘ (p.98)‖ (idem, ibidem). O oxímoro mais exaltado (que redunda num vero Bullshit patético) pode ver-se nesta frase da encíclica, citada por S.L., sobre a relação entre a sociedade e os mercados, na atmosfera ideológica actual da mercadorização de tudo e mais uma botas: ―A sociedade não deve proteger-se do mercado, como se o desenvolvimento deste último implicasse ipso facto a morte das relações autenticamente humanas‖ (ibidem). É o resultado da preocupação doentia de meter, de tal modo, a ‗ética‘ em todos os andares do Edifício societário, sem se dar conta (criticamente) de que é a própria Casa que foi mal construída e situada em território sísmico!... S.L. resumiu bem o estilo e a orientação ideológica do Doc. papal, ao asseverar (ibi): ―Os desastres da economia capitalista não obrigam à condenação dos seus agentes. Embora, sem dúvida, responsáveis, eles não são culpáveis, se o lucro foi extorquido pelo ‗motivo bom‘. Como na tortura inquisitorial, a solução da quadratura do círculo entre a lógica económica e a ética cristã reside, tão só, no enunciado ‗Que seja isso feito sem ódio!‘ dos manuais dos grandes inquisidores; sem ódio, e mesmo com amor. A ‗economicização‘ do mundo pode, portanto, realizar-se sob o signo da caridade: é a grande reconciliação de Deus e de Mamona‖. B. Obama e N. Sarkozy, por exemplo, baterão as palmas à encíclica do papa. O primeiro cumpriu o seu dever, ao profligar a obscenidade dos bonus e dos superlucros da Banca; o segundo viu o seu dever cumprido, ao denunciar os ‗excessos‘ da 278


finança e do neoliberalismo, apelando, em consequência, para uma moralização do capitalismo. Numa palavra, parece que o Grande Inquisidor de F. Dostoievsky (em ‗Os Irmãos Karamazov‘) estava certo, ao repreender Cristo na fórmula utilizada: ‗Vai-te embora e não voltes cá mais... O teu tempo passou; agora, somos nós a mandar‘!... Entretanto, o próprio ‗modelo social europeu‘ (que foi configurado sob a inspiração

da

D.S.I.

esquematizada

no

triângulo:

Indivíduos-

Pessoas/Cidadãos//Merca-do//Poder do Estado), que esteve em vigor durante os anos ‘60 e ‘70 do séc. XX (alargando o arco temporal: durante o período da ‗guerra fria‘), deve tudo ao ideário matricial do ‗tertium datur‘ (entre os socialismos convencionais e o capitalismo libe-ralista), que constituiu a quint‘essência da Doutrina Social da Igreja. Na sua forja mais próxima, o ‗modelo social europeu‘ começou por ser sobredeterminado pela dinâmica societária própria do processo da reconstrução de uma Europa em ruínas, nas oitavas da IIª Guerra Mundial. Na sua base, estava o Plano Marshall (nascido na mundividência crítica de John Mainnard Keynes), que permitiu erguer o edifício da chamada Organização para a Cooperação Económica Europeia (OEEC); e, muito em particular, a dinâmica própria do 1º quadriénio (1948-1952). Chegaram a estar, aí, agrupadas 16 nações: Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Holanda, Islândia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Suécia, Suíça, Turquia, Reino Unido. A Checoslováquia foi impedida de aderir pela URSS. Nos primeiros quatro anos, aquela dinâmica social-societária, de índole triangular, não se esqueceu de recuperar os corpos societários intermédios, designadamente as organizações sindicais e patronais, sempre respaldada no não-esquecimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos (aprovada na Assembleia Geral da O.N.U. em 10 de Dez. de 1948). Todo este Edifício foi varrido pelo Tsunami do Neoliberalismo capitalista globalizado dos últimos trinta anos. E a Encíclica ‗Caritas in Veritate‘ do papa Bento XVI conseguiu a proeza de realizar duas coisas ao mesmo tempo: pôs a pedra tumular sobre a defunta D.S.I. e imprimiu a chancela da aprovação e da benção sobre o modelo mais desumano e as formas mais insensatas e perversas de toda a história do Capitalismo moderno. Fomos habituados a ouvir, por parte da Doutrina Social da Igreja, desde a ‗Rerum Novarum‘ (1891) de Leão XIII, uma Voz crítica, em confronto com as inércias e as estruturais contradições das Sociedades modernas e contemporâneas. Essa 279


Voz crítica calou-se, em absoluto, com a ‗Caritas in Veritate‘ de Bento XVI. ‗Quem cala, consente‘! Diz o adágio luso. E também há, no alemão de J. Ratzinger, um refrão com o mesmo significado: ‗Wer schweigt macht sich schuldig‘!... A bandeira do ‗Altermundialismo‘ foi deixada às sortes dos sucessivos ‗fora‟ sociais mundiais (a partir do de Porto Alegre/Brasil, em 2001). Com efeito, a pauta crítica do Ocidente (estigmatizada pela doutrina dos dois pesos e duas medidas...), uma vez mundializada, está a deparar com os seus efeitos e consequências nas recentes ‗revoluções ocorridas no mundo árabe e islâmico, onde as populações civis se acham à mercê dos caciques/ /ditadores... enquanto estes não caem, (por efeito de revoltas e insurreições bem sucedidas; às vezes o processo dura semanas ou meses, como na Líbia de Kadhafi), eles são os melhores do mundo, os amigos do povo!... Uma vez apeados do seu castelo do Poder, foram transformados no inimigo nº 1 das populações. (Cf. Narciso Machado in ‗Notícias de Guimarães‘, 25.3.2011, p.2). A hipocrisia estrutural e funcional da Cultura/Civilização do Ocidente constitui, de facto, o seu pecado original, e será a primeira ou última razão da sua decadência e morte. O que ela está sempre pronta a agitar é a bandeira do Objectivo-Objectualismo, tanto nas áreas da Política, como nas áreas do Ensino e da Educação. Até aqui, a pandemia alastra. O Conhecimento (a adquirir) é identificado com as simples competências profissionais práxicas. Nas próprias formações do Ensino Superior, o ‗eu crítico‘ é pervertido e equacionado, tão só, com o ‗eu empregável‘. (Cf. ‗A Página da Educação‘, Primavera de 2011, pp.66-67). Continuam a vigorar e a prevalecer as teses do ‗auto-ruled free market‘, cujos resultados são demasiado conhecidos: a Crise financeira económica, que se abateu sobre o Mundo, desde 2007; apesar de não ser eleita nem prestar contas no espaço público, é a esfera das finanças que hoje comanda, em absoluto, os destinos do Mundo. (Cf. ibi, pp.68-69). Quando é que a Europa e o Ocidente vão deixar de funcionar segundo a estafada ‗teoria do Vigário‘ (que a Igreja de Paulo e Pedro e o Cristianismo lhes ensinaram)?!... Segundo Samir Amin, o vero e autêntico projecto de governação da Europa ‗ou será de Esquerda ou não será‘! Aqui, ser de Esquerda é equivalente a: Situar-se do lado dos Sujeitos humanos, livres e responsáveis, — contra a execranda religião do Objectivo-Objectualismo. De contrário, a Europa e o Ocidente nunca sairão dos seus paradoxos, hipocrisias e contradições estruturais. Por exemplo: o séc. XIX foi o ‗século da paz‘ por excelência... contudo, foi ele que produziu o ‗século da guerra‘

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por excelência, que foi o séc. XX. Quando vamos romper o odre histórico dos ‗eternos retornos‘ à F. Nietzsche?! É tempo de reavaliarmos, criticamente, o universalismo e a racionalidade das ‗Luzes‘ setecentistas e oitocentistas. Decididamente, Deus não irá resolver a ‗Questão Social‘... o que sempre tem estado pressuposto na ‗Teoria do Vigário‘ e na cartilha tradicional do Objectivo-Objectualismo. (Cf. ‗Le Monde Diplomatique‘, Dez. 2010, p.3: o artigo notável de Zeev Sternhell ‗De La Nation Citoyenne à la Nation Culturelle: Anti-Lumières de tous les pays...‘). Eis a Grande Questão a formular, diante das portas da Cidade: Onde está a DEMOCRACIA baseada nos Indivíduos-Pessoas, autónomas, livres e responsáveis?! Continuaremos iludidos, enquanto cuidarmos, muito à moderna, que o Problema se situa, tão só, no plano político. Numa perspectiva pan-envolvente, ele configura-se, antes e acima de tudo, como um Problema de ordem antropológica, e aqui, de índole gnóseo-epistemológica. É que, parcialmente à rebelia do que pensa Z.S., há, neste horizonte crítico, um vero ‗tertium datur‘: o que é oriundo da mundividência (sempre ignorada na Cultura do Ocidente) dos Gnósticos judeo-cristãos primevos e do Jesuanismo. De facto, enquanto não tivermos descoberto esta bússola de orientação náutica, por ex., no universo emaranhado dos problemas do saber entre exigências deontológicas, interesses corporativos ou pessoais e influências (positivas ou negativas) de múltiplos vectores, nunca teremos respostas adequadas para a pergunta crucial: ‗Qui expertisera les scientifiques?‘ (Cf. o art. de título homónimo, de Jacques Testant, ibi, p.13). Ora essa bússola é edificada, em última instância, por esse Infinito qualitativo que é a Consciência, reflexiva e crítica, dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Segundo o Jesuanismo e os Gnósticos, é ela a fonte das cartas de marear, é ela mesma que constitui, originalmente, a condição de Sujeitos livres e responsáveis dos Indivíduos--Pessoas/Cidadãos. Nesse horizonte, não há saberes úteis e saberes inúteis, teóricos ou práticos. É que tais distinções são procedentes de uma outra fonte (antagónica à primeira): a dos Poderes Estabelecidos, que se prendem e estão dependentes da reli-gião do Objectivo-Objectualismo. Subjugados por esta bífida e maldita religião, os Sistemas Educativos modernos e contemporâneos, dir-se-ia que não fazem outra coisa (com o apoio dos pais e encarregados de educação) senão instruir e domesticar e arregimentar os seus alunos e 281


educandos para os saberes (profissionais...) úteis e práxicos, tomando tal orientação como a sua melhor estrela. Na esteira do típico empirismo inglês, o conhecido sociólogo e filósofo Herbert Spencer (1820-1903) é um dos ‗mestres‘ mais culpados por ter promovido e justificado um tal trend (utilitarista e pragmatista), na Educação e no Ensino. Reza, assim, o seu axioma principal: ‗O objectivo da educação não é o conhecimento, mas a acção‘. Este é o princípio precursor da hodierna teoria das ‗competências‘ ou ‗conhecimento em acção‘, que os modernos e contemporâneos psico-pedagogos assumem como o único objectivo válido a que a Escola se deve dedicar. (Quem diria que o próprio Empirismo tem uma alma nuclear de Dualismo metafísico-ontológico?). Os resultados desta estratégia são patentes: o universo dos Saberes deixou de ser substantivo e autónomo... Deixou de valer por si, tanto na sociedade e na vida, como na escola. A Sociedade continua a reger-se por Poderes separados, onde não pode faltar o estigma do ‗sagrado‘ (destilado pelas religiões institucionalizadas). Os humanos, organizados em sociedades, não ultrapassaram o limiar da sempiterna Teoria/doutrina do Rebanho!... Na religião do Objectivo-Objectualismo, há uma ‗estratégia fatal‘ dos objectos e da acção que, simplesmente por surgirem e se amontoarem em excesso, conduzem ao entupimento dos canais da Comunicação e à inércia societária (institucionalizada...). A que conduziu o excesso de mobilidade nas vias de trânsito ou nos canais de Comunicação da Web?!... A uma estrutural inércia forçada. O quadro foi bem caracterizado por António Guerreiro (in ‗Expresso‘/Atual, 2.4.2011, p.34): ―Esta gente toda a trocar mensagens e insultos, a disseminar ódios e opiniões, a gritar impropérios e calúnias, ocupa a ágora de maneira tão ruidosa e tão avessa ao ‗agir comunicacional‘ [herdeiro do Diálogo socrático], que afasta quem, com saber ou racionalidade argumentativa, se dispõe a intervir. A ‗dialéctica do Iluminismo‘, que Adorno e Horkheimer identificaram na reversibilidade da Razão moderna, encontrou aqui a sua realização extrema: uma esfera pública totalmente aberta e ilimitada, exactamente por sê-lo, redunda no seu contrário; a promessa ‗iluminista‘ por excelência torna-se o reino das trevas; e os meios que julgávamos poderem cumprir a promessa de uma sociedade racional tornam-se os instrumentos da barbárie". Os vícios e os ‗pecados‘ da Cultura do Ocidente estão todos, ‗in nuce‘, nessa reincidente mania do paradoxo, que, ao juntar, inocente e ditatorialmente (

despo-

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tismo iluminado e paternalismo) os extremos/opostos, se torna hipócrita, até porque não sabe actuar senão segundo a doutrina dos dois pesos e duas medidas. Onde estão o sábio e sensato Hilemorfismo aristotélico e a teoria/doutrina do ‗Mesótès‘ (meio termo na Praxis humana) do Filósofo par excellence?! Mahatma Gandhi (1869-1948) ensinou-nos, magistralmente (muito melhor do que todos os Iluministas modernos), o que era (e é) o vero e autêntico processo de Libertação dos Humanos. No sulco dos Gnósticos judeo-cristãos primevos, Gandhi sabia, muito bem, que a vera e autêntica Libertação pressupõe a liberdade interior e a reflexão (a capacidade de reflexão crítica): uma Identidade autónoma do Indivíduo-Pessoa não se opera sem isso. A sua vida e obras comprovaram abundantemente esta tese. (Cf. ‗Mahatma Gandhi‘ de Susmita Arp, colecção: A minha vida deu um livro, Edição Expresso/2011, pp.10 e ss.). Tanto o Evangelho (apócrifo) de Tomé como o Evangelho (apócrifo) de Filipe sustentam, expressa ou implicitamente, esta tese: Os que pensam que Jesus morreu primeiro e ressuscitou depois, estão enganados; Jesus ressuscitou primeiro, e depois, morreu, como todos os humanos. Contra a Verdade histórica, a I.C.R. acreditou no Erro. Fundou, aí, a religião do Objectivo-Objectualismo, baseada no Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, que ensinou, depois, a quase toda a Cultura/ /Civilização do Ocidente. Na p.111 do livro (há pouco citado), pode ler-se o seguinte: ―Juntamente com os apoiantes, Gandhi transgrediu pacificamente leis injustas e suportou, destemidamente, todas as penas, demonstrando assim a brutalidade da oposição e convertendo-a em proveito moral. Gandhi demonstrou como se podia atingir, sem armas e com sensibilidade, um adversário dependente da reputação internacional e da cooperação dos súbditos. Desta forma, as campanhas imaginativas inspiraram, mundialmente, vários movimentos de resistência, incluindo Martin Luther King nos EUA, os oponentes do apartheid na África do Sul, os movimentos pacifistas ocidentais, e, mais recentemente, alguns dos revolucionários pacíficos da Europa de leste‖. Adepto intransigente da não-violência, ele sabia e ensinava que a violência acaba, quase sempre, por substituir, apenas, uma tirania por outra. Gandhi deixou escrito: ―O Satyagraha [desobediência civil, não-cooperação] exclui o recurso à violência, pois as pessoas não são capazes de reconhecer a verdade absoluta e, por essa razão, não possuem as competências necessárias para castigar‖ (ibi, p.112).

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Quiséramos nós, hoje, que o Movimento (pacificamente desconcertante!...) de M. Gandhi continuasse, decisivamente, a exercer a sua influência positiva, agora, na necessária e indispensável Desconstrução das Teorias/Doutrinas políticas (e respectivas práticas) que, ao longo de séculos e milénios, têm articulado, em clichés estereotipados, as deliberações e os comportamentos (humanos/desumanos) da guerra e da paz. Se este empreendimento tiver lugar nos espaços presentes e futuros da Cultura/Civilização do Ocidente, poderá, então, pensar-se que um novo horizonte se abriu, na odisseia da Convivência Pacífica da Humanidade: designadamente, a corda das insurreições hodiernas (no mundo árabe e islâmico), supostamente em demanda do tipo de vida ocidental (mas hipotecada num Islão que não se modernizou...) poderá vir a ser muito mais do que aparenta. Há uma Sensibilidade humana comum, à escala universal... Para que ela possa emergir, sem medo nem temor, é preciso que o mais forte seja capaz de respeitar os mais fracos.

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A CONSCIÊNCIA COMO „FONS ET ORIGO‟ DA HUMANITUDE DA HUMANIDADE

(OU DA CONSTITUIÇÃO FUNDADORA DO „HOMO SAPIENS//SAPIENS‟)

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SABER E PODER SÃO DOIS CAMINHOS ESPECIFICAMENTE DIFERENTES

285


O que deve constituir o Objectivo primacial e primordial da Educação e do Ensino, no patamar da Cultura (própria e específica do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘), no Processo da Evolução Antropogenética, é a CONSCIÊNCIA, não a Instrução domesticadora, i.e., um Sistema de conhecimentos e competências práxicos, orientados para o exercício de uma profissão (e que os Sistemas Educativos tradicionais têm de proporcionar às populações). Enquanto não nos dermos conta disto, nem sequer saberemos que um dia poderemos romper o odre da Teoria/doutrina do Rebanho. As ideias são uma realidade humana; as crenças são outra!... Todas as misturas e confusões são, aqui, prejudiciais e perversas. E, não obstante, o caminho que a todos os humanos se impõe, em nome de uma adultez crítica, é o de saber sempre discernir bem entre as duas realidades. Só assim nos será possível penetrar na sempiterna Floresta selvagem da Realidade. Ao empreendermos essa caminhada, estamos a perseguir o horizonte positivo e fecundo da Liberdade Responsável primacial e primordial (nos antípodas da Cultura do Poder-Dominação d’abord). Crença e Poder: ‗Cremos tanto como podemos. Se pudéssemos, acreditaríamos tudo‘!... Seria, de facto, muito mais cómodo para nós. (William James: 18421910). Esta foi a acção da Criação, por parte do Deus transcendente e extrínseco, na mitologia judeo-cristã-islâmica. Ora, em contraste com as ideias (e a necessidade de as demandar e comprovar...), as crenças ‗são o continente da nossa vida, vivemos delas, estamos nelas e não nos encontramos com elas, mas nelas‘. (Ortega y Gasset (1883-1955), in ‗Ideias e Crenças‘). Grelha crítica: Em última análise, ou em última instância, só ganhamos, efectivamente, identidade, só nos individualizamos e personalizamos mediante as ideias... não através das crenças (que envolvem uma dimensão comum e colectiva). O problema principal da diferenciação entre as duas realidades (ideias e crenças) reside aqui: o alvo directo e imediato das crenças são as pessoas, não os objectos e as coisas. O alvo directo e imediato das ideias são as coisas e os objectos do Conhecimento. O pecado de idolatria, cometido por Israel, com a complacência de Aarão, ao adorar o Bezerro de outro (Ex. 32, 1-6), prende-se, precisamente, com esse problema principal da diferenciação entre as duas realidades. A vis da Inteligência diferenciadora desfaleceu e a Consciência sucumbiu à tentação. Eis por que a operatória das crenças é sempre ambígua (ou mesmo equívoca), por definição; ela paga um tributo muito pesado à cartilha da Dependência. O 286


que, por conseguinte, se afigura necessário e imperioso é, mesmo, desbravar, continuamente, a Floresta selvagem da Realidade (natural e societária), perseguindo o caminho com o máximo de Ideias e o mínimo de Crenças!... Não foi essa a Lição de Sócrates? Prosseguir o caminho quotidiano, na Pólis, mediante o Diálogo (maiêutico e crítico) com os outros cidadãos, elaborando e comprovando os próprios conceitos (ideias)/instrumentos, que a Experiência dialógica, nos pode proporcionar em abundância. Assim, a odisseia da humanização é fácil de entender: Do mundo das crenças para o mundo das ideias/conceitos, foi o caminho da Emancipação/Libertação humana que progrediu. E, ao mesmo tempo, foi forjado in actu exercito, em comum e democraticamente, um Poder societário de tipo novo, porque também é nova a Ordem societária emergente (Poder sincategoremático, de algum modo uma geminação da Liberdade Responsável dos cidadãos). O médico e humanista espanhol, Pedro Laín Entralgo, escreveu um dia: ―Frente ao conformista e ao filisteu, o homem de ciência começa a sê-lo, formulando-se perguntas acerca do que vê e do que em sua volta comum e tradicionalmente se pensa e se crê; perguntas elementares nas origens da ciência, perguntas cada vez mais técnicas e subtis à medida que avança o conhecimento científico‖. Entretanto, o filósofo só emerge a sério, quando o cientista fez as últimas perguntas da cadeia das causas/ /efeitos e verificou que eram só as penúltimas: nesse instante, o filósofo configurou-se mediante a constatação de que a forma suprema do Saber continuava a ser a da Pergunta!... Neste horizonte crítico, é, depois, o filósofo que vai dizer aos cientistas (das diferentes especialidades), que não pode haver ciência, capaz de respeitar (e ter em consideração) a Dignidade e a Liberdade dos Seres Humanos, sem consciência, sem uma bioética adequada. E esta tem um estatuto universal, à escala de toda a Espécie humana; não pode estar na dependência de morais étnicas particulares ou das religiões institucionalizadas (cf. a Declaração Universal de Bioética, aprovada pela UNESCO, em Dez. de 2005). As religiões institucionalizadas (acima de todas, o cristianismo católico) constituem, hoje, o principal Factor causal impeditivo do reconhecimento, em última instância, do primado do Saber sobre os Poderes, tal como é exigido pela gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘.

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• Para sair do horizonte fechado (totalitário, por definição e estrutura) do Objectivo-Objectualismo, — essa Casa cultural oriunda da mundividência judeo-cristã, cujo telhado é o Dualismo metafísico-ontológico (ancorado sobre Objectos/ideias objectualizados primordiais e primaciais), cujas colunas são constituídas pelo catecismo do primado do Poder sobre os Saberes, e cujos alicerces são estabelecidos pela metodologia do monismo epistémico (que mistura e confunde ciências físico-naturais e ciências psico-sociais e/ou humanas). A propósito desta complexa problemática, vamos utilizar, glosar e criticar algumas perícopas seleccionadas de texto do livro (colectânea de estudos) do Prof. Walter Osswald (catedrático jubilado da Fac. de Medicina da Univ. do Porto), ‗Cadernos do Mosteiro‘ (Gráfica de Coimbra/2. Coimbra, 2007). Raramente, um Autor ilustrado se aproxima tanto dos horizontes críticos do C.E.H.C., muito embora habite, claramente, em outra ‗Casa‘ ideológico-cultural. W.O. tem-se na conta de entender bem a obra de Hannah Arendt, em termos hermenêuticos e epistemológicos. Por isso, fez uma advertência preliminar aos seus resumos e comentários: ―H.A. insiste em declarar que o princípio da causalidade, válido em ciência exacta, não pode ser abusivamente estendido à história política, em que os acontecimentos têm origens ou raízes, mas não causas‖ (ibi, p.319). Na pragmática da sua obra, a filósofa judia não chegou, de modo algum, a defender (como nós o fazemos no C.E.H.C.) a Tese estrutural da Dualidade Epistémica; mas é indiscutível que ela é um dos primeiros filósofos modernos a esforçar-se, sectorialmente, por romper o odre tradicional do Monismo epistemológico. A tonalidade com que W.O. procedeu à advertência parece indiciar que não partilha da mesma gramática epistemológica, apesar de a sua escrita se configurar sobre o fio da navalha. Estamos, em geral, de acordo com o parágrafo que ele escreveu, nesta perícopa (ibi, pp.319-320): ―As Origens do Totalitarismo seriam quatro: 1) a decadência do estado-nação, 2) o racismo, 3) o anti-semitismo e 4) a pressão para se expandir, na ausência de uma neoorganização agrupadora das nações, de um novo conceito de humanidade, da resolução da questão judaica e de uma filosofia da partilha do mundo com os outros, diferentes de nós. [Os 4 elementos ausentes fazem parte da gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘... por isso, o que ainda predomina é a Cultura do Poder-Dominação d’abord e a teoria histórica do ‗eterno retorno‘.] O estado totalitário não pode subsistir sem terror e o terror não é eficaz se não houver campos de concentração. Estes não são uma invenção nazi ou soviética (foram usados pelo Império 288


Britânico na guerra dos Boers), mas são a característica singular mais saliente e definidora do estado totalitário. Não há diferenças essenciais entre o estado nazi e o soviético: as suas ideologias diferem principalmente por se apoiarem em visões da natureza e da história, respectivamente‖. Com efeito, deverá saber-se que Nazismo, Sovietismo e Império Britânico, bem como todos os modelos, ainda vigentes, no Ocidente e no Mundo, de ‗Democracias representativas indirectas‘, se alimentam e funcionam segundo a mesma cartilha estrutural de base: a Cultura, sempiterna do Poder-Dominação d’abord, caracterizada pela metodologia do Objectivo-Objectualismo, e balizada pelo catecismo do Monismo Epistémico. Para percebermos estes dados críticos, é mister situar-nos noutra galáxia: a dos Gnósticos judeo-cristãos primevos e do Jesuanismo, que nos ensinaram outro ideário psico-sócio-antropológico: o da Liberdade Responsável, primacial e primordial, dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Eis por que tanto W.O. como H.A., nas suas conceptualizações e mundividências críticas, ainda não sairam do horizonte ideológico e epistémico do Judeo-Cristianismo tradicional, envasado na sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. Em ‗As Origens do Totalitarismo‘ (Dom Quixote, Lisboa, 2008, 3ª ed.), H.A. discorre e argumenta com a sua teoria do ‗mal radical‘, que acarreta, obviamente, os seus engullhos, mesmo na admitida metafísica judeo-cristã, de índole objectivo-objectualista. No opúsculo ‗Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil‘ (Viking Press, New York, 1963//2ª edição revista: 1965), vê-se forçada a mudar de diapasão, para obter confiança e credibilidade, por parte das comunidades judaicas. Agora, a tónica era posta na ‗banalidade do mal‘. W.O. dá-se conta desta controvérsia e da mudança de diapasão, ao escrever (op. cit., p.320): ―No totalitarismo instala-se e reina o mal radical, que não é possível perdoar nem castigar, tão extremo é, nascendo de si mesmo e não do egoísmo, da inveja, da ambição, do ressentimento, da cobardia. Este conceito, que não escapou à crítica benevolente de Jaspers, suscitou a ira dos falcões judeus, que entenderam que tal teoria poderia tornar impossível a ‗caça‘ e o julgamento de criminosos de guerra nazis, refugiados na América do Sul. H.A. viria, curiosamente, a rever esta sua posição no decurso do julgamento de Eichmann, ao defender a tese da banalidade do mal (o mal é superficial, cresce à superfície como um fungo, não tem raízes — só o bem é radical e possui profundidade)‖. — Aqui está, a propósito dos conceitos de bem e de

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mal, o resultado do erróneo Monismo Epistémico, sempre presente na mundividência ideológica das três religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘. H.A. acompanhou o processo de Eichmann em Jerusalém; e a certa altura, para ser bem entendida, teve de protestar e exigir a distinção entre o plano jurídico e o plano político, o que nem sempre é tarefa fácil. ―Em Eichmann em Jerusalém, H.A. apresenta ideias tão pouco convencionais e politicamente tão incorrectas que a celeuma levantada por este livro nunca mais se aquietou inteiramente. As suas teses são simples e provocatórias, mas, apesar da sua singeleza, capazes de gerar malentendidos, já que a tendência das pessoas chocadas é para ler nas entrelinhas, isto é, ler o que lá não está. H.A., que assiste em Jerusalém ao processo, critica aspectos processuais e levanta questões jurídicas, mas discorda especialmente dos objectivos políticos do processo, de que Ben Gurion seria, através da acusação, o verdadeiro encenador‖ (W.O., op.cit., p.321). Comentando sumariamente as posições e os textos de H.A. sobre o processo de Eichmann, escreve W.O. (ibi, p.322): ―Mas é óbvio que H.A. nem pretende defender o indefensável nem menorizar o horror; o que ela faz, como sempre livre de maniqueísmos e gnosticismos, é afirmar a banalidade do mal (‗deste tipo de mal‘, comentou Karl Jaspers, como sempre preciso), a sua prática por pessoas que não são demoníacas nem psicopatas e a falácia do mal menor‖. Este mesmo discurso de W.O. afigura-se-nos patético... Dá provas de uma sensibilidade cultural aberta a várias hipóteses na análise deste Problema; até se mostrou atento ao rigor de Jaspers!... Mas continua encerrado dentro do odre ideológico do Judeo-Cristianismo tradicional, estigmatizado pela Cultura do Poder-Dominação d’abord. (H.A. também não rompeu, definitivamente, o odre!...). Para tornar ostensivamente manifesta a sua posição dentro dessa mundividência ideológica, W.O. escreveu, en passant, no parágrafo supra: ‗livre de maniqueísmos e gnosticismos‘. Estes são dois substantivos, que a Ideologia/ /Doutrina oficial das Cristandades e do Cristianismo tradicional sempre metem no mesmo saco, para culparem e responsabilizarem os seus antigos adversários Gnósticos judeo-cristãos primevos de um Dualismo metafísico-ontológico que, no fundo, não é deles, mas dos autores cristãos que, por essa via, pretendem descartar-se do pesadelo da Hipocrisia. Decididamente, juntar no mesmo enunciado os vocábulos maniqueísmo e gnosticismo como referentes da mesma realidade é uma falsidade e um perjúrio!...

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Mas W.O. reconhece perfeitamente a integridade de carácter de H.A.: na disputa com Scholem (referenciada na ‗Carta a Gershom Scholem‘), ele alude a uma conversa de H.A. com uma personalidade política israelita (mais tarde identificada com Golda Meir), onde essa personalidade lhe confessara o seu agnosticismo e, ao mesmo temmpo, o seu amor e fé no povo judaico, — ao que H.A. teria respondido como segue (ibi, p.322): ―Como é possível dizer isto? O extraordinário deste povo foi acreditar em Deus, de modo tal que a confiança nele e o amor por ele sobrepujavam o seu temor. E agora este povo só acredita em si mesmo? Neste sentido não amo os judeus e não acredito neles, mas pertenço pela natureza e pelos acontecimentos a este povo‖. Assim, escreve H.A. (cit. ibi, p.323): ―quando se é atacado por se ser judeu, a pessoa tem de se defender como judeu, e não como alemão ou cidadão do mundo ou dos direitos humanos‖. Por que foram vítimas de exclusão e perseguição os Judeus, ao longo de dois milénios de Cristandade? Em última análise, por força da sempiterna Cultura do Poder-dominação d’abord, do Monismo Epistémico e do Objectivo-Objectualismo, que sempre têm vigorado societariamente, destilando o seu inexorável anti-semitismo. Escreve (ibi, p.323) W.O.: ―Numa sociedade hostil ao judaísmo — e a este tipo pertencem todos os países em que havia uma população judaica significativa — a assimilação, para além de restrita e difícil, só é possível aos que estejam dispostos a assimilar igualmente o anti-semitismo‖. O que sempre, aí, tem funcionado é a cartilha da Potestas d’abord, com todas as suas implicações e sequelas. Durante a IIª Grande Guerra, H.A. chegou ao ponto de propor a formação de um exército judaico, para que, em conjunto, os judeus se pudessem defender, ao lado dos Aliados: ―defendeu insistentemente a criação de um exército judaico, que deveria combater ao lado dos aliados, para que os judeus não fossem simplesmente vítimas, mas também adversários e pudessem fazer valer os seus direitos quando, finalmente, soasse a hora da vitória‖ (W.O., ibi, p.324). Ao avançar com uma tal proposta, estar-se-ia a esquecer, possivelmente, de quão generalizado era, ainda então, o anti-semitismo, em todos os países de Cultura e Civilização ocidentais!... Em jeito de conclusão, escreve acertadamente W.O. (ibidem): ―Perante a ‗questão judaica‘, H.A. não dá uma resposta global, que resolva tudo de forma satisfatória. Ao citar Kafka (‗o meu povo, se é que tenho um povo‘), regressa ao tema da ambivalência ou duplo sentido, que transparece dos seus estudos biográficos sobre as suas ‗irmãs‘ Rabel Varnhagen e Rosa Luxemburg: é-se judeu, porque se é; mas não se 291


deixa de ter uma pátria, que é da língua e da cultura, uma pátria de que ninguém tem o direito de excluir o judeu, ao qual, por outro lado, não se pode exigir que seja por ela inteiramente assimilado, isto é, desjudaizado. Quando judeus e gentios entenderem isto, a sua convivência num Estado será possível, sem desconfiança mútua e no cumprimento leal dos compromissos assumidos‖. De facto, aquela ambivalência e a ambiguidade estrutural, em toda esta Grande Controvérsia da ‗Questão judaica‘ (que são, afinal, dos dois Autores em apreço), decorrem, fontalmente, da prevalência (ainda hodierna, proh dolor!...) da sempiterna Cultura do Poder-Condomínio, e da sistémica ignorância (e repúdio formal...) das Mensagens gémeas de Sócrates e de Jesus (que fazem parte — não esquecer — do Filão mais genuíno e autêntico da Cultura do Ocidente). Eis por que, precisamente sobre a Questão das Minorias societárias, em geral, W.O. pode ainda escrever, de modo melancólico e transigente, como segue (ibi, ibidem): ―Numa democracia, argumentava H.A., pode existir anti-semitismo, tal como há racismo dirigido contra os africanos ou desprezo pelos direitos das mulheres. Mas não convém que haja pessoas que se dediquem exclusivamente a combater o anti-semitismo, tal como não faz sentido que haja só activistas dos direitos raciais ou feministas: o importante é que todas as minorias sejam respeitadas, sem o deixarem de ser, e que não seja necessário invocar, para garantir o respeito total que merecem, motivos rácicos ou biológicos ou de política partidária‖. Noções como ‗o mal radical‘ ou ‗a banalidade do mal‘ são constructa metafísicos, oriundos da mundividência ideológica do Dualismo metafísico-ontológico (platónico e paulino). Na gíria corrente, essas noções são procedentes dessa religião laica, que dá pelo nome de Objectivo-Objectualismo, e poderiam configurar-se como pressupostos ou postulados, em qualquer compêndio ideológico, matriciado na Teodiceia de Leibniz. O grave, gravíssimo, em toda esta problemática é que a Cultura ideológica/cristã, oficial no Ocidente (desde a ‗constantinização‘ da I.C.R.), eclipsou e descartou, por completo, o universo crítico dos Gnósticos judeo-cristãos primevos e, na mesma operação, o Socratismo e o Jesuanismo. A verdade é que a mundividência crítica dos Gnósticos judeo-cristãos primevos (procedentes da Escola de Alexandria) não comportava semellhantes notiones intellectus. O Ocidente perdeu, assim, as suas armas e bagagens essenciais e decisivas para fermentar e libertar o Mundo!... E o que a História crítica nos ensina é muito simples: Os que sempre têm esquecido ou repudiado o passado, estão condenados 292


a ter de o viver de novo!... No esquema de um ‗eterno retorno‘, na melhor das hipóteses; na perspectiva de uma Catástrofe global, sempre iminente, na pior!... Para além do ‗Deus sive Natura‘ de B. Espinosa, do que a Humanidade carece, hodiernamente, é de adentrar-se no Universo (humano) do ‗Deus sive Conscientia‘ (o que foi identificado por Aurélio Agostinho, na linha dos Celtas em geral, como o ‗intimior intimo meo‘: mais íntimo a mim do que eu me sou a mim próprio). À escala de uma Fraternidade humana, social/societária, universal, capaz de congregar todos os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, sem distinções étnicas, religiosas ou político-partidárias. A ascensão antropogenética ao patamar da Espécie Sapiens//Sapiens é por essa via que se processa. No âmbito das ciências psico-neurobiológicas, ‗O Livro da Consciência‘/A Construção do Cérebro Consciente, de António Damásio (Círculo de Leitores, 2010, 1ª ed.), é o locus mais celebrado das investigações sobre o Fenómeno da Consciência, levadas a cabo, até ao presente, pelo C.E.H.C., muito embora não nos identifiquemos com os seus balizamentos e orientações para além dos 70%. (Disto falaremos adiante...). A.D. não denega que a Consciência humana, na sua formulação mais simples enquanto mente consciente, continua a ser, para a Humanidade contemporânea, um fenómeno misterioso (cf. ibi, p.22). Escreve o Autor, em termos programáticos (ibidem): ―Este livro aborda duas questões. Primeira: como é que o cérebro constrói uma mente? Segunda: como é que o cérebro torna essa mente consciente?‖. Com efeito, ―se a subjectividade não tivesse feito a sua entrada radical [no Grande Processus cósmico da Evolução], não haveria conhecimento [Sujeito cognoscente e Objectos conhecidos...], nem ninguém que se apercebesse disso e, consequentemente, não haveria uma história daquilo que as criaturas fizeram ao longo dos tempos, não haveria cultura de todo‖ (idem, ibi, p.21). É, de facto, o cérebro humano, enquanto tal, que torna a mente humana consciente. Ao problema de saber como é que o cérebro faz a mente, A.D. começa a responder, sintomaticamente, de modo oblíquo, a saber (ibi, p.22): ―Especialmente misterioso é o facto de ninguém ver a mente dos outros, consciente ou não. Podemos observar-lhes o corpo e o que fazem, dizem ou escrevem, e poderemos opinar com algum conhecimento quanto àquilo em que estarão a pensar. No entanto, não podemos observar-lhes a mente, e apenas nós próprios somos capazes de observar a nossa, a partir do interior, e através de uma janela bem estreita‖. Começar assim não é de estranhar, quando se conhece o B.I. cultural do Autor, designada293


mente através dos seus três livros anteriores: ‗O Erro de Descartes‘, ‗Ao Encontro de Espinosa‘ e ‗O Sentimento de Si‘. Não há Consciência sem a díade estrutural/estruturante de Sujeito//Objecto, no processo do Conhecimento. A consciência é um saber que sabe que sabe, capaz, portanto, do exercício da função de testis (testemunho). Ora — escreve A.D. (ibi, p.28) — ―para que a mente se torne consciente, o conhecedor, seja qual for a designação que lhe atribuamos — eu, experienciador, protagonista —, tem a sua origem no cérebro. Quando o cérebro consegue introduzir um conhecedor na mente, o resultado é a subjectividade‖. Curiosamente, A.D. deixa transparecer a ideia, no parágrafo seguinte, de que ainda não chegou a hora, na investigação sobre a matéria, do acesso ao patamar do Sujeito propriamente dito!... Efeitos e consequências patéticos desta Cultura tradicional da Potestas-Dominação d’abord, em que ainda sobrevivemos!... O Objectualismo empiricista de David Hume, ancorado na pura percepção (sem agente nem actor consistente) conduziu à completa dissolução do Eu/Sujeito: ―Nunca sou capaz de me observar sem uma percepção e não consigo observar nada além da percepção‖ (cit. ibi, p.29). A essa posição de Hume, William James contrapôs a defesa da existência do Eu, sob a fórmula ‗unidade e diversidade‘, chamando a atenção para o ‗núcleo de uniformidade‘, sempre presente nos ingredientes do Eu (ibidem). A.D. critica, sabiamente, a concepção tradicional da mente humana, que a considerava ‗como um fenómeno não-físico, isolado da biologia que a cria e mantém', configurando-a ‗fora das leis da física‘ (ibi, p.32). Ora, isso mesmo — terá de acrescentar-se — é o resultado directo da mundividência ideológica tradicional do Dualismo metafísico-ontológico, que tem sido assumido, na Cultura do Ocidente, como uma vera corveia, impeditiva da Abertura ao Novo e ao Futuro, como um ‗datum‘ natural/estruturador (nunca questionado...). O Autor propõe-se investigar, justamente, a dimensão neurobiológica da mente consciente. E, aí mesmo, ele evoca, na ante-câmara do seu Laboratório, três perspectivas metodológicas que pretende ultrapassar (ibi, pp.33-34): 1) a da observação directa da mente consciente individual, que é de ordem pessoal, privada e única; 2) a da observação do comportamento, virada, objectualmente, para os outros, presumindo que tenham, igualmente, uma mente consciente; 3) a do estudo das funções cerebrais nos indivíduos, no concernente à presença ou ausência da consciência.

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Tem razão o Autor em mostrar-se insatisfeito com a combinação das três perspectivas anteriores: ‗os três tipos de fenómenos — introspectivos/inspecção na primeira pessoa, comportamentais externos, e fenómenos cerebrais‘ (p.33). O desfasamento, o abismo, entre a interioridade e a exterioridade manteve-se intocável, nesse Esquema. É, pois, necessário demandar uma quarta perspectiva, de índole holística, que terá de prosseguir em busca ‗de antecedentes do eu e da consciência no passado evolutivo‘ (ibidem). Ao cartografar a quarta perspectiva (como se segue, na p.35), é mister reconhecer o pioneirismo de António Damásio nas hodiernas investigações neurobiológicas em torno da Mente consciente qua tal. ―Graças à quarta perspectiva, posso agora reformular algumas das declarações enunciadas mais atrás, de uma forma que tenha em conta os factos da biologia evolutiva e que inclua o cérebro: há milhões de anos que inúmeras criaturas têm mentes activas no cérebro, mas a consciência só teve início, em rigor, depois de esse cérebro ter desenvolvido um protagonista com a capacidade de testemunhar, e só depois de esse cérebro ter desenvolvido linguagem é que se tornou amplamente conhecido que as mentes de facto existem. A testemunha é o elemento adicional, que revela a presença de fenómenos cerebrais implícitos a que chamamos mentais. Entender a forma como o cérebro produz esse elemento adicional, o protagonista que transportamos connosco e ao qual chamamos o eu, é um objectivo importante da neurobiologia da consciência‖. Está tudo dito, em termos estruturais e paramétricos, em relação ao que pensamos no C.E.H.C.? Não. Há uma advertência crítica de tomo a fazer a esta Tese de A.D.. O protagonista/testemunha e a linguagem enquanto fenómeno essencial e intrinsecamente social. Okay. Os dois elementos emergentes, no Processus da Evolução, que vieram a caracterizar, em termos decisivos, a Mente (humana) consciente, enquanto tal. Ficar satisfeito com esta perspectiva, assim desenhada, não é, para nós, suficiente em termos evolucionários (posteriores), já do ponto de vista psico-biológico, já, sobremaneira, do ponto de vista societário e cultural. É aqui que brota a nossa advertência crítica a A.D.. O abismo entre o mundo da Interioridade da Consciência e o mundo da Exterioridade (patente nas obras da Civilização e da Cultura) pode, agora, ao nível da Antropogénese (fisiológica e societária), ser, de algum modo, colmatado. Por outras palavras, a Dinâmica tensional entre esses dois mundos tem de ser assegurada e promovida pelas obras da Cultura e da Civilização, contra e sobre a Natura humana primigénia. É por esta via, de resto, que, 295


em termos operacionais, se pode promover a ascensão da Espécie, do patamar do ‗Homo Sapiens tout court‘ para o patamar do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ (que se tornou capaz, mediante as funções da Consciência reflexiva e crítica, de integrar plenamente a Potestas no magma e na estrutura da Sociedade, afastando, definitivamente, o ideário antigo do ‗Poder separado‘). Ao reivindicar o protagonista/testemunha (na Mente consciente) e a linguagem, que é o fenómeno social/societário por antonomásia, A.D. não levou o processus funcional/operatório, até ao fim. Em termos evolutivos, esses dois elementos estruturais fazem parte integrante do Psico-Sócio-Ânthropos. Por que não integrou A.D., nas suas investigações, todos os elementos e problemas decorrentes deste horizonte crítico? Dir-se-ia, em resumo, que o Autor foi vítima, in actu exercito, do que havia denunciado, muito embora timidamente, in actu signato: o Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, que estabeleceu, na Cultura/Civilização do Ocidente, uma ‗Casa‘ de tal modo dogmaticamente acabada, em contraste com a Natureza, que a Evolução do Psico-Sócio-Ânthropos foi bloqueada por séculos e milénios e a Espécie humana parou no ‗Homo Sapiens tout court‘. Aí, a origem (recôndita e ignorada) de muitas hecatombes e catástrofes da Humanidade até ao presente. A.D sabe, perfeitamente, que o Cérebro humano (que dá origem à Mente consciente) é de raiz individual (residente no organismo vivo) e, ao mesmo tempo, psico-biologicamente comum à Espécie: é neurobiologicamente comum a todos os indivíduos da Espécie e individualmente singularizado no organismo que é habitado por ele (cf. op.cit., pp.365 e ss.). A propósito da hipótese da equivalência mente-cérebro (cf. ibi, pp.383 e ss.), o Autor admite, igualmente, a hipótese da equivalência entre padrões neurais e padrões mentais, estados cerebrais e estados mentais. Enquanto hipótese de trabalho laboratorial não é questão despicienda. Mas, antes e acima de tudo, é imperioso prestar atenção ao seguinte: a ideia dessas equivalências é procedente da cartilha tradicional, nas ciências e na Cultura do Ocidente, do Monismo Epistemológico, que se configurou em contraste absoluto com o célebre ‗Dois-em-Um‘ de Sócrates, e que levou ao Império ideológico-cultural da religião laica e profana do Objectivo-Objectualismo e à implicada teoria/doutrina societária do ‗Vigário‘ (que leva , como é sabido, à situação das ‗culpas sociais‘ que morrem sempre solteiras!...). Na última p. do livro de A.D. (p.386), deixámos esta nota de leitura: ‗O Objectivo-Objectualismo e o Monismo Epistémico, enquanto factores estruturantes a 296


operar na cartilha de um pressuposto Dualismo metafísico-ontológico (sempre presente na mundividência ideológica do Ocidente), continuam a estigmatizar, tanto o Autor, como os seus adversários‘. Como de um transcendente Púlpito uraniano, na contracapa do livro foi oferecida ao leitor esta trilha: ‗Como é que o cérebro constrói a mente? E como é que o cérebro torna essa mente consciente? Qual a estrutura necessária ao cérebro humano e qual a forma como tem de funcionar, para que surjam mentes conscientes?‘. Volens //Nollens, este é ainda um horizonte empedernidamente objectualista. Na verdade, falar da perspectiva extrospectiva, e falar da perspectiva introspectiva, tudo isto é, ainda, um discurso objectivo-objectualista.

• O fenómeno da Consciência (humana) enquanto fons et origo de uma Cultura psico-sócio-humana substantiva e autónoma.

Há, sem dúvida, dados irrecusáveis sobre a ‗natureza‘ da Consciência, tais como: um estado mental particular onde a Mente, a partir do organismo vivo, se sente e posiciona no centro de objectos e conhecimentos que a cercam, e a cujo estado mental acresce a noção do processo do ser. (Cf. ‗Expresso‘/Atual, 16.10.2010, pp.38 e ss.). Ao observá-la, A.D. apresenta a seguinte definição compósita da Consciência (op.cit., p.199): ―Consciência é um estado mental em que temos conhecimento da nossa própria existência e da existência daquilo que nos rodeia. A consciência é um estado mental — se não houver mente, não há consciência; a consciência é um estado mental particular, enriquecido por uma sensação do organismo específico onde a mente está a funcionar; e o estado mental inclui o conhecimento de que a dita existência ocupa uma certa situação, de que existem objectos e acontecimentos que a cercam. A consciência é um estado mental a que foi acrescentado o processo do ser‖. No parágrafo seguinte (p.200), criticamente interpretado, tanto se fala do processo da descoberta da consciência nos outros indivíduos, como da abertura para o labirinto da servidão e da escravatura às ordens dos primeiros leaders que apareçam, segundo o catecismo do Objectivo-Objectualismo, impessoal e neutro, onde os Poderes Estabelecidos ameaçam de morte toda a humana Cultura substantiva e autónoma. 297


―O estado mental consciente é vivido numa perspectiva própria, exclusiva de cada organismo, nunca sendo observável por mais ninguém. Essa experiência pertence a cada organismo e a nenhum outro. Contudo, embora essa experiência seja exclusivamente privada, isso não significa que não possamos adoptar, em relação a ela, uma perspectiva relativamente ‗objectiva‘. Por exemplo, adopto essa perspectiva na tentativa de descobrir uma base neural para o eu enquanto objecto, o eu material. Um eu material enriquecido é também capaz de levar conhecimento à mente. Por outras palavras, o eu enquanto objecto pode vir a funcionar como conhecedor‖. Até parece que A.D. não sabe o que são verbos reflexos. Um verbo, na forma reflexiva, não é, nem um verbo na forma activa, nem um verbo na forma passiva; é um verbo reflexo ou reflexivo. ‗Que a tua palavra seja: sim, sim; não, não. O que vem a mais procede do Mau‘ (Mt. 5,37). É desesperadamente patético o discurso de A.D., vitimado pelo Objectivo-Objectualismo, quando tenta provar ad absurdum e in actu signato, a existência da consciência, a partir de um ser não-humano e desprovido de linguagem, através do método da triangulação (ibi, p.216): ―A triangulação seria feita da seguinte forma: 1) se uma espécie tem comportamentos que são melhor explicados por um cérebro com processos mentais do que por um cérebro com meras disposições para a acção (como, por exemplo, os reflexos); e 2) se a espécie dispõe de um cérebro com todos os componentes descritos nos capítulos seguintes como sendo necessários para criar uma mente consciente nos seres humanos; 3) então, meu caro leitor, a espécie é consciente. Feitas as contas, estou pronto a aceitar qualquer manifestação de comportamento animal, que me faça pensar na presença de sentimentos, como um sinal de que a consciência não deve andar longe‖. A Consciência acompanha ‗naturalmente‘ (deveria acompanhar...) o processo cumulativo dos conhecimentos e o conjunto dos Saberes assimilados. É indiscutível — como reivindica A.D. (ibi, p.221) — que ‗o saber, por oposição ao ser e ao fazer, foi um avanço essencial‘ para a Espécie humana. ―O mecanismo de processamento de imagens pôde então ser orientado pela reflexão e usado para a antecipação eficaz de situações, antevisão de resultados possíveis, orientação do futuro possível e invenção de soluções de problemas‖ (idem, ibidem). Ora, como proclama o Autor, se a Espécie dispunha, agora, de sentimentos que podiam ser conhecidos, por que é que ela continuou (em termos de organização das Sociedades humanas) a funcionar nas mãos dos ‗Poderes separados‘, num contexto em que não puderam entrar em diálogo nem se298


quer ser dialectizados os Saberes, procedentes das Consciências dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos?!... Esta Questão decisiva tornou-se primacial e primordial desde que a Espécie Humana, no Processus evolutivo, ascendeu ao patamar do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘, em termos bio-antropológicos. O que, obviamente, seria de esperar, na pantalha do Futuro, era precisamente que a Humanidade tivesse evoluído nos horizontes da Cultura e da Organização das Sociedades humanas, enquanto tais. Ora, não foi nada disto que o Processo Civilizatório pariu, ao longo de séculos e milénios. Quanto a toda esta problemática, A.D. nada diz... Por outro lado, faz um certo alarde de optimismo ingénuo, ao defender a tese de que a Consciência vingou no Processus da Evolução: ―A forma mais directa de explicar o motivo pelo qual a consciência prevaleceu na evolução é dizer que contribuiu, de modo significativo, para a sobrevivência das espécies com ela equipadas. A consciência chegou, viu e venceu. Floresceu. Parece ter vindo para ficar‖ (ibi, p.329). Na história das Culturas e das Civilizações, a Consciência (individual-pessoal) nem sequer foi utilizada, em termos estruturadores: as Sociedades organizaram-se e (dis)-funcionaram sempre a partir dos Poderes (estabelecidos ou a estabelecer: ‗rei morto... rei posto‘). A servidão e a escravatura e as hierarquias rígidas foram a sua rançon. O que prevaleceu foi a teoria/doutrina do Rebanho humano!... Onde está a Cultura substantiva e autónoma, capaz de respeitar e ter em consideração os Sujeitos humanos, livres e responsáveis?!... A.D. (ao falar de natureza e cultura: ibi, pp.349-353), no que ele chama, adequadamente, a árvore da vida, parece ficar satisfeito com afirmações do tipo: ‗os organismos evoluem do mais simples para o mais complexo‘; ‗a consciência surgiu bastante tarde numa posição elevada da árvore‘ (p.349). Não havendo neurónios, o comportamento é limitado e a mente não é possível; não sendo esta possível, também não pode haver consciência (ibi, p.350). ―A mente e o comportamento dos macacos e dos seres humanos são tão diferentes devido ao número de elementos cerebrais e ao padrão organizador desses elementos‖ (p.351). Esqueceu-se de prestar a devida atenção às funções emergentes do protagonista/testemunha, no patamar da especiação que, da hominização, transporta a Espécie para o patamar da humanização?!... Seja evocado, aqui, o mesmo processus evolutivo para as funções sociais e culturais resultantes do aparecimento da Linguagem, — uma Linguagem de ‗duplo sistema de articulação‘.

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A.D. está plenamente consciente de que a Mente e a Vida se alteram com a chegada evolutiva do Eu, do proto-eu e do eu nuclear e do eu autobiográfico. Ele até sabe e afirma que a consciência humana trouxe consigo a possibilidade de questionar os actos da natureza (p.352); que o eu nuclear é marcado de independência e rebeldia, seja nas primitivas formas míticas, seja nos enunciados científicos (p.353). Ele até sabe e afirma que o Eu humano, logo que emergiu na Evolução, ‗começou a gerar a revolução biológica chamada cultura‘ (ibi, p.354). É aqui que a linguagem utilizada, em vez de esclarecer, gera ambiguidades, ofusca e confunde. Não há, efectivamente, uma revolução biológica chamada cultura... Cultura é uma nova realidade, diferente do real biológico!... Mais uma vez, os vícios e os erros do Monismo epistémico e do Objectivo-Objectualismo (tão entranhados na Cultura e na Civilização do Ocidente) fazem-se, aqui, sentir de modo draconeano. De resto, isto mesmo é configurado e reforçado no parágrafo onde se lê (p.360): ―O conceito de que existem duas classes amplas de homeostase, básica ou automatizada, e sociocultural ou refectiva, não nos deve levar a pensar que esta última é uma construção puramente ‗cultural‘, enquanto a primeira é ‗biológica‘. A biologia e a cultura são interactivas‖. — Quando as interacções de um dado genoma humano para um dado esquema cultural, e vice-versa, são vistas e apreciadas segundo a estafada grelha do objectivo-objectualismo e do monismo epistémico... a Cultura do Ocidente ainda não saiu do Labirinto, quer das predestinações/ /destinos, destiladas pelas religiões institucionalizadas, quer dos determinismos prescritos pelas ciências (positivas e experimentais). No Processo da Evolução bio-sociocultural (utilizando o esquema de pensamento do Autor...) da Espécie, A.D. fez menção da Arte, que prevaleceu na evolução, por ter contribuído para a sobrevivência, na medida em que promoveu e facilitou o bem-estar dos indivíduos (cf. ibi,, pp.362-363). Evocou Chauvet e Lescaux como exemplos; poderia ainda pensar-se em Altamira. Entende ele que a Arte até poderia ter prevalecido, muito simplesmente devido ao seu elevado valor terapêutico. Afinal, nesta matéria, Freud estava certo ao considerar que as artes, em geral, até poderão funcionar como antídoto para as neuroses, criadas pelas religiões institucionalizadas. Mas, muito sintomaticamente, A.D. nada diz, no processo da Evolução da Espécie, sobre as religiões institucionalizadas (seus efeitos e consequências... sempre, quanto a nós, mais negativos que positivos.). Dir-se-ia que este é um horizonte que permanece tabú na Cultura Ocidental. 300


Onde o Autor parece abrir caminho a um horizonte de Futuro diferente e positivo, é quando (no final do cap. 11 sobre Viver com a consciência) ele assevera apostando em possibilidades (p.363): ―E qual será a derradeira oferenda da consciência à Humanidade? Talvez a capacidade de orientar o futuro nos mares da nossa imaginação, de levar a nau do eu a um porto seguro e produtivo. Esta suprema dádiva depende, mais uma vez, da intersecção do eu e da memória. A memória, temperada com o sentimento pessoal, é o que permite aos seres humanos imaginar tanto o bem-estar individual como o bem-estar de toda uma sociedade, e inventar formas e meios de alcançar e ampliar esse bem-estar‖. Dir-se-ia, em boa verdade, que se trata, aqui, de edificar uma vera e autêntica Sociedade Nova digna dos Humanos. Se A.D. não continuasse amarrado ao Monismo epistémico e ao Objectivo-Objectualismo... Mas, se o Autor aceitou, plenamente, in actu exercito e in actu signato (pela negativa) a redução habitual do fenómeno da Consciência a um Enigma sem consistência, ao longo da história das Culturas e das Civilizações, como se poderá, agora, esperar o Milagre da criação de uma ‗nova conspersio‘?!... A falta de consequência e as contradições do Autor são flagrantes. O curioso é que A.D. reconhece o que podemos chamar a existência de um timoneiro nos nossos estados mentais conscientes (ibi, p.215): ―Aventuro-me a considerar, no entanto, que se o processo do eu fosse destruído e desaparecesse por completo, a mente perderia a sua orientação, a capacidade de juntar os seus elementos. Os nossos pensamentos andariam à deriva, sem um dono que os reclamasse. A nossa eficácia perante o mundo real reduzir-se-ia a pouco ou nada, e deixaríamos de fazer sentido para quem nos observa‖. A.D. que, ao proceder a observações comportamentais, é tão perspicaz e perito no papel de saber pôr-se na pele dos outros, — em termos de panorama sistémico, o pé não lhe chega à pegada. Desejaríamos, pelo menos, que ele fosse capaz de recuperar a textura consistente do Eu/Sujeito perante os Objectos do conhecimento. Já tínhamos este esquema presente, quando evocámos, atrás, a parábola da triangulação (p.216 do livro de A.D.), onde o autor procura provar a existência da consciência a partir de um ser nãohumano. O erro, aí cometido, é simples e patente: o caminho da indagação é percorrido, abstraindo dos dois factores, que são essenciais e decisivos na consciência humana (e que ele próprio reconhece em outros lugares): o protagonista/testemunha e a linguagem com o seu carácter eminentemente social/societário e percepcionável como 301


um dado exterior. Temos de o declarar: a escrita de A.D. é, ainda, a de um Autor moderno, onde a perspectiva holística e globalizada faz muito pouca farinha. O que é muito estranho no seu templo sobre a fenomenologia da Consciência, é que A.D. abre portas e janelas para a crítica do que nós chamamos, no C.E.H.C., o ‗mundo ausente e ignorado da consciência‘, designadamente a questão do ‗homúnculo', que os mais sagazes dos modernos já foram capazes de profligar. Não esquecer que este Problema (mal resolvido...) tem efeitos e consequências directos na organização das Sociedades humanas, pretendidamente democráticas. (Por ex., sobre os processos de avaliação de professores, video-vigilância, etc....). Não esquecer que é, ainda, a doutrina tradicional/corrente do ‗homúnculo‘ que legitima toda a sorte de avaliações de profissionais e de supervisão, por parte das Autoridades e dos Poderes estabelecidos. Escreveu, aí (pp.251-252) A.D.: ―O conceito tradicional de homúnculo corresponde ao homenzinho sentado no interior do cérebro, omnisciente e sábio, capaz de responder a perguntas sobre o que se está a passar na mente e de apresentar interpretações para os acontecimentos. O bem conhecido problema com o humúnculo prende-se com o círculo vicioso que cria. O homemzinho cujo conhecimento nos tornaria conscientes precisaria de outro homenzinho no seu interior, capaz de lhe assegurar o conhecimento necessário, e assim por diante, até ao infinito. Isto não funciona. [Não é este o Imaginário do mundo religioso, em que as populações foram educadas e instruídas?!...]. O conhecimento que torna a nossa mente consciente tem de ser edificado de forma ascendente [e por processos indutivos e experienciais.]. Nada poderia estar mais afastado do conceito de proto-eu aqui apresentado do que a ideia de um homúnculo. O proto-eu é uma plataforma razoavelmente estável e uma fonte de continuidade‖. Proto-eu e eu nuclear constituem, segundo A.D., as plataformas que dão origem à consciência e à subjectividade. ―Em resumo, o proto-eu precisa de estar em pleno funcionamento — suficientemente desperto para produzir o sentimento primordial de existência que nasce do seu diálogo com o corpo. Depois, o processamento do objecto tem de modificar os vários aspectos do proto-eu, e estes acontecimentos têm de estar ligados entre si‖ (ibi, p.259). Por seu turno, ―o estado do eu nuclear é um compósito anatómico e funcional. Os principais resultados funcionais são os sentimentos de conhecimento e o realce do objecto, que desencadeou originalmente esses sentimentos. Outros componentes importantes são a perspectiva, a sensação de posse e a 302


sensação relativa à capacidade de agir‖ (idem, ibi, p.258). Afinal, o painel que dá conta, experiencialmente, da emergência de uma Mente que é capaz, ao mesmo tempo (psíquico) de conhecer um dado objecto e dar disso testemunho.

• A Consciência, eclipsada ou ignorada, como Fenómeno nas diferentes Culturas humanas e no Processo histórico da Civilização

„ERA UMA VEZ A CONSCIÊNCIA‟: é o título do texto de Ana Cristina Leonardo, desdobrado nos seguintes tópicos: O que é a consciência? Para que serve? Como se produz na mente? Serão os humanos os únicos a possuí-la? Perguntas a que António Damásio tenta responder no seu novo livro. (Cf. ‗Expresso‘/Atual, 16.10. 2010, pp.38-40). Uma realidade assustadoramente verdadeira e tão ampla como o Universo, que deveria constituir a ‗fons et origo‘ de todo o Mundo construído e das Sociedades, das Culturas e dos processos civilizatórios, referenciados à Espécie humana, enquanto tal, é, sintomaticamente, tratada na linguagem e no discurso segundo os estereotipos tradicionais do mundo mágico e mitológico. Pecha típica do discurso chamativo e superficial dos jornalistas?... Não. O discurso esmeradamente científico de A.D. também tem as suas claudicações, como já referimos. Vemos os objectos e as coisas arrolados, amontoados ou distribuídos nos espaços e escaparates de um Grande Armazém, — industriados que fomos na cartilha ideológica do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo. Afinal, Edmund Husserl (o inaugurador da Escola da Fenomenologia moderna), nas suas ‗Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo‘ (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994), também não fez muito mais e melhor no concernente aos processos críticos das Culturas e das Civilizações, que, na Pré-História e na História da Humanidade até ao presente, foram erguidas pela Espécie humana e por Grupos e Sociedades ditos humanos. De resto, E.H. não chegou a sair da nau ideológica, tradicional na Modernidade ocidental, do Mecanicismo carte303


siano. Sempre o vezo do Especialismo moderno, em nome da gramática das ciências positivas e experimentais. Sempre a monomania (ou paranóia?...) do Objectivo-Objectualismo, enquadrado, para cúmulo, dentro da cartilha metodológica do Monismo Epistémico. Onde pára a doutrina do ‗Dois-em-Um‘ e o Diálogo cívico e maiêutico de Sócrates?! Onde pára a Filosofia do Hilemorfismo de Aristóteles, que nesta matéria básica da Ontologia ensinou doutrina certa e fecunda, ao contrário da doutrina expendida na ‗Política‘, onde a emancipação/libertação dos escravos é resolvida mediante a simples emergência/invenção de novas Tecnologias?!... Por termos escamoteado a Realidade e as fontes clássicas helénicas da Filosofia e dos Saberes científicos, embarcámos facilmente na Nau do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo (que ainda hoje faz viagem...). E a Cultura do Ocidente (cristão/imperalista) fê-lo e aprofundou o processo a tal ponto, que postergou e votou ao ostracismo toda a mundividência crítica dos Gnósticos judeo-cristãos primevos e do Jesuanismo, no que tange, precisamente, o chamado mundo interior da Consciência, que eles encaravam como a Alavanca de Arquimedes de Culturas substantivas e autónomas e de Sociedades verdadeiramente humanas. Eis por que obras críticas como ‗From PLATO to NATO‘, de David Gress (The Free Press, New York, 1998, 1ª ed. de 1953), ainda hoje são pertinentes, úteis e fecundas em todos os azimutes. O Fenómeno da Consciência e o Mundo humano da Interioridade foram eclipsados e ignorados, porque o que, afinal, tem prevalecido, ao longo da História das Sociedades, é a sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. Passou-se do ‗Ancien Régime‘ para o famigerado ‗Nouveau Régime‘... e as hierarquias rígidas mantiveram-se, bem como os movimentos e as energias e os comandos sempre decorrentes da Potestas d’abord. Instauraram-se regimes democráticos para, supostamente, pôr termo às servidões e à escravatura... Afinal, servidão e escravatura apenas se metamorfosearam. Os regimes e as ideologias do IMPÉRIO prosseguiram (sempre apoiados nas Obras Exteriores). A Consciência e o ‗mundo interior‘ não contam para nada!... Por isso, todos os regimes (ditos) democráticos soam a falso... E a pretensa libertação, pelos meios tecnológicos (recomendada pelo Estagirita), também ela não passa de uma pseudo-solução de pechisbeque.

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Quando é que vamos ter Culturas humanas substantivas e autónomas e Sociedades humanas verdadeiramente Democráticas? Quando a CONSCIÊNCIA humana for um Facto social importante, essencial, decisivo!... Monismo Epistémico (ancorado na gramática das ciências físico-naturais como único diapasão da Verdade e com a implicada redução epistémica das ciências psico-sociais e/ou humanas à gramática das primeiras) + Objectivo-Objectualismo (metodologia que apostou na Verdade impessoal e neutra, desvinculada dos Sujeitos cognoscentes, elidiu de supetão a presença de quaisquer revérberos do Farol da Consciência, quanto mais a sua presença como testis). >

Foi, de facto, o Aparelho/Dis-

positivo metodológico e gnóseo-epistemológico, caracterizado com estes dois Factores estruturais de uma continuada Gestão activa dos recursos humanos e do mundo, que veio a criar o Edifício ideológico-cultural e societário, cujos efeitos e consequências foram: em primeiro lugar, o eclipse e a ignorância sistémica do fenómeno da Consciência humana, ao longo de séculos e milénios, na história das Culturas e das Civilizações ditas humanas; em segundo lugar, a construção, no espaldar da Cadeira, do molde do Dualismo metafísico-ontológico (de Platão e Paulo), capaz de tudo explicar a partir de predestinações e determinismos de cima para baixo (contra o vero motus evolutivo do fenómeno Vida); em terceiro lugar, um sistema de organização das Sociedades ditas humanas sempre a partir da Potestas-Dominação d’abord, o que, por sua vez, conduz à doutrina do Vigário, à implacável Teoria do Rebanho humano. Nesta galáxia, Cultura autónoma e substantiva é coisa que não existe. O ‗Nouveau Régime‘ continuou a repetir os esquemas estruturais e os clichés ideológicos do ‗Ancien Régime‘. Os regimes ditos democráticos, nascidos das Revoluções modernas, não passaram de miragens e ilusões. A vera e autêntica Democracia (oriunda das Consciências dos Sujeitos livres e responsáveis, que são os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos) deveria ter posto termo, pelo menos, àquele axioma tradicional que diz: ‗Si vis pacem para bellum‘: Se pretendes a paz prepara-te para a guerra!... Em resumo: as Promessas dos modernos resultaram defraudadas. Afinal, continua tudo a girar à revelia das expectativas anunciadas pela Modernidade. Até a historicista ‗teoria do eterno retorno‘ à F. Nietzsche prossegue fazendo o seu caminho, — mais uma vez porque não foi alterado o molde do Dualismo metafísico-ontológico.

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A própria jornalista, no texto do ‗Expresso‘/Atual acima referenciado (p.38), continua amarrada à grelha do Monismo epistémico e do Objectivo-Objectualismo, como acontecera a A.D. no seu ‗O Livro da Consciência‘. Ficou feliz e encantada, ao citar o Autor (sem a referência do ‗locus‘...) como segue: ―Graças ao facto de o nosso cérebro ter conseguido combinar a nova orientação, tornada possível pela consciência, com a antiga que consistia numa regulação inconsciente e automática, os processos cerebrais não-conscientes estão à altura das tarefas, que terão de executar em nome das decisões conscientes‖. Em suma, está alinhada pela preocupação cismática de elidir e anular, o mais possível, a distinção entre o inconsciente e o consciente, como se isto redundasse num qualquer benefício para a Espécie ‗Sapiens//Sapiens‘. E, teimosamente, continua citando A.D.: ―Os processos não-conscientes tornaram-se num meio adequado e conveniente, para levar a cabo o comportamento e dar à consciência mais tempo para análise das situações e planeamento do futuro‖. Tudo isto... para prosseguir em que Sociedade?! A dos indivíduos metidos (individualisticamente) cada um no seu escafandro (à boa maneira do catecismo de Max Stirner, autor do famoso livro ‗Der Einzige und sein Eigentum‘ = O único e a sua propriedade), com todos os espaços e prateleiras do Armazém bem arrumados dentro do odre do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo. Nesta problemática da distinção entre o inconsciente e o consciente (oriunda da Tradição psicológica no Ocidente, e confirmada pela Psicanálise), o mais importante que é preciso saber consiste no seguinte: a) ainda bem que os humanos possuem essa maravilhosa e fecunda capacidade de esquecer: em termos gerais, o esquecimento é tão importante como a lembrança ou recordação; b) todas as tentativas de elisão e anulação da distinção entre consciente e inconsciente só redundam em benefício do Objectivo-Objectualismo e dos pseudo-determinismos psico-sócio-históricos. A jornalista evoca (ibidem) uma tese que o Autor apresenta logo no início do livro: ―De entre as ideias apresentadas neste livro, nenhuma é mais importante do que a noção de que o corpo é o alicerce da mente consciente‖. Sempre dentro do horizonte fechado do Objectivo-Objectualismo, A.C.L. (como de resto, A.D.) faz a apologia desta linha de pensamento nestes termos (ibidem): ―O neurologista sublinha, assim, uma concepção já patente em obras mais antigas, a saber, a da inscrição inescapável do mental no corpóreo (seja no que diz respeito aos sentimentos, à razão ou à moral). A unicidade corpo/mente é indiscutível e, além disso, explicativa: Espinosa viu mais longe que Descartes‖. 306


‗Beati loro‘ (= compinchas felizes)!... Diria o meu velho Amigo italiano, Renato Girardi. A doutrina enunciada por A.D. e A.C.L. é, sem dúvida, uma expressão lídima e directa do Hilemorfismo aristotélico. Mas, quando toda a mundividência (ideológica) da Cultura e da Civilização, bem como das práticas científicas e da organização das Sociedades, no Ocidente e no Mundo, continua a ser a que é moldada no Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, — então, qualquer reivindicação das doutrinas hilemórficas soa a falsidade e a frustração... uma teoria bizantina, sem consequências!... Farsescamente, na história, até se poderia entender o empreendimento do hilemorfismo de A.D. como uma espécie de ‗2ª edição‘ do Tomismo, que, precisamente, por causa da sua parcial dimensão hilemórfica, esteve proibido de ser ensinado na Sorbonne, durante ca. de 50 anos após a morte de Tomás de Aquino (1274). Mas, felizmente, os Tempos de hoje são diferentes. O ‗aguilhão‘ da suposta heresia já não molesta tanto a sensibilidade dos títeres do pensamento oficial e dominante. Se já era de algum modo frustrante a Questão do Que Fazer a partir da existência da Consciência humana, no livro citado de A.D., é muito mais decepcionante o que nos é dado a ler neste abrégé de A.C.L.. ―Mas o que é, afinal, a consciência? O livro avança uma definição pela positiva e pela negativa. Pela positiva, a consciência é a característica da mente, que possibilita que nos percebamos a nós próprios como um eu distinto do mundo. [...]. Pela negativa, a consciência não se confunde com processos inconscientes‖ (ibi, p.40). Mas não se pretendeu (no tópico inicial do resumo da jornalista), aliás na perspectiva de A.D., mostrar e demonstrar que a gramática dos actos conscientes não era, por causa da presença da consciência, superior à gramática dos actos inconscientes?!... E, na definição pela positiva, cumpre-nos perguntar à puridade, se a problemática da Consciência fica esgotada com a cândida e elementar afirmação (teórica...) da subjectividade do Eu enquanto ‗coisa‘ (?!) distinta do mundo!... Para que tem servido a Consciência, ao longo da História das Sociedades, das Culturas e das Civilizações?!... Eclipsada e ignorada (não esquecer)... A triste e trágica realidade é que a Espécie humana continua vitimada por todo um Sistema de reflexos condicionados à Ivan P. Pavlov, os quais exprimem, com muita aproximação, o processus civilizatório, tal como a História o conhece e continua a representar. A Educação e a Instrução têm-nos feito e moldado como se nós nos encontrássemos sempre numa via de sentido único. Ora, os acontecimentos, as acções, as 307


decisões individuais ou as deliberações colectivas encerram, sempre, pelo menos, dois sentidos, diferentes ou mesmo opostos. Não é verdade que até há muita gente vítima dos adeleiros, com muita frequência?!... Eis por que mentalidades unicórnias (conformistas e uniformistas), ideologias imperialistas, segundo a estafada cartilha do primado do Poder e da Dominação sobre os Saberes (dos Sujeitos humanos, livres e responsáveis), regimes (ditos) democráticos em permanente e estrutural curto-circuito, desencadeado pelos ditatoriais mercados financeiros, manipulados pelas Agências de Rating, a sempiterna Teoria do Rebanho humano, continuam, afinal, a ser os frutos podres produzidos pela Cultura/Civilização do Ocidente. Até quando?!...

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É A CONSCIÊNCIA LIVRE E CRÍTICA... QUE NOS FAZ HUMANOS!...

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Para que serviria a Consciência (um saber que, na prosopopeia gramatical, sabe que sabe!...), em termos do Processo da Evolução, na sua complexidade e integralidade, a Consciência num organismo vivo, que não pudesse ser livre nem exercer expressamente a crítica perante outros organismos vivos (dotados de Liberdade e de capacidade crítica)?! A gramática da Evolução chamaria a um tal ‗monstro‘ um absurdo ontológico. Afinal, é essa a regra (não a excepção...) na organização das Sociedades ditas humanas, segundo a cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘ e o catecismo tradicional dos ‗Poderes Separados‘. Sobre a Mente, é preciso saber (no Processo Evolutivo e, depois, no patamar antropogenético da Evolução, em termos psico-sócio-culturais) que ela se regula e organiza no processo cultural/civilizacional da Autonomização crescente e do Diálogo crítico com os outros semelhantes da mesma Espécie, a começar pelos indivíduos humanos mais próximos e chegados e a acabar nos mais longínquos e estranhos, que os Almanaques correntes nos habituaram a chamar ‗estrangeiros‘. É justamente o que nos ensina Augusto Cury in ‗Mentes Brilhantes, Mentes Treinadas‘, Livros d‘Hoje, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2011, pp.13-20; e in ‗O Mestre dos Mestres‘ (Academia de Inteligência, São Paulo, 2000). Na selecção crítico-cultural do material disponível, é preciso ter a coragem de joeirar, ou mesmo, pôr de parte textos do tipo ‗Neuroteologia: O cérebro à procura de Deus‘ (de M. Ribeiro Fernandes, Doutor em Psicologia Clínica e Teologia, in ‗Expresso do Ave‘, 26.1.2011, p.15), os quais se mostram candidamente preocupados em discernir e identificar o verme da dependência e da servidão no cérebro humano. Nesta vertente da ‗Neuroteologia‘, é preciso estar criticamente atento a dois Erros-categoria, que surgem na Metodologia correntemente adoptada: A) o indiscutível Monismo Epistémico, com que se tropeça, tanto no discurso corrente como no discurso académico das diferentes especialidades científicas; B) a frequente e sistémica mistura e confusão de Natureza e Cultura, a que se habituou a cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘, na organização das Sociedades ditas humanas. Trata-se, aí, efectivamente, de duas realidades que sempre se devem contrapor reciprocamente, enquanto realidades qualitativamente distintas. A tese da distinção entre estas duas realidades procede, em termos funcionais e operatórios, do próprio imperativo categórico da Consciência, que é o de testemunhar. Veja-se toda a gramática das analogias deste fenómeno na entrevista de Primo Levi: ‗O Dever de Memória‘ (editado por Cotovia, Lisboa, 2011; vd. et. ‗Expresso‘/ 309


/Atual, 29.1.2011, pp.28-30). Mas a Memória (enquanto tal) não é a mesma coisa que a Consciência livre, reflexiva e crítica. É, pois, no horizonte crítico a partir deste pressuposto incontornável, que nos podemos dar conta de três Factos ântropo-societários, que não se podem elidir nem iludir: 1º — As consciências dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos foram esmagadas e anuladas. 2º — Mesmo quando o Dever de Memória é cumprido e praticado, ele acaba por não produzir efeitos no Processo sócio-histórico. 3º — Como as Consciências são tradicionalmente eliminadas ou eclipsadas no processo civilizatório, nunca se constitui uma narrativa histórica, onde tenham assento, de pleno direito, as prosopopeias das consciências vivas e reais dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Bernardo Soares (o meio-heterónimo de F. Pessoa, Autor do ‗Livro do Desassossego‘, que é um livro de índole pós-modernista e do qual E. Lourenço pôs a hipótese de ser um livro suicida) resumiu magnificamente toda esta Tragédia/Comédia na frase apotegmática: ‗o criador do espelho [na senda do mito helénico de Narciso] envenenou a alma humana‘. Numa formulação antitética, já ninguém se dispunha a escutar a sério (como fez Sócrates) o oráculo de Delfos: ‗Conhece-te a ti mesmo‘, ou o aforismo de Lao-Tsé: ‗Quem se conhece a si mesmo é sábio‘!... Estava tudo objectivo-objectualizado, a partir dos egoísmos narcisistas dos Indivíduos, que haviam votado a consciência pessoal ao ostracismo. Foi o que, nas estruturas ideológico-culturais, se passou, na montanha do Sinai, com a adoração do Bezerro d‘Ouro, tolerada por Aarão, em substituição de Iahwéh-Deus de Israel, que Moisés havia revelado ao Povo de Israel, na sua fuga do Egipto dos Faraós (Êxodo, 32, 1-6). Esse Deus, revelado a Moisés na Sarça Ardente sob a fórmula ‗Eu sou Aquele que é‘ (ibi, 3,14) já havia sido entendido, (por volta de 1200 a.E.C.), em termos ontológicos objectivo-objectualistas. Platão (427-327 a.E.C.), na Cultura grega, com a sua Teoria das Ideias puras e perfeitas hipostasiadas no seu hiperurânio, acaba por chancelar todo esse horizonte ontológico objectivo-objectualista, traindo absolutamente o seu Mestre Sócrates. A idolatria do Sinai, condenada pela Bíblia através de Moisés, foi de algum modo prosseguida, em esquema de metamorfose, nas Ideias puras e perfeitas de Platão. O diálogo socrático enquanto meio para formar os conceitos e o próprio hilemorfismo aristotélico viram-se esconjurados e renegados, ao longo de toda a história da Cultura/Civilização do Ocidente. A idolatria havia-se generalizado estrutural-

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mente, a tal ponto que o senso comum, incapaz de aceder a patamares criticistas, se tornou impotente para a esconjurar e combater. Os pressupostos e as consequências deste Establishment ideológico-cultural são óbvios ou, pelo menos, intuíveis: O que predomina, absolutamente, é a Potestas-Dominação d’abord. O processo sócio-histórico emerge, inexoravelmente, circunscrito à estrutura do ‗eterno retorno‘ nietzscheano. Neste horizonte, a História nunca vai ensinar Lições para ajudar o Psico-Sócio-Ânthropos a mudar e a evoluir, a partir da Interioridade da Fenomenologia da Consciência enquanto tal. O Progresso moderno, que o Iluminismo do séc. XVIII tanto enalteceu como bandeira de um Futuro radioso para a Humanidade, revelou-se, contemporaneamente, como uma fantasmagoria falaciosa: as ‗grandes metanarrativas‘, construídas sobre o pressuposto da ‗perfectibilidade‘ contínua dos Indivíduos e das Sociedades chegaram ao fim (J.-F. Lyotard). O próprio Karl Marx e o Marxismo (vítimas de uma perspectiva objectivo-objectualista e epistemologicamente monística da História), acabaram por assumir e defender axiomas incompletos e falaciosos tais como ‗a religião é o ópio do povo‘ e o consenso generalizado, na Cultura do Ocidente, de que ‗o judeu é um usurário que só pensa no dinheiro‘... Em suma, não se deu conta do que estava realmente em causa, na sua raiz e origem: a questão da sempiterna Potestas d‘abord. Os efeitos fizeram-se logo sentir... Ora, a religião é, de facto, o ópio do povo, quando se trata da religião institucionalizada, que submete e exerce a dominação e o império sobre os seus fiéis. A famigerada ‗Questão Judaica‘, bem poderia Marx e o Marxismo tê-la resolvido e superado (em demanda da vera ‗Questão Humana‘!), se o Marxismo não constituísse a última das metanarrativas de uma História balizada pelo catecismo do Objectivo-Objectualismo e pela cartilha do Monismo Epistemológico. • A.D. não demandou o „Sapiens//Sapiens‟ da Antropogénese ‗O Livro da Consciência‘ (A Construção do Cérebro Consciente) de António Damásio, (de que temos vindo a falar nesta obra), é, sem dúvida, para o C.E.H.C., um livro ímpar, o melhor (de nosso conhecimento) que surgiu no Mercado, para além de todos os livros antigos, modernos e contemporâneos, envolvidos nesta matéria... Mas é, ainda, um livro estigmatizado pelos vícios da gramática contraditoriamente analítica (sem as necessárias e revolucionárias sínteses) da Modernidade. O Avião foi bem preparado e construído na Oficina ou no Laboratório, mas ele não descola nem 311


voa, não tem força motriz para mudar a Cultura e a Civilização de fond en comble!... (Como se impõe.). Acompanhamos o Autor a 70 ou 80%, nas suas observações e percepções críticas. Contudo, há, aí, duas dimensões em que não podemos alinhar com A.D.. Duas dimensões (configuradas ao abrigo do horizonte crítico do C.E.H.C.), que podem resumir as nossas críticas e reservas à obra magistral de A.D.: A) Não mexeu com os Poderes societariamente estabelecidos (e os seus trends, tomados como ‗naturais‘); e isto mesmo deveria ser feito, a partir da gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. Eis por que o Autor continua (porventura sem disso dar conta...) a dar corda à teoria/doutrina dos ‗Poderes Separados‘ metafisicamente, adoptada por todas as religiões institucionalizadas uranianas e respectivas civilizações!... Por exemplo (e já na área dos efeitos e consequências da arquitectura erguida): no concernente às chamadas emoções sociais, o contraste entre a admiração e a compaixão é enaltecido e sobrepujado, já a partir da ancestralidade anatómico-fisiológica do cérebro humano, através da díade funções físicas//funções psíquicas, aceitando, residualmente, todas as consequências do Dualismo metafísico-ontológico (vd. op.cit., pp.162-165). (Ao festejar, com as populações na rua, o assassinato de Ben Laden por agentes do Exército norte-americano (2.5.2011), Barack Obama mostrou-se igual a G.W. Bush: misturou e confundiu a Justiça com a Vingança. O que prevaleceu foi a cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘). B) Ao admitir e assumir (na sua Investigação) a perspectiva evolucionária e o Evolucionismo global, em pano de fundo, dir-se-ia que o Autor ficou a meio do Processus da Evolução, e o próprio ‗valor biológico‘ (de que falou expressamente) não o confrontou, no segmento evolutivo do ‗phylum‘ dos hominídeos, desde há 6 a 8 milhões de anos. Por outras palavras, não fala, sequer, do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ (equacionado com o ‗Homem de Cro-Magnon‘), em confronto com o ‗Homo Sapiens tout court‘ (equacionado, ainda, com o ‗Homem de Neanderthal‘). Muito menos se fez qualquer alusão à especiação evolutiva, no processus da Antropogénese, concretizada pelo primeiro, em contraste com o segundo. O ‗Sapiens//Sapiens‘ suplantou, definitivamente, o ‗Sapiens tout court‘, na evolução da Espécie humana qua tal. É óbvio que este Datum (procedente das ciências biológicas e da Evolução) tem de ser considerado importante e decisivo, no C.E.H.C.: é que foi no patamar evolutivo do ‗Sapiens tout court‘, que (desde o fim da Era da Gilania, por volta de 3.500 a.E.C.) todas as grandes civilizações e culturas, antigas, modernas e contemporâneas, 312


até ao presente, constituíram as suas bases de evolução e desenvolvimento. Resultado patente e patético: a própria evolução biológica da Espécie, a Antropogénese foi estancada e atraiçoada, no seu processus evolutivo. A Evolução in melius da Espécie ‗Sapiens//Sapiens‘ foi obstruída e impedida: a emergência do Fenómeno da Consciência (sempre com a sua raiz e origem nos Indivíduos-Pessoas singulares e concretos) e seus desenvolvimentos, em demanda da perfeição, foram pura e simplesmente cancelados, por obra e graça (!...) dos Poderes Estabelecidos (hierárquicos e monárquicos, hierárquicos e republicanos: arroz sem salsa... arroz com salsa...). O primeiro imperativo categórico de qualquer Indivíduo-Pessoa/Cidadão é o de evitar e impedir que os Poderes Estabelecidos (sejam eles sacros ou profanos, religiosos ou políticos) entrem a praticar a usura e o saque habituais de, precisamente em nome da Divindade (externalizada e transcendente), a priori reconhecida como tal, submeterem e explorarem os indivíduos (comuns...) como súbditos (feitos cabeças de gado de um Rebanho humano...), — e tudo isso pacificamente organizado, de modo aparente, uma vez que, na aparência dos factos, os subordinados não puseram objecções nem obstáculos aos manda-chuvas e caciques, viciados em dar ordens aos outros e dominar everywhere. É assim que funciona a moderna cartilha da democracia representativa/indirecta, burguesa, com eleições de tempos a tempos, para, como dizem, dar a Voz ao Povo, que nos ‗dias de semana‘ não passa de capacho para limpar as solas dos sapatos. Na verdade, uma filosofia crítica, devidamente esclarecida, sobre a Divindade mostra-nos uma realidade do tipo-padrão da deusa pagã Janus: apresenta-se, sempre, inevitavelmente, com duas faces, a de dentro e a de fora... Ora, o que é preciso é que todos os Indivíduos sejam suficientemente sábios, para dispensarem templos e liturgias, bem como religiões institucionalizadas — a tal Duplo (que faz humanos duplicados...) e impede, sistemicamente, os Seres humanos, enquanto tais, de viverem plenamente na Sociedade que escolheram, depois de, com maioridade, terem largado a pele da herdada. Convenhamos. António Damásio tem uma mundividência científica inatacável, nas esferas específicas da Neurobiologia, da Biologia e das ciências da Evolução, — apreciadas estas segundo a grelha tradicional do Monismo Epistémico (= o que, nos seus exercícios, pratica a gramática exclusiva das ciências físico-naturais). No concernente às ciências evolutivas, que podemos agrupar sob o termo mais amplo da Antropogénese e do (aí implicado) processo civilizatório/cultural, a conclusão com313


provada, que ele nos deixa, é a de que: a) tudo isso pode muito bem ser negligenciado ou ignorado; b) segundo a pauta e o estatuto da Modernidade, isso, pura e simplesmente, não caberia dentro dos quadrantes da investigação em biologia e, por isso, a vida psíquica (tensional...) da Consciência não pode (nem deve) aí ser vista nem achada; c) a Ordem estabelecida e os Poderes Estabelecidos não constituem uma realidade que, aqui, se possa e deva trazer à colação. Desta sorte — há que reconhecê-lo — a Lectio de A.D. (nesta sua obra, apesar de tudo pioneira e admirável...) foi uma lição a meias, perfeitamente enquadrada e enquadrável na Ordem-Desordem Estabelecida (E. Mounier). Por isso mesmo, ele até pode considerar, candidamente, que a Divindade constituiu a grande invenção da Humanidade... que veio a proporcionar (dizemos agora nós), aos mais fortes e espertos, a dominação e o exercício do Poder sobre os restantes, em nome de Deus. Por que não discutiu ele a índole e a natureza matricial dessa Divindade?!... Preferiu continuar a proceder, nestas matérias, como os restantes académicos, sempre ao serviço dos Poderes Estabelecidos, feitos ‗chiens de garde‘. Nesta linha, ele acabou por sancionar, implicitamente, a sempiterna cartilha do Dulismo metafísico-ontológico e as religiões institucionalizadas, arquitectadas sob a sua bandeira, bem como a pressuposta gramática de funcionamento das sociedades humanas, que dá pelo nome do ‗Homo Sapiens tout court‘, em lugar da gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. • Recuperando as Lições do Hilemorfismo Aristotélico

Painel esboçado da Realidade Humana enquanto tal: no horizonte do Hilemorfismo aristotélico (união indissolúvel de corpo e mente = organismo vivo e consciente); e não no horizonte do Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, sob o qual ainda (dis)funciona e sobrevive a Cultura/Civilização do Ocidente, e, por carambola grotesca, de todo o Mundo. Assim, enquadrados inexoravelmente na cadeia dos eventos sobre-comandados pela Cultura do Poder-Dominação d’abord, os grandes acontecimentos revolucionários ocorrem na primeira vez como tragédia, e, na segunda, como farsa!... O ideário do vero e autêntico Socialismo ainda não estava suficientemente amadurecido na época da Revolução Francesa de 1789-99. Em contrapartida, já o estava suficientemente, na época da Revolução da ‗Primavera dos

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Povos‘, em 1848, e aquando da instauração da Comuna de Paris, protagonizada pela população de Paris, em 18 de Março de 1871. Esmagadas as primeiras pelas armas dos Poderes Estabelecidos, as posteriores segundas edições das revoluções socialistas redundaram, todas, em processos de farsa... Era requerida uma gramática nova, polarizada nos Sujeitos humanos livres e responsáveis; contudo, o que prosseguiu foi a cartilha do Poder-Condomínio, centrado no catecismo da religião do Objectivo-Objectualismo. E, segundo este catecismo, não há Socialismo (como a história tem demonstrado) que não tenha de ser, inevitavelmente, construído a partir da ditadura do ‗plano central‘, desde logo em todas as áreas económico-financeiras e, por carambola, nas áreas político-culturais, sob o carmartelo do inexorável centralismo de Estado. É que não há vero e autêntico Socialismo, enquanto a Democracia (ancorada nos Sujeitos humanos livres e responsáveis) não operar, aí, como ideia revolucionária. 1848: a ‗Primavera dos povos‘ tornara-se contagiante... as populações exigiam mudança radical de Regime, e barricavam-se contra as forças armadas das monarquias impenitentes... No termo do processus histórico, as monarquias acabaram por recompor-se e subsistir, apesar da enorme chacina desencadeada sobre as populações. (Vd. o artigo sobre o tema, por Alain Garrigou, in ‗Le Monde Diplomatique‘, Maio de 2011, p.27). O desfecho da Comuna de Paris, em 1871, não foi substancialmente diferente. Quando as ‗forças da ordem‘, comandadas pelos reis e pontífices do Establishment, disparam (imperturbavelmente) sobre manifestações pacíficas de todo um Povo, o que daqui resulta, como lição histórica, é que a própria morte devém uma demonstração do direito. Escreveu A.G., no fim do seu artigo: ―Les rois et les soldats croyaient faire des victimes, ils créèrent des héros. Cette figure de la dignité citoyenne paraît quelque peu morbide. Mais qu‘aurait valu la démocratie si des humains n‘étaient pas morts pour elle?‖ Não morreram, igualmente, Sócrates e Jesus, por aquelas causas humanas estruturais/estruturantes, que são absolutamente decisivas, para que a Humanidade evolua dos estádios desumanos para patamares humanos dignos do nome?! A Morte (digna) como Lectio de Vida é, justamente, o que, em última instância, nos motiva e impele a transitar da cartilha dos Objectos objectivo-objectuais para a gramática dos Sujeitos livres e responsáveis. É precisamente este caminho novo, que as Sociedades de hoje, suas Culturas e Sistemas Educativos, precisam de aprender e pôr em marcha. A Experiência (e sua 315


noção crítica) é, na verdade, a Noção estruturadora de todo o Edifício humano. E a Experiência, enquanto tal, não acontece, sem a presença de uma Consciência (individual-pessoal) crítica, como fons et origo da Humanitas e do Mundo Humano, qua Humano. Ora a Bandeira, capaz de nos sinalizar a marcha por esse caminho novo, não é outra senão o Hilemorfismo aristotélico holístico e integral, i.e., despojado de todos os ouropéis e guarda-roupas do Dualismo metafísico-ontológico, que ainda estigmatiza e perverte a Cultura/Civilização do Ocidente (com a sua ‗Teoria dos Poderes Separados‘ e a consequente doutrina das ‗duas Sociedades‘, destilada pela ‗Teoria do Rebando humano‘). No concernente ao mundo das Artes, nada melhor do que a ‗Poética‘ de Aristóteles, para nos facultar a Lição, que nos há-de permitir avançar por esse caminho novo. Nesta problemática, os modelos e as perspectivas de Aristóteles configuram-se nos antípodas dos modelos e perspectivas de Platão. Este pressuposto é preciso discerni-lo com todo o cuidado. Ali, é a gramática do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ que actua; aqui, é a cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘ e dos ‗Poderes separados‘. O recuperado texto grego (que aqui temos presente) é o de R. Kassel: ‗Aristotelis de Arte Poetica Liber‘, considerado actualmente o melhor; traduzido por Ana Maria Valente e com um Prefácio notável de Maria Helena da Rocha Pereira (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004). Qual é a alma do Teatro e das Artes Performativas do Discurso e da linguagem, para o Estagirita? Poder-se-á responder, a partir justamente da ‗Poética‘, que elas são o Laboratório complexo e fecundo, explícito ou implícito, das Sociedades humanas enquanto tais: daqueles seres especiais da Natureza, que são dotados do Lógos por antonomásia, i.e., da Palavra com sentido (e, portanto, também, de Noûs ou Pensamento); capazes de edificarem Sociedades racionalmente democráticas, ancoradas no Diálogo socrático (que procede ao próprio parto dos conceitos ou ideias em grupo ou aos pares...) e, por isso mesmo, nesse fundamento do existir humano, que são as Consciências individuais-pessoais. Tudo se passa, assim, num Mundo constituído, intrinsecamente, pela união indissolúvel de matéria e forma, de corpo e espírito, na base da Empiria e da Experiência dos Indivíduos e dos Grupos concretos, onde a Tensão e a Dinâmica constituem a norma, onde a Acção e a Actividade consciente e responsável emergem como o primeiro princípio da Individuação das Pessoas singulares e conceretas e dos Grupos. Um exemplo para se perceber bem esta Tese fundamental: na história da Fi316


losofia do Ocidente, o grande Grupo anglófono fez mais o seu caminho pelas vias do Empirismo e do Sensismo; o grande Grupo continental, franco-germânico, apesar das divergências nos ramos da Árvore, seguiu mais, no tronco desta, os caminhos do Racionalismo e da Metafísica. A respeito desta oscilação entre Sila e Caríbedes, ouça-se a recomendação de ‗O Filósofo‘: o ‗mesótès‘, ‗in medio virtus‘, o meio-termo. O texto de Aristóteles, na ‗Poética‘, faz o seu exórdio como segue (ibi, p.37): ―Falaremos da arte poética em si e das suas espécies, do efeito que cada uma destas espécies tem; de como se devem estruturar os enredos, se se pretender que a composição poética seja bela; e ainda da natureza e do número das suas partes. E falaremos igualmente de tudo o mais que diga respeito a este estudo, abordando, naturalmente, em primeiro lugar, os princípios básicos‖. Como se vê, não foi esquecida, nos seus propósitos, a assistência, o auditório, os espectadores, ‗a plateia‘... Prossegue o texto (ibidem): ―A epopeia e a tragédia, bem como a comédia e a poesia ditirâmbica e ainda a maior parte da música de flauta e de cítara são todas, vistas em conjunto, imitações‖. As diferenças resultam dos diversos meios ou objectos utilizados. Desde logo, é sintomático que ‗O Filósofo‘ tenha iniciado a sua análise funcional e multi-factorial, assinalando a primeira vertente da Arte poética, a Imitação. É aqui que tem origem o seu (e nosso) horizonte, antitético ao de Platão (os heróis divinizados que, na épica, não fazem parte do mundo dos mortais...). Depois falará da Catarse, que é o telos que a Estética aristotélica estabelece para toda a Arte poética. Do que se trata, em última instância, é de mudar in melius as Sociedades humanas. A Imitação (mímesis) toma corpo através da representação dos homens em acção. E, aí, não foi esquecida a dimensão ético-moral. Ouçamos A. (ibi, p.39): ―Uma vez que quem imita representa os homens em acção, é forçoso que estes sejam bons ou maus (os caracteres quase sempre se distribuem por estas categorias, isto é, todos distribuem os caracteres pelo vício e pela virtude) e melhores do que nós ou piores ou tal e qual somos, como fazem os pintores‖. Ainda sobre o processo da Imitação, agora no que tange à poesia: ―Parece ter havido, para a poesia em geral, duas causas, causas essas naturais: Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos sentem prazer nas imitações‖ (idem, ibi, p.42). Nesta óptica, aprender é agradável, tanto para os filósofos como para os ou317


tros homens, ‗embora estes participem dessa aprendizagem em menor escala‘ (pp.4243). Sobre a epopeia e a tragédia. ―A epopeia segue de perto a tragédia por ser também imitação, com palavras e ajuda de metro, de caracteres virtuosos. Todavia, difere desta por ter um metro uniforme e por ser uma narrativa‖ (idem, ibi, pp.46-47). Como se dá conta, o espírito analítico de A. não perde a ideia matricial de que o que conta na tragédia é a acção (a ‗narrativa‘, aqui, é constituída pelo enredo da acção, que se desenrola em cena). ―A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação [catarse] de tais paixões‖ (idem, ibi, pp.47-48). o contraste entre a narração, na epopeia, e a acção, na tragédia e na dramaturgia em geral, fica bem explicitado e patente quando se fala da ‗lexis‘ (elocução, ou enunciado verbal), em contraposição com a ‗opsis‘ (aquilo que se vê, o espectáculo). (Cf. ibi, pp. 27-30). A importância atribuída à assistência e aos espectadores nunca é posta de parte. Não faltam, por conseguinte, os exemplos, nos poemas e nas epopeias (como na Odisseia, em que a sorte é dupla, ou seja, ―termina de maneira oposta para os bons e para os maus. Parece ser [esta estrutura] a mais bela devido à tibieza do auditório: os poetas orientam-se pelos espectadores e compõem de acordo com as suas preferências. Este prazer não é próprio da tragédia, mas sim, essencialmente, da comédia: aqui, os que na história tradicional são ferozes inimigos, como Orestes e Egisto, saem, no fim, amigos, e ninguém mata ninguém‖ (idem, ibi, pp.62-63). O que daqui ressumbra é que há leis naturais a reconhecer e a respeitar; quanto à distinção real entre bons e maus, ela só poderá ser superada pela boa Educação, capaz de favorecer a expansão da bondade, mas sempre a partir da consciência dos Indivíduos-Pessoas. O caminho, na própria Arte poética, fez-se caminhando. ―As tragédias não são sobre um grande número de famílias. Na verdade, os poetas foram procurando e encontraram, não por arte mas por acaso, o efeito a alcançar nos seus enredos. Tiveram então de se voltar para estas famíllias, no seio das quais ocorreram sofrimentos desse género‖ (idem, ibi, p.66). Na sua Arte poética, o Autor não se esqueceu de discorrer sobre duas coordenadas essenciais: a do pensamento e dos objectivos nas diferentes formas poéticas; e a da elocução, ou seja, dos elementos técnicos, que a gramática do discurso impõe: 318


―Toda a elocução em geral tem os seguintes elementos: fonema, sílaba, conjunção, nome, verbo, articulador, flexão e frase‖ (ibi, p.79). No que tange à primeira coordenada, escreveu o seguinte (p.78): ―Diz respeito ao pensamento tudo o que tem de ser expresso pela palavra. Faz parte disto demonstrar, refutar, despertar emoções (como compaixão, temor, cólera e outras similares) e também engrandecer ou minimizar. É evidente que também nas acções se deve partir destes mesmos princípios, quando for necessário conseguir efeitos de compaixão, temor, grandiosidade ou verosimilhança. A única diferença é que estes devem ser revelados sem explicação verbal, enquanto os outros são conseguidos, através de palavras, pelo seu emissor, e derivam dessas palavras. Qual seria, na verdade, o papel de quem fala, se o efeito pretendido já fosse evidente mesmo sem as palavras?‖ Aristóteles não se cansa de insistir na distinção entre os dois tipos de imitação: a que ocorre na tragédia e é realizada através da acção, e a que é levada a cabo através da narração, como acontece, v.g., na epopeia. ―No que respeita à imitação através da narração e em verso, é necessário, como nas tragédias, construir enredos dramáticos e em volta de uma acção única e completa, que tenha princípio, meio e fim, para que, tal como um ser vivo único e inteiro, produza um prazer próprio, e, evidentemente, a sua estrutura não deve ser igual à das narrativas históricas‖ (ibi, p.91). ―Além disso, é preciso que a epopeia tenha as mesmas espécies que a tragédia, a saber, ou simples ou complexa ou de carácter ou de sofrimento; e também as mesmas partes, à excepção da música e do espectáculo‖ (ibi, p.93). ―A epopeia difere da tragédia na extensão da composição e no metro. Quanto ao limite da extensão, baste o que já foi dito: deve ser possível abranger, de um só relance, o princípio e o fim‖ (ibidem). Sintomaticamente, Aristóteles não se esqueceu de recomendar a justa medida (o princípio do mesótès, que lhe era tão caro!) na articulação do racional e do irracional, que sempre foi própria do melhor ‗espírito helénico clássico‘: ―Deve preferir-se o impossível verosímil ao possível inverosímel; não devem compor-se enredos com partes irracionais mas, pelo contrário, não devem ter absolutamente nada de irracional e, se tiverem, que seja fora do enredo, como o facto de Édipo não saber como morreu Laio, e não dentro da acção, como o relato dos Jogos Píticos na Electra‖ (ibi, p.96). A ‗questão do Livro II‘ e o texto do ‗Livro I‘ que chegou até nós (que mais parecem apontamentos de aulas do que um tratado acabado...), mostram-nos, à evidên319


cia, que esta obra de Aristóteles, a ‗Poética‘, se encontra substancialmente incompleta, como advertiu M.H. da Rocha Pereira (ibi, pp.7 e ss.). Ao evocar, aqui, expressamente, algumas perícopas, fizémo-lo com o intuito de mostrar como os textos do Estagirita reflectem toda uma mundividência psico-sócio-cultural, que é basicamente a do HILEMORFISMO e que se configura nos antípodas da bimilenar Cultura platónico-paulina do Ocidente, sempre arregimentada às ideologias do Paradoxo e da distinção/separação entre a Teoria e a Prática, entre as elites e as massas, entre os dirigentes e os súbditos. Ora, como se deu conta, o eixo destes e de outros textos (marcados pelo Hilemorfismo) de ‗o Filósofo‘ torna-nos patente o ideário e o propósito de entrosar a Theoria e a Praxis, a Ética e a Política. Sem tal intuito estruturador — é forçoso reconhecê-lo —, não se vê facilmente como e por quê discorrer e propor objectivos, para a Arte poética, como a Imitação e a Catarse. Há conceitos, que, no Prefácio, M.H. R.P. explica muito bem (ibi, pp.10-26), tais como: a mímesis poética (que não é uma cópia macaqueada...), os conceitos de Compaixão (eleos) e Temor (phobos), a Katharsis; os conceitos de mythos, anagnorisis, peripeteia, pathos enquanto partes ou dimensões integrantes da tragédia, sem esquecer o conceito fulcral de hamartia como erro grave (de sabedoria ou conhecimento). Todavia, o que vemos e lemos é que a prestigiada Professora de ‗clássicas‘ ainda introduz o seu excurso sobre estes conceitos, designando-os, precisamente, por ‗alguns dos conceitos mais controversos‘ (ibi, p.10), — prova irrefutável de que, muito embora sem o saber, ela própria ainda é vítima da predominante e hegemónica Cultura platónica/paulina do Ocidente. Cave canem!... A respeito da necessária viragem cultural/crítica a operar, nunca será de mais ler e estudar a fundo a obra de David Gress: ‗From PLATO to NATO‟/The Idea of the West and its Opponents (The Free Press, New York, 1998, 1ª ed. de 1953). Quanto ao conceito de imitação (mímesis), é sabido que os símios, por exemplo, são capazes de copiar o que fazem os seres da mesma espécie; mas são destituídos de capacidade cerebral/mental para a vera imitação. Só os seres humanos são verdadeiramente capazes de imitar. No concernente à catarse (katharsis), convirá saber que a melhor filosofia da Antiguidade clássica percepcionava nesse termo dois significados essenciais: a) expurgar ou libertar de um ser tudo quanto é exterior ou estranho à sua vera realidade ou essência, e que por isso mesmo o corrompe; b) trazer, por meios ou técnicas apropriadas, as consciências dos indivíduos a uma situação de esclarecimento e iluminação, rompendo com os anteriores bloqueios ou repressões. 320


Como se dá conta, aqui, através da articulação das duas noções, nas obras de Arte poética, o que se pretende é, justamente, entrosar, numa só realidade indissolúvel, a axiologia (com a sua dimensão objectiva) e a ética (com a sua dimensão subjectiva), num horizonte humano onde Noética e Praxis andam unidas. Sócrates falou e praticou, incansavelmente, a fórmula do ‗lógon dédonai‘ (tomar/oferecer a palavra nos seus dialógicos encontros reais com os seus concidadãos). Aristóteles não esqueceu a Lição fundamental de Sócrastes, tanto na sua Arte Poética, como no eixo estruturador da sua Filosofia, que dá pelo nome de Hilemorfismo. Desta sorte, a gramática essencial de Sócrates e do Socratismo prossegue, de facto, na mundividência crítica de Aristóteles. Há parâmetros importantes, na obra do Estagirita, que acabam por confirmar plenamente esta tese: Em contraste com Platão, que na ‗República‘, condenou expressamente a poesia (por não imitar o que é perfeito), Aristóteles defende e estabelece que história e poesia diferem uma da outra, na medida em que a primeira diz ‗o que aconteceu‘, ao passo que a segunda refere ‗o que poderia acontecer‘ (cf. ibi, pp.11-12; p.54). Por sua vez, o lexema katharsis, a partir já de uma época anterior a Platão, encerrava dois tipos de significados: a) a catarse da alma ou da ‗purificação pelo delírio‘; b) a catarse do corpo, que é do domínio das Ciências Médicas (cf. ibi, pp.15 e ss.). No que diz respeito ao tipo de significados em a), já se vê que o efeito catártico da Tragédia abre caminho a uma aproximação íntima e profunda da Poética com a Política. A comprovação (tipo ‗fecho de abóbada‘) de que Aristóteles não cortou (como aconteceu, ao contrário, com Platão, que atraiçoou o Mestre) com a mundividência de Sócrates, reside no axioma adoptado na ‗Poética‘ (ibi, pp.63-64): sem mímesis não há katharsis; elas não podem nem devem separar-se uma da outra: o prazer trágico, que é atingido com o auxílio das paixões, está condicionado pela mímesis. Em torno da noção clássica helénica de ‗hamartia‘ (que já procede da Ilíada), Aristóteles segue-a, acrisoladamente, e contempla essa realidade na Tragédia e, muito particularmente nas funções construídas da imitação e da catarse (cf. ibi, pp.22 e ss.; p.60, p.61). A compaixão diz respeito ao homem que é infeliz sem o merecer; o temor concerne aos que se mostram semelhantes a nós: ―a compaixão tem por objecto quem não merece a desdita, e o temor visa os que se assemelham a nós; por conseguinte, o caso presente não causa compaixão nem temor. Restam-nos então aqueles que se situam entre uns e outros. Essas pessoas são tais que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela justiça; tão-pouco caem no infortúnio devido à 321


sua maldade ou perversidade, mas em consequência de um qualquer erro, integrando-se no número daqueles que gozam de grande fama e prosperidade‖ (pp.2223). Assim, o enredo da Tragédia bem elaborado deve ter em conta a mudança ―não da infelicidade para a ventura, mas, pelo contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade, mas de um erro grave, cometido por alguém dotado das características que defini, ou de outras melhores, de preferência a piores‖ (p.23). A palavra-chave no texto do Estagirita é Erro (Erro Grave). É, de resto, essa a semântica do campo lexical a que pertencem os três lexemas: hamartia, o verbo hamartano e o substantivo hamartema. A doutrina de Paulo na Carta aos Romanos (ver especialmente caps. 5-7, onde ele discorre sobre a justificação pela fé, a destruição do pecado primitivo e a libertação da servidão da lei) também estabelece e desenvolve a teoria da Hamartia estrutural (que a doutrina do Cristianismo e da Cristandade sempre identificou com o ‗Pecado Original‘, a carecer, simetricamente, de um Redentor, com efeitos igualmente estruturais!...). Ora foi esta mesma Tese original/originante, que fez entrar o Cristianismo e a Cristandade na ‗religião do vigário‘, que é o sacrossanto Objectivo-Objectualismo!... A hamartia, o Erro grave, que está presente no texto de Aristóteles sobre a Tragédia, não é uma noção que se possa enquadrar na grelha doutrinária de Paulo. Desde logo, a perversidade não entrou, aí, como factor causal. Ao falar de Erro grave, o Estagirita não está a falar da Vontade livre em estado de perversão; mas de um Erro cometido no campo do Entendimento, de que o Sujeito não deixou de ser, pelo menos parcialmente, responsável. Paulo admitiu os pecados pessoais e o pecado estrutural (a hamartia de que falou na Carta aos Romanos). Por outras palavras: Paulo fechou as portas para o acesso à mundividência crítica dos Gnósticos judeo-cristãos primevos da Escola de Alexandria e bloqueou a entrada no Socratismo e no Jesuanismo. Aristóteles mantém-se aberto a todas estas vias de reflexão crítica e de humanização. Para ele, hamartia e hamartema, não só podem referir-se a qualquer acção cujo resultado falhou, podendo abranger o erro e o crime, mas também, pela negativa, recusam, liminarmente, a referência a hipotéticos factores causais que, de todo em todo, não dependem dos humanos e da sua organização em Sociedade. Neste horizonte, convém ser parcimonioso e crítico, quando se afirma e declara que os Gregos clássicos não conheciam a vontade livre em plenitude. O que eles, classicamente, repudia322


vam, com toda a legitimidade, era o facto (que os cristãos vieram depois a admitir e a aceitar resignadamente...) da perversidade estrutural. Assim, quando a filosofia do Ocidente pretende ensinar que, na Grécia clássica, a virtude é (apenas) um facto intelectual, estamos a ser vítimas de efeitos prismáticos pervertidos. Paulo embarcou facilmente na doutrina dos estóicos, ao admitir e tomar para si mesmo o axioma: ‗video meliora proboque, deteriora sequor‘: vejo e comprovo o bem mas sigo o mal. (Cf. Rom. 7, 15-18). Mais: a teoria de não assumir plenamente a responsabilidade dos seus actos (decorrente de uma Vontade livre e não do puro livre arbítrio) leva-o a estabelecer a consabida doutrina dos ‗cristãos submissos‘: ‗Não se deve saber mais do que é preciso saber, pois que, até nisso, é preciso ser sóbrio‘ (Rom. 12,3). Por outro lado, a doutrina de Aurélio Agostinho sobre a Vontade livre (que tanto tem sido enaltecida e celebrada na Cultura do Ocidente) só faz mesmo sentido, só pode ser percepcionada criticamente, quando for perspectivada por aquela ‗notio Dei‘, que ele deixou escapar nas suas ‗Confissões‘ (a ideia do ‗intimior intimo meo‘), e não na perspectiva do Iahwéh/Deus/Allah das três religiões de ‗O Livro‘.

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EM DEMANDA DA CONSCIÊNCIA LIVRE E CRÍTICA

Em termos sumários, é preciso afirmar e defender que o fenómeno da Consciência humana (que sempre tem sido eclipsado, na História das Culturas e das Civilizações até ao presente) envolve, sempre, essencial e estruturalmente, duas dimensões: A) a do Objecto (há uma percepção e um dado objecto do Conhecimento; B) a do Sujeito (há um Eu identitário, que é o Sujeito desse Conhecimento). Não é por outra razão ou fundamento que dizemos, que o ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ é um Ser que sabe que sabe, para quem, por conseguinte, os objectos do conhecimento procedem de um Sujeito que é testis do seu próprio conhecimento. António Damásio, em ‗O Livro da Consciência‘ (já citado), abre o seu processo de investigação (logo no 1º cap.), com a seguinte afirmação (p.28): ―Quando o cérebro consegue introduzir um conhecedor na mente, o resultado é a subjectividade‖. Isto mesmo diz muito pouco ou nada sobre o fenómeno específico (= da Espécie humana Sapiens//Sapiens) da Consciência. Ele próprio, no seguimento do texto, faz aí alusão a duas linhas de percepção e caracterização da Consciência, sem verificar e concluir que uma delas tem de ser repudiada como imprópria e errada (a linha de David Hume); e a outra (a linha de William James) tem de ser criticamente desenvolvida e aprofundada, para se configurar como a verdadeira e certa. Na 1ª, o Eu identitário (de referência) acabou por ser dissolvido e eclipsado; na 2ª, se não houver aprofundamento, corre-se o risco de ficar como o tolo no meio da ponte. É curioso observar que A.D. (ibi, p.28 e nota 10: p.389) chega (numa tonalidade inocente ou cínica...) a transmitir a ideia de que alguns autores, nas suas pesquisas e estudos, acabam por assumir a posição de que ainda não chegou a altura de lidar com o sujeito!... 324


A mundividência de Hume ficou estancada no Objectivo-Objectualismo empiricista. A própria discussão entre W. James e D. Hume, está pervertida e contaminada pelo universalizado mecanicismo cartesiano e o lastro tradicional, que ele confirmou, do Dualismo metafísico-ontológico na Cultura Ocidental. Deste facto, A.D. não se deu conta. Na verdade, em contraponto com a posição de D.H., W.J. vê-se obrigado a asseverar e a garantir que o seu ‗eu‘ identitário não é uma entidade metafísica, e que, pelo contrário, tem uma base biológica, no próprio indivíduo. D.H. (no ‗Tratado sobre a Natureza Humana‘, l. I) pulverizou e eliminou o ‗eu‘ identitário: ―Nunca sou capaz de me observar sem uma percepção e não consigo observar nada além da percepção‖. ―Quanto ao resto da Humanidade, arrisco-me a afirmar que não passa de um algomerado de percepções diferentes, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e que se encontram num fluxo e movimento perpétuos‖ (cit. ibi, p.29). Em contraponto, W. J. profliga fortemente a posição de D.H., argumentando que a existência do ‗eu‘ é marcada por uma mistura de ‗unidade e diversidade‘, salientando, aí, o ‗núcleo de uniformidade‘, que está presente nos ingredientes do ‗eu‘ (cit. ibi, p.29). W.J. procura refutar os dois extremos opostos: o dos filósofos substancialistas, que vêem o ‗Eu‘ apenas como Unidade, uma unidade abstracta e absoluta, e a visão de Hume que lobriga, aí, apenas Diversidade, diversidade abstracta e absoluta (vid. ibi, p.390). Neste contexto, marcado pelas perplexidades, procedentes do imperialismo (metodológico e ideológico) da religião (cientista) do Objectivo-Objectualismo, A.D. veste-se no guarda-roupa cartesiano da ‗dúvida metódica‘ (ele que, antes, havia escrito ‗O Erro de Descartes‘!...) e afirma (ibi, p.29): ―Duvido que a base neural da mente consciente possa ser esclarecida de forma abrangente, sem que primeiro se torne compreensível o eu enquanto objecto — o eu material — e o eu enquanto conhecedor‖. Objecto

Sujeito consciente

Sujeito livre e responsável. É na grelha deste

trinómio dinâmico e tensional que é mister engrenar. A.D., que parou no esquema binário do eu enquanto objecto e do eu enquanto conhecedor, acabará por não conseguir o seu objectivo!... Ressumbra mesmo a patético o discurso de A.D.: ―Uma mente que não seja testemunhada por um eu protagonista não deixa de ser uma mente. No entanto, uma vez que o eu é a nossa única forma natural de apreender a mente, estamos inteiramente dependentes da presença, capacidade e limites do eu. Tendo em conta esta de-

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pendência sistemática, torna-se extremamente difícil imaginar de forma independente a natureza do processo mental, embora, a partir de uma perspectiva evolutiva, seja bem claro que os processos mentais simples antecedem os processos do eu. O eu permite o vislumbre da mente, mas produz uma visão enevoada‖ (ibi, p.30). O Objectivo-Objectualismo, enquanto método dito científico, com carácter irredento, obriga o Autor a cair em alguns círculos viciosos: ―as concepções tradicionais da matéria e de mental são desnecessariamente limitadas. É evidente que o ónus da prova pertence na realidade àqueles que consideram natural que os estados mentais sejam constituídos por actividade cerebral. Todavia, defender a intuitiva divisão mente-cérebro como sendo a única plataforma de discussão do problema não irá encorajar a procura de provas adicionais‖ (ibi, nota 14, p.391). É, assim, forçoso reconhecer, criticamente, que esta metodologia (exasperadamente pró-analítica) de abordagem do fenómeno da Consciência humana, qua tal, acaba por retroceder àquela visão tradicional, que foi verberada pela mundividência crítica de W.J. e seu horizonte sintético e holístico. Dir-se-á, então, que a abordagem (laboratorial... não esquecer) da Consciência fica confinada à metodologia da percepção objectiva-objectual desta, e não, propriamente, na sua penchant da referência à Identidade do Eu. E A.D., ao lado da obra de W.J.: ‗The Principles of Psychology‘ (Nova Iorque, Dover Press, 1890), até tem presente a obra ‗Phénoménologie de la Perception‘, de um dos maiores psicólogos do séc. XX, M. Merleau-Ponty (Paris, Gallimard, 1957); e até admitiu, no confronto, que a filosofia (de M.-P., v.g.) tem considerado melhor o corpo e suas funções do que a própria neurociência (cf. ibi, p.398, nota 3). O nosso Autor, no seu afã analítico, objectivo-objectualista, chega a citar um passo célebre de W.J. (1884) (cf. ibi, p.149) que diz: ―A nossa forma natural de pensar nestas emoções é que a percepção mental de certo facto excita o estado mental chamado emoção, e que este último estado de espírito dá orgiem à expressão corporal. Pelo contrário, a minha tese é que as alterações corporais sucedem-se directamete à ‗PERCEPÇÃO‘ do facto excitante e que a sensação que temos dessas alterações à medida que vão ocorrendo É a emoção‖. Para concluir que W.J. ―inverteu a sequência tradicional de acontecimentos no processo da emoção e meteu o corpo de permeio entre o estímulo causal e a experiência da emoção‖ (ibidem). A.D. entendeu que W.J. confundiu emoção e sentimento.

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Nós não fazemos esta crítica a W.J.. O que nos parece, na vertente analítica de A.D., é que, muito mais do que W.J., ele está possuído de um Aparelho (corporal...) objectivo-objectualista, estigmatizado pelo mecanicismo, que não se dá conta, no contexto, de que a maior diferença entre sentimento e emoção, é que a segunda tem, por princípio, um factor causal externo (que veio a ocorrer na percepção), ao passo que o primeiro é, acima de tudo, uma realidade mental interna ao organismo vivo. De resto, o Autor contradiz, em parte, o seu próprio ponto de vista inicial, ao asseverar, no concernente ao processo como sentimos uma emoção, que ―à medida que uma emoção se desenrola ocorre um conjunto específico de alterações, e os mapas do sentimento de emoção são o resultado do registo de uma variação sobreposta aos mapas desse momento, gerados no tronco cerebral e na ínsula‖ (ibi, p.155). Por outro lado, A.D. sabe perfeitamente que a distinção contrastiva entre o eu e o não-eu procede desses marcadores que são os sentimentos de conhecimento (p. 26). Logo a seguir, ele faz a sua declaração (ibidem): ―Quanto à minha definição do eu material, o eu-enquanto-objecto, ela é a seguinte: um agrupamento dinâmico de processos neurais integrados, centrado na representação do corpo vivo, que encontra expressão num agrupamento dinâmico de processos mentais integrados‖. A objecção que logo irrompe, neste discurso, é simples: ao definirmos, objectivo-objectualmente, um eu mterial, estamos, ipso facto, a destruir o eu mental consciente, que está na origem da Consciência livre e responsável. Por outras palavras, e exprimindo o nosso Criticismo de modo omni-toto-abrangente: ou aceitamos e reconhecemos a emergência bio-antropogenética do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ (enquanto Sujeito livre e responsável), ou entramos nas vias ínvias do Objectivo-Objectualismo impenitente e não nos resta outra saída senão a cartilha sempiterna do ‗Homo Sapiens tout court‘, com a sua doutrina do ‗Poder Separado‘. • Quadro do P.-.S.-A. sobre a presença ou a ausência da Consciência. Ora, a boa (no sentido de justa e verdadeira) Consciência tem a sua expressão princeps na afirmação indeclinável do Eu identitário dos Sujeitos (humanos) livres e responsáveis, em todas as diversas e multivariadas situações concretas em que se encontram (e actuam) ou residem. Atente-se bem no Quadro seguinte, que pode oferecer-nos os indícios estruturais da agenda do Psico-Sócio-Ânthropos; este Quadro vale, também, para a descoberta dos vestígios principais do Eu identitário (com a chan327


cela da Consciência) ao longo da História das Culturas e da Civilização: A) Pela positiva: <P> = presença da Consciência; B) pela negativa: <A> = ausência da Consciência. A) Pela positiva: ‹A› = presença da Consciência: 1. a reivindicada e séria doutrina da vera anarquia e os ideários honestos dos veros anarquistas. 2. A principiologia axiomática das leis e regras e a boa jurisprudência nos ordenamentos jurídicos e nos tribunais: Não há lei ou regra sem excepção! 3. O princípio da Epiqueia (já conhecido no próprio Direito Romano), que os bons advogados devem conhecer muito bem na sua actividade profissional. 4. O regime democrático, considerado como o melhor e mais adequado para a organização política das Sociedades humanas. Churchill, ao declarar que a Democracia era o menos mau dos Regimes políticos, excluídos todos os restantes, aproximou-se do reconhecimento da Consciência humana, mas fê-lo ainda de modo cínico... 5. A Justiça social integrada nos programas dos Governos: por mais empenho que os Governos democráticos ponham nos seus programas, no concernente a esta área da governação, as exigências de Justiça social face às populações carenciadas nunca estarão colmatadas e concluídas, perante as Consciências individuais-pessoais dos cidadãos em causa. B) Pela negativa: <A> = ausência de Consciência: 1. Totalitarismos políticos (de todos os tempos): são justamente condenados por manifesta ausência do reconhecimento das Consciências dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. 2. Imperialismos económicos (colonialismos), financeiros, a Ditadura implacável do pseudo ‗Free Market‘ globalizado: são justamente condenados por não reconhecerem, basicamente, a necessária e indispensável presença das Consciências individuais-pessoais, no Processo de uma vera e autêntica Civilização humana. 3. No Sistema capitalista, como é sabido, só se aposta na produção crescente de riqueza. Não se pensa nem cuida da distribuição (pelo menos, na mesma escala, frequência e intensidade). Ora isto é severamente condenável, porque os Eus identitários e as Consciências dos Indivíduos-Pessoas não podem parar de acusar este estado de coisas. 4. O problema hodierno dos bio-combustíveis: Se, por ex., nos USA, é possível, sem convulsões sociais, cativar um terço da produção nacional de milho para combustível, isso já não é possível na Índia, China ou América Latina. Não é lícito, nem legítimo, promover a globalização dos mercados na área dos Alimentos, nem entregar enormes quantidades de milho, soja, beterraba, colza, ou outros produtos agrí328


colas, à indústria dos combustíveis, quando quase metade da população do Mundo passa fome ou morre à fome!... Esta problemática não pode ficar, de todo em todo, entre a lógica concorrencial dos mercados, que só funcionam em ditadura (só vingam, aí, os ricos e os fortes...). 5. A ideia estúpida e obsessiva de um crescimento contínuo da Economia (política), sem limites identificáveis à escala da Terra, que o Sistema capitalista (vigente e imperialisticamente imperante) tem propalado, apologeticamente, ad absurdum, — aceitar uma tal mundividência constitui a prova insofismável da mais absoluta Inconsciência. Neste contexto, a 1ª prova de alguma Consciência é verificar e reconhecer que tal só é possível ser pensado e posto em marcha, dentro da santa religião laica do Objectivo-Objectualismo. C) Monismo Epistemológico contra Dualidade Epistémica. É prova (irrecusável) de falta de Consciência (intelectual, moral, cívica e política) continuar a funcionar segundo a cartilha do Monismo epistemológico (que subordinou e reduziu a gramática das ciências psico-sociais e/ou humanas à cartilha das ciências físico-naturais). No vasto universo do Saber, a pesquisa e a investigação tem de adoptar a gramática da Dualidade Epistémica. Não mais será lícito ou legítimo misturar e confundir as duas Epistémes, porque, ao fazê-lo, estamos a prestar culto à religião laica do Objectivo-Objectualismo e, eo ipso, a exterminar, in radice, o fenómeno (humano) das Consciências Individuais-Pessoais. D) A ausência de Consciência verifica-se, corrente e sistemicamente, no universo dos Poderes Estabelecidos, no modo de operar e actuar e legislar das chamadas Autoridades e dos regentes da governação (gouvernance...). Aqui, como é sabido, o que o Sistema vigente impõe e proclama é: a) a violência e a guerra são considerados (com igual legitimidade), ao lado dos meios pacíficos, como instrumentos e meios de resolver os conflitos societários: ‗se não vai a bem, vai a mal‘!...; b) a regra, segundo a qual, o forte e o grande acabam sempre por exercer o domínio sistémico sobre o fraco e o pequeno. E apostrofam, argumentando: Esta é a Lei inexorável da Natureza, inscrita no próprio Processus biogenético da Evolução cósmica!... Ora, numa galáxia bem diferente, a boa Economia (doméstica ou política) tem a sua regra d‘ouro no princípio do contar, primeiro, com as próprias forças endógenas; e se bem analisarmos toda a problemática até ao fundo, a mesma Regra, que parte sempre do núcleo interior constituído para a fisiologia do organismo vivo, também ela tem a sua aplicação no Processo da Evolução cósmica e da biogénese em geral. É, ho329


je, sobejamente conhecido (ou deveria sê-lo...) que os Recursos Alimentares do Planeta são limitados, para todos os organismos vivos, os peixes nas águas salgadas ou doces, as aves no céu, os animais em terra firme, sejam eles selvagens ou domésticos, incluindo nestes os seres humanos e suas sociedades ditas civilizadas. Se advertirmos bem, na própria ‗struggle for life‘, todos eles praticam, como podem e ‗sabem‘, o princípio da economia de meios para sobreviver; só o Homem pressupôs (num gesto de loucura estúpida...) que não havia limites... para o crescimento (económico)!... Onde aprendeu a civilização/cultura das três religiões monoteístas uma Lectio tão insensata e demencial?! No livro do ‗Génesis‘ (originalmente), quando Iahwéh/ /Deus (c.1, v.28) disse ao 1º Homem e à 1ª Mulher: ―Sêde fecundos, multiplicai-vos, enchei e submetei a Terra; dominai os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra‖. Acerca das narrativas bíblicas, é preciso saber, em primeiro lugar, que esta narrativa do ‗Génesis‘ não passa de uma ‗story‘ e um mitologema; em segundo lugar, convém saber e averiguar qual é a doutrina aí destilada. Quanto a esta, há que reconhecer e proclamar que só uma Divindade transcendente e extrínseca (sempre forjada por humanos...) pode formular um mandato de conquista e dominação da Terra; só uma Divindade identificada com a ‗fons et origo‘ de toda a Potestas d’abord pode emitir uma ordenança destas. Como se pode observar, no mitologema do ‗Génesis‘, o primado que ficou formulado foi o do Poder sobre o Saber, e não vice-versa. Isto é mesmo muito importante e decisivo: quando o Poder é actuado e procede, a partir do Saber (primacial e primordial), ele é, por sua própria índole, suave e brando, capaz de ouvir e integrar o estranho e o diferente. Esta forma de Poder é a própria e específica do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. O ‗Sapiens//Sapiens‘ não carece de ordens e ordenanças externas. Basta-lhe a sua Consciência reflexiva e crítica. É mister, por conseguinte, acabar por reconhecer que não há Liberdade humana sob a bandeira da Cultura do Poder-Dominação d’abord. A vera Liberdade do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ nunca foi, nem é, nem será a do tradicional regime do ‗livre arbítrio‘, da ‗lei do pêndulo‘, em que a Humanidade e o processo civilizatório têm sobrevivido, sob o estandarte do Cristianismo de Paulo, desde há dois milénios. Paulo, Agostinho, Lutero e o próprio Erasmo, todos estes e outros autores cristãos dissertaram sobre o livre arbítrio, não sobre a Liberdade Responsável primacial e primordial. Por isso, também eles são culpados da perda e da dissolução do Fenó-

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meno das Consciências, ao longo da História das Culturas e do Processo Civilizatório. Ora, se tudo, em última instância e em última análise, tem de proceder (como sua real fons et origo) das Consciências individuais-pessoais (como nos foi ensinado por Sócrates e Jesus), a primeira obrigação (existencial/ontológica) que eu tenho, é a de entrar em contacto e saber o que se passa, nas consciências dos meus vizinhos ou companheiros, ou do meu próprio irmão. E nessa espécie de ‗sancta sanctorum‘ eu só posso penetrar ou ter acesso através do Diálogo, que é o primeiro discurso a tomar corpo no mar/oceano da Linguagem humana. Evidências, propriamente ditas, só o chamado ‗crime (observado) em flagrante‘ mas pode facultar. E, mesmo aqui, sempre pela via da Exterioridade!...

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INTELIGÊNCIA//VONTADE: CONSCIÊNCIA

• Na história da Cultura do Ocidente, foram, sem dúvida, os Padres (da Igreja) Gregos e a Patrologia grega, que mais e melhor estudaram o fenómeno e as Grund-Strukturen do Psico-Sócio-Ânthropos (muito mais e melhor que os Padres da Igreja Latina e a Patrologia latina). O que, aqui, pretendemos salientar, nesta óptica, é que foram os Gregos (e não os Latinos) que melhor aprofundaram a composição e o funcionamento do Psico-Sócio-Ânthropos segundo a gramática do Trinómio: sôma/psychè/pneuma (corpo/alma ou psique/espírito). Esta geometria triádica é importante e decisiva, porque nos permite, metodológica e epistemicamente, perspectivar o Psico-Sócio-Ânthropos com as societárias funções cráticas plenamente integradas, refutando em todos os azimutes a tradicional teoria/doutrina dos ‗Poderes Separados‘ na Cultura do Ocidente. Esta problemática foi bem tratada, em termos psico-sócio-culturais/críticos, e bem orientada ao privilegiar a tríade sobre a díade, pelo filósofo francês Michel Fromaget, no seu livro titulado: ―Dix Essais sur la Conception Anthropologique ‗corps, âme, esprit‘‖. (L‘Harmattan, Paris (França/Canadá), 2000.) É que, na verdade, só pela via ternária psico-sócio-antropológica (desde que bem interpretada) será possível evitar ou reduzir as negativas e perversas consequências práxicas e pragmáticas, resultantes do Dualismo metafísico-ontológico, em que tem incorrido a Cultura/Civilização do Ocidente. Os Padres Latinos, pelo contrário, prosseguindo no horizonte rígido do Dualismo (metafísico-ontológico) de Platão e Paulo, no concernente à composição e funcionamento do Psico-Sócio-Ânthropos, puseram a tónica na díade alma/corpo, deixando que a quase totalidade da energia ou dinâmica do espírito ou pneuma ficasse atribuída e confinada ao exercício da Potestas d‘abord e aos que são detentores das 332


suas funções. Em termos ideológico-culturais, dir-se-á que os Gregos são mais hilemorfistas e é a linha filosófica de Aristóteles, que neles predomina (ao contrário do que por vezes se tem propalado...); os Latinos, por seu turno, são mais fiéis à linha platónica e ao Dualismo metafísico-ontológico, adoptando a grelha hermenêutica de Paulo, que até escreveu as suas Cartas originalmente em grego koinè. Neste horizonte contrastivo, é óbvio que a Patrologia grega (vis-à-vis da latina) está muito melhor preparada/aparelhada para admitir e praticar a Dualidade Epistémica; a Patrologia latina adoptou, sem tergiversar, o Monismo Epistemológico, que ancestralmente lhes vinha sendo debitado pela sempiterna Cultura do Poder Condomínio (segundo a teoria dos ‗Poderes Separados‘). Mais: é a Patrologia grega (não a latina) que mais se aproximou do horizonte crítico dos Gnósticos judeo-cristãos primevos da Escola de Alexandria (no antigo Egipto). Veio esta dupla reflexão crítica, contrastiva, a propósito do modo como se deverão conjuntar os três lexemas da tríade em título: No horizonte da patrologia latina, as três faculdades psico-sócio-antropológicas podem lobrigar-se distribuídos como segue: a inteligência dimana da psique ou alma; a vontade (ligada à impulsão e ao movimento, ao que Espinosa chamava conatus) está associada ao corpo: é o indivíduo constituído por corpo e alma. Quanto à dinâmica e à respectiva responsabilidade da Consciência, elas encontram-se, separadamente, atribuídas e confinadas às Autoridades/Poderes Estabelecidos. É muito difícil entrever (é impossível, para o C.E.H.C.) que possa emergir um Regime (político) verdadeiramente democrático em tal horizonte. Ora, como na boa Filosofia (clássica/holénica), a Inteligência deve reger e comandar a Vontade (individual-pessoal), não se vê como se pode aceder à vera Vontade livre dos Indivíduos-Pessoas, na mundividência da Patrologia latina; porquanto os saberes aprofundados, que podem fundar a vera Vontade livre estão nas mãos das Autoridades e dos Poderes Estabelecidos, aos quais se atribui a Consciência do Mundo. Em última análise, poder-se-á concluir que só resta aí campo, para o exercício (minguado) do livre arbítrio, da sempiterna lei do pêndulo!... No horizonte da Patrologia grega, o entrosamento helénico da Inteligência e da vontade livre (reconhecida como tal), em todos os Indivíduos-Pessoas, além de encontrar a sua dinâmica própria e autónoma nesse módulo, por força do espírito ou pneuma aí integrado, vê a sua dinâmica evolutiva em propulsão para a escala do Colectivo societário, uma vez que Inteligência e Vontade (unidas) se refontizaram, ra333


dicalmente, no fenómeno da Consciência, que emergiu na área do Espírito/Pneuma e é comum a todos os Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Nesta galáxia, as Sociedades humanas podem evoluir verdadeiramente a partir do Psico-Sócio-Ânthropos; podem melhorar e evoluir, não apenas por força dos novos meios e instrumentos acumulados, mas também em virtude das dinâmicas (individuais e colectivas), acumuladas pela Acção dos Espíritos e das Consciências. Nessa galáxia, há razões e possibilidades para o ‗Homo Sapiens tout court‘ evoluir para o patamar superior do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘. Tudo depende de o caminho não se achar obstruído, por Agências externas. Na História geral, porém, da Cultura e da Civilização, a Cultura cristã católica/romana, sempre matricialmente imperial, do Ocidente acabou por exercer historicamente primado, no concernente a alguns parâmetros, sobre a própria ‗Ortodoxia‘ (primeiro, grega e bizantina, depois, russa e eslavófila, em geral). Mas há, em toda esta problemática, uma Questão crucial, que é necessária encarar e resolver: Por que é que a Cultura do Ocidente e o Processo ocidental da Civilização (em transe de mundialização desde há cinco séculos), justamente nas suas Idades mais promissoras (a Moderna e a Contemporânea), não foram capazes de aceder ao patamar superior da ‗especiação‘ antropogenética, que dá pelo nome de ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ e sua respectiva gramática de funcionamento, e preferiram fixar-se, eternamente, no patamar anterior do ‗Homo Sapiens tout court‘?!... Podem enumerar-se cinco Factores causais principais, que vieram a contribuir, decisivamente, para o ainda presente estado das coisas: O primeiro prende-se com o continuado Facto histórico das 3 Religiões institucionalizadas de ‗O Livro‘, que não foram capazes de se ‗modernizar‘ e actualizar, de acordo com os ‗Sinais dos Tempos‘ e a Evolução das Sociedades humanas. O próprio Cristianismo, que procurou, serodiamente, o seu ‗aggiornamento‘ (por iniciativa de João XXIII, em 1959), no Concílio Vaticano II (1962-65), começou a assistir à completa frustração do processus, logo na 2ª fase do Concílio por efeitos da ‗maquinação‘ do novo papa, Paulo VI, até ver todo o Grande Empreendimento dissolvido durante os pontificados dos papas seguintes, João Paulo II e Bento XVI. O Judaísmo e o Islão também não foram capazes de alterar substantivamente o funcionamento das suas próprias ‗Casas‘ (o primeiro, embrenhando-se no Sionismo, desde o último quartel do séc. XIX; o segundo, atolando-se em fundamentalismos doutrinários e práticas suicidárias em nome de Alláh). 334


Marx não estava certo, ao proclamar, pura e simplesmente, que ‗a religião é o ópio do povo‘. Mas a semântica deste apotegma fica certa (em termos gramaticais e noéticos) se acrescentarmos ao substantivo religião, o adjectivo institucionalizada. É que o problema nuclear está sempre articulado com a ‗Quaestio Potestatis‘!... O segundo Factor causal tem a ver com a mundividência ‗crítica‘ construída, nas Idades moderna e contemporânea, em oposição às religiões (institucionalizadas): o pensamento e os sistemas ideológico-culturais, que aí tomaram corpo, sob a chancela do Ateísmo ou do Agnosticismo modernos e contemporâneos, eles próprios — há que reconhecê-lo — não mexeram nos categoremas dualistas comuns e nos modelos operatórios comuns do funcionamento hierárquico, próprios da comum e sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. Neste contexto, os modelos do Psico-Sócio-Ânthropos, próprios da cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘, prosseguiram inalterados. O terceiro Factor causal concerne à continuação imperturbável da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, que tanto as Instituições culturais (Universidades e Academias) como os melhores pensadores das Idades moderna e contemporânea não tiveram a coragem de refutar e combater. A prova insofismável de todo este Processo histórico pode aquilatar-se na Grande Ilusão (= a pura mentira entre o Discurso oficial e a triste e trágica Realidade...), que foi a chamada transição do ‗Ancien Régime‘ para o ‗Nouveau Régime‘. Como se enganou tanto o próprio Alexis de Tocqueville!... O quarto Factor causal diz respeito aos famigerados Sistemas Educativos nacionais, que foram sendo implantados nos sécs. XIX e XX. Declarando-se embora como educativos, tais sistemas nacionais, nos seus Programas e curricula, não tinham ambições nem objectivos reais fora da órbita da ‗Instructio‘. Do que se tratava era de preparar profissionais, para entrarem de imediato na vida activa das Sociedades nacionais. A cidadania, a democracia e o civismo, a civilidade e a moralidade, — tudo isso ficou de fora, pura e simplesmente, não contava, era coisa sem interesse. O quinto Factor causal é atinente ao generalizado ‗pensiero debole‘ (Gianni Vattimo), que foi erigido em bandeira, na chamada transição dos Tempos Modernos para a Pós-Modernidade. O Pensamento fraco e sem consistência tornou-se o facto sócio-cultural mais lamentado e vituperado nas últimas duas décadas. Deixou de haver ‗maîtres à penser‘!... Parece, também, que já não há condições objectivas para que a sua voz ou a sua escrita se façam sentir. O C.E.H.C. aceitou e reconheceu a Mudança... mas, precisamente, para afastar e exorcizar todas as confusões e indefinições, 335


chamou à nova era Pós-Modernidade positiva e crítica. Nunca são demais as precauções quanto ao que se pensa!... Há, desde logo, duas vertentes nesse nocionamento do ‗pensiero debole‘: a negativa que deveio positiva, e a positiva que deveio negativa. Quanto à primeira, a referência vai para essas ‗gaiolas‘ dos diferentes Sistemas ideológicos, tão característicos da Modernidade, das quais, felizmente, se veio a libertar o Pensamento da Era pós-moderna. No que tange à segunda, as referências vão, inevitavelmente, para o que K. Popper chamou (assepticamente) ‗obras da civilização‘, e nós entendemos referenciar, com precisão crítica, sob a designação de meios e instrumentos da crescente „Tecnociência de Aparelho‘, que tem avassalado as sociedades e o mundo. Como se torna evidente e manifesto, no horizonte da Ditadura (imperialista) dos mercados que prossegue na Pós-Modernidade, com todos os atrelados da Tecnociência de Aparelho, o ‗pensiero debole‘, afinal, continua cada vez mais forte, adoptando sem pestanejar a ‗cartilha do Moderno‘. Só que, no reverso desta medalha, o Pensamento dos Sujeitos/Cidadãos, enquanto tais, tornou-se, ainda muito mais débil do que ocorria, estruturalmente, durante os chamados Tempos Modernos. No fecho da abóbada, diremos que, neste Processus histórico, o que continua a triunfar (soberanamente...) é a religião (laica e profana) do Objectivo-Objectualismo, acompanhada pela cartilha cienticista do Monismo Epistémico, tudo sob o Estandarte (procissional) continuado da sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord. A própria Conferência de Gilles Lipovetsky (cujos livros nós até começámos a apreciar, na passada década de noventa), sobre o tema ‗Culture-Monde et Culture Européenne‘, integrada no Programa ‗Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura‘ (CEC), e realizada no Centro Cultural Vila Flor (em 30.4.2011), confirmou, sem ilusões, o horizonte ideológico da resignação continuada, dentro dos catecismos do Objectivo-Objectualismo e do Monismo epistemológico, ditados pela continuada Cultura do Poder-Condomínio (que já quase ninguém discute, em nome da simples Democracia). A ‗culture-monde‘ de G.L. não passa de um fantasma... mesmo segundo o teor admitido de um adjectivo, em lugar do substantivo. • Reivindicar a Consciência perante as traições do Objectivo-Objectualismo

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‗A Construção do Cérebro Consciente‘. Com efeito, o subtítulo do citado Livro de A.D. atraiçoou, de fond en comble, o título que ele inscreveu na capa: ‗O LIVRO DA CONSCIÊNCIA‘. A investigação do tema em pauta (que até poderia anunciar outras promessas...) foi devidamente cercada. Consciência é o fenómeno, que tem estado sistemicamente ausente, na organização das Sociedades (abusivamente) ditas humanas, ao longo dos milénios da história das culturas e das civilizações. A modernaça metodologia primacialmente analítico-laboratorial, utilizada pelo Autor, ainda se justificará plenamente nos dias de hoje, sobremaneira quando as dimensões cultural e histórica e de incidência societária ficam obliteradas e totalmente eclipsadas?!... É uma ‗quaestio ad hominem‘, que não pode deixar de ser posta. Sobre o habitat anatómico-fisiológico da consciência, A.D. procura revelar-nos que o cérebro consciente, no seu trabalho global, procede de modo aantomicamente diferenciado (p.300); que os estados mentais conscientes surgem ―no espaço imagético das regiões corticais primárias e do tronco cerebral superior, o ‗espaço de performance‘ compósito do cérebro‖ (pp.299-300). Convém, entretanto, advertir, que não há consciência, na experiência humana, sem sentimentos (p.301). No que tange à neurologia da consciência, o Autor ensina que a tríade directora constituída por estado de vigília, mente e eu se acha directamente referenciada às três grandes divisões anatómicas: tronco cerebral, tálamo e córtex cerebral (p.302). O Autor acha que ―o tronco cereral continuará a garantir os aspectos fundamentais da consciência, por ser o principal e indispensável fornecedor de sentimentos primordiais‖ (pp.310-311). No que tange à articulação do processo da cognição com os sentimentos, A.D. já não tem receio de falar de proto-sentimentos que acompanham, literalmente, a protocognição. Até parece que venceu, aqui, finalmente, o hilemorfismo aristotélico (contra o Dualismo platónico-paulino-cartesiano). Na verdade, os sentimentos são ‗a outra face da moeda da cognição‘ (p.313). ―Se situarmos a origem geral das imagens a um micro-nível, com pequenos circuitos neurais a criarem fragmentos de protocognição, por que não deveremos dar o mesmo tratamento à classe especial de imagens, a que chamamos sentimentos, e considerar que começam também nesses mesmos pequenos circuitos?‖ (idem, ibidem). Sobre as origens do processo mental e da mente consciente. Sempre com a sua fonte neurológica no tronco cerebral, A.D. discerne três tipos de sentimentos: os sentimentos primordiais (internos ao organismo), os sentimentos corporais (que resultam de emoções e podem ser evidenciados em mapas proprioceptivos), e sentimentos 337


corporais específicos (evidenciados em mapas exteroceptivos) (cf. ibi, pp.104-105). Dos sentimentos, em geral, se pode dizer que ―são uma variedade de imagem, tornada especial pela sua relação única com o corpo. Os sentimentos são imagens sentidas espontaneamente; todas as outras imagens são sentidas, porque são acompanhadas pelas imagens específicas a que chamamos sentimentos‖ (idem, ibi, p.104). O cérebro, ao interagir, no corpo vivo, com a mente, criou a Consciência, no Indivíduo-Pessoa humano. (Cf. ibi, pp.119 e ss.). Um dos parâmetros essenciais e decisivos, no funcionamento do cérebro consciente, é o da recursividade; trata-se de uma exigência que tem aplicação no córtex cerebral e nos núcleos subcorticais: ―terá de haver uma interconectividade massiva entre as regiões que criam a mente, para que se alcance um nível elevado de entrecruzamento de sinais, e para que a recursividade prevaleça. (Os termos recursivo e reentrante referem-se a uma transmissão de sinais, que não só progride ao longo de uma única cadeia, mas também num percurso inverso dirigido ao ponto de origem de cada cadeia.)‖ (idem, ibi, p.116). No mapa da p.130, estão assinaladas as interacções recursivas entre córtex cerebral, mesencéfalo, protuberância e espinal medula, de tal forma que se pode ver que ‗no processo de regulação vital podem ser criados novos padrões de sinais‘ (p.131). Pode mesmo concluir-se que, neurologicamente, a mente e a consciência emergem a partir da acção do cérebro mapeando o corpo. Uma vez que ―os mapas cerebrais são a base das imagens mentais, o cérebro criador de mapas tem o poder de introduzir, literalmente, o corpo como conteúdo no processo mental. Graças ao cérebro, o corpo torna-se um tema natural da mente‖ (idem, ibi, pp.119-120). — Começará aqui, organismicamente, a patologia do Objectivo-Objectualismo, de que temos falado?! Não. Como se pretendesse fixar-nos, eternamente, neste desdobramento objectivo-objectualista do corpo originário, o Autor sublinhou no parágrafo seguinte (p. 120): ―embora o corpo seja a entidade mapeada, ele nunca perde o contacto com quem realiza o mapa, ou seja, o cérebro‖. Desta sorte, ―as imagens mapeadas do corpo conseguem influenciar de modo permanente o próprio corpo que as originou‖ (idem, ibidem). Contudo, o Objectivo-Objectualismo (enquanto metodologia científica e ideologia cultural) não tem as suas origens na psico-neurobiologia; as suas raízes são de ordem cultural/civilizacional. O que na emergência presente está em causa é o modo como a Consciência identitária se configura neurobiologicamente, nos Indivíduos-Pessoas, enquanto centro polarizador. O que, a partir daí, se pode e deve esperar é 338


que cada Indivíduo (humano) singular e concreto seja capaz de se reconhecer como um entre muitos, democraticamente, onde os outros, por suposto, têm as mesmas capacidades naturais que o primeiro, — o que levará o primeiro a não se lobrigar sozinho no Mundo, déspota sobre tudo, mas de ninguém!... — Esta reflexão crítica é importante e pertinente: o Dualismo platónico-paulino repercute-se, directamente, na Cultura do Ocidente e no seu tradicional vezo do Paradoxo, bem como nas distinções correntes que são feitas entre a Teoria e a Prática, o Padrão (teórico) e os indivíduos padronizados... Sobre a fundação neurobiológica da subjectividade, escreve A.D. (ibi, p.132): ―Não é possível explicar cabalmente a subjectividade sem saber algo mais acerca da origem dos sentimentos e reconhecer a existência de sentimentos primordiais, expressões espontâneas do estado do corpo vivo‖. ―Os sentimentos primordiais baseiam-se no funcionamento dos núcleos do tronco cerebral superior, parte integrante da maquinaria de regulação vital‖ (idem, ibi, p.133). Sobre a ponte e a articulação entre o mundo interior e o mundo exterior, que um cérebro consciente é capaz de empreender, escreveu o Autor (ibi, p.139): ―Um mapeamento corporal de extrema complexidade sustenta tanto o processo do eu nas mentes conscientes como a representação do mundo exterior ao organismo. O mundo interior garantiu-nos a possibilidade de conhecer não só esse mesmo mundo interior mas também o mundo que nos rodeia‖. — Os Humanos, nesta perspectiva, se forem capazes de viver democraticamente, respeitando as dinâmicas vectoriais do Uno para o Múltiplo e do Múltiplo para o Uno, poderão edificar um imenso Arco de Abóbada (num crescimento exponencial infinito) entre o Mundo interior das Consciências Individuais-Pessoais e o Mundo exterior do Cosmos e das Sociedades humanas na História. No cap. 2, a respeito ‗Da regulação da vida ao valor biológico‘ (pp.51 e ss.), e na p.142 (passim ao longo do livro), A.D. discorre sobre o princípio do valor (biológico), aplicado a sentimentos e emoções, através de dispositivos de recompensa e castigo. Esta é uma vertente da sua escrita (que até nos lembrou ‗os cães de Pavlov‘...) que nos confirma, sans ambages, que o Autor não saiu (em termos culturais e civilizacionais) do odre da Potestas-Dominação d’abord e da cartilha do ‗Homo Sapiens tout court‘. ‗Aliquando dormitat Homerus‘!... De facto, em termos evolucionários, o princípio do valor, que era necessário propor e asseverar é o do valor da Antropogénese, à escala holística. 339


É sabido (ou deveria sê-lo...) que os Seres humanos, qua tais, são seres que sabem que sabem, seres reflexivos (A.D. falou da recursividade...) e críticos. Por isso, dizemos, básica e globalmente, que eles são dotados de Consciência. Eis por que o Fenómeno da Consciência humana, se bem compreendido, tem de ser caracterizado e avaliado como uma realidade (fontal) in fieri, e não apenas in facto esse. A sua potencialidade infinita (!...) deve ser assinalada. Ora o nosso Autor contenta-se em defini-la como uma ‗res in facto esse‘. A prepósito das duas vertentes opostas do fenómeno da Consciência (consciente//inconsciente), A.D. estabelece o seguinte (p.332): ―Existem dois tipos de controlo das acções, consciente e não-consciente, mas o controlo não-consciente pode ser moldado em parte pelo controlo consciente. A infância e a adolescência humanas são extremamente longas, porque é preciso muito, muito tempo para educar os processos não-conscientes do nosso cérebro e para criar, nesse espaço cerebral não-consciente, uma forma de controlo que possa funcionar, de modo mais ou menos fiável, de acordo com intenções e objectivos conscientes. Podemos descrever esta educação lenta como um processo de transferência de parte do controlo consciente para um ‗server‘ não consciente, e não a cedência do controlo consciente às forças inconscientes, que podem provocar o caos no comportamento humano‖. A.D. não se deu conta de que discorreu sobre o consciente (e o não-consciente...) na terceira pessoa gramatical... falou de uma ‗res in facto esse‘. A educação (de que ele falou, e que sobremaneira tem lugar na infância e na adolescência e na juventude) é uma pura domesticação dos novos seres humanos que estão crescendo para a vida. É, de facto, nessas três etapas de preparação para a vida, que os novos Seres humanos deveriam enriquecer, criticamente, a sua Consciência, para, justamente, poderem combater e superar a Sociedade em que foram ‗domesticados‘. Mas A.D., pelo discurso inexoravelmente objectivo-objectualista (de que é vítima) está, antes, preocupado com a parafernália dos controlos (primeiro, exógenos, depois, endógenos). É indiscutível que, neste quadro, A.D. se posiciona do lado dos Poderes Estabelecidos (da ‗Law and Order‘). Não se pode estranhar o discurso do Académico A.D.. Na contracapa do seu Livro (em apreço), pode ler-se, em jeito de resumo icónico: ―Como é que o cérebro constrói a mente? E como é que o cérebro torna essa mente consciente? Qual a estrutura necessária ao cérebro humano e qual a forma como tem de funcionar para que surjam mentes conscientes‖?. Sempre o catecismo do Objectivo-Objec340


tualismo impenitente e irredento, nas matérias superlativamente mais sensíveis do Psico-Sócio-Ânthropos. Falar (a respeito da problemática da Consciência) de perspectiva extrospectiva e, em contraste, de perspectiva introspectiva, é, ainda e sempre, um discurso objectivo-objectualista, na medida em que é enunciado na 3ª pessoa gramatical. A preocupação com uma Boa Educação (em contraponto com a ‗Domesticação‘ tradicional e corrente) deveria constituir o Objectivo central de um Sistema Educativo digno do nome e o Empenhamento sério de qualquer investigador sério em ciências psico-sociais e/ou humanas. Proclamamos esta Tese aos quatro ventos, porque na formação da Consciência (segundo os conhecidos três níveis: consciente, subconsciente e inconsciente), os processos mentais fazem entrar em cena a Memória e os seus registos, que funcionam como toda uma ‗Casa edificada‘, que o Eu identitário leva atrelada. É esta ‗Casa‘ funcional e bem mobilada, adequada a novos Seres humanos dignos do nome? É a 1ª Pergunta que Mestres e Sábios têm de fazer. Sobre o modo como emerge e funciona a Memória, escreve A.D. (op.cit., p. 170): ―O organismo (o corpo e seu cérebro) interage com os objectos, e o cérebro reage à interacção. Ao invés de criar o registo da estrutura de uma entidade, o cérebro na realidade regista as múltiplas consequências das interacções do organismo com a entidade. Do nosso encontro com um dado objecto, não memorizamos apenas a sua estrutura visual, tal como é mapeada em imagens ópticas da retina. [...] Aquilo a que normalmente nos referimos como sendo a memória de um objecto é a memória composta das actividades sensoriais e motoras relacionadas com a interacção entre o organismo e o objecto durante um certo período de tempo‖. Há uma definição compósita de Consciência, que é, sem dúvida, a melhor que o Autor nos facultou ao longo do seu Livro (p.199): ―consciência é um estado mental em que temos conhecimento da nossa própria existência e da existência daquilo que nos rodeia. A consciência é um estado mental — se não houver mente, não há consciência; a consciência é um estado mental particular, enriquecido por uma sensação do organismo específico onde a mente está a funcionar; e o estado mental inclui o conhecimento de que a dita existência ocupa uma certa situação, de que existem objectos e acontecimentos que a cercam. A consciência é um estado mental a que foi acrescentado o processo do ser‖. A última frase é, para nós, decisiva: é o Blick onde emerge o impulso criador e a génese (ou ruptura...) de qualquer processo. Mas terá o Autor consciência, ele próprio, do que afirmou?!... 341


Para que não se perca a referência ao Eu identitário, o Autor explicitou este facto da seguinte forma (p.200): ―O estado mental consciente é vivido numa perspectiva própria, exclusiva de cada organismo, nunca sendo observável por mais ninguém. Essa experiência pertence a cada organismo e a nenhum outro‖. É aqui mesmo que se enquadra em termos culturais, ‗Der Einzige und sein Eigentum‘ de Max Stirner (‗O Único e a sua Propriedade‘). Nessa mesma perspectiva, o nosso Autor esclareceu devidamente (p.228): ―o estado de vigília e a mente são componentes indispensáveis da consciência, mas o eu é o elemento distintivo‖. É por isso que, em função do processo de formação do Eu identitário, faz sentido discernir e esquadriar as três fases, como faz A.D. (p.229): 1ª fase: proto-eu; 2ª fase: eu nuclear; 3ª fase: eu autobiográfico. Neste horizonte, não podemos esquecer-nos de fazer jus a um dado, que é próprio do Aparelho Antropológico da Consciência humana, justamente a partir dos Eus identitários (singulares e concretos): a capacidade de antecipar (criticamente) e prever o desenrolar dos processos societários; e o próprio ‗dom da profecia‘ (no que tange aos mais sábios dos humanos). Como escreveu o próprio A.D. (ibi, p.221): ―O mecanismo de processamento de imagens pôde então ser orientado pela reflexão e usado para a antecipação eficaz de situações, antevisão de resultados possíveis, orientação do futuro possível e invenção de soluções de problemas‖. No horizonte do C.E.H.C., ao tratar dos princípios antropológicos e das exigências axiológicas do Eu identitário, não temos problemas em assumir as reivindicações e os projectos de Crítica societária, procedentes da vera Anarquia e dos anarquistas honestos. Não são eles que, ao longo da História das culturas e das civilizações, têm puxado a carroça de tantas consciências (individuais-pessoais) mortas/vivas, fazendo-nos sentir e saber a generalizada e estrutural Ausência da Consciência, na construção das Sociedades humanas?! A.D. forceja por tentar sair do odre tradicioal do ‗homúnculo‘ e das teorias monocráticas e hierárquicas de organização das Sociedades, ao redigir o seguinte parágrafo a propósito do proto-eu (ibi, pp.251-252): ―Tenho de salientar que o proto-eu não deve ser confundido com um homúnculo, tal como o eu que resulta da sua modificação também não é ‗homuncular‘. O conceito tradicional de homúnculo corresponde ao homenzinho sentado no interior do cérebro, omnisciente e sábio, capaz de responder a perguntas sobre o que se está a passar na mente e de apresentar interpretações para os acontecimentos. O bem conhecido problema com o homúnculo prende342


-se com o círculo vicioso que cria. O homenzinho cujo conhecimento nos tornaria conscientes precisaria de outro homenzinho no seu interior, capaz de lhe assegurar o conhecimento necessário, e assim por diante, até ao infinito. Isto não funciona. O Conhecimento que torna a nossa mente consciente tem de ser edificado de forma ascendente. Nada poderia estar mais afastado do conceito de proto-eu, aqui apresentado, do que a ideia de um homúnculo. O proto-eu é uma plataforma razoavelmente estável e uma fonte de continuidade‖. Os itálicos do § anterior fomos nós que assim os grafámos, porque, honestamente, pretendemos fazer jus ao pensamento expresso do Autor. Contudo, a boa hermenêutica obriga-nos a continuar a perguntar-lhe, em escalas mais amplas e omni-abrangentes: Como e por quê a sua Investigação sobre a Consciência humana, lhe permite silenciar e não prestar atenção às implicações e consequências das Ausências de Consciência, tanto no plano dos Sistemas Educativos nacionais como no da organização das Sociedades humanas, ao longo da História das culturas e das civilizações?!... Interessam-lhe as miudezas, dentro da sua especialidade académica de Neurobiologia, à boa maneira da gramática moderna da Ciência... É, por exemplo, nesta óptica, que o Autor explica o diagrama sobre o Esquema dos mecanismos do eu nuclear (p.258): ―O estado do eu nuclear é um compósito anatómico e funcional. Os principais resultados funcionais são os sentimentos de conhecimento e o realce do objecto, que desencadeou originalmente esses sentimentos. Outros componentes importantes são a perspectiva, a sensação de posse, e a sensação relativa à capacidade de agir‖. Será só a partir do ‗eu autobiográfico‘, que essa sensação relativa à capacidade de agir vai tomar corpo e pôr-se em marcha, na medida em que o ‗eu autobiográfico‘ se configura, estruturalmente, na interacção com a memória? Sendo assim, a Pesquisa sobre a Consciência não nos permitiu nem nos incitou a sair do odre fatídico do sacrossanto Objectivo-Objectualismo!... No cap. 9, sobre O eu autobiográfico (pp.263 e ss.), A.D. desenvolve o tema do ‗eu autobiográfico‘ como um processo dinâmico, que procura dar consciência à memória... Entretanto, a propósito dos coordenadores dos mecanismos neurais (pp.267...), o Autor continua a afastar do processo — bem — tanto o homúnculo como a memória genética. Não será caso, para nos interrogarmos todos ad hominem: em vez de procurar consciência para a memória (na

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formação do eu autobiográfico...), não carecemos, muito mais, de procurar Memória para as Consciências críticas e revolucionárias?!... Não obstante, o Fenómeno evolutivo da Consciência (a Vida que irrompe a partir de dentro, sempre com uma resiliência enorme...) apresenta-se-nos com uma longevidade surpreendentemente grande. A.D. reconheceu-o: as estruturas anatómicas relacionadas com a consciência, ―tanto ao nível subcortical como cortical, tendem para as zonas mais antigas na história da evolução biológica. Isso não deverá surpreender, visto que o início da consciência ocorreu numa fase tardia da evolução biológica, mas não foi, de todo, um desenvolvimento evolutivo recente‖ (ibi, p.279). Se a consciência não é o resultado de um desenvolvimento evolutivo recente, a pergunta patética que se tem de formular é a seguinte: sendo antiquíssimas as suas raízes, por que se tem adiado sempre o seu pleno florescimento, por que se tem continuado, na história do ‗Homo Sapiens//Sapiens‘ (pelo menos desde a emergência do ‗Homem de Cro-Magnon‘) a fazer de conta que o Fenómeno da Consciência humana não existe, nem conta para nada (a não ser para tornar os indivíduos responsáveis pelos seus pecados ou crimes...)?!... De resto, as corveias culturais/societárias, resultantes da Cultura do Poder-Dominação d’abord, ainda hoje prosseguem, evitando e impedindo o desabrochar do Fenómeno das Consciências individuais-pessoais, na organização das Sociedades humanas. E neste horizonte, o contributo do Autor, neste Livro, foi stingy, muito stingy (temos de o reconhecer). Na verdade, do que a Espécie humana (no seu Processo histórico cultural/civilizacional) mais carece, para crescer e adultizar-se, é mesmo de Memória, destinada justamente à plena Afirmação das Consciências dos Indivíduos-Pessoas (como fez, v.g., Primo Levi, ao recordar para as gerações futuras a desumana vida nos Lagern, nos campos de extermínio nazis): Memória social, cultural, histórica, política. É absolutamente necessário e indispensável promover e assegurar essas fortalezas inexpugnáveis, que devem ser as Consciências dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos, contra as sistémicas arremetidas da Potestas d‘abord, perante as derivas correntes (a pusilanimidade e a subserviência...) dos indivíduos, convertidos em zombies ou cabeças de gado num rebanho, sempre manipulado ou guiado por pastores e governantes (supostamente eleitos...), que não conhecem outro discurso, outra linguagem, senão a da demagogia, da conquista e da dominação.

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— Linguagem e Discurso, que são instilados e sobredeterminados, tanto aos eleitos como aos eleitores, pelos Egoísmos fonciers, a forja da Concorrência e do Lucro d’abord, sempre ditados e proclamados pelo catecismo do Sistema capitalista!...

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EM DEMANDA DA CONSCIÊNCIA LIVRE E RESPONSÁVEL 345


• A formação e a promoção da MEMÓRIA encontram-se na base de uma Consciência individual-pessoal (adulta), livre e responsável. Sem esta última, nunca poderemos falar, legitimamente, da emergência da Cultura da Liberdade Responsável, primacial e primordial, contra a antipódica Cultura do Poder-Dominação d’abord, ainda vigente e hegemónica everywhere. Por que se fala (a começar pelos especialistas das diversas áreas científicas...) sempre mais do inconsciente e do subconsciente (olhe-se para o ‗Palácio encantado‘ da Psicanálise freudiana) do que do consciente e da consciência? Porque sobrevivemos na Cultura do Poder-Condomínio, e os ‗responsáveis‘ académicos ou políticos não têm interesse em promover a Consciência dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Isso seria considerado, pelo vulgo, como Altruísmo em excesso, ou, pelos peritos, como visão holística em demasia!... Por isso, os especialistas se empenham, antes, em caracterizar e alargar o espaço (psico-sócio-antropológico) do inconsciente genómico ou genético. Esse é um domínio mais fixo e determinado. O que é do domínio do Imaginário e do Projecto crítico (individual ou colectivo) não conta nem tem importância; o que interessa e deve contar é o processus da Domesticação e da Adequação ao status quo!... A.D., numa nota sobre o inconsciente genómico (op.cit., p.342) até chega a falar de ‗uma das forças ocultas que a deliberação consciente tem de enfrentar‘. Curiosamente, a Liberdade do Indivíduo-Pessoa só se pode afirmar pela via negativa, resistindo aos obstáculos, determinações e censuras da ‗Ordem/Desordem estabelecida‘.Já se vê que, neste horizonte, o exercício da Liberdade se acha sempre condicionado e submetido aos determinismos genéticos, em primeiro lugar, e aos determinismos societários (resultantes dos Poderes Estabelecidos), em segundo lugar. Falar, nesta óptica, de Liberdade Responsável (do Indivíduo-Pessoa/Cidadão) primacial e primordial não tem qualquer sentido... é um ‗non sense‘. Entretanto, a Sociedade onde tudo isso se passa assim, é a Sociedade (dita civilizada...) estruturada e baseada na Potestas-Dominação d’abord... que ninguém ousa discutir, porque isso mesmo é o último tabú da sobrevivência!... Quanto ao conteúdo desse inconsciente genómico, o Autor enuncia-o como segue (ibidem): ―número colossal de instruções contidas no nosso genoma e que orientam a construção do organismo, com as características distintivas do nosso fenótipo, 346


tanto no corpo em si como no cérebro, e apoiam o funcionamento do organismo. O esquema básico dos nossos circuitos cerebrais é formulado pelo genoma, e esse esquema básico contém o primeiro repertório de conhecimentos não-conscientes, com que o nosso organismo pode ser dirigido‖. Que uma Liberdade Responsável exige muito esforço e trabalho e cuidados ao Indivíduo-Pessoa, já o sabíamos por experiência própria. Sabendo, porém, que os determinismos genéticos são mais que muitos e poderosos, até poderíamos dar-nos uma boa ‗Folga‘ existencial... mas o problema estrutural sério é que, no combóio dos determinismos genéticos, vieram muitas carruagens de condicionamentos societários, procedentes dos Poderes Estabelecidos e impostos pelas respectivas Autoridades. O indivíduo-pessoa/cidadão ficou reduzido a um grilo (falante...) dentro da gaiola!... Será mesmo possível educar o inconsciente cognitivo? (Cf. op. cit., pp.345...). A proposta de A.D. nesse sentido só pode dar mesmo para rir!... Desde logo, o acto e o processo de educar têm de partir, por definição, da plataforma da consciência e dos estados de vigília. Será, então, possível re-educar o inconsciente cognitivo? — Só por via indirecta (de ricochete...). O projecto, encarado como objectivo directo, soa a absurdo. O caso dos objectores de consciência (evocados pelo Autor: ibidem), o que revela é que o conflito criado só pode resultar a favor dos Sujeitos em causa, se as Autoridades estiverem preparadas para o efeito e forem inteligentes e maleáveis. De contrário, nada... E o que a ‗objecção de consciência‘ comprova, em termos psico-societários, são duas coisas: a) existe uma consciência individual-pessoal que repudia a ordenança do ‗Establishment‘; b) estando, por princípio, a verdade justa do lado do ‗objector de consciência‘, o que se segue, ipso facto, é que a ‗Ordem estabelecida‘ está em desordem. Curiosamente, este é o Caso de todos os chamados Terrorismos de Estado. Nesta problemática, A.D. continua a encarar a Organização societária sempre a partir dos Poderes Estabelecidos, como é aliás corrente: ―Durante milénios, chefes sagazes optaram por uma solução semelhante ao pedirem aos seus seguidores que observassem rituais disciplinados, cujo efeito secundário terá sido uma imposição gradual de decisões tomadas conscientemente sobre processos de acção não-conscientes. Não admira que muitas vezes, esses rituais envolvessem a criação de emoções exaltadas, até mesmo dor, um modo de gravar o mecanismo desejado na mente humana‖ (ibi, pp.345-346).

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O que, antes de tudo, se tem de observar, nesta perícopa, é que efeito principal e efeitos secundários do mesmo acto ou processo decorrem em agentes ou actores diferentes: chefe e súbditos. Começou aí a manipulação e o controlo societários, por parte dos Agentes ou Actores estabelecidos em Poder. Ora, em boa Ética/Moral, o chamado Princípio da Acção com (saltem) Duplo Efeito (que é universal no universo humano...) tem de ser, honestamente, aplicável a todos os Indivíduos. Por isso, em última análise, a Democracia, baseada no Diálogo inter-cidadão, é o único Regime político digno dos Humanos, dotados de Consciência reflexiva e crítica. Espinosa imaginou e concluiu, na sua ‗Ética‘, que uma emoção de consequências negativas só poderia ser contrariada e superada por uma outra emoção mais poderosa. Nisto mesmo, ele próprio foi vítima do mecanicismo cartesiano, que tanto vituperou. É que, em todas as correcções e superações (atinentes ao bom funcionamento do organismo humano vivo), o processo tem de começar no cérebro e na mente consciente. A.D. acaba, finalmente, por concluir nesta mesma linha (ibi, p.347): ―O dispositivo não-consciente tem de ser treinado pela mente consciente para desferir um contragolpe emocional‖. Como se tem constatado, neste nosso ‗Abrégé‘ crítico de ‗O Livro da Consciência‘, A.D. situa-se, enquanto Autor e como Investigador, indiscutivelmente na vertente tradicional dos Poderes Estabelecidos e da sempiterna Cultura do Poder-Condomínio. Isso mesmo constitui, logo, a origem de todas as diferenças, que vai repercutir-se, inevitavelmente, no próprio modus como ele pratica a ciência, dentro da cartilha consentida pelo Establishment. E, contudo, o nosso Autor foi capaz de se aproximar, criticamente, da mundividência de B. de Espinosa, no seu livro ‗Ao Encontro de Espinosa‘ (As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir), (Publicações Europa-América, Nem Martins, 2003, 3ª ed.). Na ‗Política‘, o nosso Filósofo por antonomásia, no Ocidente, que foi Aristóteles (curiosamente, a Cultura Ocidental, que é estruturalmente platónica, habituou-se a chamar-lhe ‗O Filósofo‘, que na maior parte das matérias se situou nos antípodas de Platão!...), formulou uma teoria da Emancipação dos seres humanos da sua inicial condição de escravatura ou servidão, polarizada nos meios ou instrumentos da Técnica e das Tecnologias em geral, cujo objectivo era, originalmente, permitir a realização do trabalho produtivo com menos esforço e mais rapidez. Assim, a evolução e o aperfeiçoamento das Técnicas operatórias, no processo de trabalho, teriam, eo ipso, o condão de libertar as sociedades humanas do trabalho escravo e servil. Eis, aqui, uma 348


situação ergonómica padrão, onde se aplica, por inteiro, o princípio da Acção com Duplo Efeito. Esta tópica da Filosofia do Estagirita obteve uma tal repercussão, em toda a História da Cultura e da Civilização do Ocidente, que, mesmo nos dias de hoje, a Civilização tecnológica altamente desenvolvida do Ocidente (hoje em vias aceleradas de mundialização) ainda não saiu dessa órbita. A doutrina de Aristóteles (aqui em causa) é ontologicamente errónea, como se tem comprovado ao longo de dois milénios de História das Sociedades humanas: ela não só adiou (para as calendas gregas...) a abolição histórica da escravatura e da servidão, como constituiu a Alavanca de Arquimedes que, ao longo de mais de dois milénios, assegurou a instituição societária generalizada desse fenómeno, que dá pelo nome de Despotismo iluminado (do qual nem a Aufklärung, a Enlightenment, as Lumières do séc. XVIII foram capazes de se libertar). A Ética crítica, baseada no princípio da Acção com (saltem) Duplo Efeito (postulado pela gramática da Consciência reflexiva e crítica) deveria, aqui e sempre, servir-nos de farol e dar-nos um Bom Conselho. Mas, proh dolor!, não é isso que se passa. Os Seres humanos continuam à espera da Libertação (como foi estilizado na peça dramática de Samuel Beckett, ‗À Espera de Godot‘: a versão francesa En attendant Godot é de 1953); e as práticas sócio-políticas e societárias, em geral, estruturadas sobre o Despotismo iluminado, prosseguem o seu caminho, no carro de Jagrenáh na História (convertida em ‗eterno retorno‘ geracional)... já nem ladram os ‗cães‘ ao verem a caravana passar!... As próprias fenomenologias modernas (desde Edmund Husserl: 1859-1938), mesmo nas sendas dos melhores seguidores do fundador da Fenomenologia moderna, acabaram por não inverter, nem alterar substancialmente os caminhos e o horizonte da História e da Civilização do Ocidente. E, não obstante, houve intelectuais críticos (muito poucos...) que o pretenderam e esperaram fazer. Em vão... A Explicação para todos estes Factos sócio-históricos e culturais a desembocarem em bêcos sem saída... tudo isso tem nomes. Simplificando o Quadro explicativo: Há uma Figura de Rainha Morta, que nunca foi chamada a reinar no reinado, que, por definição e princípio, era o seu: a Consciência Ausente (enquanto realidade individual-pessoal e como fenómeno societário). Depois, príncipes e reis e pagens foram tripudiando à tripa forra sobre os súbditos e todo o Rebanho!... Os nomes destes podem enunciar-se como segue: Cultura do Poder-Dominação d’abord; Monismo Epistemológico nas práticas científicas; a religião (laica e profana) do Objectivo-Ob349


jectualismo (na Cultura e na Filosofia, nas ciências e nas tecnologias), que eclipsou os Sujeitos humanos singulares e concretos (eles que são os Actores no processo do Conhecimento) e reduziu a Mãe-Natureza (a original Casa dos Humanos!) à condição de pura Matéria-prima. Narciso e o seu espelho aquático e o Bezerro d‘Ouro no Sinai continuam a ser as veras divindades, às quais se presta o culto de Latria, que só a Deus era dedicado. Decididamente, a Cultura/Civilização do Ocidente, ao longo do seu processo histórico bimilenar, não tem sabido, e ainda não sabe hoje, lidar seriamente com o Fenómeno da Consciência, — o qual, na sua fons et origo, é sempre, iniludivelmente, a Consciência do Indivíduo-Pessoa/Cidadão, qualquer que ele seja. Esta mesma constitui a bússola para a edificação, não só da vera Humanitas, mas, igualmente, de Sociedades humanas dignas do nome. Ora, reconhecer as Consciências autónomas, nas suas funções de reflexão e crítica, de todos os outros seres humanos meus semelhantes, de um lado, e do outro, a teoria/doutrina e a prática habitual do Despotismo iluminado, constituem-se como projectos e empreendimentos absolutamente incompatíveis. Há que escolher. Não é legítimo continuar como o tolo no meio da ponte!... Desgraçadamente, a Civilização/Cultura do Ocidente (e, aqui, a vigente e imperante ainda não procedeu ao seu haraquiri) está longe de reconhecer estas duas séries de realidades como absolutamente incompatíveis, como tal enunciadas num estrutural Dilema encalacrante. A Cultura Ocidental habituou-se ao catecismo do Paradoxo, que lhe permite juntar na mesma ‗Bolsa‘ (lembram a ‗Economia/Casino‘ em que se converteu o Sistema capitalista moderno?!...) o sim e o não, a verdade e a mentira, a teoria e a prática, o bem e o mal, o particular e o geral, o senhor e o súbdito!... Por isso mesmo, a Cultura/Civilização do Ocidente não sabe o que é a Consciência (humana), nem (muito menos) é capaz de tirar partido dessa fons et origo, para a edificação de veras Sociedades humanas dignas do nome. Toda essa atmosfera ideológica entronca na monumental Ausência dos Eus identitários, na falta de convicção própria e de bússola de orientação dos Indivíduos-Pessoas. A Identidade e a Convicção é preciso assegurá-las e defendê-las, contra todos os assaltantes e violadores, contra todos os Adamastores da ‗Ordem/Desordem‟ Estabelecida. Este programa mínimo é tanto mais urgente e necessário, quanto, num mundo estigmatizado pelo Marketing d‘abord e pelo Consumismo (activo e passivo), onde os seres humanos foram convertidos em golems, os próprios géneros 350


literários foram mascarados de géneros editoriais, para sobreviver... Neste contexto, livros e obras d‘arte, que tersam armas pela verdade inteira de um Humanismo crítico, tal como se impõe (em nome da Espécie humana), viram-se obrigados a optar pela clandestinidade para sobreviver!... • Não pode haver Democracia, em Sociedades organizadas segundo o catecismo da Biopolítica... Biopolítica e Direitos Humanos: uma parelha absurda!... As contradições estruturais da chamada Biopolítica (qua tal) nasceram, cresceram e avolumaram-se até ao desespero, a partir da emergência (sem rede nem tutela) do Sistema económico capitalista liberal, na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, e prosseguiram, à rédea solta, pelo séc. XX, desencadeando duas Guerras Mundiais, que fizeram mais de uma centena de milhões de mortos. A Crise da Justiça e dos Tribunais está, hodiernamente, pervertendo todas as Sociedades nacionais, à escala do Mundo: tanto países em desenvolvimento como países desenvolvidos. Se havia dúvidas, nas fases anteriores do Capitalismo sobre a compatibilidade entre a Justiça e o Direito (público), na fase actual do neoliberalismo capitalista global, todas as dúvidas se dissiparam... (cf. António Cluny ‗Por uma leitura substantiva e política da crise da Justiça‘, in ‗Seara Nova‘, Inverno de 2010, pp.21-25). As Sociedades contemporâneas estão estruturadas e organizadas na base do Biopolítico em todos os azimutes. O Justo e a Justiça já não podem funcionar, em tais Sociedades, porque a própria ética/moral foi agrilhoada e submetida ao funcionamento (objectivo-objectual) da Economia (hipercapitalista); e a Política substantiva e autónoma já não existe, porque tudo ‗tolerou...‘, ao ponto de se abastardar totalmente no catecismo do Economicismo imperante. Michel Foucault foi o académico e militante político que, nos anos ‘50-70 do séc. XX, caracterizou de modo sistémico o fenómeno vilanesco da Biopolítica. As suas investigações foram premonitórias, pela via negativa. À legalidade constitucional de então, que havia edificado o Estado So-cial de Direito, veio a contrapor-se, duas décadas depois, o modelo normativo neo-liberal, destilado, como um dilúvio, pelo processo da globalização (neocapitalista) financeira/económica. Nas lições que deu no Collège de France, ainda nos anos ‘70, M.F. estabeleceu com desassombro a tese: ―Em termos claros, o problema que se vai colocar a partir 351


do século XVIII é este: se há economia política o que acontece com o direito público? Ou então: Que bases encontrar para o direito, que vai articular o exercício do poder público, a partir do momento em que há pelo menos uma região, e certamente outras, em que a não intervenção do governo é absolutamente necessária, não por razões de direito, mas por razões de facto, ou melhor por razões de verdade?‖ (Cit. ibi, p.22). Esclareça-se que, no contexto do Autor, a ‗verdade‘ referia-se à ‗verdade económica‘, ou seja, a ‗verdade política‘ resultante do funcionamento do ‗Free Market‘. Em tal horizonte — adverte A.C. (ibi, p.25, nota 3) — torna-se óbvia a conclusão de que ―a incapacidade e morosidade imputadas à Justiça para resolver os problemas da ‗economia‘, pode ser reversível. Isto é, pode falar-se de uma incapacidade da ‗economia‘ para resolver os problemas que gera continuamente, e de uma ‗colonização‘ da Justiça pelos interesses dos grandes ‗agentes económicos‘, em detrimento da utilidade e necessidade que dela têm os cidadãos‖. É nesta óptica que a Grande Crise financeira/económica (global), que teve início na insolvência da ‗Leman Brothers‘ e nas falências das ‗subprime‘ do Imobiliário, em 2007-8, e prosseguiu draconeanamente até ao presente, tem a ver, em termos estruturais/estruturantes, com o projecto (que traz no bojo) da exterminação do Estado Social de Direito, que se começou a construir nas oitavas da IIª Guerra Mundial, e como Lição que esta suscitara. O resultado deste assalto violento ao chamado Estado Social de Direito está, hoje, a verificar-se à luz do dia, designadamente, no enfraquecimento e na dissolução dos Estados nacionais e soberanos da Europa, integrados na U.E., em benefício do imperialismo financeiro/económico, à escala do Mundo, onde a soberania popular já nada conta e os problemas estruturais são, sistemicamente, resolvidos na esfera extra-estatal e supra-nacional. Por que razão prossegue, teimosamente, a U.E. a pretender moldar-se segundo a geometria do Federalismo imperial, (à imagem dos U.S.A.), em vez de se configurar como uma vera Confederação de Estados-Nações (v.g. segundo o esquema dos Cantões da Helvécia)?!... Neste novo contexto, a cartilha do ‗consenso‘ (aparente) substituiu e suplantou ou iludiu o próprio direito ao Conflito (e à demanda de Justiça), bem como a própria guarda dos direitos constitucionais substantivos. Ora isto mesmo é a perversão de fond en comble da chamada Ordem Social Democrática, estabelecida nas urnas por sufrágio cidadão, directo e universal. É a hipocrisia e a mentira institucionalizadas. Em vez da ‗verdade económica‘ (do sistema capitalista) que temos e se tornou absolutamente hegemónica, carecemos de um Direito substantivo, capaz de assegurar uma 352


vera ‗verdade económica‘ (que, decididamente, não pode ser a do sistema capitalista enquanto tal). O que deve ser categoremático é o Direito substantivo; o que deve ser sincategoremático é a ‗verdade económica‘. Não o inverso, que é a realidade societária corrente. Direito Constitucional/Mercado/Direito e Tribunais: num ordenamento societário, configurado para além da Biopolítica, como estigma inelutável da (des)organização e do (dis)funcionamento das Sociedades humanas. O que, em primeiro plano, se deve postular e exigir é um Aparelho institucional da Justiça, capaz de garantir a efectividade dos Direitos fundamentais, estabelecidos nas Constituições das Repúblicas dos Estados-Nações. Eis por que ―contrapor a ‗lei do mais débil‘ à ‗verdade‘ do mercado tem de constituir, por isso, a linha de demarcação que identifica os projectos democráticos de superação da ‗crise da Justiça‘‖ (idem, ibi, p.25). É preciso reivindicar e promover a prática dos Direitos Humanos em terreno firme (despojados de ideologias, designadamente as atinentes ao economicismo reinante). (Cf. Manuel Veiga: ‗Para uma Crítica dos Direitos do Homem...‘, in rev. cit., pp.48-52). Todos os Direitos Humanos: os da 1ª geração (emancipação cidadã dos povos e constituição de regimes democráticos); os da 2ª geração (direitos económicos, sociais e culturais, enquanto fundamento concreto do Estado democrático); e os da 3ª geração (o livre desenvolvimento dos povos, concretizado nos meios materiais e culturais, que podem assegurar os Regimes democráticos instaurados). No Protocolo ao Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (recentemente aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas), foi tornado expresso e visível que tais direitos ‗são direitos jurídicos e não uma questão de caridade‘. Os peritos que assessoraram a elaboração desse documento explicitaram que a doutrina, aí expendida, estabelece que ―os direitos económicos, sociais e culturais, incluindo os direitos a habitação adequada, à alimentação, à saúde, à educação e ao trabalho, (...) são direitos que podem ser reivindicados por todos, sem qualquer tipo de discriminação‖ (cit. ibi, p.48). No preâmbulo ao referido Pacto Internacional, ficou reconhecido que ―a dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no Mundo‖ (cit. ibi, p.49). Há duas dinâmicas gémeas no processus de reivindicação, defesa e preservação dos Direitos Humanos: a luta (inacabada...) de emancipação dos Povos, em nome da autodeterminação e da soberania do respectivo Estado-nação; e a sempre reivindi353


canda exigência das práticas democráticas dos D.H. no quadro de cada Nação. Ora, é por demais evidente que a autodeterminação dos Povos e o princípio das nacionalidades postulam, necessariamente, a superação do Sistema capitalista a funcionar em regime hegemónico e imperialista. E, por seu turno, a soberania popular encontra-se na raiz do Estado democrático ( o qual, enquanto tal, não pode coexistir com classes sociais antagónicas). Escreve acertadamente M.V. (ibi, p.48): ―A epopeia humana para liquidar a opressão, mediante a afirmação da soberania dos povos, no plano colectivo, ou a libertação individual, contra privilégios seculares, — forjaram-se, uma e outra, a partir do ideário liberal do séc. XVIII e tiveram consagração jurídica, por um lado, nos direitos clássicos de cidadania e, por outro lado, na afirmação do ‗princípio das nacionalidades‘ e do ‗direito de autodeterminação‘ dos povos. ―O princípio de autodeterminação forjou-se assim no mesmo cadinho dos embates pela liberdade e pela igualdade, que vieram alicerçar o conceito de cidadania e de autonomia pessoal face ao Estado, bem como o conceito de soberania popular, em vista do derrube do absolutismo feudal pelo moderno Estado liberal. Segundo estes conceitos, como é sabido, todo o poder emana do povo e, portanto, só ao povo cabe decidir sobre o seu próprio destino‖. Só um caso desconcertante e absurdo sobre o modo como (dis)funciona o Sistema capitalista globalmente dominante: milhões de pessoas, nas populações indígenas do Quénia (oriundas de tribos ancestrais) irão ser expoliadas (e mortas a prazo...) das suas terras e do gado que nelas criam para sobreviver, porque o Governo do Quénia vai vender esses terrenos, para culturas agrícolas em escala industrial, a grandes proprietários do Qatar, — negócio patrocinado pelo Governo deste último país. É um desaforo, como dirá o senso comum crítico. Quem se lembra, hoje, na problemática geral da Economia, de respeitar (para o seu bom funcionamento) essa Regra d‘Ouro de toda a economia doméstica e de toda a Economia nacional, a saber: Contar, primeiro, com as suas próprias forças e recursos?!... Até para nos pormos em guarda contra o Economicismo globalmente imperante e a atmosfera (real e ideológica) de toda a sorte de condicionamentos da Biopolítica, que avassalam as Sociedades humanas, convirá ter sempre presente o axioma: ‗o poder não se dá, nem se troca, nem se reconquista: o poder exerce-se e só existe em acto‘ (Michel Foucault). Asseverava M.F. (in ‗É Preciso Defender a Sociedade‘), com toda a pertinência: ―nas sociedades modernas, temos, por um lado, uma 354


legislação, um discurso, uma organização do direito, articulados em torno do princípio da soberania do corpo social e da delegação, por cada um, da sua soberania ao Estado, e depois temos, simultaneamente, um dispositivo de coerções (extra-jurídicas ou proto-jurídicas) que assegura, de facto, a coesão desse mesmo corpo social‖ (cit. ibi, p.51). M. F. fez jus às duas vertentes que sempre andam associadas: a dos Sujeitos e a dos Objectos. Se bem averiguarmos, o vero exercício do Poder, nas sociedades capitalistas contemporâneas, é o cruzamento, in actu exercito, do direito (delegado) de soberania do povo e de uma inumerável ladaínha de coerções mecanicísticas e sem nomes próprios. Hodiernamente, as Sociedades nacionais têm de saber pensar e organizar-se, em termos críticos, num Projecto que aponta a caminho do Socialismo (como ficou inscrito na 1ª Constituição da Rep. Port., a seguir ao 25 de Abril de 1974): mas do Socialismo vero e autêntico, edificado a partir dos Sujeitos humanos livres e responsáveis. Tem andado o Mundo enredado em ilusões e mentiras: O ‗Socialismo convencional‘, que veio a colapsar na U.R.S.S. (em 1991), não passou de um capitalismo monopolista de Estado. Entretanto, com a (falsa) vitória do Sistema capitalista, foi a discussão do Capitalismo que se tornou tabú. Ora, se é certo e sabido que a gramática dos Direitos Humanos não será aplicada e cumprida (como a História já comprovou) no horizonte do Sistema capitalista, manda a Honestidade e a Crítica que os projectos para a organização, justa e adequada, das Sociedades humanas, se mantenham abertos à construção do vero e autêntico Socialismo. • Sob o signo de Mahatma Gandhi Respigando linhas de orientação e balizamentos no universo da vida e doutrina de Mahatma Gandhi (1869-1948). Em nome da sua Consciência livre e Responsável, a bússola da sua vida leva-o a resistir, porfiadamente, às leis injustas (satyagraha). A pauta que o orienta, nos seus comportamentos e actuações (mesmo na ordem pública/política), é o Princípio da Não-Violência (que ele, de resto, admirava em homens como Jesus, seu sósia reconheido como tal). Deverá advertir-se (para contextualizar a emergência dessa Ideia matricial na mundividência de Gandhi) que o Jainismo era a religião predominante na terra natal de Gandhi (reino de Guzarate, na Índia ocidental). (Mais um exemplo padrão (este a 355


nível da Cultura), para concluir, por ex., que o Darwinismo (vertente da genética) deve ser criticamente completado com o Lamarckismo (vertente do milieu dos organismos vivos).). Nas suas prédicas, o Jainismo insistia na doutrina ética da Não-Violência de todas as vidas humanas (cf. Susmita Arp: ‗Mahatma Gandhi‘; colecção A minha Vida deu um Livro; edição ‗Expresso‘, Lisboa, 2011, p.15). (À semelhança — dir-se-ia — da corrente judeo-cristã dos Ebionitas (sécs. I-V), que, a partir da Palestina, se espalharam pela Síria, Roma, Chipre, Egipto e Ásia Menor: acreditavam que Jesus era o vero Messias, porque era cumpridor real, e não apenas aparente, da Lei). Significado e explicação do Primado da Justiça sobre a Verdade: Tal como aconteceu com Jesus e o Jesuanismo, também para Gandhi, é da Consciência (e não da Razão, propriamente...) que brota a Iluminação, que pode orientar, no sentido da perfeição, as vidas humanas, enquanto tais. Isso mesmo acontece assim, porque o Sapiens//Sapiens é um Ser dotado de Consciência = ele sabe que sabe. É revelador da própria personalidade de M.G. que a sua autobiografia tenha assumido o título: ‗Gandhi: A Minha Vida e as Minhas Experiências com a Verdade‘ (Autobiografia de Mohandas K. Gandhi), Lisboa, 2006. (Edição alemã: ‗Eine Autobiographie oder Die Geshichte meiner Experimente mit der Wahrheit‘, Gladenbach, 2001). Na verdade, toda a Autoridade/Poder pressupõe e implica Dominação e dominados, dominador e dominados; porque, em última instância, o Poder é sempre um só!... Não há dominação sem dominados. M.G. escolheu a estratégia certa para o Movimento de Auto-determinação e Independência nacional da Índia: práticas de não-cooperação e acções de desobediência civil; estava-se num contexto em que ―o Congresso Nacional já não era entendido como um partido, mas sim como uma alternativa às instituições de governo indobritânicas‖ (cf. ibi, p.63). Gandhi assume o primeiro papel importante no Congresso Nacional, em finais de 1919, ao integrar uma comissão que investigou a violência no Punjab. O relatório por ele apresentado (com a preocupação de se cingir apenas aos factos) e publicado pelo Congresso Nacional em Março de 1920, veio a demonstrar que o general Dyer havia organizado o massacre em Jallianwala de forma aparentemente consciente (cf. ibi, p.61). Este foi o trampolim social-objectivo que despertou em Gandhi o impulso para reunir, num mesmo movimento nacional de emancipação, hindus e muçulmanos. ―Este sucesso — escreve a Autora Susmita Arp (ibidem) — permitiu aumentar a reputação de Gandhi no Congresso de forma notável. Um outro tema que preocupava Gandhi naquela altura era, no entanto, estranho para vários políticos. Os muçul356


manos conservadores da Índia, que veneravam o califa turco como líder espiritual, sentiam-se profundamente feridos, desde que os ingleses [no encalço da Iª Guerra Mundial] tinham retirado ao califa os seus poderes seculares. Depois da sua bem sucedida cooperação com os muçulmanos indianos na África do Sul, Gandhi acreditava que também podia promover na Índia a união entre hindus e muçulmanos, pelo que decidiu apoiar o Movimento de Khilafat para a defesa do califa. Sugeriu, então, aos muçulmanos que demonstrassem o seu protesto ao governo através de uma campanha de não-cooperação‖. Na linha do Bhagavad-Gita, o Deus de Gandhi é um conceito de definição simples: do que se trata é da Verdade absoluta, e esse Princípio eterno deve ser venerado de acordo com o pensamento de cada Indivíduo-Pessoa. É neste horizonte que ele pode afirmar rotunda e desassombradamente: ―Na minha modesta opinião, a não-cooperação é uma obrigação para com o Mal, tal como a cooperação o é para com o Bem. [...] A não-violência implica um subjugar voluntário ao castigo resultante da não-cooperação com o Mal. É por isso que aqui estou, para solicitar e aceitar alegremente a mais elevada punição que me possa ser infligida, em troca daquilo que, segundo a lei, é um crime deliberado e que a mim me parece ser o mais elevado dever de um cidadão‖ (‗C.W.M.G.‘, vol. 23, p.118 e s.: cit.ibi, p.68). Ao lermos esta perícopa, damos conta de que o Pensamento dos Gnósticos judeo-cristãos primevos, afinal, não se perdeu ao longo de dois milénios. S.A. cuidou de registar a reacção de Gandhi vis-à-vis do N.T., em contraste com a impressão que ele tinha dos missionários católicos na Índia: ―O Novo Testamento, pelo contrário, deixou-me uma outra impressão, principalmente o Sermão da Montanha, que me agradou particularmente. Comparei-o ao Gita. A passagem: ‗Eu, porém, digo-vos: não oponhais resistência ao mal e se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra face. Se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa‘ fascinou-me muitíssimo e fez-me lembrar as palavras de Shamal Bhatt‖. A referência, que aqui é feita, é em torno da dialéctica do Justo, que abunda em amor (cit. a partir de ‗Gandhi – A Minha Vida e as Minhas Experiências com a Verdade‘: ibidem): ―Por um copo de água, oferece uma refeição abundante. Por um cumprimento sincero, inclina-te rápida e profundamente. Por uma simples moeda, retribui com ouro. 357


Por quem te salva a vida, não te negues a dá-la. Presta atenção às palavras e actos dos sábios: Eles retribuem qualquer pequena acção numa proporção dez vezes maior. O verdadeiro nobre reconhece todos os homens como um só, E retribui alegremente, com o bem, o mal que lhe causaram‖. Quanto ao conhecido confronto intelectual entre Gandhi e o seu compatriota cosmopolita Rabindranath Tagore, S.A. escreveu com acerto (ibi, p.65): ―O poeta também considerava a resistência política necessária, mas temia que a agitação de Gandhi desencadeasse o nacionalismo mesquinho e a violência cega. Tagore tinha conhecido várias almas gémeas nas suas viagens pelo Ocidente, e estava convencido de que era necessário desfazer-se das correntes dos egoísmos nacionais e encorajar a cooperação entre todos os povos. Foram sobretudo o boicote de Gandhi às escolas e a sua rejeição do pensamento ocidental moderno, que assustaram o cosmopolita Tagore. Este estava impressionado com a forma como Gandhi chegava ao coração dos indianos, mas criticou o facto de, com a sua linguagem religiosa e os seus rituais, fomentar a irracionalidade entre as pessoas simples, em vez de as educar para serem indivíduos de pensamento livre‖. Resumindo a grande Lição de Mahatma Gandhi, escreveu Susmita Arp (ibi, p.111): ―Contrariamente a todas as habituais experiências e dúvidas, Gandhi tinha elevado a força pacífica da verdade a um método político. Ao contrário das acções de massas incontroláveis, as suas campanhas circunscritas a activistas disciplinados tinham sido bem-sucedidas. A Marcha do Sal e as acções em Kheda e Bardoli, por exemplo, não deixaram de surtir efeito e demonstraram a força do método de Gandhi. Juntamente com os opoiantes, transgrediu pacificamente leis injustas e suportou destemidamente todas as penas, demonstrando assim a brutalidade da oposição e convertendo-a em proveito moral. Gandhi demonstrou como se podia atingir, sem armas e com sensibildade, um adversário dependente da reputação internacional e da cooperação dos súbditos. Desta forma, as campanhas imaginativas inspiraram, mundialmente, vários movimentos de resistência, incluindo Martin Luther King nos EUA, os oponentes do apartheid na África do Sul, os movimentos pacifistas ocidentais e, mais recentemente, alguns dos revolucionários pacíficos da Europa de Leste‖.

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DOIS POEMAS DE J.C. MACEDO

ANARQUIA um Eu nunca se basta um Eu sempre busca Outros é singular e plural de festa brava ele é Matéria e é Combustível um Todo e um Nada um Eu é a Energia do impossível construímos crenças construímos verdades intocáveis e até somos capazes de viver a Vida sem a enxergar e se Alguém diz que a vê oh heresia! 359


isso não é possível isso é o Inferno a querer invadir o Paraíso e esse Alguém é o Poeta que percebe no Eu o reflexo da Energia que nele se realimenta e diz Anarquia! os contrários extremos da Matéria onde se lê toda a possibilidade de Vida essa poderosa Luz que não diz verdades intocáveis nem ilumina crenças perceber no Eu a possibilidade do impossível constatar nas vivências o Nada onde o Todo é às vezes a morte do possível somos um complexo d‘energias em festa brava em cada Eu palpitam reflexos de Outros e nesta Anarquia construímos a Vida que não nos basta

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IDADE & NOVA ORDEM MUNDIAL a Luz que nos move une o Mundo que Somos e dela cantamos a Vida quando temos Consciência e orgulho gravitamos na Iluminação da paixão pura Anarquia que gera a rota do Futuro no Hoje que Ontem foi pelo ponto zero da evolução o cântico da humana pessoa é poesia profanação da mística preguiça e a exigir uma Idade de construção no terreiro da ordem nova 360


que o Mundo clama desde que a Energia pagã foi sacrificada para impor a Igreja e o vil metal prostituição no Todo para aniquilar o Eu no bojo da Nada o cântico da humana pessoa é poesia d‘Eu espectro da Idade de sempre que ilumina a paixão pagã adiada materialismo energético que aguarda a hora de aniquilar a contrária força e mostrar a crua Verdade que não é dogma mas cósmica vivência em anarquia não há Tempo e o Espaço é ilusão corpos de matéria são um Todo na imensidão onde o Tudo é Pensamento e é Humanismo crítico em pura revolução na percepção da Luz encontramos o Mundo o Pensamento é a mochila-memória entre a Morte e a Vida telúrico e cósmico o Eu é um corpo vira-mundo

(Cf. ‗Poesia, Ensaio & Novela‘/Livro de Homenagem a João Barcellos/, Edicon, São Paulo, 2010, pp.125-126).

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• SHAKESPEARE, W.: ‗Complete Works of Shakespeare‘/The Alexander Edition of Collins, London and Glasgow; reimpressão de 1968. • SHENK, David: ‗The Genius in All of Us‘. (Why everything You‘ve been told about Genetics, Talent and Intelligence is Wrong). Icon Books, London, 2010. • SLOTERDIJK, Peter: ‗Cólera e Tempo‘. (Ensaio Político-Psicológico). Relógio D‘Água, Lisboa, 2010. • STEPHENSON, Paul: ‗Constantine/Unconquered Emperor, Christian Victor‘. Quercus, G.B., 1988. • STERNHELL (Org.): ‗O Eterno Retorno‘. (Contra a Democracia, a Ideologia da Decadência). Editorial Bizâncio, Lisboa, 1999. • STIGLITZ, Joseph: ‗Globalização: A Grande Desilução‘. Terramar, Lisboa, 2002. • TAVARES, Gonçalo M.: ‗Uma Viagem à Índia‘. Caminho, Lisboa, 2010. • THAO, Trân Duc: ‗Estudos sobre a Origem da Consciência e da Linguagem‘. (Editorial Estampa, Lisboa, 1974. • ‗The Book of War‘. Edit. by The Modern Library. New York, 2000. • ‗The SION Revelation‘. (Inside the Shadow World of Europe‘s Secret Masters). By Lynn Picknett and Clive Prince. Time Warner Books, G.B., 2006. • TOCQUEVILLE, Alexis de: ‗O Antigo Regime e a Revolução‘. Editorial Fragmentos, Lisboa, 1989. • TODOROV, Tzvetan: ‗In Defence of the Enlightenment‘. Atlantic Books, London, 2009. • TOYNBEE, Arnold: ‗Guerra e Civilização‘. Editorial Presença, Lisboa, 1963. • UNAMUNO, Miguel de: ‗A Agonia do Cristianismo‘. Arcádia, Lisboa, 1975. • VALADARES, Luiz: ‗Breviário Anti-Cristão‘. (Por que Deus Se Arrependeu de Ter Criado o Mundo). Graal Editores, Amadora, 2006. [Um exemplo de Autor fora de órbita: nunca se lembra de articular Liberdade e Responsabilidade]. • VERNON, Mark: ‗After Atheism‘. (Science, Religion, and the Meaning of Life). Palgrave/Macmillan, London, 2008. • WILSON, Barrie: ‗How JESUS Became CHRISTIAN‘. (The Early Christians and the Transformation of a Jewish Teacher into the Son of God). Phoenix, London, 2009. • WITTGENSTEIN, Ludwig: ‗Philosophical Investigations//Philosophische Untersuchungen‘. Basil Blackwell, Oxford, 1968. • YOUNG, Robert: ‗White Mythologies‘. (Writing History and the West). Routledge, 372


London and New York, 1992. • ZIZEK, Slavoj: ‗Da Tragédia à Farsa‘. Relógio D‘Água, Lisboa, 2010.

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Revistas e Jornais • ‗A Página da Educação‘. (Revista cultural de Educação, trimestral). • ‗Expresso‘. (Jornal semanário, de âmbito nacional). • ‗Expresso do Ave‘. (Jornal semanário, regionalista). • ‗JL‘. (Jornal de Letras, Artes e Ideias): quinzenário cultural/literário. • ‗Le Monde Diplomatique‘. (Publicação mensal). • ‗Manière de Voir‘. (Rev. bimestral de sócio-política e cultura): edição do ‗Le Monde Diplomatique‘. • ‗Médicos do Mundo‘/Boletim de Notícias (pub. mensal). • ‗National Geographic‘. (Revista/magazine mensal). • ‗Newsweek‘. (Magazine semanal, de âmbito internacional). • ‗Notícias de Guimarães‘. (Jornal semanário regionalista). • ‗Seara Nova‘. (Revista publicada trimestralmente).

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ÍNDICE

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Outros títulos explicativos da Obra ...................................................................... p.2 Exergos iniciais ................................................................................................... p.3

ABRINDO CAMINHO!... ......................................................................... p.15 ALGUMAS QUESTÕES E TEMAS FUNDAMENTAIS, SELECCIONADOS EM FUNÇÃO DA REFUNDAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL SUBSTANTIVA (SOCRÁTICO-JESUÂNICA) ............... p.29 Sobre o Sentido da Vida, a partir da sua base biológica e biogenética ......... p.29 Por quê e Como emerge, no Céu da Humanidade, a Ideia de Deus: (geometria nuclear do Fenómeno) ............................................................... p.38 „DEUS É UMA MAGNÍFICA CRIAÇÃO DO CÉREBRO HUMANO‟ (António Damásio). SERÁ MESMO ASSIM?! EM QUE SENTIDO?! ........................................................................................................ p.49 Sob os holofotes de W. Benjamin e G. Agamben ............................................ p.57 Sob os estros de Pico della Mirandola e Nelson Mandela ............................... p.69 • Para ultrapassar o Conflito entre a soberania dos Estados e o pseudo „Free Market‟ .......................................................................................... p.77

AINDA HAVERÁ RECEITAS VÁLIDAS E FECUNDAS, PARA A HUMANIDADE E O PROCESSO HISTÓRICO-CIVILIZACIONAL, PERANTE AS HECATOMBES E AS CATÁSTROFES CONTEMPORÂNEAS, „NATURAIS‟ OU ARTIFICIAIS?! E SE HOUVER, QUAL A ‘FONS ET ORIGO’ DA SUA PROCEDÊNCIA?! ................. p.87 • Para uma Revisão Crítica da História ........................................................... p.96 • Obstáculos ciclópicos pela frente... Dualismo metafísico-ontológico é o primeiro e o último ................................................................................ p.106 • O Adamastor do Objectivo-Objectualismo: As contradições da Dialéctica do Iluminismo ocidental não o ameaçaram nem destruíram ..... p.113 • As „Lumières‟ casadas com o Despotismo Iluminado: o „Ancien Régime‟ continuado no „Nouveau Régime‟ ............................................... p.119

MUDAR REALMENTE AS SOCIEDADES E O MUNDO — 375


É PRECISO E URGENTE ............................................................ p.127 OS SINOS DOBRAM PELOS INTELECTUAIS CONTESTATÁRIOS..... p.128 • Literatura: Romance ou Ensaio?!... ............................................................... p.141 • O Scarecrow do Multiculturalismo entre o Imperialismo e a Democracia ............................................................................................................. p.148 • Mudanças de Políticas, Governos e Regimes no Mundo islâmico pela via de „programadas‟ Revoluções pacíficas ......................................... p.158 • Da Axiomática Malthusiana sobre a população da Terra, baseada na Hominização, à problemática actual da Humanização da Espécie .... p.170

EM NOME DA PLURALIDADE DO PENSAMENTO E DA CULTURA: EXERCÍCIOS DA CRÍTICA CONTRA AS ARMADILHAS PERMANENTES DO „PENSAMENTO ÚNICO‟ E DO AFUNILAMENTO CRESCENTE DA CULTURA (EM SOCIEDADES ESTIGMATIZADAS PELA POTESTAS-DOMINAÇÃO D’ABORD) .................................................................................................... p.193 • Multiculturalismo e o modo como a Modernidade resolveu a „Questão Judaica‟... Lições a ter em conta .............................. p.197 DA POLÍTICA E DA CRÍTICA LITERÁRIA .................................. p.205 • Na Linguagem corrente/quotidiana: o que é mais importante e decisivo? A Propaganda, a Publicidade, as Modas?!... Ou a prática do verdadeiro e do justo?! ........................................... p.205 • Não há Cultura substantiva, sem uma vigorosa Cultura filosófica, capaz de a alavancar e sustentar. E não há Crítica literária séria e fecunda, sem uma Crítica filosófica substantiva, nos espaldares daquela cátedra ........................................................... p.211 • O Processo Educativo é (deve ser) Democrático ............................... p.219 • ... Venceu a lógica perversa dos Opostos!... ...................................... p.227 • A muleta do Paradoxo que não chegou a prótese ............................ p.231

GUERRA OU PAZ?! É CHEGADA A HORA DA OPÇÃO PARA A ESPÉCIE 376


SAPIENS//SAPIENS ................................................................ p.235 ATÉ QUANDO A GUERRA COMO REALIDADE PERMANENTE?! .................................................................................. p.244 SOBRE AS RAÍZES DA ECONOMIA POLÍTICA, QUE SÃO AS DE UMA SOCIEDADE HUMANA DIGNA DO NOME ....................................................................................... p.253 • Vícios letais do Sistema capitalista contemporâneo, que estão a destruir, por completo, os regimes democráticos .................. p.255 • Cave canem perante a hodierna Economia política neoliberal em transe (acelerado) de globalização .......................................... p.266 BYE-BYE, CHURCH‟S SOCIAL DOCTRINE ............................... p.274 • Fim da Crítica e Resignação a todo o pano?!... .............................. p.281

A CONSCIÊNCIA COMO „FONS ET ORIGO‟ DA HUMANITUDE DA HUMANIDADE (OU DA CONSTITUIÇÃO FUNDADORA DO „HOMO SAPIENS//SAPIENS’) ............................................................ p.293 SABER E PODER SÃO DOIS CAMINHOS ESPECIFICAMENTE DIFERENTES ................................................................... p.293 • O fenómeno da Consciência (humana) enquanto fons et origo de uma Cultura psico-sócio-humana substantiva e autónoma . p.305 • A Consciência, eclipsada ou ignorada, como Fenómeno nas diferentes Culturas humanas e no Processo histórico da Civilização ..................................................................................... p.311 É A CONSCIÊNCIA LIVRE E CRÍTICA... QUE NOS FAZ HUMANOS!... ............................................................................... p.317 • A.D. não demandou o „Sapiens//Sapiens’ da Antropogénese ....... p.320 • Recuperando as Lições do Hilemorfismo Aristotélico .................. p.323 EM DEMANDA DA CONSCIÊNCIA LIVRE E CRÍTICA .......... p.333 • Quadro do P.-S.-A. sobre a presença ou a ausência da Consciência ....................................................................................... p.336 INTELIGÊNCIA//VONTADE: CONSCIÊNCIA ........................... p.341 • Reivindicar a Consciência perante as traições do Objectivo-Ob377


jectualismo ............................................................................... p.346 EM DEMANDA DA CONSCIÊNCIA LIVRE E RESPONSÁVEL .......................................................................................... p.355 • Não pode haver Democracia em Sociedades organizadas segundo o catecismo da Biopolítica ................................................. p.360 • Sob o Signo de Mahatma Gandhi .................................................... p.365 DOIS POEMAS DE J.C. MACEDO ................................................. p.369 BIBLIOGRAFIA REFERENCIADA ............................................... p.373 ÍNDICE ................................................................................................ p.385

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C.E.H.C./ Portugal Manuel Reis (Presidente do C.E.H.C.). Lillian Reis (Secretária): digitalização ao computador e revisão de provas. • Urbanização do Salgueiral, Rua de Cabo Verde, 10-B 4835 – 119 Guimarães Portugal.

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