A VINGANÇA DAS AMAZONAS [demo]

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A VINGANÇA das AMAZONAS folhetim florestal futurista feminista

um romance original de

DANDDARA


PREFÁCIO “A VINGANÇA DAS AMAZONAS” É uma magnífica pensadora e escritora esta Danddara que nos oferece para nos instigar e deslumbrar com profundidade esta saga intitulada “A vingança das Amazonas”. Na verdade o estilo exuberante tanto na forma quanto no conteúdo, cheios de belezas e sustos inesperados, instantes de magia e sensualidade filosófica, suspense trágico com contrapontos de comédia surgem o tempo todo ao longo da narrativa, e vão constituindo uma verdadeira epopeia, ou lenda em cima de outras lendas do infinito Amazonas, e simultaneamente ao lado destas múltiplas lendas amalgamadas existem diálogos e monólogos feitos de puro raciocínio filosófico-político e que nos trazem visões do passado, do presente e do futuro, recriando meditações sobre a emergência do comando da mulher neste século XXI, até mesmo a necessidade desta liderança feminina afirmada e proclamada reivindicando sua ancestralidade nesta liderança com toda sabedoria milenar da época do matriarcado e dos sacrifícios à Deusa Lua. As Amazonas, é claro, se inserem como luva de pelica nesta paisagem. O livro tem elaborações profundas e que são recriações de meditações que vão desde a magnífica obra do escritor e Historiador Robert Graves, até as ideias revolucionárias de Simone de Beauvoir e de Hanna Arendt. Discussões dramatizadas e mitológicas sobre todo o devir da Humanidade, a relação do homem com a mulher e o eterno jogo do sexo como lei fundamental e como jogo de poder, como retomada do poder,

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como a nova fundamentação do poder das mulheres herdeiras do grande matriarcado da deusa lua e das destemidas e sedutoras Amazonas, nas quais a vingança ganha aspecto e foro de justiça assim como de liberdade e de domínio sexual orgiástico. É uma mitologia dentro de outra com universos paralelos simultâneos de ironia e de profundo pensar sobre as paixões humanas. É uma sinfonia de sensualidades e emoções, é uma selva dentro da selva, paixões em convulsões, raciocínios e racionalidades fundidos em furacões de razões. A autora além de ser lindíssima é uma profunda pensadora, e ativista da negritude em todas as suas dimensões, e lutadora dos direitos da mulher em todos os sentidos. Diretora de cinema premiada nos Estados Unidos, autora de recente filme sobre Abdias do Nascimento. Danddara surpreende e fascina, me faz delirar de profunda emoção ao ler esta sua obra de estreia na literatura (e que literatura!) do BrasilUniversal que é este “A Vingança das Amazonas” aonde a surpresa vem envolta com suprema beleza a cada página que se sucede e com intenso suspense, que é igual à beleza física e espiritual da autora, que nos faz sentir quando na presença dela, toda esta exuberância, paixão, sedução e pulsação de generosidade e de mistérios sem fim, tudo isto e muito mais que se reflete e que se encontra nesta obra magistral, provocadora de todos os estremecimentos, maravilhas, êxtases, iluminações, e tesões!

JORGE MAUTNER Rio, 25.10.2005 3


Capítulo 1 MÃE CORUJA

Em que se apresenta o herói Adão Abráxas — jovem índio destemido e apaixonado —, que vai bisbilhotar a intimidade das grandes líderes e acaba por testemunhar a imaculada concepção de Silene Silva, episódio que ele passa aqui a narrar aos distintos leitores, entremeado por outras ocorrências memoráveis de nove anos atrás… quando ele era apenas mais um voluntário a serviço das temíveis Amazonas.

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Minhas memórias Parte 1

As páginas que se seguem contêm o relato fiel dos momentos mais importantes que vi e vivi desde meu ingresso na Organização. Neste momento — em que decido rasgar o véu do silêncio numa tentativa (desesperada talvez…) de sepultar definitivamente o passado —, minha memória recua àquele que considero o fato fundamental desta terceira década da ginecracia tecnoflorestal amazônica…

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O Nascimento de Florzinha

Em verdade, em verdade vos digo: com as fêmeas no comando, conhecemos o paraíso. Ali, naquela descuidada manhã de março, Silene Silva estava radiante. Em volta, movia-se a opulência vegetal da Mãe, eriçada pelos carinhos do vento. Silene compartilhava o momento histórico com Sebastiana Santos, sua amiga de infância, e com Lilibeth MacQueen, Infanta da Sororidade, sobrinha da amiga dela. Garota de sorte aquela… As três, de pé, no centro da clareira. Ao subir do pano quedaram-se embasbacadas. Contemplavam uma criatura primitiva, prototípica, jamais existente na face da Terra. Matriz da futura nova geração de titãs pacifistas, que sepultaria para sempre a mentalidade senescente. Sob a pálida luz daquela recém-começada manhã de março, braços abertos abraçando a abóbada celestial, ria-se Silene… Tanta era a felicidade que sentia na presença da materialização do ideal. Seu ideal. Via-o melhor e mais claramente conforme esvanecia a névoa fina e branca que a floresta exala ao se abrir para o Sol, libertando as formas de plantas e bichos numa concessão paulatina à concretude diuturna. Excitada, tal qual a moçoila que, sentada nos ombros da tia, sorria e batia palmas, Silene se ria feito menina a desvendar, entre laços e fitas, a descoberta da boneca tão sonhada. Ria-se na fruição visual da Criação. Sua criação. Esta, encaixada na moldura sempre verde, 6


como se ali vivesse desde priscas eras, dançando sua dança de atitudes óbvias, era a resposta tão ansiosamente esperada. Resposta afirmativa e concreta às preces, pesquisas e demais operações da matemática mística e bioeletrônica florestal, desenvolvidas em segredo no útero sombrio da selva. Partindo, a sombra da noite recolhera sons esdrúxulos, seres misteriosos e as dúvidas eternas que Sebastiana e Silene nutriam sobre as possíveis destinações da Humanidade. Ainda tão vulnerável a desvarios masculinos… A alvorada já vinha detrás daquela serra e se fazia anunciar pela algazarra de arautos emplumados. Banhava a colcha esverdeada da floresta numa enxurrada de matizes mutantes, violeta, rosa, laranja, chá… Essas luzes, refletidas na pele de cerâmica vitrificada supercondutora, que recobria todo o corpo de Florzinha, revelaram então para Silene, sua amiga e a sobrinha dela as formas sublimes do que viria a ser nossa primeira Unidade Florestal Autômata — o invento mais brilhante de toda a história da tecnologia florestal tropical; peçamater das tropas de guerreiras imortais que logo entrariam em ação para consolidar a supremacia econômica e cultural das temíveis Amazonas. Como mais tarde saberiam, eu também estava lá e, escondido entre arbustos, testemunhava aquele momento único. A máquina mais parecia uma criatura viva, respirando folhas, flores, frutos… entre os quais movia-se sinuosamente, como se fora o seu eixo uma enorme serpente. Seus oito braços 7


mantinham entre si uma harmoniosa independência — colhendo as dádivas gratuitas da selva, afastando galhos e trepadeiras dos troncos marcados para o corte, serrando em toras os cáudices abatidos, agrupando em pilhas as toras que acabava de partir. Tudo isso sem descanso, sem paradinhas pro café e sem reivindicações trabalhistas. Era exatamente como Silene a concebera. Perfeita nas formas e funções. O revestimento camuflado, em vários tons de verde, que brilhava como metal polido em quase toda a superfície de seu corpo, era a última palavra em matéria de supercerâmicas. As articulações das pernas, bem como toda a extensão de seus braços tentaculares, eram feitas de látex de alta qualidade, com propriedades

de

extravedação,

super-resistência

e

ultradurabilidade, obtidas por manipulação biotecnológica de nossas melhores seringueiras. Medindo cerca de três metros de altura, Florzinha tinha um tronco relativamente pequeno e magro, do qual brotava um grande pescoço retrátil, estilo cabeça de tartaruga. Seu aspecto geral era o de uma preguiça gigante, um dinossauro bípede ou, mais exatamente falando, um ser extraterrestre que, pelo menos à primeira vista, parecia bem assustador. Os dois pés eram redondos como as patas de um elefante. Mas sua aparência esdrúxula em nada alterava a afeição que por ela transbordava dos olhos meigos de Silene Silva, comandante em chefe da Inteligência Integrada de Alta Estratégia 8


Amazônica, divisão mais importante e menos conhecida da nossa Organização. Desde o advento da Grande Catástrofe, é a Inteligência Integrada que coordena entidades femininas, civis, militares e religiosas de todas as partes da grande mátria brasileira, numa ação civilizatória discreta, lenta, quase imperceptível. Àquela altura, porém, Silene sabia estar próximo o fim das coisas como as conhecíamos. Sabia bem que, a partir do nascimento de Florzinha, essa atividade tranquila e sombria estava com os dias contados. Pois a sapiência feminina que detinham estava fadada a vir à luz.

Imaculada Concepção

Orgulho de Silene, Florzinha era, em si mesma, a exaltação das virtudes amazônicas. Podia não ser fisicamente humanoide, mas fora concebida à imagem e à semelhança de suas inventoras. Guardando em seu interior potências de luzes e trevas, o robô era, mentalmente, uma fêmea humana como todas as amazonas da Terra. — Está aparelhada para distinguir entre certo e errado; pode agir com doçura ou violência, conforme a situação, num exercício de livre-arbítrio até aqui vedado aos robôs e a outras máquinas inteligentes. Este é, justamente, o aspecto mais 9


controverso de sua geração: a substituição, em seu cérebro bioeletrônico, das três leis da robótica androcêntrica histórica pelas quatro leis da robótica florestal amazônica . Generosa, Silene se esforçava para explicar à sua amiga a delicada estrutura de seu invento. Sebastiana olhava para Florzinha de cara fechada, parecendo não achar muita graça naquela estranha máquina. Paciente, ao invés de reclamar da preguiça mental de sua companheira, Silene trocou em miúdos o que acabara de dizer:

 1ª lei: unidades florestais autômatas trabalham pelo ecoequilíbrio da selva, não podendo fazer mal a qualquer forma de vida;  2ª lei: unidades florestais autômatas obedecem a ordens amazônicas, desde que estas não contrariem a 1ª lei;  3ª lei: unidades florestais autômatas se autopreservam, desde que isso não contrarie a 1ª ou a 2ª leis;  4ª lei: em caso de ameaça à segurança florestal, reina a Lei da Sobrevivência Selvagem, e todas as outras leis devem ser esquecidas.

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Silene explicou ainda porque a Lei da Sobrevivência Selvagem, também chamada de ‘fatalidade’, na linguagem própria das Amazonas, teria que permanecer recessiva, oculta, ao invés de ser uma regra explícita, como sua amiga, teimosa, argumentava: — Sei que a Inteligência Integrada cuida para que não haja culpa em nossas atividades econômicas na selva, mas também é verdade que não temos defesas suficientes para nos proteger. Somos presas fáceis para qualquer inimigo bem armado. Não será melhor direcionarmos a produção dessas novas máquinas para que, de fato, garantam a segurança da Organização? — Seria o mesmo que produzir armas de guerra — respondeu Silene à beligerante amiga. — Nossa maior defesa será a expansão de uma economia ao mesmo tempo doce e poderosa, tocando suavemente a fisionomia da Terra, e integrada ao seu meio ambiente. Se tens pretensões políticas, sugiro que desistas de ressuscitar a indústria bélica em nosso mundo. Guerras fratricidas não fazem parte dos planos que a Inteligência Integrada traçou para a Organização Amazônica. — Eu sei, eu sei. Mas não sejamos burras o bastante pra produzir máquinas inteligentes que sequer diferenciam suas criadoras dos outros povos da Terra, nem reconhecem entre eles os nossos inimigos.

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Confiante nas razões pacíficas que orientaram a elaboração de sua grande obra, Silene prosseguiu com sua explanação, em voz suave e firme, como se segredasse à própria Deusa-Mãe os seus desejos mais profundos. — Compreendo teu medo. Mas observe que a 1ª lei da nossa robótica florestal é uma declaração de paz entre os seres! Se cada coisa viva depende da vida de tudo o que vive para seguir vivendo, então não há por que privilegiar somente a nós mesmas. Ao forjar a faculdade da compreensão, na mente bioeletrônica de nossas máquinas, evitei esse uso imediatista. É pelo seu ‘thoughtware’, e não por sua força física, que elas serão nossa melhor ferramenta na construção do futuro brilhante que nos espera. A Inteligência Integrada não pretende que esses robôs nos levem a subjugar inimigos, mas que nos ajudem a consolidar o uso racional-afetivo das nossas riquezas florestais.

Parindo Futuros

Então, com o semblante iluminado pela certeza de que o melhor ainda estava por vir, ela envolveu a princesa-menina num terno abraço, sentou-se a seu lado e, com a calma duradoura das mães amorosas, principiou a falar-lhe de um mundo maravilhoso. Nesse contexto ideal, o plano divino não conhecia obstáculos e nada se 12


opunha à evolução natural, física e espiritual da civilização tecnoflorestal amazônica. No rosto bochechudo, dois grandes olhos castanhos encaravam seriamente a face luminosa da mulher que lhe contava histórias fantásticas, em que o robô Florzinha era a grande heroína do bem. Logo, seu arco-e-flecha de brinquedo jazia sobre a grama, esquecido. Lilibeth seguia absorta pelas palavras de Silene, e as duas juntas se divertiam largamente no seu jogo de criar um mundo melhor. A tia dela, cujo desconforto era visível, é que não estava gostando nada daquilo. A carranca fechada de Sebastiana a fazia parecer ainda mais brutal e masculina. Foi só nessa hora que, olhando com mais atenção, vi que a coitada, além de feia e mal-encarada, também carecia de um dos seios. E não fazia a menor questão de disfarçar. Confesso que tive medo. Embora fosse a primeira vez que via uma amazona amputada na vida, minha infância fora marcada por narrativas escabrosas acerca dos jogos sádicos que essa tribo fazia com homens e meninos que caíam nas suas garras. Por muitos anos ainda me perguntaria se algo havia de real nessas antigas histórias de terror. Mas ali, naquela hora, a fala mansa de Silene dissolveu a angústia dessas lembranças. Ela ainda doutrinava a Infanta da Sororidade Amazônica, que trazia bordada na roupa a insígnia das doze escolhidas. … primeiro aqui, na nossa Amazônia, mãe de todas as florestas quentes… depois nos vasos florestais espalhados por toda 13


a Terra… em seguida, por que não?… semeando civilizações amazônicas intergalácticas! Agora que temos a nossa Florzinha, o intangível tornou-se possível para as futuras gerações… A guria novamente bateu palmas. Rindo alegremente, jogava a cabeça para trás no gozo de uma gargalhada mais prolongada. Seus olhos astutos visualizavam imagens do sonho de Silene. Mas a tia, despeitada, reclamou: — Silene, Silene… larga de encher a cabeça dessa menina com tuas baboseiras, mulher! Acaso não vês que teus sonhos são impossíveis? — Grandiloquentes talvez, mas não impossíveis — Silene objetou. — Tenho que educá-la dentro dos preceitos da Sororidade. De que lhe valerão tais fantasias se ela for escolhida para ser a nova Imperatriz? — Tanto melhor que ouça o que almejamos. Está escrito que no terceiro reinado as alegrias se multiplicarão! Há muita sabedoria e amor em acreditar que povoaremos novos mundos com a nossa fertilidade. E depois, convenhamos Sebastiana, com quase quinze anos de idade, Lilibeth não é mais nenhuma criança! Silene observava os gestos estudados da sua Florzinha e nisso concentrava toda a sua atenção. Havia em seus olhos indícios

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claros de afeição maternal. “Como duvidar da exequibilidade desses sonhos?” Perguntava a si mesma. Pois que, para ela, tudo era bem simples, tudo natural como um amor moreno ou um fruto tropical. A visão daquela beleza única a enchia de certezas. Mal podia esperar que o resto do mundo também visse Florzinha assim, soberana em seu ambiente de trabalho. O jeito delicado de moverse… a recolher ninhos de pássaros das árvores marcadas para o corte, para realojá-los, cuidadosamente, em outras árvores mais jovens… A rapidez no desgalhamento de cada tronco, certificandose de que todas as mudas seriam preservadas quando o gigante sacrificado viesse ao chão… Tudo era tão belo, tão fascinante, tão perfeito! Ela nem se deu conta quando Sebastiana tomou a mão direita da sobrinha e a conduziu à saída da clareira, para dentro da ala residencial de honra da Colmeia Central. Tampouco perceberia os passos saltitantes de Lilibeth, que retornou, apenas instantes mais tarde, para recuperar o brinquedo de caça que esquecera a seus pés.

Sina de Eva e Pandora

Os perfumes da selva eram as essências das estirpes de madeira recém-cortada. Uma vez cumprido todo o ritual de prevenção do desperdício, Florzinha executava a árvore da vez, sem pestanejar, 15


fazendo-o com um mínimo de impacto sobre o espaço ao redor de sua vítima. Cortava-a verticalmente, dividindo-a em várias toras que, em seguida, empilhava no chão. Para ela, como para todas as amazonas de carne e osso, a morte era parte inseparável da vida selvagem. Negar esse fato trivial seria uma perigosa ameaça ao ecoequilíbrio que vivia para defender. A máquina sabia, desde que nascera, que uma árvore abatida iniciava um novo ciclo de existência, passando a viver sob as formas dos objetos e substâncias em que era transformada. Felizmente, apesar de ser muito sensível, Florzinha não tinha coração. Tampouco fora equipada com percepções extrassensoriais. Se pudesse enxergar as almas desesperadas das árvores que morriam em suas mãos, tornarse-ia inútil para o desempenho de suas obrigações. O robô já trabalhava por várias horas. O Sol do meio-dia estalado no céu da clareira. Silene, absorta na admiração de seu rebento, surpreendeu-se com a ausência da amiga e de sua sobrinha, ignorando que, em verdade, haviam partido no começo da manhã. Também não se dera conta de que sua própria fronte gotejava suor abundante, acostumada que estava ao calor abafado da selva, único lar que conhecia e amava. Sua hipersensibilidade, ao contrário do que acontece com as mocinhas bem penteadas dos meios urbanos, não se manifestava em relação a desconfortos físicos, que aprendera primeiro a suportar e, logo, a superar. Através dos anos, debaixo de sóis, chuvas e vendavais, enfrentando 16


de dia o calor e à noite o frio, aprendera mais do que precisava saber para sobreviver no coração da floresta, onde cada um conta apenas consigo mesmo. Apesar de os recursos oferecidos pela tecnologia

amazônica

daquela

época

serem

bastante

desenvolvidos, a resistência física era ainda, como hoje, prérequisito indispensável ao êxito humano na vida selvagem. O corpo de Silene era duro como uma rocha. A pele negra tinha um brilho rubro, de ser curtida pelo sol. A carapinha crespa, solta das tranças e penteados que sempre a continham, estava amassada de um modo engraçado, exibindo ainda o encaixe convexo do travesseiro. Mas em seu peito gritava a dor de todas as mulheres da Terra.

A

inconformidade

consequências

da

ganância

a

perturbava masculina

sempre

que

as

chegavam

a

seu

conhecimento. E toda vez que um golpe duro era desferido contra a integridade da Mãe, o útero da virgem negra se contraía em dores lancinantes. Qualquer amazona do seu nível reconhece este sinal de perigo. No entanto, esse mesmo extra sentido autoprotetor, muito útil na selva, torna-se uma verdadeira tortura para a amazona de grau superior quando em visita às grandes cidades. Naquele tempo, os ataques à biosfera eram ainda tão constantes nesses espaços, que era necessário às fêmeas mais evoluídas passar todo o tempo sob efeito de analgésicos e relaxantes antiespasmódicos que acalmassem suas fortes contrações uterinas. Poucos conhecem 17


como eu esse aspecto pessoal e íntimo das líderes amazonas. E como imaginá-lo ali, frente à fortaleza que emanava da figura de Silene Silva? Semblante iluminado ante a dança de sua Florzinha… Músculos bem torneados, revelados pela leve roupa de dormir… Mais tarde, vim a descobrir que ela só usava essa peça tão delicada quando no recesso da Colmeia Central, onde se despia de todas as armaduras para realimentar-se e, em perfeita harmonia com a Mãe, planejar um futuro singelo para todos nós. Nem meu pescoço todo retorcido, nem a coceira na pele que trazia há horas deitada na terra, nem mesmo a fome… Nada superava a emoção que sentia ao observá-la assim, liberta em seu habitat natural. Ela, maior e mais importante entre todas as grandes chefes amazonas, cérebro afetivo de todas as ações decisivas da Organização... estava ali, desprevenida e emocionalmente nua, para o deleite de meus olhos arregalados. No esforço sofrido de registrar aquelas imagens, através da barreira dos arbustos que me ocultavam, os coitados só faltaram pular para fora das órbitas, tamanha era a excitação que aquela visão lhes provocava.

Alergia Abençoada

A dor e a coceira só começaram a me incomodar bem mais tarde. Muito depois de ela ter deixado a clareira e eu ter voltado à minha 18


função de voluntário da limpeza, na ala norte da Colmeia Central, a quilômetros dali. Só me dei conta da dor e da coceira alérgica quando já era tarde demais para evitar o pior apenas com uma pílula antissintomas. Quando vi no espelho a obra das malditas saúvas, fiquei tão chocado que minha alegria se desfez num piscar de olhos. Isso num sentido totalmente figurado, porque as pálpebras, inchadas, nem bem se abriam, quanto mais piscar… De um ponto de vista espiritual-esotérico, pareceria mesmo uma expiação. Eu, macho criminoso, era culpado pela invasão visual da privacidade de uma Chefe Amazona. Foi mais ou menos nessa época que comecei a compreender o treinamento protocientífico que recebera no último ano, que passara inteiro trabalhando como voluntário nas Colmeias da Organização. Sentia-me mais maduro, então. Deitado na maca da Casa de Cura, decidi que, se fosse salvo, daria minha contribuição ao futuro da Humanidade desenvolvendo um estudo propedêutico sobre os efeitos analgésicos do amor. Todavia, se as Deusas da Terra achassem por bem tomar de volta meu corpo material, devolvendo minha alma para a eternidade, eu morreria feliz. Afinal, vivera o suficiente para ver Silene de perto, em carne, osso e camisolinha transparente. Amava-a tanto…

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Devo ter repetido seu nome muitas vezes nos dias em que estive entre a vida e a morte, delirando no leito da Casa de Cura. Ao acordar, notei que meu sentimento por ela era do conhecimento geral e que todas as amas-secas se riam pelos cantos e fofocavam a meu respeito, apontando para mim. Fiquei furioso a princípio, mas logo perdoei. Perdoei quando me contaram que meu sonho tornarase real e que Silene, ela mesma, em pessoa, viera ver-me enquanto estava desfalecido… tocara-me no rosto e nas mãos… olhara-me longamente num ritual de transferência energética. Eu perdoei e até agradeci, porque se elas não fossem mexeriqueiras, Silene jamais teria sabido da minha situação.

Miragem Onírica

Aí me lembrei de sonhos em que sonhara estar com ela, mãos dadas em meio a nuvens que se desfaziam, revelando para mim sua nudez retinta sobre um colchão de folhas aveludadas. Seu olhar repousava sobre o meu, numa expressão suave de carinho. Era quase como se eu fosse assim, tão importante para ela quanto sua amada Florzinha, porém, é claro, mais atraente do ponto de vista heterossexual. Ela sorria e dizia meu nome com naturalidade, como se fôssemos velhos camaradas. Porém, felizmente, com bastante sex appeal para esquentar o relacionamento. Em meu 20


sonho, estávamos no paraíso, ela e eu. Uma luz morna e clara, que emanava do coração da floresta, protegia-nos das saúvas e de todos os outros perigos da selva. Se pudesse escolher, preferia não ter que acordar. As amas-secas mexeriqueiras bem que me perguntaram por que cargas d’água eu estava sorrindo sozinho. Mas eu nada lhes disse. Aquele sonho era meu só. De mim com ela. E eu não o dividiria com mais ninguém. Foi difícil acostumar-me àquela reviravolta súbita. A mulher amada permanecia, para mim, como um mistério impenetrável, muito embora meu amor por ela já não fosse mais segredo. Mais estranha era a vontade teimosa de tê-la em meus braços, liberta de suas altas responsabilidades, vivendo comigo a plenitude de sua sublime feminilidade. Em meu peito, o amor que lhe dedicava, antes inteiramente platônico, fazia-se agora acompanhar por uma ousadia viril que eu ainda não conhecia muito bem, e que também não controlava. Se entendesse o que aí se passava, saberia que a semente de tudo que estava para vir nascera ali, naquele instante em que, do meu coração de poeta, brotava a coragem de um homem apaixonado. Tudo que vivi, daqueles dias até hoje, marcou-me de tantas formas, que só pude pensar a respeito depois de tudo terminado. Conquistas, perdas, glórias, decepções… as revelações da sabedoria eterna e as visitas supliciantes do medo da morte… está tudo aqui, nas páginas de minhas memórias. Só mais tarde, quando seus personagens reais já 21


tiverem se afastado das posições de poder que hoje ocupam, é que farei vir a público este relato. Estas mal traçadas linhas, que visto com requintes literários do fim de um século ultrapassado, só tratei de escrevê-las nove anos mais tarde, quando a linha dos acontecimentos já havia desenrolado seu novelo de intrigas e fatalidades. Bem depois de eu já ter superado os traumas mais agudos. No dia em que saí da minha vida pessoal para participar da história da Humanidade, eu contava vinte e um anos de idade. Cabelos lisos e negros caíam-me vastos até o meio das costas, obedecendo às normas estéticas da tribo de minha mãe. Nesse dia, eu ainda não sabia que um dia eu poderia ler os desejos e pensamentos de minha amada. E ignorava a maldição que cedo recairia sobre o meu amor sem defeitos. A ignorância que me protegia era mãe da cegueira que me enganava, mas o tempo cuidou de devolver-me a visão. Hoje sei que foi lá, naquela longínqua manhã de março, em que fragrâncias de ipês e jacarandás abatidos rescendiam por toda a Colmeia Central, atestando a eficácia do robô Florzinha, que recebi da Deusa um novo destino. Foi naquela clareira, no exercício doloroso de minha contemplação clandestina, que principiei a trilhar pela vida uma trajetória

invulgar,

repleta

de

loucas

aventuras,

perigos

assombrosos e prazeres inimagináveis. Desde aquele instante — em que a suave brisa matinal revelou para mim as formas morenas 22


do corpo de minha bem-amada, fazendo amoldar-se em suas ancas a seda da camisola transparente —, nada do que me ocorreu pode ser dito comum ou banal. Tampouco sobreveio alguma pausa que eu ousasse chamar de tediosa. A partir dali, toda breve interrupção no fluxo torrencial dos acontecimentos que se sucederam em minha existência seria saboreada intensamente, como um refúgio passageiro para o gozo fugidio dos sentidos. Tal qual seria para um náufrago, a buscar as margens do Rio-Mar, uma barranca intermitente que se forme, deforme e desforme ao acaso, sujeita aos humores das correntezas do Amazonas. E lá estava eu que, então a flutuar sobre uma dessas ilhas passageiras,

iludido,

julgava-me

seguro.

Repensava

os

acontecimentos da semana, tentando lembrar detalhes do sonho erótico que tivera com Silene. Repousava com outros colegas de turno, à sombra protetora daquela Samaúma que fica ali bem perto da porta dos fundos do alojamento de voluntários. O fenômeno universal da digestão era minha única ocupação. Tinha os olhos fechados e, meu velho chapéu de fibras de cânhamo texturizadas, trazia-o displicentemente pousado no rosto. Desse modo, poderia ver através dos vãos do entrelace de fibras o movimento de quem se aproximasse. Todavia, quando meus olhos registraram a imagem dela, assim quadriculada, vindo mais e mais perto, direto na minha direção, desprezei todos os indícios factuais e tornei a cerrar as pálpebras. 23


Só podia estar sonhando...

Miragem Real

Foi enorme o impacto de vê-la em pé na minha frente. Tinha os cabelos presos num coque baixo, os lábios carnudos deixando escapar um ar de sorriso, e o olhar maroto, que poucas vezes tornaria a ver, achando graça de mim. Meu coração disparou. Minha respiração, ofegante demais, parecia um chiado animalesco, por causa dessa bronquite crônica que nunca me abandona. Lágrimas, sempre desobedientes, banharam-me o rosto expondo toda minha emoção. Ela permaneceu imóvel por alguns minutos, esperando que me acalmasse. Depois, com a graciosidade das garças pardas mitológicas, ajoelhou-se a meu lado e enxugou meu rosto com suas mãos, a cujo toque estremeci. Logo, porém, afastou-se. Provavelmente percebera o teor erótico das sensações que me subjugavam. Novamente de pé, pronunciou meu nome com inigualável musicalidade: — Adão Abráxas? — Sim… Sim, senhora. — É bom ver-te plenamente recuperado.\

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Levantando-me, limpei, desajeitado, as folhas secas grudadas feito carrapicho no meu macacão. Tentava parecer menos sujo diante de mulher tão importante. Lutando contra a timidez, balbuciei um agradecimento: — O... o... obrigado, comandante Silva, devo isso à ação curativa de tua alma caridosa. Soube que estiveste pessoalmente na Casa de Cura, transferindo energia para salvar a vida deste teu humilde servo. — Se tu não fosses o rapaz forte que és, e se não tivesses tanta vontade de viver, meus esforços teriam sido vãos. O veneno das saúvas é muito perigoso. Ficamos assim, olhando nos olhos um do outro por uma fração de segundos. “O que quereria comigo mulher tão poderosa?” Estava curioso. Mas, temendo que um deslize meu a fizesse devolver-me à jurisdição urbana de minha tribo materna, em Belém do Pará, onde vivia antes de vir para cá, apenas calei-me e aguardei. Foi aí que, surpreendendo-me uma vez mais, ao invés de expulsar-me, ela proferiu diante de todos... o convite irrecusável.

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