A queda da casa de Usher

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A queda da casa de

Usher



tradução

Larissa Enohata Nathalia Gröhs

Edgard Allan Poe

A queda da casa de

Usher


Copyright © 2013 por Nova Abordagem Título original The fall of the house of Usher Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos responsáveis pelo projeto. O acordo ortográfico da Língua Portuguesa, vigente a partir de 2009, foi aplicado integralmente nesta obra. preparação e projeto gráfico

Caroline Rocha arte de capa e revisão

Nestor Turano Jr. diagramação

Arthur Lamas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Poe, Edgar Allan, 1809-1849. A queda da casa de Usher / Egar Allan Poe ; Tradução Larissa Enohata e Nathalia Gröhs. — São Paulo : Nova Abordagem, 2013. Título original: The fall of the house of Usher ISBN 978-85-xxx-xxxx-2 1. Ficção norte-americana  i. Título. 14-14845

cdd-813

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana  813

Trabalho apresentado como exigência da disciplina Arte e Cultura, sob a orientação da Prof. Ms. Inês Pereira da Luz. Curso de Produção Editorial com ênfase em Multimeios Turma de 2013 — 1º Semestre Escola de Comunicação Universidade Anhembi Morumbi




Seu coração é um alaúde suspenso; Tão logo o tocamos ele ressoa. de béranger



A queda



D

urante todo um dia carregado, silente e soturno no outono daquele ano, quando as nuvens pairavam opressivamente baixas no firmamento, eu passava sozinho, a cavalo, por um trato de terra singularmente desalentador; e em pouco tempo me vi, ao cair das sombras do anoitecer, diante da melancólica Casa de Usher. Não sei dizer como foi — mas, ao primeiro relance do edifício, uma sensação de insuportável desespero invadiu meu espírito. Digo insuportável; pois a impressão não era atenuada por nada desse sentimento parcial de prazer, pois que poético, 11


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com que a mente normalmente recebe até mesmo as imagens mais austeras de desolação ou dissabor. Contemplei a cena diante de mim — a mera casa, e os simples aspectos panorâmicos da propriedade — as paredes nuas — as janelas vagas semelhantes a olhos — o capim esparso e espesso — uns poucos troncos esbranquiçados de árvores fenecidas — com uma depressão de alma tão absoluta que não a posso comparar mais adequadamente com nenhuma outra sensação terrena senão com o estado pós-onírico daquele que se entregou às dissipações do ópio — a amarga recaída na vida cotidiana — o hediondo cair do véu. Havia uma gelidez, uma prostração, uma repulsa no coração — uma irremediável consternação do pensamento que estímulo algum da imaginação podia instigar ao que quer que fosse de sublime. O que era isso — parei para pensar — o que era isso que me debilitava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério de todo insolúvel; tampouco podia eu lutar com as sinistras quimeras que se abatiam sobre mim conforme ponderava. Vi-me forçado a recorrer à insatisfatória conclusão de que embora, sem a menor sombra de dúvida, haja de fato combinações de objetos muito simples dotados do poder de desse modo nos afetar, ainda assim a 12


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análise desse poder reside em considerações além de nosso alcance. Possivelmente, refleti, um mero arranjo diferente dos pormenores da paisagem, dos detalhes do quadro, bastaria para modificar, ou talvez aniquilar, sua capacidade para a pesarosa impressão; e, agindo segundo essa ideia, dirigi as rédeas de meu cavalo para a beira escarpada de um pequeno lago lúgubre e negro reluzindo placidamente nas proximidades da residência, e baixei os olhos — mas com um tremor ainda mais intenso do que antes — para as imagens remodeladas e invertidas do capim pardacento, dos fantasmagóricos troncos de árvore, das janelas vagas semelhantes a olhos.

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E contudo, nesse solar da melancolia eu agora me propunha a passar algumas semanas. Seu proprietário, Roderick Usher, fora um de meus alegres companheiros na infância; mas muitos anos haviam se passado desde nosso último encontro. Uma carta, entretanto, alcançara-me recentemente em uma parte distante do país — uma carta sua — que, pela natureza febrilmente urgente, não admitira outra coisa além de uma resposta em pessoa. A caligrafia evidenciava agitação nervosa. O missivista falava de uma aguda enfermidade física — de um distúrbio mental que o oprimia — e de um desejo sincero de me ver, como seu melhor e na verdade único amigo pessoal, com vistas a ensejar, mediante a satisfação de minha companhia, algum alívio para seu mal. Foi a maneira com que tudo isso, e muito mais, se dizia — foi o aparente ardor que acompanhava seu pedido — que não me permitiu a menor margem para hesitação; e assim acatei incontinente o que ainda considerava um convite deveras singular.

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Muito embora quando crianças houvéssemos desfrutado de alguma intimidade, eu na verdade pouco sabia de meu amigo. Sua reserva sempre fora excessiva e habitual. Eu tinha consciência, entretanto, que sua família, das mais antigas, se distinguira, desde tempos imemoriais, por uma peculiar sensibilidade de temperamento, patenteando-se através de longas eras em inúmeras obras de exaltada arte e manifestada, ultimamente, em repetidas ações de generosa e mesmo pródiga caridade, bem como em uma apaixonada devoção às complexidades, talvez ainda mais do que às belezas ortodoxas e facilmente reconhecíveis, da ciência musical. Eu ficara sabendo, também, o fato deveras notável de que o tronco familiar dos Usher, a despeito da reputação inigualável desde sempre, jamais havia gerado, no período que fosse, nenhum ramo duradouro; em outras palavras, que a família inteira derivava da linha direta de descendência e desse modo se perpetuara, com variações muito insignificantes e muito efêmeras. Era essa deficiência, considerava eu, enquanto examinava em pensamentos a perfeita conformidade entre a natureza da propriedade e a reconhecida natureza das pessoas e enquanto especulava sobre a possível influência que uma, no longo intervalo 16


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dos séculos, devia ter exercido sobre a outra — era essa deficiência, talvez, de uma progênie colateral, e a consequente transmissão invariável, de pai para filho, do patrimônio acompanhado do nome, que havia, finalmente, de tal modo identificado os dois a ponto de fundir o título original da propriedade na denominação estranha e equívoca de “Casa de Usher” — denominação que parecia abranger, nas mentes dos camponeses que a usavam, tanto a família como a mansão familiar. Eu disse que o único efeito de meu procedimento em certa medida pueril — o de contemplar o lago — fora aprofundar a singular impressão inicial. Não pode haver dúvida de que a consciência do rápido agravamento de minha superstição — pois por que não deveria chamá-la assim? — serviu principalmente para acelerar o agravamento em si. Tal, bem o sei há muito tempo, é a lei paradoxal de todas as sensações que têm o terror como base. E talvez tenha sido por essa razão unicamente que, ao voltar a erguer os olhos para a própria casa, desviando-os do reflexo na água, em minha mente cresceu uma estranha fantasia — uma fantasia tão ridícula, de fato, que a menciono apenas para mostrar a vívida 17


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força das sensações que me oprimiam. A tal ponto estimulara a imaginação que cheguei realmente a crer que por todo o entorno da mansão e do domínio pairava uma atmosfera peculiar a eles próprios e a suas imediatas redondezas — atmosfera que não guardava qualquer afinidade com o ar do céu, mas que tresandava das árvores apodrecidas, da parede cinzenta, do lago silente — um vapor pestilento e místico, pesado, letárgico, fracamente discernível, e plúmbeo. Livrando meu espírito do que devia ter sido um sonho, perscrutei mais detidamente o verdadeiro aspecto do edifício. Sua característica principal parecia ser a excessiva antiguidade. A descoloração do tempo fora enorme. Fungos minúsculos cobriam todo o exterior, pendendo dos beirais como redes intrincadas. E no entanto tudo isso assim se dava à parte qualquer dilapidação extraordinária. Nenhuma seção da alvenaria desabara; e parecia haver uma incongruência incompreensível entre a ainda intacta adaptação de suas partes e a condição deteriorada das pedras individuais. Muita coisa naquilo me lembrava a especiosa totalidade de um madeiramento antigo apodrecendo por longos anos em al18


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guma cripta decrépita sem nunca ter sido perturbado pelo sopro do ar exterior. Além dessa indicação de extensa decadência, entretanto, a estrutura dava pouco sinal de instabilidade. O olho de um observador atento teria talvez percebido uma fissura quase imperceptível que, estendendo-se desde o telhado do edifício, na frente, descia pela parede em um zigue-zague, até se perder nas soturnas águas do lago. Notando essas coisas, atravessei a curta estrutura elevada de madeira que conduzia à casa. Um criado à espera tomou meu cavalo e entrei pela arcada gótica do vestíbulo. Um pajem, de furtivos passos, guiou-me a partir daí, em silêncio, por inúmeras passagens escuras e complicadas rumo ao gabinete de seu senhor. Grande parte do que encontrei no caminho contribuiu, não sei como, para intensificar os vagos sentimentos de que já falei. Embora os objetos em torno de mim — embora os entalhes dos tetos, as solenes tapeçarias das paredes, o negror de ébano dos soalhos e os fantásticos troféus armoriais que chacoalhavam à minha passagem fossem coisas com as quais, ou similares às quais, eu me acostumara desde a infância — embora eu não hesitasse em reconhecer quão familiar era aquilo tudo — eu 19


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mesmo assim me admirava em descobrir quão pouco familiares eram as fantasias que essas imagens ordinárias suscitavam em mim. Numa das escadas, encontrei o médico da família. Seu semblante, pensei, exibia uma expressão mista de vil astúcia e perplexidade. Abordou-me com ar agitado e seguiu em frente. O pajem então abriu uma porta e conduziume à presença de seu senhor. O aposento onde eu me encontrava era muito amplo e elevado. As janelas eram longas, estreitas e pontudas, e a uma distância tão grande do negro soalho de carvalho que não se podiam acessar do chão. Tênues raios de uma luz avermelhada filtravam pelo padrão de treliça das vidraças e serviam para tornar suficientemente distintos os objetos mais proeminentes em torno; o olho, entretanto, lutava em vão por atingir os ângulos mais remotos do ambiente, ou os recessos do teto abobadado e ornado de frisos. Escuros reposteiros pendiam das paredes. A mobília de modo geral era profusa, desconfortável, antiquada e dilapidada. Muitos livros e instrumentos musicais jaziam espalhados aqui e ali, mas sem conseguir emprestar qualquer vitalidade à cena. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Um 20


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ar de austera, profunda e irremediável melancolia pairava no ambiente, impregnando tudo. Quando entrei, Usher levantou-se do sofá onde estivera esparramado e saudou-me com um vivo entusiasmo que tinha muito, foi o que pensei inicialmente, de cordialidade exagerada — do constrangido esforço do mundano homem ennuyé. Bastou-me, entretanto, um relance em sua fisionomia para me convencer de sua perfeita sinceridade. Sentamo-nos; e por alguns momentos, conforme se quedava mudo, eu o observava com um sentimento que era parte piedade, parte assombro. Homem algum decerto jamais sofrera alteração tão terrível, em tão breve período, quanto Roderick Usher! Era com dificuldade que eu podia me forçar a admitir a identidade daquele ser macilento diante de mim como sendo o companheiro de minha tenra infância. Contudo o caráter de seu rosto sempre fora notável. O semblante cadavérico; os olhos grandes, claros e luminosos, sem comparação; lábios em certa medida finos e muito pálidos, mas de curvatura insuperavelmente bela; um nariz de delicado molde hebraico, mas com amplitude de narinas incomum em formações similares; um queixo lindamente mo21


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delado, expressando, em sua falta de proeminência, falta de energia moral; cabelos mais finos e macios do que teias de aranha; esses traços, com uma imoderada expansão acima das regiões das têmporas, compunham em seu conjunto uma fisionomia que não era das mais fáceis de esquecer. E agora, no mero exagero do caráter prevalecente dessas feições, e da expressão que costumavam transmitir, residia tal mudança que eu tinha dúvidas sobre aquele com quem falava. A lividez agora espectral e o brilho agora miraculoso dos olhos, mais do que tudo, me sobressaltavam e mesmo assombravam. O cabelo sedoso, também, fora deixado crescer em absoluta negligência e na medida em que, com sua indomável textura de gaze, antes flutuava que caía em torno de seu rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, ligar sua expressão arabesca a qualquer ideia de simples humanidade. Quanto aos modos de meu amigo, notei na mesma hora uma incoerência — uma inconsistência; e logo percebi que isso brotava de uma série de esforços débeis e fúteis em dominar um habitual tremor — uma excessiva agitação nervosa. Para algo dessa natureza eu havia na verdade me preparado, 22


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não só pela carta, como também pela lembrança de certos traços de meninice, e pelas conclusões deduzidas de sua peculiar conformação física e temperamento. Seus gestos eram alternadamente joviais e taciturnos. Sua voz variava rapidamente de uma indecisão trêmula (quando a vitalidade animal parecia inteiramente em suspenso) para essa espécie de concisão enérgica — essa enunciação abrupta, momentosa, calma e cavernosa — essa elocução gutural morosa, equilibrada e perfeitamente modulada que se pode observar no ébrio arruinado ou no inveterado comedor de ópio durante os períodos de sua mais intensa excitação. Foi desse modo que falou da finalidade de minha visita, de seu sincero desejo de me ver e do conforto que esperava receber com minha presença. Demorou-se, em alguma minúcia, no que concebia ser a natureza de sua enfermidade. Era, afirmou, um mal de constituição e de família, para o qual procurava desesperadamente achar remédio — uma mera afecção nervosa, acrescentou imediatamente, que iria sem dúvida passar. Manifestava-se numa infinidade de sensações antinaturais. Algumas delas, do modo como as detalhou, ocasionaram-me 23


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interesse e perplexidade; embora, talvez, os termos que usou, e o modo geral de sua narrativa, tivessem seu peso. Sofria na maior parte de uma agudez mórbida dos sentidos; somente o alimento mais insípido era-lhe suportável; só podia usar trajes de uma determinada textura; os odores de todas as flores eram-lhe opressivos; torturava seus olhos até a mais débil luz; e havia apenas alguns sons peculiares, estes saídos de instrumentos de corda, que não o enchiam de horror. A uma espécie anômala de terror descobri que era escravizado. “Perecerei”, disse-me, “estou fadado a perecer nesta deplorável loucura. Desse modo, e de nenhum outro, conhecerei minha ruína. Temo os eventos do futuro não em si mesmos, mas em seus resultados. Estremeço ao pensamento de qualquer incidente, mesmo o mais trivial, que possa influenciar essa intolerável agitação de minha alma. Não abomino de fato o perigo, a não ser por seu absoluto efeito — o terror. Nessa condição perturbada — lamentável — sinto que chegará mais cedo ou mais tarde o momento 24


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em que deverei abandonar vida e razão simultaneamente, numa luta com este sinistro fantasma, o MEDO.” Percebi, além do mais, a intervalos, e por meio de alusões intermitentes e dúbias, outro traço singular de sua condição mental. Ele era prisioneiro de certas impressões supersticiosas com respeito à morada que ocupava, e a qual, por muitos anos, jamais se aventurara a deixar — com respeito a uma influência cuja força espúria era transmitida em termos obscuros demais para serem aqui reiterados — uma influência que algumas peculiaridades na mera forma e substância de sua mansão familiar haviam, por força do longo sofrimento, disse-me, obtido sobre seu espírito — um efeito que a constituição das paredes e torres cinzentas, e do escuro lago dentro do qual tudo isso se mirava, havia, enfim, produzido sobre o ânimo de sua existência. Ele admitia, entretanto, embora com hesitação, que grande parte da peculiar melancolia que desse modo o afligia podia ser ras25


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treada até uma origem mais natural e muito mais palpável — à enfermidade grave e prolongada — na verdade, ao óbito evidentemente próximo — de uma irmã ternamente adorada — sua única companheira por longos anos — sua última e única relação de sangue neste mundo. “Seu falecimento”, disse, com um amargor que jamais esquecerei, faria dele (ele, o desesperado e frágil), “o último da antiga estirpe dos Usher.” Enquanto falava, Lady Madeline (pois assim se chamava) passou vagarosamente por uma parte remota do aposento e, sem dar por minha presença, desapareceu. Observei- a com a mais absoluta perplexidade, não destituída de certa apreensão — e contudo julguei impossível justificar tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimia conforme meus olhos seguiam seus passos ao se retirar. Quando uma porta, finalmente, se fechou às suas costas, meu olhar buscou instintiva e ansiosamente o semblante do irmão — mas ele havia enterrado o rosto nas mãos, e tudo que pude perceber foi que um palor mais do que ordinário se difun26


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dira pelos dedos emaciados, entre os quais escorriam muitas lágrimas apaixonadas. A doença de Lady Madeline iludia havia muito tempo a perícia de seus médicos. Uma apatia permanente, um gradual esgotamento físico e frequentes ainda que transitórios acessos de um caráter parcialmente cataléptico eram os incomuns sintomas. Até então suportara bravamente as aflições de sua enfermidade, e não se confinara em definitivo à cama; mas ao encerrar-se o dia de minha chegada à casa, ela sucumbiu (como me relatou seu irmão, à noite, com inexprimível agitação) ao poder destruidor do algoz; e percebi que a efêmera visão que obtivera de sua pessoa teria desse modo sido a última — que a senhora, pelo menos enquanto viva, não mais seria vista por mim. Por vários dias depois disso, seu nome não foi mencionado nem por Usher, nem por mim: e durante esse período envidei enérgicos esforços para aliviar a melancolia 27


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de meu amigo. Pintamos e lemos juntos; ou escutei, como em sonho, as delirantes improvisações de seu expressivo violão. E desse modo, à medida que uma intimidade mais e mais próxima admitia-me com cada vez menos reservas nos recessos de seu espírito, mais amargamente eu me dava conta da futilidade de qualquer tentativa em alegrar aquela mente de onde trevas, como que constituindo uma qualidade positiva inerente, vertiam sobre todos os objetos do universo moral e físico, em uma incessante radiação de negra melancolia. Carregarei para sempre comigo a lembrança das muitas horas solenes que desse modo passei a

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sós com o mestre da Casa de Usher. E contudo fracassarei em qualquer tentativa de transmitir uma ideia do exato caráter dos estudos, ou das ocupações, em que me envolveu, ou por cujos caminhos me conduziu. Uma idealidade excitável e consideravelmente destemperada lançava um brilho sulfuroso sobre tudo. Suas nênias longas e improvisadas ecoarão para sempre em meus ouvidos. Entre outras coisas, retenho dolorosamente na memória uma certa singular perversão e amplificação da atmosfera exaltada da última valsa de Von Weber. Das pinturas sobre as quais sua elaborada imaginação se debruçava, e que ganhavam, a cada pincelada, uma obscuridade diante da qual eu estremecia tanto mais abalado porque estremecia sem saber por quê; — dessas pinturas (vívidas como se suas imagens estivessem nesse momento diante de mim) eu em vão me empenharia em haurir mais do que uma pequena parte capaz de caber no âmbito da palavra meramente escrita. Pela absoluta simplicidade, pela nudez dos esboços, ele prendia e abismava a atenção. Se algum mortal um dia pintou uma ideia, esse mortal foi Roderick Usher. Ao menos para mim — nas circunstâncias que então me cercavam —brotava das puras abstrações que o hipocondríaco in29


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tentava lançar sobre sua tela uma intensidade de intolerável assombro, do qual o mais leve vestígio jamais senti nem na contemplação das fantasias decerto radiantes, contudo demasiado concretas, de Fuseli. Uma das fantásticas concepções de meu amigo que não partilhava tão estritamente do espírito da abstração pode ser vagamente representada, embora debilmente, em palavras. Um pequeno quadro exibia o interior de uma cripta ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, liso, branco e sem interrupção ou adornos. Certos pontos acessórios do desenho serviam bem para transmitir a ideia de que essa escavação ficava em uma profundidade excepcionalmente grande sob a superfície da terra. Nenhuma saída se podia observar em parte alguma de sua vasta extensão, e tocha alguma, ou qualquer outra fonte de luminosidade era discernível; contudo uma profusão de intensos raios difundia-se por toda parte e a tudo banhava num esplendor fantasmagórico e incongruente. Contei agora há pouco daquela mórbida condição do nervo auditivo que tornava toda música 30


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intolerável para o enfermo, com exceção de certos efeitos de instrumentos de corda. Foram, talvez, os estreitos limites aos quais ele desse modo se restringiu no violão que ensejaram, em grande medida, o caráter fantástico de suas apresentações. Mas a fervorosa facilidade de seus improvisos nisso não encontrava explicação. Eles devem ter sido, e eram, nas notas, bem como nas palavras de suas desenfreadas fantasias (pois ele com não pouca frequência se fazia acompanhar de improvisações verbais rimadas), o resultado daquela intensa serenidade e concentração mental à qual aludi previamente como observável apenas em momentos particulares da excitação artificial mais aguda. A letra de uma dessas rapsódias veio-me facilmente à memória. Fiquei, talvez, sobremaneira impressionado com ela, conforme a entoava, porque, carregado pela correnteza subterrânea ou mística de seu significado, imaginei perceber, e pela primeira vez, uma plena consciência da parte de Usher acerca da oscilação de sua elevada razão em seu trono. Os versos, intitulados “O palácio assombrado”, eram muito próximos, se não exatamente, do seguinte:

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I No mais verdejante de nossos vales que bons anjos têm por morada, outrora, um nobre e majestoso palácio — Radiante palácio — assomava. Nos domínios do monarca Pensamento — Era lá que ele ficava! Serafim algum jamais esticou suas rêmiges Sobre uma construção nem a metade tão bela.


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