a arte de pagar as suas dĂvidas e de satisfazer os seus credores sem gastar um cĂŞntimo
título A Arte de Pagar as Suas Dívidas e de Satisfazer os Seus Credores Sem Gastar Um Cêntimo título original L’Art de Payer Ses Dettes et de Satisfaire Ses Créanciers Sans Débourser Un Sou autor Honoré de Balzac tradução José Viale Moutinho revisão Nova Delphi design FBA. paginação Nova Delphi imagens iStockphoto/Alexast impressão e acabamento Guide – Artes Gráficas Lda. isbn 978-989-8407-72-6 depósito legal 339932/12 editora Nova Delphi (Marca Registada da Euthalia Editora, Lda.) Rua da Carreira 115/117, 9000-042 Funchal, Portugal www.novadelphi.com
Honoré de Balzac
a arte de pagar as suas dívidas e de satisfazer os seus credores sem gastar um cêntimo Explicada em Dez Lições ou
Manual de Direito Comercial Para Uso de Gente Arruinada, Devedores, Desempregados e Demais Consumidores Sem Dinheiro Pelo Meu Saudoso Tio, Professor Emérito. Tradução e Nota de Abertura de José Viale Moutinho
índice 7 Nota de Abertura 11 Prefácio do Editor da Edição Francesa de 1827 17 Nota Biográfica Sobre o Meu Tio 35 Aforismos 41 Lições 43 Primeira Lição — Das Dívidas 53 Segunda Lição — Sobre a Amortização das Dívidas 61 Terceira Lição — Sobre os Credores 67 Quarta Lição — Sobre os Devedores 73 Quinta Lição — Qualidades Necessárias 81 Sexta Lição — Disposições Gerais 89 Sétima Lição — Modo de Viver 99 Oitava Lição — Do Sequestro Corporal 109 Nona Lição — Sobre os Oficiais de Justiça 117 Décima e Última Lição — A Prisão de Sainte -Pélágie 127 Conclusão
nota de abertura Com que havia de preocupar-se o Sr. Honoré de Balzac! Ah, meus caros, nada menos que com o pagamento das dívidas dos seus e, já agora, devido à existência desta tradução, e por extensão, dos nossos contemporâneos. Porém, a seu favor, funciona a parceria do seu ilustre amigo o Sr. E. M. de Saint-Hilaire, a quem também devemos este precioso manual onde ganhamos instrução suficiente para nos salvarmos da crise. Graças ao excelente clássico francês, e ao parceiro que arrastou nesta aventura de sociologia económica, poderemos hoje preservar os bens adquiridos e resguardarmos as quantias que, pelo menos em princípio, pensávamos reunir para eventualmente liquidarmos as nossas dívidas, dívidas estas correspondentes a contas. A menos que, desde o princípio, não fosse nossa intenção liquidar o débito e, nesse caso, não nos poderemos considerar realmente devedores, nem a parte lesada óbvia credora. A questão será outra e a dialética processa-se no fio das páginas deste manual, que vos encantará a inteligência, pervertendo, numa lógica de saguão e trapeira, a mimosa educação que tanto custou ministrar-vos aos vossos queridos papás, ao mal gastarem os seus ricos dinheiros em finos colégios. A menos que tenham ficado a dever… Meus amigos, aqui fica o aviso: se algum intelectual teve o bom gosto de vos recomendar romances franceses para os vossos lazeres, e destacou o nome de Balzac, 7
certamente não foi para que opteis prontamente pelas ideias desta obra. Não que ela não se enquadre n’A Comédia Humana, não que ela não sirva de complemento doutrinal aos brilhantes cronistas hodiernos dos suplementos de economia ou dos jornais e revistas da especialidade. A questão é outra, a questão é de identificação. E mais não deveria dizer, permitindo que a vossa curiosidade penetre nos meandros de um livrinho como este. Ora este livrinho teve a sua edição princeps em 1827, praticamente anónimo. E por aí se ficou. O seu manuscrito, gerado a duas mãos, encontra-se arquivado na Maison de Balzac, em Paris. Por qualquer razão, nunca um organizador o integrou nas obras completas do autor de O Tio Goriot. Por ter sido em parceria, arrisco? Pois é capaz de ser sido. E também não é literatura, convenhamos, que altere o gosto que temos da leitura da produção do mestre. É que ficou pelo caminho não só este texto como ainda outros, que alguém, um destes dias, irá buscar à gaveta dos expurgos das inconveniências. Mas… os meus amigos devem dinheiro a alguém? Reconhecem esse tipo de gente a que chamamos credores? Como se reconhecem enquanto devedores? E como reconhecem que alguém se outorgue o direito de considerar-se credor, precisamente vosso credor? Ah, nunca tinham pensado nisso, não é? Pois, ciente das minhas responsabilidades cívicas, percorri os esconsos das noites dos séculos parisienses até dar com esta 8
papelada que vos trago, para vosso proveito num tempo como este. Porém, agradecendo que a presente obra seja comprada a firme, pois o editor não pode correr o risco de atolar-se no lamaçal da escusa filosofia a que aqui dá guarida com a sua digna chancela. O poeta Ovídio, nas Metamorfoses, tratava desta questão com rara ginástica lírica e mental. Seguimos-lhe os passos. Bem, de quando em vez, ao jeito de ameaça, aparece a cadeia de Sainte-Pélagie. Porém, amigos leitores, nada menos inofensivo nos dias de hoje. A que foi chamada, no tempo de Balzac, a cadeia das dívidas foi demolida no recuado de 1899 por absoluto estado de insalubridade. Numa ida a Paris poderão ir ver onde ficava, mas nem o rasto lhe encontrarão. Era entre a Rue de la Clef e a Rue du Puits-de-l’Ermite, no 5e. Arrondissement. Entre os seus presos mais célebres contavam-se Cavaignac (cujo bizarro recorte de barba fez moda), La Rochefoucauld, Proudhon, Nerval, Sade, Vallés e Vidocq, assim como grande parte da intelligentzia francesa passou pelas suas celas. Não só por calotes, também por questões políticas. Hoje creio que ninguém é preso por dívidas, a não ser que haja alguma coisa apensa, pelo que nunca poderia referir-vos uma cadeia especializada neste tipo de prevaricadores em território português… Fiquem na paz possível com os vossos credores. José Viale Moutinho 9
prefácio do editor da Edição Francesa de 1827 O autor de l ’Art de mettre sa cravate entrega ao mundo uma obra que, embora não seja sua, lhe irá granjear uma grande quantidade de inimigos e, sem dúvida, perseguições. Como é possível? vai exclamar uma multidão de espíritos mesquinhos, este barão de l’Empésé tem a pretensão de conferir o estatuto de ciência à abominável arte de oferecer a um honrado credor belas palavras em vez de dinheiro vivo. Mas isto não passa de uma infâmia, de uma abominação! Um homem assim deveria ser preso!… De imediato surgem clamores atrás dos balcões de todos os negociantes, fabricantes, comerciantes; já que uns não veem para além do seu letreiro e outros têm uma filosofia que não é maior do que o chão do seu estabelecimento. O mero anúncio deste livro bastará para que o medo se apodere do proprietário, do dono do restaurante, do vendedor de limonada, do alfaiate, da lavadeira, do sapateiro, do chapeleiro, do comerciante de boinas e de vinho, do padeiro, do carniceiro, do merceeiro, etc., e até do próprio livreiro. Todas as pequenas faturas que até agora dormiam profundamente vão fazer com que o humilde funcionário ou o inútil vendedor de elegância, o artesão laborioso e o arrendatário egoísta despertem em sobressalto. É realmente uma desgraça. Mas os grandes escritores do século xix já o diziam: «O reino da luz cresce dia 11
a dia»1 «A espécie humana segue pelos caminhos da evolução»2 «A nação francesa não pode regredir»3 «Uns têm demasiado, outros não têm o suficiente»4, etc., etc. Convençam-se disto: enquanto se continuarem a tecer reflexões sobre este tipo de especialidades, continuaremos a proferir imbecilidades. Há que captar as grandes esferas dos interesses sociais e raciocinar acerca de generalidades, tudo o mais irá seguir o seu curso sozinho e só para o merceeiro será um absurdo. Mas o que é um só indivíduo comparado com a massa? É bem sabido que em França, e especialmente em Paris, existe uma quantidade incalculável de indivíduos a quem a sociedade nada deve, uma vez que eles nada fazem por ela, mas que ainda assim julgam ter o direito de emitir requerimentos de todas as naturezas aos seus concidadãos, baseando-se numa única razão: «que uns têm demasiado, e outros nem sequer têm o suficiente»5. Ora bem, quem são estas pessoas de que quero falar? As pessoas que voluntária e bondosamente se deixam situar na categoria de «uns», não tendo outra profissão a não ser a de explorar, por assim dizer, com violência, 1 Chateaubriant. 2 Monsieur de Pradt. 3 General Foy. 4 O tio do autor. 5 Aforismo do tio do autor.
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aqueles que pertencem à categoria de «outros»? Mas antes devo preparar moderadamente o leitor, fazendo-lhe notar que esta obra não foi escrita para estas pessoas, e nem sequer para «aqueles que cometem crimes e estão atolados de dívidas, e que justificadamente estão ameaçados pelas nossas leis e tentam iludi-las desesperadamente, pensando que se a situação não for invertida, não conseguirão subsistir». Em resumo, para esses calaceiros, improdutivos e desavergonhados, que geralmente não valem nem a corda com a qual seria preciso enforcá-los, que só merecem desprezo e indiferença, que em todos os lados mostram ao generoso público o seu atestado de incapacidade e só se contentam com o papel de consumidor culpado… Repito-o, não é para toda esta escumalha que foi publicada esta obra. Mas sim para toda essa espécie de infelizes, deserdados da fortuna nacional, por uma force majeure independente da sua vontade, para aqueles indivíduos «apreciáveis» a todos os níveis, que possuem todas as qualidades físicas e morais, todos os talentos que fazem o encanto da sociedade, para os que são eminentemente produtores, numa palavra, para gente industriosa, que por infelicidade não tem nem um cêntimo de rendimentos anuais, e por isso se vê obrigada a contrair dívidas para poder viver honradamente. Esta é gente de bons costumes, com princípios. Quer dizer que, de uma forma ou de outra, tem o desejo 13
(…)
terceira lição Sobre os Credores Diferentes tipos de credores — Nem todos são iguais — Quem tem o direito de chamar-se credor? — Baseando-se em que direitos? — Ações que estão permitidas aos credores. — O que lhes está interdito. — Diferentes costumes — O clássico país dos credores. Entre os credores que se podem ter, encontram-se sempre alguns sensíveis e bondosos que acabam por se afeiçoar ao devedor, e sobretudo ao devedor que nunca lhes pagou nada. Pudemos observar como o credor se converteu num amigo íntimo, como ficou afetado pelos problemas e preocupações em que este se envolveu, e chorar de emoção perante os testemunhos de gratidão que este lhe devotou. É um género de ser humano de grande excelência. A partir do momento que uma pessoa os tem a seu favor, já não há forma de livrar-se deles. Uma vez que se lhe afeiçoaram, já não há maneira de se desembaraçar deles; é uma mudança operada na sua constituição moral: este tipo de credor, que por certo escasseia, adotou o hábito de convidá-lo para sua casa ou de lhe fazer visitas, de tal forma que se não lhe fala durante vinte e quatro horas, sentirá que a sua felicidade não pode ser completa. A sua presença parece ser imprescindível. 61
Mas não se fie neles: nem todos são assim. Pela minha parte, conheci uma boa porção deles que não tinha inclinações tão filantrópicas. Assim convém que aprenda o que é um verdadeiro credor, e saiba, como um naturalista, distinguir as classes, os géneros e as espécies de credores. Chama-se credor ao indivíduo a quem outro deve algo, como por exemplo uma quantidade de dinheiro, uma renda, víveres, e em geral, todos os géneros de mercadoria que possam existir, seja a que título for ou qualquer que seja a sua origem. No entanto, para verdadeira e justificadamente chamar-se credor de alguém, é necessário que aquele que denominamos como seu devedor se tenha realmente comprometido como tal, e de modo natural. Uma pessoa converte-se em credor com base num contrato, letra, nota de dívida, num julgamento, num delito, etc., etc. Creditorium appelatione (diz a lei no parágrafo 11 ff. de vers. oblig.) non hi tantum accipientur qui pecuniam crediderunt, sedamus quibus ex qualibet causa debetur. Todos os credores são «quirografários»16, e tanto uns como os outros, são comuns ou privilegiados 17. 16 Significa o mesmo que hipotecários. 17 Claro, é preciso ler «não hipotecário», pois um credor é «Chirographaire» por um ato assinado privadamente e que por isso não pode levar hipoteca nem tampouco outorgar ao credor a possibilidade de atuar pessoalmente contra o devedor, segundo o Dicionário da Academia Francesa de 1761, que não mudou desde então.
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Um credor pode fazer valer reivindicações diferentes sobre a mesma dívida. A saber: uma ação pessoal contra o comprometido ou os seus herdeiros: uma ação real, se se trata de bens de raiz; uma ação de hipoteca contra os detentores de uma herança hipotecada, uma reivindicação sobre uma dívida, etc. Para obter o seu dinheiro, o credor está autorizado a acumular todos estes tipos de perseguição, como, por exemplo, execuções ou ordens de pagamentos, com a condição de que se trate de uma quantia de, pelo menos, cem francos. Também pode fazer uso do sequestro corporal, se a qualidade da sua exigência o justifica. Tal como explico ao leitor na minha oitava lição. Mas não é permitido ao credor apropriar-se, pela sua própria autoridade e seu próprio poder, da propriedade imóvel ou móvel do devedor. Primeiro tem de fazer com que seja confiscada e depois vendê-la, tudo isso através do tribunal. A razão não tem direitos sobre o que pertence ao devedor. Não tem sobre ele o que os sábios chamam jus in re, mas só jus ad rem, isto é, só tem o poder de embargar o devedor ou os seus sucessores, de pagar em dinheiro vivo, ou de restituir o objeto em questão. Não se pode obrigar o credor a «desdobrar» a sua dívida, isto é, aceitar uma parte do que deve, ou algo que o substitua. Assim, não pode ser obrigado a aceitar uma transferência da dívida, ou um pagamento num lugar distinto daquele onde tem de realizar-se. 63
(…)
conclusão moral Que não tem nada em comum com a que é predicada pelo meu tio na sua obra e, apenas por esse motivo, convidarei o leitor a seguir a da sua preferência. Graças a Deus que já não vivemos no tempo em que era de bom-tom ter dívidas e em que ter credores na sala de visitas conferia mais honra do que ter lacaios. A loucura de alguns jovens nos tempos da velha Corte tinha atingido indiscriminadamente todas as classes, mas foi o meu admirável tio quem modelou um princípio do Direito Civil, do Direito Político e Comercial, de modo a redigir um livro, para demonstrar claramente que dívidas não pagas são a prova irrefutável da prosperidade de quem as contraiu. Devo pedir-lhe desculpa, pois quando me ocupava da redação da sua Arte de pagar as suas dívidas e de satisfazer os seus credores sem gastar um cêntimo, nunca, por meu lado, fui capaz de apreciar a sua moral, nem muito menos de me rir com os seus gracejos acerca dos meios que ele aconselha a utilizar para não pagar dívidas, quando infelizmente fomos obrigados a contraí-las, e sobretudo quando temos a oportunidade de deixar de ter dívidas quando as pagamos, claro está, em numerário. Parece-me que as dívidas, sejam de que natureza forem, são obrigações que se devem tomar a sério 127
como tantas outras; e é uma falta de inteligência e de educação deixar de cumprir essas obrigações. Sei muito bem, e toda a gente sabe, que a sociedade permite, nestes casos, por meio de uma dessas contradições nos nossos costumes, das quais poderia nomear com facilidade vários exemplos, o que a lei condena. Também sei que enquanto durante o dia os tribunais sentenciam os devedores, durante a noite as obras teatrais troçam dos credores, e, de certo modo, há um acordo tácito entre o grande mundo e o teatro, para se rirem das paródias que se fazem aos credores. Mas, com o tempo, os credores cansam-se das viagens inúteis, cansam-se dos adiamentos que lhes propomos, e finalmente acabam por obter do tribunal, à custa da sua perseverança, uma ordem de liquidação de conta, que o devedor, para poder obter um novo crédito, liquida pelo menos parcialmente, muitas vezes recorrendo a usurários. Estes honestos negociantes, que estão sempre a par das necessidades e dos recursos daqueles que recorrem a eles, conhecem, melhor do que ninguém, o valor de um documento de dívida assinado sobre papel selado. A atribulada pessoa que cair nas suas garras bem pode repetir as vezes que quiser a frase do meu tio: Tantas notas quantas quiserem, mas nem uma só letra de câmbio! Mas é só a esse preço que se consegue obter dinheiro, emprestado com juros altíssimos. Os dias passam, o dia de vencimento do prazo chega, a letra de câmbio 128
é protestada, uma sentença é ditada por tribunal, e é-lhe comunicada. Os amigos e afins parecem abadoná-lo e no dia seguinte o nosso elegant, à sua chegada do Bois, ao entrar no Café de Paris, sem consideração pela moda nem pelo seu bom apetite, é convidado, em consequência da sentença do tribunal comercial, sedeado na Bolsa, a dirigir-se à Rue de la Clef, para fazer uma estadia entre quatro paredes, até que um pai compreensivo, uma mãe terna, uma amante compadecida, um amigo generoso, ou um tio, de um género diferente do meu, o devolva aos seus doces costumes, e lhe dá, ao fazer desaparecer as suas dívidas, a possibilidade de contrair dívidas novas. Pelo menos há uma coisa reconfortante, é que é cada vez mais difícil, em Paris, a cada dia que passa, conseguir viver à custa de dívidas, como antigamente; os comerciantes são menos crédulos, os artesãos menos pacientes, os usurários menos numerosos, a família, as amantes e os amigos menos generosos, e os tribunais mais severos do que na época em que viveu este meu singular tio… que Deus o tenha em paz e misericórdia eternas!
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Este livro foi composto em carateres New Baskerville e impresso na Guide – Artes Gráficas, em papel Coral Book Ivory 80 g no mês de fevereiro de 2012.