A criança que sonhava com o fim do mundo

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a crianรงa que sonhava com o fim do mundo


título A Criança que Sonhava com o Fim do Mundo título original Il Bambino che Sognava la Fine del Mondo autor Antonio Scurati direitos reservados Copyright © 2009 by Antonio Scurati, All rights reserved Published by arrangement with Marco Vigevani Agenzia Letteraria tradução António Fournier revisão Nova Delphi design FBA. paginação Nova Delphi imagem Brooke Fasani Auchincloss Corbis / VMI impressão e acabamento Papelmunde isbn 978- 989-8407- 60 -3 depósito legal 349136/12 editora Nova Delphi (Marca registada da Euthalia Editora, Lda.) Rua da Carreira, 115/117, 9000-042 Funchal, Portugal www.novadelphi.com


Antonio Scurati

a crianรงa que sonhava com o fim do mundo



A ti que estรกs a chegar. Que sejas bem vinda a este mundo.



Os bairros residenciais sonham com a violĂŞncia. Entorpecidos dentro das suas moradias sonolentas, protegidos por benĂŠvolos centros comerciais, aguardam pacientemente a chegada dos pesadelos que os farĂŁo acordar para um mundo mais carregado de paixĂŁo. J. G. Ballard



A Ăşnica paixĂŁo da minha vida foi o medo. Thomas Hobbes



índice 13 Itália ou a Morte do Futuro (Prefácio) 29 Prólogo 37 25 de Junho de 2007 53 Setembro 69 Outubro 91 Novembro 127 Dezembro 145 Fim de Ano 159 Janeiro 195 Fevereiro 231 Março 251 Abril 275 Maio 307 13 de Junho de 2008 313 Epílogo



itália ou a morte do futuro Na vida de cada homem não há coisa mais secreta e misteriosa do que a inocência e a castidade de uma criança. O que de impuro aflora de vez em quando nos nossos gestos, pensamentos, sentimentos, provém dessa idade obscura e infeliz. Dentro de cada homem há uma criança morta. Curzio Malaparte, Racconti italiani Em outubro de 2009, na cidade italiana de Alba, naquela que seria a última visita de José Saramago a um país que tanto amava, o escritor português que Umberto Eco considerava um dos últimos titãs de um género literário em vias de extinção, falava da necessidade imperiosa de o romance se metamorfosear para poder impor-se como espaço de reflexão e instrumento de intervenção. E aludia também, não sem algum desencanto, à inutilidade da palavra, único meio à nossa disposição para veicular o pensamento crítico, para exercitar o direito cívico, para denunciar uma democracia amputada como é a nossa, refém da política e dos grandes lobbies económicos. Sentado a seu lado, Antonio Scurati, com metade dos anos mas partilhando os mesmos propósitos, elogiava, por sua vez, ao apresentar a tradução italiana de O caderno, a rara capacidade que Saramago tinha de fazer dialogar o «tempo grande da História» com o «tempo pequeno do quotidiano». A síntese desta equação é a ideia cara a Scurati, e hoje muito radicada, segundo a qual o atentado de 11 de setembro de 2001 às Torres Gémeas concluiu definitivamente um tempo, o Tempo da História, e inaugurou um novo, o Tempo da Crónica, caracterizado pela compressão espácio-temporal num presente que se repete infinitamente. Este presente que estamos a viver 13


seria marcado segundo o sociólogo polaco Zygmunt Bauman — autor de alguns dos melhores breviários da nossa contemporaneidade — pelo medo líquido e pela angústia da globalização, pela fragilidade das relações afetivas e pelo espectro do regresso dos bárbaros. Cumpre-se este ano exatamente 100 anos do trágico naufrágio do Titanic. O que este acontecimento tem que ver com o romance que aqui se apresenta, não está nem na liturgia dos aniversários nem na coincidência do naufrágio recente do navio de cruzeiro italiano Concordia que, de resto, seria a metáfora perfeita da Itália destes últimos anos (um capitão que apela à calma e assegura que não há motivos de alarme e simultaneamente abandona o navio, deixando os passageiros entregues ao seu próprio destino). Está sim na metáfora do icebergue, entendido como um imenso pesadelo branco que avança silenciosa e inexoravelmente na noite para se materializar com toda a sua força destrutiva no nosso quotidiano desencantado. O poeta alemão Hans Magnus Enzensberger nesse belíssimo epitáfio eivado de lirismo e compaixão que é o livro O naufrágio do Titanic, desenvolve justamente essa ideia: o apocalipse não acontece de repente, com uma catástrofe monumental, mas de uma forma quase impercetível. O icebergue abre um enorme rombo no casco, condenando o navio à morte, enquanto nos pisos superiores se continua a festejar, com a orquestra a tocar, os convivas a dançar, os passageiros no convés a brincar com pedaços de gelo dessa mesma montanha submersa que, sem saberem, já alterou para sempre o curso das suas vidas. A tragédia já aconteceu, a água está já a alagar os porões e começa a alcançar os compartimentos de 3.ª classe, mas ninguém nos compartimentos superiores, naqueles onde se vive na ilusão do 14


conforto, da tecnologia, da segurança, se deu conta do desastre. É esta a principal ideia que subjaz a este livro pós-apocalítico de Antonio Scurati, caracterizado por um lirismo lúcido e selvagem que dá voz a uma geração de órfãos: a nossa. Órfãos de um século que já não voltará, como aquele dinossauro de Calvino que sobrevive à morte da espécie e continua a caminhar como se nada fosse. O verdadeiro tema deste livro, por detrás da temática incómoda, mas muito atual, da pedofilia que, de resto, toca também de perto Portugal — não só o caso Casa Pia, mas também o desaparecimento de Madeleine McCann, que tanta tinta fizeram correr — é o Medo. Segundo Bauman, hoje «o medo mais temível é o medo difuso, generalizado, livre, desancorado, flutuante, desprovido de um destinatário ou de uma causa aparente; o medo que nos persegue sem uma razão concreta, a ameaça que deveremos recear e que se pressente por todo o lado, mas nunca chega a materializar-se. Medo é o nome que damos à nossa incerteza, à nossa ignorância em relação à ameaça, ou ao que temos que fazer para combatê-la». Antonio Scurati faz-se intérprete desse «medo derivativo» que povoa a consciência angustiada do humano neste início de Milénio, a geração da inexperiência, como ele lhe chama, aquela que não viveu como protagonista os grandes eventos colectivos que marcaram o século xx, e que na ausência de qualquer sentido teleológico da História, se vê condenada a ser espetadora passiva (o famoso Naufrágio com espetador de Blumenberg) da sua própria alienação. Massimo Gramellini, num artigo intitulado «Os novos órfãos» publicado no jornal La Stampa, comentava que: «Desde há algum tempo que os jornalistas abrem o correio com um sentimento de angústia. Acabou o 15


tempo dos leitores encolerizados por questões de direita ou de esquerda. Agora falam de despedimentos, dívidas, capitulações existenciais. Ontem escreveu-me um homem de 56 anos: tinha uma mulher, um filho, uma pequena empresa e um empréstimo bancário. Depois, a sua empresa faliu, a mulher deixou-o levando consigo o filho, e o banco pôs-lhe no encalço uma agência de cobrança de dívidas. Não sabendo para onde ir, voltou para o seio da mãe, que o acolheu em casa com amor e sofrimento porque não é um filho pródigo mas um vencido da vida». Não citamos este texto só pela atualidade do tema, nem pelo facto de Gramellini, ou Mentana, conhecidos jornalistas e figuras públicas italianas, serem personagens do romance (digitando os três nomes no motor de pesquisa — Mentana, Gramellini, Scurati — temos o prazer de vê-los, os três, a falar do livro de que são protagonistas). Citamo-lo sobretudo porque o próprio Scurati se apropria dos mecanismos da linguagem jornalística, ao inserir na trama do romance excertos dos seus próprios artigos de opinião publicados na imprensa escrita, para os fazer funcionar de outra maneira, criando a trama com que tenta reter o sentido que se perde na navegação de cabotagem entre as pequenas e grandes tragédias do nosso quotidiano: o sentido perdido do nosso Tempo. Esta forma original de ler o presente através da membrana demasiado fina que separa realidade e ficção, de contar o real quotidiano com o tempo do romance e não da crónica, como se fosse, como já foi notado pela crítica, «uma reportagem colorida da imaginação», é na realidade uma radiografia implacável do que tem sido a Itália destes últimos anos: um país nervoso, instável e refém do Medo. Um país que vive há 16


muito tempo com a alma partida e parece ter perdido a chave para entrar em casa. Por isso a belíssima história em dissolvência da criança a contas com o seu sonambulismo agressivo, o seu pavor nocturnus e a sua parasomnia, para além de uma função fisiológica à narrativa — a mente de uma criança é uma terra desconhecida onde verdade e fantasia se neutralizam, mas a experiência do medo e do sofrimento são bem reais — tem também uma função ecológica: é uma espécie de principezinho que o alter-ego do autor, órfão da criança que ele mesmo foi, interpela no deserto desolado da sua vida adulta, para perceber melhor a lenta agonia de uma sociedade que cresceu demasiado à custa dos seus próprios erros. Por isso, a criança que sonha com o fim do mundo talvez tenha o poder taumatúrgico de o resgatar, ela que sobreviveu ao terror dos seus próprios pesadelos infantis (e aqui não pode deixar de vir à mente a criança a pedalar o triciclo do seu próprio medo no corredor do Overlook hotel no filme Shining). A cena da criança que se aninha à noite na cama, emulando a posição do corpo do primeiro-ministro italiano Aldo Moro, assassinado por um comando das Brigadas Vermelhas e abandonado na bagageira de um automóvel, que ela acabara de ver na televisão, é uma das imagens mais impressionantes e de maior força expressiva deste livro. Que Itália é esta, que abala o nosso imaginário coletivo, ao ponto de ser quase impossível reconhecer nela a imagologia tradicional do bel paese, da pizza e dos latins lovers, das relações solares e do erotismo sublimado, do pôr-do-sol em miradouros românticos e do crepúsculo entre as ruínas do Coliseu? Vem em nosso auxílio aquela anedota pós-moderna que circula na internet e que 17


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prólogo Nos primeiros anos do terceiro milénio, uma vasta área laboriosa da Itália setentrional foi contagiada por uma epidemia. Em Bergamo, pequena capital lombarda voltada a sul para a grande depressão da planície do Pó e dando a norte para o sopé dos Alpes Oróbicos, a rapidez de propagação foi tal que, no espaço de apenas 8 meses, do outono de 2007 ao final da primavera do ano seguinte, uma parte consistente da população foi dizimada. E nem mesmo a parte restante se pode dizer que se tenha salvado. Homens, mulheres, idosos e crianças, sobretudo crianças, dividiram-se em sujeitos infetados — cobertos de vistosas chagas da conclamada doença — e portadores sãos do vírus. Ninguém foi poupado. No arco de algumas estações — em menos tempo do que leva a última coleção a passar de moda —, a cidade pareceu perder primeiro a sua inviolabilidade, depois a sua incolumidade, para por fim perder-se inteiramente a si mesma na purga de qualquer outra segurança. Tratou-se de uma pestilência da alma e das mentes. Mas este facto nada tem de surpreendente. Vendo bem, o Mal é precisamente aquilo que há de mais imaterial, pois leva a cabo a sua guerra encarniçada contra qualquer ser concretamente vivo e, se não for repelido, destruirá a própria base da criação. Por mais estranho que possa parecer, muitas vezes a corrupção maior é também a mais espiritual, ao ponto de nela desaparecerem os vestígios de qualquer interesse tangível. Até mesmo o prazer. Em Bergamo, como noutros lugares, o bacilo proveio de fora. E nem isso constitui exceção. No caso que nos interessa, trouxeram-no duas educadoras de infância, Niva Beghetto e Maria Pellegrini. A primeira pessoa a 29


acusar os sintomas foi um sacerdote, dom Mariano Presti. Intelectual culto, docente de teologia sistemática no Seminário Episcopal da Cidade Alta, mas também homem de mediação junto dos grupos do Movimento carismático católico mais ativos na região e fundador de uma das primeiras comunidades italianas dedicadas à reabilitação de toxicodependentes, dom Mariano, em outubro de 2007, foi acusado por um ex-seminarista, de moléstias sexuais. A acusação, inicialmente rejeitada com indignação tanto nos ambientes eclesiásticos quanto nos ambientes laicos, começou a ganhar consistência quando a imprensa revelou que dom Mariano tinha sido escolhido como assistente espiritual por Nari Lamua, um padre natural da Costa do Marfim, internado, juntamente com outros 50 confrades, na casa de cura dos padres Venturini contígua ao Seminário — um centro de reabilitação para sacerdotes impedidos de regressar à sociedade mas que nenhuma diocese ou ordem religiosa estava disposta a acolher, porque perturbados psiquicamente, alcoolizados graves, toxicodependentes, doentes com sida, pacientes com depressões, com tendências suicidas ou com um passado de abusos sexuais. Nari Lamua fazia parte deste último grupo: era um padre pedófilo. E não era o único entre os que a Congregação de Jesus Sacerdote acolhera. Dom Mariano era o confessor de todos eles. Mal a coisa se tornou conhecida, também dois antigos toxicodependentes, que tinham ambos passado, embora em períodos diferentes, pela comunidade Nova Spes, outro dos centros de acolhimento patrocinados por dom Mariano, vieram a público acusar o seu antigo benfeitor. Mas o círculo da infâmia, ou da abjeção, cedo ultrapassou as paredes do grandioso edifício erigido 30


na colina de San Giovanni in Arena, e em seguida as próprias muralhas da cidade velha. Algumas semanas mais tarde, na Cidade Baixa, no bairro de San Leonardo, que se estende ao longo das encostas da colina, alguns milhares de metros abaixo do bastião que protege o aglomerado renascentista em correspondência da Porta San Giacomo, uma menina de 5 anos deixou de fazer chichi. Durante quatro longos dias a pequena não urinou nem defecou. Ao quinto dia, inquirida pela mãe, contou que a professora, com a ajuda de um homem, a levava para fora da escola, para uma grande casa onde indivíduos encapuçados lhe faziam «coisas feias». A casa ficava «no cimo da montanha» e o homem era «negro». Então, tudo descambou. No espaço de poucas horas veio a saber-se que as novas educadoras do jardim de infância Gianni Rodari, onde a menina andava, provinham de um instituto da área de Brescia onde, no ano anterior, tinha rebentado um escândalo por casos suspeitos de pedofilia; no espaço de poucos dias multiplicaram-se as crianças que denotavam sinais de intenso sofrimento psíquico; no arco de poucas semanas as famílias que acusaram as educadoras de cumplicidade com os padres pedófilos passaram de quatro para sete, depois para nove, depois para onze, até que ao fim de poucos meses, o bacilo aeróbico da suspeita ultrapassou as paredes do Seminário, as muralhas em torno de Bergamo Alta, o perímetro do jardim de infância, até envisgar toda a cidade. De repente, a vida inteira pareceu mergulhada na repugnância, como se um enorme sapo com o ventre mole apoiado nas colinas tivesse envolvido toda a cidade na sua baba urticante. Com a chegada da primavera de 2008, em Bergamo o contágio tinha atingido 31


proporções planetárias, e o risco de ser possuído pelo Mal tornara-se absoluto. Não havia outro remédio senão escolher entre transmiti-lo ou incubá-lo. A virulência do contágio e a inapelabilidade da ruína foram tais que os cronistas se sentiram autorizados a saquear os textos sagrados, não tendo escrúpulos em apropriarem-se de motivos e imagens das antigas profecias. Foi o que aconteceu com os principais diários da cidade — quer o católico, L’Eco di Bergamo, de propriedade da cúria, quer o moderadamente progressista, Giornale di Bergamo —, como também com a imprensa nacional e, sobretudo, com a free press a qual, juntamente com a internet e a televisão, foi e doravante será sempre o verdadeiro órgão de informação do desastre. Para descrever o que estava a acontecer, recorreu-se nomeadamente ao Apocalipse de São João. E efetivamente, se excluirmos um ou outro exagero, não se pode negar que toda a zona situada no sopé das montanhas na planície do Pó, uma das áreas mais industrializadas e com maior índice populacional do planeta, apresentava uma situação algo semelhante ao estado em que se encontra a terra na abertura dos sete sigilos, de acordo com a visão do profeta: o sol negro como um saco de crina, um terço da terra ardida, um terço das árvores queimadas, um terço das águas transformadas em absinto e muitos homens mortos devido àquelas águas que se tornaram amargas. Porém, apesar deste vasto alarme, o fim do mundo não aconteceu. E, se quisermos ser sinceros, teremos que admitir que foi quase uma desilusão não ter acontecido. Sobretudo porque, apesar de todas as invocações a Deus — à sua misericórdia, à sua justiça, ao seu castigo, consoante a índole dos postulantes —, Deus não foi chamado para o caso. Não o Deus da metafísica. 32


Lavou a mãos, disse alguém. Ou talvez seja mais oportuno dizer que também Ele, tal como o fim do mundo, não veio. Simplesmente isto: não veio. O seu lugar à mesa ficou vazio, como a cadeira que a atávica cultura camponesa, sobre cujas ruínas nasceu também a atual cidade de Bergamo, reservava para as almas dos defuntos à mesa dos dias de festa. O prato dos mortos. Quero dizer que, nesses meses de angústia, Deus foi efetivamente invocado — com ardor, com insistência, talvez até com verdadeira fé, mas Ele não respondeu. Permaneceu silencioso. E, então, perante aquele Deus que não dava sinal de si, tão difícil de pressentir e até já de imaginar, tão avaro nos seus mutismos e na sua prolongada ausência, o que aconteceu foi, nem mais nem menos, as pessoas escolherem o seu oposto, o seu Adversário. As pessoas invocaram, esperaram em vão, depois renunciaram. Falhada a invocação, perdidas no silêncio de Deus, as pessoas escolheram Satanás. Sempre o primeiro a aparecer, pronto a todos os comércios, a todas as metamorfoses, sempre disponível para assumir as feições das mais variadas pessoas — ou melhor, de qualquer pessoa. As pessoas escolheram Satanás, poderoso porque pronto para o uso mal o evocassem. Escolheram Satanás, tão à medida do humano. Muitas vezes, não podendo obter o Bem, tão fugidio, tão altivo, tão raro, contentamo-nos com o Mal, com a sua concreta corporeidade mergulhada na materialidade da vida quotidiana. «É sempre melhor que nada», dizemos ajoelhados diante da televisão. Depois, à noite, já na cama, choramingando pela enésima vileza que cometemos sem o menor pejo, «Há que viver», repetimos. Embora sejamos os primeiros a não ver necessidade nisso. 33


E também em Bergamo, as pessoas se abandonaram à volúpia de sacudir a água do capote e entregaram-se completamente à grande superstição do nosso tempo: a crença na maior fertilidade do Mal, o lugar comum segundo o qual ele pega em todo o lado com facilidade e abundância, como uma erva daninha. De resto, se se der tempo para crescer, qualquer planta é, no fundo, uma erva daninha. Ou não? O livro que se segue pretende ser a narração dos factos que aconteceram em Bergamo — factos nos quais quem escreve se viu envolvido na primeira pessoa. Porém, como ninguém poderá afirmar, com toda a honestidade, que se consegue contentar com os meros factos, este livro pretende também ser a narração de uma invocação, de um silêncio, de uma renúncia.

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— Corram. Meu pai está a matar a minha mãe. A criança loura tem o olhar alucinado. Dois grandes olhos azuis que parecem fitar o vazio mas que olham de lado. A mãe tira-lhe o telefone das mãos e tranquiliza a polícia do outro lado da linha: não é verdade, não aconteceu nada de terrível no coração da noite, o filho é sonâmbulo. A criança sonhou tudo. A polícia vem, em todo o caso, verificar se está tudo bem. — Ponha-se no nosso lugar, minha senhora, recebemos o telefonema. Quando chegam, tudo parece tranquilo. Nenhum vestígio de violência. A mãe está bem. O pai está na Índia, em viagem de negócios. A criança está de novo deitada na sua cama. Voltou a gritar algumas vezes de terror, durante o sono, depois sossegou.

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(…)


fim de ano Descemos ao longo do piso inclinado de um túnel estreito e escuro. Os poucos focos de luz difundem um ténue clarão ensanguentado, as únicas manchas de cor ressaltam das incrustações ferrugentas sedimentadas pelo gotejar perene dos canos cravados na rocha. Seguimos o fluxo de uma multidão silenciosa e atónita, nua como no primeiro dia da Criação. Ou, talvez, como no último. Um pequeno bando de lémures que enxameia as cavidades da terra. Eu e Martina seguimos a turba pelas grutas cavadas dentro de placas de quarzito cinzento esverdeado, onde a pedra aguçada desenha perfeitos ângulos retos. Inicialmente somos flagelados por duches titânicos que se abatem a 3 metros de altura sobre as nossas cabeças, depois descemos por um cubículo impregnado de intensos aromas sulfúreos. O ar é húmido, a água tem a temperatura do corpo, a gruta está saturada de ecos guturais da queda de água. Flutuamos, só com a cabeça de fora, como no cofre subterrâneo de um banco alagado por uma inundação que tivesse submergido o planeta. À nossa volta, também remetidas ao silêncio, as cabeças de outros banhistas afloram à linha de água, iluminadas a partir de baixo por uma luz lívida. Têm as órbitas cavadas e os crânios glabros das almas do Purgatório. Viro-me. Martina desapareceu. Dissolveu-se no meio dos odores intensos de especiarias. Sozinho, sigo a turba que continua a descer para um segundo tanque. O piso inclina-se. Caio no abismo. Quando volto à tona, estou ao ar livre. O corpo ainda imerso em água a ferver, a cabeça ao gelo de uma noite ártica. Mas não sinto frio. Não sinto frio nem calor. Estou no limbo fisiológico de uma tepidez anestética. 145


A oscilação térmica entre a água a ferver e o ar gélido faz levitar bancos de brumas vaporosas. Entre os fumos, vislumbro uma legião de espetros. Como eu, seguem com os olhos as volutas de vapor que se erguem em direção ao céu. Debaixo do meu queixo, a superfície da água ferve. Lá em cima, muito ao alto, brilha um manto de estrelas. Dou com Martina. Vem ao meu encontro arrastando-se ao longo da borda do tanque. Debaixo da linha de água, o contacto do seu corpo quente provoca-me uma tímida ereção. A angústia abandona-me. Não estou a descer entre as almas danadas dos rios infernais. Ainda estou vivo. Estou num centro de bem estar. Estou no tanque externo das termas de Vals, na Suíça, a fazer o banho noturno reservado aos clientes do Hotel Terme. Nesta aldeia do fim do mundo, perdida no fundo de um vale estreito do cantão dos Grigioni, o arquiteto Paul Zumthor fez um magnífico estabelecimento termal que parece saído de um dos piores pesadelos de George Orwell. Eu e Martina tivemos a bizarra ideia de passar aqui o fim de ano, talvez para reavivar a nossa relação ou talvez, mais verosimilmente, para encontrar um ambiente adequado aos seus langores terminais. Desde que chegámos tenho a sensação de que, mais do que nos proporcionar um novo início, esta estadia vai precipitar-nos numa irremediável agonia. Tenho a tentação de confessá-lo a Martina, mas coíbo-me de o fazer. Sei que ando stressado, provavelmente à beira de uma depressão. Ando obcecado com a história dos alegados abusos sexuais sobre crianças. Recuso-me a tomar parte ou a escrever sobre isso, mas leio tudo o que aparece na imprensa nacional e local. E parece-me que, agora, na imprensa não se fala de outra coisa. Vivo há semanas na espiral de um universo de antimatéria 146


cujo centro vazio está situado na via Greppi, no ponto exato em que se situa o jardim de infância Gianni Rodari. O fim do ano nas termas devia fazer-me relaxar, descongestionar-me, purgar-me. Mas não é isso que está a acontecer. No estado de espírito em que me encontro, o banho noturno parece revelar-me o sentido profundo dos centros de bem estar: criar um limbo entre a vida e a morte, uma terra anfíbia entre o espasmo do organismo animado e o deslizar em direção ao inorgânico, uma zona limiar entre os males de viver e o êxtase irremediável do defunto. Agora parece-me claro. A paixão pelos centros de bem estar não é sintoma de uma vitalidade transbordante e inexaurível, não a enésima palpitação libidinal, mas o seu contrapeso, o produto de uma força igual e contrária, o aliviar de uma nunca aplacada pulsão de morte. O relaxamento, a miragem proporcionada por estes sanatórios de luxo, não favorece a aspiração a uma existência serena, mas a nostalgia de um estado prénatal. Promete aos vivos o fim de todas as tensões vitais. Creio ter a prova disso no dia seguinte, ao passar o dia inteiro no centro de spa do hotel. Enquanto aguardo para me submeter aos tratamentos que o programa WellBeing and Relaxation prevê, observo uma humanidade reduzida ao estado larval. Homens ainda novos que, imersos em sessões de massagem Lomi-Lomi com a duração de 75 minutos, se estendem em leitos anatómicos com os movimentos derreados de alguém que tem 80 anos. Passam dias inteiros a dormitar numa condição simultaneamente neonatal e póscoital. Da criança têm o abandono total aos cuidados de alguém, do adulto depois do orgasmo a tristeza que, como sabia Ovídio, sempre se apodera do animal que gozou plenamente. 147


Parecem velhotes pueris. Parecem fetos capazes de ter uma ereção. Passadas 3 horas, depois de uma linfodrenagem completa e de uma body exfoliation, estou como eles. Uma enfermeira-massagista oferece-me uma escudela de chá japonês. Molho os lábios, depois estendo-me também eu a observar a crua paisagem alpina a partir de uma chaise longue sapientemente colocada diante de uma parede de vidro que dá para os cumes cobertos de neve. Foi uma óptima ideia dos habitantes de Vals (as termas e o hotel são propriedade do município local) e do arquiteto Paul Zumthor. Acho que há uma requintada maestria sádica neste dispositivo voyeur a partir de um banho termal. O mundo doloroso fica lá fora, lá fora as rochas e o gelo dos cumes alpinos, lá fora o cansaço, o sofrimento, a vida que se conhece no embate contra as coisas do mundo. Lá fora fica até um condomínio de sete andares construído nos tempos da Guerra Fria como refúgio de uma cooperativa de alemães ocidentais, quando depois da eleição do chanceler social-democrata Willy Brandt, recearam ter de fugir devido ao advento do comunismo. Lá fora ficam sobretudo as crianças do jardim de infância Rodari que gritam durante o sono. Mas tudo isto fica, justamente, lá fora, a uma distância de segurança, enquanto nós desfrutamos, confortavelmente, o espetáculo das suas convulsões, com uma geisha de bata branca que nos massaja a planta dos pés. É o que há de sublime num centro de bem estar. Não é a diversão, não é o hedonismo. É o cansaço de viver relembrado na extrema prostração de uma velhice antecipada. Confirma-o a diretora do hotel, a senhora Zumthor, quando me conta que, tendo agora uma clientela cada vez mais jovem, tinham tentado «introduzir um pouco 148


de música e dança à noite». Mas os jovens casais, «maçados» depois de um dia inteiro de tratamentos regenerantes, iam fazer nana às 10. O torpor, o hebetismo como aspiração última. Já não se pede para ter prazer. Basta não sofrer. Nem sequer no último dia do ano é previsto um momento de euforia. Após horas de banhos termais, após um jantar naturalista, não há outro remédio senão ir dormir. De costume, alerta a senhora Zumthor, a maior parte dos clientes, mesmo os mais novos, retira-se para o quarto, sem sequer aguardar a meia-noite. E não para se dedicar às delícias do sexo, suponho. Eu e Martina, desde que chegámos, ainda não fizemos amor. Depois de uma tímida tentativa na primeira noite, parámos de fingir que sentíamos a sua falta. Parecemos desprovidos de qualquer desejo, e mesmo de qualquer impulso. Na última noite, enquanto jantamos no restaurante do hotel premiado com uma estrela Michelin, observo Martina sorver o seu sumo de chicória e concluo que o triunfo dos centros de bem estar sela a derrota de todas as utopias que miravam criar um homem novo, regenerado, reintegrado. Aqui, o ideal da regeneração limita-se a pensar o homem como um recetáculo de escórias da toxidade metropolitana que, na melhor das hipóteses, de tanto em tanto pode ser depurado. Na esfera dos centros de bem estar, o bem estar já não o objetivo para o homem na sociedade mas para o homem de férias, já não o horizonte do futuro mas o de um fim de semana. Aqui a utopia empalidece e transforma-se em distopia com a moleza viscosa de uma argila de beleza. — Chega, para com isso! — diz Martina, que deve ter intuído o andamento dos meus pensamentos. — 149


Relaxa. Não penses mais naquelas crianças. Esvazia a tua mente. Olho à volta à procura de um tema de conversa. O olhar detém-se no título de um jornal suíço que um cliente lê na mesa do lado. Qualquer homem que comece hoje uma história de amor sabe que a sua amada, quase certamente, o trairá. Ou, pior ainda, que será ele a traí-la. Na Suíça um número crescente, e já muito elevado, de pais jovens, mesmo na ausência de uma suspeita concreta de infidelidade, pede por norma a prova de paternidade através do teste de adn do recém-nascido. Muitas clínicas privadas estão a apetrechar-se para fornecer regularmente um serviço que, normalizando uma situação típica do drama do ciúme, transforma a vida normal do casal numa omnívora psicose do cerco. A Suíça, justamente por ser uma nação construída a partir da obsessão da segurança, está às portas da insegurança mundial. Já tinha lido aquele artigo durante a tarde, apesar do meu alemão aproximativo. Folheava o jornal à procura de alguma notícia sobre o caso de Bergamo. Ilustro o conteúdo do artigo a Martina e comento-o com ela. De todas as precariedades que minam, a autoconfiança do homem contemporâneo, a precariedade sentimental, digo-lhe, é a mais invalidante e por isso a mais subvalorizada. Já D. H. Lawrence afirmava que a nossa é uma época trágica e que, por isso, recusamo-nos a levá-la a sério. A coloração trágica do tempo em que vivemos — continuo — nasce justamente do desa150


parecimento do amor absoluto, «o último dos céus a abater-se sobre nós». Estamos a pagar hoje não as consequências do amor, mas da sua morte social. A sublime, alada ideia romântica do amor pesa sobre nós como uma condenação para toda a vida. Enquanto prossigo nesta linha de raciocínio, com a esperança de reavivar a conversa, noto uma expressão de desalento no rosto de Martina. Não suporto isso. Cultivo o meu desalento mas não aguento o seu. Faria qualquer coisa para expulsá-lo. Esforço-me por sorrir. — Estou grávida. Martina pousou o garfo, limpou a boca com o guardanapo de tecido da Flandres, inspirou profundamente e disse-o: — Estou grávida. — Não pode ser. Respondi-lhe por inércia, sem sequer me perguntar se o que tinha dito era uma provocação. Sou direto, não sei usar meios termos. — Estou a falar a sério, estou grávida — repete, esboçando um sorriso no qual assoma uma pequena esperança de final feliz, um vulgar happy end. — Não é meu de certeza. Digo-o contra todas as evidências e contra todo o bom senso, mas digo-o. Sou dominado pela certeza da minha infecundidade e da de toda a minha geração. Agora ela está petrificada. Abana a cabeça. Olha à volta. Puxa a mesa para si. Só falta esfregar os olhos, como se estivesse a acordar de um pesadelo. Depois, porém, volta a tentar. Faz-me uma carícia, chama-me pelo nome e diz: — Estou grávida. Espero um filho teu. Fico horrorizado. A ideia da natalidade soa-me sacrílega. — Faz um aborto. 151


(…)


maio O delegado do Ministério Público convocou-me para comparecer no comando da polícia no dia 2 de maio, às três e meia da tarde. Queria anunciar-me que receberia um aviso de abertura de um inquérito policial a notificar-me que seria inquirido. Porém, antes de mais, o doutor Gatti fazia questão de assegurar-me de forma informal que, na realidade, não tinham qualquer suspeita em relação à minha pessoa. Tratava-se simplesmente de um «ato devido» na sequência do reconhecimento feito por Margherita Comi. Ele e os seus colaboradores estavam convencidos de que a pequena «tinha feito confusão». Sabiam que, com a intenção de ajudar a mãe, eu tinha frequentado a casa dos Comi no período destabilizador da revelação dos supostos abusos, pelo que consideravam que a criança deveria ter sobreposto a imagem dos seus agressores à de quem vinha em seu socorro. Eu não tinha nenhum motivo para ficar alarmado. Aquelas garantias, infelizmente, não me tranquilizaram em nada. Recordo que, à saída do comando da polícia, tinha a camisa ensopada em suor. Na realidade, naqueles dias a Itália setentrional tinha sido investida por uma onda lamacenta de calor nocivo, mefítico, de uma canícula que não provinha de África mas sim daquela África lacustre e asfixiada em que se tinha transformado a extensa planície do rio Pó, quando o ar se tornava húmido e pesado. Há já alguns anos que isso acontecia, em meados de maio, um calor fora de estação anunciava um novo verão tórrido. Nas semanas seguintes, as variações climatéricas na terra tornaram-se para mim numa autêntica obsessão. 275


Mas não era o único. Na noite de sábado para domingo do terceiro fim de semana de maio, juntamente com 2 biliões de pessoas — da Austrália à Antártida, da China aos eua — assisti em direto pela televisão a Live Earth, o concerto global para salvar o planeta. Depois do choque provocado por aquilo que Al Gore tinha definido «o maior acontecimento que nunca tinha acontecido», nenhum de nós poderia continuar a ignorar o risco de assistir ao acontecimento mais catastrófico jamais imaginado: o fim do mundo. Como observou um editorialista do Corriere della Sera, a partir da meia-noite do dia 3 de maio de 2008, a hora em que tinha encerrado a maratona canora em Joanesburgo, éramos de facto «todos Édipos diante da Esfinge». Como no antigo mito, o monstro ungulado fazia-nos uma pergunta sobre a natureza do homem: somos responsáveis e clarividentes ou destrutivos e míopes? Segundo a resposta que daríamos, seríamos devorados ou a cidade salvar-se-ia. Devorado, porém, eu já tinha sido. No estado de espírito em que me encontrava, a consciência das alterações climatéricas, quotidianamente agudizada pelas previsões apocalíticas de uma meteorologia negra, estragava-me o prazer mais elementar do homem: o prazer de viver, a alegria essencial de estar no mundo. Sentia a consciência ecológica privar-me da beata inconsciência de quem durante milénios tinha podido viver na terra sem ter de se preocupar com as condições climatéricas da sua existência. Ao tomar conhecimento pelos jornais de que estávamos a emitir na atmosfera mais anidrido carbónico do que o planeta conseguia suportar, sentia dificuldade em respirar. Durante o dia, passava horas a contar cada vez que o peito se enchia de ar, de noite acordava no meio de uma crise de sufocamento. 276


Visto que o futuro se tinha tornado num lugar nocivo, virava-me para o passado. Olhava para trás, e parecia-me que a máxima liberdade de que tinham desfrutado os homens que viveram até ali na história, tinha sido a de confiar na licença inconsciente de poder respirar na atmosfera. Um privilégio de ingenuidade definitivamente perdido. De todas as certezas perdidas de que tinha desfrutado a velha humanidade, aquela que confiava serenamente na respirabilidade do ar, afigurava-se-me de repente como a mais preciosa. Depois, porém, à força de olhar para trás, os olhos aportaram ao meu passado. Cruzaram o olhar daquela criança que tantas vezes tinha sonhado com o fim do mundo. Pelos vistos, ela é que tinha razão: acabaria com o fogo. Subjugado por estes pensamentos, quase já não saía de casa. Deixei o apartamento de Bergamo para voltar para Milão. Os cursos na universidade tinham terminado, e antes do começo dos exames teria muito tempo à minha disposição para procurar perceber o que me estava a acontecer. Desperdiçava-o, porém, em infrutuosas tentativas de entrar em contacto com Martina e em intermináveis navegações na internet, à procura de uma luz que pudesse clarificar o sentido do meu caso. Mas, quanto mais estrebuchava, mais me enredava. Digitava nos motores de pesquisa palavras-chave como «violência menores abusos» e era avassalado com notícias de crónica negra já fora de prazo e bem pouco pertinentes: Revigliano, 14.03.07 Três alunos de um instituto técnico para o turismo seviciam um seu colega com sindroma de Down diante de uma câmara de filmar, para depois difundirem no google o vídeo do seu delito. 277


Mortara, 11.02.07 Aluna de 16 anos esbofeteia o professor que não lhe dera autorização para sair. Não satisfeita, entra numa luta corpo a corpo com o docente que a proibira de deixar a escola para se juntar, como era costume, às pândegas dos foliões da sua cidade. Roma, 11.11.07 Bando de hooligans põe durante horas a ferro e fogo o centro da capital e toma de assalto quartéis da polícia e carabineiros. Do quartel de ponte Milvio, os facínoras levaram a bandeira do regimento. A maior parte dos detidos são menores de idade. Modena, 15.11.07 A cidade está chocada. O diretor de um instituto de arte denunciou a difusão na internet de um vídeo que mostra uma aluna atropelada e morta por um autocarro. Filmada pelos colegas com os telemóveis, as imagens aterradoras do atropelamento foram parar à rede acompanhadas de comentários e piadas. Logo após a denúncia feita à unidade de telecomunicações da polícia, as imagens incriminadas foram removidas dos sites. Muitas das testemunhas que as viram antes da remoção, afirmam que as imagens da pobre vítima decapitada pelo autocarro eram acompanhadas por comentários do tipo «Vai lá ver como ela ficou com a cabeça separada do pescoço». Comentários dos seus colegas de turma. Eram indubitavelmente episódios avulsos, atrocidades dispersas no tempo e no espaço que nada tinham que ver com o meu envolvimento na história da «escola dos horrores». Todavia, parecia-me que aquelas notícias 278


estavam ligadas umas às outras, e todas elas, por sua vez, à minha história, por enredos imperscrutáveis, partituras subtis de um concerto inaudito. Tinha-me deparado com elas por engano, ao digitar no motor de pesquisa um espetro semântico demasiado amplo para poder significar o que quer que fosse. Contudo, tinha a impressão de que ao longo daquele trilho todo e qualquer indício conduziria infalivelmente ao meu caso. Recordo que, numa das tantas noites insones devido ao receio de adormecer e ser visitado pelos meus pesadelos, em vez de procurar informações sobre pedofilia digitei por engano no google «pedofobia». Vim assim a saber que o último relatório do ispes15 tinha cunhado aquele neologismo, depois de as mais recentes pesquisas sobre a condição dos jovens terem revelado uma situação alarmante: nas casas dos italianos, os filhos punham e dispunham, os adolescentes e mesmo as crianças tornavam-se cada vez mais agressivas perante pais receosos e remissivos. Os investigadores alertavam para o perigo de subversão da família, da escola e de todas as outras instituições, e com elas os fundamentos da vivência civilizada, por parte da horda estrangeira dos nossos próprios filhos. Esta minha visão febricitante encontrou conforto nas palavras do papa: «Vemos sinais evidentes do desmoronamento dos alicerces da nossa sociedade: sinais de alienação, raiva, contraposição, em muitos dos nossos contemporâneos; aumento da violência, enfraquecimento do senso moral, perda de qualidade nas relações sociais e crescente esquecimento de Deus». Tinha-o declarado a 17 de abril, Bento xvi, no novíssimo Nationals 15  ISPES (ou EURISPES) instituto de estudos políticos, económicos e sociais. Publica todos os anos um relatório sobre o estado de Itália. (N. do T.)

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agradecimentos Como muitas vezes acontece, este livro deve muito a outros livros. Sinto-me porém na obrigação de reconhecer publicamente a minha dívida em relação a Barbablù, a biografia romanceada de Gilles de Rais escrita em 1975 por Ernesto Ferrero, e em relação a Cattolicesimo magico, a investigação etnográfica sobre o movimento carismático católico levada a cabo por Marco Marzano (Bompiani, 2009). Ao primeiro devo uma intuição para mim iluminante sobre o desconforto metafísico (que transcrevi quase literalmente); ao segundo devo quase todo o capítulo dedicado à descrição do ritual do batismo no Espírito. Visto que, como é óbvio, me servi das pesquisas de campo efetuadas por Marzano vergando-as aos meus objetivos romanescos, remeto para o seu livro todos os leitores que quiserem uma exposição científica sobre o tema. De resto, para além do rigor da ciência social, encontrarão nele uma narração não menos apaixonante que um romance. Gostaria, finalmente, de agradecer as pessoas que, fora de qualquer obrigação profissional, acompanharam a génese deste livro lendo, aconselhando, emendando: Alessandro Bertante, Paolo Colonnello, Daniele Giglioli, Laura Paolucci, Lucia Tozzi.

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Este livro foi composto em carateres New Baskerville e impresso na Papelmunde – SMG, Lda, em papel Coral Book Ivory 80 g no ano de 2012.




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