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CAPÍTULO I LUZ Ljós

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PRÓLOGO

PRÓLOGO

Reykjavík, Islândia, agosto de 2018 Hospital Universitário Nacional de Fossvogur

Os passos do emissário, cautelosos e ansiosos, ecoavam sobre o piso do corredor do setor de oncologia do Hospital Universitário Nacional de Fossvogur, situado na região sudeste de Reykjavík, como um marcador do tempo. Aquela escuridão, vinda da noite e do silêncio do andar da oncologia, já que os horários de visita haviam se esvaído minutos atrás, tingia seus olhos de um amarelo cintilante; lembravam os de um réptil em posição de alerta. Normalmente, quando o sol do poente começava a se esconder por detrás de Kirkjufell, a montanha mais famosa e visitada da Islândia, o emissário preferia se recolher. Em situações como essa, que envolviam missões de urgência, ele sabia que tinha de manter as pálpebras praticamente cerradas para passar despercebido.

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Um vento gélido atingiu seu rosto como uma bofetada. O emissário deixou escapar um leve sorriso; detestava o calor úmido do fim do verão. Ergueu a cabeça e notou a janela do fundo entreaberta, destacada em meio a uma nuvem de sombras.

Aproveitou para paralisar os movimentos. Respirou e armazenou um pouco de oxigênio nos pulmões; afinal, sabia exatamente o que viria a seguir. Levou a mão direita ao bolso do jaleco branco, colocado sobre um terno azul-marinho como parte de seu disfarce. Não era um médico especialista em câncer infantil, tampouco um enfermeiro. Estava ali por outra razão. Na verdade, por conta de uma menina. Apanhou um envelope entre os dedos longos e finos – eles não tinham unhas, pareciam canudos de carne e osso –, e retirou de seu interior um pedaço de papel dobrado e amarrotado. Abriu-o com delicadeza e estudou as poucas palavras escritas em letras garrafais:

DALLA, 9 ANOS QUARTO 126

O emissário permaneceu com o olhar perdido naquela mensagem por mais alguns segundos, os pensamentos inquietos e entrecortados. Sabia que sua missão era de extrema importância e que não poderia falhar. Pensar nas consequências de um possível erro chegava a corroer sua mente. Os batentes da janela se chocaram num grito débil e transportaram o emissário de volta ao refúgio de sua tarefa. Ele dobrou o pedaço de papel e o guardou novamente no envelope e então no bolso. Ergueu a cabeça e fitou a porta que se agigantava ao seu lado. – Cento e vinte e seis – disse, num sussurro pausado. Retomou a caminhada, torcendo para que não houvesse mais ninguém naquele imenso corredor, até que seu destino lhe convidasse a entrar. Girou o pescoço em todas as direções, estudando com enorme atenção o local, e descobriu-se sozinho. Era seu dia de sorte. E ele estava muito próximo, podia até sentir o perfume azedo e mórbido vindo do leito da menina. Avistou adiante o brilho de uma maçaneta prateada abaixo do número 126, e apertou a marcha. Abriu a porta com suavidade, e um ambiente claro e aconchegante se precipitou à frente de seus olhos. O emissário permitiu que seus lábios se curvassem num largo sorriso ao constatar o quanto aquele cômodo em nada se parecia com um quarto de hospital, exceto pelos aparelhos acomodados atrás da cama, que mantinham a vida de Dalla em curso. As paredes eram roxas e alguns desenhos de pássaros se espalhavam pelas portas de um armário alaranjado, que tomava por completo um dos lados do cômodo. Havia um triciclo com o rosto de um cavalo perto de uma janela aberta, que parecia proteger a menina de qualquer mal que pudesse tentar atacá-la pelo lado de fora. Um abajur aceso em cima de uma mesinha repleta de papéis soltos e lápis de cor de diversos tamanhos completava a decoração.

O emissário se aproximou da cama. Estreitou os olhos ao observar os traços frágeis e fundos na face da menina, a tez pálida, os lábios rachados e secos, a respiração curta, cansada de lutar pela sobrevivência. Imaginou ela morando ali havia anos, trocando o conforto de casa e as brincadeiras com os amigos por uma enxurrada de exames e tratamentos sem trégua. Ele retirou um pequeno galho de trigo do bolso de trás da calça e o acomodou entre os cabelos ruivos de Dalla.

– Para lhe dar sorte – sussurrou, a voz adocicada. – É do seu verdadeiro lar.

Em seguida, com as mãos trêmulas e aflitas, acariciou a testa infantil, úmida de tanta dor e agonia. Mas aquele sofrimento estava por terminar, ao menos por um longo período. Essa verdade confortava o emissário e o enchia de coragem para completar sua missão.

No bolso interno do jaleco havia uma seringa. Ela era um pouco diferente das encontradas nos hospitais e centros médicos do mundo, pois não se via uma agulha em sua ponta. O emissário agarrou a injeção com firmeza e testou o líquido brilhante e avermelhado que ocupava o cilindro do instrumento com um chacoalhar de dedos. Estava tudo como planejado. Ele acomodou a seringa sobre a pele translúcida do antebraço da menina e despejou o conteúdo, uma gota por vez, apertando o êmbolo com zelo e paciência. Uma pequena mancha escura se formou no local; lembrava uma cicatriz, um arranhão profundo ou uma marca de nascença. A menina arregalou as pálpebras, no mesmo instante em que uma borboleta lilás penetrou o cômodo pela fresta da janela entreaberta. Ela bateu asas até repousar sobre o ombro do emissário. Por alguns segundos, ele inclinou a visão para o lado de fora do quarto. A lua cheia parecia uma moeda de prata solitária pendurada em um céu negro e sem estrelas. O vento agora era morno, a temperatura havia subido um pouco mais.

– Quem é você? – perguntou Dalla, fitando o rosto do emissário com os olhos arregalados, a testa franzida pela dúvida.

Um amigo.

Ele caiu num pequeno silêncio, logo após a resposta.

– Está se sentindo melhor? – inquiriu, voltando as atenções à menina.

–Acho que sim. As dores sumiram – respondeu ela simplesmente, sem se preocupar muito em quem era de fato aquele homem, pois estava acostumada com novos enfermeiros entrando e saindo com frequência de sua vida.

–Que bom. Foi exatamente para isso que eu vim.

–Espere! – chamou Dalla, apontando na direção do ombro do emissário. – Eu sonhei com esta borboleta.

–A partir de agora, ela será sua companheira.

O emissário apanhou o inseto com delicadeza e o colocou sobre a barriga da menina.

–Jura?

–Aham – respondeu ele, os olhos penetrantes. – Essa borboleta é como um guia ou uma espécie de condutor. Quando não souber o que fazer, ela apresentará a você o caminho.

–Legal! – comemorou ela, um sorriso estampado na face. – Eu me chamo Dalla.

–Eu sei.

–Qual é o seu nome?

–Eu… – titubeou ele, para escolher entre a verdade e uma desculpa esfarrapada que fizesse algum sentido. – Não tenho – disse num sussurro.

–Por quê?

–Meus pais ainda não me deram.

–Estranho… Vou chamar você de Phantom, igual ao meu brinquedo preferido. – A menina apontou na direção do triciclo. – Eu o batizei com o nome do cavalo do Zorro, o filme favorito do meu pai.

O emissário sorriu, com o semblante relaxado.

–Obrigado. Eu preciso ir agora.

–Para onde?

–Qualquer dia eu lhe conto.

A menina assentiu, enquanto mexia e observava as pontas dos dedos das mãos, como se algo novo estivesse acontecendo com eles.

–Pensei que eu estivesse morrendo – balbuciou Dalla. – Pelo menos foi o que eu consegui escutar dos médicos numa conversa que tiveram ontem com meus pais. Eles não paravam de chorar e eu fingi que estava dormindo.

–Não se preocupe. – O emissário esboçou um meio sorriso. – As coisas mudaram. Você deixará este hospital muito em breve.

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