Constituição, Estatudo da Cidade e a Participação Popular nos Conselhos Gestores das Cidades

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CONSTITUIÇÃO, ESTATUTO DA CIDADE E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS CONSELHOS GESTORES DAS CIDADES Oliver Alexandre Reinis1

RESUMO: O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, determina que a gestão democrática da cidade, bem como todo e qualquer organismo gestor das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas deverão contar com a participação da população. Assim, todo e qualquer ato que cerceie esse direito, editado pelo Poder Executivo Municipal, é ilegal e inconstitucional, por afronta ao Estatuto da Cidade, ao Princípio Constitucional da Legalidade (art. 37) e ao art. 1º, parágrafo único, ambos da Constituição Federal de 1988, enquadrandose nisso a criação de Conselhos Deliberativos Gestores das cidades, tenham a denominação que for, uma vez que os mesmos se subsumem ao disposto no art. 45, da Lei nº 10.257/01.

I - INTRODUÇÃO Tive a oportunidade de participar da Conferência da Cidade, ocorrida em um município do litoral norte de São Paulo. Durante a apresentação de propostas a serem implementadas na referida cidade, e levadas para as Conferências Estadual e Nacional, um dos grupos de trabalho propôs que fossem garantidas cadeiras no Conselho Gestor da cidade à "sociedade civil desorganizada" (como definido por ele), que nada mais é do que cidadãos, moradores da cidade, que não sejam nem funcionários públicos da municipalidade, nem representantes ou integrantes de Associações representativas da sociedade civil de qualquer espécie, ou seja, a chamada sociedade civil organizada. Referida proposta levou a discussões inflamadas, sendo que tanto os representantes da municipalidade local, quanto os representantes da sociedade civil organizada se colocaram contra a proposta. Demonstraram com isso clara intenção de concentração de poder nas mãos destas entidades, em detrimento de uma maior participação realmente popular na gestão da cidade - melhor dizendo, em detrimento da democracia participativa. Na ocasião, me manifestei sobre o tema, informando que esse posicionamento tomado por eles contrariava a Constituição e a lei - manifestação essa que foi apoiada pelo Vicepresidente da OAB local, que possui o mesmo entendimento - mas fomos rechaçados na 1

Advogado especializado em Direito Tributário, pós-graduando em Direito Administrativo pela Universidade Gama Filho - UGF, LLF em Direito de Negócios pela FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas, membro da APET - Associação Paulista de Estudos Tributários e ABRAT - Associação Brasileira da Advocacia Tributária.


votação final, que afastou a proposta. O posicionamento assumido pelos participantes da Conferência, pelo que pude pesquisar nas semanas que seguiram, é amplamente assumido pelos municípios, ao menos no Estado de São Paulo, apesar de estar viciado em sua origem. Isso me levou a escrever o presente artigo. 1. A Constituição Federal de 1988 e a Democracia Participativa Para analisarmos melhor o tema, devemos partir da Constituição Federal, que já em seu art. 1º, parágrafo único, assevera que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Nas palavras do Prof. Giovani Corralo, “mais do que afirmar o sistema representativo, a Constituição rumou para a efetivação dos instrumentos participativos e de controle da população”2 , e continua o Mestre: “analisando a evolução do Estado moderno, num primeiro momento caracteriza-se o Estado liberal e num segundo momento o Estado social, chega-se ao terceiro momento, pautado pelo Estado Democrático de Direito (...). Trata-se de uma resignificação dos direitos de participação política, ampliando-se consideravelmente os institutos clássicos da democracia semidireta. Mantém-se o modelo de representação, entretanto, abrem-se novos espaços de participação e de controle, muitos vinculantes aos agentes públicos”3. No mesmo sentido se coloca o Prof. Paulo Bonavides, para quem “um terceiro momento, todavia, já se vislumbra, com a formação de uma teoria constitucional que nos aparta dos modelos representativos clássicos. Pertence à democracia participativa e faz do cidadãopovo a medula da legitimidade de todo o sistema. Acaba-se então a menoridade democrática do cidadão - meio povo, meio súdito”4 . Ressalte-se que a Constituição Federal, em várias passagens, reafirma o propósito de garantir à população a participação direta na tomada de decisões, conforme podemos verificar de seus arts. 10, 14, 29, 37, 187, 194, 198, 204, 205, 216, 225, 227, entre outros. Nesse sentido, com a promulgação da Constituição de 1988, os instrumentos da democracia semidireta que ela apresenta, aparecem como importantes ferramentas de participação e decisão da população no processo político. Sendo certo que a “participação popular na Administração é, desse modo, princípio de organização, pois implica na estruturação de processos de tomada de decisão pela Administração Pública ou de divisão de tarefas entre a administração e os administrados, de modo a convocar estes últimos à execução direta de determinadas funções administrativas” 5. Vale lembrar, ainda, que o modelo de democracia participativa delineado por nossa Carta Constitucional prevê institutos vinculantes e não vinculantes. Como vinculantes delineiam2

CORRALO, Giovani da Silva. A Democracia Participativa nos Municípios Brasileiros. In: Ricardo Hermany. (Org.). Empoderamento Social Local. 1ed. IPR Editora. Santa Cruz do Sul, 2010, p. 289. 3

idem ibidem, p. 291

4

BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um direito constitucional de luta e resistência; por uma nova hermenêutica; por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 35. 5

PEREZ, Marcos Augusto. Institutos de Participação Popular na Administração Pública. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Direito/USP. São Paulo, 1999, p. 65.


se aqueles caracterizados pela participação efetiva do cidadão no processo deliberativo, do qual as autoridades administrativas não podem se escusar. Já nos não vinculantes, o cidadão participa com sugestões, opiniões e críticas, permanecendo a decisão final dentro da esfera de decisão exclusiva do agente público ou autoridade administrativa. Entre os principais instrumentos de democracia participativa vinculante, podemos citar o plebiscito, o referendo e os conselhos deliberativos. Para os fins propostos neste estudo, iremos nos focar somente nos Conselhos Deliberativos. Assim, nos socorrendo novamente ao Prof. Corralo, temos que estes são definidos como: “Conselhos deliberativos: os conselhos deliberativos são aqueles assim considerados nas suas respectivas leis de criação. Podem ser criados em todos os níveis da federação, não obstante a obrigatoriedade legal de alguns conselhos definidos na legislação federal. As matérias sujeitas a este caráter deliberativo devem estar expressamente previstas na lei disciplinadora do conselho, bem como o número de participantes governamentais e não governamentais e a sua funcionalidade. Os municípios possuem autonomia para constituir o número de conselhos necessários para que a população possa participar da gestão pública, vinculando o agente político. Ressalva-se que tais leis são da iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo, uma vez que os conselhos equiparam-se a órgãos públicos, logo, dizem respeito à estrutura administrativa municipal”6. Assim podemos concluir sem nenhum medo que, uma vez que a legislação federal ou o interesse municipal demande a criação de um Conselho Deliberativo municipal, as autoridades municipais e agentes públicos passam a ter sua esfera decisória reduzida, uma vez que, nos assuntos pertinentes à este Conselho, devem obediência ao decidido pelo mesmo. Sua atuação administrativa, nestes casos, passa de discricionária a vinculada. Podemos, então, dar um passo adiante e adentrar o campo da política de desenvolvimento urbano nacional, e suas exigências no que tange à participação popular na gestão das cidades. II - Contornos Legais da Política de Desenvolvimento Urbano no Brasil Fixado esse preceito Constitucional, voltamo-nos ao art. 182, também da Carta Magna. Ele inaugura o Capítulo II da Carta Constitucional, que alberga os contornos gerais da Política Urbana nacional, e é claro ao fixar que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes.” Na esteira do referido art. 182 da CF, veio a lume a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade. Referida lei, já em seu art. 2º, inciso II, é peremptória ao fixar como diretriz geral da política urbana “a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas de vários segmentos da comunidade 6

CORRALO, Giovani da Silva. A Democracia Participativa nos Municípios Brasileiros. In: Ricardo Hermany. (Org.). Empoderamento Social Local. 1ed. IPR Editora. Santa Cruz do Sul, 2010, p. 299.


na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”. Temos aqui dois itens a guardar: em primeiro lugar, a lei é clara ao garantir a participação cidadã tanto à “população”, quanto a “associações representativas”. Vejam bem, não se trata de uma ou de outra, mas das duas. Em segundo lugar, a garantia de participação na gestão democrática da cidade a estas duas classes - população e associações representativas, é uma diretriz geral da política urbana, ou seja, de implementação obrigatória pelo Poder Executivo Municipal. A reforçar tal entendimento, a lei em questão, em seu art. 45, determina ainda que “os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários seguimentos da sociedade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania”. Como vemos claramente, a conjunção utilizada pelo Constituinte para conectar os agentes da sociedade civil que devem ter sua participação garantida nos processos de gestão participativa da cidade, novamente, foi o “e” - significando, obviamente, que deve haver espaço garantido para a participação tanto de cidadãos, individualmente, como de entidades e associações representativas da sociedade civil. A presença de um não inviabiliza a do outro, ao contrário, elas se complementam. Assim, resta ao Poder Executivo Municipal, no que tange à gestão urbana, garantir a participação não só de associações representativas da sociedade civil, mas também à população como um todo - ou seja, a pessoas comuns, que não estejam ligadas a nenhuma associação representativa. E tal participação não pode ser pontual e esporádica, ao contrário, deve ser usual - até porque, na sistemática criada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, a não participação popular inviabiliza a gestão urbana, pois se feita tão somente com base na discricionariedade do Prefeito Municipal ou de seus Secretários, revestem-se as normas por eles produzidas de inconstitucionalidade fatal, que atinge todos os frutos deste regramento. O mesmo se pode dizer se, a Municipalidade, ainda que garanta a participação da chamada sociedade civil organizada (associações representativas e congêneres), impeça - ou no mínimo não garanta vagas, para cidadãos comuns, para a população. Isso porque, agindo assim o Executivo Municipal desrespeita o Princípio Constitucional da Legalidade. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, princípio “é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um Princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o


sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço e corrosão de sua estrutura mestra”7. Neste diapasão, o Princípio da Legalidade, que nasceu com o Estado de Direito, significa, em breves linhas, que a vontade da Administração Pública é a definida pela lei e dela deve decorrer, havendo uma relação de submissão do Estado em relação à lei, constituindo-se, portanto em uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais, posto que a lei estabelece os limites de atuação do Estado. Este também é o entendimento do Prof. Hely Lopes Meirelles, em sua obra Direito Administrativo Brasileiro, que define a legalidade como: “principio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.” E continua: “A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inciso I do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784/99. Com isso, fica evidente que, além da atuação conforme à lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípio administrativos.8” No mesmo sentido, Regina Maria Macedo Nery Ferrari assevera que, “a legalidade, assegurada como direito fundamental, reside na liberdade do indivíduo; já a legalidade determinada como princípio norteador da Administração Pública é dever, o que leva a entendê-la como ausência de liberdade da pessoa que administra o bem público, fato este distingue o seu comportamento daquele previsto para particulares” 9. Assim, na seara da Administração Pública, o agente público não tem espaço para liberdades e vontades particulares, mas sim deve, sempre, agir segundo aquilo que a lei lhe impõe, só podendo agir secundum legem. Na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. III - CONCLUSÃO Desta feita, uma vez que a legislação federal - leia-se Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, determina que a gestão democrática da cidade, bem como que todo e qualquer organismo gestor das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas deverão contar com a “participação da população” e de associações representativas da sociedade civil organizada, todo e qualquer ato contrário a isso, editado pelo Poder Executivo Municipal é ilegal e inconstitucional, por afronta ao Estatuto da Cidade e ao Princípio Constitucional da Legalidade (art. 37) e ao art. 1º, parágrafo único, ambos da Constituição Federal de 1988. Nisso se enquadra a criação de Conselhos Deliberativos Gestores das cidades, tenham a denominação que for, uma vez que os mesmos se caracterizam como órgãos gestores,

7

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. Ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

8

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

9

FERRARI, Regina Maria Macedo Nery, Direito Municipal. 3ª ed..São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 119.


delineados pelo art. 45, da Lei nº 10.257/01. Assim, devem esses Conselhos possuírem cadeiras para cidadãos, que queiram deles participar. Não garantir as mencionadas cadeiras na lei de criação do Conselho, impregna as decisões por ele tomadas - e consequentemente as normas administrativas, planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, de manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade, podendo levar inclusive, em alguns casos, à responsabilização da autoridade administrativa. IV - REFERÊNCIAS CORRALO, Giovani da Silva. A Democracia Participativa nos Municípios Brasileiros. In: Ricardo Hermany. (Org.). Empoderamento Social Local. 1ed. IPR Editora. Santa Cruz do Sul, 2010. BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um direito constitucional de luta e resistência; por uma nova hermenêutica; por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. PEREZ, Marcos Augusto. Institutos de Participação Popular na Administração Pública. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Direito/USP. São Paulo, 1999. ARAÚJO, Marinella Machado. SOARES, Gabriela Mansur. CAMPOS, Mariano Henrique Maurício de. Gestão Democrática das Cidades: a Constituição de 1988 é Efetiva?. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico. Manaus, 2008. CASTRO, José Nilo de. Cidades Sustentáveis - 10 Anos do Estatuto das Cidades. Revista Brasileira de Direito Municipal - RBDM, ano 13, n. 43. Editora Fórum. Belo Horizonte, 2012. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. Ed. São Paulo: Malheiros, 2004. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. FERRARI, Regina Maria Macedo Nery, Direito Municipal. 3ª ed..São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012


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