Recife | Março de 2011
Foto: Marília Simas
As várias faces da PERIFERIA Se você acha que periferia é a área mais afastada do centro da cidade, está muito distante de captar o real sentido dessa palavra. Os repórteres do Berro descobriram a essência dela em bairros do Recife, Olinda e Jaboatão. Eles encontraram um prévestibular solidário em Campo Grande, pais que se sacrificam pela saúde dos filhos, figuras que estão começando na cena cultural e outras com fama internacional, mas que não saíram das comunidades de origem. Conheceram crianças transformadas pela música e pelo esporte. A periferia está presente em cada texto, seja nos altofalantes da Zona Norte, num motel popular de Afogados, na demonstração de Fé no Morro ou na alegria de um domingo na praia. Confira nossas matérias e sinta-se acolhido pela comunidade.
O BERRO
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Mídia leva cidadania às comunidades ALAN VINICIUS
Bairros da periferia do Recife tentam usar a mídia para criar uma divulgação positiva da comunidade. Um deles é o projeto Coque Vive, que reúne moradores do bairro de Joana Bezerra e professores da Universidade Federal de Pernambuco. Um dos objetivos do grupo é estudar e agir sobre a representação do Coque nos meios de comunicação. Para isso, são realizadas atividades de fotografia, produção de vídeo
e oficinas sobre o papel dos meios de comunicação. O professor João Vale Neto vê na mídia um espaço para o Coque, mas com outro olhar, uma vez que os veículos de comunicação são tratadas como empresas. “A gente vem de outro movimento, de solidariedade de pessoas. A mídia dá esse espaço, mas o processo é outro”, diz. O fotógrafo Francisco Ludermir observa que, ao longo dos anos, a representação do Coque mudou, dentro dos diversos contextos. Nos
anos de 1970, o bairro era um lugar de lutas sociais, passando depois a ser mostrado como lugar de violência. Nos últimos cinco anos, volta a haver uma valorização do local, devido ao trabalho de diversos movimentos atuantes na área. No Córrego do Euclides, Zona Norte do Recife, há um ano, a rádio dá voz aos moradores. A organização não governamental Cidadania Feminina realiza oficinas sobre o uso da mídia para a comunidade. Através de caixas de som e do apoio de uma
Inclusão social e saúde ganham espaço na periferia do Recife CAMILA SOUZA
Há 21 anos, a rotina de Evandro Vieira é a mesma. Às 6h, ele ganha as ruas com a mãe, dona Eugênia. Do Bongi, onde reside, até Casa Amarela, seu destino, são 40 minutos de percurso. Uma viagem que pouco parece importar para mãe e filho. É na sede da Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (Apae) que Evandro passa todas as manhãs. Lá, realiza atividades educativas, físicas e culturais para estimular os sentidos de quem nasceu com uma deficiência mental. Ainda na barriga da mãe, Evandro foi vítima de uma intensa descarga de adrenalina. Quando estava grávida de dois meses, dona Eugênia presenciou um homicídio. Apesar do nascimento prematuro do g aroto, tudo parecia correr bem, até que a mãe notou uns “atrasos”
intelectuais no filho. Sem muita informação, só conseguiu ter um laudo preciso quando Evandro já se aproximava dos 10 anos. Nessa época, ela foi indicada a visitar a Apae. Na associação, Evandro
“Estimulamos os portadores de deficiências, e eles respondem”, Silvania Paiva - pedagoga da Apae
e outros 150 portadores de deficiência, a grande maioria de comunidades carentes próximas, desfrutam, gratuitamente, das atividades que a entidade disponibiliza em
quatro áreas: a educacional (com salas de aula); de atividades clínicas; a cultural e o núcleo de educação para o trabalho. “Desde que ele passou a frequentar a associação, a melhora foi muito significativa”, conta dona Eugênia. Os avanços do menino não são uma exceção. A pedagoga da Apae, Silvania Paiva, define os benefícios do trabalho feito no local como uma regra. “É um processo natural de ação e reação. Nós estimulamos os portadores, e eles respondem”, diz. Mantendo-se por donativos e com ajuda do governo federal, a Apae é uma instituição filantrópica que oferece serviços gratuitos a usuários de faixas etárias distintas. O intuito? Receber as pessoas que não podem pagar por um atendimento adequado nas proximidades da instituição.
emissora FM, são disseminadas informações sobre direitos sexuais e reprodutivos, violência contra a mulher e discriminação racial. A ONG Alto Falante realiza, por meio do rádio, um trabalho de valorização dos grupos musicais e culturais no Alto José do Pinho. Temas como saúde e prestação de serviços também são abordados. O estudante Tarcísio Camelo participa do projeto e vê nessas iniciativas uma forma de garantir o direito humano à informação.
Tarcísio observa que é mais comum as emissoras públicas de TV e rádio darem espaço à periferia, em comparação aos veículos comerciais. Ambos são concessões públicas e têm o dever de representar a população. Ele participa também do programa “Pé na Rua”, transmitido pela TV Pernambuco. Numa matéria sobre pirataria, o programa não mostrou somente o lado das gravadoras, mas também a visão do vendedor de DVDs piratas.
Empreendedorismo como ação social LUCIANNA VALENTE
Na comunidade “Entra a Pulso”, em Boa Viagem, o desenvolvimento da economia local foi objeto de pesquisa da Federação do Comércio de Pernambuco (Fecomércio). O resultado demontrou que a região, criada há 60 anos, passou a ser autossustentável por conta dos muitos estabelecimentos que se instalaram ao longo dos últimos 20 anos. As 332 unidades comerciais ou de ser viços na “Entra a Pulso” movimentam uma quantia considerável, chegando a render um faturamento mensal de R$ 500 mil. Porém a maior parcela do serviço é informal e necessita de uma mão de obra mais qualificada. Investir na capacitação de jovens para o mercado de trabalho é o objetivo do Programa de Formação Em-
preendedora (Forme), oferecido em parceria entre a Fecomércio e o Sebrae. “O programa vai muito além dos negócios. Os alunos trabalham o sentimento empreendedor na vida pessoal”, explica a analista de projeto do Instituto Shopping, Tibéria Nunes. Em Brasília Teimosa, o “Espaço Jovem Rumo ao Futuro”, do Instituto JCPM de Compromisso Social, oferece aos adolescentes oficinas para jovens empreendedores. Cerca de 600 alunos são formados, por ano, no lugar. Uma delas é Fabiane Emanuelle, de 17 anos. Ela encontrou a vocação de empreendedora fabricando trufas para vender e, no “Espaço Jovem”, teve contato com o mundo dos negócios. “Aprendi muito com as aulas. Hoje, eu for neço minhas trufas para vários locais da cidade.”
EXPEDIENTE Coordenador do Curso de Jornalismo Alexandre Figueirôa O BERRO é uma publicação da Disciplina Jornal-Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Rua do Príncipe, 526 - Boa Vista - Recife-PE CEP 50.050-900 - CNPJ 10.847.721/0001-95 Fone: (81) 2119.4000 - Fax: (81) 2119.4222 www.unicap.br/oberro
Professora Orientadora Fabíola Mendonça Subeditores Alan Vinícius Alice de Souza
Repórteres Alan Vinícius Alice de Souza Annyela Rocha Arjuna Escobar Artur Neves Baptista Camila Souza Cinthia Ferreira Felipe Dias Jaime Mitchell José Vito Araújo Lílith Perboire
Luana Monteiro Lucianna Valente Marília Simas Marina Andrade Rafaella Carvalho Renata Calheiros Rodrigo Góes Diagramação Flávio Santos Impressão FASA
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O BERRO
Praia do Pina é o ‘point’ da galera LUANA MONTEIRO
Depois de trabalhar de segunda a sábado, nada como usar o único dia livre para relaxar, encontrar amigos e se divertir. Quando o sol bate, grande parte da periferia do Recife opta por aproveitar o “sagrado” domingo na praia. O destino de muitos fica no final da Avenida Boa Viagem, mais precisamente no bairro do Pina. Eles chegam cedo, por volta das 9h, e só voltam no ônibus das 17h. Geralmente, pessoas de bairros mais distantes, como Ibura, Macaxeira e Curado, saem de casa em grupos grandes. Bares localizados à beira-mar tocam
música alta, bem diferente do que acontece em Boa Viagem e Piedade, praias frequentadas pela classe média. A animação no Pina é um dos motivos que a torna a preferida da periferia. Em um desses domingos de sol, as primas Gabriella Torres, 14, e Natália da Silva, 16, foram ao Pina acompanhadas de nove familiares, entre eles, João Vinícius, de 3 anos, e Samuel, de 5, todos moradores de Monsenhor Fabrício. Na hora do rango, à sombra de um coqueiro, se deliciaram com as quentinhas trazidas de casa. Os R$ 12 que levavam no bolso eram para pagar a passagem de volta e as bebidas. “Mesmo não vindo toda semana, sempre
nos divertimos muito. Tomamos banho de mar, brincamos de garrafão e pega-pega”, conta a sorridente Natália, entre uma e outra garfada no almoço. Para os que gostam de relaxar ou se aventurar, a opção é alugar uma boia aos sócios Wallace Santos, 20, e Renato Lima, 27. “Antigamente, brincávamos com as boias, mas, há três anos, montamos o nosso próprio aluguel para ajudar no orçamento de casa”, afirma Santos, que já tem um filho de 1 ano para criar. Aos domingos, dia de maior movimento, eles costumam faturar entre R$ 150 e R$ 180. A diversão dos adultos fica
ARTUR NEVES BAPTISTA
Simplicidade nos arranjos e na utilização de palavras mais fáceis nas letras. O brega é um estilo musical que, apesar de ganhar cada vez mais força no país, ainda predomina nas periferias. Universo de variedades e interpretações distintas, ele pode ser, ao mesmo tempo, erótico, dramático, romântico e irreverente. A empregada doméstica Joseanny Barbosa, 23, gosta do gênero musical desde sempre e não abre mão de festas que toquem muito brega. “Eu não tenho palavras para descrever a sensação de escutar esse tipo de música. É uma mistura de amor, ódio, traição e recompensas. É lindo, de verdade”, declara Joseanny, que reside no bairro de Afogados. A Rádio FM é o veículo que mais entende o gosto dos ouvintes da periferia do Recife. A diretora geral da emissora, June Melo, revela que, entre 2003 e 2008, o brega teve uma reduzida no gosto do público, mas que, nos últimos dois anos, o quadro melhorou. “Geralmente, todo
Foto: Artur Neves Baptista / Natascha Falcão
O ritmo brega movimenta a noite da periferia recifense
bom gênero necessita de uma reciclada básica. Foi isso que aconteceu e vai acontecer muito mais com o estilo musical”, afirma. O crítico de música e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Felipe Trotta, acha muito difícil conceituar o brega de maneira resumida. “O termo abrange vários fatores relacionados à ideia de segregação social, preconceito, moda, composição e produção de rimas. Isso torna o significado muito confuso”, defende Trotta. A cantora da banda Tanga de Sereia, Daniela Gouveia, 25, acredita que o estilo musical tende a crescer e inovar ainda mais. Segundo ela, o público apreciador do brega hoje é bastante amplo, pois toma
VOCAL Daniela acredita no amor barato, regado a cachaça e barraco
conta da periferia e adquire cada vez mais novas leituras e formas de expressão, além da maneira como ele é apreciado. “Cantamos e interpretamos o amor barato, o qual não se cura com terapia nem com remédio, e sim com muita cachaça e barraco”, afirma Daniela, a única mulher dos sete integrantes do conjunto, conhecido a partir do sucesso da música O Homem do Gás. Para Felipe Trotta, os estilos musicais em geral são um ciclo de incertezas. Quando perguntado sobre o destino do brega, ele conclui: “Um ritmo pode tanto entrar em extinção como sobreviver e perdurar por décadas. Isso não é uma coisa que se explica. Ela acontece.”
por conta do som, da cerveja, do mar e do sol. A auxiliar de enfermagem Adenise Ramos da Silva, 26, é frequentadora assídua da praia do Pina. Todo domingo, ela aparece por lá. “Aqui é muito mais animado. Tem barzinho, música para dançar, homens bonitos e o principal: os preços são muito mais em conta. Não troco isso aqui por nada”, disse. NEM SÓ FLORES Apesar de ser um local de lazer, sustento e descanso para os moradores da periferia, a praia do Pina, às vezes, parece terra sem lei, onde tudo pode. Jovens consomem drogas, como loló, maconha e ecstasy, sem nenhuma timi-
dez. Assassinatos acontecem aos olhos de uma grande plateia e nenhuma providência é tomada. Não há ficalização, muito menos policiamento. Adenise, por exemplo, fala com tristeza ao se lembrar do cunhado. “Estávamos todos nos divertindo, quando ele foi assassinado com três tiros na cabeça.” A rotina na praia do Pina pode tornar-se banal, e a morte até ser motivo de risada. “Lembro quando estávamos sentados na areia e um homem se jogou do arrecife, bateu a cabeça e morreu. Foi muito engraçado ver o corpo boiando”, conta Renato Lima, em seu negócio do aluguel de boias, às gargalhadas.
Afogados tem opções acessíveis de prazer ANNYELA ROCHA
O lugar não cheira bem, mas serve para atender aos desejos mais íntimos dos casais de periferia. A rua Nicolau Pereira, no bairro de Afogados, traz várias alternativas de motéis de baixo custo para os românticos dos bairros vizinhos. Perto da estação de metrô e de uma feira popular, as suítes recebem casais dos mais diversos tipos. O preço médio é de R$ 10. Bem diferente dos grandes motéis localizados nas proximidades, como o Lemon Motel, no qual a suíte mais em conta custa R$ 119. Parte desse comércio não funciona nos fins de semana. Segundo a funcionária do Hotel Liderança, Roseane Ferraz, “muitos casais vêm para cá depois de fazer a feira, aproveitando as folgas do cotidiano”. Gerente de outro motel na mesma rua, André Felipe Veloso afirma que a experiência já trouxe muitas situações curiosas. “Uma vez vieram dois transexuais surdos-mudos e o difícil foi avisar a eles que o tempo já tinha acabado”, conta o gerente,
soltando gargalhadas. Nayara do Espírito Santo, 25, começou a ir a motéis pela curiosidade. Ela mora perto de Afogados e frequenta o motel Sonho, que custa R$ 7. “Dá para ouvir o barulho dos outros quartos, mas é melhor do que ir para casa”, justifica a jovem. O conforto é baixo: quartos pequenos, cama de cimento coberta por colchonete fino, banheiro sem portas e sem água quente no chuveiro. Para a professora e doutora em sociologia, Vera Borges de Sá, a falta de conforto não é um problema para os consumidores. “Os conceitos de conforto e privacidade para a periferia são outros.” A maioria concorda: muitos dos clientes estão traindo seus parceiros. Morador da comunidade do Caranguejo, Tarcísio Santos, 22, confirma esse fato. “Eu só vou para motel longe quando é traição.” Além dos infiéis do Caranguejo, também vão pessoas do Coque e da Mustardinha. Ainda assim, para Santos, os motéis da rua Nicolau Pereira “servem até para impressionar uma mulher”, como o Hotel Star, o mais caro da área.
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RENATA CALHEIROS
“Era matadouro animal, virou matadouro de gente e agora é nascedouro de cultura.” A definição parte de Jeovana Moura, funcionária da Refinaria Multicultural Nascedouro de Peixinhos, um lugar que por pouco não virou lixão e, desde a década de 1980, passa por mudanças que o transfor maram em espaço social. No local, a Secretaria de Cultura do Recife promove oficinas de teatro, dança, grafitagem, seminários e festivais. Atualmente, essas oficinas estão paradas devido a um projeto de revitalização, do qual constam um auditório e salas multiuso. Mas o espaço continua ativo, com apresentações de bandas locais, festival de dança, ciclo natalino e junino. “Todos os eventos são
direcionados à família. Por isso, artistas que denigrem a imagem da mulher, do negro, do pobre e dos homossexuais não são aceitos. O Conde do Brega, por exemplo, sempre faz shows aqui. Nação Zumbi, MV Bill, O Rappa e Seu Jorge já nos prestigiaram”, diz a diretora de eventos Conceição Camarote. A Refinaria também cede espaço para os projetos comunitários. Magemolé, Comunidade assumindo suas crianças (CASC), Ação Peixinhos, Nação Mulambo e Nação Mulambinho são alguns deles, que oferecem aulas de dança, percussão, alfabetização e esportes. A Biblioteca Multicultural é uma iniciativa do grupo Boca do Lixo e, há dez anos, se mantém com o apoio da instituição alemã ASW (Ação Mundo Solidário), estúdio C&A, Banco do Nordeste e
Alto José do Pinho é pura identidade FELIPE DIAS
A arte sem a lesão do capital, modelada com inocência e manifestada do interior. É assim no Alto José do Pinho, Zona Norte do Recife, com suas histórias boêmias, sua religiosidade e seus espaços culturais representativos. Assim como a Rádio Alto-Falante, idealizada por Celo e Neílton, ambos integrantes da banda Devotos, e Aílton Peste, um dos principais mentores do projeto. Do Alto, o som sai no volume máximo: são várias bandas no âmbito musical, como afoxé, frevo, punk e outras vertentes. O destaque fica com a banda Devotos, idealizadora de um importante trabalho que resultou no ganho de autoestima na comunidade do Alto José do Pinho. Hugo Montarroyos, autor do livro Devotos: 20 anos, conta que a imagem mudou profun-
damente com o interesse despertado pela comunidade através do som dos caras. “A Devotos foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para o Alto. Os moradores da comunidade não dizem mais que moram em Casa Amarela. Havia um preconceito em dizer sua exata localização.” Hugo também faz menção ao receio que era parte do ego dos moradores. “Eles entravam nos táxis e pediam uma corrida para Casa Amarela, e não para o Alto”, conclui. Com essa autoestima elevada, os moradores sabiam qual era o rumo que a comunidade tinha que tomar: uma identidade cultural fortíssima faz uma comunidade ser mais forte ainda. Toda a revolta do “punk” tinha um intuito: a paz. A vontade de ser ouvido e de despertar o interesse por soluções dentro do próprio universo e de seu eixo social pesou. Ponto para a cultura na periferia.
Foto: Renata Calheiros
De matadouro a Nascedouro Cultural
COMPLEXO CULTURAL e teatro do Nascedouro
Prefeitura do Recife. Aluguel, energia e água não são cobrados. “Nossa proposta é a leitura por prazer e não obrigação”, diz o coordenador Daniel Pereira. Para incentivar essa prática, são realizadas a “Semana Temática” e a “Mala da Leitura”, que empresta livros para escolas e grupos comunitários.“Não queremos subs-
tituir o papel da escola, mas complementar”, fala o educador Vinícios Vilamundos. Há também palestras e atividades em espaços públicos, com cantinhos de leitura e recitais. Abre de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 17h. Ao lado da biblioteca, fica a Assistência Social da Prefeitura do Recife, que atende
a 1.100 famílias de Peixinhos, por meio de acompanhamento psicológico, entrega de cestas básicas, auxílio funeral e kit enxoval, além de encaminhamentos para o conselho tutelar, bolsa família, carteira do livre acesso e retirada de documentos. No prédio do Centro Tecnológico da Cultura Digital, projeto do Governo do Estado e Secretaria de Ciências e Tecnologia, é oferecido o curso de Inclusão Digital para 80 alunos por trimestre. A idade mínima exigida é 15 anos, e os participantes, que devem estar concluindo ou ter terminado o ensino médio, aprendem informática básica, Windows, Office, Photohop, Corel, etc. O local ainda abriga o Nascedouro Cine Clube, onde todas as sextas-feiras, às 18h30, são exibidas sessões abertas ao público.
Do morro ao litoral, os sabores da periferia conquistam a cidade RODRIGO GÓES
Os restaurantes das periferias da cidade se tornam cada vez mais frequentados. Muitos turistas e pessoas de todos os bairros do Recife fazem questão de provar a comida feita nesses lugares. O preço é baixo, os pratos são deliciosos e o tempero lembra a comida feita em casa. O primeiro destino da reportagem foi o Bar da Geralda, no alto do Morro da Conceição, em Casa Amarela. A galinha de cabidela é o prato mais pedido do restaurante. Para comer, o freguês tem que desembolsar R$ 15. O prato pode vir acompanhado de algumas guarnições, como arroz, feijão, batata frita e vinagrete. Cada acompanhamento custa entre R$ 2 e R$ 3. A comida é uma delícia e fica impecável se temperada com o molho caseiro de pimenta que dona Geralda
faz. A clientela aprova. O eletricista Clerivaldo Pereira diz o motivo: “A galinha de cabidela daqui é a melhor da cidade. Não tem igual, o molho é muito bom”, aprova. Dona Geralda fala como prepara essa maravilha. “Eu coloco a galinha e o sangue para cozinhar em panelas diferentes. Depois eu misturo o caldo no liquidificador com um molho que eu faço, ponho na panela novamente e cozinho mais um pouco antes de servir a galinha”, explica. Quando questionada sobre o preparo do molho, ela não quis nem conversa. Fala que é segredo. Ao anoitecer, a reportagem partiu para um restaurante de frutos do mar no bairro de Brasília Teimosa. O lugar se chama Bar do Peixe e fica na orla. Marcos Rodrigues é o dono do estabelecimento. O bar foi fundado há apenas três anos. Funciona num prédio de três andares.
O piso mais alto tem uma vista bonita, dá para ver o centro do Recife e toda a orla de Brasília Teimosa. Cada andar do restaurante tem um ambiente diferente, mas o prédio é estreito, parece um corredor. As postas de peixe servidas ali não são nem um pouco pequenas. Três tipos estão no cardápio: albacora, pescada amarela e cioba. Os preços variam de acordo com os tamanhos. A menor posta custa R$ 12, a maior sai por R$ 50 e mede dois palmos de diâmetro. O bar lota nos finais de semana, mas a maioria dos clientes são turistas e pessoas de fora da comunidade. Entre as visitas famosas, Rodrigues lembra ter servido um prato para uma figura ilustre. “O exprefeito João Paulo almoçou aqui na época da sua gestão. Eu ainda lembro que ele pediu uma posta de albacora. Eu fiquei lisonjeado”, conta Rodrigues.
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MARÍLIA SIMAS
Dois Unidos. A localidade era temida e mal vista pelas pessoas que não eram da região, pois, há muito tempo, era um lugar violento e que estampava as principais páginas de polícia dos jornais. Hoje, a realidade é bastante diferente. Nos domingos, a comunidade se transforma. Há dez anos, o sanfoneiro deficiente visual Arlindo dos Oito Baixos promove, no quintal de sua residência, um forró conhecido nos quatro cantos do mundo. Reformado recentemente, o espaço cultural “Arlindo dos Oito Baixos” comporta cerca de mil pessoas. O público é bem diversificado e chega de toda a cidade, além de turistas,
Foto: Marília Simas
O Dois Unidos do Arlindo dos 8 baixos
ARLINDO Valorizar a cultura na periferia onde mora
que vêm conhecer o autêntico “arrasta-pé” pernambucano. Além do anfitrião, e organizador dos eventos, o público tem a oportunidade de conhecer outros artistas da terra que se apresentam como convidados no forró.
O espaço cultural é um dos roteiros turísticos da capital pernambucana e funciona a partir das 15h. O fundador da casa de show disse que o local surgiu de forma espontânea e que nada tinha sido planejado. “Na
Todo mundo cabe na Casa da Rabeca de Mestre Salustiano JAIME MITCHELL
A expressão das manifestações culturais tem endereço para se encontrar: a Casa da Rabeca do Brasil, instalada na periferia de Olinda, mais precisamente na Cidade Tabajara. Lá é o lugar onde maracatus, caboclinhos e cavalosmarinhos podem se mostrar para o mundo. Para o mundo mesmo, pois o espaço foi criado por ninguém menos que Mestre Salustiano, rabequeiro conhecido internacionalmente. Manuel Salustiano, ou Mestre Salustiano, fundou a Casa da Rabeca em 2002. A ideia inicial era juntar em um mesmo espaço diferentes culturas e dar voz para pequenos e médios artistas. Mestre Salustiano morreu em 2008, mas o trabalho dele não parou. Hoje, quem toma conta da Casa da Rabeca são os 15 filhos e filhas de Mestre Salu. Um deles é Pedro Salustiano. Com mais seis irmãos ele é diretor do espaço e continua os planos iniciados pelo pai. “No começo, nós éramos contra a criação da Casa da
Rabeca por causa das ocupações de nosso pai. Ele viajava bastante”, relata Pedro. Mestre Salu iniciou o projeto mesmo com os filhos não aceitando. As apresentações dos artistas eram aos domingos. Atualmente são aos sábados. “No começo, nós recebíamos de dez a 15 pessoas. Hoje em dia a média do público é de seis mil pessoas”, conta Pedro. A ideia do local é preservar a cultura. Na Rabeca já passaram artistas como Santana, Geraldinho Lins, Irah Caldeira, Cristina Amaral e Alcimar Monteiro. A entrada na Casa era gratuita. Ainda hoje, sempre que possível, Pedro afirma que acontecem shows de graça. É cobrado dos convidados um preço médio de R$10 a R$15. O desenhista Luiz Carlos Lima foi duas vezes ao forró da Rabeca e gostou muito. “Achei a melhor casa de forró daqui. É grande, tem segurança e estacionamento. O espaço é muito bom para brincar”, conta. A primeira vez que Luiz foi ao local era São João. Com um grande terreno, a
Casa da Rabeca investe na segurança. Quando os veículos têm que ficar do lado de fora, a família Salustiano espalha vários seguranças ao redor para cuidar deles. Pedro conta que durante os festejos juninos são nove dias de festa e o público total chega a quase 50 mil pessoas. O Carnaval Mesclado também está no calendário de festas da Cidade Tabajara. Ele recebe esse nome porque junta caboclinhos, maracatus, blocos, ursos e cavalos-marinhos. A festa acontece no domingo e na segunda de Momo. Há sete anos que a Casa da Rabeca realiza o Carnaval. A festa é aberta ao público de manhã até a noite. No Natal, também tem comemoração com pastoril e o tradicional cavalomarinho. Os jovens da vizinhança da Casa da Rabeca são chamados para participar de oficinas de cavalomarinho, maracatu e caboclinho. “Nós queremos envolver os jovens, tirá-los do mundo das drogas, desenvolver um bom trabalho com eles”, fala Pedro.
verdade, eu inaugurei esse espaço numa tarde de domingo. Tudo aconteceu há dez anos, quando eu tive a ideia de reunir alguns amigos. Eles gostaram tanto que voltaram no domingo seguinte e nunca mais paramos de nos apresentar.”, conta. Nem o estereótipo, nem o preconceito com o bairro fez com que o sucesso do forrobodó perdesse a fama. “Algumas pessoas do bairro já vieram, mas a grande maioria das pessoas que frequentam o local é de fora. São universitários, professores, turistas de dentro e fora do país, além de pessoas do interior do Estado”, relata. A enfermeira Rosimery da Silva Santos, de 39 anos, é uma das mais antigas fre-
quentadoras do forró e disse que é fã das pessoas que trazem cultura pernambucana para as periferias, porque isso ajuda a melhorar a segurança na área e implanta, dentro da comunidade, uma tradição diferenciada. “É importante que as periferias tenham trabalhos como este que Arlindo faz. Acho interessante esse tipo de resgate da cultura e desse ofício realizado pelo sanfoneiro”, diz. Algumas pessoas do bairro dizem que existem duas fases que dividem a comunidade, o antes e o depois da criação do espaço cultural. “Antigamente, eu tinha muito medo e vergonha de dizer às pessoas que eu morava aqui. Hoje, sinto orgulho, moro aqui há 30 anos”, fala o sanfoneiro.
Uma Bomba de cultura e tradição CINTHIA FERREIRA
Bomba do Hemetério, zona Norte do Recife. Dados da Prefeitura da cidade revelam que a população do bairro fica em torno de 9 mil pessoas, que dividem uma área equivalente a 63 campos de futebol. Somente num lugar grande assim para caber uma escola de samba, coquistas, orquestras, sambistas e um reisado imperial. Apesar dos grandes talentos, somente nos últimos anos, o bairro vem ganhando projeção na mídia de uma forma mais positiva do que era antes, graças a uma iniciativa bem peculiar. A Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, sob a regência do Maestro Forró, está levando o nome da comunidade para aquém das fronteiras do Estado. “Nós pegamos um pouquinho das influências de nossos pais, avós e vizinhos, colocamos tudo num liquidificador e surgiu uma nova música”, ressalta o maestro. Uma dessas principais
fontes de influência chama-se José Amâncio da Silva, 76, mais conhecido por Zé Amâncio do Coco. Ele é o pai do maestro. Oriundo da cidade de Aliança, Mata Norte do Estado, foi em 1958 que chegou à Bomba em busca de emprego e por lá ficou. Uma conversa à toa e um bom pandeiro são o suficiente para seu Amâncio fazer tiradas geniais ao som do coco. O bairro também abriga seu Geraldo Almeida, 86. Ele é dono do título de brincante mais antigo do Estado e do único reisado imperial existente em Pernambuco. Tanta cultura assim escondida em 450 mil metros quadrados, o que faltava para os artistas da Bomba era somente uma articulação. Hoje, o bairro estampa as capas de jornais e é manchete nos programas televisivos com um único tema: competência musical. “Mudança de hábito e iniciativas para melhorar a imagem da comunidade refletem na autoestima dos próprios moradores”, finaliza Forró.
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Foto: Marina Andrade
Foto: Rafaella Carvalho
Música transforma vida de jovens
Periferia como porta para a grafitagem
TRAÇOS O grafiteiro Zone-X e a arte que o encantou no muro MARINA ANDRADE
CONCERTO Orquestra Criança Cidadã se apresenta na Igreja Madre de Deus, no Recife Antigo RAFAELLA CARVALHO
O lugar é o Coque, uma das comunidades mais pobres e com os maiores índices de criminalidade da Região Metropolitana do Recife. Apesar disso, algo começa a mudar dentro desse cenário tão ruim: a Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque, um projeto que surgiu através do juiz de Direito João José Rocha Targino e do desembargador Nildo Nery dos Santos e iniciou a sua trajetória sob a batuta do maestro Cussy de Almeida, falecido no ano passado. Em seis anos de existência, mais de cem vidas já foram transformadas graças ao projeto. Utilizando a música como instrumento principal, a Orquestra dá uma oportunidade a quem quer, de fato, mudar de vida. Em meio ao projeto, os alunos recebem gratuitamente aulas de percussão, teoria musical, flauta doce, corda e canto coral. Além disso, ainda recebem apoio pedagógico, com atendimento psicológico, médico e odontológico, aulas de inclusão digital, fornecimento de três refeições por dia e fardamento. A escola funciona no Quartel do Sétimo DSUP (Depósito de Suprimentos do Exercito), no bairro do Cabanga, e tem na disciplina uma
palavra que é muito valorizada pelos seus coordenadores. O ritmo de estudo é intenso com carga horária de oito horas, de segunda a sábado. O esforço, no entanto, acaba sendo bem recompensando já que a maioria dos alunos passa a aprender uma nova profissão. Além disso, eles têm no currículo o incentivo que vem dos prêmios que não param de chegar para a Orquestra, como a Medalha do Mérito Democrático e Popular Frei Caneca, concedida pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe); a Medalha Antônio Carlos Escobar e o Prêmio Anamatra de Direitos Humanos 2010, conferida com menção honrosa ao juiz João Targino. Esses são só alguns de cerca dos 20 prêmios que a orquestra já recebeu. INTERCÂMBIO Além de prêmios, alguns dos estudantes tiveram a oportunidade de fazer intercâmbio em países como Polônia, Eslováquia e Áustria. Nesses países, alunos como Júlio Carlos Rocha, Inaldo Nascimento e Isaías Tavares tiveram oportunidade de aprimorar as técnicas aprendidas na Orquestra. Para que ocorram esses intercâmbios, a parceria com empresas é
fundamental. Júlio Carlos Rocha da Silva, um dos alunos mais antigos do projeto, viajou em 2009 para a Polônia, onde conseguiu aprender muito sobre música “Não encontrei dificuldades, me adaptei bem ao local e aproveitei muito esses quase 12 meses de intercâmbio”, afirma o garoto, que tem como maior sonho voltar para a Europa e aprender outros instrumentos. Oportunidade para os jovens e sentimento de satisfação para os fundadores. “É muito importante para nós, que estamos à frente desse projeto, agradecer tudo o que os parceiros já fizeram por esses meninos e meninas. São oportunidades que irão fazer muita diferença. Somos muito gratos”, afir ma João José Targino. O projeto sozinho não irá conseguir mudar a realidade de um local tão cheio de problemas como o Coque. É necessário apoio do governo para investimentos em saneamento básico, moradia e emprego para a família desses jovens. O que se pode observar, no entanto, é que o Coque está recebendo uma geração nova de jovens verdadeiramente cidadãos e com um talento para a música, que pode transformar a vida deles.
A arte da grafitagem está espalhada pelos muros da cidade. Na maior parte das vezes, é na periferia que nasce o primeiro contato entre os jovens e as técnicas do grafite. É o caso de Zone-X, que mora na Várzea; Sorriso, do Alto José do Pinho; Derlon Almeida, do Arruda; e Galo de Souza, do Cordeiro. Os dois últimos, grafiteiros de renome nacional. “Já desenhava desde os 8 anos de idade. Uns grafites dos pioneiros Olho e Guerreiro despertaram em mim um encanto pela arte de rua. Se não fossem as ruas, não seria o que sou hoje”, conta Zone-X, que assina diversas grafitagens no bairro do Pina e hoje é engajado em projetos sociais e ONGs que se dedicam a ensinar a arte do grafite às novas gerações. Depois de ter morado por 24 anos na Várzea, Zone-X se mudou para a comunidade de Roda de Fogo. Mas toda semana ele volta ao seu bairro de origem para ensinar as técnicas do grafite para os alunos das escolas públicas do bairro. O estudante Tiago Rocha, de 17 anos, foi um dos jovens despertados para a arte durante essas aulas. “Fico juntando dinheiro para comprar sprays e sair pintando no final de semana. Também desenho muito em casa”, afirma. Geralmente, é ao lado dos “skates” inseparáveis que os jovens se iniciam no domínio do chamado “bico”, utilizado
para grafitar e feito artesanalmente com fio de telefone. E é trocando experiências na rua, com a galera do mesmo bairro e até de outros próximos, que os garotos aperfeiçoam seus traços. Em locais como Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Cabo de Santo Agostinho, além do Recife e de Olinda, existem hoje cerca de 15 grupos de grafiteiros, os chamados crews. Muitos deles estão espalhados pelos bairros da periferia como o 4Elementus, Os Brothers e o Umilde Style. Há também um for mado apenas por mulheres: o Flores Crew, criado em 2004. O grafiteiro Derlon Almeida é um exemplo de que verdadeiros talentos podem surgir nas aulas de grafite que são levadas a diversas comunidades do Estado. Foi durante uma oficina da Ong Instituto Vida, no mesmo bairro onde Derlon morava, que ele trocou os desenhos de papel pela grafitagem nos muros da cidade. Também envolvido com oficinas direcionadas a jovens está o grafiteiro Galo de Souza, há 20 anos pintando nas ruas do Recife. À frente do coletivo Êxito d’Rua, ele coordena mutirões em bairros da periferia, com a proposta de disseminar não só o grafite, mas também o “hip hop” e a “street dance”, outras expressões artísticas genuinamente de rua. O lema do guia está estampado em um de seus trabalhos para todo mundo ver: “Parede branka, povo mudo”.
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O BERRO
ALICE DE SOUZA
Principal reduto católico do Recife, o Morro da Conceição, no bairro de Casa Amarela, é conhecido por guardar, entre escadarias e ladeiras, várias histórias de fé e superação. O maior expoente da religiosidade é a padroeira homônima do local, mas também há espaço para outras formas de expressão religiosa, como as igrejas evangélicas, que vêm ganhando cada dia mais público, e os cultos afrobrasileiros. O alto é um oásis de esperança e paz em meio aos problemas sociais da comunidade. Aos olhares cuidadosos da imagem imponente da Virgem Maria, católicos, evangélicos, espíritas e candomblés andam uns ao lado dos outros, cumprimentando-se e dando “graças a Deus”. Mesmo que inconscientemente, eles sabem que os pedidos e as promessas são semelhantes. “Muita coisa surpreendente acontece aqui”, diz a comerciante Ivoneide Vasconcelos, 48 anos. Ela é uma das faces da fé no morro.
Foto: Alice de Souza
As faces da fé no Morro da Conceição
DEVOÇÃO As fitinhas são o símbolo da fé dos frequentadores
Católica, trabalha vendendo imagens de santos, canetas, chaveiros e outros objetos que fazem referência às divindades católicas. Ivoneide faz questão de ir aos pés da santa duas vezes ao dia, quando chega para arrumar a barraca e antes de sair. “Sem Deus, eu não sou nada”, garante. Durante o mês de dezembro, quando é realizada a festa em comemoração à padroeira católica, cerca de 700 mil fiéis visitam o local. Mas é no cotidiano do morro, em cada casa que guarda um cartaz de Nossa Senhora, nos estabelecimentos comerciais da região e nos barulhos de louvor que se observa a fé dos moradores. O que independe de crença. “Quando acreditamos, passamos a ver o mundo com outros olhos”, explica a evangélica Sandra Paulina, 40 anos. Moradora do morro desde que nasceu, ela se apega à religião para manter a esperança. “Vivemos uma realidade difícil, com muitos históricos de sofrimento.
Temos que cultivar o amor a Deus”, afirma. Vizinha de um grupo heterogêneo no que diz respeito à religião, ela é como a maioria das pessoas da área: escolheu uma crença para seguir, mas não deixa de acreditar nas outras. “O verdadeiro Deus está em todas as igrejas. Seja lá como for, o importante é sentir a palavra dele”, conclui. Foi assim, por exemplo, que a padaria Rainha do Morro foi batizada. “Sou evangélica, minha família também. Mas escolhemos esse nome. O que faz a diferença aqui é a fé”, explica a dona do estabelecimento Joseane Ferreira. EVANGÉLICOS Apesar do forte público católico e da tradição candomblé, as igrejas evangélicas também têm crescido no Morro da Conceição. “Só de Assembleia de Deus já são sete na região, fora as outras denominações. É nome em cima de nome”, afirma o diácono Renato da Silva.
Conhecimento para transpor barreiras JOSE VITO ARAUJO
Uma iniciativa que surgiu como resposta ao preconceito. É assim que o servidor público federal Alberto Manuel descreve o nascimento do projeto Pré-Vestibular Solidário, idealizado por ele, em 2001, na busca por qualificar jovens e adultos de comunidades carentes com o objetivo de levá-los à universidade. Alberto tem origens humildes e diz ter enfrentado muita resistência social quando cursou Química, na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Agora, ele se sente na obrigação de aproximar os moradores da Ilha do Joaneiro, comunidade do bairro de Campo Grande, no Recife, da educação pública superior. Uma forma de fazer do conhecimento uma balsa, meio para levá-los bem
mais longe do que os limites da comunidade permitem. “Quando iniciei Química, todos me olhavam diferente na universidade. Tudo porque eu usava camisa regata, calça rasgada e chinelos. Na sala de aula, fui escanteado pelos meus colegas até as primeiras provas. Só falaram comigo quando as primeiras notas saíram e fui bem”, confidencia Alberto. Segundo ele, nesses momentos de isolamento social, uma promessa foi feita: criar algum mecanismo de ajuda para que o sistema público de ensino superior fosse acessível à parcela da população que mais precisa dele, pricipalmente quem vive na periferia da cidade. “Meus colegas eram todos de famílias financeiramente bem estruturadas. Todos tinham muito mais condições para estudar e passar nas
federais. Passei com muito esforço e vi que era um dos poucos a conseguir isso. Fiquei esperando ter condições de fazer alguma coisa para mudar esta história. Estamos conseguindo agora”, conta. Nos dez anos de atuação, o Pré-Vestibular Solidário teve mais de 500 alunos participantes, aproximadamente 50 aprovações nas universidades federais e cerca de 25 profissionais formados em atuação no mercado de trabalho. Além disso, o grupo de parceiros só cresce. Alguns ajudam na compra de materiais e no pagamento de taxas para os vestibulandos que não conseguem isenções. Outros, na melhora da estrutura que abriga o projeto. DE ALUNO A PROFESSOR A estudante de pedagogia Maria do Carmo Soares da
Silva, 40, faz parte dos bons resultados do projeto e agora trabalha como voluntária. Ela ensina Português para os alunos da comunidade da Ilha do Joaneiro e, assim como o fundador da iniciativa, firmou um compromisso com os ideais do projeto do PréVestibular. “Ensinar é uma forma de retribuir tudo o que essa ideia fez por mim”, declara. Funcionária pública concursada, Carminha diz ter uma jornada diária cansativa, mas afirma que a emoção de aprovar um aluno supera qualquer cansaço. “Não vou desistir jamais dos meus alunos. A felicidade quando um deles passa é uma recompensa maior do que qualquer coisa”, avalia. Um caso que certamente motiva a professora é o da dona de casa Berenice Gomes da Silva, 45, que decidiu, no
ano passado, retomar os estudos depois de 20 anos afastada das salas de aula. “Tive graves problemas de saúde e vi que tirar a atenção da doença para pôr no estudo me fez muito bem. Acho que valeu a pena e, por isso, agora também participo do grupo preparatório para concursos”, revela. AMPLIAÇÃO Os colaboradores continuam trabalhando para ampliar a atuação do projeto. Recentemente, foi montada uma biblioteca comunitária na Ilha do Joaneiro, entregue posteriormente para administração dos moradores Também foi formada uma outra unidade em Peixinhos, bairro da periferia de Olinda, onde espaço ocioso de uma loja de autopeças se transformou em sala de aula.
O BERRO
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apenas um obstáculo. Depois de dez meses participando do projeto, ela vai colocar o barco no rio pela primeira vez. “Estou muito ansiosa para chegar a hora”, disse Franciane. O maior objetivo da garota agora é competir. “Quero participar de todos os torneios e campeonatos. Meu sonho é ser uma atleta profissional de sucesso”. O objetivo da iniciativa social é formar atletas, sem esquecer os estudos. Os alunos têm um acompanhamento fora das aulas e no ambiente familiar. Eles participam de curso de formação básica nas áreas de informática e cidadania, para conseguirem o primeiro emprego, além de acompanhamento nutricional, para ter um preparo físico adequado de um atleta.
LÍLITH PERBOIRE
Nas comunidades Ilha de Deus e Coque, ambas no Recife, um projeto que envolve esporte e educação, vem evitando que jovens carentes entrem no mundo das drogas e dos crimes. É o Remando Para o Futuro, fundado por remadores veteranos que queriam continuar no esporte e, ao mesmo tempo, ajudar pessoas carentes. O projeto atende a adolescentes de 13 a 20 anos, de ambos os sexos, que estejam estudando. Lá, eles têm aulas de remo, canoagem e vela, além de oportunidades de estudo e de trabalho. Este ano, aproximadamente 150 jovens participarão do Remando para o futuro, que fica na Imbiribeira, à margem do Rio Tejipió. Franciane Maria, 20, moradora da comunidade Ilha de Deus, diz que sua vida mudou depois de entrar no projeto. Ela, que já passou por muita violência onde mora, viu uma saída no meio da pobreza, das drogas e dos vícios: o remo. O medo de entrar na água era
FUNDADORES Seis ex-remadores profissionais - Reynaldo Ramos, Paulo Roberto, Evaldo Alencar, Bruno Galindo, Augusto Barbosa e Ricardo Maia, atualmente definidos como remadores master, cansados
Foto: Lílith Perboire
Remo muda vida de jovens carentes COMPETIÇÃO Adolescentes disputam nas águas do Rio Capibaribe
de não terem onde remar e com uma grande vontade de ajudar o próximo, fundaram a Liga Pernambucana de Remo e o Projeto Remando para o Futuro. Para Paulo Roberto, a ideia é focar na for mação dos jovens da periferia e tirar os “espaços” vazios do dia a dia dessas pessoas, além de conseguir formar uma equipe para concorrer ao campeonato pernambucano e serem destaques fora do estado. Reynaldo Ramos, remador master e presidente da Liga Pernambucana de Remo e do
projeto, está implantando o remo social nos grandes clubes do Recife para pessoas de baixa renda. Ele já conseguiu o apoio do Sport e esse ano vai colocar 150 jovens para fazer parte da equipe sem pagar nada. PARAOLÍMPICOS Para atenderem a um outro público, os criadores da Liga Pernambucana de Remo e do Projeto Remando para o futuro, em parceria com a Associação dos Deficientes Motores de Pernambuco, criaram outro projeto social
e estão realizando uma nova modalidade: remo para atletas adaptados, ou seja, paraolímpicos. Entretanto, as dificuldades são muitas. Falta de equipamentos e barcos adaptados são apenas alguns dos problemas enfrentados pela equipe. Atualmente, sete pessoas com deficiências físicas estão participando do remo adaptado. Cinco fazem atletismo e encontraram no remo uma maneira de voltar a ter um contato com a água. Eles estão fazendo exercícios de academia para fortalecer os músculos e aumentar a força. Em Pernambuco, apenas a Liga Pernambucana de Remo oferece essa modalidade do esporte. Ailton de Araújo, de 35 anos, atleta paraolímpico, participa há seis meses do remo e está amando a experiência no esporte. “Ganhei condicionamento físico e mais resistência depois que comecei a treinar. O remo está me fazendo muito bem, eu me sinto realizado. Não vejo a hora de entrar na água para competir”, diz Araújo.
ARJUNA ESCOBAR
Com quatro anos de idade, Brenda Maria Lima e Silva já saltava no tatame e esboçava os primeiros sinais de um grande futuro como judoca. Apesar do medo de se machucar, como ela afirma hoje em dia, com 15 anos de idade, não tinha como escapar daquela diversão. O pai, João Batista da Silva Neto, seu primeiro e até hoje professor de Judô, um verdadeiro mobilizador social. Desde 1996, educa gratuitamente crianças da comunidade D. Helder, periferia de Jaboatão dos Guararapes, local com elevado índice de violência e pobreza. Ao acompanhá-lo nas aulas, Brenda se encantou e tornou o judô seu grande sonho e objetivo profissional. Todos os anos, turmas são montadas e João Neto recebe
Foto: Arjuna Escobar
Esporte resgata a cidadania na comunidade
BRENDA MARIA Vitória da cidadania
uma quantidade de crianças locais para treinar. Sem apoio de nenhum órgão da Prefeitura ou do Estado, ele toca a academia, que é a sede dos treinos. Equipamentos velhos de musculação e uma estrutura física defasada não são empecilhos no desenvolvimento das atividades. Atualmente, o único apoio que tem recebido é de uma organização que atua nas comu-
nidades da região, a Casa do Maná. É tirando do próprio bolso que o aplicado professor de judô mantém as aulas. Com 38 alunos fixos e mais 50 para iniciar as aulas dentro das próximas semanas, a persistência de João já é a primeira grande vitória de toda essa ação. Crianças de toda a região, com idade a partir de 5 anos, já podem participar
das aulas e é o que tem acontecido: “chovido crianças”, como diz João Neto. A oportunidade tem deixado as mães da comunidade satsifeitas. Elas enxergam a iniciativa como um meio para deixar os filhos distantes das drogas e da violência. “Posso dizer que tenho filhos excelentes”, afirma Valdeci Silva Santos, que já tem dois filhos campeões, desde que treinam na academia de João Neto. DESTAQUE Se é para destacar um atleta na academia, sem dúvida, é a própria filha a principal representante. Não que os outros não sejam vitoriosos, afinal de contas, a academia é um verdadeiro centro de campeões. Brenda tem obtido muito sucesso junto ao judô, e passa a ser uma das principais representantes brasileiras
no esporte, por enquanto, na categoria Sub-17, mas com tudo para representar o Brasil mundo afora. Ela está entre as quatro melhores do país na categoria. Agora, pronta para voar pelo mundo, vai disputar na Ucrânia uma vaga que pode levála para o Campeonato Mundial, caso fique na primeira posição. Se ficar em segundo lugar, vai para o Panamericano. Já carrega no peito muitas medalhas: seis campeonatos pernambucanos, um brasileiro, um sulamericano e um vice-panamericano. O exemplo demonstra como o esporte modifica o futuro das pessoas, principalmente aqueles que se encontram à margem e esperam oportunidades que garantam boas perpectivas de vida e igualdade, além da profissionalização.