Eu só quero é ser feliz

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

FELIPE BAIERLE

EU SÓ QUERO É SER FELIZ O Funk como instrumento de protesto

Porto Alegre 2011


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FELIPE BAIERLE

EU SÓ QUERO É SER FELIZ O Funk como instrumento de protesto

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção de grau de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Gerbase

Porto Alegre 2011


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FELIPE BAIERLE

EU SÓ QUERO É SER FELIZ O Funk como instrumento de protesto

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção de grau de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovado em: ______de___________________de________.

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Gerbase

__________________________________________________ Prof. Fábian Chelkanoff Thier

__________________________________________________ Prof. Dr. Marco Antônio V. Villalobos

Porto Alegre 2011


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Dedico esta vitória à Marli Teresinha Pedroso. Faxineira, doméstica e dama de companhia que lutou muito para conseguir ver o único filho formado na faculdade. Toda a gratidão é pouca, mãe.


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AGRADECIMENTOS

Cá estou escrevendo os agradecimentos enquanto penso nos vários familiares e amigos que vão dar uma espiadela para ver se seus nomes estão aqui. Sim, é de ti mesmo que estou falando. Achou que eu não notaria? Bem, saiba que, para ser justo, teria de fazer uma interminável lista de citações. Como isso é inviável, quero agradecer a você que lê esta monografia. Também a quem se preocupou se eu a terminaria mesmo, ou ajudou com sugestões, conversas, dicas de livros, músicas, vídeos e programas sobre Funk. Contudo, estou miseravelmente em dívida com algumas pessoas sem as quais talvez nem existisse um Felipe-jornalista. Sou grato, em especial, à minha mulher, Débora, melhor amiga e principal entusiasta das mais loucas ideias que tenho – te amo (não custa lembrar). Foi ela quem, à força de faca, formatou este trabalho de acordo com as misteriosas normas da ABNT. Agradeço também ao meu pai, Cláudio, de quem herdei a teimosia e o gosto pela leitura, duas características imprescindíveis a todo bom jornalista; e à minha mãe, Marli, a quem devo a simpatia da família Pedroso. Desde 2006, na Famecos, tive a oportunidade de conviver com ótimos professores. Gostaria de ressaltar a generosidade do Vitor, que entre outras coisas me ajudou a trocar da Publicidade para o Jornalismo; a empolgada dedicação e simpatia sempre presentes do Fábian, um dos mais vocacionados docentes que conheci; e por fim, ao querido Leonam. Um artesão de repórteres desses que não se faz mais - jogaram a forma fora.


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“O Funk não é modismo, é uma necessidade. É pra calar os gemidos que existem nessa cidade.” Rap do Silva, Mc Bob Rum


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RESUMO

O presente trabalho é um esforço para entender o funcionamento do Funk enquanto instrumento de protesto. Além disso, através da análise de seu surgimento em meio à exclusão das favelas, tenta-se demonstrar as ligações existentes entre os problemas da população das periferias brasileiras e as manifestações musicais do universo do ritmo. A contribuição pretendida por esta obra é agregar algum conhecimento científico a um ritmo que transborda sabedoria popular.


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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 2 O CAPITALISMO SEGUNDO O MARX................................................................. 11 2.1 ORIGENS DA EXCLUSÃO SOCIAL ................................................................ 12 2.1.2 Exclusão Social Brasileira ......................................................................... 13 2.2 FAVELA, BERÇO DO FUNK ........................................................................... 15 3 MÚSICA COMO INSTRUMENTO DE PROTESTO ............................................... 20 4 O FUNK.................................................................................................................. 24 4.1 DO FUNKY AO BATIDÃO ............................................................................... 27 4.2 BAILE PROIBIDO ............................................................................................ 32 4.3 A ERA DO TAMBORZÃO ................................................................................ 35 4.4 MERCADO ...................................................................................................... 38 4.5 ANTROPOFAGIA ............................................................................................ 41 5 A MENSAGEM DO FUNK ..................................................................................... 45 5.1 FUNK CLÁSSICO ............................................................................................ 45 5.1.1 Rap da Felicidade, por Cidinho e Doca ..................................................... 46 5.1.2 Rap do Silva, por MC Bob Rum ................................................................ 47 5.2 FUNK ROMÂNTICO ........................................................................................ 49 5.2.1 Zona Oeste, Por Mc Marcinho e Mc Bob Rum .......................................... 49 5.2.2 Nosso Sonho, Por Claudinho e Buchecha ................................................ 50 5.3 FUNK PROIBIDÃO .......................................................................................... 52 5.3.1 Cachorro, Por Mr. Catra ............................................................................ 52 5.3.2 Morrer Como Homem É O Prêmio Da Guerra, Por Mc Smith ................... 53 5.4 FUNK SEXUAL ................................................................................................ 55 5.4.1 Fogão Dako, Por Tati Quebra-Barraco...................................................... 55 5.4.2 Prisioneira, Por Bonde Do Tigrão .............................................................. 56 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 58 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 60


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1 INTRODUÇÃO Este trabalho não pretende defender ou acusar o Funk. É uma empreitada para visualizar a instrumentalização da música e seus fins. Em outras palavras, se traduz em um olhar um pouco mais demorado sobre um ritmo popular às vezes revolucionário, às vezes preconceituoso, onde há doses abundantes da cultura nacional. Tem sido criada muito polêmica a cerca desse ritmo nos últimos anos. Se é música, ou se é barulho, se vale como manifestação cultural ou se simplesmente deve ser ignorado. O fato é que percorreu todo o Brasil e ganhou até mesmo o mundo. Poucas vezes se viu um tipo de música com tamanha capacidade de agradar e desagradar, de causar discussão. As críticas feitas pelo público e as feitas pelo próprio Funk motivaram a realização deste estudo. Nele tentar-se-á descobrir a representação da realidade contida nas letras de funques e suas diversas temáticas para entender melhor o que representam socialmente. No segundo capítulo haverá uma abordagem à conceitos explicativos da sociedade capitalista e seus principais mecanismos de funcionamento. Para tanto, teorias marxistas básicas embasarão a explicação da origem da exclusão social. Existem inúmeros revisionistas dos ensinamentos lançados por Karl Marx e Friedrich Engels desde o lançamento do Manifesto Comunista, em 1848. Entretanto, este estudo entende que as premissas básicas (teoria da mais valia, luta de classes, etc.) lançadas pelos autores seguem válidas. De acordo com essa ótica, a exclusão social terá um breve relato passando da Revolução Industrial até a formação dos grandes centros no Brasil e suas periferias. As favelas estão intimamente ligadas ao desenvolvimento do capitalismo nacional, pois são seu combustível e resultado ao mesmo tempo. O capítulo 3 exemplifica alguns casos em que as músicas foram usadas como instrumentos de transformação da realidade. O fenômeno não é exclusividade de nenhum país. Existem exemplos citados envolvendo os Estados Unidos, a Inglaterra, e claro, o Brasil.


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Em vários casos o engajamento da música e outras formas de arte na cultura política da época gerou a formação de um movimento onde forjou-se uma nova cultura e ética. O Punk tinha uma proposta de “Faça você mesmo” em oposição ao consumismo capitalista. Os hippies tinham o “Faça amor, não faça guerra”, um movimento propositivo contra o conflito no Vietnã. No quarto capítulo é descrito o nascimento da cultura Hip-Hop e o papel que teve para a periferia norte-americana. Dança, artes plásticas e música serviram de tábua de salvação a inúmeros jovens antes inseridos em contextos repletos de violência e drogas. Adiante o relato segue demonstranto o surgimento do Funky nos Estados Unidos. O Soul teve especial relevância aliado a grandes músicos do período. Depois as batidas eletrônicas surgidas em Miami tonificaram a mistura musical fazendo fãs no Brasil. Na década de 1990 o Funk importado se transmutou em músical nacional e espalhou-se cada vez mais por aqui. Atualmente o estilo tem uma gama de elementos próprios e variadas configurações. Além disso gera milhares de empregos em um exemplo gritante para a indústria da música. Na análise das músicas no capítulo 5 procurou-se escolher qualitativamente em relação aos estudos realizados sobre diversas temáticas do Funk nacional as canções que melhor representassem as demais e ao mesmo tempo tivessem se destacado pela grande aceitação do público, ou seja, as que fizeram sucesso. As letras de duas canções de cada tipo de Funk (Clássico, Romântico, Proibidão

e

Sexual)

serão

analisadas

de

acordo

com

um

critério

de

representatividade dentro do período ao qual pertencem. Todas as expressões, mesmo que chulas, serão mantidas integralmente, para manter intacto o objeto do estudo. Algumas palavras vão ser destacadas do corpo das canções com o fim de facilitar a interpretação da representação e crítica da realidade nelas contidas. O resultado dessa busca pelo conhecimento do que vêm dizendo as camadas excluídas da população brasileira pode não ser politicamente correto. Contudo, compõe a realidade que rodeia a parcela majoritária da população brasileira e deve ser ouvido.


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2 O CAPITALISMO SEGUNDO O MARX O mundo se modernizava com as mudanças trazidas pela Revolução Industrial quando Karl Marx e Friedrich Engels publicaram o Manifesto do Partido Comunista, em 1848. No texto são descritos os mecanismos econômicos que dividem a sociedade em dois lados inimigos. A burguesia, elite dona dos meios de produção e, por isso, acumuladora de capital; e o proletariado, massa de trabalhadores responsável por produzir riquezas. Entre um e outro há uma tensão que os autores batizaram de “Luta de Classes”: A história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre e oficial, em suma, opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição; empenhados numa luta sem trégua, ora velada, ora aberta, luta que a cada etapa conduziu a uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou ao aniquilamento das classes em confronto. (MARX & ENGELS, 2006, p. 23)

O avanço da mecanização industrial na Europa do século XVIII fez o modelo de acumulação de capitais migrar do comércio para a produção. De uma economia baseada essencialmente na agricultura, e, portanto no trabalho do camponês, passou-se a uma baseada em industrializados, feitos por operários. As máquinas permitiam que se produzisse mais em menos tempo. E uma maior quantidade de itens a vender significava também maior necessidade de compradores. Tais circunstâncias deram força para que os restos do feudalismo fossem pouco a pouco varridos do planeta. (VICENTINO, 2000). Marx e Engels (Ibid., p.27) argumentam que os capitalistas se propuseram a um jogo econômico em que se devia ganhar ou perder, sem meio termo: Com a criação da grande indústria e do mercado mundial, a burguesia conquistou finalmente a dominação política exclusiva do moderno Estado parlamentar (...). A burguesia desempenhou na História um papel revolucionário decisivo. Onde quer que tenha chegado ao poder, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Estilhaçou, sem piedade, os variegados laços feudais que subordinavam os homens a seus superiores


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naturais e não deixou subsistir entre estes outro laço senão o interesse nu e cru, o frio dinheiro vivo.

2.1 ORIGENS DA EXCLUSÃO SOCIAL O sistema econômico parido pela Revolução Industrial recebeu o nome de capitalismo. Marx (2006) o resumiu como uma sociedade em que a burguesia detém o poder por meio da exploração dos assalariados. Bem, um dos pressupostos para que a classe dominante acumule uma quantidade significativa de capital é que se minimizem os custos de produção, sendo o salário um deles: “O preço médio do trabalho assalariado é o salário mínimo, isto é, a soma dos meios de subsistência necessários para manter vivo o operário enquanto tal. O que o operário assalariado obtém por sua atividade é o estritamente necessário para garantir-lhe a sobrevivência. (...) Na sociedade burguesa, o trabalho vivo é apenas um meio para multiplicar o trabalho acumulado”. (MARX & ENGELS, 2006, p. 49 e 50).

Com esse exemplo, Marx queria demonstrar que os interesses das duas classes não são só contrários, mas inconciliáveis. Mesmo que a burguesia aumente os salários do proletariado, jamais vai reconhecer o caráter social que os bens gerados possuem, pois isso significaria ter de dividir o poder deles advindos. Nas palavras do próprio Manifesto: “O capital é um produto coletivo e só pode ser mobilizado pela atividade comum de inúmeros membros e, em última instância, apenas pela atividade de todos os membros da sociedade. Portanto, o capital não é uma força pessoal. É uma força social”. (Ibid., 49).

Isto é, a coletividade torna o capitalismo possível, embora apenas uma parcela da população se beneficie do processo. Ao se tomar o capital, na forma do lucro, em benefício de umas poucas pessoas, outras tantas ficam de fora da participação da riqueza. Eis o motor da exclusão. Sobre isso, Campos (2004, p. 29) afirma que: “(...) a exclusão social assume características de natureza política e econômica, fazendo com que alguns segmentos sociais sejam algo porque têm, enquanto outros não sejam porque não têm e, possivelmente, jamais


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serão, pois nunca terão. Em síntese, as raízes da exclusão social encontram-se inseridas nos problemas gerais da sociedade.

Em termos práticos, pode-se dizer que experimentam algum grau de exclusão os indivíduos que não têm acesso ao mercado de trabalho, moradia, transporte, educação, alimentação, segurança e demais direitos básicos do ser humano. 2.1.2 Exclusão Social Brasileira A desigualdade está ligada ao funcionamento da sociedade brasileira desde que os indígenas tiveram a má sorte de topar com os portugueses em 22 de abril de 1500. Nenhuma das melhorias nas condições de vida que ocorreram desde então pôde efetivamente trazer bem estar suficiente para garantir os direitos básicos do povo. O fim da escravidão colocou os negros formalmente dentro da sociedade. Porém, o governo não se preocupou em criar estratégias de inclusão que os permitissem alcançar a cidadania plena, gozando de todos os direitos civis. Mesmo hoje, a 123 anos de distância da publicação da Lei Áurea, os negros continuam sofrendo com o preconceito, ocupam postos de trabalho piores, ganham menos, têm menor escolaridade, e consequentemente, compõe grande parte da população que ocupa as periferias. Verdade seja dita, o Brasil é uma democracia relativamente nova. Apenas a partir das constituições de 1934 e 1946 iniciou-se o processo de difusão de direitos políticos como o voto, excetuando-se os analfabetos. Para ilustrar, em 1930, apenas 5,6% dos brasileiros foram às urnas. (CAMPOS, 2004, p. 33 e 34) Com o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), iniciaram-se reformas importantes em função do advento dos direitos trabalhistas. A população das cidades foi quem mais se beneficiou do processo, já que estava apta a assumir os postos da indústria nascente. Quem morava no campo vendeu o que tinha e mudouse para a cidade grande em busca de melhores oportunidades. Assim nasceu o êxodo rural. Sem renda suficiente para comprar uma casa em áreas com boa infra-estrutura, essas pessoas foram parar em cima de morros e áreas verdes, lugares então sem as mínimas condições de moradia. Filhos e netos aprofundaram o processo indo cada vez mais longe para conseguir um local onde erguer um teto sob o qual viver.


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Para piorar, os que optaram por continuar no campo ficaram desassistidos das políticas de proteção social aos trabalhadores até a década de 1960, quando surgiram o Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e a instalação do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (1967). (Ibidem) Nota-se a partir deste breve histórico que a população brasileira passou por profundas reestruturações ao longo do último século. Inchamento demográfico das capitais e aparecimento de áreas de extrema pobreza foram apenas algumas das mudanças observadas. Como resultado, vê-se um dos países com a pior distribuição de renda do mundo. Enquanto algumas pessoas têm níveis de vida somente comparados aos dos habitantes da Europa, outras possuem dificuldades até mesmo para garantir o pão de cada dia. Economistas produziram um cálculo capaz de demonstrar por „a mais b‟ a posição do Brasil em relação à desigualdade. A quantidade média de calorias necessárias à subsistência de um adulto foi levantada e, a partir dela, chegou-se a uma cesta básica de alimentos. Depois, converteu-se o valor destes alimentos em um custo para adquiri-los. As pessoas desprovidas de renda suficiente para comprar a cesta são consideradas indigentes. Para chegar à linha da pobreza, acrescentaram-se despesas gerais com transporte, habitação, roupas, etc. Assim, partindo deste instrumento de medição, no Brasil existem cerca de 24,7 milhões de indigentes (pessoas vivendo na pobreza absoluta) e 56,9 milhões de pobres. É importante ressaltar que para um indivíduo fazer parte dos 10% mais ricos, precisa ter uma média mensal de R$ 571. Portanto, uma família de quatro pessoas que tenha renda média mensal de R$ 2.284 pertence ao grupo dos 10% mais ricos, que detém 50% da renda nacional. No Brasil, a classe média está entre a camada mais rica e, os pobres, seriam a verdadeira classe média. Por outro lado, as elites brasileiras, representadas por 0,03% da população, têm renda média mensal de aproximadamente R$ 22,65 mil. (PEREIRA, 2009, p. 69)

Como se não bastasse, o emprego formal passou a ser objeto raro enquanto as ocupações informais e o desemprego absoluto continuam em níveis alarmantes. Isso aumenta a precarização das condições de trabalho e vem moldando as estratégias de sobrevivência de uma população à margem da sociedade. (CAMPOS, 2004).


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2.2 FAVELA, BERÇO DO FUNK Não é objetivo deste trabalho dissecar os mecanismos geradores da pobreza. Economistas, filósofos e incontáveis teóricos já o fizeram – e continuam fazendo incansavelmente. Contudo, é importante notar que a realidade do brasileiro excluído, apesar de conter diferenças regionais e mesmo de natureza, pertence a uma mesma raiz, o sistema capitalista. E tendo uma origem igual em suas manifestações, produziu certas similaridades Brasil afora. Uma delas é a periferia. A região povoada de pobres que circunda todas as grandes cidades do país também recebe o nome de favela, vila, gueto, comunidade, morro. Trocando em miúdos acaba sendo sempre o mesmo, um retrato da divisão do povo em duas metades, como dois lados de uma mesma moeda. Em geral, situase longe das áreas centrais, têm pouca ou nenhuma infra-estrutura e é conhecida pela pobreza e altos índices de violência: Uma característica comum a todas as cidades brasileiras, independentemente de sua região, história, economia ou tamanho, é o fato de cada uma delas apresentar um contraste entre uma parte da cidade que possui alguma condição de urbanidade (...) e outra parte, em geral duas a três vezes maior que a primeira cuja infra-estrutura é incompleta, o urbanismo inexiste, que se aproxima muito mais da ideia de um acampamento do que propriamente de uma cidade. (ROLNIK, 2002, p. 54)

As periferias despertam um interesse óbvio para o desenvolvimento deste estudo, pois, em seu seio, mais especificamente nas favelas do Rio de Janeiro, que um ritmo musical originado nos Estados Unidos „abrasileirou-se‟. O Funk, hoje reconhecido mundialmente, está ligado às condições de vida dos moradores desses locais servindo-lhes de instrumento contra a exclusão. Guimarães Rosa escreveu que “O sapo não pula por boniteza, mas, porém por precisão”, uma frase que é uma pequena jóia de sua obra. Assim como o sapo, os favelados não cantam Funk apenas por vontade de fazer arte (uma boniteza), e sim como válvula de escape (uma precisão) – ainda mais que a mídia têm demonstrado há muito uma certa incapacidade de revelar a realidade do pobre em sua amplitude. Adiante, será analisada integralmente a letra de um dos maiores clássicos que o Funk produziu no Brasil, Rap do Silva, no qual MC Bob Rum canta a história


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de um moço trabalhador, pai de família, que é assassinado pouco antes de entrar em uma festa aonde iria se divertir. Por hora, a reprodução de uma pequena compilação da letra já serve para dar a dimensão da relação que o morador da favela tem com o Funk: Todo mundo devia nessa história se ligar / Por que tem muito amigo que vai pro baile dançar / Esquecer os atritos, deixar a vida pra lá / E entender o sentido quando o DJ detonar / (...) Era só mais um Silva que a estrela não brilha / Ele era funqueiro, mas era pai de família / Era trabalhador, pegava o trem lotado / Tinha boa vizinhança, era considerado / E todo mundo dizia que era um cara maneiro / Outros o criticavam por que ele era funqueiro / O Funk não é modismo, é uma necessidade / É pra calar os gemidos que existem nessa cidade (...)

A canção não deixa dúvidas. Tanto em “O Funk não é modismo, é uma necessidade” como em “esquecer os atritos, deixar a vida pra lá” são oferecidas referências diretas à importância da música nas comunidades, que além de escapismo da realidade, demonstra elementos contra-hegemônicos na batalha pela representação do pobre no imaginário coletivo. Por outro lado, o retrato que os grandes veículos fazem da cidade evidencia os extremos da mesma enquanto evita abordar o tema de real importância. Como, por exemplo, as ligações invisíveis que existem entre pobres e ricos, proletários e burgueses, os que têm e os que não. A imagem do Pão de Açúcar vista pela televisão nas novelas é drasticamente sobrepujada pelas centenas de malocas mostradas nos telejornais, como se fossem duas cidades totalmente diferentes, e não uma só. (CAMPOS, 2004, p. 98) Mas afinal, o que é uma favela? Segundo o dicionário MiniAurélio (2006), seria um “conjunto de habitações populares, em geral toscamente construídas e usualmente deficientes de recursos higiênicos”. Favela é isso, realmente. Porém, não é só isso: A visão míope do asfalto – termo que os próprios favelados inventaram para designar o resto da cidade – é a de que cada favela não passa de uma violenta aglomeração de pessoas, amontoadas em barracos, disputando a proteção de quadrilhas de traficantes. Em muitos casos, essa promiscuidade existe (...). Mas, em geral, o que se chama indistintamente de favelas, quase sempre em tom pejorativo, são bairros pobres, erguidos de forma clandestina, que se consolidam através da luta solitária de seus moradores. (PEDROSA et. al., 1990, p. 7 e 8)


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E, de acordo com a socióloga Lícia Valladares, favela também é o nome dado a uma pequena árvore da família das leguminosas, conhecida na Região Nordeste do Brasil como uma planta espinhenta, que dá madeira dura e pesada, utilizada em marcenaria. Conta-se que, no fim do século passado, depois da Guerra de Canudos, os soldados sobreviventes vieram do Estado da Bahia para a Capital da República, em busca de ajuda do governo, e se instalaram em alojamentos improvisados no Morro da Providência, no Centro do Rio. Lá encontraram a mesma planta que conheciam no Nordeste e, assim, estabeleceram um paralelo entre os morros de Canudos e a paisagem do Rio de Janeiro. (VALLADARES apud PEDROSA et. al., 1990, p. 15)

Observando a periferia carioca do início da década de 1990 através da ótica do Funk Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, pode-se entrever elementos importantes da vida nessas comunidades atravessadas pela exclusão: Eu só quero é ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci / E poder me orgulhar / E ter a consciência que o pobre tem seu lugar / Minha cara autoridade eu já não sei o que fazer / Com tanta violência eu tô com medo de viver / Pois moro na favela e sou muito desrespeitado / A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado / Eu faço uma oração para uma santa protetora / Mas sou interrompido a tiros de metralhadora / Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela / O pobre é humilhado, esculachado na favela / Já não agüento mais essa onda de violência / Só peço à autoridade um pouco mais de competência (...)

Mesmo hoje é surpreendente constatar a objetividade dessa letra ao ilustrar a realidade da Cidade Maravilhosa. Uma captura que se faz de maneira espontânea, despretensiosa. O personagem da canção avisa logo de cara, “eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, deixando uma impressão de falta de ambição e simplicidade. A segunda parte da canção vai ainda mais fundo no recado à “autoridade”: Diversão, hoje em dia, não podemos nem pensar / Pois até lá nos bailes eles vêm nos humilhar / Ficar lá na praça que era tudo tão normal / Agora virou moda a violência no local / Pessoas inocentes, que não têm nada a ver / Estão perdendo hoje o seu direito de viver / Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela / Só vejo paisagem muito lida e muito bela / Quem vai pro exterior da favela sente saudade / O gringo vem aqui e não conhece a realidade / Vai pra zona sul pra conhecer água de coco / E o pobre na favela vive passando sufoco / Trocar a presidência é uma nova esperança / Sofri na tempestade agora quero a bonança / O povo tem a força, precisa descobrir / Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui (...)


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Rap da Felicidade pretende mandar um recado para as elites, materializadas aqui pela palavra “autoridade”, a partir de um ponto de vista que antes do advento do Funk brasileiro, ou carioca, não existia. A única representação de massa disponível para informar a população era a das notícias, que quase invariavelmente abordavam somente fatos negativos dessas comunidades. Cidinho e Doca, autores da canção, parecem tentar atingir dois objetivos principais. Fazer um apelo aos governantes, como já foi dito, e também, só que de forma mais velada, chamar o povo à ação. “O povo tem a força, só precisa descobrir”, é a materialização desse desejo de mudança, notado também em “Trocar a presidência é uma nova esperança”, letra que em matéria de propositividade não deixa nada a desejar a muitos clássicos da Música Popular Brasileira chamados de “músicas engajadas”. Apesar de a letra tratar em específico da realidade carioca, outras tantas cidades do país poderiam ser chamadas de excludentes. Como explica Rolnik (2002, p. 54), a desigualdade está espalhada pelos quatro cantos do país: Essa estrutura apresenta-se no território sob várias morfologias: nas imensas diferenças entre as áreas centrais e as periféricas das regiões metropolitanas de São Paulo ou Belo Horizonte; na ocupação precária do mangue em contraposição à alta qualidade dos bairros da orla, em muitas cidades de beira-mar; na eterna linha divisória entre o morro e o asfalto no Rio, e em muitas outras variantes dessa cisão das nossas cidades, que se repete permanentemente em nossa história e geografia urbana.

Em pesquisa solicitada pela Central Única das Favelas - CUFA, órgão do terceiro setor que atua em benefício da periferia carioca, realizada pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social - IBPS, favelados do Rio foram estimulados a contar o que pensavam sobre suas condições de vida. O IBPS ouviu 1074 pessoas de 27 de fevereiro a 11 de março de 2008. A pesquisa concluiu que, na visão dos moradores, a imagem social da periferia é “completamente distorcida”, sendo que essas regiões não são “redutos de marginais” (resposta dada por 85,1% das pessoas) e também não são lugar apenas de “negros e pobres” (93,1%), redundando em um total de 65,4% de entrevistados que acham “a cobertura que a imprensa faz dos acontecimentos na favela sensacionalista”. (INSTITUTO BRASILEIRO DE PESQUISA SOCIAL, [2008]) De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social ([2008]):


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Os entrevistados se vêem como cidadãos de segunda categoria, de baixa condição social (46.5%) e de baixa condição econômica (57.3%). Para eles, a razão fundamental para essa condição social e econômica é a "falta de instrução" (30.3%). Para 14.2% o favelado foi "abandonado pela sociedade". Para 11.6% ele é discriminado e para apenas 6.1% essa situação se deve à acomodação do favelado.

É no mínimo curioso que os moradores das favelas se sintam como cidadãos de segunda categoria ao mesmo tempo em que 42% acreditam viver na mesma condição social dos moradores do asfalto, 36% pensam que quem vive na favela tem rendimentos iguais aos dos outros habitantes do Rio e 57% concordam que ganham menos. Os dados são contraditórios, mas fazem sentido tendo em vista o contraste entre os setores mais antigos dos morros, normalmente nas partes mais baixas, onde se registram progressos substanciais de urbanização recente, e as áreas mais altas, onde continuam se expandindo as habitações mais modestas, sem água, luz e saneamento. Como as grandes cidades, os morros também estão divididos entre os centros mais ricos e a periferia mais miserável, verdadeira favela da favela. (PEDROSA et. al., 1990, p. 10)

Nas comunidades existe a mesma desigualdade vista por toda a cidade. Lá também, já dizia a letra de Rap da Felicidade, “a tristeza e alegria caminham lado a lado”.


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3 MÚSICA COMO INSTRUMENTO DE PROTESTO É só falar de músicas de protesto para lembrar da Música Popular Brasileira (MPB) e do Regime Militar. Mas o fato é que existem inúmeras outras canções com caráter contestador além da MPB. Uma das formas mais ancestrais, não exatamente de protesto, mas de resistência que o Brasil conheceu está ligada à Capoeira. As músicas da luta criada pelos africanos escravos para agir, no momento certo da fuga ou assassinato de seus senhores, possuem um caráter libertador, e refletem essa proposta: A capoeira é uma forma de expressar e louvar a liberdade. Sua música expressa a liberdade do espírito, e a dança, a liberdade do corpo. Mas desde sua criação, durante a escravidão, a capoeira sempre foi uma luta e é justamente isso que é representado dentro das rodas. (SCHROEDER, 1994, p. 37)

A nível internacional, a diversidade musical do movimento Hippie e sua ideologia de contracultura, principalmente na década de 1960, também servem para ilustrar o conceito de música enquanto arma de protesto. Nesse caso, a luta pacifista foi proposta com elementos de moda, filosofia de vida, cinema, musicalidade e valores morais totalmente próprios. Os ritmos preferidos do movimento eram o Folk, o Rock n‟ Roll e o Blues. Em 1969, aconteceu em Nova York, EUA, uma grande reunião de diversos músicos no Woodstock, festival pensado para ser um grande protesto positivo contra a guerra do Vietnã e pelo amor. No memorável espetáculo de três dias tocaram Santana, Creedence, Janis Joplin, The Who, Jimi Hendrix e muitos outros. Mais tarde, na década de 1970, outro movimento herdaria o legado de contracultura deixado pelos Hippies. Objetivando uma oposição à tese de nãoviolência, se caracterizam pela agressividade das músicas, vestimentas, artes, etc. Um dos principais ideais do Punk é o “faça você mesmo” em contraposição ao consumo exagerado do capitalismo. Nasceu a partir do Punk Rock difundido principalmente pela banda Ramones, nos Estados Unidos, em 1974. Mais tarde, a introdução de Sid Vicious na banda inglesa Sex Pistols redundaria na criação do ritmo Punk, caracterizado pela orientação anarquista, desprezo dos valores sociais vigentes e a simplicidade das músicas que poderiam ser tocadas com três ou quatro acordes.


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No Brasil, durante a Ditadura Militar o governo utilizava a música para propagandear uma ideologia xenófoba e moralista. A intenção era propagar mensagens que induzissem ao esquecimento dos problemas sociais. Por outro lado, a juventude inaugurava um conceito diferente. Este pregava o uso de canções como método de resistência ao regime. Assim nasceu, no final da década de 1960, a Música Popular Brasileira. Constituiu-se, durante os 21 anos de Ditadura, um dos métodos contra-hegemônicos preferidos da esquerda. Sobre isto, Geraldo Vandré, um dos compositores ícones do período, declarou: Acho que em canção popular a música deve ser uma funcionária despudorada do texto. Isso não quer dizer que não se devam usar os recursos artesanais, com a maior disponibilidade possível, para o desenvolvimento de uma ideologia musical nacional. Mas é preciso ter um cuidado muito grande para que o uso desses recursos esteja realmente a serviço do texto, que é fundamental na canção popular. (in NERCOLINI, 2006, p. 129)

A contribuição da MPB para a retomada da democracia foi nada menos que fundamental. Com a censura à imprensa, era por essa via – ainda que de maneira velada – que se podia informar as pessoas sobre os abusos dos militares. Alguns ícones do período são Chico Buarque, Elis Regina, Jair Rodrigues, Tom Jobim e Geraldo Vandré. Ainda assim, nem mesmo as canções de protesto eram unanimidade. Liderados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, o movimento tropicalista entendia que a música popular tendia a resumir tudo em bom ou mau, engajado ou não, nacional ou estrangeiro, atrasando a retomada do que chamavam de “linha evolutiva” da música brasileira. O próprio Caetano afirmou: A questão da música popular brasileira vem sendo posta ultimamente em termos de fidelidade e comunicação com o povo brasileiro. Quer dizer: sempre se discute se o importante é ter uma visão ideológica dos problemas brasileiros, e a música é boa, desde que exponha bem essa visão; ou se devemos retomar ou apenas aceitar a música primitiva brasileira. (VELOSO in NERCOLINI, 2006, p. 130).

Na década de 1960, a Jovem Guarda de Roberto Carlos e Renato e Seus Blue Caps dissemina o Rock no país. Os intelectuais da MPB reclamaram muito do que consideraram entreguismo cultural. Uma das afirmações recorrentes era que as músicas não possuíam crítica social. Realmente, os primeiros tempos do Rock


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nacional não são famosos pelo protesto. Havia sim uma influência renovadora baseada em Elvis Presley e Beatles pairando no ar. Na década de 1970 surge o fenômeno Raul Seixas. Suas músicas são críticas debochadas da sociedade se tornando um ataque bem-humorado ao Regime Militar. Por sua atuação marcadamente política foi retirado algemado de apresentações e teve diversas músicas censuradas. Seixas vendeu centenas de milhares de discos tendo imortalizado canções como “Ouro de Tolo”, “Mosca na Sopa”, “Rock das Aranhas”, “Maluco Beleza”, “Metamorfose Ambulante” e “Tente Outra Vez”. O Rock estava solidificado enquanto ritmo no Brasil quando Renato Russo criou a Legião Urbana. A banda dos anos 1980 tem basicamente três tipos de composições: românticas (“Eduardo e Mônica”), motivacionais (“Metal Contra as Nuvens”), e as de protesto (“Índios”, “Faroeste Caboclo”, “Teatro dos Vampiros”, “Geração Coca-Cola”). Até hoje, a Legião é uma das bandas mais tocadas em rádios Brasil afora. Alguns de seus contemporâneos são os Titãs, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Biquíni Cavadão e Engenheiros do Havaí. Cada uma a seu modo, todas essas bandas tornaram célebres composições que criticam a sociedade de alguma forma. Passadas as mobilizações eufóricas dos anos 1970 e começo dos 80, a cena política começou a esfriar. A esperança de que a Constituição de 1988, aliada à volta da democracia, fosse resolver as mazelas do país era grande. Nesse contexto de arrefecimento se gestava o Funk carioca. Seus elementos continham um pouco de tudo que já tinha sido feito na música brasileira, deboche, contracultura, antropofagia, elementos populares, música, dança, artes plásticas, enfim. Diferente dos outros estilos, entretanto, a base que o mantinha vivo tinha endereço nas zonas periféricas do Rio de Janeiro e nenhuma conexão com intelectuais, esquerda ou grupos da moda. Resumindo, em palavras imortalizadas pelo próprio ritmo, era “som de preto, de favelado”. Podendo assumir mil e uma facetas, tinha e tem também a cara de reivindicação. Isso se deve muito à ligação com o Movimento Hip-Hop, surgido nos Estados Unidos em uma situação de resistência à exclusão. Desde sempre foi tratado de maneira preconceituosa tendo chegado mesmo a ser proibido por lei no estado do Rio de Janeiro (o assunto será abordado adiante):


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Em um momento em que a arena política está desgastada, em que poucos se sentem dispostos a militar em nome de qualquer causa, esses jovens, atuando na esfera da cultura (mas não restritos a ela), com uma sociabilidade, um espetáculo que envolve músicas, danças, roupas e desenhos, conseguiram encantar, chamar a atenção de uma sociedade e, eventualmente, mobilizá-la, fazendo com que ela refletisse especialmente sobre um “mundo” – marcado pela exclusão, violência e pela miséria – que incomoda e que é próximo e, ao mesmo tempo, distante. (HERSCHMANN, 2000, p. 282)

A contestação pró-ativa da realidade social por meio da música nem sempre acontece de forma igual. Em entrevista concedida à Herschmann, a cantora de rap Ed Whiller afirma que o Funk, em si, já é uma tentativa de renovação, uma proposta diferente: Essa coisa de contar a realidade está mudando para a juventude... A gente sabe que, na época de 1964, os estudantes se juntavam no centro da cidade e resolviam fazer passeatas e tal... Então, a gente ta procurando um outro modo pô... tem criança de rua sendo exterminada e gente morrendo de fome... Então vamos arrumar uma outra maneira... vamos colocar uma batida e falar em cima dessa batida que depois acaba ficando na cabeça dos outros... É o jeito que o jovem hoje está arrumando para passar isso. Antigamente, eu acho que a coisa era mais politizada, uma coisa mais de movimento negro mesmo, entendeu? Hoje em dia o pessoal está mais aberto... você não precisa ser politizado, você não precisa pertencer a uma entidade com uma causa, uma bandeira a seguir para entrar no movimento hip-hop ou para fazer rap. Se você não está contente com uma coisa que você está vendo debaixo do seu nariz, você escreve, canta... (WHILLER in HERSCHMANN, 2000, p. 56)

Desde seu nascimento, na década de 1990, o Funk provoca uma quebra no imaginário social brasileiro da suposta sociedade pacífica, alegre onde não há preconceito racial. Não que o povo seja triste ou goste de guerra, pelo contrário, mas traz nas músicas representações de sexualização, consumismo, violência e machismo, que, como alerta Herschmann (2000, p. 33) “esboça um imaginário social que, sem descartar totalmente a antiga imagem do país, estabelece um novo „retrato‟ do Brasil, marcado pela pluralidade e por fraturas sociais profundas”.


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4 O FUNK O Funk ultrapassou o simples status de música. Assumir-se funqueiro significa pertencer à determinada tribo, estar ligado a certo tipo de gente e se identificar com seus costumes, estilos, roupas e gírias. Contudo, mesmo sendo uma manifestação cultural distinta e independente, na origem, o ritmo apareceu ligado a um movimento. Surgido no Bronx (periferia de Nova York), o Hip-Hop dos anos 1970 apresentava uma proposta de disputa artística. A intenção era promover a transformação da violência em manifestação cultural. Muito parecido com o Funk brasileiro, o Hip-Hop também se propunha um instrumento de crítica e transformação advindo dos excluídos. (TOCHA, [2006]) No Bronx da década de 1960 privilegiou-se uma política de infra-estrutura que causou a desvalorização do bairro. A construção de uma via expressa e grandes complexos de apartamentos aceleraram um processo que significou o êxodo da classe média do local, então composta por descendentes de europeus, e a chegada de afro-descendentes e latinos de origem pobre. Em virtude do abandono por parte do governo, o bairro viu crescer a pobreza, violência e crimes relacionados ao consumo de drogas. (Ibidem) Em 1968, um grupo de adolescentes autodenominados “Savage Seven” (Sete Selvagens) criou a primeira gangue de rua do lugar. Logo após, surgiram outros tantos jovens que tinham em comum o único objetivo de se impor enquanto poder armado. (Ibidem) Tal foi o avanço da criminalidade que em menos de dez anos o Bronx deixou de ser um pacato bairro suburbano de classe média e passou a ser conhecido exclusivamente pelos altos índices de violência: Depois que as atividades das gangues alcançaram o topo da criminalidade em 73, elas começaram a se acabar uma a uma. A razão para isto pode ser encontrada em níveis diferentes. As gangues estavam brigando, muitas estavam envolvidas em crimes, drogas e miséria. E muitos integrantes não quiseram mais se envolver com isso, o tempo estava mudando e as pessoas da década de 70 estavam à procura de festas em clubes, apenas diversão, dançar, curtir a música cada vez mais e mais. (Ibidem)


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Ao propor uma maneira pacífica de fugir do anonimato, de ser reconhecido enquanto indivíduo importante dentro da comunidade, o Hip-Hop obteve rápido crescimento. Muitos perceberam que era melhor disputar um concurso de habilidades artísticas do que se envolver em crimes. E até mesmo o tempo de dedicação exigido para se aperfeiçoar na cultura limitou a atuação nas gangues. (TOCHA, [2006]) Basicamente, são quatro os campos de atuação reunidos pelo movimento: o DJing, que é o músico criador do som que acompanha as letras; o B.Boying, uma mistura de coreógrafo e dançarino; o MCing, que canta e compõe; e o Writing, artista plástico. No Brasil, essas denominações sofreram pequenas simplificações para DJ (Disk Jóquei), MC (Mestre de Cerimônia) B.Boy (dançarino) e Grafiteiro. (Ibidem) Apesar da alteração nos nomes, as funções continuam as mesmas desde sua criação na distante década de 1970. Uma das poucas diferenças é que hoje a figura do B.Boy é bem menos comum que as demais. A criação do Hip-Hop em sua forma final é largamente atribuída a Kool Herc. Aos 12 anos, em 1967, ele imigrou de Kingston, Jamaica, para Nova York. Trouxe consigo a experiência musical de seu país, onde naquela época estava na moda o uso de Sound Sistems, potentes equipamentos de som portáteis capazes de atrair inúmeras pessoas. Em 1973, Herc já chamava a atenção através de seu som. No Bronx, várias pessoas o seguiam pelas ruas para escutar o DJ que tinha por principal característica a cultura de Sound System. Tocava Reggae e outras canções jamaicanas de maneira que as pessoas não parassem de dançar um só instante, entretanto, obteve maior êxito quando passou a tocar Funky (o ancestral do Funk brasileiro) e Soul. (Ibidem) Durante as discotecagens (maneira atual de denominar o trabalho dos DJs), Herc não gostava de passar as músicas na íntegra, se limitava apenas a parte que as pessoas preferiam, o break, pequeno trecho onde há apenas o som eletrônico sem a intervenção do MC (adiante, quando for tratada a história específica do Funk carioca será observado um fenômeno bem parecido com este): Os "Breaks" das canções eram só alguns segundos, ele os ampliou usando dois toca-discos com dois discos iguais, dando o nome de Break-Beat, o fundamento musical para B.Boys e B.Girls (Breaker-boys, Breaker-girls) e os MC's (Os Mestres de Cerimônias, artistas no microfone que divertem as pessoas fazendo-as dançar com suas rimas), às vezes comparável ao "Toast" jamaicano, Kool Herc usou algumas frases para fazer as pessoas


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dançarem e dar boas vindas aos amigos. Mas quando os misturava as batidas ficavam mais complicados, mais concentração, assim foi entretendo a multidão, ficando complicado fazer várias coisas ao mesmo tempo, com o microfone não era mais possível, ele passou o microfone para 2 amigos que representaram o primeiro time de MC: Coke La Rock e Clark Kent. (TOCHA, [2006]).

Fruto do trabalho de Herc e seus contemporâneos surgiram breaks como Incredible Bongo Band, com Apache; James Brown, com Funky Drummer; e Give ir u, por Turn Loose. Outra pessoa de grande importância para a cultura Hip-Hop foi Afrika Bambaataa, cujo nome real era Kahyan Aasim. Ele reuniu os elementos que apareciam de forma espontânea e ajudou a propor as bases do que viria a ser o HipHop mais tarde, com a influência decisiva de Kool Herc. Membro da gangue de rua “Black Spades” (espadas negras), Bambaataa era ex-DJ, fã e colecionador de discos. Adquiriu seu próprio Sound System após assistir uma apresentação de Herc, em 1973, se tornando novamente DJ. Essa mudança de interesse e a dedicação cobrada pela atuação nas festas determinou o fim de sua vida criminosa. Tempos depois

seria

conhecido

ainda

mais

pela

atuação

na

Organização

Não

Governamental (ONG) “Bronx River Organization”, dedicada a lutar pela dissolução de gangues como a que fizera parte. (Ibidem) No ano de 1974 a ONG passou a se chamar “Zulu Nation” e adquiriu um caráter de contracultura bem demarcado. Bambaataa a batizou dessa forma por que na época tinha realizado alguns estudos sobre a África. Os Zulus o impressionaram por serem guerreiros corajosos. Segundo a lenda eles lutavam contra o poderio do colonialismo europeu contando apenas com armas artesanais e a coragem. (Ibidem) Dentre os tantos jovens que se uniam à organização, estiveram cinco dançarinos. Eles eram chamados de “Shaka Zulu King” (Shaka era o nome de um dos mais influentes líderes dos Zulus), ou apenas “Zulu Kings” (Reis Zulus). O grupo se transformou em uma referência para vários B.Boys, pois costumavam ser os dançarinos mais alegres das festas onde iam – característica também observada décadas mais tarde por Vianna (1987) em sua tese de mestrado sobre o baile Funk carioca. Afrika Bambaataa aproveitava as festas que aconteciam através de sua ONG para difundir a recém criada cultura Hip-Hop e dar aos jovens uma porta de saída da violência. (TOCHA, [2006]) Durante algum tempo a habilidade dos DJs ofuscou os MCs, que eram não os cantores que se conhece agora, mas mestres de cerimônias que faziam pequenas


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intervenções nas músicas. A evolução se deu pelas rimas cada vez mais complexas e necessárias para agradar o público: Assim seria o Hip-Hop para muitos, DJs descobrindo e criando os breakbeats, MC's rimando, BBoys dançando e a maioria dos membros da cultura Hip-Hop também eram escritores. Bambaataa os usou para espalhar sua mensagem, "lutar com criatividade, não com violência!" Com a integração dos 4 elementos da cultura Hip-Hop, a vontade de competir era geral, empurrando todos permanentemente a melhorar e ser o mais criativo possível. (TOCHA, [2006])

4.1 DO FUNKY AO BATIDÃO Enquanto, no começo dos anos 1970, o Hip-Hop recém germinava nos Estados Unidos, a Soul Music fazia sucesso no Brasil nas músicas de James Brown. JB‟s, Stevie Wonder, Jackson Five, George Clinton, Marvin Gaye, Lionel Ritche e diversos grupos vocais como Temptations, Pretenders, The Miracles, Supremes e Blue Magic também estavam em alta. (AMARAL, 2010, p.135) Muitos desses músicos foram co-responsáveis pela criação de um novo ritmo, que surgiu ao se misturar Rhythm & Blues e Gospel. A experiência resultou no nascimento do Soul, que por sua vez serviu de base ao Funky. Embora apareça com as características pelas quais seria consagrada nos Estados Unidos somente no início dos anos 1970, a palavra Funky já era citada em um Jazz de Mezz Mezzrow, nos anos 1930. Com efeito, essa expressão era conhecida dentro do mundo da música negra norte-americana há muito tempo. Havia o costume de chamar assim músicas mais suaves. Estas canções depois inspirariam a criação de um ritmo mais solto, sexy e repleto de refrões, o Soul. Durante as sessões de improviso de Jazz, conhecidas por Jams Sessions, era comum que os músicos se provocassem a deixar as músicas mais sensuais colocando um pouco mais de “funky”, sendo tratado à moda de tempero musical. Apesar disso, foi apenas depois de James Brown que o gênero pôde se distinguir inteiramente dos demais. Em 1965, a música “Papa‟s Got a Brand New Bag” fez estourar de vez o tipo de som que passou a ser uma das marcas da nascente cultura Hip-Hop. Contudo, é preciso destacar que outra música de Brown, “Outta Sight”, lançada em 1964, já continha a base rítmica modelo do sucesso Papa‟s Got a Brand New Bag.


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O Funky evoluiu por caminhos diferentes durante sua trajetória, mas alcançou status de ritmo original ao mesclar elementos de Jazz, R&B e por último, Soul. O interessante disso tudo é que, assim como no Brasil atual, o ritmo foi vítima de um preconceito feroz de uma sociedade que o considerava indecente. Os motivos que levavam os norte-americanos de 1960 a rotular o Funky de indecente, claro, eram completamente diferentes dos que geraram essa denominação por aqui, muitos anos depois. Isso se devia mais à sensualidade da própria música do que a menções explícitas das letras: o contrabaixo em evidência somado à melodia marcante dos metais e baterias de ritmos dançantes eram considerados motivo de escândalo. (BRASIL ESCOLA SITE [2011]) Pegando carona no Movimento Hip-Hop, se dividiu em outros subgêneros que tinham por marca comum o fato de misturarem diversos estilos. Uma dessas mutações foi o P-Funk, criado pelo músico George Clinton e suas bandas Parliament e Funkadelic. Era o início de uma batida mais pesada influenciada diretamente pela psicodelia. A esse período se deve o aparecimento de diversos grupos, entre eles Commodores, Lakeside e (note a conexão com o Hip-Hop), Kool Herc and the Herculords. Músicos brasileiros que

haviam

visitado

os

Estados

Unidos

ficaram

interessados na nova tendência e passaram a colocá-la em prática. Esse foi o caso de Tim Maia, Sandra de Sá, Tony Tornado, Gérson King Kombo, Lady Zu, Banda Black Rio, entre tantos outros que faziam apresentações nos bailes suburbanos e trabalhavam com „playback‟ com apoio das equipes de som como a Soul Grand Prix (de Mr. Paulão e Dom Filó), Messiê Limá, Big Boy, Ricardo Lamournier, Mr. Funky Santos, Ademir Lemos (falecido em 1993), A Cova, Saturno, Cash Box e a equipe “Som 2000 e Guarani 2000”, de Rômulo Costa e Gilberto Guarani, que mais tarde foi rebatizada para “Furacão 2000”, graças ao Presidente da República Humberto de Alencar Castelo Branco (1900-1967) que ao ouvir, na cidade de Petrópolis, o som produzido pela equipe no Quitandinha Santa Paula exclamou: “Isto não é Som 2000, nem Guarani, é um furacão. (AMARAL, 2010, p. 136)

Muitos fatores empurraram o crescimento do Funky. Nos Estados Unidos, toda a energia de auto-afirmação da cultura negra reunida pelo Hip-Hop, músicas, moda, e outros tipos de efervescência cultural culminaram no nascimento do Movimento Black Power, de afirmação valorativa dos descendentes de africanos.


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No Brasil também houve manifestações deste tipo. A jornalista Lena Frias, do Jornal do Brasil, aproveitou o termo norte-americano Black Power e definiu a maneira pela qual é chamado até hoje o fenômeno social da época – Movimento Black-Rio. Era o início de um trabalho social de tomada de consciência de direitos pela e para a população negra e sua cultura. Em 12 de julho de 1970, o Canecão (famosa casa de espetáculos carioca) abrigou o “1° Baile da Pesada”. A criação de Big Boy e Ademir Lemos serviu de inspiração para muitas outras festas onde o Soul era praticamente a única estrela da noite. (AMARAL, 2010, p. 137) O Hip-Hop e o Movimento Black-Rio passaram a ser referência aos jovens negros da periferia. Pertencer a um deles significava ter orgulho da história de seus antepassados e, ao mesmo tempo, lutar por um futuro menos desigual para as gerações futuras. Ainda mais na década de 1970, quando o Brasil passava por sucessivos governos militares e a democracia inexistia. Cada pessoa tinha à disposição um leque de ideologias para enfrentar o regime antidemocrático. E em favor dos pobres, principalmente, existiam legiões de voluntários a tecer mil e um discursos. O caso é que era chegado o momento dos próprios excluídos começarem a tomar a palavra. Anos depois, em 2004, Chico Buarque resumiu em entrevista à Folha de São Paulo o que pensa sobre esse protagonismo: Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do rap muito interessante. Não só o rap em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de carnaval meio ingênuas, aquela história de „lata d‟água na cabeça‟ etc. e tal. Normalmente isso era feito por gente de classe média. O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no rap. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí (...). (BUARQUE in AMARAL, 2010, p. 116)

Em um contexto de tantas transformações, não se pode dizer que a música ficou para trás. A essa altura, o Funky tinha se popularizado e era pai de inúmeros subgêneros novos. Assim, na década de 1980, a banda Miami Bass (Contrabaixo de Miami, em uma tradução aproximada), resolveu beber direto da fonte. Baseados no já antigo sucesso de James Brown “Papa‟s Got a Brand New Bag”, formaram uma banda


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caracterizada pelo estilo de suas batidas muito graves e ritmo acelerado. Logo se tornaram populares no Brasil em discos importados. Com o passar dos anos, em algum período da década anterior, até mesmo o nome do gênero simplificou-se: tornou-se apenas Funk, sem „Y‟.

As mudanças

introduzidas pelo Miami Bass permitiram ao estilo americano terminar a metamorfose e chegar à sua roupagem final. Segundo Vianna (2007, p. 94), seria esse o tipo de som tocado pelos DJ‟s cariocas em bailes até 1989: Até então, o funk de baile produzido aqui no Rio apenas copiava a fórmula inventada pelo Miami Bass, estilo bem eletrônico que o hip-hop adquiriu quando chegou nas ensolaradas e latinas terras da Flórida, EUA. Até 1989, os bailes só tocavam esse tipo de música norte-americana, tudo em disco importado. Os compactos de 12 polegadas preferidos pelos DJs traziam geralmente, no lado B, as versões instrumentais dos sucessos, e eram elas que lotavam as pistas de dança. (VIANNA, 2007, p.94)

Como visto, os funqueiros preferiam as versões instrumentais das músicas. Vianna (2007) atribui tal comportamento ao fato de que essas pessoas não entendiam as canções em inglês. De qualquer forma, a preferência dos brasileiros pelo instrumental encontra um paralelo no gosto dos norte-americanos pelas partes de Rap chamadas de “Brak-Beat”, que Kool Herc ampliava com o uso de dois toca-discos ao mesmo tempo. A diferença consistia em que nos Estados Unidos essa parte das músicas era utilizada pelos B.Boys, e no Brasil toda a música (por ser instrumental) era utilizada pelos funqueiros. As equipes de som dos bailes perceberam que o público não tinha muita tolerância às letras das canções norte-americanas. O motivo era simples, ninguém compreendia o que estava sendo dito. Mas como os dançarinos sentiam falta de cantar as músicas, espontaneamente começaram a criar refrões para acompanhálas. Assim, na versão instrumental de “Do Wah Diddy”, da dupla Two Live Crew, apareceu a primeira “Melô” a fazer sucesso no Rio de Janeiro. “Melô da Mulher Feia”, presente no LP “Funk Brasil”, de 1989, era a primeira releitura brasileira do Funk norte-americano. (Nestrovski org, 2007: 94). Daí em diante Melô significaria uma canção de tom humorístico composta em cima de outra, normalmente vinda dos Estados Unidos.


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A letra que os brasileiros deram à canção do Two Live Crew tem por refrão a frase “Mulher feia cheira mal como urubu”. Conta a história de um homem que encontra uma mulher muito feia, que não tomava banho e cheirava mal. Apesar de politicamente incorreta pela forma discriminatória de tratar a mulher, coisa comum em muitos funques atuais, não se pode afirmar que esse tipo de letra tenha sido invenção dos brasileiros. Originalmente, a música “Do Wah Diddy” já continha essa característica nos versos ainda mais agressivos que sua versão sul-americana. Contava também a história de um homem que encontra uma mulher. Só que desta vez ela é uma “vagabunda” (nas palavras da própria canção), e não apenas uma mulher feia ou mal-cheirosa. Bem ou mal, Melô da Mulher Feia revolucionou a cena cultural dos bailes cariocas. O sucesso foi tão grande que rapidamente surgiram outras e outras melôs e os DJs passaram a tocar cada vez mais músicas, por assim dizer, nacionalizadas, até que, menos de cinco anos depois, praticamente não haveria mais canções com letras em inglês tocando nos bailes. Como defende Vianna (2007, p. 92), “o estilo falado norte-americano teve que se adequar à gramática da canção quando quis fazer real sucesso nas favelas da Cidade Maravilhosa e suas periferias”. Quando os ventos de mudança começaram a soprar novos tempos para a canção popular brasileira, uma pessoa percebeu antes das demais para que lado o barco iria navegar. Até hoje é tido por muitos o principal catalisador do que é o funk. Conhecido como DJ Marlboro (Fernando Luiz Mattos da Matta) é compositor, letrista, ator, escritor e considerado um tipo de “pai” do Funk Carioca. Observando o sucesso das melôs, foi o primeiro a perceber um novo ritmo que poderia ser o futuro dos bailes. Basicamente, Marlboro gravou aquilo que se criava de maneira espontânea e adicionou algumas levadas de MPB, Charm e eletro. (AMARAL, 2010, p. 138) Em 1989 lançou o LP que seria o divisor de águas para o Funk brasileiro. O disco de vinil chamado “Funk Brasil” foi a primeira compilação das melôs surgidas nos bailes. Tinha oito faixas: “Melô dos Números” (de autoria de Abdúla e Marlboro); “Melô da Mulher Feia”, releitura brasileira de “Do Wah Diddy”, (Marlboro, Nirto e Abdúla); “Rap do Arrastão” (Ademir Lemos, Nirto e Marlboro); “Rap das Armas” (Cidinho); “Melô do Bicho” (Guto Laureano, Marlboro, Jr Pinto e Nirto); “Entre Nessa Onda” (Marlboro e MC Batata); e, por fim, “Melô do Bêbado” (idem). Marlboro conseguiu vender mais de 250 mil cópias do “Funk Brasil”, o que possibilitou que


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seguisse lançando outros discos de uma série que chegou até o “Funk Brasil n° 5” e foi responsável pela apresentação de grandes nomes do Funk nacional. (AMARAL, 2010, p. 139) No mesmo ano, 1989, seria consagrado vencedor do “Campeonato Brasileiro de DJs” organizado pela Disco Music Club, da Inglaterra. A produtora o levou a tocar em Londres como o melhor DJ do Brasil e um dos dez melhores do mundo. Surfando no sucesso, criou o selo Polydor, pela gravadora Polygram (hoje Universal Music Group), e através dele produziu e lançou artistas como Latino, Copacabana Beat, You Can Dance, Cashmere, e outros que totalizaram juntos a venda de mais de um milhão de discos. (Ibid., p. 140) Vianna (2007) relata que Marlboro sofreu inúmeras críticas por gravar as primeiras melôs no LP Funk Brasil. Os DJs não gostavam da ideia de produzir algo novo, queriam continuar tocando eternamente o „lado b‟ do que era produzido em Miami.

4.2 BAILE PROIBIDO Durante mais ou menos cinco anos, de 1989 a 1993, o Funk carioca foi gestado livre e desimpedido. Os bailes eram um dos divertimentos favoritos e mais acessíveis aos moradores das favelas, que dentro das próprias comunidades, encontravam gente jovem em um espaço com música, dança e a proposta da cultura Hip-Hop em alternativa a violência crescente nas periferias da Cidade Maravilhosa. Nessa

época,

quase

não

existiam

representações

do

Funk

na

mídia,

consequentemente o assunto ainda era desconhecido de grande parte da população brasileira. Talvez esse tenha sido um dos motivos que levou DJs como Cidinho e Doca a decidir que era hora de colocar letras com enfoque social nas músicas e gerar uma apresentação tanto da favela como de sua música pelos próprios interessados. Essa pode ser caracterizada como a verdadeira primeira fase do Funk nacional, pois aí, as músicas não eram apenas cópias das criadas em Miami, mas canções inteiramente novas e com caráter social. Vianna (2007) considera que a transformação ocorreu em 1993, a partir de “Rap da Felicidade”, o qual desencadearia o período clássico do Funk nacional. A


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utilização do termo “clássico” se deve ao sucesso que as canções dessa época alcançaram – mesmo sem auxílio de grandes gravadoras – sendo reconhecidas até hoje como a época de ouro do ritmo. O novo estilo vinha fazendo uma carreira impressionante, apesar de pouco conhecido fora do mundo das favelas, quando um ato de violência de um grupo isolado o tornou mundialmente famoso (e culpado) de uma cena lastimável. O arrastão, como ficou conhecido posteriormente, demarcou a mudança de atitude dos governantes em relação à música das favelas passando, de um momento para outro, da indiferença à repressão: Tudo mudou num domingo ensolarado de outubro, quando aconteceu, na praia de Ipanema, aquilo que a imprensa chamou de “arrastão”. Autoridades diversas (da mídia e da polícia) responsabilizaram o funk pela “violência” e então a música, escutada todos os fins de semana em centenas de bailes da periferia, ganhou destaque e passou a ser reconhecível, inicialmente como “baixaria” e “arte de péssima qualidade”, por um público de “elite”. (VIANNA, 2007, p. 98)

A partir daí teve início uma política de repressão aos bailes e ao Funk em geral no Rio. O ápice da repressão foi a criação da Lei 5265, em 2008, de autoria do deputado estadual Álvaro Lins. Sancionada pelo então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, o texto obrigava os produtores de espetáculos de Funk a solicitar autorização da Secretaria de Estado e de Segurança, apresentar documento de “nada a opor” da Delegacia Policial do Batalhão da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Juizado de Menores. Enquanto vigia a legislação chegou a servir para determinar a proibição de vários bailes. Vianna (2007) ressalta que, a partir desse tipo de atitude, teria sido entregue “literalmente o novo ouro cultural para os bandidos, forçando a invenção” a partir de 1993, logo após o arrastão, “daquilo que ficou conhecido como “funk proibidão”, cujas letras fazem o elogio dos traficantes”. (Ibidem, p. 98) A explicação do fenômeno é simples. Os funks que antes eram uma tentativa de interação favela/sociedade se tornaram músicas sobre o cotidiano das favelas. Os bailes tiveram de subir cada vez mais alto nos morros e contar com o apoio dos traficantes para poderem acontecer sem a intervenção policial: Repetindo para ficar claro: Marlboro diz que esse fechamento dos bailes foi marcante para a história do nascente funk carioca. Nos temas das letras de


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sua primeira fase, que prossegue até um pouco depois do arrastão (como no “Rap da Felicidade”, cantado por Cidinho e Doca), os compositores das favelas tentavam falar com toda a cidade. Mas quando os bailes passaram a acontecer isolados dentro das favelas, os cantos também se fecharam em torno de assuntos internos, do motel preferido de quem é da Cidade de Deus ao conflito entre duas turmas de traficantes locais. (VIANNA, 2007, p. 98)

“Proibidão” atualmente designa funques com letras que fazem apologia ao crime como assaltos, disputas entre traficantes e polícia ou entre os chefes de facções criminosas. Em tese, essas músicas censuradas não poderiam ser comercializadas. Na prática, são vendidas facilmente por camelôs e outros representantes do comércio informal. Apesar do estigma que esse tipo de música carrega é necessário observar sua importância enquanto porta-voz de uma realidade que, de outra forma, talvez jamais se tornasse conhecida pelo grande público. Representam uma rica fonte de análise aos interessados em conhecer melhor o mundo das periferias. Os proibidões encontram ainda um paralelo interessante em outro caminho que o Hip-Hop nacional tomou, o Rap dos Racionais MCs, por exemplo. Diferente do Funk, este estilo quase não possui dimensões de musicalidade sem enfoque social. Os Rappers, como são chamados, são conhecidos pelo caráter de protesto e denúncia de suas músicas. A letra de “Diário de um detendo” é emblemática neste caso: São Paulo / Dia 1° de abril de 1992, 8h da manhã / Aqui estou, mais um dia / Sob o olhar sanguinário do vigia / Você não sabe como é caminhar / Com a cabeça na mira de uma HK / Metralhadora alemã ou de Israel / Estraçalha ladrão que nem papel (...) O ser humano é descartável no Brasil / Como modess usado ou bombril / Cadeia? Claro que o sistema não quis / Esconde o que a novela não diz

“Diário de um detento”, música escrita por Mano Brown em parceria com Jocenir, então interno do Carandiru, é considerada até hoje uma das melhores músicas sobre a realidade dos excluídos no Brasil por realizar uma crítica a partir da visão de quem mais sofre as conseqüências da violência. Criada na primeira metade dos anos 1990, outra canção de protesto, um funque da dupla Cidinho e Doca, também se notabilizou pela captura da realidade. O pano de fundo que a música aborda é nada menos do que a criminalização do Funk


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e, por consequência, dos funqueiros. Não por acaso, o nome da música é “Não Me Bate, Doutor”: (...) Apanhei do meu pai, apanhei da vida / Apanhei da polícia, apanhei da mídia / Quem bate sim se acha certo / Quem apanha tá errado / Mas nem sempre, meu senhor, as coisas vão por esse lado (...) Quero paz, quero festa, funk é do povão / Já cansei de ser visto com discriminação / Tá na comunidade, funk é diversão / Hoje eu tô na parede ganhando uma geral / Se eu cantasse outro estilo isso não seria igual (...) Prejuízo, desemprego, diferença social / Classe alta bem, classe baixa mal / Porque tudo que acontece no Rio de Janeiro / A culpa cai todinha na conta dos funqueiros

A coação legal ao ritmo produzida pela lei de Álvaro Lins teve fim em 2009. O governador Cabral voltou atrás de sua posição inicial ao aprovar a lei repressora e sancionou a Lei 5543, dos deputados estaduais Marcelo Freixo e Wagner Montes, onde “Fica definido que o funk é um movimento cultural e musical de caráter popular” e proibido “qualquer tipo de discriminação ou preconceito, seja de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra o movimento funk ou seus integrantes”. Outra lei, a 5544/2009, também de autoria dos deputados Freixo e Montes, foi sancionada pelo governador para revogar o texto de Álvaro Lins que dificultava a realização dos bailes. A partir deste relato pode-se deduzir algumas das tantas violências sofridas pelos jovens funqueiros no início dos anos 1990. Demorou muito até que as autoridades „esquecessem‟ o ritmo, mas as marcas que ficaram na imagem de seus integrantes permanecem vivas em forma de preconceito até os dias de hoje.

4.3 A ERA DO TAMBORZÃO A mudança mais marcante que coincidiu com a aparição de um Funk profissional, independente e lucrativo foi o uso do “tamborzão”, no início dos anos 2000. Uma batida/timbre programada por baterias eletrônicas é a principal características dos atuais grupos de funqueiros, chamados de bondes. (VIANNA, 2007, p. 97) Alguns exemplos dessas turmas que se organizam para produzir, cantar e dançar são o Bonde do Tigrão (aquele do sucesso: “Quer dançar? Quer dançar? O Tigrão vai te ensinar”), Bonde do Vinho, Tati Quebra Barraco, Bonde Faz Gostoso, Vanessa Picachu, Os Hawaianos, Bonde da Hunter e Gaiola das Poposudas.


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Os funks desse período contêm uma mistura de assuntos interminável. Falam de sexo, violência, protesto, marcas da moda (do fogão Dako às calças da Gang) e vários outros temas. É como se, após conquistar certo respeito no imaginário nacional, o Funk agora não necessite mais lutar pelo direito de existir enquanto música popular. As letras, portanto, não se dirigem a um “doutor”. Apenas refletem as histórias que cada compositor deseja contar, não estão restritas a um movimento de contracultura. Por isso mesmo, o ritmo se constituí como uma das principais janelas pelas quais é possível observar a realidade e valores do povo brasileiro nos últimos anos. Desde aspectos negativos, como machismo e violência, até seus concorrentes positivos, feminismo e paz. Talvez um dos melhores exemplos vivos da contradição que é o Funk seja Tatiana dos Santos Lourenço, a MC que é mais conhecida por Tati Quebra-Barraco – nome artístico que faz menção a sua performance sexual. Suas letras falam quase sempre de sexo e, mais especialmente de como subjuga homens na cama. Ora, considerando a existência de machismo dentro da sociedade brasileira, parece uma forma inusitada de contra-atacar os costumes atuais. Em suas músicas, ela inverte a lógica de que, por ser mulher, é a parte frágil da relação (sexual). Em “Orgia”, canção que canta com o Bonde do Tigrão fica evidente a proposta de representação da mulher em pé de igualdade com o homem: (Tigrão) Ô me chamaram pra orgia / Quer pressão? / (Tati) Ô me chamaram pra orgia / Tati, a Quebra Barraco / (Tigrão) Ô me chamaram pra orgia / Esse é o Bonde do Tigrão / (Tati) O que tu quer eu vou te dar / É só você me seduzir / Porque eu sou a Quebra-Barraco / E tô pronta pra sacudir / (Tigrão) Eu vou sim, que eu sou teu macho / Nessa escola eu dou aula / Você é a Quebra-Barraco / Quero ver tu quebrar jaula / (Tati) De Tigrão tu não tem nada / Mais parece um gatinho / Se eu entrar na sua jaula / O Tigrão fica mansinho / (Tigrão) Se eu quebrar o seu barraco / Vai se amarrar na minha malícia / E vai contar pra suas amigas / Que o Tigrão é uma delícia

Não quer dizer, entretanto, que a MC se considere uma ativista pelos direitos das mulheres ou coisa parecida. Aliás, ela própria disse em entrevista concedida à jornalista Marta Barcellos, da Revista Marie Claire, que não: “Eu falo por mim, não pelos outros. Não é porque moro aqui que estou respondendo pela comunidade. Elas são elas e eu sou eu.” (REVISTA MARIE CLAIRE SITE) O próprio Funk tem muito disso, de ser despretensioso. Contudo, a variedade imensa de pessoas


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individualmente falando sobre a forma como veem o mundo acaba formando um mosaico de expressões que compõe um tipo de cartão de visitas da população pobre. Claro, é verdade que o machismo existe. Mas também é verdade que existem algumas pessoas que, a seu modo, produzem meios de rebater os preconceitos. Tati Quebra-Barraco pode ser citada como uma dessas pessoas. Na mesma entrevista, Quebra-Barraco explica seu início como MC, que de certa forma desmistificava o desejo sexual da mulher colocando-o em pé de igualdade com o do homem: Quando eu tinha 18 anos, fiquei três meses sem namorar. Então tive a idéia de cantar para arrumar namorado. Comecei a cantar aqui na comunidade, zoava [brincava] na favela, dizia para os caras: "Vem ver minhas coxas, meus peitinhos". Fui colocando isso nas letras, até que deu certo, estourou. (...) A música que criei, com essas letras, me deu a chance de fazer um trabalho que eu nem pensava que fosse possível. Não é que o meu passado tenha sido de prostituta. Fui mãe com 13 anos porque quis, não fui obrigada. Me deu vontade, dei mesmo, dei logo. (REVISTA MARIE CLAIRE SITE)

Uma das principais evidências do machismo no brasil é a tendência de reduzir a mulher em simples objeto sexual. Sendo que algumas mulheres obtém status por suas coxas, seios, etc. Nivelando um contra-ataque no mesmo tom, ao invés de dizer inutilmente que isso é errado e remar contra a maré, Tati tem produzido elementos de contra-cultura sendo um tipo de anti-heroína. O que ela tem feito é reduzir também o homem a mero objeto sexual utilizando uma linguagem crua, desprovida de romantismo para tratar de sexo. Em 2005, a grife Cavalera estampou uma frase da MC em uma camiseta onde se lia: “Não gosto de peru pequeno”. Resumindo, o Funk, mesmo quando politicamente incorreto, tem o potencial de colocar homens e mulheres em pé de igualdade no imaginário coletivo e ainda por cima pautar questões de sexualidade importantes. A repórter Marta Barcellos perguntou se para Tati Quebra-Barraco realmente é importante o tamanho dos „perus‟. A resposta que recebeu, longe de ingênua, serve para desmistificar conceitos negativos envolvendo celebridades do Funk: É, mas qualidade também é. Às vezes você pega um pirocão que não faz porra nenhuma. Muito grande também não dá. Tá pensando que isso aqui


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é poço artesiano? Mas no meu trabalho a gente tem que falar o que o povo gosta. Então digo que é bom sentar no fundo, não no raso. (REVISTA MARIE CLAIRE SITE)

4.4 MERCADO Marshall McLuhan postulou: “O meio é a mensagem”. A partir desta afirmação, o autor quis colocar os meios de difusão em pé de igualdede com as mensagens dentro do contexto comunicativo. Em nenhuma outra época tal afirmação foi tão verdadeira quanto agora, mais de uma década após o surgimento da internet. Desde de então, a própria indústria da música tem sido constantemente colocada em xeque. A rede mundial de computadores permitiu que se conhecesse uma nova dimensão de difusão cultural. Hoje é possível acessar uma série de fotografias, filmes, seriados, livros, revistas e músicas sem sair de casa – e o melhor, de graça. Na outra ponta do consumo, entretanto, os resultados não são inteiramente positivos. Existem duas principais tendências a serem analisadas. A primeira, e bem conhecida é a da crise pela qual passa a indústria cultural. Note a questão da música, por exemplo. Por muitas décadas os álbuns foram o grande negócio do trabalho de inúmeras bandas. Agora, mal o disco é lançado (às vezes ainda antes do lançamento), e os usuários da internet têm todas as faixas disponíveis a partir de trocas entre si ou sites de download. Herschmann e Kischinhevsky destacam os efeitos desta mudança: (...) presenciamos não só a desvalorização vertiginosa dos fonogramas (sua transformação em commodity no mercado), mas também o crescente interesse e valorização da música ao vivo (dos concertos) executada especialmente nos centros urbanos (no universo indie, na maioria das vezes, não constituindo propriamente cadeias produtivas, mas sim “cenas” ou “circuitos”, muitas vezes legitimados na celebração de festivais. (HERSCHMANN e KISCHINHEVSKY in JANOTTI JR; LIMA; PIRES, 2011, p. 25)

A segunda tendência diz respeito aos artistas populares independentes e tem demonstrado bons resultados. Longe da influência das grandes gravadoras dependem apenas de si próprios para ganhar a vida com a música e, como representantes do trabalho informal que são, inventam interessantes estratégias para sobreviver.


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Os esforços do mercado Funk têm dado bons resultados, como se demonstrará adiante, mas Vianna ([2009]) alerta que tal vigor cultural e econômico foi conquistado praticamente contra o Estado. Na época do meu trabalho de campo para o mestrado [1987], os principais bailes aconteciam em clubes como Cassino Bangu, Mackenzie do Méier, CCIP de Pilares e até mesmo no Mourisco em Botafogo. Todos foram fechados. A polícia empurrou a festa para as favelas, na tentativa consciente ou não - de isolá-las dentro das "comunidades". Houve acontecimentos inacreditáveis, até equipamentos sonoros metralhados. Não conheço registros de repressão tão violenta contra qualquer outra manifestação cultural festiva de qualquer outro lugar.

Em meio a tudo isso, a internet chegou para potencializar o trabalho de artistas populares. O programa Profissão Repórter especial sobre música popular (não confundir com MPB) exibido no dia 10 de maio de 2011, cita algumas dessas estratégias que, em função da internet se tornaram famosas. Caco Barcelos definiu como música feita em casa o trabalho comum nas diversas periferias brasileiras. Ele tem razão. Normalmente, os sucessos de axés, lambadas, tecnobregas e funques independentes surgem mesmo de um aparato amador em um fundo de quintal. A Indústria do Alô é citada na reportagem como uma das fontes de renda dos artistas populares. Nos espetáculos que apresentam, fazem pequenas paradas para divulgar o nome dos patrocinadores. Outra estratégia é a encomenda de músicas. Foi assim que surgiu o sucesso funk do verão passado, Titanic. Em Xambioá (TO), um grupo de funqueiros recebeu a encomenda de fazer uma canção abordando a Balada do Titanic, festa que ocorre em um barco sobre as águas do Rio Araguaia. Abaixo a compilação do resultado: Titanic, tanic, tanic, Titanic / Não precisa procurar, pois é só aqui que existe / Melhores DJ, Xambioá, Titanic / Por isso eu te convido pra dança do Titanic / Titanic, tanic, tanic, Titanic / O verão já vem chegando, o Araguaia é logo ali / Escapole, Araguanã e Praia do Murici / Todo sol maravilhoso você pode acreditar / Muita mulher bonita te convida pra dançar / Mulher bem bronzeada, atraente e perfumada / De biquini bem pequeno e bundinha enpinada / Os turistas vêm chegando, pode crer que é muita gente / Visitando Xambioá, todo ano estão presentes.

Xambioá é uma cidadezinha do interior do Estado do Tocantins. De acordo com as informações disponibilizadas no site de sua prefeitura tem pouco mais de 10 mil habitantes. Ainda assim, com a utilização da internet para veiculação do Funk Titanic teve seu nome divulgado pelos quatro cantos do país.


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Os novos espaços de interação fornecidos pelas mídias sociais (Orkut, Facebook, Twitter, YouTube, blogs, My Space) aproximaram as fronteiras territórias à distância de um clic. Além de ser possível fazer funques em fundos de quintal, também é muito fácil divulga-los para o mundo inteiro. Um vídeo colocado no YouTube pode da noite para o dia virar sucesso e acumular milhões de acessos. Assim como o futebol representa para muitos meninos da periferia uma esperança de ser rico e famoso, de vencer na vida, o Funk se prostra a disposição de cumprir papel semelhante no imaginário popular. Sou Foda, funque produzido em fundo de quintal pelo grupo Avassaladores provou isso. Em poucos dias, Vitinho, o MC compositor da obra, foi do anonimato à fama nacional. O que ele relatou em entrevista para o blog Bogassado em março deste ano, é que o vídeo era uma simples “seleção de bairro”. “Todo mundo tem um sonho, e quando tem um sonho tem de perseguir com unhas e dentes”, disse. Hoje Vitinho e os Avassaladores fazem apresentações por todo o Rio de Janeiro. Já participaram, inclusive, do programa Caldeirão do Huck, na globo. Muita gente parece ter gostado da música e do clipe – suas várias versões juntas atingiram mais de 200 milhões de acessos só no YouTube. Um dos motivos alegados para tanto, de acordo com o publicitário e professor da Universidade Feevale Thiago Mendes, é o vídeo ter fatores de irreverência e polêmica. Há também os que escreveram nos comentários do YouTube que odiaram o vídeo. Que é um lixo, que o protagonista é feio, que o Brasil não tem mais jeito. Parte do público que não gosta de funk tende a comparar os funques à MPB, Bossa Nova, Samba, e acabam esquecendo que também essas ritmos já tiveram suas épocas de serem mal-tratados pela opinião pública. Ou seja, nem a indústria, nem o grande público sabem o que fazer a respeito do fenômeno popular acelerado pela internet: O que se ouve sobre a realidade do povo, em tecnobregas, em forrós eletrônicos, num lambadão cuiabano, num arrocha baiano, ou em novos funks lançados em bailes todos os fins de semana, geralmente é criticado como alienação ou lixo cultural pelas instâncias legitimadoras da “grande arte”. Mesmo as gravadoras mais comerciais e a TV de massa não sabem lidar com a nova produção popular. (VIANNA, 2007, p. 103)

Enquanto a Indústria corre de um lado para o outro sem saber ao certo o que fazer, o povo, ao menos, parece se beneficiar do produto de seu trabalho, seja


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produzindo, difundindo ou consumindo. Informações do programa A Liga sobre o Funk, veiculado pela TV Bandeirantes no dia 31 de maio de 2011, revelam que o mercado do funk gira R$ 10 milhões por mês só na cidade do Rio de Janeiro, onde um único evento pode atrair de 2 mil a 5 mil pessoas, e que um grupo de funqueiros pode chegar a fazer mais de 50 apresentações por mês. O programa cita que atualmente, Os Hawaianos, grupo formado por Yuri, Tonzão, Gugu e Dioguinho são a “referência de lucro” no mercado da música. Ainda segundo o programa, os jovens que começaram a carreira na Cidade de Deus, em 2003, venderam ”mais de 100 mil cópias do último DVD lançado, faturando mais de R$ 500 mil” e têm apresentações marcadas até na Disney.

4.5 ANTROPOFAGIA Além das alusões frequentes à relações sexuais, outra característica marcada de alguns funques atuais é a cópia. Tal qual em seu início, quando os bailes apenas trocavam as letras das músicas produzidas em Miami pelas das melôs, ainda existem muitas melodias „chupadas‟ de outros canções. Não quer dizer que todos os sucessos do ritmo sejam cópias. O caso é que alguns artistas se apropriam de elementos musicais que são usados para novas composições. Seguem pequenas compilações ilustrativas do fenômeno: A) Música original: “Tédio”, por Biquini Cavadão Sabe esses dias em que horas dizem nada / E você nem troca o pijama, preferia estar na cama / Um dia, a monotonia tomou conta de mim / É o tédio, cortando meus programas esperando meu fim / Sentado no meu quarto, o tempo voa / Lá fora a vida passa e eu aqui à toa / Eu já tentei de tudo, mas não tenho remédio pra livrar-me desse tédio (...). B) Nova música: “Adultério”, por MR Catra. Sabe esses dias que tu acorda de ressaca, muito louco, doidão / Sua roupa tá cheia de lama e a cachorra tá na cama / É o dia que a orgia tomou conta de mim, assim / Eu saio com o Léo, o Edgar e o Denis, vem o Sandrinho / Vamo pra onde? / Dançar quatro por quatro, a gente zoa /


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Com wiski e energético, quanta mulher boa / Ui, o bagulho tá sério, vai rolar um adultério (...).

Neste caso, a canção composta pelo grupo de rock Biquini Cavadão serviu de modelo à de MR. Catra, que se limitou em mudar a letra e substituir os instrumentos pelo tamborzão. O sucesso foi grande e a música de Catra talvez seja atualmente mais conhecida que a do Biquini Cavadão. Um dos motivos, claro, é que a primeira ficou famosa em gerações passadas, nos anos 1980, e a de Catra é recente. A) Original: “Your Love”, por Outfield. Josie‟s on a vacation far away / Como around and talk it over / So many things that I wanna say / You know I like my girls a little bit older/ I just wanna lose you love tonight / I don‟t wanna lose your love tonight (…). B) Nova: “Morro do Dendê”, por Cidinho e Doca. Para-pa-pa-pa-pa-pa-pa-pa-pa-paa/

Para-pa-pa-pa-pa-pa-para-pa-pa/

Morro do Dendê é ruim de invadir/ Nós com os alemão vamos se divertir/ Pra subir aqui no morro até o BOPE treme/ Não tem mole pro exército, civil, nem pra PM (...). Cidinho e Doca utilizaram a melodia dos primeiros versos de “Your Love” para compor um dos principais clássicos do Funk, Morro do Dendê. O resto da música deles pouco tem a ver com a criada por Outfield. Os funqueiros repetem a melodia por toda a canção, enquanto vão ligando novos versos. Vale lembrar que essa música, pela sua representatividade junto ao mundo das favelas foi usada na abertura do filme Tropa de Elite (2007), dirigido por José Padilha. A) Original: “Se ela dança, eu danço”, por MC Leozinho. (6x) Se ela dança, eu danço / Falei com o DJ, pra fazer diferente / Botar chapa quente pra gente dançar / Me diz quem é a menina que dança e fascina / Me alucina querendo beijar / Se ela dança, eu danço / Balancei no balanço, nesse doce recanto que me faz cantar / Que é quando eu te vejo, desperta o desejo / Eu lembro do seu beijo e não para de sonhar / Ela só pensa em beijar, beijar, beijar, beijar (...).


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B) Nova: “Se ela mama meu ganso”, por MR. Catra. (6x) Ela mama meu ganso / Aí eu gostei, ela mamou diferente / Ela usou o dente, não me arranhou / Que boca mais linda, mamou na disciplina / E foi desse jeito que o negão gamou / Se ela mama meu ganso, cabeça no balanço / Ta durão, nunca manso, pra ela sentar / Vem pra cá dar um beijo, balançando o queixo / Baba no boneco e me faz gozar / Ela só pensa em mamar, mamar, mamar, mamar (...).

Seguindo os desígnios do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, os tropicalistas defendiam que a cultura nacional não deveria negar a cultura dos outros países, como faziam intelectuais de esquerda e da MPB, mas se alimentar dela e transformá-la em algo novo. Como disse Caetano, “a música brasileira se moderniza e continua brasileira”, porque “toda a informação é aproveitada (e entendida) da vivência e da compreensão da realidade social brasileira” (VELOSO in NERCOLINI, 2006, p. 130) Na cópia da melodia de Your Love, Cidinho e Doca tiveram o comportamento antropofágico pregado por Oswald de Andrade, “só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Interessante notar que o Funk se adéqua tanto a esse conceito que chega a copiar a si próprio, como MR. Catra fez ao transformar a letra de MC Leozinho. Discussões sobre direitos autorais parecem estar à anos-luz de distância do mercado funk brasileiro. As cópias descaradas de canções nacionais

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internacionais ocorrem em tom de brincadeira. O sujeito pode começar a cantar em cima de uma determinada melodia em um espetáculo, gostar e acabar até gravando sem que isso desperte grande interesse. Ou a música pode ser executada uma única vez e cair no esquecimento. A própria não formalização do universo Funk propicia certo abandono aos direitos autorais. Também pudera, a maior parte da renda desses artistas vem de apresentações ao vivo, gravar não compensa tanto, na maioria dos casos. Elementos antropofágicos aparecem em incontáveis fenômenos relativos ao funque. Em maio de 2011, um vídeo causou polêmica na imprensa nacional por mostrar seis soldados e recrutas dançando uma versão funque do Hino Nacional. Eles riam e executavam passos enquanto se divertiam filmando a brincadeira


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durante o intervalo de instrução militar no quartel de Dom Pedrito, no interior do Rio Grande do Sul. As imagens rodaram o país e foram exibidas nos principais telejornais, entre eles o Jornal do Almoço, de Porto Alegre. O comentarista Lasier Martins, que apareceu sorrindo ao lado das imagens de jovens de 17 e 18 anos dançando fardados, disse que aquilo era “lamentável” e que “executar o Hino Nacional em ritmo de Funk é avacalhar o símbolo”. Os jovens vão responder a inquérito militar podendo ficar de um a dois anos em reclusão por infração do Código Penal Militar. Em que se pese que o funk faz parte da cultura nacional e, portanto, da cultura dos jovens brasileiros, é curioso punir jovens do serviço militar obrigatório por adaptar um sílbolo da pátria, o Hino, à suas próprias realidades. Sobre esse tipo de crime, Oswald de Andrade avisou, “As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias”. Segundo ele, a solução nasce de uma lei universal que versa simplesmente: “A alegria é a prova dos nove”. Vianna (1987, p. 140) explica as palavras do poeta afirmando que quem está louco de alegria não está interessado em produzir definições sociológicas ou princípios de identidade. O funk carioca, um mundo construído em torno da alegria, também contribui para explicitar a diversidade cultural que já existe numa metrópole como o Rio de Janeiro. A “indústria cultural” não tem, como mostram os bailes, somente um efeito homogeneizador. Os vários grupos culturais utilizam suas mensagens de formas diferentes e até mesmo podem desenvolver canais de comunicação que não passam pelas emissoras de rádio e TV “oficiais”.

Mesmo 24 anos após escritas, as palavras de Vianna seguem atuais. Uma das mudanças que se poderia citar, é a evolução - tal como ocorreu ao Samba - do Funk carioca em Funk nacional, afinal, o ritmo se espalhou como um vírus por todo o território brasileiro.


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5 A MENSAGEM DO FUNK Para facilitar o entendimento deste estudo será proposta a divisão do Funk em algumas temáticas. Não serão analisados todos os assuntos que o ritmo aborda, já que isso seria impossível. Apenas constarão os temas de maior expressividade e difusão. Assim, a título de organização, o Funk vai ser dividido em: Clássico, Romântico, Proibidão e Sexual. Vale lembrar que, embora os estilos iniciem em uma data específica, seria precipitado dizer que algum deles acabou. Isso significa uma mistura nas músicas. Elas podem, mesmo tendo sido feitas ontem, simultaneamente ter elementos do Funk „Clássico‟ e „Sexual‟, ou do „Proibidão‟ e „Romântico, etc. Duas canções de cada item serão analisadas com o objetivo de identificar suas representações e críticas da realidade.

5.1 FUNK CLÁSSICO O tipo de Funk que para fins de organização se chamará de Clássico compreende o início do Funk carioca enquanto gênero original distinto do que era produzido nos Estados Unidos. Bem, é verdade que antes disso as melôs vinham fazendo algum sucesso nos bailes, como abordado no capítulo 4. Mas, o presente estudo aceitará a proposição de Vianna (2007), que defende que o Funk carioca surgiu a partir de Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, em 1993, pois foi aí que alcançou força para se projetar enquanto gênero original. As canções clássicas têm sua principal característica no desejo de interação com a sociedade. A favela sabia-se excluída e parecia tentar agir sobre esse problema. A invenção do Funk, no início da década de 1990, veio em um momento fundamental, pois serviu de canal de comunicação inédito entre o „mundo dos excluídos‟ e o restante da sociedade. A seguir, tentar-se-á verificar nas músicas elementos de construção da realidade e crítica social. As palavras que se referem diretamente a isso vão ser separadas em grupos distintos e analisadas.


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5.1.1 Rap da Felicidade, por Cidinho e Doca “Eu só quero é ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci / E poder me orgulhar / E ter a consciência que o pobre tem seu lugar / Minha cara autoridade eu já não sei o que fazer / Com tanta violência eu tô com medo de viver / Pois moro na favela e sou muito desrespeitado / A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado / Eu faço uma oração para uma santa protetora / Mas sou interrompido a tiros de metralhadora / Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela / O pobre é humilhado, esculachado na favela / Já não agüento mais essa onda de violência / Só peço à autoridade um pouco mais de competência (...) Diversão, hoje em dia, não podemos nem pensar / Pois até lá nos bailes eles vêm nos humilhar / Ficar lá na praça que era tudo tão normal / Agora virou moda a violência no local / Pessoas inocentes, que não têm nada a ver / Estão perdendo hoje o seu direito de viver / Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela / Só vejo paisagem muito lida e muito bela / Quem vai pro exterior da favela sente saudade / O gringo vem aqui e não conhece a realidade / Vai pra zona sul pra conhecer água de coco / E o pobre na favela vive passando sufoco / Trocar a presidência é uma nova esperança / Sofri na tempestade agora quero a bonança / O povo tem a força, precisa descobrir / Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui

Construção e crítica da realidade: direito de viver, trocar a presidência, esperança, quero a bonança, tempestade, o povo tem a força, precisa descobrir, faremos tudo daqui, favela, desrespeitado, humilhado, esculachado, pobre, autoridade, violência, medo, tristeza, alegria, tiros, metralhadora, ricos, casa grande e bela, diversão, bailes, praça, inocentes, cartão postal, paisagem, exterior, gringo, zonal sul, água de coco, sufoco. Cidinho e Doca colocaram uma tensão em sua música. A “favela”, onde vive o “pobre” é colocada em contraposição à “zona sul”, onde passeia o “gringo”. A canção apresenta o primeiro como um lugar onde existe violência, tiros, diversão, alegria, tristeza, sufoco, armas, desrespeito, humilhação, sofrimento, inocentes. Já o ambiente onde passeia o “rico” é descrito pelas palavras cartão postal, casa grande e bela, paisagem, zona sul, água de coco. O primeiro capítulo deste trabalho usou uma citação de Marx para ilustrar o que é a Luta de Classes. Tal conceito se adéqua perfeitamente à tensão colocada em forma de Funk por Cidinho e Doca, que procuram evidenciá-la na música como método de intervenção. Em Rap da Felicidade há uma série de reivindicações e críticas. Mas nota-se que o Funk não se coloca apenas enquanto crítico da sociedade, pois também é propositivo. Tem “esperança” de que um dia a vida melhore, representada pelo verso “quero a bonança”, e coloca como um dos caminhos a troca do presidente e


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outro, mais lúdico, que o povo descubra seu próprio poder. Por fim, a frase “faremos tudo daqui” remete ao crescimento de uma organização paralela que não fica clara, poderia ser referência à uma revolução, ao poder do tráfico, à força das comunidades, do próprio Funk, etc. Uma das questões mais interessantes de Rap da Felicidade é que, embora haja uma tentativa de retratar a realidade para mostrar ao povo que ele mesmo pode mudá-la, não é a ele que se dirige a música, e sim às autoridades. Hora a canção diz que o povo tem a força, hora diz que a esperança é trocar a presidência – e tudo isso direcionado a um doutor, alguém que pode tanto ser um chefe de policia, político ou mesmo a mídia.

5.1.2 Rap do Silva, por MC Bob Rum Todo mundo devia nessa história se ligar/ Porque tem muito amigo que vai pro baile dançar/ Esquecer os atritos, deixar a briga pra lá/ E entender o sentido quando o dj detonar/ Era só mais um Silva que a estrela não brilha/ Ele era funkeiro, mas era pai de família/Era um domingo de sol/ Ele saiu de manhã pra jogar seu futebol/ Levou uma rosa pra irmã/ Deu um beijo nas crianças/ Prometeu não demorar/ Falou pra sua esposa que ia vir pra almoçar/ Era trabalhador, pegava o trem lotado/ Tinha boa vizinhança, era considerado/ E todo mundo dizia que era um cara maneiro/ Outros o criticavam porque ele era funkeiro/ O funk não é modismo, é uma necessidade/ É pra calar os gemidos que existem nessa cidade(...)/ E anoitecia, ele se preparava/ É pra curtir o seu baile, que em suas veias rolava/ Foi com a melhor camisa, tênis que comprou suado/ E bem antes da hora, ele já estava arrumado/ Se reuniu com a galera, pegou o bonde lotado/ Os seus olhos brilhavam, ele estava animado/ Sua alegria era tanta ao ver que tinha chegado/ Foi o primeiro a descer e por alguns foi saudado/ Mas naquela triste esquina um sujeito apareceu/ Com a cara amarrada, suando, estava um breu/ Carregava um ferro em uma de suas mãos/ Apertou o gatilho sem dar qualquer explicação/ E o pobre do nosso amigo que foi pro baile curtir/ Hoje com sua familia ele não irá dormir (...).

Construção e crítica da realidade: amigo, baile, dançar, atritos, briga, DJ, Silva, funkeiro, pai de família, futebol, rosa, irmã, todo mundo devia nessa história se ligar, era só mais um Silva, „o funk não é modismo, é uma necessidade para calar os gemidos da cidade‟ crianças, esposa, trabalhador, trem lotado, boa vizinhança, cara maneiro, gemidos, cidade, melhor camisa, tênis que comprou suado, arrumado, galera, bonde lotado, animado, alegria, esquina, cara amarrada, ferro (revólver). Ao contar a história de um rapaz trabalhador que mora na periferia e é querido por familiares e amigos, Rap do Silva tenta desmistificar a visão


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preconceituosa que por vezes a opinião pública tem em relação aos funqueiros e moradores da periferia em geral. Um possível resumo da mensagem da música seria: “Jovem trabalhador é assassinado ao chegar em baile Funk”. Essa ideia de colocar o favelado na pele de vítima da violência parece combater outra, muito comum no início da década de 1990, de que o Funk era coisa de bandido, ou de que o pobre era sempre o autor da violência. A realidade proposta pela música é árdua, segundo o trecho onde o personagem de sobrenome Silva (“era só mais um Silva” equivale a dizer „era só mais um Zé-ninguém‟) é colocado enquanto “trabalhador” que pegava o “trem lotado” todos os dias e supostamente sustentava sozinho várias pessoas, ideia sugerida pelo termo “pai de família”. Para ele, o baile era um local de socialização aonde ia para “esquecer os atritos”, ou seja, uma válvula de escape dos problemas cotidianos onde “deixar as brigas pra lá”. Há uma linha de raciocínio coerente nisso tudo. Se o baile é sinônimo de diversão, logo, é possível concluir pode ajudar na construção da paz, alegria, socialização. Na falta de uma infra-estrutura que permita o acesso a cultura, geralmente centralizado nas grandes cidades, a periferia criou sua própria diversão – festas onde uma batida eletrônica faz todo mundo dançar. A construção da identidade nas favelas dos anos 1990 precisava de um ambiente onde as pessoas pudessem adquirir e demonstrar respeito, ter algum status, coisa difícil fora das comunidades. No trecho onde se ouve “foi com a melhor camisa” e “tênis que comprou suado”, a importância de estar bem apresentável no baile fica evidente. É lá o espaço onde o Silva consegue ser percebido como alguém importante, bonito, divertido, interessante. A principal contribuição crítica de Rap do Silva se dá a partir da demonstração de uma outra versão para contar a violência. Quando no início da canção Bob Rum diz “todo mundo devia nessa história se ligar”, está fazendo um apelo à sociedade, marcadamente sua interlocutora. Não precisaria contar essa história aos favelados, estes já vivem aquilo, mas fala para “todo mundo”, uma outra maneira de dizer opinião pública ou doutor, como Cidinho e Doca em Rap da Felicidade. Bob Rum quer demonstrar o descaso que ocorre em crimes cometidos contra o segmento pobre da sociedade, os Zés, os Silvas.


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Por último, no verso mais esplícito da canção, aparece a frase: “O Funk não é modismo, é uma necessidade, é pra calar os gemidos que existem nessa cidade”. O que fazia a cidade „gemer‟ na primeira metade dos anos 1990? Provavelmente o mesmo que agora. Pobreza, miséria, violência, drogas, em resumo, a velha exclusão social. Em Rap do Silva, o Funk aparece para “calar” esses problemas. Não que ele consiga resolver a causa deles, mas pode amenizar o sofrimento com uma boa dose de alegria.

5.2 FUNK ROMÂNTICO A linha de funques que cantam o amor e sentimentos positivos, chamada por muitos de Funk Melody, já existia anteriormente, mas nasceu para o grande público por volta de 1994, quando os principais artistas do gênero, pouco antes ou pouco depois, conheceram o início do sucesso em suas carreiras. Entre eles estão Latino, Claudinho e Buchecha, MC Marcinho e Copacabana Beat. Atualmente, MC Leozinho e MC Perlla são considerados seguidores deste tipo de conceito.

5.2.1 Zona Oeste, Por Mc Marcinho e Mc Bob Rum [Bob Rum] Eaí, Marcinho! [Marcinho] É isso aí, Bob Rum! Diante de tanta guerra e de tanta violência viemos trazer um pouco de paz e harmonia em forma de canção. Sei que já passei por tantas coisas ruins/ Mas me superei e hoje eu sei que eu venci/ [Bob Rum] Pois a vida é de momento, mas temos talento/ Minha estrela vai brilhar em qualquer lugar/ [Marcinho] Já pedi ao meu bom Deus pra me dar uma luz/ Pois não somos nada nessa vida sem ter Jesus/ [Bob Rum] Agradeço aos meus fãs por todo o carinho/ Quando olho para o lado sei que não estou sozinho/ [ambos] Hoje eu voltei, quero cantar/ Funk corre em minhas veias seja em qualquer lugar/ Sou da Zona Oeste onde brilha a nossa luz/ [Marcinho] Eu sou Marcinho de Bangu/ [Bob Rum] Sou Bob Rum de Santa Cruz/ [Marcinho] Nessa estrada da vida tanta coisa rolou/ Emoções e sentimentos a gente trocou/ [Bob Rum] E no palco eu sentia a sua energia/ Enquanto eu cantava pra mim você sorria/ [Marcinho] Os amigos que ficaram pelo o caminho/ Às princesas que cantei com muito carinho/ [Bob Rum] Eu dedico essa canção na união acredito/ Dentro do meu coração seus nomes estão escritos(...).

Construção e crítica da realidade: guerra, violência, paz, harmonia, coisas ruins, superei, venci, a vida é de momento, talento, estrela, Deus, Jesus, fãs, carinho, não estou sozinho, Zona Oeste, Bangu, Santa Cruz, amigos que ficaram pelo caminho, união.


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Zona Oeste foi criada por Marcinho e Bob Rum em um momento de euforia causada pelo sucesso crescente do Funk na década de 1990. Nesse clima, o Funk Melody passou a cantar prioritariamente os bons sentimentos e o romantismo, deixando de lado a crítica presente nos funques Clássicos, onde os músicos tentavam cantar para o resto da cidade. É o início da fase onde os artistas começam a se surpreender com a própria força e MCs que antes eram conhecidos somente dentro das comunidades alcançam fama nacional. Em “Zona Oeste”, outra vez a palavra “violência” se faz presente. Junto com ela, as palavras “guerra”, e “amigos que ficaram pelo caminho”, mostram os efeitos da exclusão social e outras mazelas sofridas pelos moradores da periferia. Contudo, “Zona Oeste” tem o objetivo declarado de “trazer um pouco de paz e harmonia” e não vai focar suas forças na crítica, tanto que ela praticamente inexiste nessa letra. Uma única ressalva poderia existir no uso da palavra “tanta” antes de guerra e violência, o que confere um significado de demais, de exagero. Marcinho e Bob Rum relativizam as dificuldades da realidade do pobre dizendo que “a vida é de momento”, ou seja, que às vezes está boa, às vezes ruim. Contrapõe a essa ideia de vai e vem de dificuldades ao verso “mas temos talento” e “minha estrela vai brilhar em qualquer lugar” dando um quase depoimento de vitória individual a receitar algo do tipo: „seja bom em algo (tenha talento) e tudo vai dar certo‟. Não é raro ouvir críticas à realidade dura do pobre e, na mesma canção, seguir um relato de amor à comunidade onde existe todo esse universo contraditório. Mesmo no Funk Melody existe essa dicotomia. Os MCs falam de guerra e violência sem deixar de destacar que são da “Zona Oeste, onde brilha nossa luz”. Ambos repetem por toda a música o nome das comunidades onde nasceram, Bangu e Santa Cruz, demonstrando orgulho da origem humilde.

5.2.2 Nosso Sonho, Por Claudinho e Buchecha Gatinha, quero te encontrar, vou falar, sou Claudinho/ Menina Musa do Verão, você conquistou o meu coração/ Tô vidrado, hoje eu sou, um Buchecha apaixonado/ Naquele lugar, naquele local/ Era lindo o seu olhar/ Eu te avistei, foi fenomenal/ Houve uma chance de falar/ Gostei de você, quero te alcançar/ Tem um ímã que fez o meu hospedar/ Nossas emoções eram ilícitas/ Mas apesar das vibrações/ Proibia o amor em nossos corações/ Ziguezaguiei no vira-virou/ Você quis me dar as mãos, não alcançou/ Bem que eu tentei, algo atrapalhou/ A distância não deixou/ Foi


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com muita fé, nessa ilustração/ Que eu não dei bola para a ilusão/ Homem e mulher, vira em inversão/ Bate forte o coração/ Tumultuado o palco quase caiu/ Eu desditoso e você se distraiu/ Quando estendi as mãos pra poder te segurar(...)/ (2x) Nosso sonho não vai terminar, desse jeito que você faz, se o destino adjudicar esse amor poderá ser capaz, gatinha, e depois que o baile acabar, vamos nos encontrar logo mais/ Na Praça da Play-Boy, ou em Niterói/ Na fazenda Chumbada ou no Coez/ Quitungo, Guaporé nos locais do Jacaré/ Taquara, Furna e Faz-quem-quer/ Barata, Cidade de Deus, Borel e a Gambá/ Marechal, Urucânia, Irajá/ Cosmorana, Guadalupe, Sangue-areia e Pombal/ Vigário Geral, Rocinha e Vidigal/ Coronel, Mutuapira, Itaguaí e Sacy. Andaraí, Iriri, Salgueiro, Catirí/ Engenho Novo, Gramacho, Méier, Inhaúma, Arará/ Vila Aliança, Mineira, Mangueira e a Vintém/ Na Posse e Madureira, Nilópolis, Xerém/ Ou em qualquer lugar, eu vou te admirar (...)/ Os teus cabelos cobriam os lábios teus/ Não permitindo encontrar os meus/ E você é baixinha, gatinha eu vou parar/ Mas tudo isso porque eu me sinto coroão/ Tu tens apenas metade da minha ilusão/ Seus doze aninhos permitem somente um olhar (...).

Construção e crítica da realidade: menina, nossas emoções eram ilícitas, homem e mulher, baixinha, vou parar, coroão (velho), doze aninhos. Claudinho e Buchecha foram uma das grandes duplas que o Funk lançou. Ao todo venderam milhões de discos e ganharam vários prêmios, um deles o de “artistas revelação”, concedido pela MTV, em 1997. Suas músicas praticamente não têm enfoque em críticas sociais e demonstram poucas representações da realidade do pobre. O foco deles é explicitamente o romantismo. Em “Nosso Sonho” isso se repete. A única menção ao mundo das favelas é quando citam as 45 comunidades onde podem encontrar a menina personagem da canção e onde citam a idade dela, 12 anos. Vendo de fora qualquer pessoa poderia denunciá-los por pedofilia. Mas o fato é que nas comunidades a vida „romântica‟ começa cedo, principalmente na década de 1990. Claro, há um problema nisso tudo, porém a música apenas retrata um elemento do cotidiano dos compositores. Como exposto na obra A Violência que Oculta a Favela (PEDROSA, 1990, p.9), na periferia “a iniciação sexual de crianças é tão comum quanto a falta de qualquer orientação sobre o assunto”. Para quem não gosta dessa canção pela sexualização da criança por um adulto de 24 anos (a música diz “tu tens apenas metade da minha ilusão”, ou seja, metade da idade) saiba que o estilo está hoje mais explícito que nunca, como se abordará adiante nos funques sexuais. “Nosso Sonho” tem duas peculiaridades. A primeira é o vocabulário incomum em letras de Funk. A utilização da palavra “Adjudicar”, por exemplo, que significa, segundo o dicionário Aurélio “considerar como autor, causa ou origem; atribuir”.


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Buchecha, que na maioria das vezes compunha as canções explicou o porque desse palavreado em diversas entrevistas. Ele gostava de escrever suas letras ao lado de um bom dicionário, para aumentar a qualidade do trabalho. A outra peculiaridade se refere à citação das comunidades. Isso acontece em várias músicas até hoje e significa uma pequena homenagem dos músicos aos locais onde frequentemente são recebidos seus espetáculos.

5.3 FUNK PROIBIDÃO Já foi citado que o surgimento do Proibidão se deu em um contexto de coibição dos bailes, entre 1993 e 1995, após se dar o acontecimento do arrastão veiculado largamente pela mídia. Para não acabarem de vez, as festas tiveram de contar com a proteção dos traficantes. Segundo um tipo de parceria surgida aí, as canções passaram a retratar o crime de forma positiva, de acordo com o ponto de vista dos traficantes que davam guarida os bailes.

5.3.1 Cachorro, Por Mr. Catra [policial] E ai cidadão, e o arrego?/ [traficante] Qual é, chefia, de novo? Porra, abalou!/ [policial] Com esse salário tá brabo, né?!/ [bandido] Hã, quer din-din? Então vende um X9 pra mim!/ (2x) Uh, tá mandado, o bondão mata queimado/ Se faz de amigo só pra escutar/ Sujeito safado tem que apanhar/ Por causa dele o meu mano morreu/ O plantão do trabalho ele enfraqueceu/ E causou muita morte, deixando infeliz/ A família do mano que eram raiz/ Os moradores já querem pegar/ Até grampearam o seu celular/ O patrão já tá preso e mandou avisar/ Que sua sentença vamo executar/ É com bala de HK (...)/ Cachorro, me entrega esse canalha/ Deixa ele bem amarrado, pega o dinheiro e rala/ Ah, sujeito safado já sabe de cor/ O endereço, o contato lá do DPO/ Comédia, fodido que entrega o irmão/ Se pego esse verme não tenho perdão/ Pago quanto for, mas me dá o canalha/ Eu vou comer esse verme na bala/ De qualquer forma não vai escapar/ Eu tenho pra ele uma bolsa de AK/ Cachorro! (...).

Construção e crítica da realidade: arrego (propina), salário, x9 (informante), bonde (nesse caso quer dizer quadrilha), mata queimado, sujeito safado, meu mano, trabalho, plantão, morte, moradores, cachorro, patrão (chefe da quadrilha), preso, sentença, executar, HK (modelo de espingarda), dinheiro, DPO (Departamento de Polícia Ostensiva), comédia (palhaço), verme, perdão, pago, bala, AK (fuzil).


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Nesse funk aparece enfocada a realidade de um bandido que perdeu, vítima da guerra entre tráfico e polícia, um companheiro muito querido, um “mano”. O culpado seria um X9, ou dedo-duro. Na favela, diversas reportagens já apuraram que quando descobrem um informante da polícia os traficantes fazem o jugalmento, dão a sentença e punem o „culpado‟ com a morte para dar o exemplo. Cachorro, termo que dá nome a canção, serve para designar o policial que aceita o arrego, o suborno pago pelos bandidos para não serem incomodados. Apesar da maledicência, a única crítica social da música existe justamente na abordagem da realidade do policial explícita no trecho “com esse salário ta brabo, né?!”. Na canção de Catra o crime é considerado uma ocupação como qualquer outra, pode-se verificar através do uso das palavras “plantão”, “patrão” e “trabalho”. Dentro desta ótica, serve de sustento para trabalhadores (traficantes) que se dispõe inclusive a dividir o lucro (arrego) e pedem somente que não sejam incomodados. Então aparece um “X9” (informante) e momentaneamente abala o status quo da organização causando mortes. Por causa de “Cachorro”, MR Catra foi processado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro por apologia ao crime. Em sua defesa alegou: “O crime faz parte da cultura da favela. Não sou cúmplice do crime, sou cúmplice da favela. Não estou fazendo apologia, estou é relatando uma realidade”. Em entrevista ao Jornal do Brasil para explicar por que escreveu, em outra música, o verso “Não corre/ Não treme/ Mete bala no PM” disse que “aquilo não era nem pra ser gravado e comercializado. Simplesmente vamos aos bailes, às rádios e cantamos com a rapaziada”. No dia 30 de dezembro de 2002, a Polícia Militar carioca aprendeu um lote inteiro de CDs piratas proibidões onde continham outras canções de Catra. (AMARAL, 2010, p. 149)

5.3.2 Morrer Como Homem É O Prêmio Da Guerra, Por Mc Smith Nós fecha nessa porra/ No claro e no escuro/ Nós rouba, Nós trafica, Nós não gosta de andar duro/ É só de Hornet pra cima/ No bonde do caçatesouro/ É só guerrilheiro bolado/ Que anda trepado e pesado de ouro/ Nós tem um montão de novinha/ Pra todas nós perde uma prata/ Nós da condição no bagulho e se der a boceta pra outro nós mata/ Dono do ouro e da prata é Jesus/ E ninguém leva nada da Terra/ O salário do pecado é a morte/ (2x) Morrer como homem é o prêmio da guerra/ Nossa vida é uma


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guerra/ Nossa morte é uma certeza/ Não é só tirar marola/ Nem acumular riqueza/ Dia-a-dia é nós na luta portando fuzil AK/ Pra nenhum filha da puta/ Vim aqui esculachar/ Temente somente à Deus/ Não se trata de coragem/ Mas a nossa vida louca/ Nela estamos de passagem/ Ninguém fica pra semente/ É nossa finalidade/ Deixar a família bem e as novinhas com saudade (...).

Construção e crítica da realidade: Nós rouba, Nós trafica, Nós não gosta de andar duro (andar sem dinheiro), É só de Hornet (motocicleta esportiva) pra cima, Caça-tesouro, guerrilheiro, pesado de ouro, novinha (meninas), prata, Nós da condição (sustentamos), mata, ouro, prata, pecado, morte, morrer como homem é o prêmio da guerra, nossa morte é uma certeza, fuzil AK, vida louca, estamos de passagem, deixar a família bem e as novinhas com saudade. MC Smith apareceu recentemente (31/05/2011) no programa de televisão A Liga, da Bandeirantes, segundo o qual suas apresentações têm uma média de 2 mil a 5 mil pessoas. As letras de suas músicas são famosas por contar a realidade a partir da perspectiva do criminoso. Em “Morrer como homem”, a realidade do crime salta aos olhos. Em um cotidiano de roubo e tráfico, por que o bandido “não gosta de andar duro”, existe a consciência da vida perigosa que se leva, designada por “morrer como homem é o prêmio da guerra”, “nossa morte é uma certeza”, “estamos de passagem” e no objetivo do personagem da canção, “deixar a família bem (financeiramente) e as novinhas com saudade”. Por esse viés, sendo a vida transitória, assumem a postura de aproveitar cada momento intensamente, divertindo-se com sexo, adquirindo jóias (“pesado de ouro”) e ostentando motocicletas caras (“Hornet”). Herschmann defende que, a juventude, ao se manifestar, nesse caso através do Funk, ergue uma das únicas bandeiras que conhece: a da crítica da realidade através da música: Os grupos juvenis recentes caracterizam-se por uma busca de intensidade no lazer em contraposição a um cotidiano que se anuncia como medíocre e insatisfatório. Eles parecem assumir o fato de que não têm e não são capazes de produzir grandes projetos de transformação, e de que sua ação genuína só pode ser a de assumir a perplexidade, denunciar o presente e submeter à prova os projetos existentes. É assim que eles buscam atuar e interferir nesse cenário social, pela construção de um espetáculo que chame a atenção pública para essas questões: se oferecem como espelhos de seu tempo. (2000, p. 56 e 57)


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Tal como MR. Catra, MC Smith também sofreu processo da PM por apologia ao crime. Em 15 de dezembro de 2010, ele e outros três funqueiros ficaram detidos durante oito dias. Em entrevista, a delegada Helen Sardenberg os acusou de “fazerem o marketing” de criminosos. Smith se defendeu no programa A Liga: “Eu não faço apologia ao crime, eu relato o que acontece na comunidade. Não nasci na Barra da Tijuca onde se dorme comendo papinha de aveia. Eu cresci em meio ao sofrimento”.

5.4 FUNK SEXUAL A temática sexual existe desde a invenção do Funk nacional. Mas por ter atingido o grande público só recentemente, o presente trabalho vai considerar a metade da década de 2000 como o período onde o sexo se alastrou pelas letras dessas canções. Aí se deu a criação de um público consumidor específico e a maioria dos músicos representativos do estilo.

5.4.1 Fogão Dako, Por Tati Quebra-Barraco Entrei numa loja, estava em liquidação/ Queima de estoque, fogão na promoção/ Escolhi da marca Dako/ (3x) Porque Dako é bom/ (3x) Calma minha gente, é só a marca do fogão/ Entrei numa loja, estava em liquidação/ Queima de estoque, fogão na promoção/ Escolhi da marca Dako/ (3x) Porque Dako é bom (...).

Construção e crítica da realidade: loja, liquidação, promoção, Dako é bom (na música se ouve „dá cu é bom‟). Bem, não se pode depreender grandes tratados sociológicos sobre a construção da realidade contida nos Funks Sexuais além do que já foi dito neste trabalho. Em fogão Dako há uma mistura de brincadeira de duplo sentido, elemento comum desde o tempo das melôs, e a menção explícita ao sexo anal. Outro fator é a ilustração do poder de compra do pobre, geralmente consumidor assíduo de liquidações. Deve-se sublinhar entretanto, que nas favelas praticamente inexistem tabus sobre sexo, o tema é tratado livremente de forma escrachada. Isso não significa que


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a periferia tenha uma educação sexual especialmente bem desenvolvida, bem pelo contrário. Entretanto, algumas pessoas como a cineasta Denise Garcia, autora do documentário sobre a vida de Tati Quebra-Barraco intitulado “Sou Feia Mas Tô na Moda”, disse em entrevista ao escritor Euclides do Amaral (2010) que a crueza do tratamento que o Funk dispensa ao sexo pode até ser boa: Acredito que o fato do funk falar de sexo sem romance é só o primeiro estágio, pode acontecer coisas muito mais revolucionárias depois de uma instigação como esta. As cachorras ainda são alvos de muito preconceito, porque as pessoas não entendem que aquilo é uma atitude e deixam de respeitá-las. A mudança é lenta. (AMARAL, 2010, p. 141)

5.4.2 Prisioneira, Por Bonde Do Tigrão

[Tigrão] (2x) Mãos para o alto novinha/ [moça] Porquê?/ [Tigrão] (2x) Por que hoje tu tá presa, tu tá presa, o tu tá presa/ E agora eu vou falar os seus diretos/ (2x) Tu tem direito de sentar, tem o direito de quicar/ Tem o direito de sentar,de quicar, de rebolar/ Você também tem o direito de ficar caladinha/ Fica caladinha/ (2x) Fica, fica caladinha/ Fica, fica caladinha/ Caladinha, caladinha/ Vai (...)/ (6x) Desce aí novinha/ Vai!/ Chão, chão, chão/ É o tigrão, tá ligado neguinho?/ Vai!/ Chão, chão, chão (...).

Construção e crítica da realidade: novinha, direito de sentar, direito de quicar, de rebolar. “Prisioneira” é uma música onde um homem dita as regras de relacionamento que tem com uma mulher. Na gíria da favela, chama ela de “novinha” e estabelece o comportamento sexual que esta deve ter perante ele. Segundo suas regras machistas, à moça resta obedecer “caladinha” aos seus desígnios. A música do Bonde do Tigrão está muito longe de criticar a realidade social da mulher. Aliás, o próprio personagem faz parte do grupo opressor da causa feminista. Se o Funk, como propõe Herschmann (2000), se oferece como espelho do seu tempo, pode-se chegar à conclusão de que expõe os preconceitos guardados por boa parte da população. Serve para pautar por meio da polêmica questões que de outra forma ficariam em segundo plano. Nos comentários de músicas assim


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postadas no site de compartilhamento de vídeos YouTube é comum encontrar pessoas dizendo que esse tipo de música é poluição sonora, pura vulgaridade, lixo, etc. Acontece que o Funk não é o responsável pela vulgaridade moral do Brasil, mas causa muito desconforto ao cantá-la aos sete ventos.


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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após discorrer sobre as origens da exclusão e protestos na primeira parte deste trabalho, o povo morador da periferia pôde ser enfocado de maneira a demonstrar em que contexto se deu a criação de sua cultura da década de 1990 para cá. O abandono do Estado causou um vácuo que posteriormente foi suprido de formas boas (organização popular, associação de moradores, mutirões) e ruins (poder paralelo do tráfico). Uma das marcas da periferia é a falta de infra-estrutura. Essa carência redunda em ruas sem asfalto, dificuldade no acesso à eletricidade, telefonia, segurança, água potável e saneamento básico. Situados longe dos centros das cidades, os moradores dessas localidades geralmente precisam de várias conduções para chegar ao trabalho. Pior ainda para quem quer se divertir, que além da dificuldade de transporte vai enfrentar o obstáculo financeiro de pagar caro para entrar em espetáculos. Parece incrível, mas os favelados do Rio de Janeiro driblaram todos esses obstáculos e criaram nas próprias comunidades meios para se divertirem de uma forma original, barata e alegre. Os bailes foram feitos desde o início de pobre para pobre. Depois é que outras classes sociais se inteiraram das festas mostrando o quanto o ritmo é contagiante. „Alegria de pobre dura pouco‟ poderia ter sido um bom epitáfio se a opressão da imprensa e autoridades da polícia e política tivessem vencido a batalha travada contra o Funk-pós-arrastão na praia de Ipanema. Não fosse o asilo dado pelo tráfico, talvez nem existisse hoje um ritmo tão descarado e divertido para jogar na cara de todos os problemas morais e sociais do Brasil. O brasileiro incuba toda uma gama de preconceitos, crimes, violência, exclusão e desigualdades – ninguém se surpreende. Agora, coloque um „tum-tum-tá‟ e fale do assunto em letras sem preocupação com o politicamente-correto e veja no que dá. Muitos criticam dizendo que é baixaria talvez sem perceber a relação que a baixaria tem com as próprias vidas. Quem não conhece uma menina adolescente grávida? Quem pode dizer que não reproduz nenhuma forma de machismo? Boa parte da cultura do brasileiro tem uma pesada carga sexual (o erotismo está em tudo, propagandas, revistas, filmes), qual o problema de estar também nas músicas?


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E para quem acha que o Funk é só barulho ou vulgaridade, precisa ver o exemplo dado pelos MCs Cidinho e Doca, MC Bob Rum, MC Sapão e tantos outros. Há muito protesto, muita verdade nas músicas criadas pelos excluídos, mesmo quando dizer „excluído‟ significa dizer „traficante‟. É impossível negar a simbologia dos Proibidões e seu sucesso no mundo das favelas. Tem alguma coisa escondida sobre esse fato, tem um problema aí. Só que a solução passa pelo resgate dessa população e não pela simples censura às músicas que a retratam. Nem o Samba, nem Bossa Nova ou a “popular” MPB tiveram um caráter tão revolucionário quanto o Funk. O pobre pode ainda não ter vez, mas agora, com o Funk, pelo menos tem voz. E isso está incomodando muita gente. E divertindo muita gente. Por que não dizer? Está criando um canal de comunicação direto entre a cultura da periferia e o resto da população. Um elemento se destaca dos demais quando se fala de Funk. O ritmo nascido nos Estados Unidos e transmutado nas periferias do Brasil não é, em essência, bom. Nem mal, aliás. Tem servido como canal de comunicação e mensagem ao mesmo tempo, é um instrumento, e tem sua importância ligada ao uso que se faz dele. Bem utilizado, pode até ser uma arma a favor da emancipação social do excluído. O Funky dos Estados Unidos nasceu ligado ao Hip-Hop. Era uma tentativa de superação da periferia norte-americana. No Brasil, começou como uma festa, uma brincadeira de baile e foi crescendo. Hoje as letras do ritmo são tão variadas que enfocam quase todos os assuntos imagináveis, desde o consumismo ao status de quem pratica melhor o sexo. O grande público reclama das letras que falam de „tapa nas poposudas‟, etc. Talvez essa seja a grande mensagem da periferia: se divertir dando um tapa na bunda de quem dança Funk. E outro na cara do Brasil.


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