Armando Amorim
Armando Amorim
Índice Rio Comprido
Terra de samba e batuqueiros................................................................
Prédios e comércio contam histórias......................................................
Gente do pedaço.....................................................................................
Um lugar novo........................................................................................
Quando se brincava de verdade..............................................................
A turma mais velha................................................................................
Olha a água!...........................................................................................
A tribo da pracinha.................................................................................
Nos apelidos, a descrição........................................................................
Parceiros da sueca.................................................................................. Inventando brincadeiras.........................................................................
Hotel barato, ao luar de Paquetá............................................................
Roial.......................................................................................................
Namoro da adolescência, uma encrenca.................................................
Paquera da juventude.............................................................................
Um bar Divino........................................................................................
As zonas não se entendiam....................................................................
Nos morros só se morria de rir...............................................................
71, morro do Sabiá.................................................................................
A gostosa linguagem...............................................................................
117, terra do “Canudo”...........................................................................
Nivaldo e sua gente.................................................................................
Encontro o Salgueiro e sua musa...........................................................
Automóveis, nem tanto...........................................................................
O carro que mais andou (na prateleira).................................................. O galipão reinou..................................................................................... O fiatizinho cansado............................................................................... Música, essa arte me envolve.................................................................
Encontro com bambas............................................................................
João........................................................................................................ Ismael.....................................................................................................
Tom da Bahia, meu parceiro..................................................................
HORA DO JANTAR
Gente que me fez rir e pensar.................................................................
Dantoni, um leão.................................................................................... Mucio, o caboclo que deu certo...............................................................
Um pirado da zona sul...........................................................................
Menelão, esquecido e distraído............................................................... Mica e Zé Trim, meus amigos.................................................................
Um encontro...........................................................................................
A mãe do Zé Flor.....................................................................................
UMA ÉPOCA DE NOTÁVEIS
Tempo de encantamento........................................................................
Tecnologia pra quê.................................................................................
Não estão fazendo a coisa certa..............................................................
O político brasileiro.................................................................................
Não é má vontade...................................................................................
Violência que até Deus duvida................................................................
COISAS DE ONTEM E HOJE Muitas coisas boas, outras nem tanto....................................................
Futebol, uma paixão...............................................................................
O Rio de lugares e manjares...................................................................
Ô abre alas que eu quero passar............................................................
Depois da alegria, uma tristeza............................................................... Paz e Amor.............................................................................................. Papo cabeça............................................................................................ Palavras e expressões vão mudando.......................................................
Nada como um tempo atrás do outro.....................................................
Os remédios não eram tantos................................................................. Para viver: não veja, não leia, não escute................................................
Alô, Alô, quem fala..................................................................................
Assustando os coroas.............................................................................
PARTE II TEMPO DE APRENDER
Sem exagero...........................................................................................
TEMPO DE TRABALHAR
Uma diversão..........................................................................................
Vem trabalhar, vagabundo!.....................................................................
Uma Agencia diferente............................................................................
Após o expediente...................................................................................
Como ganhar a conta de multinacional..................................................
Pedro Licthinger, o responsável por esta história.................................... O leite em nossa vida..............................................................................
Uma equipe diferente..............................................................................
Virando revisteiro...................................................................................
Vivendo de cartaz...................................................................................
Fabricando sem fábrica..........................................................................
Uma inventada profissão........................................................................
Criando uma Secretaria..........................................................................
Um dia entrei na moda...........................................................................
Nuvinho Verde e Azul da Silva................................................................
Por acaso, entrei nas artes...................................................................... ASSUNTOS FAMILIARES Pai, mãe e a gente...................................................................................
Seu Armando d’Amorim, a bondade.......................................................
Dona Idalina, pessoa linda.....................................................................
A primeira Maria.....................................................................................
A segunda Maria.....................................................................................
A terceira Maria......................................................................................
Casal nota 10.........................................................................................
Nos 50 anos a família cresceu................................................................
Que lugar é esse?...................................................................................
Das origens, o lado Amorim.................................................................... Os Mendes.............................................................................................. Prédio roubado....................................................................................... De um par de sapatos de sapatos velhos,à venda de Mig’s..................... Outros da grande família........................................................................ A FAMÍLIA DE TERESÓPOLIS Moacyr Borelli, um personagem notável................................................. Os Mottas...............................................................................................
Nossa segunda cidade............................................................................
OS ALBUQUERQUE SALLES Maria Luiza, a guerreira.........................................................................
Chalé, um lindo lugar.............................................................................
A FAMÍLIA ACONTECEU
Gilda, o amor da minha vida..................................................................
Bianca.................................................................................................... Mandinho............................................................................................... Eu...........................................................................................................
ustamente isso que torna esse livro interessante. Biografias de pessoas famosas são aos milhares e a gente tropeça nelas, em qualquer livraria. Sejam de cantores, filósofos, escritores, jogadores de futebol, apresentadores de programas de tv, políticos, criminosos e até gente que faz saliência. Duvido é que encontrem a história de uma pessoa comum. Vão dizer: Claro! Ninguém se interessa. Respondo: aí é que está o erro. Você deveria prestigiar muito mais as pessoas como eu, que é você também: anônima. Mas se alguém fizer muita questão, juro que me esforçarei para entrar no próximo Big Brother. Voltando ao assunto, a diferença maior entre o famoso e o anônimo, é que deste ninguém vai escutar: “Sabe com quem está falando?”. Outra, bem evidente aparece nesta orelha. Para o famoso, haveria fila para falar do autor. E como se vê, no meu, sou obrigado a fazê-lo. Natural do Rio de Janeiro, de nome completo Armando Mendes de Amorim, nesta vida nada fiz de extraordinário e nem de tão especial. Foram coisinhas simples, sem maior importância, mas sempre divertidas e prazerosas. Li um pouquinho. Posso dizer que li os grandes filósofos, mas não bebi nada em suas fontes: eles só apontaram os meus defeitos. Li os homens de negócios e eles só me mostraram como dividir mal as riquezas. Li os políticos e vi neles só a fome do poder. Sobrou um, que me ensinou que as verdades definitivas estão nas coisas simples. Pregaram-no numa cruz. Assim, me aproximei das pessoas simples, dos poetas e dos artistas e outros que correm à margem e das solidárias, que oferecem amor. Nelas encontrei as minhas verdades, e as minhas utopias. Passei a gostar de gente. Aqui, conto diversas historinhas da gente maravilhosa que encontrei e com quem convivi em muitos anos que piso nessa bola azul, que roda por aí, como brincadeira de menino, que puxa fieira de pião. O autor
Uma explicação Dos amigos, na certa a exclamação e da “turma do sereno” a gozação: agora também escritor? Quequéisso! Pegou a mania que anda por aí de contar Memórias! Sei que vou ter que arranjar motivos para este tresloucado gesto; e já estou arrumando vários. Um deles, a orelha explicou. Poderia dizer também que o motivo é para falar do Rio Comprido, bairro de que ninguém conta nada, mesmo porque nada tem para ser contado. Isso para quem lá não viveu. Nos meus primeiros 40 anos de riocompridense pude perceber que o bairro tem algo de especial. E eu mostro. Outro motivo, perfeitamente justificável, é que participo de uma grande família e acho importante que os descendentes pequenos e os que virão, conheçam os seus ancestrais. Se isso não servir para grande coisa, talvez possa facilitar nas lembranças, se um dia, algum deles, necessitar de psicanalista – o que não é nada improvável. Mas para encurtar, vou direto ao assunto: gosto de gente. Carrão, iate, roupa de grife, casa com piscina, tv com telão e todos os bens de consumo com que alguns sonham, nunca foram desejos absolutos, apesar de que posso usá-los sem reclamar. Bicho, natureza, eu adoro. Mas prefiro mesmo é gente. Se fosse dizer a preferência, as mais simples me agradam mais. Tenho certa predileção pela gente do subúrbio, do campo, das favelas; de gente em estado mais puro. Para me situar melhor, gostaria de bater papo com Zeca Pagodinho e não com Sartre. Este, um chato, que nem cantar sabia. Mas gosto de quase todo tipo de gente, principalmente as que me fazem rir, as que são solidárias, as que sabem amar e as que me fazem pensar. Como se vê, gosto mais da parte invisível do que a concreta. Esta acho até que poderia ser modificada em alguns itens. Apesar do mecanismo extraordinário, criado por quem sabe das coisas, algumas modificaçõezinhas poderiam ser feitas. Gordos não existiriam, pois haveria uma válvula, tipo da que faz xixi, para eliminar qualquer excesso. Assim poderia se servir de qualquer delícia. Perderíamos Armando Amorim - Memórias
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um Jô Soares, mas o resto viveria em paz. Pode até um engraçadinho contrapor-se dizendo que se todos fossem gordos o mundo-seria-mais-unido. Não concordo. Os braços poderiam ser um pouco mais compridos, não só para coçar as costas, mas se pensarem teriam muitas outras serventias. Nervo de dente estaria abolido. No homem, o saquinho balançando, me faz pensar que não cabia mais nada ali dentro. O Criador pensando... pensando... Acabou fazendo duas bolinhas de barro e esteticamente via que a sua obra, estava perfeita. Para não atrapalhar, fez um saquinho, colocou as bolinhas e achou um lugar escondido para dependurá-lo. Mas não imaginou que um dia seria inventado a bola, e quem jogou futebol, sabe que estou com razão. Por dentro, colocaria um só rim, blindado a dores e de longa duração. Mas o coração, este sim, seria dois. Um ficaria na reserva e entraria em funcionamento, igual a gerador de prédio de luxo, quando é cortada a energia. A pele, um pouco mais resistente, para não amassar tanto. E nela, colocaria mais uma cor, apesar da marrom me agradar. Mas acho que gente azul possibilitaria miscigenação mais alegre. Misturada à amarela, poderia se exclamar: “Que menininha verdinha...” parece uma alface saindo da horta... Fresquinha... E o paquerador: “posso colocar azeite em você?”. Mas, na verdade, o que o Criador poderia ter feito, era um dispositivo mágico, para quem acumula tanta riqueza e não sabe repartir. Haveria um limite que o mortal não saberia qual. Passando disso, perderia tudo e teria que se sustentar com um salário mínimo. Daqui. Ou, se não quisesse fazer isso, pelo menos não inventasse o político brasileiro. Voltando ao motivo desse livro, fui andando nessa vida por aí, colecionando gente, e as historinhas que aqui conto, mais do que minhas, são dos amigos. Se procurarem estilo, claro que não vão encontrar. Gostaria de jogar as palavras ao léu e que elas colaborassem, caindo nos lugares certos. Não sendo possível, vou arrumá-las do meu jeito nas pequenas contações, onde há historias de gente incrível, personagens que dão razão ao que digo: gente foi uma incrível invenção. Melhor que ela, só Ele próprio. 12
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Rio Comprido De qualquer bairro que se fala, é comum dizer: “antigamente, era muito diferente”... Isso não acontece com o Rio Comprido, principalmente em seu aspecto arquitetônico. Ali continuam as casas em estilos que não ouso nomear, mas que seus beirais, decorações rococós e arabescos, denunciam ser do início do século passado. Nelas, as mesmas lojas, o mesmo comércio continua ali, como se o tempo tivesse parado. É certo que do seu epicentro, o Largo do Rio Comprido, com nome nobre de Praça Condessa Paulo de Frontin, foi retirado o pomposo e belo coreto. Também, com o passar do tempo, algumas belas residências foram sendo transformadas em empresas, o que nos faz ter o sentimento de uma ocupação insensível. Isso se deve, inicialmente, ao viaduto que se sobrepôs ao rio que nasce na serra Carioca e sua massa de concreto sombreando as charmosas casas da Avenida Paulo de Frontin, onde vivia a burguesia do bairro, antes da abertura do Túnel Rebouças. Algumas delas perderam por isso seus moradores, dando início à ocupação empresarial em todo o bairro. Nesta avenida, entretanto, continua preservada a Casa do Bispo, onde dizem, D. João VI passava as suas férias. Mas grande parte dos 212 flamboyants vermelhos e amarelos, contados pelo amigo Ruy Paneiro, que coloriam a bela avenida, foi arrancada. De um modo geral, quem esteve afastado do bairro nos últimos 50 ou 60 anos, vai ter a impressão de que nada mudou. Principalmente alguma coisa um pouco misteriosa, que impregna os que lá moram ou moraram, como é o meu caso. Apesar de não ser um bairro bonito, charmoso, nem tão pouco possuir qualquer atração, o Rio Comprido tem algo especial, que não nos permite esquecê-lo. E pode- se afirmar que não é melhor do que qualquer outro, mas diferente, como se diz da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Talvez, por estar próximo à zona sul, de onde aspirava a sua moda e modernidade, e ser um bairro da zona norte, com a maioria da população, naquela época, morando em casas com quintal, conhecendo-se pelo nome, vivendo vida de vizinho. Armando Amorim - Memórias
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Pode-se até compará-lo à música criada por um de seus moradores ilustres, Jorge Benjor, que pegou o samba tradicional de origem nessas bandas e misturou ao rock e até ao samba sofisticado da zona sul. E criou uma batida única e diferente, consagrada mundialmente. O Rio Comprido é essa batida.
Rua Citiso
Praça Del-Vecchio
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Rua Dipsis, agora Paula Frassinetti
Rua Dipsis era seu nome antigo
SantanĂŠsia
Bem antes de virar bairro, no século 17, a área era um grande canavial, para se produzir açucar que seria enviado à Coroa. Também a região abrigou o Quartel General do Exército no tempo de D.João VI por aqui. Foi batizada em razão do nome do rio que passava nos fundos das casas da Rua Aristides Lobo. Dos tempos idos, resta somente a Casa do Bispo, construída no início do séc. XVIII pelo engenheiro José Fernando Pinto Alpoim. Estava ela em terras da Sesmaria dos Jesuítas, Fazenda Rio Comprido, e servia de casa de campo do bispo D. Frei Francisco de Jerônimo. Depois de outros, até passar para o Seminário São José. Hoje, tombada, pertence à Fundação Roberto Marinho. Não muito grande, o bairro é “primo-irmão” do Catumbi e da Tijuca, do Estácio e Santa Teresa. Estende-se por 41 ruas, uma avenida, cinco travessas, uma estrada, um grande largo, uma pracinha e uma ladeira, apesar de que o catálogo do CEP indique muitas outras. Nos meus 45 anos lá, só conheci essas.
Casa do Bispo, hoje sede da Fundação Roberto Marinho e ao lado, desenho da casa, por Benjamim Mary, de 1836
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Fazem parte dele a Matoso e Barão de Itapagipe, esta cortada pela Rua do Bispo que começa no Largo do Rio Comprido e vai até a Hadock Lobo. Saem também do Largo a Aristides Lobo, a Rua da Estrela que se liga a Itapiru e Barão de Petrópolis. Também do Largo sai a Santa Alexandrina, que termina na Almirante Alexandrino, subida para o bairro Santa Teresa. Da Guaicurus saem as ruas Caturama e Jaqueira. A Paulo de Frontin, que já foi chamada de Avenida Rio Comprido, aberta em 1919 pelo prefeito Paulo de Frontin, é a única avenida do bairro. Outras ruas completam a região: Costa Ferraz, Caetano Martins, Visconde de Jequitinhonha, Campos da Paz, Azevedo Lima, Ambiré Cavalcante, Dona Cecília, Salvador de Mendonça, Cândido de Oliveira, Gumercindo Bessa, Augusta de Sá, Engenheiro Veiga Brito, Tenente Vieira Sampaio, Aureliano Joaquim Santana, Ana Maria e Dr. Roberto Gonçalves Lima; a Sampaio Viana com suas transversais Japeri e Barão de Sertório; Aureliano Portugal, Paula Frassinetti (Dipsis), Citiso, Praça Del Vecchio, estrada do Sumaré, Conselheiro Barros, Batista das Neves, Infante de Sagres, Santanésia, Paula Ramos, e as travessas da Luz, da Paz , Celina, Grapirá, Antônio Pedro Galliazzi e a ladeira Souza Doca. Parte da Barão de Ubá, onde morou o amigo Gabriel, faz parte também das ruas do Rio Comprido. Algumas delas agitadas, outras sonolentas; poucas, com jeito melancólico, pois a maioria ruidosa e alegre.
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Nas vias principais, corriam os bondes Matosos (51), Bispo (48), Santa Alexandrina (47), Estrela (46), Itapiru (43), Itapiru Barcas (45) e Rio Comprido (50). Às vezes aparecia o “Bagageiro” que descia a Itapiru rumo à cidade, recolhendo mulheres com trouxas de roupa, homens com cestos, caixotes e até mudanças; gente carregando as suas tralhas para algum lugar, pois era um frete barato. Havia também o “taioba”, pintado de marrom e preferido por muitos, pois a passagem custava quase nada.
No Carnaval
Bonde Bagageiro
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Quem não conheceu o bonde, perdeu a oportunidade de fazer uma viagem gostosa, às vezes demorada, mas sempre prazerosa. Podia-se dizer que o bonde era um símbolo do socialismo democrático, pois nos seus estribos se apertavam médicos, gerentes de banco, operários, advogados, balconistas, lixeiros, sem privilégios para ninguém. Era um tempo de andar sem pressa, de ir de um lugar ao outro recebendo a brisa que sempre havia e com vista panorâmica. Na hora do rush, gente em pé entre os bancos e o estribo lotado, não se esquecendo de agarrar bem o balaústre. Mas, mesmo assim, sempre cabia mais um: bastava empurrar e se encaixar. Quem o dirigia chamava-se “Motorneiro” e, bastava lhe fazer um sinal, que ele dava “meia-trava”, para pegarmos o bonde andando. Mas tinha-se de ter destreza e muito treino, o que não faltava à nossa tribo. Era nosso esporte radical e cada um possuia o seu estilo. Para identificar cada ponto que o bonde parava, pintavam os postes de branco, na parte inferior. Dentro do bonde, havia pequenos painéis com propaganda, entre os quais se destacavam: “Tome Urudonal e viva contente” ou “Glostora, cabelos lindos e brilhantes” e o mais famoso: “Veja ilustre passageiro/ o belo tipo faceiro/ que o senhor tem ao seu lado/ mas, entretanto acredite/ quase morreu de bronquite/ salvou-o o Rhum Creosotado”. Armando Amorim - Memórias
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Quem cobrava as passagens era o “condutor”, talvez por ser ele quem comandasse a saída do bonde em cada ponto, puxando a cordinha que fazia “dim-dim”. O condutor era uma figura da paisagem do Rio. De terno azul marinho com botões dourados, colete, gravata preta e um quepe que se usa até hoje nas bandinhas do interior, ia ele pelo estribo, de banco em banco, chamando a atenção dos passageiros: “Faz favor!” ou “Feiz fevoire”, isto porque, havia numerosos patrícios. No verão, alguns vestiam ternos claros, de linho de caruá. Claro que o “beiço” existia e era mesmo uma “instituição”, principalmente quando se estava “duro”. Aí, tínhamos uma série de macetes: se estivéssemos no início do bonde, apontávamos para qualquer um na “cozinha”, que era o seu final, mostrando quem pagaria. Como a cobrança era demorada, ao chegar lá, já havíamos saltado. Outra era ir passando do carro principal para o reboque e vice-versa, sempre longe do condutor. Nos bondes com estribos dos dois lados, ficava ainda mais fácil. E se alguma dessas falhava, valia então a “cara-de-pau”: “Já paguei”. Isto era possível, pois não havia bilhetes ou fichas e simplesmente porque o “condutor” recebia o dinheiro de vários passageiros e só depois puxava a cordinha que marcava no relógio, as passagens cobradas. E era quase certo ele marcar 10 para a Light e duas para o seu bolso. Ninguém se importava de ele dar também “beiço” na estrangeira canadense. Os trilhos por onde andava servia ainda para os bons de volante. Encaixavam as rodas nos ditos, para não trepidar nas ruas calçadas com paralelepípedos. Ramsay era craque nisso. Acabaram-se os bondes e nos deram as famosas lotações, que corriam em demasia para faturar mais e em consequência, aumento de atropelamentos e desastres. Mais tarde entraram nas vias os ônibus “chifrudos”, pois se serviam, como os bondes, da rede elétrica aérea, para andar. Começou o tempo da correria.
Terra de samba e batuqueiros Poucos sabem, mas o Rio Comprido, como o Estácio, foi também terra de samba. Nos morros dalí não faltavam as rodas de sambistas com seus bambas e batuqueiros, que faziam surgir blocos e escolas de samba. Até a idéia de criar a “Deixa Falar”, do Estácio, foi discutida na “Chacrinha do Vintém”, que ficava no final da Barão de Itapagipe. Ali se reunia a turma do Estácio com os sambistas do 20
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lugar. Afinal, o líder do grupo que criou a primeira escola, Ismael Silva, morou e estudou no Rio Comprido. No bairro surgiram a “Unidos da Colina”, no Alto da Matinha, a “Paraíso do Grotão”, no Querosene, fundada por Martinho Coelho de Morais, tio do Canca, conhecido como “Martinho Bonito” ou “Martinho Beleza”. A “Deixa Malhar” foi outra. Ao ser desfeita, toda a sua bateria, que era excelente, foi levada por Mano Eloi para a Império Serrano. Uma das famosas foi a “Fala quem quiser”, cujo diretor de harmonia era o Ataulfo Alves e dela, fazia parte também Alcebíades Barcelos, o Donga. Já na Barão de Petrópolis destacava-se a “Independente do Barão” e no morro do Turano, a “Coração da Liberdade”, a azul e branco. Quem mandava nesta, era o “seu Baixinho”, mas sucesso, quem fazia, era o mestre-sala Lionel, irmão do “Canca” e a portabandeira Neuza. Bem mais tarde surgia no morro 117 o bloco “Cometas do Bispo”, que tinha entre seus ritmistas, “Canudo”, ou melhor, o Jorge Benjor de hoje. Mas era no belo coreto erguido no centro do Largo do Rio Comprido, que já foi chamado Largo do Bispo, abrigando em tempos idos o solar do conde de Estrela, o local onde o show de samba empolgava. Nele se reuniam famosos batuqueiros, entre eles “Péde-Ferro”, “Cachimbo”, “Zé da Coroa”, “Zé da Baiana”, “Antônio Palavrão”, “Zé Binho” e “Moleque Diabo”. Também os famosos mestres-salas “Landinho”, do Ponto 100 réis, que desfilava na “Filhos do Deserto” e “Cabana”, que depois foi para a Beija Flor. Apesar de ser um bairro tranqüilo, da paz, junto a batuqueiros apareciam alguns valentões que fizeram fama. Os mais conhecidos, Ademar “Pé de Bicho” e Osvaldo “Beiçola”, este da Itapiru. Mas o que marcou o Largo e seus redutos foi a alegria dos batuqueiros, a ginga do “malandro” que sabia dizer no pé.
Prédios e Comércio contam Histórias Nossa história que se reporta ao Rio Comprido a partir do final da década de 40 conheceu o grande coreto instalado no centro do Armando Amorim - Memórias
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“Largo”, que servia não só para apresentar os bambos do samba, mas para a apresentação das bandas da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros e, claro, para encontros de namorados. Na época da segunda Guerra Mundial, serviu para armazenar metais, doados pela população, como “esforço de guerra”. As famílias, diariamente, levavam panelas, ferros de passar, portões velhos ou qualquer pedaço de metal para ser colocado no coreto, que ficou lotado. Anos depois o derrubaram e ninguém ficou sabendo quem mandou e por que. Uma falta de compromisso com a beleza...
Rio Comprido
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Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
No velho Largo, ao seu redor, sempre os mesmos prédios e o seu comércio: a farmácia Max - que iniciou ali a grande rede, mas a preferida era a Saturno, do Saturnino, onde o Dr. Dias fazia plantão para curar os moradores do bairro. Ia ele à casa de cada um acompanhar o tratamento. Era um médico genial, que nos tratou a vida inteira. Eu e Gilda, já casados e com filhos, morando na Tijuca, algumas vezes ligamos as duas ou três da manhã e ele rapidamente aparecia, com seus oitenta e muitos anos. Chegava pedindo um cigarrinho, e em meia hora fumava uns três; dizia que sua filha o proibia e, assim, fumava escondido. Era melhor do que plano de saúde, pois “consertava” qualquer doença. Mexia na gente aqui e ali; escutava, olhava a língua e os olhos e o diagnóstico e tratamento, perfeitos.
O dentista da região, Dr. Miguel, era do mesmo gabarito. Próximo à Max, o armarinho do Zidan, onde a mãe levava cinco minutos para comprar as suas coisinhas e uma hora de papo. Descendente de turcos me impressionava a tatuagem de seu pai talvez um costume da terra, que tomava os braços, parecendo um tapete oriental. Havia ainda no largo, o Bar Bituca, a loja de flores, a papelaria do seu Ribeiro, e depois do amigo Décio, a Tinturaria Coloser e a sapataria aonde ia, com a minha mãe, comprar os sapatos “Tank”. Na hora do cinema, não existia outro: o “poeira” Apolo, que depois virou a padaria do “seu” Pires, a “Dominante”. Ao lado da Escola Pereira Passos, a Padaria Maia e do lado oposto a Confeitaria Alemã, alegria dos domingos. Nossa mãe chegava da missa trazendo sempre um embrulhinho com solas, palmieries, bombas e canudos - delícias de doces. Foi injustamente depredada na época da Guerra, por serem seus proprietários alemães. Mas reabriu ao término, dois anos depois. Neste mesmo local, imponente, o nosso “arranha-céu”: Edifício Cavallière. Hoje, um prediozinho à toa. Ali perto, o turco das frutas e a loja de presentes, Sérgio’s, do Sérgio Saturnino. Para estudar, podíamos escolher: SOS, Renascença, Paula FreiArmando Amorim - Memórias
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tas, São José, Santa Dorotéia, São Francisco, Pereira Passos, Padre Leonardo Carréscia e talvez outros. Alguns, não mais existem. Hospitais eram poucos: Casa de Portugal, Salles Neto (público), Amparo e o da Aeronáutica. Na Avenida Paulo de Frontin, próximas ao Largo, a Igreja São Pedro, na Caetano Martins a Igreja de São Francisco, e, a mais freqüentada: Nossa Senhora das Dores, no Largo. Lá, a garotada não perdia a missa das 10, pois se concentrava o maior número de “brotos”, como eram chamadas as menininhas da época. Por ela passou um padre extraordinário, Frei Romeu, que os anos hão de canonizá-lo, pela grandiosa obra que deixou por sua solidariedade à gente pobre da região e uma bondade de Santo. Dona Idalina, minha mãe, promovia ali quermesses e os famosos bazares. Colocava dias e meses a máquina de costura para funcionar e dela saiam centenas de roupas para os pobres. No Rio Comprido havia duas casas suntuosas, como vivêssemos o ciclo do ouro ou do café. As duas estavam localizadas próximas, na Rua do Bispo. Uma delas na esquina da Dipsis foi construída por um hoteleiro de Minas, pai do Cândido, da “turma do sereno”. Chão de mármore de carrara, escada dupla para o andar de cima, salões, muitos quartos e banheiros, decoração francesa e outras coisinhas que nós, habitantes comuns, não conhecíamos. Depois foi comprada pela proprietária dos móveis Lamas - famosa na época, e as suas filhas Vera Lúcia, Regininha e Clarinha, deram ali muitas festas. A outra, a “Casa de Pedra”, por sua fachada coberta de granito. Essa, uma mansão imensa, com amplos salões de jogos (sinuca, pingue-pongue, bocha e outros) e até uma grande capela, com vitrais belíssimos. Lá moravam nossos amigos Luizinho e Jorge “Pedreira”. Ambas foram compradas pela Universidade Estácio de Sá, que passou a fazer o Rio Comprido mais conhecido. Chegou ali ainda modesta, adquirindo o Colégio de freiras São José, instalado na Rua do Bispo, numa grande casa antiga e em pequeno prédio, que o mano Hélio (Sarte) construiu. Ali também estudaram as manas Regina e Luiza. A Universidade foi crescendo, subindo o morro, comprando uma casa aqui, outra ali, e hoje é a potência que se conhece, 24
Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
com milhares de alunos em todo o país. Nem todos conhecem o responsável por isso, o juiz, escritor, teatrólogo e artista plástico João Uchoa Cavalcante. Concretista, de uma obra admirável foi, entretanto, um pintor nada convencional. Suas obras poderiam estar em museus e galerias, mas ele as queria que decorassem objetos de nosso cotidiano, fossem transportadas para a moda, em estamparias de tecido; virassem forros de sofás, vasos, barracas de praia e até transformasse os cimentos dos viadutos mais alegres. Era um homem de sensibilidade incomum, com conceitos da mesma forma. Se foi “tirando” a casa de alguém da turma, nos deu em troca uma boa Universidade. Portanto, a Estácio de Sá está perdoada em se intrometer no nosso pedaço. Na Rua do Bispo, havia também o botequim “pé sujo” do Álvaro, ao lado da casa do Paulinho “crioulo”. Era a morada dos biriteiros da região. Perto dali, o “barbeiro”, onde me cortavam o cabelo “à la príncipe Danilo”, que faziam as minhas orelhas dobrarem de tamanho. E ao lado da quitanda do pai do Amândio - o “rei das abóboras”, o sapateiro que colocava 1/2 sola em nossos sapatos, pois era mais barato. Confesso que me dava um prazer enorme quando dias depois ia buscar aquele par, entregue “esbeiçado”, gasto e maltratado. Depois do conserto parecia novo, demonstrando que sapato quando morre, também volta. Em frente da Dipsis, o botequim do Antônio era o nosso “festifude”. Quando se tinha uns trocados, a gente se fartava. A pedida podia ser queijo quente ou misto quente, produzidos numa sanduicheira de ferro; aquele sanduba de pernil tostadinho, no pão fresquinho que às vezes tinha. O meu preferido era o de filé (no nome), cortado quase ao transparente e quando colocado na chapa quente, se retorcia de indignação. Mas era macio pela surra que antes levava e delicioso pelo acebolado fazendo companhia. Quem saboreou essa culinária de botequim, não consegue entrar hoje nos “maquidonaldis” da vida, onde os sanduíches só são gostosos nos comerciais de TV. Parecem, na verdade, de plástico. Na Rua do Bispo não se pode esquecer a oficina do Tuninho. Não precisava ter carro quebrado para se ir lá, pois o papo era sempre divertido e Tuninho, um sujeito especial. Muitas vezes salvou o meu Armando Amorim - Memórias
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“carango”, sem antes deixar de me esculhambar pelos maus tratos. Dizia que o meu carro era quem cuidava de mim. Finalmente, a Despensa Mundial, dos Teixeira. Era época de se comprar quase tudo a granel: manteiga, feijão, arroz, farinhas e até banha de porco ou gordura de coco Carioca, pois não havia os óleos de hoje. Poucos artigos eram embalados e até os biscoitos - que vinham em grandes latas - eram vendidos a peso. Uma das exceções, as goiabadas em lata ou na caixinha de madeira. Mesmo depois do surgimento dos supermercados, a maioria dos moradores continuava a comprar em seu armazém. Valia a amizade e o conforto em pedir as compras por telefone, que o “caixeiro” entregava. E a conta era em “caderno”, apresentada no final do mês. Isso, certa vez, me custou uma grande “bronca” em casa. Havia uma promoção do refrigerante “Guará” que, entre vários prêmios, oferecia uma bicicleta - meu maior sonho de consumo da época. Bastava, para ganhar, verificar se havia debaixo da rolha um recorte de papel, com alguma das letras do Guará. Ao formar o nome do refrigerante e de acordo com a cor, recebia-se o prêmio. A mais difícil era a série verde, que oferecia a bicicleta Monark. Como já possuía as letras GUA —A e só faltava o R, cheguei ao armazém e pedi um engradado inteiro, com 24 garrafas. Assim, tinha a certeza de que encontraria o “R” esperado. Apesar dos meus 10 anos, não pensei nas consequências em mandar colocar na conta, inclusive informando a “seu Teixeira”, a permissão da minha mãe. Estava convicto que ganharia a bicicleta e, na certa, seria “perdoado” pela façanha. Mandei então retirar as 24 chapinhas e deixei lá os refrigerantes. Fui curtir em casa a emoção de ir tirando cada rolha, ansioso, mas já me considerando um “bicicletista”, como os amigos já eram. Puro engano. Decepção total. O desânimo tomou conta de mim, junto com o medo pela merda que tinha feito. Não chegou a me fazer deitar no sofá do psicanalista, mas nunca mais saiu da minha memória o jingle: “Eu vou ali/ Já volto já/ estou com sede/ vou beber o meu Guará... É pra já! E o refrão: “Guará, Guará, Guará/ Melhor refrescante não há... Para mim, o pior!
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Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Gente do pedaço Muita gente famosa ou de expressão morou no Rio Comprido. A musa, não poderia deixar de ser a “Marilinha”, que se transformou numa das maiores atrizes brasileiras. Em recente livro, que conta a sua história, sugeriu que o título fosse “Marilinha do Rio Comprido”, mas os editores acabaram colocando outro. Não faz mal, pois Marília Pêra continuava sabendo que foi ungida pela mágica do bairro e nos fazia sorrir, chorar e apreciar a sua bela voz quando cantava. Perfeita. Bem antes, muito antes, morou no bairro o marechal Francisco Cabral Xavier, “Barão de Itapagipe”, que deu nome à rua, antes nomeada Bela Vista; seu vizinho era o Conde de Sucena, que se instalara na mais bela casa do lugar, hoje abrigando o Hospital da Aeronáutica. Nela, montou o negócio de venda de artigos religiosos. Já a Chácara de Haddock Lobo ficava em grande área, entre as ruas Estrela e Barão de Itapagipe. Outros mais da nobreza e comerciantes ingleses, preferiram a região pelas belas áreas de baixada, circundadas por montanhas de perfis atraentes. E, até negros não alforriados, fugidos de seus senhores, se instalaram por volta de 1888, no morro do “Escondidinho” daí, talvez, o nome da favela que ainda lá existe. Morou no Rio Comprido também, o presidente Floriano Peixoto e o escritor Lima Barreto, que se instalou numa casa de cômodos. No velho bairro nasceu Xangô da Mangueira e viveu Ismael Silva, que depois foi para o Estácio. Outro famoso do pedaço, o cantor Mário Reis, sobrinho do milionário Guilherme da Silveira, dono da Fábrica de Tecidos Bangu. E mais: as atrizes Norma Benguel, Ilka Sallaberry e Ida Gomes, as cantoras Lucinha Lins e Fátima Guedes, os cantores e compositores Ernesto Pires, Dalmo Castelo, parceiro de Cartola, Lulu Santos, Johnny Alf, Jorge Benjor, o tecladista do “Barão Vermelho”, Maurício Barros e, ainda de calças curtas, o carioquíssimo vascaíno Aldir Blanc, que habitava a Maia Lacerda. Também, artistas plásticos como Siron Franco, Orlando Mellica, Farnese de Andrade e Carlos Val, este, o único pintor brasileiro que tem quadro pendurado nas paredes do Louvre; maestro Armando Prazeres, cunhado da nossa Marília “Morena”; Ed Motta, Pedro Rangel, o escritor Paulo Ronai e sua esposa Nora, pais de Cora Ronai; o comediante Silvino Neto (Pimpinela) e seu filho Paulo Silvino e o escritor Pedro Nava, que morou quando Armando Amorim - Memórias
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solteiro, na Rua Aristides Lobo, 106. O radialista Osmar Frazão, não tenho certeza, mas dizem que também lá morou. E mais: Francisco Azmann, o fotógrafo mais premiado do mundo; o escultor Ascanio MMM, o sambista e compositor Delson Carvalho, que viveu no Querosene. Também nesse morro viveu o Ataulpho Alves, que depois se mudou para outro, na Santa Alexandrina. Nele, foi diretor de harmonia da “Fala quem Quiser” e já mostrava a sua elegância no salto carrapeta e terno branco impecável, lavado e cuidado diariamente por D. Judite. Por esse e outros cuidados, Ataulpho compôs pra ela um samba, que afirmava em um de seus versos: “vida da minha própria vida...” Outros do Rio Comprido: Ziraldo, que morou na Santa Alexandrina, cantor Gilberto Alves, Ed Motta, o jornalista Oldemário Touguinhó; juristas, como o desembargador José da Fonseca Passos, meu professor de história no La-Fayette, juízes Antônio Boente, Joaquim Pimenta e Danton Jobim, o pianista Bené Nunes e a bela esposa Dulce que em solteira era a atriz Dulce Bressane; o médico do Fluminense Paes Barreto, o ator Pedro Rangel, o comediante Ary Leite e muitos empresários, como Mário Bethlen, presidente da IBM e dezenas de outros que se destacaram por seus feitos. Até o roqueiro Serguei... O que se vai fazer... Mas foi de uma linhagem que não tem os seus nomes escritos em jornais e outros meios, que se formou uma tribo interessante. Ficou conhecida como a turma da “pracinha” ou “turma do sereno”. Muitas vezes ela descia para o Largo e lá se misturava a outra e virava a grande turma do Rio Comprido. Da turma do Largo era certo encontrar gente tranquila, cabeça no lugar, os porraloucas e alguns poucos que não se acertavam com as leis. Da grande turma se destacavam o tenente Murilo da esquadrilha da fumaça, Ruy Paneiro, Serginho Caruso, Sérgio Murilo, Ronald Gabriel e o irmão Betinho,, Serginho e Eduardo “Tuca”, Sérgio “Kafa” Weilland Vaz, Gustavo, Roberto “Cocada”, Zezinho da “Ducati” Gama, Carol, “Ferro Velho”, Nilo, Kleber, Guarani, Levi “Maluco”, Roberto, o“São José”, Lisa, os irmãos Djalma, Marcelo, Jouberto e Reynaldo, Shia Knobel, Licínio, Dílson, Dalmo e Delson Castello, Sílvio Sampaio, pintor e decorador dos motéis, Alexandre, irmão do Osvaldo, Zé Lopes, Perrota, Nelsinho “Pescoço”, Miguel, Geraldo “Parafina”,Roberto Rego, Darcy “Mais Moreno”, Décio “Dedé”, o Marrom, segurança da Globo e bom de 28
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briga, Fritz, o amante da ópera, Marcos “Loura Fantasma”, irmão de Mauro, Ari “Gatureba”, Cesar Siqueira e o primo Johnny, irmão de Wagner Siqueira, Áureo da “De Soto”, Jacy da Academiia, Osmar “Baixinho”, Ricardo “Cri”, o veterano Seu Thiers, Júlio “Jornaleiro”, “Cabeleira, despachante de lotação, Ademar “Pé de Bicho”, Baianinho, “Nove”, Estonelimo, o Estonel, Devanir “Gordo”, “Santo Antonio”, Custódio, Eugênio, o dentista e deputado Geraldo Ferraz, Belmiro, Nezinho, Ricardo Goró, os irmãos Sílvio e Ruy, Rudá Iguatemi e seu irmão Chicão; Maurílio “delegado” Moreira, Ado, Carlos Alberto “Banana”, Vasco Loureiro, Luizinho Moreira, Luiz Carlos, um pouco doido, que ia do Largo a Copacabana a pé; Luiz “Barba Roxa”, Anildo Fontes, o “Alemão”,Tuninho “Papo Curto” Brito, Nei “Ventania”, Eugênio, Roberto “Navio”, Alberto “Gordo” Trindade, Zeca Pires da “Dominante”, o médico Heitor, que foi administrador do bairro e muito mais gente. E para a nossa diversão aparecia ainda o moleque “Beija Flor”, que jogava um beição de um palmo e depois agarrava as pernas da gente gritando “Papaiêê”!!!! Um dos que volta-e-meia aparecia no pedaço, era o Milton “Caveira”, que morava em outro largo, o do Catumbi, onde Pixinguinha nasceu e também viveu Dercy Gonçalves, Costinha e Moreira da Silva. Seu apelido, bem sugestivo, não era por sua magreza, apesar de que poderia, pois se apresentava fino e encurvado. O apelido fôra lhe dado por causa da moradia, localizada nos fundos do cemitério do Catumbi, onde seu pai era zelador. Certo dia, o “Caveira” foi a um baile de formatura. Para tanto, pediu emprestado um smoking - solicitação comum na época, pois poucos podiam comprar essa indumentária especial. Terminado o baile, o pior: começou a chover e “Caveirinha” não podia deixar que a vestimenta preta do amigo molhasse. O jeito, apesar de estar sem dinheiro, era pegar um taxi: “Motorista! me leve ao largo do Catumbi”. E assim foi feito. Já próximo ao cemitério, pediu que parasse em frente ao portão principal, ao mesmo tempo em que tirava uma grande chave do bolso. “Motorista, um momento que vou apanhar o dinheiro em casa”. Espantado, o homem ainda esperou que “Caveira” abrisse o portão do cemitério, mas logo saiu cantando pneus, a Armando Amorim - Memórias
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mil por hora. Até hoje deve estar contando por aí, que transportou “alma penada”.
Um lugar novo A data, não se sabe ao certo. Dizem alguns que foi por volta de 1918, outros em 1922, que uma grande chácara, pertencente a tal de Dr. Cravo, foi transformada em duas ruas e uma pracinha: Rua Dipsis, hoje Paula Frassinetti, Rua Citiso e Praça Del-Vecchio, esta como o nome do engenheiro que iniciou, em 1881, a construção da Ilha Fiscal. Nossa família, oriunda da Rua Queiroz Lima, no Catumbi, chegou lá por volta de 1941. Havia, nessa época, ainda muitos terrenos vazios e só poucas casas e dois ou três prédios. Essa região passou então a ser a preferida do Rio Comprido e belas residências foram construídas. Passaram a viver ali grandes comerciantes e industriais, professores de universidade, militares, altos funcionários públicos, diretores de Banco, enfim, gente da chamada classe B e B alta, sendo alguns com pouco mais e outros, com pouco menos, como nossa família. Entretanto, em continuação a essa região, encontrava-se o “Morro 71”, que hoje tem outros nomes, ocupada por gente pobre ou bem pobre, com alguns de seus barracos de barro e telhas de zinco e alguns melhores, com tijolos e telhado de amianto. Essa proximidade de gente favorecida pelo dinheiro com os desfavorecidos formou um caldo cultural interessante, influenciando os dois lados. O mais beneficiado, com certeza, foi o pessoal de baixo, pois pôde notar a realidade da vida, as injustas desigualdades e perceber a solidariedade na pobreza. Ali o desejo de compartilhar é espontâneo, faz parte da maneira de viver desse povo. Íamos entendendo essas coisas e reparando que nós e os outros éramos um só. Nós, “os filhinhos de papai”, com dez anos, ou menos, já subíamos o morro para brincar com a garotada de lá. E descobrimos como é gostoso andar descalço, soltar pipa, rodar pião, correr atrás de balão e até brigar. Isto porque, se alguém naquela época cuspisse no chão e um dos dois pisasse, estaria xingando a mãe. Aí, rolava-se pelo chão. Era também comum ver um “filho de bacana” com short de shantung e camisa de linho rodando arco, ou descendo a ladeira em carrinho de rolimã ou patinete de caixote e bilha, produzidos com a supervisão dos meninos do morro. Com 30
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o tempo, as camisas foram sendo deixadas em casa e os calções podiam ser de algodão, muito mais confortáveis. As amizades entre os dois lados foram se formando, tornando-se cada vez mais fortes, à medida que crescíamos juntos. A primeira garotada da rua atendia por Arno, Chicão, Ibsen (Bissoca), Manoel Victorino, Luciano, Mário “gordo” (há sempre um), Kleber, Evandro, Kika, Jonas, Robertinho e Ramsay, o “Ramuca”, que só passou a fazer parte depois que parou de jogar pedra na turma. Era terrível. Logo depois chegou o Luciano. Do morro, Tim-Tim, Aloísio, Pedro Sabiá, Velha, Berê, Aníbal, Milton “Canoa”, Canca, Baiano, Zequinha “Espingarda”, Peroba e outros.
Manoel Victorino
Eu e Jonas
Eu e Zezinho em Paquetá
Luciano, Lucia e Luiz com os pais
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Chiquinho com Tereza
Eu e Arno
Lino, Bento, eu e Robertinho
Ramsay e Celia
Silvio Turner, irmĂŁo do Arno e a neta
Fato curioso e não comum à época, os pais da garotada recebiam bem o pessoal de cima, talvez pela imposição dos filhos. Quem mais e melhor recebia a molecada eram os pais do Ibsen, seu Heitor e Dona Quininha. Figura controvertida, pois comunista convicto, de colocar bandeira do partidão na varanda era, entretanto, grande industrial, dono da Casa Ramenzoni, o maior fabricante de chapéus, na época. Ele, com a esposa pianista, faziam o quintal da casa virar cinema no fim de semana. E o morro descia, para assistir aos filmes de faroeste e de Carlitos. Também chegava o “regional” da favela e a noite de música era regada a cerveja, com salgadinhos, risadas e muito papo.
Quando se brincava de verdade Como sou do tempo em que se bebia refrigerante com canudinho de palha, pode-se notar que não havia computador e nem TV com seus videogames. As brincadeiras aconteciam no chão da pracinha (Del-Vecchio), que ainda não era. Tratava-se de um terreno plano, grande e com terra, nada melhor para se jogar pelada, soltar pipa e brincar todas as brincadeiras. Até soltar “maria-preta”, um balão feito de jornal, ou rodar “arco”, produzido com aros de barrica. No tempo da bola-de-gude, jogava-se “burica”, ou “bulica”, “zepelim” e “triângulo”. Cada um carregava seu saquinho de sal - que era de tecido - com as suas bolinhas. O jogo, sempre “à vera”, ou seja, quem ganhava levava a do outro, o que doía e frustava. Eram as primeiras sensações infantis dessas emoções, pois não se conhecia a arte de saber ganhar ou perder, que a vida ensina depois. Valiam mais os “olhinhos”, bolas com várias cores. Depois de receberem muitos “tecos”, as bolas ficavam “cacarecadas” e a discussão: valiam ou não. Ninguém queria receber bola quebrada. As responsáveis muitas vezes, as bilhas (de metal), daí outra discussão, de se jogar ou não com elas. E tome “marraio, firidô sou rei”. Muitas vezes os jogos acabavam em porrada. E quase sempre, porque “sumiam” bolas. Certa vez, descobriu-se um dos autores da façanha: Manoel Victorino, filho de “seu Mello”, dono dos famosos Calçados Armando Amorim - Memórias
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Polar/DNB, que possuía um sapato (caríssimo na época), chamado “Herlaine”, com alta sola de borracha e nela, grandes sulcos. Bastava pisar em qualquer bolinha, que ela ficava presa à sola. Assim, as roubava e podia-se revistá-lo, o que se fazia com todos, mas as bolinhas não apareciam. Um dia foi descoberto e levou umas “pitombas”- a porrada da época, que podia ser também, “catiripapo”. Brincadeira que sempre dava confusão era “carniça”, pois ninguém aceitava o “tinteiro”. Isto porque, na turma só havia espadas. Pelo menos, tudo levava a crer. Tempo de vento era tempo de soltar pipa. Havia as “cafifas” - semelhantes às de hoje e as “modelos”, com formato hexagonal, às vezes possuindo “chifre” e bandeirinhas. As primeiras eram produzidas com bambu e as outras, sempre bem maiores, com “varas”, vendidas nas quitandas. Soltava-se ainda uma pipa sem rabo, que a gente chamava de “arraia”, mas tinha poucos adeptos. As cafifas se soltavam com linha 10 e as modelos com barbante encerado. Todas levavam “cerol” - vidro em pó, conseguido com cacos de vidro colocados no trilho do bonde. Passava-se com goma arábica em alguns metros da linha ou do barbante, perto do cabresto, para “cortar” a do adversário. Valia ainda, para isso, colocar uma gilete no final da rabiola. Como não era tão aquinhoado como a maioria da garotada, passei a ganhar um dinheirinho com isso. Fazia belas pipas e as vendia. Depois, com uma cafifinha saltitante, saía cortando todas elas, e no dia seguinte havia mais para vender. Quando chovia, o chão arenoso da pracinha ficava macio e nos convidava a jogar “ferrinho”, que nada mais era do que um pedaço de vergalhão fino, com uns 25 centímetros de comprimento. Jogavase do alto para fincar na terra e, ligando os traços, formando linhas, ia-se prendendo o adversário, até vencê-lo. Mas se a chuva caísse forte, o jeito era ficar em casa lendo as aventuras de Capitão Marvel, Príncipe Submarino e outros, nos gibis, que podia ser o “Globo Juvenil” e as histórias de Reco-Reco, Bolão e Azeitona, na revista TicoTico. Já as meninas, as revistas Grande Hotel e Capricho. Como se vê, sou do tempo do bilboquê e de calçar galochas. 34
Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Balões
Pipa
Rodando arco
Bola de gude
Pegando borboletas
O piĂŁo
Brincadeiras no morro
Pelada no morro
O pião tinha também o seu tempo; mas a época dos balões colorindo o céu, era a mais esperada. Além das festas com suas delícias juninas, suas fogueiras e quadrilhas, o que mais nos divertia eram os balões. Centenas deles subindo e descendo, transmitiam certa magia. Fazíamos balões tangerina, charuto, caixote e de outros formatos. A bucha era com tiras de saco de aniagem, onde esfregávamos sebo (apanhado no açougue), breu, parafina e as embebíamos com querosene. Eram leves, os balões subiam muito e quando desciam estavam sempre apagados. Cheguei a soltar balão com pouca bucha e nele amarrava a linha da pipa, para recuperá-lo. Mas o mais gostoso era correr atrás deles, com bambu na mão. Quem chegasse à frente e fosse bom de briga, pegava-o sem problema; mas se fosse “frouxo”, aí todos “tascavam”, isto é, pedrada e bambuada. Uma delícia... Outra brincadeira que se curtia era a de roubar frutas nos terreno do Seminário São José, que ficava na Avenida Paulo de Frontin, mas os fundos ocupava um morro inteiro, o Sumaré. Lá o convite de jambeiros, jaqueiras, mangueiras, tamarineiras e até de um coqueiro, de “coco-de-catarro”, além de pés de Jamelão. Uma delícia aquelas frutas e o melhor roubá-las, podendo levar “tiro de sal”. Hoje, a garotada deve pensar que fruta nasce em supermercado. Havia outras maneiras de se divertir e uma delas, colecionar figurinhas. As primeiras do meu tempo foram as que vinham junto com as balas “Fruna”, estampando artistas de cinema. No álbum, o mano Hélio chegou a ter todas, ou seja, conseguiu a de número 34 (Nils Aster), a “figurinha difícil”. Também havia as figurinhas (em cartão) que eram encontradas nas caixas do sabonete Eucalol. Lindas. Jonas possuía a coleção completa. Outro sucesso foi o das balas “Ruth”. Mas qualquer figurinha que aparecesse virava logo jogo de “bafo”, conhecido até hoje pela garotada. Outra mania que volta-e-meia aparecia, era a de colecionar 38
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maços vazios de cigarrro. Valia troca, aposta no cara e coroa, no dado, na “porrinha” e no que pudesse ser. As marcas eram muitas: Saratoga, Liberty Ovaes, Kool, Petit Londrinos, Columbia, Astória, Continental, Club, Hollywood, Beverly, Galaxy, Elmo, Capri, Kent, Derby, Finesse, e os estrangeiros, que valiam mais: Chesterfield, Camel, Philips Morris e outros. Certa vez alguém lançou o boato de que a Souza Cruz dava prêmios a quem colecionasse aquela fitinha que abre o maço de cigarros. Todo mundo passou a disputar a tal fitinha, muitos chegando a ter mais de 500. Quando se foi a Souza Cruz, trocar cada lote de 100 pelo prêmio, nada existia. Era um blefe. Jogo que também fazia sucesso era o de “chapinhas” (de garrafas), jogado nas calçadas. Quem conseguisse jogar a chapinha mais perto do muro, partindo do meio-fio, ganhava a do outro. Havia também hora para brincar com as meninas. Só não valia brincar de boneca. Com elas, “amarelinha”, “queimado”, “berlinda”, “bandeira”, “mamãe posso ir”, “amigo ou amiga”, “cabra-cega”, “bente-que-bente-ó-frade”, “estátua”, “passar anel”, pique-esconde, “pular corda”, “mãe-da-rua”, a gente encarava. E “pera-uva-maçã”, a preferida - principalmente na casa da Neide, na Citiso. Além dessas, apareciam outras, como no final da década de 40 o iô-iô, depois o bambolê para as meninas. E se jogava volei no paralelepípedo e ping-pong na casa do Chicão. No mais, era responder nos “cadernos-questionários”, as perguntas que as meninas preparavam, querendo saber, “o filme que mais gostou”; “a música preferida” e, algumas delas, para descobrir as paqueras. Mas nem sempre tudo é perfeito. Naquela época não havia a consciência ecológica que a meninada de hoje tem e os bichos viravam nossas brincadeiras. Se fôssemos vistos por gente de hoje, seríamos considerados bárbaros. Principalmente ao nos assistirem colocando fogo nas moitas de capim seco e vendo a nossa alegria diante do matagal “lambendo” e estalando. Morcego era apanhado, para ser colocado numa linha e solto como pipa. Camaleão, dos grandes, colocava-se em coleira e virava nosso “cachorrinho”. Biquinhos-de-lacre, apanhados com varas de bambu besuntadas de visgo, retirado das jaqueiras; borArmando Amorim - Memórias
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boletas chegamos a caçá-las com puçás e até vendê-las, durante certo tempo, a um comprador que as revendia. Escaravelho virava “boi de carga” puxando caixinhas com rodas, que fabricávamos. E tudo que se mexia acabava ganhando um teco de atiradeira, ou de ar comprimido, da espingarda do “Papel Fino” Talvez, o personagem “Nuvinho Verde Azul da Silva” - um anjinho defensor da natureza, que criei dezenas de anos depois, tenha sido para me redimir das malvadezas infantis que pratiquei. Tudo isso foi hoje substituído pela Tv e os I-phones da vida.
A turma mais velha Havia a turma mais velha, uns 4 ou 5 anos em média, mas que fazia muita diferença, naquela idade. Era a patota do meu irmão Hélio: Raul, Zé Carlos, Wilson “Caramelo”, Tuninho, Zequinha, Benedito (Dito), Madureira, Zezé, Geraldinho, Etevaldo, Lourenço e os que chegavam no pedaço: Homero, Ciço, Guilherme, Lola, Manoca, Quincas e os que esqueci. Um deles, o Zé Carlos Moreira Alves, parceiro diário do mano, no xadrez. Chegou a ser Presidente do Superior Tribunal e, durante certo tempo, Presidente da República no Governo Sarney. Bem garoto, fatos me marcaram a época, como a chegada da temida DGI, para acabar com as peladas que se jogava na “pracinha”. Vinha então o camburão preto e vermelho, chamado por isso “flamenguinho”, com policiais cuspindo fogo, truculentos, herança da covarde polícia da ditadura Vargas, comandada por Felinto Müller, com características nazi-facistas. Essa turma era boa de bola, mas o mano Hélio, melhor no “Jogo de botão”. Possuía ele um atacante fininho, vermelho, chamado “Vevé” e outro pretinho, Zizinho. Eram craques: jogavam a bola no ângulo, em qualquer posição. Eu, bem mais garoto, ficava “babando” com aquele time, com jogadores perfeitos para cada posição e sempre concentrados numa caixa de charutos baixinha e envernizada. Quis imitar um de seus botões de coco que jogava na defesa, e gastei vários dias raspando-o na parede de pó-de-pedra do edifício. Não consegui.
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E, para a minha frustração, chegar perto daquele time, nem pensar. Seus adversários, quase sempre os mesmos que depois tocavam em conjunto: Hélio ao piano, Zequinha Brito e Wilson “Caramelo” nos violinos, além do Zé Carlos e Raul que talvez ficassem no ritmo. O mano Hélio, bom de xadrez, jogava também com um velho inglês, Mr. Thomaz, marido de dona Antoninha, que moravam no apartamento ao lado. Era um meio gênio desde criancinha, não só no estudo, mas nos complicados e lindos aviões que montava, a partir de umas varinhas e papel de seda. Outro fato de que me recordo bem nessa época se passou com o Homero, que morava na Rua do Bispo, num sobrado. Estava servindo ao exército na PE, pois era um verdadeiro armário: grandalhão e muito forte. Já seu irmão Júlio, miniatura perto dele. Certa vez, o sabonete Lifeboy fez uma grande promoção, colocando chaves de automóvel Chevrolet dentro deles. Quem as achasse, era só buscar o carro, difícil de ter qualquer um na época, principalmente um Chevrolet do ano. Homero, tomando banho, sentiu alguma coisa arranhando, como depois contou. Quando viu que era a chave do carro, saiu correndo pelado pela rua, com a toalha amarrada na cintura, gritando em altos brados que tinha ganhado o carro. Assistindo toda a cena, e o entusiasmado irmão, Júlio saiu de casa e ficou uma semana escondido. Isto porque tinha enfiado aquela chave no sabonete, e o tamanho do mano não recomendava a sua volta.
A turma mais nova Já tínhamos “descalçado as chuteiras”, quando nova turminha se formava. Era a patota do sobrinho Luís Eduardo e, alguns, filhos do pessoal da turma. Acredito que tenham aprontado os mesmos agitos, pois “turma de rua” é sempre igual. Individualmente podem ser comportados, Armando Amorim - Memórias
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Silvinha na frente da turma menor
cabeça no lugar, mas quando se juntam mais de dez, começam a aparecer às porra-louquices, o que é muito natural. Na lembrança deles e também da nossa, foi a vez de Edgar e Germana, filhos de Ruth e Germano; Fátima, filha do Zequinha; “Caqui” e Débora, filhos do comediante Ary Leite; os irmãos Paulo, Beto e Célia; Fernanda, Paulinho “Xuca”, Carlinhos e Claudinho; Silvinho, Cidinho, Carlos Passos, Roberto Gabriel, Fernando Sêmola; Ronaldo Pombo Bruno, o “Pinguim”, irmão de “Lulubéu”; Sônia Paranhos, hoje arquiteta; Cezinha, que se casou com Rosinha, irmã de Luciana e Osvaldinho, filhos de Osvaldo e Ju; os irmãos Manoel Henrique, Márcia e Cássia; Dael; as irmãs Beth e Naira, irmãs das gêmeas Terezinha e Marly. As minhas sobrinhas Renata, Claúdia e Vanessa; os sobrinhos Flávio e Helinho; Marceu e Marinho, que moravam na casa construída pelo pai do Cândido e depois moradia dos Lamas; “Merinho”, Lan, Edu e João Marcílio; Mauro, irmão de Regina, filho de Acy e Mirtes; Maurício, do conjunto “Barão Vermelho”, filho de Péricles e Silvinha; Luizinho, irmão de Lenise e filho da “americana” D. Léia; Marcos e Diana, irmãos mais novos de Beto e Ana Maria Balaguer; Luciano, “Banhoso”, Zé Henrique, Evaldo e Paulo “Grão”; “Merinho”, Aldinho e Paulinho “Mé”, este, segundo a garotada, irmão de uma “gata”: Rosane. Os filhos de Pedro e Jocélia, Mário, Márcia e Marcos “Inútil”, Maria do Céu, a Ceuzinha e a mana Adriana e muitos outros. 42
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Deles, não conto as histórias, pois eram “tinta fresca” e a nossa já andava “desbotando” e até “descascando”. Mas acredito que tenham honrado o lugar da “turma-do-sereno”, pois alguns que conheci, teriam a capacidade de fazer as mesmas besteiras que fizemos e até mais.
Olha a Água! Não há quem não se lembre dos ambulantes que passavam no pedaço, muitos deles figuras que marcaram a nossa infância e mocidade. Figuras típicas, cada uma utilizando o seu “marketing”, sua maneira de chamar a freguesia, como “Ô soldadoire!” que, depois com a voz carregada da “terrinha”, completava: “quem tem panela furada pode se chegaire!” Aí colocava no chão a sua maleta/caixote, que virava um banco. Dele retirava vários apetrechos e pedaços de alumínio e aguardava a chegada das madames e empregadas com seus utensílios. Com habilidade, recuperava qualquer peça. Hoje, joga-se fora, pois dizem, não compensa. Viraram descartáveis. Chegavam outros patrícios: “Olha o bassoireiro! E eu ficava a imaginar como conseguia equilibrar tantas vassouras e espanadores, que pareciam mais com um móbile de Calder. Já outro, subia a rua com uma cadeira de palhinha no ombro e com uma vareta de madeira nela batia e gritava: “Empalhadoireee!”
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Quem por mim era o mais esperado, sem dúvida, o vendedor que carregava uma grande caixa na cabeça e somente gritava: “Ó sorveteiroooo!“. Quando retirava a tampa, aparecia um cilindro metálico envolto em gelo e, dentro dele, sorvete de coco ou abacaxi. Aí, pegava uma colher tipo pá e ia empilhando-o na casquinha, formando um “castelo” delicioso, que me faz lamber os beiços até hoje. Muito melhor do que os quibons da vida.
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Passava também o turco de terno e chapéu pretos, com voz alta e estridente: “Compro qualquer bijeto usado!” E de vez em quando, saía com a quadrinha. “Quem tivé muié feia num carece zela dela Num brecisa Compra meia Nem sabato, nem chinela. Bega um pedaço de coro Faz uma bregata Bra ela”.
Gostava de comprar tudo baratinho e acabava conseguindo. Vinha também “Ô garrafeiro... olha a garraf’veziê”, com bigode de 20 centímetros, cestão de bambu na cabeça e sempre com muita conversa para dizer e convencer que garrafas e jornais velhos não valiam nada. Mesmo assim, a gente conseguia uns trocados pra comprar nossas coisinhas. Outro do cesto apregoava em ritmo cadenciado: “Olha a jabuticaba mineira...” Havia, entre todos, um bem diferente. Com um montão de sacos sobre o ombro, chegava gritando: “Vendo saco usado de farinha de trigo!”. E falava tão rápido, que ficava difícil saber o que vendia. Isto também não importava, pois na maioria das vezes não queria vender nada. E não adiantava argumentar, pois a resposta vinha rápida e enfezada: “Não vendo!”. Mas continuava gritando: “Vendo saco usado de farinha de trigo!”. Era meio aluado. Apareciam também o tripeiro, o fruteiro e o amolador de facas, Armando Amorim - Memórias
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que conseguia tirar um som alto e irritante, passando uma lâmina metálica na superfície de uma roda, que ele movimentava com os pés, pisando em um pedal de madeira. De quem eu tinha muita pena era do peixeiro. Com um pau pousado nos ombros e pesados cestos carregados de peixes em cada extremidade, subia a rua com grande dificuldade. E me impressionava as suas costas, que se tornaram encurvadas, com certeza pelo esforço que fazia. E tentava gritar “Olha o peixeiro!, mas a voz saí baixa e ninguém escutava. Bem diferente de outro que fazia seu ponto nas cabeceiras da feira e parava as madames com seus jargões: “Olha o peixe! Só compra quem tiver dinheiro! Quem não tiver, não sente nem o cheiro!”... e arrematava: “Olha aí freguês! Assassinaram o camarão! Compre ele em minha mão!”... O mais romântico, sem dúvida, o homem do realejo. Parava em um ponto estratégico e rodava a manivela para dele sair a música que chamava a freguesia. Aí o seu periquito amestrado tirava a sorte de uma gavetinha e cada uma melhor do que a outra. Sempre ficaríamos ricos, encontraríamos belos amores e teríamos sucesso. Igual ao dele, justamente pelas mensagens que oferecia. Um dos mais curiosos o “vendedor de modinhas”. Trazia na mão vários livretos com músicas de carnaval ou de meio de ano, conforme a época. E o seu modo de chamar a freguesia era cantá -las, em voz bem alta. Pra vender, tinha que ter gogó. Havia ainda os vendedores de “casquinha” e pirulito, que chamávamos de “triguilim”. Carregavam uma comprida lata cilíndrica onde estavam as guloseimas e, para chamar a atenção, sacolejavam um pedaço de madeira onde se encontrava um ferro articulável e dele saía o som cadenciado: trá-lá-lá...lá-lá. E mais: o tradicional pipoqueiro, o vendedor de algodão doce, o que vendia amendoim torrado e talvez outros. Os motorizados eram os vendedores de laranja, que utilizavam um megafone de lata, tipo funil grande: “Olha a laranja seleta; olha a boa tangerina” e completavam: “Venha depressa Maria, traga logo a sacola que o caminhão vai embora”... Outro motorizado era a “vaca leiteira” que sempre roubava na quantidade ou na água que juntava ao leite. Daí, quando passava por nós, tinha que escutar o coro: “Olha a água!”. 46
Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
E, finalmente, que eu me lembre, chegava de madrugada a carroça de leite da CEL, trazendo as garrafas com tampinhas de papelão depois alumínio - e as ia colocando junto às portas ou caixas de gás. Às vezes, “desaparecia” alguma, mas não valia ser da casa de ninguém da turma. Como era gostoso aquele leite...
Tempo bom no Sereno. A Tribo da Pracinha Todas as noites, a partir das oito, já começava a juntar gente. O local chamava-se “pracinha”, pois era a única que existia no Rio Comprido, além do Largo, este bem maior e também conhecido assim. Foi construída no terreno das peladas e, nela, nada havia de especial, além de um platô de terra batida, gramados ao redor e bancos de cimento. De beleza, só os flamboyants, quando floresciam, deixando o chão avermelhado, de tanta pétala caída. As duas ruas, Dipsis (hoje, Paula Frassinetti) e Citiso que iniciam na Rua do Bispo, desembocam nas duas laterais da “pracinha”, que tem nome de Del-Vecchio. De lá, saem também a Rua Infante de Sagres, que sobe o “morro 71” e a estrada do Sumaré, onde em seu final encontra-se a casa do Cardeal do Rio. Mas não era só a tribo da rua que chegava para se juntar na “pracinha”. Vinha de todo o Rio Comprido e até de mais longe. Chegavam dois, mais três, mais um, mais outro e ia engrossando. Como qualquer turma de esquina, mais do que se conversava, se discutia. Não havia a imparcialidade e nem opinião própria, pois ela mudava de acordo com o que se escutava. Todos incorporavam aquela frase de Voltaire, que mais ou menos diz “discordo de tudo o que dizes, mas defenderei o direito que tens de dizê-lo’”. Mas nem tanto... Bastava alguém dar a sua opinião sobre política, religião, mulher, futebol e por aí, que tinha sempre alguém para rebater, de pronto, ponto de vista contrário. Nada conseguia unanimidade. Nem as mais óbvias. Se a reunião fosse hoje e alguém, por exemplo, falasse da perfeição das partes fofas e trazeiras da “mulher melancia”, haveria alguém para encontrar defeitos. Armando Amorim - Memórias
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Eu, Luciano, Mario Gordo, Zezinho, Mário, Paulo Fifi, Alcides, Arno e Chicão no piano.
Paulo Careca, Celinho e eu.
Mario Gordo, Garrucha, Mário, Paulinho Fifi, Cândido Maometano, Alcides. Embaixo: Luiz, Aldo Papel, eu, Ramsay e Zé Carlos em Teresópois
Lino, Julinho, Cacáu e Osvaldo
Mário, Ramsay, Milé, Luciano, Paulinho e Paulinho. Sentados: Verinha, Mazinho, Vanda, Silvinha e Arno.
Selma, Marlene e Regina
Luiz, Carlinhos, Paulinho Simples, Arno, Paulinho, eu e Mário Surumica.
Vasco e o filho Ralf
Luciano com netos Vanda e Vera irmãs do Chiquinho
Da ‘Tiazinha” jurariam, que quando se abaixa, a popa da bunda se esparrama e as estrias aparecem. A partir daí, a turma se dividia: uns contra, outros a favor, mesmo que todos, na verdade tivessem a mesma opinião. Portanto, valia contrapor-se, só pelo prazer de iniciar a discussão. Mas havia um “código moral”, pois, falar da irmã ou parente de alguém da turma, não “pegava” bem. Por outro lado, menina da rua que não tivesse irmão, ou até mãe que não tivesse filho de nossa idade, seus méritos e desméritos entravam na discussão ou nos comentários. Daí ter surgido o apelido de um molequinho, de seus dez anos, que ficou conhecido por “Miquinho da Mãe Boa”. E isso era um achado unânime. A mãe acabou sabendo, mas não se incomodou, pois as saias ficaram até mais curtas e apertadas. Das meninas “desirmanadas”, a Marília “Morena” era a nossa Leila Diniz. Muito antes de se inventar a moda de hoje, em “ficar”, ela já agia assim. Alegre, descontraída, boa de balanço, foi a nossa musa. Se tivéssemos na época um Vinícius, na certa a “Garota do Rio Comprido” teria feito sucesso, pois ele também não resistiria ao seu andar. Mas havia outras que também não tinham irmãos na curriola e seus dotes eram proclamados: Ione Bandeira, Márcia Saint-Brisson, Marisa da Citiso, Lenita e as que moravam por perto: Marília “loura”, Waldete, Naná, Marilena, cada uma com seu fã clube. Para as outras, boca calada, pois mesmo que o irmão não estivesse por perto, o assunto vazaria. Durante uma noite, dois, três ou mais assuntos eram colocados em pauta; quando virava “papo-cabeça”, aí ninguém dormia antes das cinco da matina. E muita besteira se falava. Toda tribo que se preza, tem o seu “coroa”. O nosso eram dois: Murilo, pai da Silvinha, “gozador” e navegador dos sete mares. Comandante da Marinha Mercante conhecia o mundo e contava as suas aventuras de velho marinheiro. Seu cumprimento, gesticulando um dos dedos, deixou marca: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”. O outro, “tio” Chico, o maior contador de piada e causos, não só porque os representava com gestos, mas imitava as mais variadas vozes. Sempre com seu paletó de tweed inglês, flor vermelha na lape50
Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
la. Aparecia por volta de uma da matina e as gargalhadas soavam na pracinha, até às 4 ou 5. Era um verdadeiro ator do humor. Escutei algumas centenas de piadas, como a que dizia ser de três náufragos que foram parar numa ilha, habitada por selvagens, cujo principal artesanato era o de fabricar canoas, com pele de gente. Como sempre, os infelizes náufragos eram: um francês, um alemão e, claro, um português. Vendo a “matéria prima” que chegava, a tribo foi recepcioná-los na praia, já avisando o seu intento: precisavam de suas peles para construir as embarcações. O francês, bom de conversa, argumentou que não estava direito o que pensavam fazer, sem antes atender ao último pedido de cada um. E mais: se os silvícolas não conseguissem atendê-los, seriam poupados. Mais democráticos do que os brancos, aceitaram a reivindicação. O francês foi logo fazendo o pedido: “quero um champanhe com trufas”. Correria na tribo, e rapidamente apareceram na bandeja, as iguarias. Azar do francês. O alemão foi o segundo: “me traga um chucrute e chope bem geladinho”. Novamente um corre-corre e apareceu o pedido do alemão. Sifu. Chegou a vez do português e os silvícolas já estavam preparando a bacalhoada, quando escutaram: “quero um garfo!” espantados, trouxeram-lhe a peça desejada. Num gesto rápido, o patrício pegou o dito e enquanto se espetava, gritava: canoa, o isquimbal! Canoa, porra nenhuma! Era assim o nosso “tio” Chico, que nos fazia rir pelas madrugadas. Certo dia, com seus cabelos grisalhos encaracolados nas têmporas, chegou meio acabrunhado, razão de logo perguntarem: “Que houve Tio Chico? “E ele: é a idade”... e logo argumentou: “Nessa idade a barriga cresce o pinto amolece o saco desce a mulher oferece a gente agradece. Ai... se eu pudesse saía correndo pro INPS”. Armando Amorim - Memórias
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Nos apelidos, a descrição. Em qualquer turma, algumas vezes o apelido serve para descrever melhor seus membros, mas quase sempre é pura sacanagem. Assim, o Chicão virou “Saúva”, por sua mania de ir tirando pedacinhos de qualquer papel que lhe chegasse às mãos. Chegou a ser “Ventania”, pois quando andava - por seu tamanho pra cima e pros lados - deslocava violentamente o ar. Aldo “Papel Fino”, quem o conseguisse vê-lo em qualquer ângulo, saberia logo a razão. Atendia também por “Nariz de Ferro” e na abreviação “Nariz”. Isto porque, visto de perfil, reparava-se que seu nariz possuía um rosto. E pela altura, “Belisca a lua” lhe ficava bem. Ramsay deu sorte, pois virou só “Ramuca”. Chiquinho “Zoio” chegou a ser “Zoio de cão”, mas acabou também Zoiúdo. E bota zoio nisso. Arno foi “Alemão” e “Barata Cascuda”, depois abreviado; “Peroba”, só pouca gente sabia seu nome: Josef Werner Klein, pois até a mãe o chamava: “Perroba!” com seu sotaque germânico. Já o Zé Carlos “Gengivinha” ou “Pasmado” não conto por que. Como na rua havia alguns Paulinhos, um deles ficou Paulinho Simples e o outro Paulinho Composto. Já o terceiro virou Paulinho Fifi, mas nada de desmuquecar, pelo contrário. Paulinho “Careca” estava na própria cabeça. Messier Pepé, pois para fazer seus sapatinhos, pelo menos, um boi. Para cada pé. Mas na IBM, onde foi presidente, era só Dr. Mário Bethlen. Os irmãos Celso e Carlinhos passaram a ter sobrenome de “Cabeção”, somente pelo esforço da mãe ao parí-los. Wilson “Boronato” ninguém sabe por que, assim como Mário “Pupu”, Pedro “Sabiá”, Mário “Surumica” e Mário “Minigite” e do moleque Ximango. Julinho “Português Brito, não precisa dizer o motivo”. Mas o que possuía o maior apelido era o Wilson Caramelo, pois completo atendia por Wilson Caramelo Cabeça de Peixe. O primeiro, pelos caramelos Buzzi que viviam em seus bolsos e “cabeça de peixe”, pela semelhança. “Maometano”, na origem, Cândido. E estava na religião que promovia. Mário “Gordo”, pois a balança reclamava... 52
Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mandinho Urubu virou assim, pois quando chegou ao pedaço, eu já estava lá. E antiguidade é posto. Tuninho “Segura a Goma” Brito, grudava em conversa e era difícil sair fora. Zeca “Sansão”, careca de nascimento, era super peludo dos pés ao pescoço. O outro Zeca, “Milharal”, quando cortou rente o cabelo, este não mais se assentou e foi crescendo em pé. Mas podia ser chamado de “Pé na Cova”, pelo peso. O terceiro atendia por “Zeca Maconha”; apesar de estar sempre aprontando, nunca chegou perto da canabia. Dizem. Aloísio “Mongonga”, pela comida dos porcos que transportava. Já o Luiz das Jóias, Jair da Carne, Osvaldo Dentista, Wilson da Light, Carlos Paulista, Amândio das Abóboras, Henrique Gringo e Joaquim Maluco, a razão é fácil entender. Pinduca, pela parecência com o boneco, assim como Shulipa. Outro também não se sabe a origem: Paulo César “Aguinha”, Pedro “Sabiá” e “Porco” Avelino. Já o “Baiano” (Arnoldo), é carioca. E o “Garfo”, pelos dois dentes em forma do próprio. Azar para a irmã, que virou “Colher”. Com nome bonito, Pietro Fontappieé, virou Milé e Rafa, o Raphael, para os íntimos, Cara de Cavalo. José Carlos “Cacau”, Rico, o Antônio Maria, pelo apelido da mãe, “Riquinha”. Zé Carlos “Filho do Prefeito”, eu conto mais adiante. Guilherme Batista, o “Canca”, talvez porque em nossa época “canca” significava “bom ou ótimo”. E ele era canca na bola, canca no samba e no coração. (livrei a sua cara...). Luiz “Pedreira” pela casa coberta de pedra. Garrucha (de dois canos) pelos óculos que José Augusto usava desde criancinha. Não poderia deixar de dizer os meus, mas deu vontade. Afirmo que Mandinho era o oficial - de família e de rua. Quando me chamaram de “Moca Maluco’, o “sobrenome” veio pelas andanças de patins, com o Wilson Caramelo me puxando em seu buicão, em alta velocidade, no asfalto esburacado da Paulo de Frontin. E fazendo tudo para me “estabacar”. Outros dizem, pelos paralelepípedos que jogavam para o alto e tiravam “finos” da minha cabeça. Seja o que for, acho que o apelido foi injusto. Felizmente, abreviaram para “Moca”, menos mal. Outro foi Mandinho V.T, posto pelo Chicão, talvez em represália pelo seu Saúva. E isto porque demorei a aceitar convite para trabalhar na empresa de seu pai (que convite mais sem graça!). O V.T. era Vida Torta. Armando Amorim - Memórias
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Os outros da turma não tinham apelidos; no máximo, diminutivos: Zezinho, Pedrinho, filhos do general; Paulo Newton, Celinho, Luciano Barbedo, Wilsinho Santana, Ramos, Alcides, Rodolpho, Mércio, Robertinho, a turma da terrinha: Manoel, Duarte e Fernando; Mazinho, Betinho, Zequinha, Adriano, Itamar “Itamaro”, Carlos Alberto “Bebeto”, Serginho Caruso Gustavo, Neca, Joel, o primo Eiser, Rubens Lima, Zeca Brito, Pinheiro da Inah, Paulo Bravo, Abel, Armando Saraiva, Alexandre Raro, Dante, o primo Rogério, Antônio Afonso, o Tuneca; Dalmo Castelo, Mário Vinagre, Josimar, Ruy Paneiro, Lino Seabra, Tuninho, Bento, Luiz Guimarães, Jonas, Vasco Loureiro, e os do andar de baixo: Gil, Beto Balaguer, os gêmeos Alfeu e Sérgio; Marcelo, Fernando Semola,Silvinho, Mauro, Bepe e Gilberto, Antônio Jayme, o Toninho, Cidinho, Roberto Gabriel, Luiz Barbedo, Cauby, Guaracy, Terêncio, Carlos e Rudolf, Florêncio e um indiozinho que por lá chegou, o “Manel Ovo”. Morava ali também o Lulu Santos, mas na época vestia-se de calças curtas. Seu pai é quem se enturmava nas peladas noturnas e era bom de bola. Oficial da Aeronáutica, comandante (acho que era) da esquadrilha de jatos, corria também da DGI, quando o “Prefeito da Pracinha” acionava a polícia. D. Vera, mãe do Lulu era linda, talvez a mais bela mulher do Rio Cumprido. O comadante também um boa pinta. Da Itapiru, eram bem chegados Pachequinho e Pachecão, Milton Casado, Moreno, Wilson, Sérgio e mais alguns. E da Aureliano Portugal, Paulinho e Walter Bouças, Zeca, Fernando, Reginaldo, Rubinho e Quincas. Essa tribo ficou conhecida como a “turma do sereno”, com alguns de seus membros em destaque e outros, nem tanto, mas havia entre todos, uma certa cumplicidade e o companheirismo era total e se reflete ainda hoje, nos encontros.
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Guilherme, o “Canca”
Alcides, Mário, Luciano e Neusa
Humberto Montano, Oscarina e Ramsay
Silvinha, Paulinho, Vanda, Osmar, Vera, Aldo, Arno, Paulinho, Luciano, Ramsay e Mário Gordo.
Aldo, Grace, eu, Ramsay e Celia.
As meninas também formavam um time de respeito. Respeito no duro, pois a maioria era irmã de alguém da turma: Marisa Bastos, Marila Campos, Mônica Turner, Moema e Jurema; Joana e Aretuza, a prima Lucinha, Fibinha, Silvinha, Suely Boente, Neide, Márcia, Vera e Vanda, Maria Rosa, Josete, Marlene Desgranges, Terezona, Ângela e Hilda, Ana Maria Balaguer, Circe, Marisa (da Citiso), Yolandinha, Isabelinha e a prima Vitória, Marília Morena, Regina e as primas Marília e Marly, Leila Areno, Ana Maria B. Duarte, Lúcia, Marila e Waldete, Márcia (irmã do Bruno), Ione Bandeira, Selma, Denise, Márcia Saint Brisson, Regina, Clarinha e Vera Lamas, Julinha, Nadia, Lenise Maria, Lúcia, Vera Gilda, Lenita, Lúcia Barbedo, as gêmeas Terezinha e Marly, Sônia, filha do Giovanini, Marisa, filha do general, Regina Coeli, Circe, Vilmar, Maria e Valquíria, Pérola, filha do major e a prima Alcione, que se casou com Julinho Brito. Da Rua do Bispo, Nair, de olhos lindos, Cecília e Neusa, irmãs de Guilherme.
Eu, Maria Ruth, Marly Giuseppe e a mana Cely Carlinhos e Celso Cabeção e Joaquim “Maluco”
Lenita
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Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Lenise Maria
Osvaldo, Olivinha, Chicão, Aldo, eu e Grace
Eu com Gabriel
Luciano, eu, Mucio, Ramsay, Osvaldo, Zequinha, Bento, Julinho,e Lino. Embaixo: Jair, Robertinho, Paulinho “fifi”, Zezinho, Chiquinho e Luiz.
A turma do sereno, na casa do Ramsay: A prima, Cândido, a avó, eu, Ramsay, Carlinhos, Vera, Montano e Oscarina,Oswaldo, Alcides, um primo do Ramsay, Luciano. Embaixo: Paulinho,Lino, Arno, Umbertinho, Julio, Zé Augusto, o “Garrucha”, Paulo “Careca”, Aldo, Paulinho, Mazinho e Chicão.
Julinha, Ruth, irmã da Julinha e Jurema
Margareth, Gilda, Lino e Ana.
Eu, Gabriel, Regina, Rodrigues e Martinha
Eu, Luiz e Ruy
Rezende, Luciano e Ana Flavia Olivinha, Grace e (quem serรก)
Lenita e Sandrinha
E outras que chegavam de perto: Grace, Naná, Marília loura, Lucily, Regina “Colher” e Marilena. E as que apareciam nas férias: Ivete, prima do Lino e minha namorada, Regina irmã da Selma; Marília, Verinha e Deinha, primas da Marisa e Malute, prima do Paulinho “Fifi”. Essa turma agitava, aprontava, jogava conversa fora, e até papo sério, às vezes se conseguia levar.
Ivete e a prima Najla
Luiz com o administrador do Rio Comprido e aparecem Ruy, Goró, São José e outros.
Vanda, Marisa, Olivia, Chicão, Angela, Vera e Zé Augusto. Embaixo: Osmar, Julio, Josimar, eu e Carlinhos.
Mucio, Luciano, Jair, Roberto, Osvaldo, Zequinha, Bento e Julinho. Abaixo: Luiz, Paulinho, eu, Ramsay, Chiquinho, Zezinho e Lino.
Cely, Sonia, Alcione, Jurema, Monica, Luiza, Moema, Lenita, Ana Maria, Ana, Marlene
As noitadas de música aconteciam quando aparecia o “Pinduca”, com seu violão, ou Dalmo Castelo, que depois ficou famoso, com as parcerias com o Cartola, João Nogueira e outros. Depois do Jorge Benjor, foi o maior músico que o Rio Comprido criou. Voz bonita era a do Paulo Newton, semelhante a do Dick Farney, mas não quis seguir carreira artística (seria cantor de sucesso). Com voz grave e bem colocada, acabou tendo alguns programas nas rádios. Hoje, é advogado e babalorixá de respeito.
Ruy, Liza, Chiquinho, Ado “Pipoca” e Armando Soluri Lenita e Sandrinha
A pelada das “bonecas”
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Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Marisa e Vera
Alcides e Lucia. Aldo e Grace, Ramsay, eu e Gilda, Roberto e Áurea, Luciano e Neusa. Em 2015
Ruy Paneiro Ramsay ao piano
A casa do Ramsay, semelhante a um castelo em miniatura, era o ponto de reunião, muitas vezes para ouvi-lo ao piano, tocando Noel Rosa e outros dessa turma. Chegamos a tentar a formação de um conjunto, batendo qualquer coisa, mas a desafinação e falta de ritmo não deixaram progredir. Cheguei a comprar um violão - escolhido por Dilermano Reis, um virtuoso - mas só serviu para emprestar a quem soubesse tocar. Felizmente, há muitos anos está nas mãos de Andréa Borelli, que dele tira sons maravilhosos. Portanto, valeu a compra. Armando Amorim - Memórias
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Parceiros de Sueca Aqui um parêntesis para falar de Dona Albertina, mãe da garotada Seabra, cuja casa frequentei assiduamente, não só para o jogo de sueca, mas por amizade e pelas deliciosas rosquinhas que ela preparava magistralmente em seu forno à lenha. Aos domingos fazia questão que eu lá almoçasse o que aceitava sem cerimônia e com muito prazer, pois a comidinha mineira era deliciosa. Foi uma amizade de não se esquecer, pois Dona Albertina era uma dessas santas do asfalto. Sua casa, um verdadeiro “hospital” da região, principalmente para a turma carente. E para atendê-los melhor, chegou a fazer curso de enfermagem e primeiros socorros. Vivia em doação permanente ao próximo, não só para lhe curar as doenças físicas, mas também as da alma. Foi um exemplo de solidariedade humana.
Osvaldo, eu, Seu Joaquim e Antunes.
Teresa, Gil, eu, Moema, Lino, Ana, Joaquinzinho com a namorada.
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Eu, Dona Albertina e Seu Joaquim
Casa dos Seabras na Dipsis.
Aos domingos, a sueca comia solta. “Aqui confesso que eu e meu parceiro Osvaldo, roubávamos muito, pelos sinais sutis que combinávamos: “gold”, ‘half”, “first” e outras palavras que íamos dizendo no meio da conversa. Uma covardia com o dono da casa, “seu” Joaquim Seabra e outros parceiros mais coroas: Nunes, Germano Lyra, Dr. Liberato e por vezes até Sebastião Paes de Almeida, na época Ministro da Fazenda do Governo Juscelino Kubischek, considerado o homem mais rico do país. Só falava em dinheiro e negócios. Certa vez me explicou como ficar rico. Não segui seus conselhos e nem perto da riqueza cheguei. Mas “teria melhor idéia: bastava casar com Denise, sua filha”. Irreverente, mostrando que só os cifrões lhe agradavam, comentava o casamento de Denise, que depois se separou do Príncipe de Orleans e Bragança: “Dei de presente de casamento para o casal um apartamento triplex na Vieira Souto e uma Mercedes zero”. E indignado dizia: “em contrapartida, a família Real deu um chumaço de caArmando Amorim - Memórias
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belos que ele dizia “os pentelhos, da princesa Isabel”“. Era assim, o homem mais rico do Brasil, dono de 42 indústrias. Mas foi o parceiro Germano Lyra, Diretor do Banco Central, casado com Ruth, menina da rua, tia de Márcia e Bruno, que um dia me fez sentir importante. Mandou que eu passasse no banco, pois iria fazer uns bilhetinhos para conseguir anúncios nas revistas que eu editava. Era o tal “tráfico de influência”. Certo dia fui. Cheguei como ia trabalhar: calça jeans, camiseta e tênis. E, da primeira sala, quase não passei. A secretária perguntou o que queria. Falei do encontro. Foi à outra sala e mais uma secretária apareceu e novamente a pergunta. Falei do encontro, as duas cochicharam e voltaram para perguntar o assunto. Não sabendo o que dizer, perguntaram o meu nome e o colocaram numa ficha e sumiram. Voltaram dizendo que o Dr. Germano não conhecia nenhum Armando Amorim. Encabulado, mandei que dissessem ser o “Mandinho”. Minutos depois, sorridente e solícita, me encaminha para um grande salão, ricamente decorado, onde estavam mais de vinte senhores engravatados, sentados em belos sofás. Não havia um que não tivesse cara de banqueiro. Ao mesmo tempo todos me olharam, como se eu não fosse deste mundo. Na verdade eu não era do deles e me senti como peça estranha ao ambiente. Pouco depois, aparece o Germano, um sujeito irreverente e que sempre me pareceu um pouco doido. Como não era normal ele ir à sala de espera, todos se levantaram, muitos sorrisos, muitas mesuras, alguns tentando falar alguma coisa. Mas passando direto, Germano foi ao meu encontro, falando bem alto: “Que porra é essa de Armando Amorim! Você é meu parceiro Mandinho! E me abraçando, fomos para a sua sala, para espanto dos banqueiros e das secretárias. Fiquei bastante tempo ali, pois, logo que entramos, completaram uma ligação do Delfim Neto, na época, Ministro da Fazenda. Na saída, fez questão de me levar até o elevador”. Momento em que passei de peito estufado no meio daquela gente, todos me olhando e, com certeza, tentando advinhar quem seria eu. Parceiro em quê? Esse, talvez, o dia em que me senti importante. O único na vida. 66
Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Inventando Brincadeiras As peladas diurnas ou noturnas na pracinha Del Vecchio eram o esporte praticado por quase todos e com partidas disputadíssimas, pois, para os vencidos, a gozação. E como doía. Só quem não estava de acordo era o pai do Zé Carlos, daí ser chamado “Prefeito da Praça”, legando ao seu filho, o apelido: “Filho do Prefeito”.
Eu, Regina e Zequinha no seu Vemag.
À direita, Naná
Lino e Ana com os filhos Gil e Alberto.
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Volta-e-meia convocava a polícia para acabar com o jogo. E conseguia. De tantas fez que Aldo “Papel Fino”, cuja capacidade em saber sacanear alguém era inigualável, teve uma genial ideia, dizem, assessorada pelo Ramsay. Colocou no JB anúncio do apartamento do dito cujo à venda, por preço baratinho. Naturalmente os pretendentes infernizaram a vida do “Prefeito”. E andou preparando outro, solicitando empregada, oferecendo salário de marajá. Resultado: nunca mais a polícia apareceu.
Cely, Ana Maria, Marlene, Andrea e Zezinho. Lenita, eu e Guilene. Ana, Osvaldo, Moema, Terezona e Jurema.
Luciano e Jonas
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Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Monica e Chiquinho
Dona Guerda
Cely, Ana Maria, Marlene, Andrea e Zezinho.
Zezinho, Julio, eu, Ramsay, Lino, Ana, Aldo, Grace e Marisa.
Chicรฃo, Olivinha, eu, Alcides e Mรกrio.
Havia boas peladas também, nos campos da Mangueirinha e da Light. Depois do jogo, o melhor: a limonada que ali se comprava, guardada numa lata de banha de 20 kg, com pedras de gelo boiando. E não se ligava que o copo era só um, “lavado” com água de uma bacia meio enferrujada. Uma delícia. Os bacilos e as bactérias contribuíam e não se metiam ali. A diversão de quem, como nós, estávamos quase sempre sem dinheiro, era inventar qualquer coisa. Podia ser roubar frutas nos terrenos do seminário São José e levar alguns tiros de sal, mas chegar com jacas, jambos e jamelões. Aqui lembro como era delicioso subir em jambeiros, jaqueiras, mangueiras e outras tantas, fazendo com que me convença da origem símia e indagar, pelo resto da vida, porque ao invés de se plantar nas ruas e avenidas árvores sem atrativo algum, não se plantam fruteiras. Muito mais úteis e belos são os sapotizeiros, as caramboleiras, as tamarindeiras. Imaginem as ruas de todo o país com árvores carregadas de frutas. Toneladas de frutas para muitos se deliciarem. Aí vem o mal-humorado a dizer: “o povo as roubaria”, sem saber que elas estariam ali, justamente para isso. E também porque esse infeliz nunca sentiu o prazer de descobrir um jambo já meio arroxeado encoberto pela folhagem e ir lá buscá-lo. Realmente não entendo, pois haveria toneladas de vitaminas e minerais ao alcance de todos. E se isso não bastasse muitos mais pássaros nas cidades, pois o alimento seria farto. Enquanto espero alguma explicação convincente, digo que as brincadeiras da turminha da rua, beiravam mais a arrumar alguma sacanagem, como colocar um paralelepípedo dentro de uma caixa de sapatos e deixá-la no meio da calçada, um convite para ser chutada. Foi o que fez certa vez um negão dos grandes, tipo geladeira, que namorava a empregada do Mário Gordo. Veio ele no andar gingado, terno de linho branco, calça boquinha e sapato de bico fino. Quando viu a caixa mirou, tomou distância e bateu o tiro-de-meta. Com o bico do pisante entortado, pulando numa perna só, ouviu a grande gargalhada. Virou fera. Em segundos, cada um trancafiado em casa. Outra brincadeira manjada que sempre funcionava era a de amarrar uma linha numa nota e deixá-la na calçada. 70
Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Como estas, várias eram as brincadeiras, sempre buscando sacanear alguém, pois adolescente nunca foi normal. E nós não poderíamos desmentir os compêndios e um “filósofo”, que afirmou: “é fazendo merda que se aduba a vida”... Assim, para a nossa alegria, sempre apareciam nas redondezas alguns malucos ou quase, e descobriam-se as suas fraquezas. Um deles ficou famoso no pedaço: “Teu Pai é Galinha”. Bastava alguém gritar a frase: “teu pai é galinha, te vi no pombal”, que ele saía cuspindo fogo, fazendo “discurso”, onde os palavrões cabeludos ecoavam por toda a região: “seus filhos da puta!” Vão tomar no cu! Como a frase era dita com certa melodia, o “Papel Fino” descobriu que não precisava mais dizê-la; bastava assobiá-la. “Havia também o ‘Fluminense”, que ninguém sabia por que, ao ouvir a palavra, metralhava uma dezena de “Filhos da puta! “As mães de vocês estão na zona”! E nós, adolescentes, adorávamos e havia sempre alguém para pronunciar a palavra mágica. Mas se nenhum dos dois aparecesse, o pobre lixeiro virava a vítima, pois escutaria: “a galinha comeu”... e o gato lambeu...” A reação, imediata: “é a cona da mãe!” é a puta que pariu!”
Ramsay, Milé e Luciano
Julinha, a JU
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Turma do Sereno em 2006: Lucia, Alcides, Regina, Ramsay, Celia, Aldo, Grace, Lucili, Chicão, Olivinha, Luciano e Neusa e eu.
Aldo, Ramsay e Alcides
Eu e a americana Suzy
Regina, Gilda, Jair “Paulista” e Ruy.
Eu e Zequinha
Regina, Marisa e o Pontiac 430
Era sempre assim, turma grande, não deixava passar nenhuma oportunidade para uma gozação ou mexer com alguém. Pertubava-se até cachorro. Um deles ganhou apelido de Rebolô e viveu por lá, a sua vida viralata. O coitado andava bem com as pernas da frente, mas as traseiras bambeavam, fazendo com que rebolasse. E afirmavam que o “Rebolô” fora atropelado, como castigo, pois abandonara o ceguinho com o qual vivia. Era o que se comentava do cão. Isso alguns, pois havia quem afirmasse que o cão rebolava, pois era boiola.
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Eu, Gilda, Ramsay e Celia, Alcides e Lucia, Aldo, Neusa e Luciano, Julinho e Grace. (2015)
Mรกrio Gordo, Mรกrio Betlhen, Alcides, Zezinho, Paulinho, eu, Luciano, Ramsay, Arno e Chicรฃo sentado. (1957)
Hotel barato, ao luar de Paquetá A rapaziada de hoje vai pro Hawai ou outras tais, surfar ondas de 30 metros, em busca de agitar a adrenalina, como dizem. A patota do sereno contentava-se com menos. Nossa praia era outra e nossa onda também. Bastavam marolas de 20 ou 30 centímetros e o luar de Paquetá. Mesmo porque, a grana não dava para aventuras maiores. Assim, um dos lugares preferidos era esse, pois o hotel ali, muito em conta. Mas não pense que era de uma ou duas estrelas. Havia milhares. A organização para tais eventos, sempre desorganizada. Cada um levava o que podia: enlatados, leite em pó, pão, panelas e etc., mas ninguém sabia cozinhar. Para ilustrar, colocaram o macarrão na chaleira com pouca água, criando-se nova receita: bolo gelatinoso com formato da dita, fazendo-nos comer macarrão em fatias. O restante do rango eram as prendas do mar. Rodolpho pescava os siris com inusitada técnica. Na falta de puçá, convencia os ditos a se aproximar e os pegava a laço. Da turma, era o de pouco falar. Só de quando em vez deixava uma frase no ar, como, a me ver às tapas com um mosquito que cismava em chupar meu sangue: “Mandinho! não adianta matar um, pois outros virão para o enterro...” Dele, escutei um conselho que nunca mais pude esquecer: “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”. Tive que seguir. Já o Wilson “Caramelo” levava sempre um belo bolo, grande e retangular. Durante os primeiros dias, continuava bem embrulhado, pois lhe servia de travesseiro. Só quando se tornava bem achatado era aberto e todos podiam se servir. Como se pode notar, o cardápio não era nada apreciável... Os enlatados acabavam rápidos e a dieta se resumia a siris e alguns pães dormidos, que um bom padeiro nos presenteava. Na hora de dormir melhorava, pois a metade podia se servir da barraca. O teto para o restante, as estrelas; mas havia revezamento. Quando chovia, o jeito era se ajeitar, debaixo das amendoeiras. Como se vê, a “infreestrutura” não era lá essas coisas. Mas o único a não se adaptar era o Paulo Newton, super mimado por Armando Amorim - Memórias
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sua mãe Dalila, que o tratava como um príncipe inglês. Na primeira temporada, só poderia chegar no dia seguinte, e pediu o endereço do “hotel”: “Praia da Imbuca 23”. Chegou de mala, calça e camisa de linho, sapato de cromo alemão, nos trinques para ocupar a sua suíte. Vendo o pessoal na praia, foi logo perguntando a localização do hotel, pois queria deixar os pertences e mudar de roupa. Escutou numa só voz: “Você já está nele!”. Quis voltar de imediato, mas ninguém permitiu, fazendo-o passar o maior sufoco de sua vida. Durante o dia, era pelada, paquera, pescaria, baralho, frescobol e muita farra. De noite, banho de mar nu, que é uma delícia. Momento desagradável somente no início da manhã, pois precisávamos escalar algumas pedras e depois descer para um abrigo sombreado. Tratava-se da hora da cagada em grupo, uma das : experiências difíceis da minha vida. Nos primeiros dias foi impossível, naquela roda com uns quinze fazendo força ao mesmo tempo. Depois virava rotina e dava até para ficar batendo papo. Mas foi uma experiência, um desafio que nunca pensei realizá-lo. Duas semanas depois estávamos de volta, pois começavam os sonhos ou os delírios de fartos almoços e jantares. Outras vezes passamos férias em diferentes locais, como a casa de meus pais em Teresópolis. Apesar do teto não faltar, era bem pior, pois amontoavam-se mais de vinte, em local que caberiam no máximo dez, com conforto. Assim, só se conseguia dormir, lá pelo 4º dia, pois sempre havia alguém que aguentava ficar acordado. Certa vez, dormimos ao mesmo tempo, depois de alguns dias acordados. Na manhã seguinte, estávamos com os rostos totalmente vermelhos de mercúrio cromo, pois descobriram um grande vidro com o medicamento, que minha mãe guardava. Inclusive o autor da façanha, o Paulinho “simples”, que só foi descoberto dias depois, já no Rio. Caso contrário teria sido justiçado.
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Não adiantou fazer a barba várias vezes, nem passar pedra-pome. O jeito foi sair pela cidade, todos vermelhos de mercúrio e de vergonha, sob o olhar curioso de quem passava. De noite, na boate do Higino, a mesma cena e foi impossível se chegar à paquera, o objetivo geral. E um garçom curioso ou gozador, chegou a perguntar: “Vocês são de onde? de qual tribo?”.
ROIAL Por volta de 1952, a turma da rua resolveu fundar um clube de futebol, pois a garotada era boa de bola. Vaquinha para comprar camisa e bolas, lista de contribuição dos moradores e caminhamos para a Superball. Escolhemos camisas vermelhas com faixa branca e com o estatuto já impresso e logomarca que criei, estava nascendo o Roial Atlético Clube, que durante muitos anos, formou um dos melhores times do Rio Comprido.
Aldo, Manoel e Celinho. Abaixo: Duarte, eu, Mazinho, Osmar,
Sergio. Oscar, Licinio, Paulo, Barata, Macaco, e Osmar. Abaixo: Nilton, Boca com Paulinho, Antero, Shia, Carlinhos e Tuneca.
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Mário, Fernando, Wilsom Caramelo e Paulinho. Marisa e eu.
Mandinho
Carlinhos, Celso e Joaquim “Maluco”.
Celinho, Mazinhp, Mário, Duarte, Aldo e eu.
Baile do Roial
Caramelo, um craque.
Além do calendário esportivo, com jogos de futebol de campo, futebol de salão (futsal), tenis de mesa, promovia também a parte social, com festas, concursos de madrinha e outros eventos. Chegou a ter sede em apartamento, jornalzinho, revista e até “estádio”. Este, conseguido com o “seu” Eurico, pai de Pedro “Sabiá” e Aluísio, no local de sua antiga chácara, bem próxima da Praça Del-Vecchio. Apesar do tamanho reduzido e certa declividade, foi palco de disputadíssimos campeonatos. O Roial fez nome, disputou campeonatos em diversos estádios, fez excursão para outras bandas e marcou presença com seu punhado de craques. Armando Amorim - Memórias
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Wilsom e Tuninho
Tuneca, Oscar e Aldo.
Osmar, Gustavo e eu. Luciano, Celso, Rubens, Marilia, Sergio, eu e Mazinho.
O goleirรฃo Gustavo
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Jogava-se também no campo da Mangueirinha, no Sumaré e no campo da Light, no morro 117. Com a criação do clube, nossa grande turma ficou bem maior. De vários pontos do Rio Comprido, outros jogadores se incorporaram e até de outros bairros mais distantes, chegavam craques. O Aldo trouxe o Shulipa e Celinho; o Luciano chegou com Paulo Moreira; do Catumbi e outros lugares, chegaram Pachequinho e Pachecão, Milton Casado, Licínio, Antero, Boca, Shia, Barata, Nilo, Osmar, Rubens, Wilson, Oscar, Macaco, Orlando, Tuneca, Joaquim “Maluco”, Dilson, Tuninho, do Papel Pirai e outros. Da turma da rua, se destacavam como bons de bola, o Wilson “Caramelo”, Aldo “Papel”, Carlinhos e Celso “Cabeça”, Paulinho “Simples”, “Canca”, Gustavo, Julinho “Português”, Pedro “Sabiá”, Gustavo, grande goleiro, entre outros.
Mario, Osmar, Gustavo, eu, Tuneca, Aldo e Mazinho. Abaixo:Tuninho, Paulo, Joaquim, Carlinhos e Mazinho.
Mas, ao se falar do Roial, não se pode deixar de destacar a sua “madrinha”, eleita no voto e coroada em festa concorridíssima, na garagem do Saraivão. E estávamos bem representados, pois Marília “Morena” era uma “gata”, menina moderna e liberada, a nossa Leila Diniz. Foi um tempo bom, que dá saudade. Armando Amorim - Memórias
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Namoro na adolescência, uma encrenca. Espinhas no rosto, corpo meio desengonçado, voz às vezes fina, às vezes grossa e a disputa para se arrumar uma namoradinha; valia tudo para impressionar: os “pintosos”, certamente levavam vantagem. Depois os “sarados” que naquele tempo eram chamados de “parrudos” e os que se vestiam bem. Também se destacavam aqueles que tocavam algum instrumento, principalmente violão. Se cantassem, então, a conquista ficava fácil, o mesmo para quem sabia dançar bem. Devo confessar que não possuía nenhum desses dotes. Para me destacar, sobrava só o esporte; mas as meninas não ligavam para as peladas e outros, às vezes, até atrapalhavam. Certa vez, para passar as férias no Rio, vinda de São Paulo, chegou Verinha, prima de Marisa e Chicão. Um alvoroço na garotada, pois Verinha era um dengo, uma lindeza. Pensei imediatamente: nos patins em que eu fazia malabarismos, estaria à sedução. Velocidade máxima, Verinha no portão do 140. Calçada lisinha para uma pirueta em rodopio e catchibum! - o cálculo errado e o choque humilhante, abraçado ao poste. Estabaquei-me. Não liguei tanto à dor imensa e ao saco roxo por vários dias, mas sofri com as risadas de Verinha, machucando bem mais que a trombada. Depois aprendi Karatê e tome pau e telha quebrada, chutes na mão e outras visagens. Chego então na festinha em casa da Aretuza e, lá pelas tantas, Paulinho me pede uma demonstração, já trazendo um baita pau. Espero juntar as meninas, faço “doce”, a turma insiste. Escuto a Márcia dizendo: “ele não vai conseguir, de jeito algum”. Era o meu momento de glória: arregaço pacientemente as mangas para haver certo suspense, meço a distância e o golpe certeiro: Catbum!! Madeira intacta e uma dor horrível que me percorreu todo o corpo. Ainda tive que sorrir e depois segurar, escondida, uma pedra de gelo durante toda à noite. Complicada, a adolescência... Depois a gente cresce um pouco e lá pelos 18 anos a paquera também muda. 82
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Paqueras da Juventude O melhor da juventude era namorar, “apanhar uma pequena” como se dizia e “azarar” ou “ficar”, como se diz hoje. Com 18 anos, na conquista já entrava o lero-lero... Muitos telefonemas... Bilhetinhos... Recados... Até chegar ao encontro, que poderia ser no escurinho do cinema, as mãos dadas e enfim, o beijinho e se possível, os apertões, chamado de “sarro” e agora, amasso. Para as aventuras, a geografia da paquera mudava e o ponto mais nobre era o calçadão com desenhos sinuosos da Atlântica, que combinavam com as formas dos brotos dourados e quando se cantava: “um bom lugar... pra se amar... Copacabana...”. Mas, podia-se acabar nas portas dos cinemas da Praça Sãens Pena: Olinda, Metro, Carioca, América e Eskye. Para o total sucesso, valia sair com o carro do pai. Como o meu não tinha, o jeito era fazer dupla: com Ramsay e seu Dodge; Arno com Citroen; Chicão, com o Pontiac 430 e depois o Studbaker conversível; Zeca, com o velho Austin e depois o DKV Vemag; Luciano, com Chevrolet Belair - um luxo; Aldo, com Hudson; Paulo César, com Sinca Jangada e depois Jaguar e Lino, com Dodge e depois, fusca; e alguns mais, que muitas vezes viravam “navio-das-putas”, como se dizia. Local de namoro, quase sempre na Barra da Tijuca, na época, deserta. Quando se dispunha de “algum”, valia ir as boates Flamingo, Caniço e Macumba, passando antes pelo Bar Bem - pois era “um mal não freqüentar o bem” - como anunciava a propaganda. Quando duros, o melhor recanto a areia, tendo como teto as estrelas. Hoje, a garotada está mais apressada. Vai-se a night, a balada, ou numa festa “bombada” para azarar. Ficam em pé na observação e se passa por ele quem lhe agrada é só segurar e vem logo o aperto e o beijo. E se foi bom para ambos, ficam ali no amasso, diante da “platéia”. Só depois perguntam o nome. E dizem eles, se der pé, azaram três ou quatro por noite. Não sei se isso é raciocínio rápido ou se são mais naturais assim. Pode ser que não levam jeito para sussurrar aqueles jargões manjados. Se não for nenhum desses, passaram a ter, simplesmente, maior cara-de-pau. Não sei se assim é melhor... Para nós, na conquista, entravam Armando Amorim - Memórias
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primeiro os olhares, os sorrisos, o capricho no papo e um arsenal de charme e artimanhas. Valia até umas mentirinhas, pois ninguém é de ferro. Prefiro dizer: inventávamos verdades. E nada de ter uma só; pelo contrário, ter duas, três namoradas ou o que fosse possível, valia pontos na rapaziada. Mas para se ter ideia de uma paquera completa, conto aqui um “case” de um dos membros da nossa tribo, apesar de que a sua performance sempre foi um pouco exagerada. Poderia ser outro qualquer da turma, mas isto causaria muitas confusões, pois as esposas de hoje eram as namoradinhas da época.
Maria Lula
Maria Lula, Paulo e Rubem
Maria Lula, Rubem e Paulo
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Maria Lula e Rubem
Como o Paulo César “Aguinha” foi embora bem cedo e só pode levar bronca na reza, o “case” é o dele. Mesmo porque, na época a esposa ainda não era e já o perdoou e até me contou que um dia, recebeu tarde da noite seu telefonema, dizendo que estava na Fiorentina com duas meninas. E pediu que ela fosse ao seu encontro, para livrar-se delas. Pode uma coisa dessas? Com ele podia, pois era um “inusitado”. Mas vamos ao “case”, que começa assim: Tinha eu uma amiga na Tijuca, Nilda, que nas férias de verão, volta e meia me apanhava em casa, para irmos à praia. Certo dia levou uma vizinha que parecia de outro planeta. Um verdadeiro “avião”; uma “puro-sangue”, bem morena, olhos azuis claros que reluziam, cheia de curvas nos lugares certos, enfim, de “fechar o comércio”. Estava sozinha, mas soube que era noiva. “Comentei com o Paulo César ‘Aguinha” as virtudes da morena e conclusão: no dia seguinte ele foi à praia também. Alto, bonito, inteligente, rico, cursando economia e já com alto cargo no Iperj, era o tipo de que diziam: “bom partido”. Quem conheceu a peça, já sabe que ele ficou louco pela “Maria Lula”, que assim era chamada esse “monumento”. Mas aí, a dificuldade; como entrar na paquera, se a menina estava noiva? Isso era o que ele mais gostava. Coisas difíceis e complicadas. Sabendo que eu ia sempre a Juiz de Fora, ver a mineirinha Ivete, me telefonou para saber a próxima ida. Por acaso era no dia seguinte e ele então arrematou: “Vou com você”! E viu logo o meu espanto: Armando Amorim - Memórias
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comigo pra quê? Explicou-me então que viajaria só para telefonar à Lula. De início é claro, não entendi: por que você não telefona de sua casa? É muito mais barato! E ele, cheio de argumentos, quis me convencer que, estando fora do Rio, em outro estado, haveria um motivo diferente. E repetia várias vezes: “Telefonar de fora, é outra coisa...” Você não entende... Tem de ser de longe... Pois bem, sem entender e sem estar convencido, viajamos. Lá chegando, ocupamos o quarto no Hotel Imperial - em que sempre ficava e fui logo lhe dando o telefone para a ligação, pois estava curioso em ouvir o seu argumento. Mas me cortou: “Isso não é assim não! Vou fazer a barba, tomar banho, me arrumar nos trinques e até passar um perfumezinho, pois quero me sentir como estivesse em sua presença. Novamente, não entendi nada, mas tive que concordar, pois era o ‘Aguinha”. Finalmente, chegou a hora: fez pose e a ligação. O papo foi aquele manjado, de “seca ou cerca “lourenço”, dizendo que, estando fora, continuava lembrando da sua beleza e simpatia e estava assim lhe enviando umas flores, como homenagem da natureza por ter produzido aquele encanto , que era ela... E mais algumas frases de efeito. Lula agradeceu a gentileza e no curto papo, parece que lhe deu alguma “abertura”. Isto porque o “Aguinha”, ao desligar o telefone, saiu dando pulos e cambalhotas e não parava de gritar: ‘Consegui! Consegui! E saiu correndo para a florista, carregando o cartão que durante horas esteve preparando para seguir com as flores. Para o meu espanto, a maluquice tinha dado certo, pois algum tempo depois o noivado acabou e os dois passaram a namorar. Nesse campo, tudo o que ele fazia era bem arquitetado. Nesta mesma estada em Juiz de Fora, estávamos na sala de estar do hotel, quando passou por nós uma gata linda chamando a atenção de todos. E dele, em particular, pois de pronto falou: “Viu a olhada que deu pra você?” (Na verdade ela nem nos viu). E logo pediu que eu solicitasse da recepcionista, onde a dita estava, e que ligasse pra ela. De tanto insistir e sabendo de seu jogo, perguntei o número do quarto, pois sabia do seu interesse. Era o seu jogo manjado, que eu conhecia bem. Bonitão, excelen86
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te estampa, ele sempre me “empurrava” nas jogadas, como “boi de piranha”. Depois, se aproximava, já sabendo a reação e jogava o seu charme. Acabei ligando e uma voz simpática, em castelhano, atendeu. Conclusão, ficamos conversando numa saleta no andar de cima, sabendo que o “Aguinha” ia aparecer. A moça era uma pesquisadora uruguaia e estava a serviço da FAO, fazendo levantamentos agropecuários na região, assunto que eu conhecia muito bem. Papo bom, animado, surge o Paulo, fazendo sinais para que eu a apresentasse. Fiquei na minha, fingindo que não o conhecia. Era a oportunidade que esperava. Passou onde estávamos umas dez vezes e não parava de fazer sinais. Como não lhe dava atenção, acabou não se contendo, e apelou: “Mandinho, a Ivete tá na portaria te esperando”. Como sabia da mentira e conhecia perfeitamente o seu jogo, pedi que lhe desse o recado, que mais tarde iria à sua casa. Acabou saindo com a telefonista (do interurbano) e chegou ao hotel me injuriando: “Era uma ‘baranga” das piores e o culpado foi você, que não me apresentou aquela gata. Sacanagem sua!”. Nesse dia fui à forra de suas várias “aprontações”. Mas nossa história não acaba aqui. Já noivo da Lula e realmente apaixonado, aprontou tremenda confusão. E eu paguei o pato. Em frente a casa dela, na Tijuca, morava uma de suas amigas, também noiva, que eu não conhecia. Mas a história completa se passou assim: Paulo chega à Fábio Bastos, empresa em que eu trabalhava, com uma carta rascunhada, pedindo que a copiasse, pois a destinatária conhecia a sua letra e no momento não poderia saber de quem se tratava. Dizia, na carta, do desejo de um encontro; enaltecia a beleza e os dotes da fulana etc. No final, um P.S, que dizia mais ou menos assim: “se de sua parte desejar também o encontro, coloque hoje à noite uma toalha na janela, pois passarei por aí”. (Na verdade, ele estaria do outro lado da rua, onde morava a Lula, aguardando a colocação da toalha). Levou então de carro o meu primo Rogério, com a recomendação: Armando Amorim - Memórias
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espere quinze minutos na esquina, tempo suficiente para encontrar a Lula e levá-la até o portão. Aí, você entrega o vidro de perfume e a carta e vai embora rápido, sem dizer nada. Dito e feito. O presente e a carta foram entregues, onde se lia: “Favor entregar a fulana”. Seu plano era fazer com que a Lula entregasse a encomenda em sua presença e aí ele estaria sabendo de sua reação. E isso aconteceu. Só que não foi a que esperava: “Que babaca!... pelo menos o perfume francês é ótimo... E nada de toalha na janela. O que o “Aguinha” não esperava, é que a Lula, dias antes, como toda namorada, havia feito vistoria em sua pastinha preta, que ele sempre carregava. Viu aquele mesmo vidro de perfume e até pensou que o receberia de presente. Aguardava o dia. Conclusão: depois de muito choro, muita pressão, ele acabou “confessando”. A seu modo, claro. No dia seguinte, chega ao meu escritório, conta à história e me suplica: “Você precisa me salvar! Disse que a carta era sua e que podia ser confirmada não só pela letra, mas também pelo “estafeta” que foi seu primo. E o vidro de perfume, disse que era presente pra Lula, mas você comprou e depois reporia”. E finaliza: “Você precisa me ajudar, confirmando a história! Afinal, somos mais que amigos... Somos irmãos!” Só pude responder: “Porra nenhuma! Essa vergonha, essa bobeira, eu não passo. Acabei passando. Não só pela amizade, que entre nós era coisa de irmão, mas sabendo que fez o que fez só pelo prazer da aventura, pelo “porra-louca’ que era”. Na verdade, ele não tinha nenhum interesse na tal menina. E, finalmente, porque sabia que os dois se amavam muito e eu queria ver o final feliz. E vi. Eles se casaram e tiveram um filho maravilhoso, fisicamente o seu clone: Rubem, economista como o pai. Que Deus o tenha em bom lugar.
Um bar Divino Localizado na esquina da Matoso com Hadock Lobo, o Divino Bar, ao lado do Cine Madri, chegou a ser conhecido em todo o Rio de Janeiro. Era o mais famoso bar da zona norte, com a mesma importância do “Bar Veloso”, depois ‘Garota de Ipanema”, para o pessoal zona sul. 88
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Zequinha, Lino, Zezinho, eu, meu pai, Osvaldo, Aldo, Julinho, Gil, Helio e Ramsay. Abaixo: Ernestinho e Chiquinho,
Ado Pipoca e Regina.
Armando Soluri
Eu e Gabriel
Bob, irmĂŁo da Carmem Marina.
Tim Maia Eraldo Leite, Gilda com Bia e Vasco que zoava no Divino..
Jorge Benjor
Serginho Caruso e Aloisio
Paulinho Careca, Celinho e eu. Jamanta de holandesa
Raphael, o Rafa
Soluri e Vilma
Gabriel e Regina
Serginho com os filhos Tiago e Felipe
Serginho, Aluizio, Mena Candorelli (Bel 38) e Bob Herman.
Chiquinho e Teresa
Serginho
Eu com Cacáu
Ado “Pipoca” com os filhos André, Patrícia, Marcos e o neto. Eu e Gabriel
Enquanto a bossa nova circulava por Copacabana e Ipanema, o Divino recebia Jorge Benjor, Tim Maia, Luiz Melodia, Erasmo Carlos e até Roberto Carlos chegava por lá. Outros como Simonal, Luiz Airão e Renato dos Blues Caps gostavam do local. Mas a mistura, em todos os níveis, formava uma salada original. Havia os intelectuais, os artistas, os “porra-loucas”, os brigões, os profissionais liberais e gente que nada fazia, pois podia ser vista ali, o dia inteiro, todos os dias. E chegavam de todos os cantos do Rio sendo, a maioria da Tijuca, do Estácio e Rio Comprido. E, espalhava-se também pelo Bar Berengo e Porto Seguro e as esticadas no Atlantic 105, talvez o primeiro posto de gasolina a reunir a patota, como faz a rapaziada de hoje. Nos fins de semana, a partir de sexta-feira, o Divino recebia as suas “divindades” e virava um verdadeiro circo. A fama de local de brigas ficou por conta de uns dois ou três, como “Pato” e o lutador Mauro Gonzaga e, às vezes, por alguns poucos garotos que, juntos, se sentiam valentões. Também repercutiu o dia em que o “Nuvem Que Fala”, de certo modo pacato, resolveu quebrar todo o bar, por motivo que nem ele soube explicar. Também não devia ser muito certo, pois uma vez, como na piada, saiu com seu galo garnisé debaixo do braço e percorreu todos os açougues do pedaço. Só para mostrar a ele, dependuradas, as galinhas “peladas”, dizendo que era para animá-lo, pois estava depressivo e não galando mais.
Aluisio e Pedro Paulo
Ruyzinho, Liza, Chiquinho “Zoio”, Bob, Joaquim, Serginho, Mena Candorelli, eu, Soluri e Celso Terra. Armando Amorim - Memórias
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Guto Dias, Ana Watson, a Ăşnica convidada da turma, Ruyzinho e Soluri.
Carlos Terra, Sergio Murilo e Angela, da Paulo de Frontin. Jorge Benjor
Dalmo Castelo Vitor Barone
O tricolor Felipe Caruso, ao lado Helio Zeitune. Em pĂŠ, Carlos Terra e Guto Dias.
Mas o Divino não era lugar de doido ou de briga. Em qualquer mesa, havia sempre um bom papo, variado e divertido, pois quem ali se sentasse era assim. As brincadeiras, claro, sempre existiam. As mais famosas assinadas pelo mesmo autor: Raphael, ou “Rafa” e para os íntimos, “Cara de Cavalo”. Quase sempre sério, bem vestido, parecendo lorde inglês, o advogado Rafa aprontava, apesar de que, os que não o conheciam, poderiam duvidar. Mas se em determinado dia, copos, pratos e talheres começassem a “explodir” - fazendo garçons deixarem cair o que tivessem nas mãos, podia-se “advinhar” o autor: Dr.Rafa. E o coro ecoava em todo o bar: “foi o Rafa!... foi o Rafa!”... Todos acertavam, pois se sabia que tinha colocado um pingo de certa gelatina que invertara que, depois de seca, ao se tocar, explodia. E isso valia para fechaduras dos carros estacionados, toalhas, guardanapos e torneiras do banheiro. O mais incrível é que ninguém notava a ação, pois havia desenvolvido em grau máximo, a arte de ser cínico. Dizem ser também o inventor do “peidão”, depois disseminado em todo o Rio. Tratava-se de um barbante que, ao ser aceso, exalava um cheiro insuportável, bem pior do que aquele ar que os mal-educados expulsam em qualquer lugar. E quem sofria mais com essa brincadeira era Pietro Fontappieé, o “Milé”, fotógrafo do jornal “O Globo”. Em quase todos os fins de semana era escalado para dar plantão e se despedia por volta da meia-noite. Hora do Rafa aparecer e esperar o Milé subir no ônibus, para colocar em seu interior o “peidão”. Em seguida, a despedida em altos brados: “Cheiroso”! Mande um beijo pra Fedorenta! Comentava depois o Milé, a vergonha: O cheiro ficava insuportável e, durante toda a viagem, olhares desagradáveis, o fitavam. Também era do Rafa a idéia de virar as luzes que iluminavam o Cristo do Corcovado, para a cidade e aprontar outras diabruras. Por causa de alguma estrepolia, certa vez, o presidente do Clube Vila da Feira, localizado perto do Divino, proibiu a sua entrada nas dependências daquela agremiação portuguesa. Sabendo que o dito estava criando e engordando nos fundos do clube um belo peru para a ceia de natal, não deu outra: o peru sumiu. Rafa tinha roubado o peru do presidente e pediu ao cozinheiro do Divino para prepará-lo à moda portuguesa, sugerindo a colocação de um ramo de alecrim no cu do bicho. Fomos todos Armando Amorim - Memórias
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convidados para a boca-livre e durante o maravilhoso jantar, não parava de pedir: “não joguem nenhum osso fora!” Ninguém sabia por quê. Dias depois, o motivo foi esclarecido. Rafa subiu na cobertura de um alto prédio vizinho ao clube e de lá jogou, de paraquedas, uma caixa, que caiu na quadra, durante uma partida de vôlei. Dentro dela os ossos do falecido e junto, uma carta-testamento, que dizia em seu final: “Deixei essa vida, para entrar na barriga do Rafa”. Dizem que o patrício soltou fogo pelas ventas. Nessa história, há controvérsias e lembram alguns, como o Aldo “Papel” e o Gabriel, que o bicho foi porco e que o bilhete dizia que o “Rafa tinha comido o porco do Presidente”. Pelo tempo pode ter sido um dos dois, mas a intenção da sacanagem foi a mesma. O papo sempre divertido, a comida do Geraldo boa, mas as pizzas, notáveis: até hoje não encontrei melhores. Como o dinheiro era sempre curto e amigo dos garçons Severino, Antônio, Manolo, Pepe e “Espanta Neném”, tínhamos os nossos macetes para diminuir a conta: os pratos eram anotados quando passavam pelo Caixa e as nossas pizzas sempre de mussarela, as mais baratas. Isso, porém, não impedia que comêssemos as de presunto, bolonhesa (que inventei), calabresa ou outra qualquer, pois bastava dar um sinal ao pizzaiolo Moisés. Aí, ele colocava o que se queria, “escondido”, por baixo da mozzarela - que além de mais em conta, ficavam deliciosas.
Otavio e Jorge “Furinho” Sergio Murilo, Pipoca e Sergio Caruso
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Chiquinho, Aluisio, Celso Terra e Guto.
Erasmo
O Vasco Loureiro
Joaquim, Felipe e Alexandre Duarte.
GIlberto Villardi
Ao lado do Cine Madri estava o Divino
Muita gente especial passou pelo Divino: Meu amigo e “irmão”Gabriel, Serginho Caruso, Ado “Pipoca”, Vítor Barone, Ary e Amaury, Mutt, Gilberto Villardi, Hiram Martins, Fogo e Fagulha, Reginaldo, Reynaldo de Jesus, Aloisio, Luiz Martin, José Carlos “Cacáu”, Mário “Vinagre”, Zeca, Celso e Carlos ( “Terra” e “Terrinha”), Nelson Tallone, Expedito “Ping-Pong”, Janarelli, Gustavo, Bob, irmão da Carmem Marina, José Carlos “Perereca”, Luis Carlos Montenegro, Osvaldo, irmão de Gabriel, João Bosco, Gilberto “Músico”, Renato, Paulo Aranha, Valtinho “Galã”, Mazzulo, que jogou no Fluminense, Emílio “Jamanta”, Célio “Jeff Chandler”, Mena “Colt” Candorelli, Roberto “Navio”, Hugo Gonçalves, Armando Solluri, Joaquim Teixeira, Mineiro, Nelson Tomé, Walter “PV”, Zé “Maluco” Tuninho Aljan, Paulo “Mamãe”, Domingos Veloso (Farmácia Medina), Marcus “Morcego”, Paulo “Lorota”, Hilton “Sinatra”, Sérgio “Marta Rocha”, Waldiir “Ronco”, Heitor Leite, “Louro”, Jobim, “Califa”, Enio Amaral, Roberto e Ronaldo Gabriel, Costa, “Cacá”, Nico, Fogo e Fgulha, Guto, Isinho, Mário Sérgio, Reginaldo Varão, o “Clarque Gables” e mais alguns de cujo nome não me lembro, entre eles “Kalifa”, nosso banqueiro de plantão. Foi o precursor do Banco 24 horas para as emergências. 98
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E claro, toda a turma do Rio Comprido e nossa tribo do sereno, entre os quais, Aloísio, Eduardo Jorge “Tuca”, Sérgio “Kafa”, Maurílio “Delegado” Moreira, Dalmo Castello, Marrom, Guto, Zé “Bolota”, Ruy Paneiro, Liza, Goró, Luizinho Moreira, Vasco Loureiro, Luiz “Barba Roxa”, Aureo, Delson, Dedé, Wilsom “Caramelo”, Zeca “Pé-na-Cova”, Chico “Zoiudo”, Sergio Murilo, Aldo “Papel Fino”, Ramsay, Paulo “Careca”, Julinho “Portuga”, Luciano Barbedo, Jair “da Carne”, Arno, Lino e Gil Seabra, Mário e Alcides, Cesar, Chico Ramos, Osvaldo “Dentista”, Zezinho e Paulinho “Fifi”, Paulinho “Simples” e muitos outros. A música esteve bem representada no Divino: Jorge Benjor, Luiz Melodia, filho do compositor Oswaldo Melodia, morador do Estácio, Tim Maia, Erasmo e Roberto Carlos. Este todo arrumadinho, com seu casaco vermelho, magrinho, simpático, tímido, passava a noite rindo. Se ao invés de sair do Lins de Vasconcelos e ter chegado à Tijuca, se enturmasse com o pessoal da zona sul, por onde andou, na certa se transformaria em expoente da bossa nova, pois seu jeito e gosto com ela combinavam. Mas encontrou Erasmo Carlos - que nasceu roqueiro e Tim Maia e saiu para o “Sputinik”, os “Snakes” e acabou nosso Rei. Mora!... Históricamente a bossa nova nasceu na zona sul e, em contrapartida, o rock brasileiro, nas raízes da jovem guarda, é cria da zona norte, com seu “marco zero” no Divino. Do Divino, íamos muitas vezes, à casa da Neusa, conhecida como o “Clube das Desquitadas”. Isso porque, desquitada de conhecido empresário do ramo dos eletro-eletrônicos, sempre estavam por lá umas doze a quinze no mesmo estado civil. Eram moças inteligentes, virtuosas, que por alguma razão não se entenderam no casamento e era normal, a aproximação entre elas. No belo e amplo apartamento da Rua Conde de Bonfim, Neusa recebia a partir de sexta-feira a turma e nunca faltavam belos jantares, pois “cozinheiras”, tinhamos de sobra. A partir daí, havia a turminha do pôquer; os que gostavam de dançar, papear e sempre alguém com violão. E as brincadeiras não podiam faltar. Uma delas, inventada por Vasco Loureiro, que resolveu realizar semanalmente um casório.
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Com vestido de noiva que servia a todas, a eleita era preparada pelas outras, maquiada e com direito até ao buquê, que depois era jogado ao avanço. Quem o pegasse, seria a noiva da próxima semana, faltando só o voto secreto, que elegia o noivo, com muita gozação. O Vasco vestia então a batina de cônego, de um falecido tio do Amaury. E a mim a saia de coroinha, que ficava lá pelas canelas: ridículo. E ainda davam-me um balde com vassourinha de piaçava, para a “benção final”. Com catálogo de telefones aberto, pousado no suporte, o Vasco, com a voz grave que Deus lhe deu, declamava poesias em latim, que aprendera no Externato São José. E ao som da marcha nupcial, mais uma deixava de ser desquitada e todos eram convidados para um delicioso bufê. A lua-de-mel? Bem, isso é segredo da turma. Algumas vezes, trinta e tantas pessoas saíam de lá no fim da noite para zoar em Copa e a farra acabava na praia, esperando o amanhecer. Valia o luau. O compadre Vasco Loureiro, o casamenteiro dessa história, sempre foi moleque. Companheiro de todas as andanças, muito badalamos por esse Rio e fora dele, à procura das “tacacás”, como ele as chamava Quando me ligava na empresa, e a secretária atendia, anunciava-se como Dom Helder Câmara, Oscarito, Tarcísio Meira, Carlos Lacerda, ou qualquer outro famoso. Certa vez, a nova secretária que não sabia de sua brincadeira, interrompeu uma reunião com um diretor da Transportadora Itapemirim, dizendo que o ministro Delfim Neto estava ao telefone. Respondi: “Avise que mais tarde ligo para ele e confirme se está em Brasília”; ao mesmo tempo em que o sujeito me interrompeu, querendo sair da sala, para que eu atendesse mais à vontade. Esse deve ter espalhado a minha intimidade com o ministro. 100 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Expliquei mais tarde à secretária, que sempre que alguém notório, famoso, me telefonasse, era brincadeira de meu amigo Vasco. Dois dias depois ela entra na sala sorrindo e avisa: “O Sr. Vasco está ao telefone”. Atendi, e era o Wiston Churchill, nosso contato em São Paulo, que recebeu esse nome no batismo. E foi reclamando: “que secretária é essa que ficou falando que eu sou Vasco! Você sabe que torço pelo Fluminense!”. Ninguém entendeu nada. Muito menos a secretária.
As Zonas não se entendiam Durante muito tempo, o Rio de Janeiro ficou dividido entre zona sul e o resto. E havia muitas diferenças. Não só entre nós do Rio Comprido, mas com todos os que moravam “depois do túnel”, como eles diziam. A turma zona sul possuía a praia, como o seu eixo e a convivência e todas as ondas aconteciam ali. Eram craques no nado, em “pegar jacaré” (antes do surf); jogavam bem frescobol e de vez em quando vôlei e peladas na areia. Havia as turminhas da rua tal e formavam até certos guetos. Vestiam-se mais à vontade do que nós e as meninas tinham certa bossa para colocar um vestidinho leve, que contrastava com suas peles morenas. Estavam sempre enxutas, como se dizia. A maioria “filhinhos de papai”, que só iam trabalhar depois de formados. De certo modo, sentiam certa superioridade em relação aos que não moravam na zona sul praiana. Para eles, o resto era uma população de suburbanos ou “índios”. Já o pessoal do lado de cá do túnel, como nós, vivíamos e nos misturávamos com o pessoal dos morros, dos subúrbios e periferias. Dificilmente os “sulinos” conheciam ou conviviam com pobres e o único contato, só nas peladas, com alguns poucos do morro do Cantagalo. Já nosso relacionamento era total e permanente e com isso fomos influenciados pela boa malandragem, no sentido de conhecer mais a vida de verdade, possuir mais jogo de cintura; ser mais “safos”.
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Nas areias da praia não se jogava bola de gude, pião; não se rodava arco e balões não se soltavam. Também, campos de pelada existiam em qualquer canto da zona norte e suburbana, o que não acontecia na região sul. Razão de quase não haver surgido jogadores de futebol nascidos e criados ali. Isso sem falar nas rodas de samba, onde se aprendia a dar pernada, coisa desconhecida do pessoal zona sul e mais outras coisinhas. Apesar da nossa rapaziada sentir certa inveja da garotada dourada das praias, considerávamos também serem eles, de certa forma, babacas. Havia sim, certa competição e até discriminação. Quando chegávamos à praia, éramos tratados como farofeiros, ou perto disso, e muitas vezes o encontro acabava em confusão. Mas não deixávamos de tirar a roupa e fazer aquele montinho, que afrontava e irritava o pessoal praiano, pois se sentia o dono do lugar. Na hora da paquera, nossa preferência era ir para a zona sul, não só pelas meninas, mas pelo ambiente mais bonito e agradável. E isso causava também muita confusão. Durante certo tempo namorei uma menininha que morava na Montenegro, em Ipanema. Quando a turminha da esquina descobriu que eu vivia do outro lado do túnel, as brigas chegaram. Juntavam oito ou dez e eu ia encarando-os na pernada e nas defesas que aprendi no karatê do amigo Kasumo. Notava que eles não levavam jeito para o negócio, mas o número fazia diferença, pois eu não era nenhum Kung Fu. Como não ia perder a namorada, as brigas se sucediam, até que um dia o “Montanha”, leão de chácara no pedaço, com seu tamanho, parou a briga e deu a “ordem” para que fossemos juntos para o bar, beber um chope. A partir do papo, acabei amigo do pessoal, passei a freqüentar a turminha e jogar pelada e vôlei na praia. Entre eles, Tuninho, Paulo Ruivo, Zeca Totó e “Feijão” se tornaram meus grandes amigos e ríamos muito, quando eu dizia que eram frouxos para encarar um cidadão zona norte. E pude sentir 102 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
que, apesar das diferenças, o que havia era a desinformação dos dois lados e que era possível à convivência amiga, a partir do diálogo. Na verdade, as coisas aconteciam no lado de lá do túnel. A turma de Copa e principalmente de Ipanema, Arpoador/Castelinho lançavam a moda e novos costumes. No pier, na calçada e bares como Jangadeiro e Veloso (agora Garota de Ipanema) aconteciam as novas idéias. Inventaram até o “sarro” no carro, em frente ao mar, assistindo “corrida de submarinos”. Ali circulava o pessoal da bossa nova e os precursores Tom Jobim e Newton Mendonça. Também o pessoal do Pasquim e figuras que viraram mitos, como Roniquito, irmão da Scarlet Moon, a Leila Diniz e até Hugo Bidet, um dos fundadores da Banda de Ipanema e inspirador do personagem “B.D.” de Jaguar, que ao gritar “Skol” se transformava no “Capitão Ipanema”. E no Antônio’s no Leblon, o bar do Manolo recebia Carlinhos de Oliveira, Di Cavalcanti, Ruben Braga, Chico Buarque, Ziraldo e outros admiráveis. A chegada da bossa-nova passou a retratar o perfil dessa rapaziada: mar, céu azul, boa vida, sol, gente bonita... “e o barquinho vai... à tardinha cai”... Era mais ou menos o sonho de consumo do nosso pessoal também. Muitos deles vieram depois conhecer o chão “suburbano” - o que antes era raro - e passaram a freqüentar as escolas de samba; foram apresentados aos nossos Cartola, Carlos Cachaça, Clementina, Nelson Cavaquinho e por aí, e descobriram que havia vida inteligente após o túnel. Hoje, não há mais rivalidade e acredito que a música foi a grande responsável pela aproximação. E, também, a inteligência.
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Nos morros só se morria de rir 71, Morro do Sabiá
Batucada na favela
A favela nasceu escondida e vive assim até hoje. Vista de baixo parece não estar lá. É necessário subir a rua, hoje calçada e com nome de Infante de Sagres. Ao se fazer a segunda curva, encontra-se a favela mais simpática da cidade. Pelo menos, era assim no meu tempo. Ali convivemos com todos, crescemos juntos e as amizades ficaram para sempre. 104 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Aos dez anos, ou menos, frequentando os barracos onde a garotada vivia, fiquei sabendo das desigualdades sociais. Os de baixo tinham mais comida do que apetite e os de cima, pratos e talheres sem muita serventia. E percebi logo que o certo do mundo não era este. Havia alguma coisa errada na divisão. Nas minhas calças curtas não podia fazer mais do que “roubar” de vez em quando um dinheirinho da minha mãe e colocá-lo, disfarçadamente, debaixo de um pano, ou do bule de café, nos barracos dos amiguinhos, por onde transitava. Tirava também algumas frutas de casa, para repartí-las, e pedia à mãe roupas usadas, para melhor vestir a garotada. Era o máximo que poderia ser feito, para atenuar a tristeza que sentia. Reparei mais tarde pelos meus filhos e filhos dos outros que, quando se é criança, a solidariedade é plena. Quando somos bem pequenos e nos vemos pela primeira vez diante desta realidade, nos emocionamos e não aceitamos essa situação. Pena que crescemos. E o mundo vai ficando com gente que tem cada vez mais e a maioria com cada vez menos. É uma conta que nunca consegui entender e me fez ter, em certo tempo, pensamentos anarquistas, achando que para consertar, só começando de novo. Não deu certo regime algum. Mas, quem assiste a favela de vista aérea ou nela penetra pela vez primeira, passando por suas apertadas vielas, com subidas e descidas que não se sabe onde vão chegar, pode não imaginar que na desarrumada geografia, na criativa arquitetura, vive uma gente maravilhosa, de códigos morais elevados. Precisa-se com ela conviver, para receber lições de solidariedade, exercida com naturalidade, sem esforço algum. Foi, portanto, no morro 71 (agora com outros nomes), que iniciei a minha formação, conhecendo gente muito especial. Ali, percebi o que era solidariedade de verdade, quando assistia ao mutirão de moradores ajudando a reformar ou construir um barraco, pelo simples prazer de ajudar. Ou quando uma das moradoras tinha que ser internada com tuberculose e a vizinha, imediatamente, pegava os cinco filhos da enferma e juntava aos seus outros seis. E sem pensar que aquilo era sacrifício. Mas há o lado alegre, divertido, pois, apesar de tudo, esse povo é assim. Vivendo com o pessoal do morro, conheci personagens incríveis e gente muito especial. Pedro “Sabiá” foi um deles. Ao longo dos anos a amizade foi crescendo e acabei sendo padrinho de um de seus filhos. E não fui padrinho no “papel”. Armando Amorim - Memórias
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Certa vez em sua casa, ele me chamou num canto e me intimou: “Mandinho, a partir de hoje, você é padrinho do “Miquimba” e ele já sabe que tem que te pedir a benção”. Não adiantaram meus argumentos, mostrando que o menino já tinha padrinho. E ele também argumentou: “então, vai ter dois!” Para criar a família, durante o dia “Sabiá” retirava areia de um rio que cruzava o seu terreno, jogando-a, de pá, a mais de três metros de altura. Isto lhe deu uma força e uma disposição descomunais para tudo. Aliando a habilidade em dar “pernada” a uma agilidade incomum, se tornou, por méritos, o “bamba” do morro e redondezas. Brigar com ele “na mão”, era querer se amarrotar. E se viesse com faca ou navalha (armas da época), “Sabiá” conseguia desarmar e aí a surra era maior. Sendo assim, sorte foi crescer amigo dele. E foi ele que me introduziu nas rodas de samba, onde por horas se cantava: “o facão bateu embaixo/ a bananeira caiu/Cai, cai, bananeira/ a bananeira caiu... e cada um entrava na roda, juntava os pés e “plantava”. O companheiro fazendo passos gingados, cheios de malandragem, aplicava depois a “pernada” (rasteira). Se o “plantado” fosse bom, conseguia ficar em pé, pelo movimento e equilíbrio. Confesso que caí feio muitas vezes; mas posso afirmar, que o “branco azedo” que era eu, tempos depois já tinha destreza nesse “ofício”. Durante anos formamos bela zaga nas peladas; ele na força bruta, “espanando”, e eu, mais “domingos da guia”, modestamente. E foi numa dessas peladas, no campo da Light, que Pedro “Sabiá” me salvou. O campo, próximo ao 71, fora construído cortando-se o morro, formando um platô. Assim, de um lado havia uma parede abarrancada e do lado oposto, uma pirambeira. Nesse dia, jogava contra o nosso time, um crioulo baixo e forte, quase sem pescoço. Em certo lance ele entrou na covardia e, como era de praxe, haveria forra. Esperei que pegasse a bola junto à pirambeira e na malícia, deslocando-o, ele rolou morro abaixo.
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Quando voltou, todo amarelo de barro e poeira, estava cuspindo fogo e correu para onde estava a sua camisa e embaixo dela, uma 45. Com a rapidez maior do que o passarinho que lhe empresta o nome, “Sabiá” também correu, deu-lhe uma pernada, umas porradas e apanhou a 45 dando a ordem de nunca mais aparecer no “pedaço”. Logo fiquei sabendo que se tratava do Custódio - que eu conhecia de nome - praticamente o único “coisa ruim” do Rio Comprido, morador do morro do Querosene, e procurado pela polícia. O outro, Baianinho, regenerou-se. Nada parecido com os dias atuais... Confesso que naquele dia custei a pegar no sono e durante bom tempo evitei passar pelo Largo do Rio Comprido, onde ele circulava. Pedro Sabiá montava a cavalo como poucos. Melhor do que o Zorro. Razão do professor Ultra, dono de uma conhecida escola de datilografia e cavaleiro, ter colocado belos mangalargas para o Sabiá cuidar e lhe pagava bom salário. Mas, nos fins de semana era obrigado a com ele sair pelas ruas do Rio Comprido e Tijuca, todo paramentado e fazendo visagens. Os cavalos tinham que dançar, andar de lado, cumprimentar a quem passava e outras demonstrações, para o “mico” do Pedro e as gozações da turma. Mas os equinos lhe serviam para faturar mais algum. Havia uma garotada que andava a procura da conhecida “canabia”. E Sabiá fornecia os cigarrinhos, enrolando no papel cocô de cavalo seco e ainda avisava: “se ficar doidão, não vai sair por aí dando “coices”“. Era a sua gozação. Para completar o salário, Pedro também criava porcos, herança de seu pai Eurico e sua mãe, dona Maria, mulher de força e fé. Nesse trabalho, o irmão mais novo, Aloísio, que a vida inteira viveu também na patota, ajudava-o na busca dos restos de comida, nos restaurantes e outros estabelecimentos do bairro. Virou o “Mongonga”, como era conhecida a “lavagem” de porcos, que transportava. Mais tarde, Aloísio foi trabalhar na empresa de materiais de construção do Julinho Brito, onde lá se aposentou.
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Daí, durante anos, para festejar o Natal, sempre havia em nossa mesa, um belo pernil. Presente do “Sabiá”. Do morro 71, há histórias infindáveis para ser contadas. Um de seus personagens foi “Baiaco”. Certa vez criou um cabrito desde “criancinha”, com maior carinho, e chegou a lhe dar o nome de “Delícia”. E a sua dedicação não era para tê-lo como companheiro, como bicho de estimação. Ele o media todos os dias, apalpava -o, esperando a hora de estar no ponto para devorá-lo. E comentava com todos, que brevemente iríamos ter uma cabritada... De tanto comentar, o “Delícia” criou fama. Certo dia, no botequim do Antônio, Baiaco recebe convite e é levado para a casa do Pedro Sabiá, que estava festejando o seu aniversário, com roda de samba e belo cardápio. E não deu outra: o cabrito servido estava uma delícia e Baiaco não parava de elogiar. Enfastelou-se o quanto pôde, e só falava: “eta cabritinho bom!...” daqui a um tempo será o meu, pois já está bem gordinho”. No dia seguinte, Baiaco acorda cedo, e como fazia sempre, foi levar capim ao cercado onde criava o cabrito, um pouco desconfiado, pois naquela manhã ele não berrara, como fazia sempre. Quando chegou mais perto, viu que o bicho não estava lá. Só um bilhete fincado no bambu da cerca: “Não aguentei o seu olhar querendo me devorar e me mandei”. Assinado: “Delícia”. Durante muito tempo, quando se perguntava por “Delícia”, ele só comentava: “Cabrito bom não berra!” Lembrando do ocorrido e em sua homenagem, fiz até um “partido” que Tom da Bahia musicou. Só troquei o cabrito por leitão e os personagens, para rimar.
Armando Amorim - Memórias
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Deixaram debaixo da minha porta um convite que dizia: Convidamos Vossa Senhoria pra comer leitão otário na casa do Januário. Me aprumei todo chique No pichete brilhantina sapato de bico fino e chapéu de palhinha. Pus, até, cravo amarelo na lapela e meia fina na canela Me mandei animado pra casa do Januário pra comer leitão otário Era leitão assado e foi servido com frescura com aquela maçã na boca como na casa de bacana que tem grana cheio de filigrana que sai, em coluna social.
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E é servido até na Casa Real do Rei de Portugal um tremendo visual. Na hora de fatiar o dito, veio um grito da cozinha: Não é leitão, é cabrito! Será que nisso tem delito? No dia seguinte, entendi o bilhete mandado por Januário pra comer leitão otário Quando cheguei em casa, meu leitão tinha sumido era o tal leitão otário da casa do Januário Esta vai pro meu diário...
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A turma do 71 era de muita gente legal e amiga: “Tim-Tim”, Tião “Carniceiro”, Augusto “Crioulo”, Neném, Jorge, Milton “Canoa”, “Baiano”, Armando, “Trezentos Réis”, “Berê”, “Velha”, Antônio “Sabonete”, Caveirinha, Aníbal, Tião “Pomba”, Alírio e seu irmão Toinho, Lino, Miguel, Sérgio, Carlos, Martins, “Zé Português”, Eliseu, Moacyr, Pedro “Gato”, Esquerdinha, Geraldinho, Antônio Paulino, “Peroba”, Valter, Miro, Zequinha, o “Espingarda”, Ximango e mais alguns. O Baiano, muitos anos mais tarde o encontrei, agora chamado de Doutor Arnoldo, proprietário de grande empresa de construção, advogado e importante colecionador de arte, desses de ir a todos os leilões. Outro que conseguiu algum foi o “Ruço”, mas por meios nada ortodoxos. Bem garoto já vendia canários-da-terra, por ele “fabricados”. Só que os ditos não cantavam; piavam. Isso era natural, pois pardais oxigenados, não cantam. A desculpa para as reclamações, uma só: “estão na muda”. Já mocinho foi ser camelô. Com muita lábia passou a vender remédio para calos que ele próprio fabricava, moendo pedra-pome; também uma graxa que permitia um incomparável brilho. Evidentemente ninguém conseguia chegar ao brilho do mostruário, pois os sapatos apresentados tinham sido envernizados. Certa vez deu sorte. O Brasil acabara de vencer a Copa de 58 e ele encontrou num sebo, quase cinquenta livros encalhados, com o título “PELE”, em grandes letras. Arrematou todos por uma ninharia e só teve o trabalho de colocar o acento e embalar bem. Nunca o dermatologista que o escreveu, pensou em vender tantos exemplares, num só dia. Mas teve que mudar de ponto, por um bom tempo. Também sumiu do morro e muitos anos depois chegou a notícia que enriquecera, pois virou pastor de uma igreja que inventara. É possível. O Tim-Tim, personagem das tiradas e ditos que ficavam. Era um crioulo alto e lustroso, sempre com um “pano” nos trinques e fazendo pose. Certo dia, “TimTim” chegou ao pedaço injuriado, dizendo que sua nega estava ficando doida: “agora, só porque eu fui promovido e deixei de ganhar um qualqué péssimo pra ganhar um ruim, a patroa quer virar bacana. Expulsou o vira-lata e diz que quer um tal de Galgo ingrês”´. E mais ainda, gato angorá! A nega tá zinfrim! 112 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
“Já avisou também que não usa mais perfume Coty e quer um da madame Dior. Veja só! E quer ainda aprender a tocar piano. Vai acabar pedindo pra botar no barraco, piso de mármore e lareira. Pode isso? Vou virar Durango Kid. Só falta dizer que agora é chique, e se bobear, deixa de ser flamenguista e vai torcer pelo Bayer de Munique. Ela não sabe que pobre só passa bem quando trabalha em tinturaria”. “A nega ficou doida”! Ainda não reparou que pipa que voa alto é fácil de ser cortada com cerol. “A nega tá com problemas nos miolo”. Outra figura especial do morro 71 era o Tião “Pomba”, que sempre arrumava uma frase com um bicho, para explicar alguma situação. Eram os seus provérbios. Como não gostava da sogra, dizia que “quem anda com cobra, acaba se arrastando”. E não cansava de dizer para o filho: ”quem anda pela cabeça dos outros é piolho”. Era o seu conselho. Para o pobre que queria subir na vida, a frase vinha logo: “sapo que pula alto, acaba no bico do gavião”. Em compensação, mostrava que se pobre andasse com pobre, não alcançaria grande coisa: “Passarinho que anda com João de-barro, acaba ajudante de pedreiro”. Quem estivesse se metendo em lugar que não devia, Tião argumentava: “barata esperta não atravessa galinheiro” ou, “gato que leva tijolada não mora em olaria”. Quando se deparava com alguém metido a esperto, cheio de malandragem, vinha com um argumento definitivo: “malandro é o sapo, que não tem bunda e vive sentado”. E dizia que cavalo marinho finge que é peixe, pra não puxar carroça. E outras mais, como “por causa da pressa, mosca nasceu sem osso”. Certa vez, aconselhou a filha: “se alguém quiser a sua “pomba”, mande ir a Cinelândia que lá tem muitas”. Acabou ganhando o apelido. Companheiro dele era o Milton “Canoa”, figura bem apessoada, topete arrumado, com bom emprego e que se importava em andar com a beca arrumada. Quase sempre calça branca de linho S-120, bem tratada, camisa de seda e sapato bicolor. Um dia ele chama o Tião Pomba para tomar “umas e outras”, no “pé sujo” do Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 113
Álvaro. Botequim bem simples, que nem possuía pintura de Nilton Bravo-pai na parede, nem o “torrador” de moscas pendurado no teto. Mas aqui vale dizer que o botequim do Álvaro era igual à maioria dos botequins do Rio, uma instituição bem carioca. É neles que circulam personagens notáveis, de humor exuberante, de aguçada presença de espírito, de risos fartos e até filósofos de um só dente, calçando sandálias havaianas. Não há lugar onde a alegria esteja mais exposta. Em muitos, é a bebida que faz; mas a maioria está de cara limpa, pois vinte cervejas não derrubam biriteiro. Ali a alegria é geral e a gozação também, pois o riso serve até para se esquecer à falta de grana, comum a quase todos. Isto, num ambiente meio confuso, pois o verdadeiro botequim não pode ser arrumado e nem ter limpeza excessiva. O cenário é anárquico, copos mal lavados, banheiro imundo e algumas moscas não podem faltar. Nos dá a certeza da anistia de micróbios, vírus e bactérias em deixar ovos coloridos, bolinhos e os famosos tira-gostos, em paz. Mas nesse dia, por alguma razão eles não cumpriram o combinado e o “Canoa”, lá pelas tantas foi acometido de uma dor de barriga, daquelas que empurra qualquer um para o WC. Teve que encarar o do botequim, cuja privada sem tampa, molhada de mijo, sujo e fedorento, todos conhecem. Só se senta ali no desespero. Como o do Canoa. Minutos depois ele grita para o Tião: “Peça ao Álvaro um pedaço de papel!” e complementa: “Pode ser de pão ou jornal!”. Alguns segundos e escuta a resposta desanimadora: “Não tem!” Nervoso, no desespero, já suando no meio do cheiro insuportável, grita novamente: “Pomba! Chegue aqui! “Troque com Álvaro essa nota de dez pratas por 10 notas de 1... E ainda teve que escutar do Tião Pomba: “Se João-de-barro encontrar o barro que você fez, vai fazer casinha pra urubu”. Muitas histórias podem ser contadas, não só do imbatível time do morro, o “Estrela Azul”, como as noitadas na gafieira Elite, com o pessoal de cabelo lustroso da “Quina de Petróleo”. Também dos 114 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
gurufins. Para quem não sabe, gurufim é a festa que se faz no morro, quando morre alguém. O corpo na mesa e muito samba, cachaça, doces, salgadinhos e brincadeiras. Afinal, o morto não quer tristeza. Não tive coragem de ir ao do “Sabiá”. Uma úlcera mal curada e sem vergonha fez voar mais cedo o compadre Pedro Veloso - o amigo e companheiro Sabiá.
Eu, Carmem e Tom da Bahia Canca, Anita, filho Alexandre e a sobrinha
A gostosa linguagem Mandinho! Tu tá ouriçando o pedaço! Me dá logo o bizu deste mané cheio de candonga, pois ele precisa tomar tenência...” Foi na vida do morro que conheci palavras e expressões novas, que enriqueceram o meu vocabulário. Se não foi isso, pelo menos são expressões gostosas de escutar e falar. É certo que às vezes não conseguia ser entendido em casa. Mas valeu. Fiquei sabendo que estar com os babi em cima, era estar com os badulaques, ou seja, com os documentos. Andar com quem vive beijando cristina (maconha), podia dar zebra. Amarrar o bode era dormir, que podia ser bodear ou morgar. Já cabrita era menina. E quando ela passava rebolando, podia-se pensar ou dizer: que Lorto... Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 115
Se fosse no masculino, cabrito era coisa roubada. Quando a visão diminuía, o jeito era pendurar a bicicleta no nariz... Malandro agulha era aquele que não perdia a linha. E se algum deles fosse à salmoura (praia) na certa iria botar o boneco no sol, deixando o maçarico cair... Muquirana ou muqui era o chato, murrinha, o mocorongo. Otário ou loca, a mesma coisa; quase sempre um pé-de-chinelo. Quando a situação estava feia, falavase que urubu tá comendo folha... E se fosse complicada, o malandro logo dizia que “é mais difícil do que pegar papel na ventania”. Mas se a coisa estivesse mesmo preta, escutava-se: “banana tá comendo macaco”. Dar um jeito no pêlo para ir à gafieira ou gafi, era ajeitar o pichaim. Já, a mina, podia ter um pichete lisão; bastava passar o ferro. E se o cara fosse meio “delicado”, virava um pirôba. Quizumbeiro era o bagunceiro meio folgado. E se não tomasse tenência, podia levar uma porrada nos cornos. Se o indivíduo fosse um pudim de cachaça, estivesse cheio de goró ou com a cara cheia de pão doce, tinha bebido muita branquinha. Isto porque o doce do pão é feito de açúcar; o açúcar vem da cana, que é de onde sai a uca, chamada também “calibrina”. Dinheiro era fácil pedir, mas difícil conseguir: “me empreste uma perna?” (100 paus) ou um peru, um galo ou um cão? E o bicho pegava... Pila era o pilantra, fariseu. E perdia-se um amigo se houvesse crocodilagem. Também na época era difícil ter capim (grana), no buraco do pano. Ficar de bobeira era dar sopa ao azar e se escutassem alguém falar que estava com as coisas em cima, o bicho podia pegar, pois maconha dava cana. Mas se o cara fosse limpeza, a barra estava, com certeza limpa. E, finalmente, para ir à gafieira, valia dar um lustro no boi (sapato). Malandro que se prezasse naquela época, anos 50/60, tinha que conhecer todas elas, caso contrário era um tremendo otário. 116 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mas malandro naqueles tempos não tem o mesmo significado de hoje. Malandragem estava no andar, na ginga; estava na inteligência, na vivacidade. O malandro era criativo, respondia de bate-pronto qualquer gozação. Esse de quem falo, está nas letras dos sambas de Noel Rosa e Vadico: “Seu garçon faça o favor de me trazer depressa/ Uma boa média que não esteja requentada/ Um pão bem quente com manteiga a bessa/ Um guardanapo... E por aí... O malandro floreava, era maneiro para falar, tipo Bezerra ou Moreira da Silva e, hoje, Zeca Pagodinho. Possuia também seu estilo de vestir: durante a semana, qualquer roupa servia para trabalhar. Isso mesmo, para trabalhar, pois malandro naquela época trabalhava e duro. Pois bem, no final de semana ele aparecia como um rei: beca branca, jaquetão, calça “boquinha”, chapéu de aba larga, sapato de bico fino, lenço desarrumado no bolso e, em alguns deles, uma navalha na ponta, pois ninguém pode marcar bobeira. Se algum folgado puxasse a “solinge”, era só pegar o lenço e dar um puxão, que a “donzela” já vinha aberta. Para tirar a alegria do malandro, andou por aqui um recalcado, conhecido como delegado Padilha, que parava a rapaziada na rua e mandava que o policial jogasse um limão por dentro da calça. Se ele não passasse, o sujeito era preso. Isto quer dizer, era preso porque vestia uma calça com a boca apertada. Devia ter algum trauma esse delegado, não muito diferente dos policiais do tempo da ditadura, que prendiam alguém que possuisse livro estrangeiro em casa, principalmente se a capa fosse vermelha. Hoje, quem se diz malandro constroi um prédio com material “fajuto” para lucrar mais, matando e acabando com o sonho de muita gente. Outros são do ‘departamento do superfaturamento, do “quero o meu”, ou da política do rouba, mas faz ou não faz, o que dá no mesmo. E eles abundam. Pode haver inquérito, pois sempre escapam pelo tal “benefício da dúvida”. Vamos ver se o juiz Moro vai mudar isso...
117 Terra do Canudo Outro morro fez parte de nossa vida. Sua subida inicia-se na Rua do Bispo e assim, paralelo ao 71. No começo as peladas no campo da Light nos aproximaram e depois a turma de lá passou Armando Amorim - Memórias
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a frequentar também a nossa, e assim se misturaram as duas ruas, a pracinha, os morros 71 e 117. Lá os amigos eram “Bileco”, “Farmácia”, “João Grande”, Antero, “Caolho”, “Canca” e seus irmãos Leonel e Nivaldo, Geraldo, Getúlio, José Tavares Baeta, Edyr “Lamparina”, Edyr Pompeu, irmão de “Bileco”, a turma danada com Toti, Paulo César, Bob, Maurício e ‘Ximango”; Gelson, o “Popó Coelho”, Ernane “Sardinha”, Alcides, Antônio “Manca Mula”, irmão de Manoca e “Zé Russo”, “Xoxa”, Sílvio, irmão de Roberto e João “Cabeça”, Zizinho, Ivo, Deca irmão do João “Baixinho”, Nininha, Juju, D. Carmem e Maria do Canto, Vera, Juarez, Bira e Jayme, Zezinho, Eduardo, Zacarias, o “Saria”, Sirinha, e seu irmão Orlando Galante, Francisco de Assis, o “Neném II”, entre outros e o mais famoso de todos, Canudo, irmão do Nélio “Gago”. Aos 10/12 anos já andávamos juntos, jogando pelada e participando das brincadeiras. Naquela época, o que nele se destacava era o sorriso permanente, e a batida no pandeiro, que assombrava a todos pelo ritmo. Bem garoto, Jorge “Canudo” saía no bloco do morro, que mais tarde virou “Cometas do Bispo” e fez muito sucesso nos desfiles de Carnaval. Já rapaz, começou a frequentar as festinhas, violão debaixo do braço, cantando rock com letras em inglês que inventava no improviso. E em seu repertório não podia faltar o rock “Bop - a lnea”, que o fez virar “Babulina”. Certo dia compôs o primeiro (talvez) samba, “O sapato do Motinha”, não gravado. Ninguém deu muita bola. Outras começaram a aparecer: “Bicho do Mato”, “Mais que nada”, “Chove Chuva”, e íamos ao Beco das Garrafas, pois ali se concentravam músicos e novos cantores. Aqui vale dizer que no “Beco” havia quatro casas: Bottle’s, Baccará, Litlle Club e Ma Griffe. Ficavam entre dois prédios da Duvivier e o nome do lugar foi batizado originalmente de “Beco das Garrafadas”, por Sérgio Porto, pois quem morava ali jogava as ditas, para acabar com o agito que se formava. Para nós, a eleita era a Bottle’s, onde era certo encontrar músicos e cantores como Ellis Regina, Edu Lobo, Sérgio Mendes, Luizinho Eça, Paulo Moura, Leny de Andrade, Luis Carlos Vinhas, Peri Ribeiro, Johnny Alf, Mieli, Boscoli, Carlos Lyra e uma grande turma que buscava mostrar as suas qualidades musicais. Por esta razão cantavam de graça e, dizem, ainda teriam que consumir e pagar um drinque, para manter a casa, que era do Alberico Campana. Jorge Benjor foi um deles. Certa vez, Milton Banana que era eleito o melhor bate118 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
rista do pedaço, depois de ouvir a batida do Jorge, me confessou... “esse vai arrebentar!”. E arrebentou, quando gravou: “voxê passa por mim e não me olha, mas eu olho pra voxê”... Já era o Jorge Ben, com disco gravado na Philips vendendo milhares e cada vez mais. O primeiro dinheiro que recebeu, comprou apartamento na Tijuca para dona Sílvia e seu Augusto Lima Menezes, o “China”, seus pais. Foi então com Gabriel na minha casa, para contar a façanha e me pedir para decorá-lo, pois eu mexia com isso naquele tempo. Mas foi enfático: “Mandinho, quero que seja igual às casas dos bacanas, com tudo que tem direito”. Me lembro que a moda da época eram móveis em decapé, estilo Luiz XVI, e assim foi decorado. Tudo do bom e do melhor. E mais ainda: foram comprados toalhas, faqueiro, roupas de cama, louça e o que era necessário para viver com conforto numa casa. No dia da mudança, não há como descrever a emoção: não só deles, mas de Jorge, é claro. O sucesso foi crescendo, virou internacional, e hoje não há quem não conheça o Jorge Benjor, garoto simples que sempre foi solidário, e com o sorriso que não acabou. De sua música, da sua batida, o conhecido e competente crítico Tarik de Souza me confidenciou recentemente: “Tem a mesma importância de Tom Jobim. Inventou um ritmo, uma batida que é universal”. Defeito, claro, todos tem: é flamenguista desde garotinho. Se não fosse o compositor/cantor, criador de uma batida única, diferente, teria sido um craque da bola. Garanto.
Nivaldo e sua gente Outro personagem que não posso esquecer é Nivaldo, lixeiro, hoje chamado de gari, profissão na época depreciada, mas um virtuoso no bandolim. Reunia-se às vezes com Zeca do Cavaquinho e outros que batiam em alguma coisa e apresentavam um show, quase sempre no botequim do Antônio. Era incrível o som que tirava do instrumento e eu me prazerava ainda, com a sua figura alegre, sorriso permanente e, às vezes, a gargalhada, que mostraArmando Amorim - Memórias
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va um brilhante dente de ouro. Dele também não posso esquecer, pois foi quem me fez conhecer, uma casa de subúrbio, que ficou em mim para sempre. Estava ela em Maria da Graça e numa tarde recebeu a turma para um “fundo de quintal”. A casa não era grande, mas se tinha conforto. Pintada de amarelo, com portas e janelas em verde bandeira, onde se via que a tinta brilhante tinha-se colocado nelas, muitas vezes, pois dava para perceber. Lembrava-me a textura de algumas telas que eu havia pintado. Vista de certa distância, tendo ao fundo um céu azul, confirmava-se que ali vivia uma gente bem brasileira. Suburbana. Para nela chegar, depois de um baixo portão sem tranca, passamos por uma estreita calçada, cercada de beirais floridos e adiante, algumas roseiras, em que se via ao redor, pó de café e cascas de ovos picadas, para fazê-las, com certeza, mais viçosas. Caminhamos então entre duas bacias com roupas ao molho e outras quarando, enquanto no varal camisas e outros panos, esvoaçavam como estandartes. A recepção foi calorosa, como é comum nessa gente, ao receber amigos. Risos, abraços, beijos e alegria de verdade. As crianças pedindo a benção aos mais velhos, pois nunca se esquecem deste gesto puro e necessário. Havia mesmo certa euforia em receber, principalmente o Nivaldo, pessoa querida ali e no bairro, onde viveu a mocidade. Os donos desse lar, nunca mais esqueci: seu Firmino, maquinista dos trens da Leopoldina e dona Feliciana, doceira das boas e doçura de pessoa. Ele, descendente de escravos, uma figura esguia e já passando dos setenta, nos levou ao quintal, onde já estava reunida a turma do samba e amigos. Mas, ao passar pela sala, pude reparar a arrumação cuidadosa, a mesa com cadeiras mineiras de palhinha, um sofá coberto com pano de crochê e a cristaleira, que me deu a impressão de guardar, além de copos e louças, os adornos valiosos da família. Na mesinha baixa, servindo de altar, um imponente São Jorge Guerreiro em seu cavalo e outros santos e santas de devoção, de 120 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
que não percebi a identidade. Junto a eles, três velas gastas e apagadas, talvez de alguma “precisação” solicitada e, certamente atendida. Mostravam que naquela casa havia gente com fé. Finalmente, nas paredes pintadas de rosa, algumas estampas desbotadas com flores e retratos coloridos de filhos e netos. O quintal espaçoso foi o que mais me encantou, quando vi rugosa mangueira, um pé carregado de sapoti, uma tamarindeira e mais algumas fruteiras. Numa das laterais, encostada ao baixo muro, uma bem formada horta; na outra, um galinheiro, com galo que na madrugada cantou e galinhas caipiras que não paravam de ciscar. Penduradas em ganchos, duas gaiolas guardavam passarinhos, que viravam sem parar as suas cabeças, talvez tentando reconhecer os primeiros acordes que saiam do bandolim. Pareciam coleiros. Naquela paisagem, tinha a certeza de que quem cresceu num quintal assim, brincou de verdade. Foi feliz. Nesse atraente ambiente estava posta grande mesa retangular, com bancos e cadeiras ao redor. Nela, alguns petiscos, que iam de patas de caranguejos a manjubinhas fritas na hora e outras delícias, nascidas das mãos hábeis da dona da casa. O cenário era esse, o que me fez perceber como era fácil ali, se ter alegria e felicidade. Com certeza, não muito diferente da gente das favelas, que eu conhecia muito bem. Ah! Ia me esquecendo do samba! Quase raiou o dia, nos versos improvisados, muitos risos e, para acalmar, serestas. Mas, naquele dia, o que mais me encantou foi ter conhecido uma casa suburbana. Gente simples, solidária, educada, alegre e que sabe receber os amigos. Obrigado, Nivaldo.
Encontro o Salgueiro e a sua musa Outro morro entrou em minha vida, pois devo dizer que sempre tive certa predileção por esses lugares e me sentia bem entre o seu povo. Quando recebi um convite para instalar no morro do Salgueiro uma escolinha de arte para a garotada, correndo aceitei. E o convite veio de um loirinho norte americana linda, simpática, Armando Amorim - Memórias
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dona de um par de olhos azuis faiscantes, chamada Suzie Herth. Servia ela ao “Peace Corps”, do governo americano e estavam no Brasil para desenvolver programas sociais, talvez sem saber as suas intenções. Durante certo tempo morou no morro, e ali fez muitas amizades, pois era na verdade, especial. Esse meu contato inicial e prazeroso acabou me fazendo conhecer a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro e a paixão foi imediata e total. Virei salgueirense dos bons e certa vez o Clóvis Bornay quase me convenceu a sair de destaque como D. Pedro I. Não aceitei, pois não levava jeito para esse assunto e me sentia muito plebeu para encarnar a figura. Mas me extasiava ver a escola nos ensaios da quadra “Calça Larga” e, neles, a minha musa, a passista Narcisa. De beleza estonteante, sambava diferente de todas, as curvas se colocando nos lugares certos e sensuais, um convite ao melhor da imaginação. E não me contive na paquera. A emoção também vinha ao ver a vermelho e branco desfilar, sempre diferente de qualquer outra e mais do que isso: empolgada. Certa vez, lembrando de Narcisa, da gente maravilhosa que encontrei neste simpático morro, e da escola do coração, não pude me conter e compus esse samba de quadra, que o amigo e parceiro Tom da Bahia, musicou. Com uma “chamada” para o ensaio, vinha a quadrinha: Na Tijuca tem um morro com povo forte e guerreiro, morada de batuqueiro, é meu querido Salgueiro!
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E o samba começava:
Salgueiro é árvore também chamada chorão não por mágoa ou solidão, pois só chora de emoção quando na Avenida, diferente, guerreira, tão bela, de vermelho, atapeta a passarela.
Caminhos que sobem e descem em chão cheio de música que contam muitas estórias, de saudade, de paixão, de cabrochas, de valentes, de amor no coração. O poente no Salgueiro mostra o perfil da cabrocha provocante, sensual, e as estrelas clareando, seu vulto subindo o morro, fazem qualquer compositor compor um samba de amor.
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E nas tardes de domingo, mil pipas empinam no ar formando rendas de papel para o Salgueiro sombrear. No sábado tem batucada, muito samba de terreiro, vira terra encantada, todo o morro do Salgueiro.
E o estribilho não podia deixar de ser em homenagem a Narcisa:
“Samba, mulata, samba, samba de pé no chão samba, mulata samba, machuca meu coração”. Foi tempo muito bom que não se esquece. Oportunidade de conhecer gente maravilhosa como Lázaro Franco, Jorge, Messias, Carlinhos, Paulinho, Geraldo Babão, Neiva e, naturalmente, Narcisa.
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Automóveis, nem tanto... O carro que andou mais (na prateleira)
O MG TC 1949
Meu primeiro sonho de consumo foi ter um MG Sport. Acompanhava seu preço no jornal e ia juntando o dinheirinho. Um dia, empatou: o dinheiro das economias era o mesmo do anúncio: MG Sport, modelo TC, ano 49, vermelho. Estava ele numa oficina em Botafogo e levei o dinheiro vivo, embrulhado, como faz o pessoal da periferia que vai comprar geladeira ou a primeira TV. Como ainda dirigia mal, pedi ao Paulo “Aguinha” para apanhá-lo. Foi uma festa na rua, todos querendo dar uma voltinha no carango. Assim passamos o dia, até que o Arno reparou que o carro estava andando torto. Quem entendia, disse logo que uma longarina do chassi estava menor do que a outra. Palpite pra cá, palpite pra lá e, finalmente, como na música de Noel, “palpite infeliz”: “vamos desmontá-lo e consertar a longarina!”. O vizinho Acyr emprestou a garagem de sua casa que estava vazia e a “farra” foi total: em poucas horas, o carro nas prateleiArmando Amorim - Memórias
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ras. O tempo foi passando, a longarina consertada, mas apesar das tentativas, ninguém sabia montá-lo novamente. Via meu sonho desmontado, principalmente quando o amigo Acyr avisou que havia alugado a casa e a garagem precisava ser desocupada. O carro, como uma pizza, foi dividido entre vários amigos da rua e do morro. Na casa do Ruy Paneiro, ficou o motor e a caixa de mudança, responsável pelo seu sobrinho Rodrigo, com seis anos, aprender a passar bem as marchas. Dias, meses e já dava perdido o MG. Três anos se passaram, quando certo dia, um colega de trabalho me perguntou se conhecia algum dono de oficina, pois recebera parente de Minas, bom profissional e estava a procura de emprego. Não tinha, mas lembrei do MG. Para encurtar a conversa, ele topou montá-lo e para isso conseguiu um terreno em Niterói. Construiu meia-água às pressas para guardá-lo, pegou um caminhãozinho e saímos recolhendo os pedaços do ex-carro. Na primeira vistoria, demos faltos somente de uma biela. Um milagre! Também não havia a roda estepe, que era presa à traseira do MG, mas esta, quando o comprei, não existia. Começou o trabalho e apareceram as primeiras dificuldades: necessitávamos da planta do carro. Solicitei do fabricante inglês, a Morris, mas não consegui. Depois de muita procura uma distribuidora em Portugal nos forneceu a planta e, além dela, todas as informações sobre a série TC, que na verdade tinha poucos carros construídos. Como um desafio, resolvi colocar o carro “zero”. Toda a parte de madeira que forrava a lataria foi construída num estaleiro; novo estofamento, novo painel de madeira, todos os relógios consertados, nova capota, nova pintura, para choques e raios das rodas cromados e nada havia que não parecesse novo. Em um ano depois do recolhimento dos pedaços, o MG surgia triunfante, com jeito de herói. Onde parava, juntava gente para ver o carro antigo, mas novinho em folha. Faltava, porém a roda-estepe, que era presa na trazeira, impossível de ser encontrada, pois poucos carros da série TC existiam no Rio. Mas milagre existe. Senta em nossa mesa 126 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
no Divino, um amigo do Gabriel e lá pelas tantas, surge o papo do MG e falo da frustração em não ter a roda. Ele, de pronto, diz: “conheço um cara que tem a roda e não possui o carro!”. Pensei inicialmente, que fosse gozação; mas ele deu até o nome da “pessoa”, o conhecido fotógrafo Paulo Garcez que morava na Avenida Paulo de Frontin, perto de onde estávamos. Corremos imediatamente ao seu encontro e ele confirmou que realmente possuía a roda, mas não a vendia. Trocaria por um rádio de pilha, de certa marca. Depois de alguns anos, finalmente, pude dirigir o MG TC, como tivesse saído da fábrica. Parecia que ele estava tão satisfeito como eu.
O galipão reinou
O Oldsmobile, “Galipão”
Como MG era um carro em que só cabiam duas pessoas, tempos depois, comprei outro: Oldsmobile 88, ano 52, motor V8, hidramático, branco e verde. E no estilo: pneus de banda branca. O MG ficou para saídas especiais, a dois. E também para o Ruy Paneiro “voar”, fazendo loucuras com o carrão. O Oldsmobile acabou também fazendo a sua história e não havia ninguém que não o conhecesse. De tanto ser esmerilhado, dirigido por uma multidão, passou a ser conhecido como “galipão” e era uma aventura nele sair; o volante necessitava dar uma volta completa para começar a funcionar; o freio umas dez bombeadas Armando Amorim - Memórias
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para frear. Volta e meia aparecia um barulho que por vezes amedrontava, mas o barulho “caía” e o carro voltava a ser silencioso. De tanta gente que o dirigia - um emprestando a outro - certa vez estava na Muda, atrasado para um encontro, quando vi o Oldsmobile passar. Não pude pedir carona, pois não conhecia o motorista. Domingo, era dia de praia no Pepino. Juntando os que iam dentro do galipão e os que se ajeitavam na mala, contava-se mais de quinze. Quando a aventura chegava ao seu destino, alguém dava uma paulada na tampa do radiador e dele saía um belo repuxo de água e vapor, como um geiger. Era um espanto para quem não conhecia o carango. De lataria perfeita, pois nunca bateu e nem foi batido, (um milagre!) certa vez, ao se retirar o tapete da mala, apareceram às ferrugens - preocupação para quem nela viajava. Foi quando entrou o primo Rogério, afirmando que o traria no dia seguinte, sem nenhum “podre”. Perfeito. Realmente o trouxe e, ao abrirmos a mala, verificamos que ela estava lisinha. Só que tinha sido cimentada. O “galipa” foi o carro mais mal falado do pedaço e não havia dia que não recebesse gozação. Chegaram a dizer que eu poderia dobrar o seu preço na hora de vendê-lo: bastaria encher o tanque. Mas nem todos pensavam assim, pois havia quem o quisesse: estávamos no Divino, numa das noitadas habituais, e ao sairmos, cadê o galipão? Tinha sido roubado. Minha primeira reação foi de satisfação, pois até então, ninguém se interessara, de fato, pelo meu velho companheiro. Nem me importava de quem o levou, “esquecera” de pagar. E pensei: “ele poderia ter preferido tantos outros, mas escolheu o “bichão”... Mas os amigos caíram na gargalhada. Sabiam que seria fácil achá-lo. E foi. Sairam andando a pé e, a 300 metros dali, estava lá o Oldsmobile verde e branco, como um vencedor. Ele, sozinho, tinha se defendido. Mas houve quem falou: “o sujeito é ladrão, e não doido”... Finalmente, o galipão um dia “morreu” e, na porta de casa, 128 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
virou residência de três meninos de rua, com direito a filar a boia de casa. Ficaram ali por um tempo e sumiram. Assim, abandonado por todos, o velho galipão ia vendo os seus dias passarem e chegou a ser referência da rua: a Dipsis é aquela que tem um Oldsmobile verde e branco parado... Possibilidade de ser ainda taxado com IPTU. Mas certo dia bate à minha porta um garotão, me perguntando se eu era o dono do carango e se queria vender. Pensei em gozação, mas horas depois o sujeito estava com o guincho, levando o amigo. Mesmo sabendo do milagre, foi triste a separação.
O fiatizinho cansado Muitos anos depois, bem mais de vinte, outro carro entra em minha vida. O apartamento sobreposto ao nosso, no condomínio Riviera, na Barra, ia ser vendido. Surgia assim a oportunidade de montarmos o meu atelier de pintura e o atelier da Gilda, transformando nosso ap em um duplex.. Na corrida de vendermos tudo que valia alguma coisa, os carrões foram os primeiros. No final das contas, sobraram alguns trocados, que conseguiram comprar um Fiatizinho cansado que, apesar de bem velho, ninguém quis aposentar. Nas saídas da Barra, meu caminho sempre foi pelas montanhas do Alto da Boa Vista, buscando a rapidez, que o carrão potente conseguia. Ao debutar com o fiatizinho, vi logo na primeira curva da subida, que ele não acompanhava o meu desejo de andar rápido. Na marcha terceira, quase para; engato uma segunda, mas não muda nada. Xingo-o de “lata-velha” , de “sucata” e ele nada de reagir. Xingo a mim, pela mania de ligar mais em “ser” do que “ter”... E fico murmurando: “que filosofia barata essa de pensar que dinheiro não traz felicidade”... E eu mesmo respondia: “principalmente quando é pouco ou não se tem seu besta!” E isso na primeira marcha, a 10 quilômetros por hora, chegando ao destino extenuado e atrasado para uma reunião com o Presidente Roberto, da CCPL, que escutou o primeiro desabafo de alguém que foi obrigado a ter um fiatizinho moribundo. Armando Amorim - Memórias
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Quando, pela segunda vez, fui obrigado a fazer o mesmo percurso, o sofrimento chegou à véspera, me fazendo quase perder o sono. Pensei em mudar o roteiro, maior e mais complicado, mas voltava atrás, pois o fiatizinho mesmo no plano não andava muito mais do que 10 km/h. Depois de uma noite mal dormida, onde devo ter tido pesadelos com entes tenebrosos do mundo motorizado, me vejo novamente na subida do Alto. E foi neste momento, e a partir deste dia, que passei a acreditar em anjos. Eles realmente existem, pois um deles murmurou ao meu ouvido: “pra que tanta pressa... Pra que tanta disparada... A correria não deixa reparar que ao seu redor existe muita coisa para ser admirada”... E o anjo foi me acalmando, me fazendo andar junto ao meiofio, deixando passar os apressados. Já olhava os motoristas que passavam por mim num zás-trás e murmurava: andando assim, vocês estão sendo inimigos do bom senso... Agora, andando devagar quase parando, pela primeira vez pude reparar quanta vida desconhecida havia em meu percurso. E fui vendo sombras amigas, flores simples e outras ruidosas; cada árvore com a sua luz, os verdes em disputa para serem os mais luminosos. Fui reparando nos meninos em alegria... a fisionomia de quem estava em meu caminho e imaginando como seriam as suas vidas... Foi uma festa para os olhos e a imaginação. E a alegria foi tanta, que ao voltar para casa, a sensação era de que vinha de belo passeio, onde fui apresentado a algumas coisas importantes da vida. Coloquei o fiatizinho na garagem e, pela primeira vez, fechei a porta com cuidado e até lhe dei uma alisadinha. A partir desse dia, percebi que tinha olhos para enxergar o que bem quisesse. No Alto da Boavista, devia ter muita coisa para ser vista. Caso contrário não teria esse nome. E antes de dormir, não pude deixar de anotar, essas emoções:
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Percurso: 13 Km Km 1 No sopé, Pé de ipê amarelo. Tenho certeza, Nasceu ali de querer Km 2 Entre pedras de muro, espremida, a quaresmeira nasce. Vontade de crescer e participar da paisagem Km 3 Os pés de rosmaninho se abrocham. Semana que vem, desabrocham. Km 4 Das casas, a 43. É a mais singela: uma porta, uma janela e abraço de trepadeira. Outra, sem número, tem beirais, alpendre, coreto e jeito de quintal antigo: mangueiras tem e até jabuticabeiras. Não sei ainda, qual delas a mais bela do lugar. Km 5 Sozinho, um pé. Que juro não sei de quê, Cresce na boniteza: galhos arrumados, Armando Amorim - Memórias
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folhas recortadas e porte altivo dominando o lugar. Dá ideia de pensar, que manda na Floresta toda. Km 6 A queda d’água, que debaixo da via passa, faz nascer pequeno lago, com ponte vermelha de Contos de Fada. Sensação de água de fonte. Pura. Parecida aos meninos Que ali brincam, desses que chamam “de rua” . Brincam com alegria de Parque de Diversões. Km 7 Na primeira curva, pé de buganvília exageradamente roxo. Desconfio! Deve haver trapaça. Km 8 Também, disputando olhares, um flamboyant. De flores tão vermelhas, que acertei: Custou muito esforço Km 9 No relvado, três velas acesas revelam que existe, Amores perdidos, amores fingidos, ou Falta de dinheiro. 132 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Km 10 O “atleta” Com esforço sobe. Quer desenhar melhor sua escultura, agora, esculpida em toucinho. E de formas bem formadas, enfeitando a paisagem, passa por ele, tão leve e inquieta, a bela menina. Que pensamentos terá? Km 11 Na tabuleta: “Existe um lugar”... Existe sim, com madressilvas que se enroscam, tal qual amantes no motel. Km 12 O moço gordo, nem tão gordo assim, vende pedaços de jardim: amarelos, brancos, vermelhos e de cor carmim. Km 13 E no fim da descida, velho jatobá de pele rugosa, suporta oração em branco cal. Dentro do coração: “graças a Deus. Amém”. Juro que não escrevi... Mas será que vi lírios do brejo? Armando Amorim - Memórias
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A partir de então, por onde fui, por onde caminhei, pude reparar que havia muito mais vida do que imaginava existir. E passei a registrar o que chegava aos meus olhos, aos meus sentidos. Algumas delas, revelo aqui: Conversa Gosto de vozes. Principalmente a dos tambucais ao vento; do pomar com sabiás, de fogo cristando lenha. E da conversa do verde com o amarelo. Não duvidem! Eles falam. Jeito de ser A paineira malandra jogou a sua flor ao léu para me enganar, que era um pedaço de nuvem caindo do céu. Eu acreditei. Renovação Está chegando a primavera e sinto que meu pincel terá revida. Fico na espera de nele nascerem folhas e flores. E se for de pau de fruta, vai nascer jabuticaba. Ponto de vista Descobri que no meu sítio a água tem um rio, a bosta um cavalo, a pulga um cachorro; o cadeado um portão e a janela uma casa. Só ainda não sei, se o ovo tem galinha, ou se a galinha tem ovo. Dúvida Ela foi subindo e parando... Subindo e parando... Em dois metros falou ao ouvido de dez irmãzinhas. Essa formiguinha é fofoqueira ou agitadora? Disputa O cipreste que não nasceu pra flor, fazia-se cantar, escondendo 134 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
dezenas de pássaros. Só para impressionar o vaidoso fedegoso, carregado de amarelos exuberantes. Coisas da Terra A semente se deitou no chão, em vão. Que terra é essa que no ventre não a abriga? Que não deixa romper em seus desejos de subir e desabrochar em mil direções? Sei e posso contar que seu desejo é de ir e vir, docemente. De brincar de sombra ao sol, em rendas difusas e com a lua trocar olhares, na madrugada de azul. E, finalmente, antes de se transformar em alegria de criança, se dar em multiplicação. Hoje, estou de mal com meu quintal. Coisas do céu Ele chegou silencioso. Era um menino azul, sem palavras. De mansinho o joelho se apoiou no músculo frágil da perna. A cabeça pendeu para a esquerda e viu atentamente um pequeno ramo que saía da semente jogada ali por acaso. E sorriu. Virou e olhou a formiga de bundão, carregando grão de milho e acompanhou cada movimento. Sorriu novamente. E, suavemente, aplaudiu um ramo de borboletas miúdas que dançavam pra lá e pra cá. Bem no momento em que uma folha seca caiu na terra úmida. E, serenamente, sem razão aparente, olhou para o céu e se foi silencioso. Alegria Na ventania, se alegra o pé de acácia. Como crianças brincando, seus galhos se esparramam aos lados, na diversão. Seu frágil tronco, cadenciando movimentos, tal qual cintura com bambolê. Contagiante esta alegria.
Armando Amorim - Memórias
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Mentirosa Não sei se da minha branca rosa saiu pétala voando, ou se é essa borboleta que cisma em me enganar. Andança Quem sombreia se clareia? Perguntei ao meu primeiro passo e ouvi: - “O baiquará olha para o céu e não vê estrelas”. Perguntei ao meu segundo passo: - Os olhos completamente enxergam o canto da alma? E escutei: - “Para conhecer a castanha, tem que partir a júvia”. Quando ia fazer nova pergunta, o meu terceiro passo se afastou rapidamente, deixando a sensação que falava: - “Siga as vozes que não dizem nunca”... E não fiquei sabendo se os ecos são apenas rastros... Assim, graças ao fiatizinho cansado, colecionei imagens novas e até alguns gestos que aprendi, e certas palavras, acabei devolvendo. Abençoado seja ele. E quem sabe se o Criador que é todo poderoso não resolva fazer um céu para os objetos úteis e inferno para os inúteis. Tenho a certeza em qual você estará. Amém.
MÚSICA, essa arte me atrai. Meus ouvidos, desde cedo, foram acostumados aos sons da valsa nº 1 opus 18 e o Noturno opus 9 de Chopin, o concerto para piano opus 16, de Grieg; o “Allegro Non Troppo”, de Tchaikovski, as rapsódias húngaras, de Liszt e mais Mozart, Brahms, Bach, Wagner e por aí. 136 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Dona Idalina, minha mãe, era extraordinária pianista e, em horas de estudo, me fez gostar da chamada música clássica ou erudita. Só que isso não aconteceu naquela época, onde a preferência estava nas brincadeiras, nas peladas, nos programas com a garotada. Anos depois é que passei a entender aqueles sons, as melodias que elevam e nos deliciam. Assim, passei a admirá-la, quando a minha mãe já não se sentava ao piano tão assiduamente. Hoje, vejo o tempo que perdi. A música é a arte que mais me emocionou e me emociona muito mais do que as visuais em que transito. A música, talvez por ser algo abstrato, consegue penetrar em locais onde são formadas as emoções. Mas, além desse atributo, possui ainda o dom de marcar épocas vividas e nos trazer de volta as emoções que passamos em outros tempos. A mim, intriga também, as preferências musicais. Adoro Chopin e compro os CDs de Zeca Pagodinho, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e outros. Faz-me também um bem à alma os cantos gregorianos, que de vez em quando escuto, para me “varrer” por dentro. Enfim, gosto de todos os gêneros musicais. Aliás, há algumas rejeições, como o chamado rock pauleira, pois a gritaria, a barulheira, o tan, tan, tan, sem variações, da mesma família do som Tecno, Punk, Trance, Eletro e outros parecidos, devo confessar que me incomodam. Dirão, é a idade... Pode ser. Também passei por muitos ritmos brasileiros e divertidas ondas, chamadas de mambo, twist, calipyso, cha-cha-cha, hully gully e talvez outras, mas não podia imaginar que chegaria a escutar alguém “tocando vitrola”, fazendo o tal “scratching”, rodando o disco pra frente e pra trás. No meu tempo, quando alguém perguntava: “Tocas algum instrumento?”. Para não se dizer “não”, a resposta era: toco vitrola”. Hoje, seria aclamado e iria reinar, pois os DJ “produtores” estão em alta. Vivo agora a época Funk e Rap; o que se vai fazer... Mas gosto até de alguns, como os do genial Gabriel O Pensador, Marcelo D2 e Bochecha. Falam verdades. Pensando bem, com eles os estilos de música se tornaram mais Armando Amorim - Memórias
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democráticos. Imagine o pessoal do funk, do rap atual, tendo que aturar naquele tempo, a massificação da bossa nova. Ligavam o rádio e só escutavam “o barquinho vai...”, com meninas brancas, todas bronzeadas do sol de Copacabana e Ipanema... Com janelas que se abriam para o Corcovado... Cenários zona sul, de boa vida, “olhando a coisa mais linda”. Não poderia interessar esse povo de realidades bem diferentes. Portanto, viva o funk e outras mais, cada uma agradando a quem se emocione com elas. Mas seja a que for a música tem o poder de nos transpor a épocas passadas e nos transmitir exatamente que tempo era esse e reviver as emoções. Quando criança, de quem gostava e foi meu ídolo, cantava “io -leri-le-ri-i-i”. Era o Bob Nelson. Ficavam horas ensaiando, tentando imitá-lo, mas não acontecia nada. Tempos atrás o encontrei, com mais de 80 anos, na Casa de Cultura Estácio de Sá, tirando ainda aquele som gutural difícil, com perfeição. Batemos um bom papo, o que me fez relembrar de uma época notável. Tempo dos quinhentos réis e do guaraná caçula. Era época também de escutar Orestes Barbosa, que compôs centenas de músicas que ficaram em nós, entre elas “Chão de Estrelas”, onde se podia ouvir a famosa frase “a lua furando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão” , que Manuel Bandeira dizia ser “o verso mais bonito da língua portuguesa”. Orestes Barbosa, figura central do Café Nice, foi um extraordinário poeta e jornalista dos melhores, apesar de autodidata. Como conta Zildo Jorge, era um carioca dos bons, nascido na Aldeia Campista e aprendeu as primeiras letras com o pai de Vinícius de Morais, que lhe mandava ler os cartazes de bonde e letreiros de cinema. Depois de trabalhar em vários jornais, certa vez ficou desempregado e a barra pesou. Quase diariamente ia ao jornal “A Pátria” para arrumar um bico, mas o motivo principal era “Baiano”, um vendedor de pastéis e doces, que fazia ali o seu ponto. Sabendo da dificuldade do poeta, o chamava, e oferecia as suas guloseimas, sempre com a frase: “Meta os peitos companheiro!”. E, assim, por certo tempo, os pastéis e doces do Baiano foram o seu almoço quase diário. 138 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Alguns anos depois, Orestes em situação melhor, ganha uma boa indenização da Prefeitura e resolve, com o dinheiro, ir à Europa. Vai então à Saúde Pública para conseguir o atestado de vacina, indispensável à viagem. Encontra ali nada mais, nada menos do que Baiano, agora contínuo do departamento, que lhe conta as dificuldades que vem passando, com a mulher e filhos doentes e aluguéis atrasados. Rapidamente Orestes se despede do ex-vendedor de doces e pastéis e vai a Caixa Econômica pegar o dinheiro da viagem, alguns contos de réis, uma pequena fortuna, na época. Volta então à Saúde Pública, entrega o embrulho com o dinheiro para o “Baiano”, dizendo: “Meta os peitos, companheiro”. E a viagem ficou para outra oportunidade. Não há como não viver de novo, quando escuto na Nacional, os programas de Osmar Frazão, com suas histórias da antiga; as crônicas musicais que contava Arthur da Távola, os programas de Ricardo Cravo Albin, Adelson Alves, Zeno Bandeira e outros, e variadas programações das rádios MEC e Roquete Pinto onde se pode escutar a boa música dos tempos da antiga e de hoje e as marchinhas e sambas do Lalá, Braguinha, as músicas de Herivelto, Haroldo Barbosa, Joubert de Carvalho, Sinval Silva, Klecius Caldas, Hervé Cordovil, Geraldo Pereira, e os cantores Blecaute, Jamelão, Jorge Goulart, Risadinha, Mário Reis, Dalva de Oliveira, Roberto Silva, Joel e Gaucho, Zé e Zilda, Gilberto Alves e tantos outros. Transporto-me a um tempo chamado “Bom tempo”, ao ouvir: “Um dia, encontrei Rosamaria, na beira da praia, a soluçar. Eu perguntei o que aconteceu... Rosamaria me respondeu...” Outras músicas, outros tempos, como as de Lupicínio Rodrigues: “Você sabe o que é ter um amor meu sinhô, ter loucura por uma mulher”... E quem da época, ao escutar hoje Lucho Gatica, Gregório Barrios, com seus boleros dois pra lá, dois pra cá, não voltam a sentir as mesmas emoções dos “bailinhos”, quando se dançava com rosto colado e às vezes, com mais ou más intenções? O balanço ficava por conta de Trini Lopes e seu “La Bamba” e as gostosas canções francesas e italianas nos emocionavam nas vozes de Gilbert Becaud, Charles Aznavour, Peppino di Capri e Sérgio Endrigo. Armando Amorim - Memórias
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Era tempo também de Nat King Cole, Billy Eckstein, Sammy Davis, Julie London, Johnny Mathis, Doris Day, Frank Sinatra e as lindas canções de Frank Pourcel, Victor Young, Cole Porter e Gershwin. E descobrimos os sons de Miles Davies, Quincy Jones e Bill Evans. Nos bailes de formatura, as orquestras de Severino Araújo, Oswaldo Borba, Ed Lincoln, Waldyr Calmon, Spilman e outras, tocavam todas elas. E a gente dançava como podia. Na turma, havia um “pé-de-valsa”: Tuneca. Quando ele entrava no salão, todos paravam e abria-se a roda. Aí, dava o seu show. Como dançava! Se inveja é mesmo pecado, eu pecava. Pois o máximo que eu conseguia era segurar a menina, enquanto ela dançava. Assim, as músicas vão me fazendo viver de novo a época da “turma do Sereno”, ao ouvir os “Três apitos”, de Noel ou as de Wilson Batista, Ismael e Vadico, que o amigo Ramsay tocava gostosamente ao piano. “Não, não me diga adeus, pense nos sofrimentos meus”... Essa me recorda a época em que a paixão era jogar futebol; “Maringá”, de um tempo que não esqueço, em São Vicente de Minas. Quando escuto “Chega de Saudade”, as lembranças são mineiras. E centenas de músicas que vou escutando, me transportam a outros tempos, a algum fato ou a alguém. Emoção das grandes, que me faz parar o que estiver fazendo, é só escutar a “Polonaise” ou o “ Noturno” de Chopin, poemas sinfônicos de Liszt e outros. Vejo então a minha mãe, com todas as expressões faciais, as mãos subindo e descendo, marcando os compassos, ora suavemente nos românticos, ou com gestos decididos, fortes, tocando Tchaikowisky. E a vejo bonita, bem penteada como sempre, sorrindo... Só fica faltando a conversa, que não se pode ter mais. Hoje, não sei se gosto mais da melodia, ou da lembrança tão boa que me traz. Não posso deixar de me emocionar, também, ao lembrar dos tempos que foram deliciosos e continuam sendo, quando escuto todas do Tito Madi ou a Marisa “ Gata Mansa” cantando: “Oh, tristeza me desculpe , estou de malas prontas, hoje a poesia veio ao meu encontro, vamos viajar...” Isso porque, eu e Gilda tínhamos lugar certo no Bierkrause e na “Fossa”. Tempo muito bom que a gente não esquece. 140 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Assim, fui gostando, praticamente, de todos os gêneros musicais, alguns pelo ritmo e balanço, outros pela melodia ou sabedoria no que dizem, ou ainda porque estiveram presentes em momentos especiais de minha vida. Devo confessar que sempre curti a turma do samba autêntico da “antiga”, alguns poucos ainda por aí e a maioria Deus levou, ao vencer o prazo de validade: Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Paulo da Portela, Padeirinho, Manacéia, Casquinha, Mestre Fuleiro, José Ramos, Ary do Cavaco, Bide, Ratinho, Donga, Assis Valente, Argemiro, Ataulfo Alves, Aniceto, Alvaiade, Guilherme de Brito, Lonato, Delcio Rufino, Candeia, Silas de Oliveira, Mestre Marçal, Gradim, Marcelino, Ismael Silva, Bubu da Portela, Cartola, Nelson Cavaquinho, Delson Carvalho, Tantinho, Xangô da Mangueira, Noca da Portela, Zé Katimba, Vassourinha, Claudionor Cruz, Joãozinho da Pecadora, Nelson Rufino, Nadinho da Ilha, Monarco, Mano Décio, Nelson Sargento, Zé Keti, e outros. Turma de respeito. Depois foi a vez de outra curtição: Silvinha Teles, Dolores, Maísa, Doris Monteiro, Alaíde Costa, Sílvio César, Ciro Monteiro e a voz de Dick Farney, tão gostosa como a de Lúcio Alves, Luiz Claúdio e de Emílio Santiago. Nesse tempo, Dolores Duran, a Adiléia, com “Fim de Caso”, “Dindi”, “Noite do Meu Bem” e muitas outras, fazia aumentar as nossas paixões adolescentes. E Elizeth Cardoso, era a nossa divina. A curtição passava ainda pelos conjuntos vocais “Anjos do Inferno” e “Quatro Ases e um Coringa”.. Houve também época dos chorinhos Delicado, Brasileirinho, Pedacinho do Céu e dos virtuosos Valdir Azevedo, Jacob do Bandolim e Altamiro Carrilho. Mas não deixavamos de escutar as deliciosas composições de Humberto Teixeira, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Ainda me emociono quando escuto o “seu” Farnésio, morador de Santa Teresa, mais conhecido como Dick Farney, cantando: “Fiz meu rancho na beira do rio/ meu amor foi comigo morar...” Depois foi a vez de Tito Madi, que compunha e interpretava com hamonias diferentes o tradicional samba-canção, como o Dick também fazia. Os dois, na certa, a inspiração da bossa-nova, como foi também Johnny Alf em outro estilo. Armando Amorim - Memórias
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Quando chegou o rock, com Bill Halley e seus cometas, Little Richard e Elvis, o pessoal do sereno não se empolgou. Não era a nossa praia. Na turma do Divino, só conseguiu entusiasmar Erasmo Carlos, que passou a andar de bota, casaco de couro cheio de tachas e que por isso recebia as gozações. Foi ele, no Rio, o primeiro a incorporar o movimento, que depois tomou conta da rapaziada. Quando surgiu a “Jovem Guarda”, ele, entre todos, era quem melhor simbolizava o chamado rock brasileiro. Essa passou “batida” por nós, por sua ingenuidade. A “bossa nova” já tinha nos pegado em cheio, quando apareceu em 1959, o LP “Chega de Saudade”, com João Gilberto, executando batida e harmonia diferente. Aquele tom coloquial, cantado quase falado, era o que se esperava, apesar de que Mário Reis já fazia parecido. Junto, surgiram músicos e letristas sensacionais, como Tom Jobim e Vinícius, Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Oscar Castro Neves, Almir Deodato, Toquinho, Aloísio de Oliveira, João Donato, Ruy Guerra, Newton Mendonça, Boscoli, os irmãos Valle e outros, além do cantar manso de Nara Leão e o jeito delicioso de Vanda “Vagamente” Sá. Com essa turma acabava um grande ciclo de nossa música, onde predominavam “dramas de cotovelo”, sofrimentos de amor e alguma melancolia. Chegava a bossa-nova com o sol, o mar, garotas bronzeadas e muito mais. Vieram, na esteira, diversos e bons intérpretes como Peri Ribeiro, Leni Andrade, e grupos de alto nível como Os Cariocas, Zimbo Trio e Tamba Trio; os vocais MPB 4 e Quarteto em Cy. Apareceram então os festivais e com ele compositores e cantores que marcaram: Edu Lobo, notável, Elis Regina, fantástica, Baden Powell, Geraldo Vandré, Taiguara, os Mutantes, Rita Lee, João Bosco, Ivan Lins, Gonzaguinha, Jair Rodrigues, Marília Medalha, Francis Hime, Sidney Miller, João Bosco, Sérgio Ricardo, Aldir Blanc, Nana Caymmi e o genial Chico Buarque. Também aparecem os baianos Tom e Dito, Antônio Carlos e Jocafi, Maria Creusa e a luminosa mineira Clara Nunes. Nesses anos, houve um enriquecimento fantástico da música popular brasileira. E como não gostar de outras correntes geniais, como a de Raul Seixas, com “Mosca na Sopa”, “Maluco Beleza” e quando diz: “Prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada”. Ou do notável Tom Zé, um gênio compondo e cantando. E o que dizer de Jorge Benjor, com a invenção de uma batida que não 142 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
existia, com letras ritmadas, contando historinhas bem tropicais. E de Tim Maia? E dos inovadores Itamar Assunção e Altay Veloso? Veio o tropicalismo com Caetano Veloso e Gilberto Gil e veio muito mais. Há alguns anos, o samba verdadeiro se restabeleceu, quando uma turma de respeito passou a frequentar as quartas feiras o Cacique de Ramos. Dali surgiu o Fundo de Quintal, inicialmente formado por Bira, Ubirani, Sereno, Neuci, Sombrinha, Jorge Aragão e Almir Guineto. E foram chegando Arlindo Cruz, Ronaldinho e outros. Para escutar essa turma que colocou o bandolim e o tan-tan no samba chegavam Beth Carvalho, muitos cantores e o inigualável Zeca Pagodinho. Hoje, misturo esses bambas com outros, tipo Wilson Moreira, Elton Medeiros, Wilson das Neves, Mauro Diniz, Nei Lopes, Paulinho da Viola, Beto Sem Braço, Luiz Carlos da Vila, Dedé da Portela, Martinho da Vila, Leci Brandão, Dudu Nobre, Walter Alfaiate, Toninho das Gerais, e Dona Ivone Lara e com compositores e cantores que me disseram muitas coisas, como, Paulo César Pinheiro, Nana Caymi, Fagner, Agostinho dos Santos, Altemar Dutra, Alceu Valença, Marisa Monte, Milton Nascimento, Ary Barroso, João Nogueira, Paulinho Mocidade, Hermínio Bello de Carvalho, Marina Lima, Fernando Lobo, Claudete Soares, Zélia Duncan, Neguinho da Beija Flor, Selma Reis, Lupicínio Rodrigues, Rosa Passos, Reginaldo Bessa, Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, Nando Cordel, Moacyr Luz, Fátima Guedes, Mário Lago, Luiz Airão, Lana Bittencourt, Dory Caymmi, Capinam, Guarnieri, Jards Macalé, Paulinho Soledade, Ney Matogrosso, Luiz Melodia, Luiz Bonfá, Caymmi, Dorina, Guilherme Arantes, Luiz Vieira, Almir Satter e Renato Teixeira, Beto Guedes, Lenine, Alcione “Marrom”, Paulinho Guima, Roberto Ribeiro, João do Valle, Sílvio Caldas, Torquato Neto, Dalva de Oliveira, Cristina Buarque, Olivia Hime, Moreira da Silva, Alcyr Pires Vermelho, Oscar Castro Neves, Marcelo D2, Lô Borges, Fafá de Belém, Marcos Moran, Elba Ramalho, Chico Science, Luiz Peixoto, Fernando César, Ed Motta, Simone, Adriana Calcanhoto, Diogo Nogueira, Lula Freire, Sandra Sá, Elza Soares, Alceu Valença, Arthur Veroccai, Rosa Maria, Aracy de Almeida, Zezé Gonzaga, Olívia Bayton, Vânia Bastos, Edmundo Souto, Ademilde Fonseca, Luiz Bandeira, Carlinhos Vergueiro, Zezé Motta, Chico César, Joyce, Juca Chaves, Assis VallenArmando Amorim - Memórias
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te, Ronaldo Bastos, Wilson Simonal, Carlos da Fé, Pedrinho da Flor, Roberto Paiva, Ivo Lancelotti, Dolores Duran, Alayde Costa, Maurício Tapajós, Bethânia, Zé Ramalho, Djavan, Toninho Horta, Carlos Luz, Clara Nunes, Orlando Silva, Monsueto, Roberto Silva, Jorginho do Império, Paulinho Mosca, Zeca Baleiro, Roberto Carlos, Nelson Gonçalves, Luiz Reis, Chico Feitosa, o Chico Fim de Noite, João de Aquino, Carlos Malta, Jane Duboc, Sinval Silva, Fernando Brant, Zizi Possi, Carlinhos Brown, Adoniran e Vanzolini, Fernanda Abreu, Miucha, Billy Blanco, Flávio Venturini, Renato Russo, Paulinho Nogueira, Arnaldo Antunes, Ataulfo Alves, Zé Renato, Guinga, Gonzaguinha, Paulo e Paulinho Tapajós, Silvinha e Claudinha Telles, Zé Rodrix, Bezerra da Silva, Paulo César Feital, Alberto Ribeiro, Custódio Mesquita, Gilbert de Carvalho, Joel Teixeira, Garoto, Benito de Paula, Carlos José, Dicró, Maria Rita, Martinália, Leila Pinheiro, Eduardo Dusek, Hervé Cordovil, Humberto Teixeira, Haroldo Barbosa, Sérgio Reis, Sá e Guarabira, Jovelina Pérola Negra, Elaine Machado, Clementina de Jesus, Eduardo Krieger, Mauricio Manieri, Ronaldo Bastos, Aline Calixto”, Jair Amorim, Evaldo Gouveia, Anacleto de Medeiros, Jorge Mautner, Tunai, Zé Menezes, Oswaldo Montenegro e tantos e tão bons e tão diferentes, que fico a pensar se essas misturadas preferenciais não merecem o sofá do psicanalista. Por enquanto, a certeza que tenho é que a minha vida possui trilha sonora e vai sendo guardada nas canções.
Chico
Ricardo Vieira
144 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Gleide
Carlinhos e Érica, Lelê e Bia
Bianca e Samantha
Bia e Laura
Rachel e Mandinho com Lucas
Bia e Deco
Victória
Marcelo e Ursula
Rebeca
Diva e Roberta
Gleidson, Nana, Bia e Laura
Bernardo, Bia, Vitรณria e Mando
Mando e Laura
Guesa e Beta
Jorge e os filhos Leo e Daniel
Popรณ, Fernando e Jorge Luiz
Bia, Paula, Bebel, Marquinho e Gabi.
Beto Figueiredo, filho do Robertinho Paulo de Tarso com Leonardo
Maria Isabel filha da Andrea
Marcelo, Jorge e Rivanda
Malu e Laura Lillian esperando nenĂŠm
O ator Marcelo Capobiango com Martinho
Bia e Rachel
Beta e Juju
Luiz Sergio, Bia, Juju, Aline, Monica e Mandinho no sitio
Matheus paquerando
Entre elas, as amigas Diva, Stelinha, Sonia, Lucia e Betoca
Helio e o neto
Laura
Stelinha com os filhos Junior e Cris
BerĂŞ e Paulinha
Paulinha e Matheus
Popรณ, China, Wilsom, Marcelinho e Jorge
Rachel e Laura Gilda e Rivanda em Paris
Giovanna, Lucia, Regina e Paulo
Danielle, a Dadรก
Encontro com bambas João Estou no supermercado Extra, na Barra, fazendo umas comprinhas, escolhendo umas verdurinhas e ao meu lado, vejo alguém resmungando, meio que reclamando: “Quase um real por esse cheiro verde murcho”... e me olhou, como quisesse aprovação ao que dizia. Tive que responder: “ainda bem que é verde, se fosse lilás, carmim, cores mais sofisticadas, ia custar uma fortuna”. Veja quanto está o pimentão vermelho... 8 pratas. Um riso, e começamos a conversar, como duas comadres na feira, sobre hortifrutigranjeiros, ele dizendo que ervilha a quase 4 reais o quilo, um absurdo. Eu contrapondo, pois o pior era o preço do chuchu, que no meu sítio ficam a implorar para tirá-los do pé. Quando pegou do carrinho um saquinho de alho, mostrando que algumas cabecinhas custavam R$ 4,80, não resisti em dizer que sabia quem ele era. “João, o negócio é você pegar a deixa e compor um sambinha e receber bom troco no que está gastando”. E ele de pronto: “Rima com alho não dá pé”. E o papo foi por aí... Sabendo ser ele parceiro de Dalmo Castelo, também meu grande amigo, toquei no assunto e o papo durou mais um bom tempo. Na despedida, não deixei de lembrar que beringela, aipim e couveflor, além de fazer bem a saúde, davam boa rima. Isso pra dizer, que essa conversinha foi com João Nogueira, que considero um dos maiores sambistas de todos os tempos. O único meio branco que conheci, com voz de crioulo, ginga na voz, que só o negro consegue ter. E jeito “malandro” da antiga. Sensacional.
Ismael Certo dia, meu amigo e colega de turma do La-Fayette, Hélio Tavares, me chama para estudarmos juntos em sua casa, para a prova parcial de matemática. Ao chegarmos, direto do colégio, seu Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 151
Ismael Silva
pai, que era o dono do botequim Ponto 100 Réis, na Rua Itapiru - onde também morava, pediu que fôssemos a um botequim no Estácio, apanhar alguns livros de contabilidade. Ao chegar, junto a uma mesa de tampo de mármore, estava o compositor Ismael Silva, já totalmente esquecido. Parecia abatido, paletó amarrotado, cabelo grisalho um pouco grande, apesar de continuar com a figura esguia e elegante de sempre. Não pude deixar de ficar olhando aquele ícone da música brasileira, o que o fez sorrir e me chamar, ao mesmo tempo me perguntando:“sabe quem sou? - parece o Ismael Silva..., respondi. Pegando a minha mão, ao mesmo tempo puxando uma cadeira: “Muito prazer” ! Posso dizer que o estudo foi “pras cucuia”, mesmo porque, não era muito chegado a isso. O papo durou horas e pude, naquele dia, conhecer um pouco da história do samba, por um de seus criadores, e também de outros notáveis. Contou-me fatos passados com Noel Rosa, Francisco Alves, Carlos Cachaça e da “Deixa Falar” - a primeira escola de samba que existiu, ideia dele e dos amigos Alcebíades Barcelos, o Bidê e seu irmão Ruben, Nilton Bastos, Carré, Baiaco, Juvenal Lopes, Brancura, Francelino, Gradim, Mano Edgard e outros que não anotei. Isso por volta de 1928. Disse que a idéia de colocar o nome de “escola” foi de Nilton Bastos, porque ali perto existia a Escola Normal, que formava professores. Se a deles iria “formar sambistas”, nada mais certo do que colocar “ escola de samba”. Os ensaios aconteciam na Rua do Estácio 29, que virou Casa 152 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Miveste depois. Mas as reuniões do samba, no Café do Compadre. E frequentavam também o Bar e Café Apolo. O Bide, dizia Ismael, foi quem introduziu o surdo no samba. Como ia anotando no caderno de matemática os nomes que dizia e as datas, quis saber o porquê das anotações. Fui rápido: vou fazer um jornal de música (já tinha essa mania de editor). Mandou, então, que anotasse que a palavra “samba”, era de origem africana, e foi modificada da inicial, “semba”, que queria dizer umbigada, para chamar o outro para dançar. E assim, cada um ia se apresentando. Falei, então, que nas rodas da “pernada”, no morro 71 fazia-se parecido, só que encostávamos a perna no parceiro, para que entrasse na roda e “plantasse”. Disse-me então, que essa era uma adaptação dos jovens descendentes africanos, que queriam não só mostrar suas habilidades nos passos, mas também a destreza nas brigas. Contou-me das dificuldades iniciais do samba, pois não era bem visto pela sociedade e também pela polícia. Assim, os encontros eram mais ou menos escondidos. Um dos locais preferidos, a casa da Tia Ciata, que morava na Visconde de Itaúna e promovia as melhores festas. Lá estavam sempre João da Baiana, Donga, Pixinguinha, Sinhô e outros. Mas dizia que havia muitas outras “tias”, pois todas as mães negras eram chamadas assim. “A mãe de Donga era a “tia Amélia”,” tia Prisciliana”, a mãe do João da Baiana. E ainda: tias Verdiana, Lulu, Amália, Francisca, Boneca, Gracinda, Filó, Lourença, Chiquinha, Zoé e outras. Todas gostavam do pagode e estavam sempre promovendo reuniões. Além de divertidas, em suas casas comia-se muito bem, não faltando os docinhos e bolos de milho e aipim. João da Baiana que formou com Pixinguinha e Donga o grupo “Velha Guarda” e “Os Diabos do Céu”, era um dos preferidos de Ismael. Dizia que foi ele o introdutor do pandeiro no samba. O primeiro samba que Ismael compôs foi “Já Desisti”. Estava com 15 anos. E foi contando os parceiros que teve, cantarolando as músicas, batendo na caixa de fósforos. Falou dos encontros com Noel na Lapa e como era gozador. Tinha resposta rápida quando o sacaneavam e não gostava que ninguém reparasse no seu defeito. Se alguém olhasse para o seu queixo, ficava incomodado. “Certa vez, Armando Amorim - Memórias
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contou, estavam numa roda em botequim da Lapa, quando apareceu um cara “folgado” , já meio bêbado e aproximando-se falou alto para o garçom “traga uma cerveja pra mim e outra pro “mal acabado” do violão. Em menos de cinco minutos, Noel começou a tocar um sambinha, que criou na hora: “Aquele cara mamado/ Miolo “mal acabado” /Pensa que é malandro/Chega de qualquer lado/sem mesmo ser convidado/Tem cara de bobo o folgado/ainda por cima/é viado”. Não é preciso dizer, que o cara enfiou a carapuça e saiu de fininho, desconfiado. E a musiquinha, uma brincadeira de Noel, diz Ismael, passou a ser cantada, sempre que aparecia alguém bêbado ou folgado, para perturbar. Ele gostava do jeito gozador, debochado, de Noel: “como era franzino”, dizia Ismael, “usava a inteligência para ir à forra de qualquer sacanagem que lhe faziam, ou mesmo, por pura molecagem”. Isso, o fez também levar algumas “bolachas”. Mas a maioria era sutil. Uma de suas brincadeiras era chamar, o garçom: “Inseto!”- Quando o próprio, meio brabo, indagava com um “o quê”? Ele de pronto arrematava: “Você não é o Aniceto?... traga-me uma cervejinha preta gelada”. Também podia chamar de “Boneca!”, pronunciando o Bo mais baixo. Quando o indivíduo o interpelava, ele emendava: você não é o “seu Neca”, que trabalhou na Pensão da Zulmira? Outro que ele gozava era o “seu Paulo”, caixa de um boteco da Lapa, que usava uma cara amarrada, sizuda, para atender qualquer um. Como era super magro, Noel se dirigia a ele, solenemente, chamando-o de “seu Pau”, diminuindo a voz, no “lo”. Apesar dos risos, o homem não percebia a brincadeira. Mas certa vez, numa dessas, levou uma porrada do Zé Pretinho, um dos valentes do pedaço, apesar de alguns afirmarem que o sopapo fora por causa de um samba que Noel lhe dera e quis retomar. Com isso, Ismael queria demonstrar o jeito moleque, irreverente, de Noel Rosa, ao mesmo tempo em que exaltava a sua inteligência, bem acima dos que faziam samba naquela época. Qualquer assunto era motivo para compor, sendo que em muitas músicas, introduzia o humor, uma de suas marcas. 154 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Ismael contou os sambas que fizeram juntos, inclusive “Adeus”, grande sucesso de Francisco Alves. E por isso, tiveram que dar parceria a ele, o que era comum na época. Ismael vendeu também, em 1927, para o cantor, o primeiro samba não amaxixado, que deu início ao samba: “Me faz Carinho” e, ainda, “Amor de Malandro” e vários mais. Outra, também com Noel e Francisco Alves, dizia assim: “Esse negócio de amor não convém/Gosto de você/Mas não é muito... muito/ fica firme, não estrila/ traz o retrato e a estampilha/ que eu vou ver/o que posso fazer por você/ E finalizava: “ Seu amor é insensato/me amofinou mesmo de fato/não leve a mal/eu prefiro a Lei Marcial”. No total, foram 9 músicas. Mas o que eu quis saber era quem tinha sido o Antonico que aparecia num de seus sambas mais deliciosos, onde ele pedia emprego para o amigo Nestor: Oh! Antonico vou lhe pedir um favor/ que só depende da sua boa vontade. E no bilhete ele explica que Nestor “está vivendo em grande dificuldade”. E diz de quem se trata: “Ele está mesmo dançando na corda bamba/ele é aquele que na escola de Samba/ Toca cuica, toca surdo e tamborim”. E agradece: “Faça por ele, como se fosse por mim”. Achava que, com aquele bilhete em formato de samba, o emprego do Nestor estava garantido. Nada disso! Confessou-me Ismael, que os personagens não existiram, para minha frustração. Mas valeu a genial criação. Com voz calma, pausada, Ismael ia contando fatos de sua vida agitada, das brigas na Lapa e no Estácio, onde o maior valentão do pedaço era Baiaco, apesar de que “Madame Satã”, um viado misturado com marginal, às vezes, aterrorizava a região. Mas os dois nunca se cruzaram, pelo respeito mútuo. No baralho, o mestre do “jogo de ronda” era “Brancura”, um cara bonitão que se vestia nos “trinques”. Dominava o mulherio e se metia em muitas trapalhadas. Dizem que por causa de uma delas ficou meio ‘tan-tan” e acabou no sanatório. Nas cartas, pela rapidez incrível no manuseio, “Brancura” era o Rei da trapaça. Ismael foi contando a sua vida e por onde passou: Estácio, Praça Onze, Gamboa, Saúde e Morro da Favela, pois ali acontecia muito samba de roda. “Agora”, dizia ele, “a vida mudou e não há Armando Amorim - Memórias
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mais as grandes amizades. Vivo sozinho e, pra fugir da solidão, vou todos os dias na sociedade de direito autoral e ando por aí, para chegar tarde em casa”. Por alguns segundos fiquei imaginando como um gênio podia ser tratado assim; estava ele morando em casa de cômodos na Gomes Freire, vivendo em dificuldade, sendo um dos criadores de um rítmo que dominou o país e saiu pelo mundo. No final do papo, a meu pedido cantou: “Se você jurar/que me tem amor/ eu posso me regenerar/mas se é, para fingir, mulher”... Realmente, foi um dos nossos notáveis. No dia seguinte, Hélio me contou a bronca que levou, pois o contador do pai ficou esperando os tais livros. E eu fiz uma prova horrível. Mas valeu. Passei a gostar mais ainda de samba, e muito menos de matemática.
Tom da Bahia, meu parceiro. Houve época em que o Brasil cantou as músicas das duplas baianas “Tom e Dito” e Antônio Carlos e Jocafe”.
Eu e Tom
Tom da Bahia
156 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mario Minei, Tom, Carmem, Mando, Gilda, eu, Dona Didi, e Hermínia.
Certo dia chega à AAP, trazido pelo amigo Arylio Souza Aguiar, o Tom. Desfeita a dupla passou a ser Tom da Bahia e se tornou maestro, arranjador e compositor. E no estúdio que montou, passou a produzir jingle e trilhas sonoras para filmes, vídeos e temas de novelas. Estava ali na AAP para produzir um jingle para um de nossos clientes. Além de compositor dos melhores, autor de clássicos como “Pra que chorar”, “Tamanco Malandrinho”, “ Grande Família”, “ Malandragem dela” e outros, Tom da Bahia é um virtuoso no violão, além de tocar piano, baixo e outros instrumentos. E tem vários sucessos também gravados por Jair Rodrigues, Alcione, MPB 4, Leni de Andrade, Banda Eva e mais alguns. Mas acima de excepcional talento musical, é um ser humano dos melhores, solidário, amigo e de uma simplicidade que o faz ainda maior. Assim, acabou engrossando a turma dos amigos que convivem nas temporadas de nosso Sítio em Teresópolis e convidado espeArmando Amorim - Memórias
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cial e permanente, de nossa casa. Virou amigo do peito e há mais de trinta anos nesse convívio, já faz parte da família. Também nos fez conhecer uma baiana, dessas que a gente olha e gosta, pois é iluminada: professora Edite, ou melhor, Dona Didi, sua mãe e um pouco minha também. Como do Tom da Bahia só vem coisa boa, nos fez conhecer Mário Minei, considerado um dos melhores médicos do país, que há anos vem fazendo parte também da “turma do peito”. E não poderia ser diferente, para quem conhece a genial criatura, cuja bondade transborda e com ela, o sorriso permanente de quem está de bem com a vida. É realmente especial esse “mermão” Mário. Certo dia, Tom descobre algumas coisinhas minhas escritas uns poeminhas, mini-crônicas esquecidas na gaveta - e resolve nelas, colocar música. Em poucas horas, três delas já estavam prontas para o meu espanto. Lindas melodias e o aplauso de todos. Estava iniciada a parceria. Ficamos empolgados e começaram a aparecer outras canções e até um musical infantil. Hoje, já são quase cinquenta e estamos selecionando doze para o primeiro CD. E nossas musicas infantis estão virando pequenos desenhos animados.
158 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Hora do Jantar Gente que me fez rir e pensar Como meu ciclo no trabalho estava entre meio dia e meia noite, a hora de jantar era depois disso. A partir desse horário o destino era a zona sul, muitas vezes em companhia de Luiz “barba roxa”, Vasco Loureiro, Roberto Romanelli, Ruy Paneiro, Paulo Cesar “Aguinha”, Gilda ou mesmo sozinho. A região ficava entre o Lido e Leme - Bierkrause, Mab’s, Fiorentina, Cervantes, e um barzinho onde Jonny Alf, autor de “Eu e a brisa”, cantava e tocava. Foi sem dúvida o precursor da bossa nova. Algumas vezes, valia também tomar a sopinha da Lindaura, no Beco da Fome, em outras, passar pelo El Cid ou escutar, no Balaio, o Sacha tocar o seu piano e comer um camarãozinho à milanesa com arroz à la grega, pois ninguém é de ferro.
Eu e Gilda na época das Boates do Lido
Vamos parar com a Coca Cola.
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Nesse pedaço, todos se conheciam, pois quem circula nas madrugadas são sempre os mesmos: artistas, prostitutas, porteiros de boates, alguns aposentados, gente insone, meninos de rua e eu, que não sei em qual categoria me encaixar. Mas é dela que sempre gostei mais. Na madrugada encontra-se gente mais criativa, mais bem humorada, gente que anda sem pressa, gente que conversa e, principalmente, que sabe escutar. A única desvantagem é que somos todos um pouco mais pálidos. Mas o resto compensa. Na noite, a tempo de escutar ou contar algum caso com princípio, meio e fim, com todos os detalhes, pois ninguém tem compromisso com hora marcada. E quem fala que ficar acordado, deixando cair o sereno, dura pouco ou morre cedo, a turminha do Lido desmente, pois o “brotinho” lá andava no auge dos seus quase 90 anos. E a lucidez, nem se fala; escutei histórias notáveis do compositor Bororó, com seus noventa e tantos. Descendente direto de Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, para quem dele não se lembra é só escutar: “ Esse corpo moreno, cheiroso e gostoso que você tem/ É um corpo delgado/ da cor do pecado, que faz tão bem... O Leme, das regiões da zona sul, foi a que mais me fascinou. Não só porque moraram ali os amigos Tuninho e Leila, Luiz e Hildinha e ainda moram Múcio e Márcia, mas porque essa região sempre me pareceu como um bairro da zona norte, ou suburbana, com praia. Se não fosse a massa de arranha-céus que beiram o mar e tivéssemos somente casas ou vilas, na certa os moradores estariam colocando cadeiras na calçada, para as conversinhas. No início da mocidade, o interesse em frequentar o bairro foi pela praia, pois havia as famosas lotações, que no verão nos descarregavam no ponto final, junto as suas areias. Mais tarde, foram as boates e seus botequins, que me fizeram gostar do lugar. E, finalmente, os restaurantes, para o meu jantar da madrugada. Alguns desses lugares fizeram fama, e não há gente da antiga, que deles não se lembre. Um dos preferidos a boate Drink, do maestro Djalma Ferreira, que lançou o sambalanço e durante muito tempo apresentou Miltinho, que fez grande sucesso ao cantar a “Mulher de 30”. Antes, Miltinho foi seu baterista na orquestra “Milionários do Ritmo”. 160 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Dizia ele que a parte dos “milionários” ficava com Djalma; ele, com o “Ritmo”... Entre as dezenas de sucesso de Miltinho, um deles foi “Menina Moça”, de Luiz Antônio. Como o compositor estava duro e a filha completava 15 anos, o jeito foi criar a composição e convidou Miltinho para cantá-la na festa. Seria o seu presente. O sucesso começou ali: “Você menina moça, mais menina que mulher... joia preciosa cada um deseja e quer...” Comprada pelos irmãos do Cauby Peixoto - Araken, pistonista, Moacyr, pianista e mais a irmã Andiara, a boate Drink continuou a fazer sucesso, pois chegou a apresentar Simonal, Johnny Alf, Sílvio César e Ary Barroso - o mais notável morador do Leme. Também andou por lá Moacyr Silva, que certa vez lançou um “long-play” com o nome de Bob Fleming. Vendeu milhares de discos, pois todos pensavam que fosse um virtuoso americano do norte. É sempre assim... Fazendo concorrência ao Drink, na Rua Gustavo Sampaio, a boate Arpège, de Waldyr Calmon, cuja orquestra ficou famosa, não só pelos long-plays lançados, mas porque era a preferida para animar os bailes de formatura, nos finais de ano. Lá se apresentavam, entre outros, a cantora Helena de Lima e o inesquecível e elegante Ataulfo Alves e suas pastoras. Numa delas, eu não ousava entrar, pois era para a turma de muito “larjam”: Boate Vogue, onde tocava o pianista Sacha Rubin e desfilavam os colunáveis da época. Em 1955 pegou fogo. Mais tarde, ele foi tocar no Balaio e esta dava pra frequentar e escutar não só as belas melodias que saíam de seu piano, mas o cantor Paulo Marquês, o saxofonista Cipó e o incomparável baterista Milton Banana, que já o conhecia do Beco-das-Garrafas. Toda forrada de vime, o Balaio era a casa mais aconchegante do Rio. Quando o dinheiro não era muito, valia ir à boate Texas, onde cantava Elza Soares, na Hawaí ou na Bambu, todas em frente à praia. Outra famosa foi a boate Fred’s, do conhecido Frederico C. Mello, que ficava por cima do seu posto de gasolina. Lá se apresentavam as mais famosas vedetes da época, ditas do Carlos Machado - que faziam ali um bico, depois do show na Casa do “Rei da Noite”, como era conhecido o empresário. Entre elas: Elisabeth Gasper, Anilza Leone, Angelita Martinez, Norma Benguel, Rose Armando Amorim - Memórias
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Rondelli - que foi esposa de Chico Anísio - e até uma das minhas namoradas, Gina Lady, que certa vez me fez passar grande vergonha. Estava eu com a namorada oficial, a ipanemense Solange Regina, descendo tranquilo a agitada Avenida Atlântica, em tarde linda de verão. Eis que aparece, em sentido contrário Gina, que às vezes era enfezada e malcriada. Naquele dia foi assim e os xingamentos e seu tom de voz, obrigaram todos a parar. Em poucos minutos já havia uma multidão, querendo saber, como sempre, o que estava acontecendo (maldita curiosidade!). Logo maldosas sugestões, entre outras: “dê porrada nele!”. Perdi a namorada. No Leme, havia também alguns botequins famosos, como o Sereia do Leme, Rainha, Pub - que de nome inteiro era a “Pontifícia Universidade dos Boêmios”, Moka, Esquina do Pecado, São Jorge, Bar do Careca, Taberna do Leme, Radical e outros, que eram bem frequentados. Num deles nunca esqueci o cartazete na porta: “Aqui não entra bêbado; só sai”. Mas o melhor “pé-sujo”, sem dúvida, o ‘Escadinha”, que para alcançá-lo, tínhamos que subir alguns degráus; o que era perigosíssimo para os seus habituês, pés-de-cana que ali se serviam das famosas batidas e outros etílicos. Depois do porre, para curá-lo, eram encaminhados à Farmácia do Leme e atendidos por Altair Gomes, o “Zé das Medalhas”. Mas o lugar que me deu mais prazer em frequentar foi o Bierkrause, onde cantava Emílio Santiago, em seu começo e, por cima dele, a “Fossa”, da Waleska. Lá se apresentavam Marisa Gata Mansa e Tito Madi, com o calmo e acariciado piano de Ribamar no acompanhamento. Apesar do ambiente gostoso e dos formidáveis cantores, o que me encantava mesmo era a companhia: Gildinha, com quem casei. Acabaram-se as noitadas, mas ganhei bela família. Na hora do jantar, ainda solteiro, o Mab’s era um dos meus preferidos, mas havia dias de Fiorentina. Neste famoso restaurante, conta o jornalista e escritor Arthur Poener, certo dia Ary Barroso jantava e senta a sua mesa o cômico Zé Vasconcellos. Ary então falou baixinho no seu ouvido, mas o suficiente para ser escutado pelo delegado sentado na mesa ao lado: “Você trouxe o pó?” Com resposta afirmativa os dois foram para o banheiro, seguidos pelo “delega”, o único a assistir a cena de Vasconcellos entregando a encomenda que Ary tinha feito: fixador de dentaduras Corega. 162 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
No Fiorentina era fácil encontrar Jô Soares, Jece Valadão, Edu da Gaita, Dercy Gonçalves, Clarice Lispector, Jorge Dória - que tinha um gostoso calzonne com o seu nome - Hugo Carvana, Sérgio Porto e o irmão Fifuca, Ruy Guerra, Ziraldo, Daniel Filho, Miéli, Mário Lago, Tito Madi, Armando, marido da Bibi Ferreira, que cismava em fazer comigo uma revista para cães e até Wilson Viana, o “Capitão Asa”, que levamos depois para a CCPL, promovendo o leite, junto à criançada. Praticamente, os mais famosos do Rio podiam ser encontrados na “Fiora” e deles todos conhecem as histórias.
Dantoni, um leão Aqui, mostro alguns personagens sem fama com quem convivi. Um deles, Renato Dantoni, que não se via o seu nome no jornal ou em outro qualquer lugar, mas era uma figura que todos no Leme conheciam.
Tom, Renato Dantoni e eu
Homem super “parrudo”, como se dizia na época, Dantoni chegou a ser “Mister Músculo” e “Mister Brasil”, em concursos que havia no Rio. De profissão original, era salva-vidas. Na época que o conheci, já havia dado baixa da Corporação e tomava conta de boates das redondezas, chegando, certa vez, a “leão” do famoso Assirius, na Cinelândia. Armando Amorim - Memórias
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Apesar do tamanho, Dantoni, não gostava de briga. Só uma vez saiu do sério, quando a linda filha adolescente - xodó de sua vida, ao voltar do colégio, foi cercada por dois marginais que a quiseram violentar. Identificados na delegacia e sabendo a região em que atuavam, Dantoni passou a andar pelas redondezas com um rolo de arame farpado dentro de uma sacola. Certo dia encontra a dupla, algema os bandidos e em seguida enrola os dois - dos pés à cabeça - com arame farpado! E leva as “múmias farpadas” numa kombi para a Delegacia, descarregando ali a encomenda. Avisa então ao delegado: “eles quiseram pular a minha cerca e se enrolaram nela”. Durante muitos anos, Renato Dantoni foi salva-vidas na Praia Vermelha recebendo por atos de bravura, uma penca de medalhas. Ao se aposentar, foi considerado pela Corporação quem mais salvou pessoas, nas praias do Rio, com algumas centenas de salvamentos. Daí ser considerado um herói no local e amado por todos do bairro. Mas Renato é autor de uma incrível façanha. E me contou como foi: “às vezes a praia estava vazia e sem ter nada o que fazer, fui cortando o penhasco que margeia o mar. Fiz um platozinho e construí um banheiro, que servia a todos os banhistas. Daí cortei mais um pouco e fiz um “ quartinho” , onde às vezes dormia; em seguida fiz mais um platozinho e a sala ficou pronta. Quando percebi, tinha ali uma casinha e os amigos me conseguiram água e luz. Como ganhava muito pouco, resolvi morar na “mansão”, pois a filha estava encaminhada na vida”. Claro que há sempre um espírito de porco e quis tirar o Dantoni de lá. Mas amigos influentes, inclusive almirantes que ali moravam, estavam conseguindo o estabelecimento de posse. E me dizia que ainda não estava concluída a documentação, pois era o primeiro caso com essas características, com que a Marinha se deparava. E Renato achava muito normal:“ Não tem gente que gosta de montanha e constrói o seu barraco? Prefiro a praia”. Assim, qualquer encontro com Dantoni, se transformava em comédia. Num deles, no meio de um papo, dizia que estava vivendo de cara ou coroa razão da minha indagação: estás jogando? A resposta veio rápida: -” estou falando de mulher”... Certo dia reparei que chegou invocado: “ Armando, você sabe que vivo em dificuldade, mas não peço nada a ninguém. 164 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mas tem gente que apurrinha! O Caleba não pode me ver que me pede dinheiro. Estava agora ali no Beco e me pediu 50 pratas. Disse a ele que não tinha. Abaixou pra 30; disse que estava duro; pediu então 10 para ir encontrar com uma menina no Meier. Já invocado, puxei os dois bolsos pra fora, para mostrar que estava duro. Aí caiu o meu Melhoral e o miserável, veio com essa: “Dantoni, estou com uma dor de cabeça danada”...” Acabou me levando o remédio! Esse pilantra vive pra pedir! Não sei se ele inventava, mas estava sempre em cotações divertidas. Numa delas relatou a criatividade de um amigo que morava em bela casa, em Botafogo. Colocou o papagaio no quintal, no poleiro, para afugentar gatunos. E uma placa bem grande em que dizia: CUIDADO COM O PAPAGAIO! E afirmava que já tinha funcionado: um ladrão, sabendo que o papagaio não aguentaria uma bolacha, pulou o muro de altas grades e logo que pousou escutou os berros do louro: Rex! Rex!... Era o grande e furioso Fila que ficava nos fundos do quintal e que atendia prontamente ao chamado do papagaio... Nessa, garanto que não acreditei. Quando esteve em nosso Sítio, em Teresópolis, dormindo em quarto com lareira, ao acordar, afirmou que um dos sonhos de sua vida, tinha sido realizado. O outro esperava um dia acontecer: comer um bife de meio metro com 5 cm de altura. Como não havia chegado esse dia, fomos comer pastel no botequim do chinês. E veio a pergunta: sabe por que o chinês tem olho fechado? E veio também a resposta: é por causa da fumaça do pastel... Mas Renato Dantoni, possuia também o seu lado sonhador, que o transportava a outros planos. Certa vez, num papo ao sereno, no banco da praia, dizia ele olhando as estrelas: “Armando, não sei se mereço “subir” depois desta, pois fiz muitas estripulias; mas às vezes fico imaginando como será lá em cima “... O que eu gostaria mesmo de encontrar, não seria nenhum anjo, mas meus pais e alguns amigos que se foram. E pra coisa ser perfeita, a gente deveria poder escolher como gostaria de voltar, caso tenha volta, e fazer tudo que tivesse vontade. Aí encontraria uma mexicana de tornozelo fino e iria andar com ela naqueles barquinhos de Veneza. Depois, jantar nos Alpes Suíços à luz de velas. Também iria pro Havaí nadar naquelas ondas e toArmando Amorim - Memórias
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mar água de coco, no meio de um monte de havaianas dançando o hula-hula e comendo um leitão assado na fogueira. Nesse céu, dizia ele, “eu subo”. E logo em seguida me perguntou: “E você? Gostaria de fazer o quê?” Só pude responder: “ir com você...”
Múcio, o caboclo que deu certo Outro personagem do Leme é Múcio Matheus Capobiango. Confesso que não foi parceiro de tantas noitadas, pois é desses que acorda cedo, que malha, corre e ajeita o corpo sarado e ainda hoje pratica os seus esportes. Mas foi o companheiro diário na Armando Amorim Publicidade e em andanças por aí, há mais de 40 anos. Suas histórias, seus causos, sempre me fizeram gargalhar e ilustram bem a do mineirinho que chega à cidade grande, vindo, como ele, de um lugarzinho que “quase” não existe no mapa: Guiricema. O pai, Miguel Capobiango, filho de imigrantes italianos da Calábria, casado com Dona Rita, foi uma pessoa que fez história no lugar. Colocou naquelas terras mineiras 14 filhos: Maciste, Mirtes, Maria, Maurílio, Maurício, Miguel, Miraci, Múcio, Moacyr, Martinho, Maura, Mauro, Marly e Marino. Talvez não mais houvesse, pois nomes com letra M, de que gostava, acabaram-se.
Mucio em comerciaal da AAP
166 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Eu, Marcia, Mucio e Monica.
Mucinho com o filho e o vovĂ´ Mucio
Mucio curtindo o neto
Rita e Miguel, pais do Mucio.
Marcelo
Mucinho e Mucio
Mucio e Mรกrcia, Monica e Marcelo e a netinha (acho)
Mucio e Marcia levaram Natalia Timberg na minha Expo.
Essa letra “M” para o amigo Múcio, tornou-se uma certa magia, pois a mula que tinha chamava-se “Mineira”, o cachorro “Mossoró”, a mulher “Márcia”, a gráfica “Maio” e até o filho que escolhera para criar, sem saber seu nome, chama-se “Marcelo”. Os outros, Mucinho e Mônica. Também acabou montando o seu negócio em rua que se chama Matheus, que além do M, leva seu sobrenome. Na cidadezinha tranquila de Guiricema, seu Miguel vivia em solidariedade com a gente humilde do lugar e até receitava cha. zinhos e remédios homeopáticos, pois herdara um livro italiano com seus ensinamentos e sabia ainda engessar braço ou perna quebrada. Para qualquer assunto, o velho Miguel tinha a solução e era quem escrevia as cartas para a turma da terra, pouco letrada. Na sua farmácia homeopática, só cobrava de quem tinha. Mesmo assim, quase sempre a moeda era uma galinha e, em caArmando Amorim - Memórias
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sos mais graves, um leitão. E o homem era de coração grande, pois quando recebia bicho de alguém em dificuldade, com jeito dizia: “leve a cabra de volta e cuide dela para mim”. Assim, o bicho continuava do dono, sem ele perceber. Chegou a ser delegado da região, mas nunca portou arma, apesar de haver alguns brabos e pistoleiros por lá. Ganhava todos no papo, com sua sabedoria. Dele, há uma história deliciosa, ou melhor, a mais curta e esclarecedora resposta que já escutei: Não faz muito tempo, do Rio, numa bela manhã, chegaram em seu sítio os amigos do Múcio, uma rapaziada ruidosa e porque não dizer, bagunceira, para passar um dia na paz do seu lugar. Ao entardecer, as nuvens escureceram e ameaçavam temporal. Chega então o Parú, um dos mais “alegres” da turma e comenta: “O tempo tá feio “seu” Miguel... Acho melhor a gente dormir hoje aqui...” E veio a pergunta, esperando apoio: “O que é que o senhor acha?” A resposta séria, chegou curta e definitiva: “sou “suspeito” em falar”. Com o compadre Belardo, que possuia autêntico sotaque mineiro, nunca se acertou. Certa vez estava vendo TV e o compadre passando, perguntou: “Firme, seu Miguel?” - Não, Belardo, novela... Quando os do céu o chamaram, mostrou como era querido na cidade, pois não houve quem não comparecesse. E o mais velho do lugar “Nego Véio”, simbolizou bem essa querência, confessando para o filho Múcio: “Tenho mais de cem anos e num sei os depois; e essa é a segunda vez que desce água dos meus óio. A primeira foi pra minha mãe...”. Foi desse caboclo meio italiano que nasceu o amigo Múcio, um dos quatorze de seu Miguel e que na sua meninice deu muito duro na lavoura. Mas a sua especialidade era a venda. Isso era visível, pois ainda garoto, sem saber, utilizava-se de ferramentas de marketing. Os doces que a mãe preparava, descobriu um modo eficiente de vendê-los: Montado na mula deixava os repartes em cada casa e batia com o chicote na janela, avisando que os doces estavam ali. Depois é que voltava, recolhendo o dinheiro ou a sobra. Como eram gostosas bananadas, laranjadas, doces de cidra, abóbora e goiabadas, a venda era sempre recompensadora. Isso em marketing chama-se “venda espontânea” e ele inventara esse modo, mostrando que iria ter sucesso vendendo alguma coisa. 170 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mucio e Mรกrcia
Mucio Capobiango
Quando havia festa, a estratégia era diferente: cortava os doces em pedaços e arranjava alguém da cidade para fingir que os estava comendo, ao mesmo tempo que exclamava: “Puxa, que delícia!” Aí, a venda não parava mais. Era o tão conhecido “H” dos camelôs atuais. Com as galinhas que ele levava para vender ao entreposto, já contei em outra parte: fazia de tudo para não perder nenhuma, pois o tempo quente e a grande distância fazia algumas baquearem. O jeito, então, era fazer respiração boca-a-boca. E a malandragem vinha no final da jornada, quando mergulhava as bichas no rio, para pesar algumas gramas a mais. E foi especializando-se em vender qualquer coisa. Podia ser cabrito, ovos, frutas e legumes, que sempre descobria a maneira mais eficiente para não haver encalhe. Alguns ensinamentos aprendeu com o Antônio do Juca ou “Cigano veio”, quando certa vez acompanhou a venda de um cavalo. O comprador, metido a sabido, para baratear o preço foi colocando defeito no cavalo: “esse bicho tá com as patas tortas e as pernas arqueadas”. E o cigano rebatia: “O defeito está nos zóio”. E o comprador continuava: “Tá magro e deve estar cheio de verme”. E o cigano novamente rebatia: “O defeito está nos zóio”. Acabou vendendo o bicho e, no dia seguinte, o comprador brabo veio reclamar: “Você me vendeu um cavalo cego, que foi batendo em árvore, muro e quase atropelou uma carroça!” E o cigano calmo explicou: “Não falei várias vezes que o defeito tava nos zóio?”. A lembrança desta história lhe serviu, quando no Rio, Múcio virou camelô, vendendo pentes Flamengo, barbatana, calçadeira, leque e até certa vez, camisas de flanela que chegavam a encolher pela metade. Lembrou então do cigano e as anunciava: “Camisas pra agasalhar pai e filho... uma maravilha de tecido, que faz milagre!” Quando alguém voltava para reclamar que a camisa encolhera, ele justificava: “Não disse que a camisa servia para agasalhar pai e filho”? “Pois é, o pai usa e manda lavar; depois, é a vez do filho”. Antes, em sua terra, sonhava um dia chegar à cidade grande. Pensava e se arguia: “Quem sabe se não vou poder dirigir um avião? Sonho maior, apesar de que nunca tinha visto um, pois em sua cidadezinha, nem avião passava. 172 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Chegou o grande dia. Estava com 17 anos e pronto para os desafios. Viagem longa, mas prazerosa, pois foi conhecendo coisas que nunca tinha visto. E um susto! Chegou ao Rio! Carros, ônibus, lotações em correria e prédios tão altos que não acreditava existir. Sentiu medo daquela misturada confusão, até que chegou à casa do irmão solteiro, são e salvo. Mas o medo voltou , quando o mano avisou que estava de saída e iria passar três dias fora, a trabalho. Rapidamente o irmão mostrou que o apartamento estava abastecido e bastava cozinhar, o que ele sabia fazer mais ou menos. Primeira dificuldade: na hora de preparar a refeição, achou o fogão um pouco estranho, com todos aqueles botõezinhos e, pior, não havia lenha alguma no apartamento. O jeito foi devorar maionese, tomate, cenoura crua e o que era possível. Passou os dois primeiros dias na janela do 13º andar, com vontade imensa de descer e beber um cafezinho quente. Mas o medo de se perder era maior e mais, não entraria de jeito algum naquela geringonça que subia e descia. Mesmo assim, acabou peitando. Antes, porém, foi à janela mais uma vez, reparando cada detalhe, para memorizar: aquele toldo branco, o letreiro amarelo, a banca de jornal e outros pontos. Amarrou então firmemente a chave do apartamento em um barbante e este, no pulso e ficou esperando o elevador descer, com alguém dentro. Pode então tomar o seu primeiro café, ficando um bom tempo prestando atenção de como comprar a ficha. Foi a primeira aventura na cidade grande, mas voltou rapidamente pra casa, esperando, naturalmente, alguém pegar o elevador. Em outra situação, também se atrapalhou. O irmão saiu cedo de casa, deixando um disco do Caymi tocando. Acordou, gostou da música e foi pra perto escutá-la. Só aí vira que o “bracinho” ia e voltava, ia e voltava e a música tocava novamente. Deu vontade de segurá-lo. Mas não ousou. A música só parou à noitinha, com a chegada do irmão. Nunca mais esqueceu: “Minha jangada vai sair pro mar, vou navegar...” Chegou o dia de se apresentar na Aeronáutica e trabalhar. Não Armando Amorim - Memórias
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lhe deram um avião, mas uma vassoura, um balde, a água sanitária e mais alguns trecos e a ordem para lavar vidraças, varrer calçadas e por aí. Não era o esperado, mas teve que encarar. Chegou a lembrar de “Dondinho” naquele dia, o homem mais rico de sua cidade: “bem que eu poderia ter o dinheiro dele e não precisaria fazer isso”. Lembrou-se de como surgia na cidade, com seu cavalo lustrado com óleo de Peroba, botas da moda, chapéu de duzentos contos, revólver brilhando na cintura e sempre com ar superior, dizendo que só usava o que havia de melhor. Mas logo desistiu de ser o “Dondinho”, pois o homem tinha dinheiro, mas a cachola era dura. Lembrou-se da época em que lhe caíram os dentes e o jeito fora colocar dentadura superior com Barboza, o melhor dentista da cidade, pois tudo dele teria que ser o melhor. Tempos depois os de baixo abandonaram também a sua boca e Barboza teve que dar a receita: “Tens que colocar uma dentadura inferior”. Imediatamente deu um pulo da cadeira e com ar de brabo gritou: ”Dentadura inferior na minha boca, nunca!!!”.E completou: “pode botar outra superior aí em baixo!” Virou “Dondinho Superior”, o único habitante do lugar, que possui duas dentaduras superiores. Tempos depois, Múcio já estava morando numa pensão na 2 de Dezembro e como o dinheiro só dava para o almoço, se especializou em “roubar”, de noite, a sopa, que tinha que ser servida fria e sem colher para não fazer barulho. E ensinava os truques para os amigos. Para arrumar mais um dinheirinho, conseguiu depois se transferir para ajudante de pedreiro, pois ganhava vale e poderia comer no restaurante do Saps, que os da antiga conheceram bem. A partir daí a subida aconteceu, quando foi trabalhar no Ginásio da Aeronáutica e fez curso de massagista, chegando a ser o exclusivo do Brigadeiro Eduardo Gomes, Ministro, que foi também candidato a presidente da República. Trabalhou em Academias de ginástica e foi juntando à atividade de vendedor de gráficas e papelaria e acabou sendo o principal homem de vendas da famosa Papelaria Ribeiro, uma das maiores da época.
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Depois veio a Gráfica e Editora Apex, comandada por ele e, finalmente a sua Editora Maio, uma das mais importantes, no Rio de Janeiro e famosa por suas agendas. Passou a ter também outros negócios, como restaurantes, sendo um deles o famoso “Mexicano”, na Lagoa, posto de gasolina, empresa de materiais de construção, construiu condomínios e outras coisinhas. Esta é a história de um caboclo que venceu na cidade grande, e me faz rir nos encontros frequentes, há muito tempo. Poderia ter sido comediante de sucesso ou ator de novela e cinema, pois estampa tem para isso e até jeito, pois estrelou com sucesso diversos comerciais de minha agência e recebeu muitos convites para estrelar outros. É gente supimpa e se especializou em fazer amigos. Quando saíamos pela cidade, a cada dois passos alguém o parava para conversar. Isso me impressionava. Só havia um que poderia competir com ele, em “conhecimento de gente”, pensava eu e comentava com Múcio. Isso porque, com o amigo Joel Vaz acontecia o mesmo, quando íamos a qualquer lugar. Todos o cumprimentavam ou se chegavam para uma conversinha. Poderia ser na rua, no restaurante, numa festa... Era gente demais. Um dia, resolvi apresentar um ao outro. Foi em meu escritório. Quando se viram, uma festa! Muitos abraços, muitos risos e eu com cara de bobo, assistindo. Os dois eram velhos companheiros e mais: Joel Vaz tinha sido marido de sua irmã. Pode isto? Em tempo: um dia, Múcio já casado e com filhos, dinheirinho no bolso, vivendo uma boa vida, encontra Dona Alzira, a dona da pensão. Depois de muitos abraços e a festa do reencontro, ela não deixou de comentar: “como vocês gostavam da minha sopa...”
Um pirado da zona sul Outro personagem nada convencional que encontrei pelas bandas da zona sul foi Paulo “Pirado”, com residência na Rua Rainha Elizabeth, mas frequentador do pedaço. Na verdade, seu primeiro Armando Amorim - Memórias
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apelido não fora este. Originalmente atendia por Paulo “Pirata”, que de certa forma era relacionado ao pai, almirante. Dizia-se que o apelido fora dado, pois era o oposto do velho marujo graduado, homem rígido de princípios e atitudes. Se Paulo era meio moleque, meio doido, um “porra-louca”, só podia ser “pirata”. E assim ficou Paulo “Pirata”, filho do almirante. Muitos, porém, acabaram confundindo “pirata” com “pirado” e ele acabou sendo mesmo Paulo “Pirado”, na verdade, até mais adequado. Isso podia ser percebido facilmente, pois estava sempre aprontando alguma estripulia ou coisas que as pessoas de bom senso não ousam. Uma, das muitas, aconteceu no posto 6, onde havia e ainda há, a Colônia dos Pescadores. Era lá que esparramava os seus um metro e noventa na areia, no banho de sol matutino e preguiçoso, pois só trabalhava das 14 às 18 horas, numa repartição do governo. Diga-se, de passagem, conseguido com pistolão do pai. Certo dia, Paulo empombou-se com alguns pescadores da Colônia, não se sabendo o motivo, que deveria ter sido fútil. Mas a discussão foi tomando vulto e estava perto de saírem na porrada, o que Paulo Pirado detestava, diziam alguns, por pura preguiça. Também, o certo, naquelas circunstâncias, era ele não brigar, pois a turma de lá, somava mais de dez, alguns com músculos de halterofilistas. Foi aí que Paulo apelou, naquela mania dos velhos militares e quis ganhar no grito: “Sabe quem sou? e arrematou: “Posso acabar com essa Colônia hoje mesmo”! A reação foi instantânea; alguns riram e outros fizeram ar de deboche, o que irritou profundamente o nosso personagem. Não querendo perder a parada, lembrou que guardava em casa, como lembrança, a farda de almirante do pai, já falecido. Não deu outra; em poucos minutos estava ele de volta, paramentado de Almirante, com todos os bordados, galões e até medalhas e broches. É verdade que a farda era um pouco menor, deixando o paletó apertado e a calça “pescando siri”. Mas seguiu garboso, meio que marchando em direção da turma e enquadrou a todos: “Você aí que riu, já viu algum almirante de perto?” “Por acaso vocês sabem quem manda nesse mar que vocês pescam”? E foi desfilando uma série de iniquidades pra cima daquele pessoal humilde, alguns já assustados e outros, esgueirando-se. 176 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Foi aí que o mais falante tomou a frente, contornando a situação: “Doutô Almirante, nós semo da paz; nóis num quis brigá com o sinhô. O sinhô nos disculpe; nóis vivemo aqui só pra pescá uns peixinho...” Apesar de meio doido, Paulo “Pirado” era de coração imenso e não deu outra: saiu abraçando todo mundo, ao mesmo tempo que dava a última ordem: “Vamos selar a amizade, tomando uma cervejinha”. E no botequim “pé-sujo”, o “Almirante Pirado” foi tomando umas e outras e já estava no maior porre quando a rapaziada amiga chegou justo no momento em que ele reunia os seus “marujos” para sair em passeata pela praia: “Vamos tomar o poder desses milicos f.d.p.!”. Com calma, os amigos lhe tiraram o casquete e o paletó, colocando-os numa sacola e carregaram o “almirante” pra casa. Principalmente porque, a ditadura estava no seu momento mais duro, mais violento. Neste dia, onde pudesse estar o pai, na certa deve ter morrido pela 2ª vez. De raiva. Mas o pessoal morreu de rir. Esse era o Paulo Pirado, que certa vez levou o cachorro poodle ao cabeleireiro e mandou oxigená-lo, para agradar a mãe. Quase foi expulso de casa.
Menelão, esquecido e distraído. Personagem que andava na noite e que muitas vezes encontrei era o “Menelão”, cujo nome verdadeiro nunca soube. Seu ponto favorito, o barzinho do Leme, onde o Johnny Alf tocava o seu piano. Foi o cara mais distraído que conheci. Quase sempre alguém tinha que ajudá-lo a procurar seu carro, pois ele, volta-e-meia, esquecia onde teria estacionado. Era assim, sem beber uma gota de álcool. Meia de cores diferentes em cada pé vi algumas vezes. Mas sapatos de estilos diferentes me contaram que ele pôs nos pés, sem reparar. E virou personagem folclórico o Menelão, e teve gente que afirmava tê-lo visto com a barba feita pela metade, outros dizendo que era comum ele aparecer com a camisa pelo avesso. Certa vez, não reparou que uma das lentes de seus óculos tinha caído e foi ao oculista reclamar que não estava enxergando bem. Seu companheiro mais chegado, o Hugo Carpina, muito gozaArmando Amorim - Memórias
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dor, se deliciava em contar as distrações do Menelão. Uma delas, de tanto repetir, chegou a aparecer em livro de humoristas, como piada. Dizia o Carpina, que o fato aconteceu depois do Menelão se separar da mulher, que ele afirmava ser desleixada, não tratando dele e da casa, como devia. Foi então morar num pequeno apartamento na Prado Júnior e não acostumado às tarefas do lar apelou. Distraído como era, leu um pequeno anúncio, desses que saem no jornal, colocados por mulheres que exercem a profissão, dita de “vida fácil”. Dizia o anúncio: “Loura especial faz tudo o que a sua mulher não faz”. Era isso que ele precisava. Telefonou e logo depois a campainha tocou. A loirinha de sainha curta, toda serelepe entrou e Menelão foi logo perguntando: “ A senhorita faz tudo mesmo que a minha mulher não faz? E a loirinha fazendo trejeitos: “É... faço...” E veio então às ordens: “quero que você lave a pilha de pratos que está na pia, varre a casa, aspire o tapete, arrume o meu quarto, coloque a roupa suja na máquina. E se sobrar um tempinho, engraxe os meus sapatos...” Era assim, o distraído Menelão.
Mica e Zé Trim, meus amigos. Dois meninos - um que vendia balas e pastilhas e outro vendedor de amendoim torrado foram meus companheiros em diversos jantares e me emocionaram muitas vezes. Isto acontecia sempre no restaurante Mab´s - esquina da Prado Júnior com Atlântica e os danadinhos me ensinaram muitas coisas da vida, simplesmente contando fatos e histórias. Gente miúda e bem simples, os dois possuíam incrível bondade e enorme solidariedade, que me faziam ficar bem menor que eles. “Zé Trim”, um pretinho de treze anos, magrinho, dentuço e de olhos grandes e expressivos era quem vendia os amendoins. De pai que não conheceu, vivia com mais duas irmãs, de outros pais, que também desapareceram. A mãe, que precisava tomar conta das crianças, só podia ganhar uns poucos trocados com a roupa que lavava, para fregueses também pobres. Portanto, a manutenção da casa estava no amendoim que ele mesmo comprava e preparava, com a ajuda de um cozinheiro de bom coração, do “Beco da Fome”, que depois do expediente, lhe torrava os amendoins. Isto porque, morava na “baixada” e seria caro e di178 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
fícil ir e vir diariamente. Assim, de terça a domingo dormia na rua, sem antes deixar, toda noite, o dinheiro arrecadado, com o jornaleiro da Prado Júnior. Segunda-feira “visitava” a mãe e entregava o produto da venda. Mesmo com essas dificuldades, se considerava um menino feliz: “Há muitos bem piores do que eu, que vivem cheirando cola, roubando, e nem casa têm”. Era verdade, pois exibia permanentemente um sorriso, que assegurava o que dizia. Um de seus passatempos me confidenciava: ficar olhando o mar, pensando como seria o mundo do outro lado. Seu sonho era ser um dia marinheiro, para conhecer outras terras. E me pedia para contar como eram esses lugares, que estavam depois do mar. Certa vez sumiu quase um mês, depois do carnaval, e nem o Mica, seu companheiro, sabia o que acontecera. Mas em certa madrugada surge “Zé Trim”, com o sorriso de sempre. Fui logo querendo saber: O que aconteceu moleque? E ele, continuando com o largo sorriso, explicou: “ganhei um bom dinheirinho no carnaval, pois a rua estava cheia de gringos”. Justificou: “Eles me deram até notas de dez dólares”. Perguntei: aí você tirou umas férias? - “Nada disso “seu” Armando; é que lá perto onde eu moro, mora o “seu” Zequias”’ e o barraco dele caiu com a chuva. Como ele só tem uma perna, todos nós tivemos que ajudar o homem a construir de novo o seu barraco. Como “eu tinha ganhado mais dinheiro do que ganhava, pude deixar de vender amendoim esses dias...” Fiquei por momentos calado e sentindo ... Isso é solidariedade de verdade. Mas Mica, seu companheiro que vendia balas, não era menos especial. Branquinho, cabelo sarará, sardas em todo o rosto, na época tinha 16 anos, mas altura de um menino de 9 ou 10. Isto porque, até os 11 anos, por causa de uma atrofia nas pernas, viveu deitado numa cama. Certo dia, apesar de os pais afirmarem ser impossível, resolveu andar. E andou. Quem o conheceu, podia verificar que seria impossível, mesmo com a assistência de fisioterapeutas, fazer aquele menino Armando Amorim - Memórias
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andar. Tortas, finas e retorcidas, era contra qualquer lei de gravidade, imaginar que aquelas pernas poderiam sustentar um tórax, os braços e a cabeça, normais; muito menos andar. E me explicou como foi: inicialmente, durante meses, ficava de um lado para outro num pequeno corredor da casa, segurando nas paredes. De início caía muito, várias vezes por dia. Caía, mas voltava a tentar os passos. Para encurtar essa valente história, depois de dois anos já conseguia andar, sem segurar em nada. Quando o conheci, andava com certa destreza, naquelas pernas tortas e atrofiadas, do Leme ao Posto 6, ida e volta, vendendo as suas balas. Voz calma, pausada, Mica era mais “papo cabeça”. Explicava o que passava em seus pensamentos, no tempo em que vivia preso à cama. E assim fiquei sabendo que não foi só por ele que resolveu andar. De família muito pobre, acompanhava os problemas de casa, as dificuldades dos pais em manter a ele e aos irmãos - um deles morto tragicamente, o que lhe trouxe grande tristeza. Enfim, seu sonho maior era poder trabalhar, para ajudar os pais, que ele tanto amava. E amava-os com tanta intensidade, que ao falar deles, às vezes uma lágrima de emoção rolava, naquele rosto quase sempre alegre. Sem nunca me contar, certa vez soube pelo “Zé Trim”, que todo o dinheiro que ganhava, Mica entregava aos pais, separando uma pequena parte para dar a um vizinho - mais pobre do que ele - que já bem velho, cuidava da mulher, cega. Mais uma lição de solidariedade, de amor ao próximo. Mica era um bom compositor e gostava de mostrar os sambinhas que fazia. Certa vez me presenteou com um caderno, repleto de poesias que tinha criado. Me estarreci de vez: quanto sentimento, quanta coragem e compreensão da vida; quantas vontades e sonhos estavam ali expostos. Como nascera no dia 25 de dezembro, cheguei a desconfiar... E, naquela noite, não pude resistir e escrevi dele:
NATAL Josemir. Podia ser José das Miragens. Ficou sendo simplesmente “Mica”. Do ventre chegou com pernas paradas. Torcidas. 180 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Até os onze anos sabia que andar não era para todos. Arrastavase, pedia, arrastava-se. Um dia cismou em ser gente. E de pé ficou. E de pé está! De Imbariê chegou ao sul da cidade. “Uma é três. Duas é cinco. Pastilhas para comer. Pastilhas para viver. De quem o gerou, chegaram mais seis e ficaram cinco. O irmão, que amava, foi encontrado morto, embrulhado em jornal. Vida dura. Vida mais que imperfeita a do Mica. Fala mansa, vai contando sonhos: casa bonita para a mãe; TV; que sonho! Mas só quando a luz chegar. Para o pai, uma bicicleta nova. Tristeza? Só vai ter quando a mãe se for. Nasceu no dia 25 de dezembro. Assim, valeu a vida das madrugadas. Conhecer “Mica” e “ Zé Trim” me fez entender um pouco mais a vida e seu sentido. Para confirmar o que digo, certa vez ofereci emprego aos dois na Armando Amorim Publicidade, para ficar mais perto deles. O dia que resolvessem, era só chegar e começar a trabalhar. E apareceram. O Mica passou a fazer trabalhos internos e o “Zé Trim”, serviços de rua. Ficaram lá por algum tempo, mas apesar do salário ser maior do que ganhavam com balas e amendoins, um dia resolveram voltar para a rua. Fiquei pensando que talvez a liberdade em ter o próprio negócio - como eu - valia mais do que o dinheiro que estariam ganhando. Isso é bem possível, apesar de que nunca me explicaram. Continuamos amigos, para a minha alegria.
Um encontro Há encontros que se apegam na gente e há dias que não se esquece. Vários, tive os dois. Nesse que conto, me preparei como se fosse ganhar o melhor presente: praia tranquila, longe das correrias, na ainda desabiArmando Amorim - Memórias
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tada São Pedro d’Aldeia. Isto porque, há mais de quarenta anos, só havia de frente para o mar uma casa, dita de veraneio; as outras, modestas, eram de pescadores que viviam lá deste ofício, há muitos anos. Acabei ganhando esse e mais um, pois encontrei alguém... Bem, não sei como dizer quem foi... Era eu o convidado de Ivete e de família amiga de Juiz de Fora, mas a minha chegada seria uma semana antes. Bastaria apanhar as chaves com seu Tonico, dono do Bar Sereia, localizado na única pracinha do lugar. Sempre distraído, o ônibus que viajei passava ao largo de São Pedro, a uns três quilômetros da cidade, o que me fez carregar pesada mala, até encontrar o bar que já estava fechado. Pontualmente o relógio marcava meia noite e as únicas coisas que se mexiam na paisagem, eram alguns cães vadios. Não havia nenhum ser de alma, apesar de não duvidar que eles possam ter. Mas me ignoraram ou não me repararam, pois latidos não ouvi. A cidade dormia no silêncio, até que visualizei a certa distância, alguém sentado na soleira de uma casa amarela. Era ele a única possibilidade em saber onde seu Tonico morava. Fui ao seu encontro e na indagação, recebi em resposta, um riso farto, somente. Mais uma vez confirmei a pergunta e novamente o riso, agora junto a um cacoete que remexia os músculos da face. Pensei logo estar diante de um cara desses a quem se chama de “doidinho”, “pancada”, ou “pirado”. Para me certificar, pois nele não havia sinal algum de bebedeira, quis saber seu nome. Nenhuma resposta e olhar vago. Sem ter a certeza se era doido ou surdo, o jeito foi deitar no banco da praça e aguardar o Bar Sereia abrir. Pouco depois ouço passos e vejo diante de mim o “doido” sorrindo e logo se ajeita na mureta do jardim, a dois metros de onde me encontrava. Alguns minutos de olhar fixo e escuto dele uma frase: - “Você vai navegar no barco azul”... Invadiu-me certo ânimo e para continuar a conversa retruquei: - a que horas passa por aqui? Respondeu: -“ Vai demorar”... Mais algum tempo se passou e ele me fitando com expressão feliz, afirmou: - “a sua mão vai ser de ouro”... Já estava na certeza que o homem era doido mesmo quando, sentando-se no gramado e olhando para cima, apontou estrelas: - “elas brilham, porque o céu é escuro”. Era a primeira frase com sentido. Respondi: - com 182 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
certeza; e aproveitei de sua lucidez, para saber onde morava o dono do bar. Nenhuma resposta sobre o que eu precisava saber; mas falou: “- Você vai pintar a japonesa”..., voltando ao seu sem sentido. Olhou então para a flor ao lado, um crisântemo alaranjado, e falou solenemente: - “a planta come a terra, para fazer a flor”... De certo modo, tinha razão, pensei. E o meu companheiro da noite foi desfilando algumas frases e mais uma ainda me lembro: - “Você vai ter um anjo só teu”... Essa e as outras que aqui repito, foram as que ficaram na memória. Amanhecera e, finalmente, pude me servir de um bom café no Bar Sereia, em companhia do amigo “doidinho”, meu convidado. Já com as chaves e a orientação de como chegar ao meu destino, me despedi e fiz a última tentativa para saber o nome do estranho companheiro. Voltou ao primeiro sorriso e me disse: “Quem pegou o ônibus, não passou pela estrada”... E se foi. Depois do sono reparador e estando só, voltei à cidade para algumas compras. Ao passar pela casa amarela, ainda tentei encontrar o “doidinho”. Ficaram em mim aquelas frases e havia certa curiosidade para descobrir a sua razão. Haveria de ter. Passei no Bar Sereia para um cafezinho, também para saber com seu Tonico, o nome do personagem que esteve comigo e quem seria ele. A resposta me deixou mais confuso: - “Não mora na cidade... nunca o vi por aqui”... Fui jantar, pensando no estranho encontro, na certeza que era um andarilho doido, seguindo por aí. Mas não vestia trapos nem rasgos. Nos pés, uma botina preta, calça jeans bem cuidada, camisa branca e capote marrom, de lã grossa. Não carregava sacola, mochila e não se via qualquer volume em seus bolsos. Também, onde teria feito a barba, pois havia sido cortada, a cerca de dois dias. Não mais. Reparei ainda, que o cabelo liso, repartido ao meio e raspado nas laterais, não o deixava ser confundido com alguém que sai por aí, sem rumo. Quem seria então? Continuei a tentar descobrir o significado das frases soltas, já desconfiando ser o doido eu, querendo compreender o que um doido diz. Mas quando falou das estrelas, talvez estivesse querendo dizer, por metáfora, que o que faz alguém se destacar é a mediocridade dos que o cercam. Teria ele razão? Poderia ser também, que a escuridão estaria simboliArmando Amorim - Memórias
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zando a plenitude da humanidade e os que brilham, são os que transbordam em vaidade; disputam luzes escancaradas para serem notados. Ou brilham porque merecem; possuem luz própria. Será? Não sei, em verdade, o que o “doidinho” quis dizer. Mas alguma mensagem nela haveria. No caso da flor, estava bem explícito, que a terra era o alimento da planta, para que pudesse produzir a flor. Mas, também, poderia a flor representar o amor e a planta, qualquer um de nós. Necessitamos de nutrientes como a solidariedade, a fraternidade, a humildade, para chegar ao amor pleno. Mas, e no caso do ônibus? A frase continuava em mim: “Quem anda de ônibus não passa pela estrada”. Certa noite levantei-me da cama emocionado. Era o óbvio! Exclamei. Claro que para passar pela estrada, precisamos colocar os pés no chão! Caso contrário, foi o ônibus que passou e não nós. A estrada nada mais é do que a nossa vida, com descidas e subidas... Talvez alguns buracos... Curvas calmas e outras não. Pedras a incomodar nossos pés. Mas também flores nas beiradas, árvores que nos ofertam sombras, borboletas e pássaros como companhia e a imaginação vai por aí. Alegrei-me em perceber que para passar pela estrada, pela vida, há que se sentir, não o ar condicionado do ônibus, mas o ar que nos envolve, sem nenhuma condição. A viagem pode ser boa ou não; vai depender da maneira de cada um caminhar. Portanto, as três frases com sentido, encerravam talvez uma trilogia: humildade, amor e vida. Poderia ser. Dias se passaram e esqueci o companheiro, pois a amizade agora era com os vizinhos pescadores, que gentilmente me ofertavam camarões secos ao sol e melhor ainda, as suas histórias e moda de viola, no final das tardes. Certo dia, o convite para ir colocar redes no mar. Emoção para rapaz da cidade. Ao voltar, já se pondo o sol, olhando o mar, fiquei me deliciando com a paisagem. Foi aí que reparei: tinha navegado no barquinho inteiramente azul. Era a afirmação do “doidinho”! E poderia ter sido nos brancos, amarelos, verdes com faixa vermelha. Mas me colocaram no azul; o único que se vestia dessa cor. O “doidinho” acertara, como uma premunição. Achei estranho a “adivinhação”, mas também esqueci do ocorrido, pois os amigos chegaram de Juiz de 184 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Fora e as férias continuaram em outros programas e diversões. Alguns anos se passaram e conheci Helena Ikeda, filha de imigrantes japoneses que além de atriz do Teatro Kabuti, era uma apaixonada pela arte do país de seus ancestrais. Mostrava-me com entusiasmo, como era representativa a sua pintura, com símbolos extraídos de antigas lendas. Acabei fascinado também, e “mergulhei” em livros de arte, de histórias milenares daquele povo e sua cultura. Em pouco tempo estava pintando gueixas em telas, que se transpuseram para roupas pintadas e até galhos de cerejeiras andei fazendo nascer em murais. Muito tempo se passou quando, lembrando do “doidinho”, recordei a frase solta, sem sentido: ‘- Você vai pintar a japonesa”. Incrível! Concentrei-me então para lembrar as outras frases que me tinha dito, mas só duas pude recordar. Uma delas, sem que eu percebesse na época, já havia acontecido. Para adormecer a filha Bianca, inventava histórias com um personagem. Tratava-se de um anjinho moleque, meio safadinho, mas que fazia mil aventuras, para salvar a natureza. Acabei criando o “Nuvinho Verde e Azul da Silva”, história que conto em outra contação. Era adivinhação demais, pensei eu, o “doidinho” acertara mais uma vez, quando disse que eu teria um anjo, só meu. Apesar de ter certeza que possuía outro, muito mais importante, que sempre me deu uma mãozinha nas horas complicadas. Comecei a pensar, a conceituar diferente o “doidinho”. Seria um anjo? Um sábio? Um advinho? Que personagem teria sido aquele homem, de rosto quadrado, de risos fartos e frases soltas? Não sei. Até agora só não decifrei o enigma da “mão de ouro”. Já tentei. Quem sabe se a minha mão vai produzir uma notável obra de arte... Mas isso é pretensão, sem razão. Talvez o meu personagem confundisse ouro com platina e irei colocar nela, pinos. Ruim. Ou será alguma doença, que não conheço, e torna a mão amarela... Icterícia?
Armando Amorim - Memórias
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Como não sou pessimista, espero que acerte os seis números da sena. Esta semana ela está acumulada e vou jogar. E torcer pelo “doidinho” acertar.
A mãe do Zé Flor Dizem que atraio os doidos, sejam eles explícitos ou não. Insinuam até que eles têm razão em se identificar comigo. Mas não é bem assim. De certo modo os considero pessoas especiais, vivendo em outras dimensões, muitas vezes até atraentes. Posso dizer que alguns deles me ensinaram verdades não percebidas, distante que estão do mundo dos chamados normais. Pude reparar nesses encontros, que há neles, bondades tão intensas, que me fazem pensar que se desligaram desse mundo real, por discordarem dele. Assim, mudam de sintonia e vão viver como os poetas em seus transes. Fazem-me pensar mesmo, que vivem em realidade, as utopias e os sonhos do poeta, no seu mundo mágico da imaginação. Também tenho a impressão que Deus os criou, para nos fazer entender a ternura. Encontrei certo dia Zé Florêncio, gente simples, de poucas letras, mas de imensa pureza. Era por todos considerado doido e o tratavam como tal; ou seja, de acordo com o “normal”, poderiam ser ações e expressões de medo, zombaria, pena ou descrédito ao que dizia. Pela missão que desempenhava, Zé Florêncio me parecia mais um anjo chegado por aqui, ou um duende que crescera. Em seu mundo encantado Zé Florêncio cuida da natureza. Das árvores em particular. Se alguma estiver machucada, ele amarra ervas no ferimento, acreditando que vai curá-la. Mas se mostrar sinais de que vai morrer sentindo-se impotente ele então apela para a reza, suplicando a cura. E consegue. A elas dedica intenso amor e amizade sincera e em algumas coloca até nomes femininos. A “Suzete”, uma bela quaresmeira, enquanto “Jacyara”, a acá186 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
cia que enche de amarelo a entrada de nosso sítio. Há ainda a “Lurdinha”, a “Marly”, a “Oscarina” e outras que não me lembro. A relação para cada nome não me contou e nem perguntei, resguardando seus assuntos íntimos. Assim, na imaginação foi formando o seu bosque de amigas ou amores imaginários. Isso para nós, pois para ele são verdadeiros, pois com as árvores o Zé conversa, conta as suas mágoas e as alegrias também. Essas atitudes me fizeram abreviar o seu nome para Zé Flor, bem melhor do que Zé Maluco, Zé Doido, como os outros a ele se referem. E dizem ser um maluquinho sem cura, pois conversa com árvores desde os nove anos, logo após a morte da mãe. Em verdade, com gente ele conversa com poucos. Eu sou um dos privilegiados por sua amizade, iniciada no dia em que recolhi algumas mudas de pinheiros nascidas das pinhas caídas em meu sítio e pedi que Zé Flor as plantasse onde pudessem viver melhor. Senti nele profunda alegria e a partir desse dia nos tornamos amigos. Encontrei uma das pessoas especiais nesses anos de caminhada. E mais: ensinou-me sentimentos que a vida tem e que havia passado por eles sem notar. Fez-me reparar, que em alguns, a sensibilidade alcança além da realidade convencional, mas é certo de existir e ser percebida por pessoas especiais, como Zé Flor. Pude assim entender a sua alma, o estágio de pureza que alcançou e, portanto, tem o direito e o poder de conversar com as árvores. Depois de conhecê-lo, tenho agora a certeza que isso é possível. Confesso que ainda não consegui, pois há a necessidade em se chegar ao grau de purificação que Zé Flor alcançou. Mas já agradeço o doce gosto que as jabuticabeiras me ofertam. Passamos então a conversar com certa frequência, pois não resisto em chamá-lo para uma prosa. Fiquei sabendo que vive totalmente só e não conhece parente algum. Somente vaga lembrança de uma tia, que mora lá pras bandas de Pati do Alferes; mas não é vista há muitos anos. Mas o papo que Zé Flor gosta mesmo é de contar fatos de suas amigas e deste seu encantado mundo. Assim, fiquei sabendo que árvore ri, chora e até se emociona. Carinho elas adoram, como Armando Amorim - Memórias
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qualquer um de nós. Quando se tornam secas é porque estão sofrendo alguma desilusão ou grande tristeza. Certo dia, quem me procurou foi ele. Chegou a meu canto um pouco agitado; ou melhor, muito emocionado. Para acalmá-lo, mandei fazer um café e fomos sentar entre vários eucaliptos, em pequeno bosque do sítio, apesar de que dessas árvores ele não gosta. Nunca soube por quê. Zé me conte o acontecido! Você me parece alegre, mas também nervoso, argumentei. - “Seu Armando, hoje fui levá umas incomenda nos Imbuí e encontrei uma arvre deferente; munto bonita. Ela me oiou com um oiá tão bom, que tivi di pará. Me fez ir inté ela e cumecei a fazê um carinho nela. Dei também um abração bem apretado, bem moroso e fiquei uns tempo assim cum ela. Cunversemo, contei pra ela as minhas coisa e fiquei cum certeza qui ela gostou de mi vê, de mi iscutá. Pois quando mi dispidi e dei um beijo nela, ela se imbalançou todinha! E tava tudo desventado... num tinha um tiquinho de vento! Eu juro! Me diz seu Armando, o sinhô que é aletrado, sabi das coisa: mãe quando morre podi virá arvre? _ Claro Zé! _ Entonce já sei. É ela...
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Uma época de notáveis Tempo de encantamento Para situar a época de nossa mocidade - meados de 50 e década de 60 - é bom lembrar que foi um tempo em que o Rio de Janeiro era agitado, inteligente e glamoroso. Era assim, talvez, pela coincidência de conviver nesta mesma época, gente notável e criativa, em todos os cenários. Estiveram juntos, os nossos maiores cronistas: Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Otto Lara Resende, Henrique Pongetti, Adélia Prado, Ruben Braga, Carlinhos de Oliveira, Antônio Maria, Sérgio Porto, Elsie Lessa, Raquel de Queiroz, Arthur da Távola e outros, alguns bem novos, mas todos nos fazendo observar detalhes da vida que não percebemos, ou nos fazendo notar, como era o Rio de Janeiro que habitávamos. Uns falando com cara mais séria e outros com jeito moleque e divertido, como o Stanisláu Ponte Preta. Em 1953 surge entre nós o cinema novo, aparecendo Nelson Pereira dos Santos, com seu “Rio 40 Graus” e “Rio Zona Norte”. E foram chegando Cacá Diegues, Joaquim Pedro, Zelito Vianna, Arnaldo Jabor, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Flávio Rangel, Neville de Almeida, Domingos de Oliveira e mais um punhado. Ainda, se quiséssemos gargalhar, bastava assistir as chanchadas da Atlântida, dirigidas pelo genial Carlos Manga, com Oscarito, Zé Trindade e Grande Otelo. Notáveis. Economizavam os nossos neurônios, mas o fígado agradecia. Nas artes plásticas, convivemos com Portinari, Antônio Bandeira, Antônio Dias, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Di Cavalcanti, Djanira, Aluísio Carvão, Faiga Ostrower, Maria Bononi, e uma lista infindável, sem falar do poeta e crítico Ferreira Gullar, que nos ensinava a arte moderna, além de ter sido um dos criadores do movimento neo-concreto. Também se aprendia com Quirino Campofiorito em sua coluna no jornal Correio da Manhã. Em l959, assistimos a revolução na música popular, quando Armando Amorim - Memórias
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João Gilberto canta “Chega de Saudade”. Surgia a bossa nova e o tempo de saldar o sol, o mar e a garotada bronzeada. Juscelino era o nosso presidente “alegria”, esbanjando sorrisos e ninguém se importava se o que estava fazendo era certo. Valia mais o bom humor. Oscar Niemeyer construindo Brasília, com a sua monumental arquitetura, talvez inspirado na sinuosidade do Rio ou das cariocas. E tínhamos Lúcio Costa, o notável que planejou a capital. Alguns políticos faziam fama, como o controvertido Governador Carlos Lacerda, que muito inovou, construindo, inclusive o Parque do Flamengo, com jardins de Burle Max, que transformou o cenário da cidade. Na religião, tínhamos um Dom Helder Câmara; no teatro, Nelson Rodrigues e Vianinha e, no futebol, os dribles de Garrincha, a irradiação de Oduvaldo Cozzi e os comentários de João Saldanha. Era muita gente boa, junta. Em 1961 o Rio de Janeiro não é mais a capital e o CPC - Centro Popular de Cultura da UNE, leva peças e shows para ruas e favelas. E a cultura vai se espalhando em redutos onde não chegava. Foi um tempo de movimento cultural intenso e para noticiar o que acontecia, havia muitos jornais, alguns até hoje circulando e mais o Diário de Notícias, O Jornal, Correio da Manhã, Diário Carioca, Última Hora, Diário da Noite, Tribuna da Imprensa, e revistas como O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos e, mais adiante a Realidade, que fez sucesso. Finalmente, fomos leitores privilegiados do Pasquim e Opinião. Bem longe da gente, vivia a turma da “champanhota”, das colunas sociais, que era rotulada de “gente bem”. E o colunista Maneco Muller - Jacinto de Thormes - e depois Ibraim Sued, nos faziam saber que existiam Lourdes Catão, Beki Klabin, Teresa de Sousa Campos e seu “Didu”, Carmen Mayrink Veiga e outros colunáveis, como o nanico Jorginho Guinle, que colocava salto carrapeta e dizia que transava as estrelas famosas de Hollywood - do que sempre duvidamos. Chega o golpe de 31 de março de l964 e mais adiante o AI 5 bagunça o nosso Rio e todo o país, perseguindo os artistas e intelectuais e o que sobra são os protestos em suas obras. Desarrumaram o nosso sonho. 190 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Na resistência surge no teatro de Arena, o show Opinião, criado por Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, João das Neves e outros, dirigido por Augusto Boal e estrelado por Zé Keti, João do Valle, Nara Leão e depois Maria Betânia. Era a reação da música contra a ditadura militar. Em 1965, o primeiro disco do notável Chico Buarque: lírico, poético e inteligente. Um gênio. Surgem então os festivais e aparecem Geraldo Vandré, Sidney Müller, Edu Lobo, Milton Nascimento e uma turma maravilhosa; e nós íamos nos despedindo de nossa mocidade. Medidas mais violentas da ditadura vão sendo anunciadas e a época notável vai terminando. O Rio vai ficando meio cabreiro..., perdendo a sua graça. O Golpe e a sua duração, certamente fizeram o país se retrair, pois os criadores, em todas as áreas, estavam impedidos de expor as suas ideias, os seus conceitos, pois nada se permitia... A censura violenta chegava ao ridículo de proibir o livro de arte “A História do Cubismo”, pois, “quem sabe, são esses cubanos querendo se infiltrar”... E até a coluna de gastronomia de Luis Lobo foi censurada, por causa do artigo: “O Regime não Presta”. Desvio-me de situar a época em que vivemos a nossa mocidade no Rio e o que nos influenciou, para reclamar a falta de apoio à cultura brasileira, hoje, que é altamente taxada, enquanto fornece incentivo à importada. As leis de incentivo criadas só servem para escamotear impostos, transformados em estratégias de marketing das empresas. E ainda tem gente no Governo querendo determinar que projeto deva ser feito, orientando o caminho da cultura brasileira. Pode? A única cultura que se promove aqui é a da soja, que bate recordes em produtividade, em faturamento, recebem incentivos, esquecendo-se da outra que não enche barrigas, mas fortalece a cachola, o que é prazeroso. Apesar de ser deixada ao deus dará, e atravessar longa ditadura que atrapalhou as nossas ideias, conseguimos um saldo bem favorável. Podemos afirmar que não somos um país só bom de futebol e carnaval, como muitos insistem em afirmar. Possuimos uma cultura invejável, ao mesmo tempo riquíssima e diferente, ainda pouco conhecida lá fora e muito desperdiçada aqui dentro, que cismam, muitas vezes, em dar valor, ao que nos é imposto Armando Amorim - Memórias
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pela forte mídia internacional. Talvez, poucos países do planeta possuam tanta quantidade e qualidade de talentos, graças somente ao seu povo. Evidentemente ela não surgiu do nada. Os ingredientes vieram de fora, em sua maior parte, mas nós soubemos misturá-los, na tal antropofagia. Sabemos que a nossa cultura foi e é o produto da transculturação, pelo contato entre grupos que participaram de nossa formação: portugueses, indígenas e negros africanos. E, se andarmos para trás, lembramos que houve celtas e iberos nas origens do povo português e mais tarde romanos, germanos e árabes. Além da mestiçagem física e sociológica, evidentemente, houve a cultural também. E é isso que a tornou ímpar e rica, com tanta criatividade e diversidade. Ainda nela se misturaram a cultura dos judeus e de povos invasores, como a dos franceses e holandeses e depois, a bem-vinda chegada dos imigrantes italianos, alemães, espanhóis, árabes, japoneses e tantos outros. É desse processo transcultural que se formou a cultura brasileira, que pode ser vista por sua riqueza nas danças, na música, nos folguedos, nas artes plásticas, no artesanato, na criação literária e até na linguagem, que apesar de portuguesa, incorporou palavras e expressões que o povo criou. Hoje, apesar da pressa globalizada, incontrolável, a antropofagia tupiniquim ainda não sofreu indigestão. Continuamos a deglutir e digerir outras culturas. Quando seu sabor não nos apetece, há a criatividade em anarquizá-las, tornando-as até saborosas. Parece que já estamos também sendo deglutidos culturalmente. Apesar de que os canibais que andam por aí prefiram outro prato: as nossas riquezas. Mas isto é outra história. Voltando lá atrás, nossas características culturais, surgem mesmo antes da Independência, pois está bem presente no Brasil Colônia, não só nas manifestações literárias, como na criatividade barroca do século 18, com formas populares e mestiças. É bem verdade que no século seguinte o Brasil, já independente, incorpora a “invasão” da cultura francesa, quando viraram moda os colégios, a roupa, o mobiliário, os restaurantes e a arte, naturalmente, trazidos e cultuados pelas elites. O que de certa maneira foi uma pitada de bom tempero. Mas o brasileiro soube fazer a 192 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
misturação já iniciada, e conseguiu também se fixar nos modelos locais, nossos, principalmente na expansão do romantismo. Surgem assim os temas indígenas de José de Alencar, nos romances “O Guaraní”, “Iracema” e outros, e aparecem também, na poesia de Gonçalves Dias. Ao se chegar na Semana de Arte Moderna, o elemento indígena está em “Macunaíma” de Mário de Andrade ou em “Cobra Norato”, de Raul Bopp. Tal como acontecera antes, no romantismo, também no modernismo há a valorização do índio e também do negro, como a poesia moderna de Jorge de Lima, em “Essa Nega Fulô” e tantas outras manifestações da prosa e da arte. Na música, Carlos Gomes glorifica o índio, em “O Guaraní” e o negro, em “Os Escravos”. E em todas as formas de danças, cantos, festas, artesanatos e outras artes, mostra-se genuína, formada sim, da transculturação das raças, que para nós foi um privilégio. Muitas vezes tomam formas regionais, por diversos fatores, entre eles, maior ou menor influência de cada grupo ou até pelas características físicas, das regiões. O certo é que, em qualquer lugar, ela já aparece bem brasileira, diversificada e de riqueza quase incontrolável. Para se ter uma ideia precisa, possuímos mais de vinte gêneros musicais. Nossa singular manifestação artesanal é também inigualável e em qualquer canto do país, podemos nos maravilhar. Para ilustrar, ao chegarmos a Apiaí, vilarejo pobre do Vale da Ribeira, SP, vamos encontrar uma cerâmica produzida por gente simples e analfabeta, mas que se destacaria em qualquer galeria ou museu do mundo. Nossas rendeiras do Nordeste são notáveis, assim como os nossos “vitalinos” abundam por lá e pelo Norte. E é tão rica, que em cada estado, em cada município, podem ser encontradas manifestações tão belas e tão diferentes. Na música chamada erudita, começamos bem com Villa Lobos, Lorenzo Fernandez, Almeida Prado, Camargo Guarnieri e Francisco Mignone. Mas bastaria Villa Lobos e sua explosão com os “Choros”, as “Bacchianas”, “Amazonas” ou “Uirapuru” e lembrarmos de que o pianista Rubinstein, ao ouvir essa última não se conteve e exclamou: “esses sons não existem na Terra!”. Se chegarmos para a música dita popular, aí somos imbatíveis, Armando Amorim - Memórias
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principalmente pela diversificação de gêneros e a quantidade e qualidade de músicos que transitam há mais de um século em cada um deles, tipo Ernesto Nazareth, Tom Jobim, Cartola, Donga, Chico Buarque, Noel Rosa, Ary Barroso, Edu Lobo, Assis Valente, Caymi, Pixinguinha e a lista, imensa. No teatro, sem falar em autores, como Nelson Rodrigues, Vianinha, Plínio Marcos, Augusto Boal, com seu teatro do oprimido, Zé Celso Martinez, Abujamra, Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial, Guarnieri, Amir Haddad, há um desfile incontável de notáveis atores e basta citar alguns: Procópio Ferreira, Cacilda Becker, Cleyde Yaconis, Fernanda Montenegro, Tônia Carreiro, Ítalo Rossi, Dulcina de Morais, Bibi Ferreira, Stênio Garcia, Pedro Cardoso, Osmar Prado, Mário Lago, Carlos Vereza, Regina Duarte, David Pinheiro, Bety Faria, Dina Sfat, Paulo Autran, Natália Timberg, Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Walmor Chagas, Jardel Filho, Stefan Necessian, Regina Casé, Zezé Polessa, Raul Cortês, Milton Gonçalves, Paulo Gracindo, Othon Bastos, Marília Pêra, Irene Ravache, Lucélia Santos, Ary Fontoura, Tereza Raquel, Maria della Costa, José Wilker, Paulo Goulart, Matheus Nachtergaele, Maitê Proença, Laura Cardoso, José Lewgoy, Hugo Carvana, Leonardo Villar, Sérgio Manberti, Marcos Nanini, Ney Latorraca, Lima Duarte, Antônio Fagundes, Tarcísio Meira, Juca de Oliveira, Anselmo Duarte, Sérgio Cardoso e muitos e muitos outros, para saber que receberiam aplausos de qualquer platéia do mundo. As mesmas palmas poderiam ser batidas para os nossos virtuoses do piano e outros instrumentos; para os nossos novelistas; para os artistas de nossas artes visuais; para os nossos comediantes, escritores, cineastas, enfim, para os que construíram e os que formam hoje a nossa cultura. Quem já escutou os sons maravilhosos que nos tocam a alma, saindo dos instrumentos de Altamiro Carrilho, Benedito Lacerda, Borghetinho, Turíbio Santos, Zeca do trombone, Pixinguinha, Luiz Carlos Vinhas, Sivuca, Garoto, Bené Nunes, Osmar Milito, Paulinho Nogueira, Dino, Canhoto, Rildo Hora, Cristovão Bastos, Zequinha de Abreu, Durval Ferreira, Guerra Peixe, Maurício Nader, Hamilton de Holanda, Maurício Einhorn, José Menezes, Márcio Montarroyos, Djalma de Andrade, o “Bola 7”, Alceu Bochino, Amaral Vieira, Madalena Tagliaferro, Abel Silva, Luperce Mi194 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
randa, Luciana Rabelo, Gilson Peranzetta, Durval Ferreira, Raul de Barros, Ribamar, maestro Cipó, Léo Gandelman, Wagner Tiso, Jacob do Bandolim, Guiomar Novaes, João Carlos Martins, Rosinha de Valença, Egberto Gismonti, César Camargo Mariano, Edu da Gaita, Paulo Moura,Yamandu, Nelson Freire, Henrique Cazes, Mauro Senise, Arnaldo Estrela, Hamilton de Holanda, Carolina Cardoso de Menezes, Jacques Klein, João Donato, Waldir Azevedo, Abel Ferreira, Victor Assis Brasil, Toquinho, Baden, Carlinhos Eça, Claudionor Cruz, Hermeto Paschoal, Luiz Bonfá, Arthur Moreira Lima, José Paulo Becker, Pepeu Gomes, Rafael Rabello, Laurindo de Almeida, Dilermando Reis, Radamés, Hélio Belmiro, Zé da Velha e mais alguns famosos e muitos anônimos, sabe que não há exagero em dizer que são ou foram notáveis. No “departamento” de chargistas e cartunistas, nos deparamos com uma das melhores galeras: J. Carlos, Millôr Fernandes, Ziraldo, Borjalo, Henfil, Jaguar, Paulo e Chico Caruso, Leon Eliachar, Claudius, Péricles, Fortuna, Angeli, Vagn, Pianka, Aroeira, Zélio, Ique, Redinger e Lan, o Lanfranco, que apesar de ter nascido em Florença, é totalmente nosso. Isso para citar alguns. Também, para nos fazer rir, tivemos Lauro Borges e Castro Barbosa, Jararaca e Ratinho, Mazzaropi e depois Chico Anísio, Zé de Vasconcelos, Golias, Costinha, Walter D’Ávila, Brandão Filho, Rogério Cardoso, Renato Corte Real, Agildo Ribeiro, Paulo Silvino e tantos outros e, agora, Tom Cavalcante, Pedro Cardoso, David Pinheiro, etcetera. E, em outras áreas, sempre se destacaram vultos, como César Lattes, Oscar Niemeyer, Alberto Santos Dumont, Zilda Arns, Barão de Mauá, Dom Helder Câmara, Lúcio Costa, Oswaldo Cruz, San Thiago Dantas, Chico Mendes, Dr. Zerbini, senadora Heloísa Helena, Orlando Villas Boas, Irmã Dulce, Betinho, Sobral Pinto, Carlos Chagas, Barbosa Lima Sobrinho, Augusto Ruschi, Dom Tomaz Balduíno, Darcy Ribeiro, Noel Nutels, Anísio Teixeira, Nise da Silveira, e tantos outros notáveis. Quem teve ou tem Machado de Assis, Manoel de Barros, Cecília Meirelles, Ruben Fonseca, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Mário Quintana, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, João Ubaldo Ribeiro, Lima Barreto, Adélia Prado, José de Alencar, Euclides da Cunha, Vinicius de Morais, Thiago de Melo, Odílio Costa Filho, Moacyr Scliar, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Pedro Nava, Nélida Piñon, Álvaro Moreira, Aníbal Machado, Sergio Buarque de HoArmando Amorim - Memórias
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landa, Affonso Romano de Sant’Anna, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Mário de Andrade e algumas centenas, precisa saber o que dizem, pois contaram coisas fantásticas, que nos deliciam. E, para conhecer nossa gente estão aí “Os Sertões”, “Casa Grande e Senzala”, “Raízes do Brasil”, “Vidas sêcas”, “Macunaíma”, “Grande sertão veredas”, “Policarpo Quaresma” e todos os livros de Graciliano, Joaquim Nabuco, Gilberto Freire, Fernando Novaes, Monteiro Lobato, Laura Mello e Souza, Sérgio Buarque, Eduardo Prado e muitos outros. E nem devemos ignorar a cultura de outros povos, os seus valores estéticos. Há em toda parte desse planetinha, personagens maravilhosos, em todas as linguagens. Devemos saber o que dizem e o que fazem, pois a cultura é um bem universal e não podemos deixar de aproveitá-la. Vamos nos abrir a todas as culturas, receber as boas influências e continuarmos a fazer as misturações, pois disso, entendemos. O que não devemos ter é a paranóia de exaltar qualquer lixo que cruza as nossas fronteiras, como cantores medíocres, filmes, livros, músicas e outras coisinhas, que agridem a nossa inteligência, muitas vezes só porque estão em moda, promovidos por toneladas de dólares. Vale a pena purificar um pouco; colocar um filtro. Também será bom parar de fincar Estátuas da Liberdade de mal gosto em nosso chão e de ficar embasbacado com tudo que tem nome estrangeiro. Devemos lembrar que, lá fora há muita porcaria, independente do idioma. E como eles adoram exportá-las... Precisamos ainda parar com esse modernismo cafona de denominar as nossas lojas, produtos e o que fazemos, com expressões que não são nossas, como se não tivéssemos um belo idioma. Reparando bem, os alimentos viraram light e diet; o ambiente clean; as liquidações, sale. E o resto é flat, manager, loft, workshop, fast-food, delivery, happy-hour, talk-show, e por aí afora. Mas não se pode chegar ao absurdo do projeto proposto pelo deputado Aldo Rebelo, que “proíbe o uso de expressões estrangeiras”. Pura e burra xenofobia. Precisamos é de valorizar o que é nosso e bom, sem nenhuma imposição. “Vamos abrasileirar os brasileiros”, como dizia Drummond. Caso contrário poderá até acabar com nossa feijoada, o nosso vatapá e outras delícias e nos entupiremos de maquidonaldis e outros festifudes de alhures. Temos arte e cultura para dar e vender. O que precisam é de 196 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
nossas palmas e de serem usadas. Temos aqui uma riqueza cultural estocada, de excepcional valor. E em qualquer campo. Aliás, na verdade, só não somos bons ainda, na cultura política. Mas aí, é também querer demais. Agora notei que me afastei totalmente do sentido do livro, pois estou escrevendo sobre outras coisinhas, que nada têm a ver. É nisso que dá querer fazer uma coisa, não conhecendo o ofício. Mas como perdi um tempão, vão ficar.
Tecnologia, pra quê? Já que estou no texto das “reclamações”, das idéias úteis e inúteis, não consigo deixar de expor uma, que me incomoda. Nesse tempo de vida que passei, houve um extraordinário avanço da ciência e tecnologia. Com ele, deveríamos estar vivendo muito melhor; pelo menos, no que é essencial. Ou seja, viver em paz e dignamente. Mas a estupidez das guerras está aí e a miséria extrema de milhões que pisam nesse planeta, nos dão a certeza de que as receitas impostas não resolveram as essencialidades. Os países ricos gastam cinco vezes mais em subsídios do que toda a ajuda externa aos países pobres, demonstrando que não querem repartir o que acumularam. E miséria não é somente aquela que nem oferece o comer, morar, se vestir e curar os males do corpo. Miséria é também não ter a oportunidade ou acesso ao saber, ao conhecimento e permitir que o ser humano possa até perceber quem é. Portanto, o modelo de mundo que andaram escolhendo até agora, não me convenceu. Também, para aqueles a que esses extremos não atingiram os avanços não serviram para muita coisa, pelo contrário. Como disse alguém, o ser humano está virando “homem-coisa”. O dinheiro virou a razão, a meta de todos. A tecnologia se tornou um deus dos negócios, que não visa como devia tornar a vida melhor; mas o que assistimos é que ela vem abafando os seus valores essenciais. Vive-se hoje para se ter dinheiro. Prepara-se o filho para concorrer e vencer; não para ser feliz e compartilhar a felicidade com os outros. Armando Amorim - Memórias
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A “técnica”, assim, veloz e extraordinária, vai governando o mundo, e o resultado que deveria ser de melhorar a condição humana, não demonstra isso. Cada vez aumenta mais o abismo entre as nações ricas e pobres e entre abastados e miseráveis de cada país. Estamos diante do des-humano que só se satisfaz com o lucro; do deus-mercado, deus-consumo; deus descartável. Como acredito que a alma existe e o ser é humano, conto a historinha a seguir, que pode ser resultado de algum dos meus devaneios.
Não estão fazendo a coisa certa Esse planetinha, se pensarmos bem, foi muito bem bolado. Arranjaram uma estrela para esquentá-lo na temperatura certa e depois outras injunções cósmicas e diversas componentes essenciais, como a água, os vegetais e outras coisinhas, para que funcionasse perfeitamente. Estava tudo pronto e só faltava colocar os bichos, outra invenção criativa. E assim foi feito. Com grande trabalho para organizar o seu Cosmos, fazendo nascer e morrer estrelas, galáxias, corrigir órbitas, criar planetas e por aí, o Inventor nomeou assessores celestiais para acompanhar os acontecimentos no planetinha. Presume-se que tenha feito ele bem pequeno, para servir de amostra e saber se valeria a pena continuar. Questão de pura economia. Mas disso, não se tem certeza. Passado algum tempo, o Inventor convocou um dos assessores para a primeira reunião. Queria saber as novidades. _“Está tudo funcionando muito bem. As plantas estão viçosas; há bichos comendo algumas e outros, comendo os outros. Sem querer criticar, só acho um pouco monótono esse planetinha. A única diversão é ver um bicho fazendo macaquices”. _“Bem”, disse o Inventor. “Deixe ver esse bicho, pois tenho uma boa ideia”. Assim lhe deu o poder de raciocinar, ter sentimentos e uma alma, coisas que não podem ser vistas, mas destaques de sua obra -prima. 198 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
E mais: daria a ele uma vida curta no planetinha, mas uma compensação super especial depois: a eternidade, em lugar espetacular, inimaginável mesmo; mas um segredo que não poderia vazar. Entretanto, para merecer as benesses, o Inventor criou umas dez regrinhas, que se resumem em ser bom. E a grande jogada: deu a esse bicho o tal livre arbítrio, para não colocar culpa nos outros, nas besteiras que fizer. Inventou, entretanto, um sentimento chamado perdão, pois sabia das coisas. Dizem alguns que, para facilitar a promoção, conforme o bicho se portasse aqui, ficaria indo e vindo, até ficar pronto para receber a eternidade; mas não sabemos como Ele resolveu isso... O certo é que tudo estava agora perfeito, muito bem bolado. Foi descansar, mas deixou os seus assessores celestiais na observação para, de tempos em tempos, fazer um balanço de seu invento. Na segunda reunião, que em tempo de eternidade são poucos dias, um dos assessores comentou: -“Senhor, os bichos que inventou estão dividindo o seu planetinha em vários pedaços. E aquela bolação extraordinária de falar, diferente dos outros bichos, não está funcionando muito bem, pois cada gleba fala de modo diferente da outra.”. _“Bem, isso não é problema e eles vão acabar resolvendo”. _“Ta certo”, disse o ACIII, mas retrucando: _Eles inventaram o “inimigo”! _“O que é isso?” perguntou o Inventor. _ É o seguinte Senhor: os que vivem numa gleba querem tomar a gleba do vizinho, para aumentar a sua ou por outros motivos que ainda não entendi. Aí, tanto uns como os outros passam a se tratar de inimigos. E para conseguir isso, eles inventaram um aparelho que tira a vida do outro! Armando Amorim - Memórias
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_“O quê! Quem deu esse direito de um bicho com raciocínio matar o outro! Isso é atribuição só minha!” _É Senhor, mas eles estão fazendo... Para pôr mais lenha na fogueira, o ACII arrematou: _Esses bichos inventaram também outras coisas nada recomendáveis. Sentimentos bem diferentes daqueles que o Senhor previa para todos os bichos, principalmente para esses com raciocínio. E a lista é grande: cobiça, ódio, inveja, discriminação, arrogância, racismo, intolerância e por aí, só para o desentendimento ser maior. Desculpe Senhor, mas acho que esse novo bicho tem alguma coisa que não está dando certo. _“Basta!” disse o Criador um pouco irritado. “Vou tomar já as providências”. E contrariado, despachou seu Filho para um acerto geral de rumo. Como as coisas estavam indo, tudo iria acabar muito mal. Com a chegada Dele aqui, foram lembradas as regras básicas para a correção de rumo, pois o criador do planetinha não estava nada satisfeito. Alguns não o entenderam e sabe-se que fim levou. Mas valeram os recados e as dicas, pois eles passaram a valer para todos, em qualquer época. Ficou, inclusive, registrado no papel. Outros ainda esperam o seu representante chegar e há os que entendem que o representante fôra outro. Nada disso incomoda o Inventor, pois o recado que Ele queria dar, todos deram. Passado algum tempo, promoveu outra reunião com seus assessores celestiais, para ver os novos resultados. O ACIV que gostava de ajeitar as coisas saiu na frente explicando: _Senhor, a situação ainda está complicada, pois vai levar um tempinho para os bichos com raciocínio entender o que seu Filho explicou, ou seja, de como um bicho com raciocínio deve tratar o outro bicho. 200 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mas o ACIII não se conteve e cortou o ACIV: “Senhor, a coisa tá braba”! Aquelas máquinas que esses bichos inventaram para matar os outros, agora matam um montão de cada vez! E alguns bichos se tornaram especialistas nisso e não posso deixar de caguetá-los: Hitler, Mussolini, Stalin, Pol Pot, Pinochet, Videla, Osama, Bush, Saddan, Milosevic, Idi Amim, Papa Doc e o filhinho e outros mais disfarçados. Não quero me meter, mas acho que os que já estão por aí e os que vão chegar, merecem uma “esquentadinha”. Um tanto desolado com a sua bolação, o Inventor se recolheu, resmungando: _“Criei um planetinha todo certinho, para acabar nisso?”. Preocupado, dias depois voltou para nova reunião, esperando alguma mudança de rumo. O ACIII tomou logo a palavra: _Senhor, me desculpe, pois na última reunião não tive coragem de lhe dar outras más notícias que já tinham acontecido. É que os bichos com raciocínio inventaram um troço terrível que eles chamam de bomba atômica. Duas delas já foram jogadas e acabou em um minuto, com tudo que criastes: bichos, vegetação e o diabo-a-quatro. E já há outras capazes de exterminar muito mais. Até o seu planetinha! _“É esse diabo-a-quatro que deve ser o incentivador”. Aí interveio o ACIV, o “contemporizador”: _“Senhor, essas invenções os bichos dizem que fizeram, para um meter medo no outro, inventando o que eles chamam de guerra-fria, isto é, agora ficam só no blá-blá-blá. Mas o ACI com seu jeito durão, não se conteve: _Que só no blá-blá-blá o cacete! E Coréia, Vietnan, Kosovo, Iraque, Afeganistão e vai por aí, até na Palestina a matança é grande! _“O que disse?! Até onde meu Filho viveu?! Será que o que ensinou não está servindo pra nada!” Armando Amorim - Memórias
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_Ah!... Nem tudo é tão ruim assim, retrucou o “contemporizador”. Os bichos desenvolveram conhecimentos, mostrando que a Sua criação foi perfeita. Criaram umas coisas que chamam de ciência e tecnologia e com isso oferecem mais conforto, bem estar; a possibilidade de curar os males do corpo e até aumentar os anos de vida que o Senhor inicialmente tinha determinado para esses bichos. E ainda máquinas bem boladas, que possibilitam que todos possam ter o que eles chamam de bens de consumo. A ciência e a tecnologia também ajudam a produzir alimentos pra todos. _“Vamos com calma ACIV! Que a ciência e a tecnologia possibilitam muita coisa, é verdade; mas que elas servem a todos é pura mentira. Só para se ter idéia, no planetinha , por dia, morrem 35.600 crianças de inanição !” _Exaltado, o Inventor chegou a alterar a voz: “Coloquei tanta terra nesse planetinha, para não faltar alimento pra ninguém; e você está dizendo que esse mundão de crianças está morrendo de fome?!” _Senhor, é que mais de 8 bilhões de bichos com raciocínio que vivem agora no planetinha, 1 bilhão não possui dinheiro para comprar alimentos, remédios e todas as outras coisas que necessitam. E dinheiro é uma coisa que eles inventaram, mas somente uma parte consegue ter. O ACIV, sempre querendo atenuar as coisas, interferiu: _É que eles não conseguiram ainda se organizar: criaram reinos, impérios, repúblicas e filosofias que chamam de socialismo, capitalismo, políticas de esquerda, centro e direita e nada está dando certo. Mas vão acertar um dia. _Fale também da extrema-direita que é uma praga! Retrucou o ACI. E dirigindo-se para o Criador do planetinha: “Senhor, eu vou explicar melhor. Naquelas glebas que foram divididas, algumas delas ficaram poderosas, com quase todo o dinheiro do seu planetinha. O dinheiro virou a razão deles. A tal tecnologia que criaram, não visa como devia tornar a vida de todos melhor. Só a deles. E para confundir as outras glebas desfavorecidas, criaram uma tal de globalização, e outras coisinhas, como subsídios, barreiras alfandegárias e assuntos complicados e desconhecidos 202 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
para quem não vive no planetinha. Para resumir, querem tudo para eles e o resto que se dane. De um modo geral, o bicho que o Senhor criou para viver feliz, passou a só pensar em ganhar dinheiro. Dizem até que o bicho -homem passou a ser Bicho-coisa. E ainda mais: não estão ligando para o planetinha que o Senhor criou, destruindo a natureza, os outros bichos, poluindo o ar, os rios e mares. Finalmente, uma coisa que lhe vai aborrecer ainda mais. Com a tal ciência, já estão querendo criar um bicho igualzinho ao que o Senhor criou e chamam isso de clonagem. “-O quê?! Isso é patente minha! E ai de quem ousar!” E um pouco desanimado, completou: “Sabem de uma coisa, acho melhor desinventar esse bicho e deixar o planetinha como era antes.” -“Peraí Inventor! O Senhor mesmo criou o perdão”, disse o ACIV, completando: Há uma grande parte dos bichos com raciocínio que fazem tudo certinho e desejam mudar o que não está dando certo. E são muitos, apesar de ainda um pouco desorganizados. Mas vai chegar o dia dos ensinamentos Seus e de seu Filho, prevalecerem. Nova ordem há de chegar, baseada na solidariedade, na fraternidade, no amor ao outro. Pode acreditar. _“Bem, vou esperar...” Como acredito Nele, espero também. Mas cansado.
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Coisas de ontem e de hoje Muitas coisas boas, outras, nem tanto... Como o “técnico” não me substituiu, estou jogando a “prorrogação” e, confesso um pouco mais cansado, mas com a mesma garra e vontade. No tempo normal desse jogo não fui o melhor do time, mas também não joguei tão mal. Pelo menos me esforcei, o que é um bom sinal. Recebi poucas botinadas e dei algumas entradas duras, mas leais, pois não cheguei a machucar ninguém. Nem tão pouco joguei sempre o fino. Muitas vezes precisei dar alguns “carrinhos”, chutão para onde o nariz apontava... Xinguei o juiz... Mas até agora não me expulsaram. Esse jogo que se chama viver foi muito bom e como se diz: foi um “Bom tempo” - muito mais quase sempre - do que de vez em quando. Conheci personagens, tipos tão incríveis, que fazem a raça humana ser especial, apesar dos que a comandam, nem sempre. E minha crença em Deus vem daí. É comum se dizer (os da minha idade) “antigamente é que era bom”... Também pudera, quando se é criança ou jovem, nada pode ser ruim, ou quase isso, excluindo-se, naturalmente, a chamada “à margem” e mesmo assim, grande parte dos que não têm, são ás vezes até mais felizes. Milagre da Criação. No antigamente, muitas coisas boas havia e outras, nem tanto. Igualzinho aos dias atuais, mostrando que a vida vai ser sempre assim, como as ondas do mar, se repetindo. Vale então fazer recordar alguns aspectos do antigamente, como funcionavam as coisas; ou não funcionavam. Não sou da ala dos saudosistas apaixonados, mas gosto de relembrar. Só não me animo a voltar aos lugares em que vivi as minhas emoções, pois as fantasias podem acabar. Não gosto de rever a árvore em que roubava frutas; as calçadas que me viram 204 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
jogar peladas ou aquele muro em que eu namorava. E não gosto, pois tenho medo desses lugares não se lembrarem mais de mim. Valem, portanto, só as lembranças, pois dela não me separo; mas continuo com a mesma curiosidade, o mesmo ímpeto em descobrir novos caminhos e aproveitar ao máximo o que este mundão pode oferecer. Desconfio que a criança em mim, continua querendo brincar.
Futebol, uma paixão. Não é a toa que futebol e carnaval são paixões dos brasileiros. Se repararmos bem, sintetizam o andar, a ginga, o lado moleque do povo. A finta, fingir que vai, mas não vai; tocar entre as “canetas” do adversário é bem parecido com o passo malandro do sambista, ou o rebolado cadenciado da mulata. Posso dizer que fui um “secura” no futebol, não só jogando, mas assistindo quem sabia jogar. Nessa época era um jogo mais bonito, pois se jogava mais perto da bola, do que junto ao “inimigo”. Como se diz hoje, “deixava-se jogar”. Aí, podia-se ver a habilidade de Leônidas, Tesourinha, Jair da Rosa Pinto, Ipojucan, Nilton Santos, o “príncipe” Danilo, Dequinha, Dida, Maneca, Isaías, Orlando “pingo de ouro”, o mestre Ziza, Didi “folha seca” e até Genoíno, um centroavante do Vasco, bom de bola e de estrada. Isso porque, sendo motorista de caminhão, volta-e-meia sumia de São Januário para dirigir o seu possante, por esse Brasil. Meses depois aparecia, e entrava direto no time, pois era um craque. Fez isso algumas vezes, pois caminhão era a sua paixão. Antes dessa turma, houve o Domingos da Guia, que profissionalmente não vi jogar. Mas com seus mais de 50 anos formou zaga comigo, no time de pelada da Fábio Bastos. Sabia tudo. Na época, eu corria, desarmava e entregava a bola limpa, para ele fazer bonito. E como fazia. Anos depois vieram: Garrincha, Pelé, Zico, Rivelino, Dinamite, Tostão, Gerson, Jairzinho, Ademir da Guia, Paulo César “caju” e outros, que teriam vaga em qualquer Seleção do mundo, hoje. E fico imaginando um meio de campo com Zizinho, Gerson e Armando Amorim - Memórias
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Didi, enfiando bolas para Pelé e Ademir “queixada”. E na ponta direita, o Garrincha, para infernizar. Uma covardia. Hoje, inventaram “parar a jogada”, “segurar a camisa” e o que se vê não é tão bonito. Não digo que nos tempos de “antanho” não havia “espanadores”, como Tomires, Pavão, Ely, Ananias, Gerson, becão do Bota e outros; mas pegavam de frente. Agora, tirando Pato, os Ronaldos, Kaká, Robinho, Neymar e mais uns dois ou três, o resto não teria vaga nos times grandes daquele tempo, como o meu Vasco de Barbosa, Augusto e Haroldo; Eli, Danilo e Jorge; Sabará, Ademir, Ipojucan, Vavá e Chico. E, ainda, Maneca, Friaça, Isaias e outros mais. Também o que incomoda são as mudanças permanentes dos jogadores. Já não se sabe dar a escalação, o que a molecada, na época, tinha na ponta-da-língua e no time de botão.
O Rio dos lugares e manjares Muitos lugares ainda são os mesmos. Falta somente a frequência. Naquele tempo de mais amor e mais confiança, calmo, tranquilo, as famílias e mesmo quem estivesse só, frequentavam o Rio e seus recantos, como o Campo de Santana, com seus belos jardins de traçado inglês, a Quinta da Boa Vista, o Passeio Público, os Arcos da Lapa, aqueduto construído para levar as águas de Santa Teresa ao morro do Castelo; também a Cinelândia, a Galeria Cruzeiro e alguns mais. Da praça XV, que já tinha sido em tempos idos o Rocio do Carmo e Largo do Paço avistava-se a Ilha Fiscal, com seu castelo em estilo neogótico e onde foi realizado o famoso baile do Império, seis dias antes da Proclamação da República. Na praça, podia-se ver o belo chafariz projetado por mestre Valentim, na época dos Vice-reis, para fornecer água à população local, pois naquele tempo não havia água encanada nas casas. Nosso tempo foi um tempo de passear pela cidade e não nos shopingues. Também nas zonas do Rio sobressaíam certas instituições, quase todas portuguesas e espanholas: bares, botequins e res206 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
taurantes. Esses, não só lugares de almoços e jantares, mas, sobretudo, locais de encontros diários para se conversar. Era o local do papo. Hoje, usa-se o computador ou o celular. Mas falta a presença física, o olhar nos olhos, segurar o companheiro pelo braço, sacudi-lo para dar mais ênfase no que se diz o tapa nas costas, as expressões de espanto, as gargalhadas e gozações. Enfim, sem a teatralização a conversa não é a mesma. Também, a mistura em cada mesa oferecia um molho inusitado e prazeroso. Puro ecumenismo. Era possível conviver gente de convicções opostas – comunistas, anarquistas, ultra-direitistas, católicos, ateus e umbandistas, todas as classes sociais, raças e profissões ou até sem nenhuma. A melhor demonstração de como deve ser a convivência humana. E também a melhor maneira de adquirir cultura útil e inútil. No centro da cidade alguns se destacavam: Penafiel (Senhor dos Passos), o Bar Brasil, e o Capela (Mem de Sá), o Lisboeta (Frei Caneca), Bar Adolf, o restaurante do Mosteiro (São Bento), o Senta Aí (Barão de São Félix), o “Triângulo das sardinhas” (Visconde de Inhaúma) e vários mais, como Bar do Jóia, Decolores, Armazem Senado e o Paladino com seus deliciosos omeletes. A sobremesa ou quando se queria apreciar o doce da vida, a oferta estava assentada nas prateleiras de cristal das confeitarias Manon (Ouvidor), Cavé (7 de Setembro) e Colombo (Gonçalves Dias). A dificuldade, somente na escolha. Para o lanche, as Leiterias Mineira ou Vitória, onde o café-com -leite e as torradas amanteigadas, cortadas em palitos no pão de petrópolis, faziam de um petisco simples, uma satisfação para a nossa gula. Como não abundavam os festifudes de hoje, marcaram época algumas delícias que eram encontradas em vários pontos ou mesmo na via pública. Uma delas, o “pastel-de-vento” acompanhado de caldo de cana ou da laranjada, servidos nos abrigos dos bondes da Praça Tiradentes. Não se importava que os recheios de carne ou queijo fossem neles colocados com certa parcimônia e a laranjada preparada com parte da casca para lhe acentuar o sabor. Já quem passasse pela Avenida Rio Branco, com ou sem sede, haveria de parar no Bar Simpatia e se servir do seu frappé de coco, Armando Amorim - Memórias
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mergulhado em gelo picado. Refresco algum se comparava a ele. O sorvete de frutas tropicais ou o famoso banana split, valia ir, de onde estivesse, ao Morais, em Ipanema. Sanduíches, os preferidos estavam no Gordon, ou no Bob’s criado pelo jogador de tenis e golfe, Bob Falkenbourg. Este foi o precursor dos festifudes norteamericanos, apesar de que muitos preferiam os sanduíches de pernil e outros ingredientes servidos com abundância no Cervantes, no Leme. Mas sobrava ainda a freguesia que adorava o cachorro quente das carrocinhas do Jonny’s, depois do Geneal ou de certo quiosque da Avenida das Américas, o Via 11, na Barra ainda pouco habitada, que inventara um “cachorro” de linguiça, acompanhado de maionese, queijo ralado e muitos etceteras. Quando nas madrugadas a fome era muita e a grana pouca, apelava-se então para o angu do Gomes ou a sopinha da Lindaura no Beco da Fome, no Leme. Ou valia esperar o bar abrir, para um café-com-leite e pão canoa com manteiga. Delicioso. Na praia, o cardápio mudava: mate ou limonada, produzidos com água que cismava em não passar por filtros, mas eram deliciosos, quase sempre tendo como companhia os biscoitos Globo. Ninguém morria disso... Também, quem fosse viajar e passasse pela Dutra, não podia deixar de parar na lojinha do ovomaltine. Pelo Rio-Petrópolis, a parada era no Alemão que ainda lá está com seus bolinhos de carne e sanduíches de linguiça. Outros pontos de um Rio ainda alegre e descontraído recebiam diariamente seus fregueses, como o Café Palheta, da Saens Pena, a churrascaria A Carreta, o bar Divino e o Éden, na Tijuca, o Antonino’s, o Jangadeiro, o Garota de Ipanema, pizzaria Guanabara, Taberna da Glória, Luna Bar, Zi Cartola, Real Astória, La Mole, Fiorentina, Cantina Sorrento e muitos mais. Era assim o Rio do tempo dos lugares, do tempo em que se conversava e se vivia o jeito carioca: criativo, contestador, alegre e gozador. Hoje, apesar da quantidade de opções, aonde se vai nos senti208 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
mos cabreiros, tensos, olhando para os lados, tentando descobrir os inimigos. O Rio neste momento está meio sem gosto; aguado. Mas como diz o filósofo Zeca Pagodinho, “Tá ruim, mas tá bom” e a gente, como ele, só resta cantar: “deixa a vida me levar... vida leva eu...”.
Ô abre alas que eu quero passar... Além do futebol, outra paixão dos que habitam esse chão, o carnaval, se animava nas ruas, principalmente no centro da cidade. A criatividade, a gozação, vinha com os personagens que circulavam com as suas irreverências ou grupos de cinco ou dez que se vestiam de mulher ou caricaturavam alguma situação política ou de comportamento. Havia os blocos de “sujos”, os blocos de rua e até os blocos de embalo, como os Boêmios de Irajá, o Bafo da Onça do Oswaldo Nunes e o Cacique de Ramos, do mestre Bira. Nestes, a alegria só parava, quando se dava, ocasionalmente, o encontro. Aí não havia jeito: porrada .
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À noite, em todos os clubes, bailes de carnaval, onde a alegria transbordava, cantando as músicas que os autores caitituavam durante meses nas Rádios. Vale a pena lembrar, o tempo em que se cantava: “Lata d’ água na cabeça/lá vai Maria/ lá vai Maria/Sobe o morro e não se cansa/ pela mão leva a criança/ lá vai Maria. Do Jorge Veiga, o “caricaturista do samba”: Se ela for sambar em Madureira eu também vou/ Ai, ai, ai, Madalena meu amor/ Topo qualquer coisa/ seja ela onde fôr/ Mas só vou, se a Madalena for... E até um choro, que fez sucesso: “Você disse que dançava/ que no choro era o tal/ Paraquedista apareceu/ e logo lhe deixou mal”. E quem não se lembra de Heleninha Costa cantando: “Ai barracão/pendurado no morro/ e pedindo socorro/ a cidade, a seus pés...” Ou Gilberto Alves: “Um dia, encontrei Rosa Maria/na beira da praia, a soluçar/ Eu perguntei, o que aconteceu/ Rosa Maria, me respondeu/ o nosso amor morreu”. E Linda Batista: “Chorar, como eu chorei/ Ninguém deve chorar”... Gilberto Milfont: “Ai que vida triste tão cruel/ tem o homem que apanha papel...” E Marlene dizia: “Se é pecado sambar a Deus eu peço perdão...” Já o Sr. Otávio Henrique, mais conhecido como “Blecaute” - o “General da Banda”, cantava nos carnavais da antiga: “Aquele mundo de zinco que é Mangueira/ Desperta com o apito do trem/ Uma cabrocha, uma esteira/ um barracão de madeira/ Qualquer malandro em Mangueira, tem”. E a gostosa marchinha: “O rei Zulu, o rei Zulu/ não paga casa, nem comida e anda nu/ Pode não ter diArmando Amorim - Memórias
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nheiro pra gastar/ Mas tem mulher pra xuxu”. E com um sorriso que ficou famoso “cheio de dentes”, fazia o maior sucesso quando cantava: “Chegou general da banda, chegou”... E as músicas iam ficando em nós, a cada ano, pois havia compositores que sabiam fazer o povo cantar. E como se cantava... Um dos motivos também do sucesso dos carnavais da antiga, eram os bondes, que circulavam lotados, levando tribos alegres fantasiadas. Quando ainda hoje escuto as marchinhas do Lamartine Babo, o “Lalá”, músicas de Herivelto Martins, J. Piedade, Walfrido Silva, Hervé Cordovil, Braguinha, J. Cascata, Haroldo Barbosa, Nassara, Wilson Batista, e os cantores da minha infância, me vejo vestido de pirata, com espada de madeira e chapelão preto de linóleo. Na mão, o lança-perfume “Rodouro”, com seu esguicho gelado assustando as menininhas, exalando perfume que ficava no ar; um cheiro de saudade se hoje, sentido. Com ele e mais as serpentinas e o saco de confetes, saía no bonde, com o amigo Arno Turner, sempre vestido de tirolês (pelas origens), em viagens que se transformavam em alegria infantil de não se esquecer. Mais tarde, já rapaz, as lembranças chegam com outras músicas, e agora, os bailes me lembram de amores eventuais, do tempo que valia mais “apanhar uma garota”, como se dizia. E o lança-perfume já não servia para assustar ninguém; mas para tomar uma “pris”, que era cheirá-la e ficar “doidão”, sem ligar para a maluquice que fazia. Tomar um porre, que era natural nessas ocasiões, eu não tomava, simplesmente porque, certa vez, tomei o maior de todos. Antes dele, até que era chegado a uma “cuba-libre” ou um “hifi” e ainda o “samba-em-berlim”. Mas certa vez, numa festinha de São João, apareceu o amigo Tuneca (não sei se era...), com uma “calibrina” que dizia ser especial. Encheu um copo, me desafiando a bebê-la de um só gole. Fiz a besteira. Depois, encheu um de vermunte, dizendo que viraria “traçado”. Também bebi. A segunda asneira. Acabei caindo dentro de um galinheiro - o que me salvou - pois o alvoroço das penosas fizeram com que os amigos me localizassem e me levassem embora. Cheguei perto de um coma-alcoólico, o que me fez, para o resto da vida, virar um viciado em grapete e guaraná caçula. 212 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Parece que o carnaval da antiga, era mais alegre. Durante o dia, os blocos e o povo na rua, se divertiam. Apareciam figuras engraçadas, desfilando por toda a cidade, como o bloco do “eu sozinho” e outros se auto-ridicularizando. Sujeitos super esqueléticos, vestidos de Super-homem; bloco dos barrigudos, com bica amarrada no umbigo, fantasiados de “barril”; outro, fantasiado de “verme”, com um estandarte onde se lia: “Sou o que minha mulher diz que sou”. Me lembro de um vestido de “garrafa de cachaça”, com a frase em suas costas: “Hoje, eu me bebo todo”. Mostrava-se o espírito gozador do carioca, a essência da sacanagem alegre, descontraída e anárquica. Nesses dias se libertava das dificuldades diárias, das obrigações ordenadas, para deixar baixar seu verdadeiro eu. Nos blocos misturavam-se as etnias e classes sociais, em gritos e gestos de libertação. Talvez em pensamentos e desejos de que bagunça a desarrumada alegria, pudessem dar início a novos tempos, inaugurar nova ordem para viver melhor, sem discriminação, sem gritantes desigualdades. Afinal, se ali todos se davam bem, compartilhavam alegrias, por que então esse estado de espírito não continuar. Era a sua utopia; o desejo de que a alegria vivida nos três dias, não findasse em cinzas. É o que me parecia. Além dos blocos e das escolas de samba, havia no Rio os desfiles de “Frevos” e “Ranchos”. Estes últimos precederam as escolas e apresentavam sua música, uma espécie de samba com maxixe - que depois de “As Pastorinhas”, de Braguinha e Noel Rosa, virou gênero musical: a marcha-rancho. Também se apresentavam as “Grandes Sociedades”: Fenianos, Pierrots da Caverna, Embaixada do Sossego, Democráticos e Tenentes do Diabo, carregando sátiras e belas mulheres, nos carros alegóricos motorizados, mandando beijinhos ao som de orquestras de metais. Bonitas, gostosas, provocavam uma farra em nossos olhos. Mas não pensem que desfilavam nuas como agora. As únicas, nesse tempo, que não se vestiam, eram Elvira Pagã e a existencialista Luz del Fuego, que morava na Ilha do Sol. Criaram fama. Mas as belas mulheres dos carros alegóricos exibiam maiôs cavadíssimos, que hoje diriam “bem comportados”. Era uma época em que as meninas se fantasiavam de colombina, cigana, índias ou vestiam um sarongue. Armando Amorim - Memórias
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E as mais audaciosas, de odalisca, com tecido transparente que deixava ver as calcinhas que usavam e as havaianas, com tirinhas de papel, que ao bater o vento, mostravam as suas coxinhas. Era o máximo para a nossa imaginação. À noite, os bailes concorridos: Iate Club, Associação dos Empregados do Comércio, Caiçaras, Monte Líbano, Automóvel Clube e nos clubes de bairro: América, Minerva, Astória, Grajaú, Tijuca Tênis, Sírio e Libanês, Clube Municipal e outros. Os mais pesados eram os do Bola Preta e High-Life, onde a farra era boa. E os do Teatro Municipal, Glória e Copa, famosos pelos concursos de fantasia, onde brilhavam Clóvis Bornay, Evandro Castro Lima e Wilza Carla. O “Baile do Cabide” ficou também famoso, e se dizia que os que chegavam, eram obrigados a colocar toda a roupa, no dito. Não havia ninguém no Rio que não falasse dele. Acontece que nunca existiu, pois só encontrei um que disse ter ido a esse baile; mas era mentiroso de carteirinha. Na verdade, virou a grande mentira carioca. Sobre as escolas de samba, os saudosistas e puristas podem dizer, com razão, que houve uma usurpação indevida da burguesia. Retiraram da população pobre um movimento cultural autêntico, onde o povão extravasava a sua alegria, as suas ironias e irreverências. E como dizia em seus sambas, dias em que se transformavam em reis e rainhas. Não só nas fantasias. Nos desfiles de antigamente, na Presidente Vargas, os figurinos, os adereços e carros alegóricos, apesar de não mostrar a exuberância atual eram, ao mesmo tempo, de incrível beleza. Produzidos por gente do lugar, com poucos recursos, faziam surgir estilistas, escultores, criadores naífes e primitivos de uma singular concepção estética. Por diversos fatores, essa diversão popular foi permitindo a penetração de top-models, artistas, socialites, ou por quem gosta de aparecer ou tem necessidade em se mostrar. Virou vitrine. E os artesãos de morros e favelas deram lugar a designers formados na Esdi, escultores do Belas Artes, figurinis214 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
tas e coreógrafos profissionais, historiadores, engenheiros mecânicos e outros especialistas, transformando a diversão singela, no maior show musical e teatral do planeta. Hoje, o Desfile é um grande negócio turístico e econômico, movimentando milhões de dólares. É, na verdade uma monumental e atraente apresentação, com mais de 50 mil figurantes, que desfilam em palco criado por Oscar Niemeyer. Nele, ainda podem ser notados alguns representantes autênticos na bateria, porta-bandeira e mestre-sala, ala das baianas e outras poucas, pois há a necessidade desse contraponto, para o sucesso do show. Mas o carnaval agora é para os outros. É para os gringos. Apesar de bem diferente da escola de samba de antigamente, continua mostrando, em outra dimensão, a criatividade brasileira, onde diversas artes interagem, como uma monumental instalação. Pode-se até reclamar que o samba-enredo mudou de andamento, mas, quem sabe, estará surgindo novo ritmo brasileiro, que se encaixará entre o samba e a marcha. Por enquanto, não sabemos onde essas transformações vão chegar, como qualquer movimento que é criado ou modificado. Mas ele, hoje, é fantástico, não há dúvida, apesar das “bundalhadas” e peitos em excesso, que vão banalizando essas partes magníficas da mulher, fazendo-as perder a atração que tinham nos tempos de outrora. Para os puristas e saudosos da folia do passado, é necessário perceber que nada é permanente; o tempo modifica, acaba ou transforma mesmo o que seja certo e bom. Mas há as compensações, pois o povo sempre cria soluções. Como tomaram dele a sua diversão, a autenticidade primitiva de sua brincadeira, nos bares, nas ruas e bairros surgem a cada ano dezenas de blocos, que se juntam aos que permaneceram, alguns já desfilando com 100 mil foliões e até mais. Volta assim para as ruas a bagunça alegre, o jeito debochado do carioca, reinventando a maneira verdadeira como ele gosta de se divertir no carnaval. Os foliões estão aí espalhando alegria no “Suvaco de Cobra”, no “Rola Preguiçosa”, no “Tarda mas não falha”, e em vários outros: “Bloco do Barbas”, “Dalai Lata”, “Suvaco Armando Amorim - Memórias
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de Cristo”, Perereca sem dono”, “Já que tá dentro, pra quê sair”, “Meu bem volto já”, “Chupa mas não baba”, “Cachorro cansado”, “Vizinha Faladeira”, “Simpatia é quase amor”, “Bunda Mole”, “Que merda é essa?”, “Vem pra mim que sou facinha”, “Bloco de Segunda”, “Monobloco”, “Concentra mas não sai”, “Pega mas não aperta”, “Quem não Guenta, Não Bebe”, “Vira-lata”, “Bloco dos Carmelitas”, “Comeram o meu gato”, “Tá tudo certo pra dar merda” e tantos que se juntam às bandas, que os bairros vão criando. Desfilam no escracho, na irreverência as suas alegrias, da mesma maneira como os precursores das primeiras escolas de samba, como o bloco dos “Arengueiros”, que se transformou na Estação Primeira da Mangueira. Parece que recomeça o ciclo. Portanto, o carnaval do Rio que estava confinado ao grande desfile das Escolas de Samba tipo exportação, volta novamente para a rua. É certo também que a Escola criada por Ismael Silva e a sua turma do Estácio, transformou-se no maior espetáculo da Terra, apesar da substituição do crioléu que sabia dizer no pé, por brancos azedos desengonçados e mulheres com peitos que viraram embalagens de silicone. Mas ainda se pode cantar: Sá-ssa-saricando/ Todo mundo leva a vida no arame... “É como o povo tá levando”... Apesar de que a tribo carioca continua sabendo dar a volta por cima e, como ninguém, desconsertar qualquer seriedade. Graças a Deus.
Depois da alegria, uma tristeza Para contrastar com a alegria anterior, não se pode deixar de falar de uma grande tristeza do antigamente mais recente: a ditadura iniciada em 64. No início o povo não se importou com o golpe militar e aprontou até marchas cívicas para abreviar o acontecimento. A maioria festejou a entrada das forças armadas, pois tinha elegido Jânio e não Jango. Frustrado com a doidice do primeiro, não percebeu que o vice teria todo o direito de governar. O resultado foi a deposição de Jango, um político julgado de “mais ou menos”, sem tanta expressão ou popularidade, com algumas ideias socialistas, 216 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
promovendo agitação na Central do Brasil e outras manifestações, razão de se afirmar que houve “dedo” americano na jogada. Pode ser. Na verdade Jango foi injustiçado, pois ninguém se lembrou da época em que foi ministro do trabalho, quando dobrou o salário mínimo e em um ano como presidente esboçou a criação da reforma agrária, além da reforma da educação, convocando Paulo Freire, que certamente iria mudar esse país. Não deixaram. Na capital que havia sido “garfada”, inventando-se o Estado da Guanabara, governado por Carlos Lacerda - amado por muitos e odiado por outros tantos- o povo ia levando a vida, nem tão boa, nem tão ruim, pois, no início, não sabia o que viria. A garotada vivia os ie-ie-iês da vida e os mais intelectualizados, a bossa-nova que, em suas ondas à beira-mar, acabaram encontrando as favelas de Cartola, Zé Kéti, Carlos Cachaça, Clementina e outras raízes. Copacabana, Ipanema e Castelinho recebiam as garotas douradas em biquinis tentadores. E, depois do sol, o Beco das Garrafas e outros cafofos, como o pé-sujo “Mau-Cheiro”. Nas outras zonas, o povo ia levando a sua vida suburbana e, nas favelas, que não eram tantas, nem comandadas por ninguém, a pobreza, a vida de sacrifícios, parecida com a de hoje. Portanto, o medo, no início não foi tanto, pois, para a maioria o Golpe duraria pouco tempo e, na certa, haveria novas eleições. Durou 30 anos! Somente em 68, com a chegada do AI5, é que o “bicho pegou” e o povo percebeu a “furada” em que se meteu. Prisões injustificáveis, torturas e mortes. Isso não quer dizer que todos os militares agiram assim. Houve muitos que condenavam as brutalidades e outros que não concordavam com a própria ditadura. Conheci alguns assim. Mas outros achavam que o “inimigo” encontrava-se em toda parte e agia com raiva de trincar os dentes. Combatiam um “exército” imaginário, na verdade, alguns valentes românticos que pegaram em armas, pois em sua utopia, queriam derrubar a ditadura. Pensavam que o povo iria aderir, mas nada disso. Armando Amorim - Memórias
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Apesar da truculência incontrolável, valeu aí a criatividade de nossos artistas, dos nossos humoristas e de alguns intelectuais. E enquanto a imbecil C.C.C. jogava bombas em instituições, bancas de jornal e livrarias, uma turma audaciosa e valente sequestrava embaixadores, para obrigá-los a soltar os chamados presos políticos. E os covardes, iam morrendo de raiva. Mas a repressão era tão violenta, que nos impunha um estado de medo permanente. Passei por este medo. Estava com a jornalista e cineasta Tânia Quaresma pelas madrugadas, quando resolvemos terminar o papo num “aparelho” já desativado, em Ipanema. Lá pelas tantas, escutamos vozes e em seguida chutes e trombadas, tentando derrubar a porta no tranco. Pela fresta da janela, vimos dois Opalas pretos estacionados na entrada do edifício, com pessoal do DOI – CODI. Como o “ap” estava às escuras, foram embora, para o nosso alívio, e não deixamos de agradecer em reza, ao marceneiro que construíra aquela robusta porta. Era tempo de repressão braba e, naquela madrugada poderia ter sumido do mapa, como muitos brasileiros. Como destaque dessa época, aparece a turma genial do “Pasquim”, anarquizando o regime. Era a maneira eficiente de contra -atacar. Mesmo sob uma censura violenta, o povo percebia e vibrava pelas mensagens das entrelinhas e até dos “não artigos”. E a gozação aumentava a raiva deles, pois não conseguiam vencer a inteligência. Isso doía mais, do que os tiros que pudessem acertá-los. Mais tarde, surge também um genial Chico Buarque, que compõe, entre várias, a obra-prima “Apesar de você/amanhã há de ser/ outro dia. E eu pergunto a você/ onde vai se esconder/ da enorme euforia/ Como vai proibir/ quando o galo insistir, em cantar ... Você vai pagar e é dobrado... “ E, pelo menos, um pagou, quando estourou em suas mãos, a bomba do Riocentro, que ia ser jogada ali, covardemente. Foi um tempo do antigamente que não deve ser esquecido, para que desse mal não se padeça mais. Pois, além de desestruturar as 218 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
famílias que tiveram que se refugiar em outros países, alguns torturaram e mataram covardemente, muitos brasileiros. Sem razão.
Paz e Amor Nos anos 60 chegaram os hippies e a onda psicodélica, continuação da geração “beat” ou beatnik. Não se pode negar que a contracultura, o sonho de mudar o mundo, o culto à liberdade e muitos de seus conceitos, serviram para algumas transformações. Muito ácido rolou, pois alguns achavam que as drogas teriam que fazer parte da rebeldia. Mas aqui, a maioria gostava mais da onda, dos cabelos longos, das roupas desalinhadas. Eram hippies de carteira assinada, contribuindo para o INSS. Sair pelas estradas da vida em busca da natureza, da liberdade total, eram poucos que se aventuravam, pois carioca anarquiza qualquer anarquia. No máximo, uma caronazinha até Petrópolis. A maioria curtia só o movimento - que era simpático - e de se vestir com uma roupinha de algodão, largada. Mas à noite as jaccuzzis funcionavam e se dormia em belos lençóis, nos ares condicionados. Paz e Amor.
Papo Cabeça Chegou também o tempo do cinema novo e o cine Paissandu virou onda. Só se falava em Godard, Buñuel, Claude Chabrol, Langlois, Truffaut e a gente passava a noite inteira no Garota do Flamengo ou no Oklahoma, discutindo e citando conceitos sócioculturais-filosóficos de coisa nenhuma, mais ou menos o que faz hoje, o nosso bom Gilberto Gil. Foi o tempo do “papo-cabeça” e nos sentíamos intelectuais de vanguarda. Na época, surgiu um jornal alternativo, ainda com ares psicodélicos misturados a mensagens metafísicas e me convidaram a escrever uma crônica. Saí com essa: “CONTO DO “V”: “Era a vontade de não fazer nada”. Papéis. Fumaça. Esso. Arranhacéu, Cheiro da fumaça sufocando o cheiro da terra, sufocando o crepúsculo embaçado. Pé que corre. Pé que cansa. Sobe. Desce. Desce. Sobe. Empurra. Uff! A vida passava como passam as nuvens no chão. Um dia desArmando Amorim - Memórias
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ses, parece que vou. E acordo vendo tudo pela primeira vez. No cartão, a classificação: “sem rumo”. “Era hora de sentir do mar, o cheiro em sal. Saber das estrelas porque apresentam de azul, o seu vermelho. Saio então com relógio parado, pois só marca as horas de insensatez. De amor me levo, enterrando máquinas e devorando o crepúsculo que se torna roxo com listras horizontais em azul. Cintilantes. A verticalidade não servia para demonstrar a beleza do abismo, que está na visão de quem o vê da borda. E caminhamos finalmente. Com três braços e um abraço à procura das azaleias. O caminho nos conduzia ao cheiro honesto e a visão acima do albatroz. Estava atapetado de papoulas azuis que gritavam na pressão dos pés molhados: seja como for, prefiro morrer assim... Girassóis iluminavam os cavalos rosados que pastavam as folhagens no orvalho que se fazia prata. Todos se curvavam ao passar do homem livre. Cada pegada enterrava cada aflição. De madrugada, a imaginação avisava que o homem em naufrágio, só quer sentir a visão da escuridão e do abandono. Passos lentos. Mornos. Devagar ia a vida. Será que o mar de rosas existe? As ninfas da noite disseram que sim. O viajante repetiu: só me interessa e nada mais. O que? a chegança às prendas perdidas. As grades aproveitavam das palavras que chegavam em eco e uma a uma ia se derretendo como sorvete esquecido. Sem a herança do corpo, deitamos na areia úmida, conseguindo derradeiramente a distância. Daí por diante, os corpos adormeceram. Bem longe, um pé de folhagem exageradamente azul, falava baixinho: docemente... Docemente... enquanto um buquê de borboletas se oferecia a uma flor branca, que não conseguia lembrar que era uma rosa. Parecia. Procurando então a cadência das ondas, se transformou numa fonte. Com água e correnteza, levando, como os homens justos, as pedras de seu caminho. Foi nesse dia que agradeci à vida, o seu gesto”. Posso dizer que alguns da patota gostaram das mensagens e houve até quem veio comentar como interpretara o texto, com suas versões para cada frase. Tempos depois, fui proibido de aparecer na publicação, pois respondi a quem me perguntou o que seria o “V” do título do conto. Tive que confessar que se tratava de “vigário”. “Conto do Vi220 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
gário”. Aquilo tudo escrito não queria dizer absolutamente nada. Ajudou-me a entender também certa pintura contemporânea ou abstrata, onde as tintas são jogadas no impulso, no gestual, e quem quiser que as interprete. Mas foi uma época boa, que pelo menos nos fez pensar em coisas diferentes de futebol e exercitar, além de braços e pernas, a cachola.
Palavras e expressões vão mudando Isso dá a certeza que, como a moda do vestuário, palavras e expressões surgem e desaparecem. Algumas até voltam. Mas a maioria não resiste a uma geração. Também não se sabe como aparecem, mas, ao incorporarem à linguagem, quase sempre se tornam insubstituíveis para expressar certas emoções ou resumir o que se pensa. Em nossa tribo já não se falava “Vai amolar o boi”. Era expressão da vovó ou de nossa mãe, quando algum “pentelho” lhe “apurrinhava”. Estas, muito usadas por nós. Também, se a netinha estivesse com silhueta Giselle Bundchen, na certa escutaria: você está “desmilinguida!”. Pelo som, palavra perfeita para exprimir que a menina estava “magra pra cacete”. Naquele tempo se alguma coisa não fosse boa era “furreca”, substituída depois por “mixuruca “ ou “micha” A mamãe podia ter um “faniquito” ou “fricote”, se o filho fosse um “estabanado”, um “pá-virada”, “peralta”, “levado” ou “traquina”. Conforme a gravidade poderia levar um “pito” ou uma “sova”. E não valia fazer “muxoxo” ou ficar “borocoxô”. Se chorasse, diriam: é uma “manteiga derretida”. O bobo era “pamonha” e o “afeminado”, também “maricas”. Se o “marmanjo” lhe enfrentasse era porque tinha “topete”. Ter um “cacho” com alguém seria mais ou menos o “ficar” de hoje. Mas se a filha estivesse se “enrabichando” com o vizinho que era da “fuzarca”, então o “pau comia”.
Armando Amorim - Memórias
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Já em nosso tempo, apareceram outras palavras e expressões que não se via no dicionário, mas definiam muito bem o que se queria dizer. Além daquelas que aprendemos com o pessoal do morro e as incorporamos, chamávamos o cara chato de “cri-cri”, “muquirana”, “seboso” ou até “paquete”. Se bobeasse, poderia levar uma “pitomba”, uma “porrada nos cornos”, um “catiripapo no pé do ouvido”. Se acertasse bem ali, tinha pegado na “chincha”. Em contrapartida, o cara legal era “pedra noventa” ou “trancham”, ou até um cara “barreiro”. Já um escroto, como certas palavras, não há como definir. O cara reunia vários defeitos e só se podia dizer que era mesmo um escroto! “Foi pras picas” ou pras “cucuia”, quando se perdia alguma coisa. Quem caiu, “virou vaca”; quem foi embora, “pirulitou” e quem não conseguiu, a “barba cresceu”. Quem queria se mostrar, queria “charlar”. Quem não entendeu, não “sacou” e o medroso, atendia por “cagão”, que poderia identificar também o cara de sorte. O pobre estava sempre passando um “perrengue” ou à “neném”. Tudo que era muito, “às pampas” ou “às pamparras”. O cara cheio de “lero-lero”, um “vaselina”. Pedrada, era “pombo sem asa” e “piruada”, uma sugestão. “Borogodó” era ter charme e o “folgado” adorava “tirar uma chinfra”. Mas se caísse, tinha “virado vaca”. Muitas ainda podem ser ditas pela “patota” da antiga, como “truta” (troca ou traição), “chué” (doente),“cheio de marra”(metido),“azucrinou”(chateou), “guaribado” (mexido), caô (mentira), “nos trinques” (perfeito),”busanfan” (bunda), na “maciota” (devagar, com jeito) e a lista, imensa. Na época, a Play Boy não podia faltar em quarto do adolescente, pois um de seus esportes era sair numa “quatro com patrão”. No setor dos palavrões, todos os de hoje e mais alguns, sendo o mais “cabeludo”, quando alguém respondia: “é a cona da mãe!” Que coisa feia... Para o bem dela e de todos, caiu em desuso. Agora, com os filhos e amigos dos filhos, já estou aprendendo: “To nem aí”, “Fala sério”, “Tipo assim”, “Tá ligado”, “Papo irado”, 222 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
“Foi mal”, “Ninguém merece”, “Tá bombado”, “Mandei mal”, “Caraca!!!”. E se despedem no computador com “xausin”...
Nada como um tempo atrás do outro Hoje, palavras que são usadas largamente, não havia em nosso dicionário. Ou se estavam no Aurélio, ninguém lhe dava bola. Genoma, globalização, botox, DNA, transgênico, lipoescultura, biotecnologia, Ong, narcotráfico, clonagem, silicone, celular, camada de ozônio, sexo seguro e vai por aí, como “descartável”, que fez mudar muitos conceitos, inclusive de profissão, quem possuía a habilidade em consertar alguma coisa. Cadê o sapateiro da 1/2 sola? O funileiro das panelas furadas? O garrafeiro e tantos outros? Sumiram. O responsável pelo surgimento desta palavra foi a tal ciência e tecnologia, que hoje possui até ministério e possibilitou produzir-se aos montões qualquer treco e muito mais barato. Restou a saudade para alguns, que enchiam as suas canetas Parker 51 ou Strebook com tinta Parker Quink e de fluído, os isqueiros Ronson, Zippo e o sofisticado Dupont. Também os que usavam o aparelho com Gillete azul, que cortava dos dois lados (não confundir com o sinônimo pejorativo). Em verdade, esses não devem se lembrar, como era aborrecido colocar todos os dias, as garrafas vazias de leite, na porta de casa, ou levar uma sacola delas ao botequim, para trocá-las por cheias. Um saco! Hoje, quem é da ala “consumista”, palavra que também não se usava, pode ir à shopingues abarrotados de coisas inúteis e, talvez, viva muito melhor, descartando calculadoras, canetas, radinhos de pilha, isqueiros, sapatos, panelas, relógios, spray, garrafas, seringas de injeção e todas as embalagens que substituíram o embrulho. Estão vivendo vida mais confortável e passaram o problema para a ala dos “conservacionistas”, palavra também não usada no tempo de antanho. Mas esta é outra história e não vou me meter nisso. Fazer o que? Muitas coisas agora são diferentes. Uma que mudou, para a alegria da garotada de hoje, é que fazer besteira antigamente, coisa que não devia, a correção era a porrada. Os de hoje, foram Armando Amorim - Memórias
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salvos pela tal psicologia, que não dói. Para contrabalançar e para nossa alegria, tivemos uma Brigite Bardot, muito melhor do que a Demi Moore de vocês. E se quiserem mais: Cláudia Cardinalli, Sofia Loren, Marilyn Monroe, Ava Gardner, Lauren Bacall, Cid Charisse e mais uma penca. Para as meninas que enrolavam o cabelo com “bobes” e passavam cerveja para armá-los, havia o James Dean, que as fazia suspirar. Já a música, que melhorou de certo modo, depois dos Beatles, da Bossa Nova, durante um tempo quiseram lhe tirar a melodia, a graça, a vivacidade. Mas essa, o povo respondeu: dodecafônica é a mãe. Em nosso tempo, havia Gentileza. Não só aquela de abrir portas para as damas ou puxar cadeiras para sentar; mas um Gentileza de carne, osso e alma boa. Foi um dos nossos “profetas”, que saía com seus estandartes, pregando o amor e a solidariedade. Dizia-se que era maluco. É sempre assim... O outro gentileza, com seu smoking nos trinques, ia de boate em boate, bar em bar, oferecendo flores. Só podia ser o “Pedro das Flores”. Muitas coisas agora são diferentes. Apesar de que podem não acreditar, não havia “xopingues”; e muita garotada há de perguntar: onde era a onda nos fins de semana? A nossa Fórmula 1 era chamada de “Corrida de Baratinha” e nosso Senna, o Chico Landi, que fazia misérias no Circuito da Gávea, que margeava a Rocinha, com a terrível “curva-do-diabo”. Podíamos assistí-la bebendo um grapete, crush ou guaraná caçula ou chupando um jajá de limão ou de coco, pois o “Sorvex”, em forma de tijolo, era o sorvete da Kibom que se levava pra casa. Para fazer uma copiosinha de qualquer coisa, basta hoje enfiar numa xerox ou no computador e zas-trás está pronta. Nossa época era cópia fotostática, uma atrapalhação para ser feita. Atualmente chegamos ao cúmulo de se falar em impressão de 3 dimensões, que fabrica qualquer troço. Vão acabar fabricando gente. Hoje, também, as plantas não precisam ser cuidadas nem regadas, pois há qualquer tipo em plástico, igualzinha às verda224 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
deiras. E já estão fazendo cachorros que latem, passarinhos de belos cantos e peixinhos que nadam e fazem até borbulhas. Tudo de mentirinha, diminuindo tempo e custos. Só não podem fazer boizinhos que mugem, pois aí, cadê nossos bifinhos... O armazém era onde se compravam os “secos e molhados”, eram pesados nas balanças de dois pratos. Código de barras, nem pensar; só havia o lápis do patrício, que fazia rápido a soma. Na hora de pagar, nada de cartão. Valia só dinheiro vivo ou anotação no livro do mês. As praias não mudaram; se embelezaram com seus calçadões e outros visuais. Como antes, continuam de graça e com o mesmo cocô. ...mas os tatuís se mandaram. Em nossa época, “combinação” não era combinar nada com ninguém; a mulher a vestia por baixo do vestido. Pra quê, não sei. Também, Sombrinha não era o filho do Sombra. A mulher com ela se cobria, para proteger-se do sol. Quem, como eu, é do tempo de “coca-cola com rolha”, deve lembrar-se das meninas de 15 anos usando seis ou mais anáguas, o que lhes davam silhueta de abajur. Para namorar e dançar, um horror, mas ajudavam a resguardar o hímen, o cabaço, que naquela época não era considerado defeito físico. Para elas, havia também o vestido godê e o bolero, que era um tipo de casaco curto, colocado quando vestiam um “tomara que caia”. Quando entravam no vestido “saco”, dentro dele.
parecia que andavam
Sapato? O Anabela fez sucesso... Na cabeça, ficava bem o misamplis ou o permanente. Se “ficassem”, como ficam hoje, eram chamadas de “galinhas”. Injustamente, pois galo e galinha não se beijam e nem apertãozinhos, dão. E as especiais, dizia-se que tinham “it”. Outras modas chegaram, quando usaram um “cinto de bombeiro” largo, de elástico, que as deixavam com corpo de violão. Fez sucesso. Armando Amorim - Memórias
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Mas nada se compara com as minissaias que chegaram, pois as fazem mais charmosas e gostosas. Vocês se deram bem... . Hoje, as mulheres também são muito mais bonitas. Antes, nasciam e viviam com os olhos de cores que Deus lhes dera. Agora, são escolhidos, combinando aos vestidos. E para o resto, nem se fala: basta tirar daqui, por ali, cortar ou chupar o que estiver sobrando ou colocar o que faltar. Hoje, não se vê mais nariz feio, boca torta, orelha de abano, sobrancelha desajeitada, peito caído, ruga, papo, barriga e até falta de bunda. E viva o butox e silicone! Já houve até uma mocinha que se enfezou quando lhe perguntaram: os peitos são seus? E ela braba: Claro! Eu os comprei! Confesso que prefiro as mais naturais da metade do século passado, com peças originais de fábrica, semelhantes às frutas, vegetais e legumes, que não eram tão viçosos como os de hoje tratados com tantos produtos químicos - mas, na verdade, mais saborosos. Os nomes melhoraram muito. Antes, eram Maria do Carmo, Maria do Céu, Maria dos Prazeres, Maria Auxiliadora e tome Maria. Muitas vezes desejando que as virtudes do céu se transferissem para as suas donzelas. Vieram então as Kátias, Biancas, Vanessas, Carlas, Alessandras. Isso no papel. No chamamento elas viraram Rê, Jô, Tê, Rá, Li, e por aí vai. .Também não são mais chamadas de “brotos”. Broto agora só de feijão e pode ser comprado no supermercado. E não há mais a generalização, pois elas podem ser patricinhas, clubbers, descoladas, básicas, modeletes, patys e mais alguns. Já o garoto, caraca! Virou grunge, maluco, bicho-grilo, moleque, nerde, mané e assim vai. .Lá por volta de 1950, as mulheres resolveram pintar um risco nas pernas, imitando a costura das meias. Nunca descobri por que, mas desconfio que seria por pura economia. Alguns sacanas andaram dizendo que deveriam fazer o mesmo com as calcinhas e sutiãs. .Roupa de grife é invenção moderna. Para os homens da época do “parece linho, mas é linholene”, camisas bem justas e ainda 226 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
se davam dobrinhas nas mangas, para se mostrar os músculos. Depois, as camisas de ban-lon foram uma praga, sem falar numa “volta-ao-mundo”, que não precisava passar: bastava lavar e pendurar. E o suor escorria, continuando a dita, sequinha. E ainda passamos pelas coco ralado. Tênis era um simplesinho, sem nenhum charme. Sapato mocasin entrou na moda, mas os melhores custavam caro e era feito à mão, pelo “Motinha” e engraxado com Nugget. Depois apareceu um tal de Zezo, que virou mania. Era um tubo com graxa líquida e uma esponja na ponta. Bastava passar, sem necessitar escova para o brilho. E calçamos a confortável e feia alpargata “Roda”, com sola de corda. De um modo geral, vestia-se e calçava-se muito mal. E tudo teria que durar, pois custava caro - bem mais do que agora. A calça para festinha era de tergal e teria que estar bem vincada; o que nos fazia passar a ferro colocando uma folha de papel por cima, para não ficar lustrosa. Veio finalmente o jeans, a grande mudança. O “blue jeans” chegou depois da IIª Guerra Mundial e mudou tudo. Mas ter uma calça Lee não era tão fácil, pois custava uma boa nota. Mas se fazia aqui a “Rancheira”. .E vocês, garotada, apesar de não ser moda tão antiga, se livraram da “bolsa-capanga”. Um horror. E da calça boca-de-sino que ajudava a varrer o chão Mas praga mesmo foi a invenção do boné, principalmente aqueles anunciando alguma coisa. Invadiu o mundo e vemos esquimó, tribo africana, pigmeus e até os aldeões da terrinha, com a cabeça enfiada nesse veículo de propaganda ambulante de mau gosto. Por aqui descaracterizaram o nosso índio que deixou de usar o seu belo cocar de penas e até o homem do campo não mais exibe aquele chapéu de aba amassado, gasto, mas que lhe dava dignidade. Vou fazer campanha: “Abaixo o boné!”... “Fora com o boné!”... E até inventar e apelar: “Boné dá câncer!”... Na praia, os maiôs inteiros se transformaram em duas peças. Mas, para a nossa alegria, no auge da mocidade, ainda pegamos o biquini - um arraso! Mas quem imaginava que o biquini era o máArmando Amorim - Memórias
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ximo em se mostrar, não contava com o monoquini. Não “pegou” a moda, talvez por não existirem naquela época os silicones, os peitos de borracha. Já o fio-dental, é da rapaziada de hoje: vocês venceram... A coragem hoje aumentou muito. Antes, quem era corajoso, saltava de bonde andando. Agora, o cara salta de um avião com esqui, e só abre o paraquedas, “uma hora” depois. Isso, sem falar nos que amarram um elástico nos pés pulam das alturas e viram iô-iô humano. Tudo isto, em busca de muita “drena”. Vão acabar entrando numa Mercedes zero para passear a 20 km/h na Linha Amarela. Os nossos esportes eram bem diferentes: basicamente a pelada, que podia ser em qualquer campinho ou até no paralelepípedo. No mais, era remar barquinho na Quinta ou pegar jacaré na praia. E só. Agora se tem “jetiesqui”, “uindissurfi”, “bodiboardi”, pipa que puxa esqui, “isqueite”, asa delta, canoagem, rapel, “sandboardi”, parapente e outras geringonças. Aliás, me esqueci que tínhamos também o nosso “carti”. Só que funcionava nas ladeiras e tinha-se que frear a “ tábua com rodas de bilha”, no pé: uma emoção. Hoje, quando assistimos essas loucuras da garotada, dizemos que têm merda na cabeça, não lembrando o que disse Bertrand Russel, que dominar o medo é o início da sabedoria. Particularmente, acho que dominar a sabedoria é o início do medo. Mas, o que rapaz nenhum tem agora - e eram fartos antigamente - os topetes, seguros por Gumex ou Glostora para dar lustro e até Brilcream. Tudo isso para ficar “pintoso”. Vocês garotada, não conheceram o Drive-in na Lagoa, do Ricardo Amaral, lugar ideal para fazer saliência... Uma das coisas que me incomodava, ao estar “apertado” era o de comunicar “Vou ao mictório”. Pode? Que palavra mais sem jeito! Mas a mais esquisita da língua portuguesa é cônjuge. Basta pronunciá-la para ter essa certeza. Orelha só servia para apoiar os óculos - quem precisasse - ou 228 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
o “Raiban” para fazer pose. Pendurar brinco, nem “boiola” teria tanta coragem. Tatuagem, nem pensar. Era coisa de marginal e a moda deles era imprimir um coração com o nome da amada, ou escrever “Amor de Mãe”. O que falar então dos pírcingues de certa moçada de hoje, que enfia brinco na língua, nos peitos, no nariz e até onde não deve, pois ali é zona sagrada? O que hoje ninguém reclama, é o tempo de viver que se tem, ou a chamada expectativa de vida, que já passa dos 70. Isso se a bandidagem deixar. Na seção ”larápios”, não eram tantos e se hoje atuassem, seriam os primeiros a aderir a campanha de desarmamento. Havia sim, o “batedor-de-carteiras”, que se encostasse em alguém, a dita já era. Como um mágico treinava os dedos. No mais, era o conto-do-vigário ou do paco, que os “mais malandros”, gananciosos, caíam. Quando um desses saía da linha “laite”, ficava famoso por anos, como o “Zé-da-Ilha” e “Carne Seca”. Hoje, a malandragem usa de canhão pra baixo e ninguém fica famoso, pois a concorrência é imensa. No departamento dos “fóra-da-lei”, também não abundavam a linha “bem vestida”, repleta hoje de Nicoláus, Anões, PCs, Hildebrandos, Barbalhos, Pittas, Calheiros, Malufes, os do Mensalão, LavaJato, Cacciolas, a turma da Petrobras e Cia. Por alguma trapaça que o governador de sampa, Ademar de Barros fez, até hoje os da antiga lembram dele. E de tão inusitado o fato, criou-se até slogan: “Rouba, mas faz”. Mas os de hoje podem festejar, pois ter carro naqueles tempos era para poucos: só quem tinha muito “larjam”. E os bacanas desfilavam em seus cadilacs-rabo-de-peixe. Era o máximo para “charlar”. O primeiro feito aqui, em 1955, não se parecia muito com carro. Chamava-se Romisetta e era meio esquisito. Possuía só três rodas e a porta ficava na frente. Mas, no ano seguinte, apareceu a Rural Willys. Armando Amorim - Memórias
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A polícia, ninguém pense que a de hoje é pior. A de antanho também ganhava mal e batia. Principalmente em quem não tinha dinheiro. Como dizia um filósofo do morro 71, “fruta de pobre é cana”. Continua sendo. Na hora da diversão do povão, o rádio era a melhor opção, mesmo antes dos “transistorizados”. Em todas as casas o rádio de válvulas (oh! coisa antiga), ficava no lugar nobre, para se escutar novelas, o PRK 30, com Lauro Borges e Castro Barbosa; as Piadas do Manduca, o Pimpinela, Jerônimo, o herói do sertão, Romário, o homem-dicionário, as Aventuras do Zorro, Pergunte ao João, com o Majestade e os programas de auditório, sintonizando a Rádio Nacional, com as disputas entre Marlene e Emilinha. E o So mbra, sabe... O rádio naquele tempo nos inundava de lazer. Como tem o poder de nos fazer criar a imagem daquilo que escutamos, ajudava a desenvolver a criatividade e a nos fazer pensar. Um restinho disso ainda podemos perceber quando escutamos a Rádio MEC, Nacional ou Roquete Pinto, com uma turma especial que não deixa a nossa boa música ser esquecida. Na Nacional, contam as curiosas histórias de nossa música e alguns poucos mais, que ainda resistem. Mas procurando-se com paciência, ainda vale escutar as broncas inteligentes do Boechat diariamente na BandNews, o que nos estimula e também a turma da CBN. E sobre futebol, o nosso Washington, o “Apolinho”. Nas rádios de antigamente desfilavam os grandes cantores, que se apresentavam “ao vivo”, além de músicos extraordinários e, maestros, como Radamés Gnattali, Lyrio Panicalli, Alceo Bocchino, Lindolfo Gaya e Leo Peracchi, entre tantos notáveis. Hoje, a maioria das Rádios mostram que nada melhor do que possuir um rebanho. Não de leite, carne ou lã, pois estes estão em baixa. O que está dando dinheiro mesmo é o de gente. E alguns pastores de araque, cismam que Deus anda duro. Seu filho então, nem pensar. Se alguém ganha um dinheirinho, quer logo comisssão de 10%. Por baixo. E nesta conversa de “cerca-lourenço”, são os únicos que estão faturando bem. Ou se não é isso, o Criador possui no firmamento uma grande multinacional e quer levar o dinheiro daqui, pra lá, na tal remessa de lucro; (o exemplo já está 230 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
fazendo o meu amigo Abdias querer também criar uma: a “Igreja do Senhor Pobre”. E diz que vai ser negócio honesto; tudo que arrecadar será destinado ao Senhor Pobre: ele). Depois, por volta de 1950, apareceu a TV. No início, a perplexidade. Como a imagem poderia vir “pelo fio”? Os programas eram bem piores do que os de hoje, mas era uma curtição assistir um jogo de futebol irradiado por Ary Barroso, com sua gaitinha. Flamenguista doente, praguejava, reclamava quando o seu mengo não ia bem; mas vibrava em seus gols, tocando a sua gaitinha e gozando os adversários. Mas havia alguns programas, como as mesas redondas de Gilson Amado, o teatro de Jacy Campos e as entrevistas de Silveira Sampaio, onde se aprendia alguma coisa. Valeu a descoberta da TV e hoje, além das bundas que abundam, e apesar de não ser aproveitada como deve, se transformou no lazer do povão, pois outros ele não pode pagar. Para as nossas mamães, as chamadas “donas-de-casa”- que agora não são tantas - pois foram trabalhar fora, houve muitos avanços e facilidades. Isto porque, eletrodoméstico naquela época se resumia em geladeira, aspirador, enceradeira e ferro-de-passar; e mesmo assim, para quem podia. Para o resto, era mesmo o escovão, espanador, ferro à carvão e geladeira de madeira, em que se colocava gelo em pedra. E completava-se com tanque, bacia com anil, roupas para quarar ou no varal. Na cozinha, munheca para bater bolo, moer carne, espremer laranja e assim por diante. E, finalmente, detergente era sabão- português e o xampu, sabãode-coco. Para arear a panela, sapólio Radium. Mas depois, como prêmio, poderiam se banhar com o sabonete Lever, usado por 9 entre 10 estrelas do cinema. Era a compensação.
Os remédios não eram tantos Em nossa casa, a base dos tratamentos era a Homeopatia e a mãe, craque no assunto. Mas, de um modo geral, na casa de todos e mesmo na nossa, havia os remédios alopáticos e alguns de ervas. Para a dor de cabeça e resfriados, o atual Melhoral, que os “reclames” diziam “é melhor e não faz mal”... Armando Amorim - Memórias
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Esse era um deles, mas havia a Cibalena, a Cafiaspirina e a Instantina. Nas indisposições do estômago, o Sal de Frutas Eno, bem antes de chegar o Alka Seltzer e o Sonrisal, que se tornaram uma sensação. Usava-se muito o Leite de Magnésia de Philips, laxante e antiácido, e o Elixir Paregórico, para dor de barriga. O Atroveran, para cólicas; se o intestino estivesse “solto”, tascava-se o Enteroviofórmio, que tampava como rolha; foi proibido. Se o fígado estivesse bombardeado, o jingle receitava: “Magnésia Leitosa de Orlando Rangel/ Magnésia Leitosa, gostosa fiel. Mas havia os que preferiam: Pílulas de vida do Dr. Ross fazem bem ao fígado de todos nós. E diziam: “as pequeninas que resolvem”. Para ficar parrudo, nada das “bombas” de hoje; a nossa era o Phymatosan, Biotônico Fontoura para o sangue, músculos e nervos e a Emulsão de Scott, com aquele homenzinho carregando um peixe nas costas. Um horror! E havia ainda o Vinho Reconstituinte Silva Araújo, que eu desconheço o que reconstituía. Mas se fosse necessário fortificar os ossos, Calcigenol. Para os olhos, o preferido era o Lavolho e Água Boricada. E se a dor de dente estivesse insuportável, enfiava-se no “buraco”, Guaiacol ou a Cêra do Dr. Lustosa. Para “espinhela caída”, Emplastro Sabiá. Peito encatarrado, Vick Vaporub ou um Cataplasma de Mostarda. Ainda, “para tosse, bronquite e rouquidão”, Xarope São João ou o de Agrião. Para alguns, valia ainda tomar, o Rhum Creosotado, que ficou famoso pela propaganda nos bondes: “Veja ilustre passageiro”... Também quando os resfriados vinham acompanhados de dor de garganta, chupava-se Pastilhas Valda ou aplicava-se “pinceladas” com tintura de iodo ou Colubiazol, arrematando-se com lenço embebido com álcool em torno do pescoço. E para o geral, receitava-se logo, Bicarbonato. Ai! O calo doeu? - Tasque pomada Parisiense. Era o que se receitava. No caso dos ferimentos, passava-se Acetalíquido, Água Oxigenada e completava-se com Mercúrio Cromo. E nas feridas mais feias Iodo ou Violeta de Genciana. Se fosse furúnculo, ele “amadurecia” com Pomada de Basilicão. Para as crianças, o jingle criado pelo cronista Antonio Maria dizia no final: “mamãe tem Aurissedina”. 232 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Na época da adolescência, quando surgiam as espinhas, passava-se logo a Pomada Minâncora; e para a beleza da pele, o Leite de Rosas ou Leite de Colônia, que todas as mulheres usavam. E contra sardas, só podia ser Antisardina e contra rugas, o Rugol. Mas havia também o Sabão Aristolino, que servia para tudo, até erisipela. Eram esses e mais uns poucos os remédios de antigamente, complementados com os chazinhos e as receitas da vovó. Uma delas, para a dor de cabeça, era colocar rodelas de batata crua na testa. Funcionava. Hoje, a farmácia que já havia perdido o Ph, virou Drogaria e se parece com um supermercado, com mais de mil produtos - para acabar com cada um de nossos males (que aumentaram) e encher os bolsos das multinacionais. Mas, sem eles, dizem, a gente padece ou vai pro buraco. Valeu então o progresso, acho eu. Para os que podem pagar.
Para viver: Não veja, não leia, não escute Hoje em dia, os veículos de comunicação, viraram veículos de “pormedonagente”. Nas épocas que se foram chamadas de antigamente, morria-se de tuberculose, tifo, coração e outras coisinhas. Hoje, morremos de medo. Não só dos marginais que abundam, mas do que se fala nas rádios, tevês, jornais e revistas. Diariamente são toneladas de informações, dizendo que você parado está morrendo. Vida sedentária mata. E tome academia, corrida no calçadão, ginástica na tevê, malhação e só malhação. Vem então o sentimento de culpa dos que, como eu, preferem viver parados. E para nós, falar disso é que mata. Do cigarrinho, nem se fala; ou melhor, dele se fala. É morte certa; principalmente para os que fumam, escutam e leem o que deles dizem. Estes, já estão sentados ao lado do buraco e só esperam um empurrãozinho. Cá pra nós, não poderiam escolher a chicória, jiló ou o maxixe para ser cancerígeno? Das comidas então, o que se diz não está no gibi: mais de duzentas entopem as veias e outras causam males no fígado, estômago, rins, intestino e o que a gente tem por dentro. As que sobram, são cancerígenas. Só livram a cara de alguns “matos” e Armando Amorim - Memórias
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mesmo assim avisam que estão carregados de fungicidas, herbicida, inseticida e a gente comendo deles, se suicida. O sal, deveria ter impressa aquela caveirinha que indica Perigo! Mata. E o açúcar, há, há, há, leva qualquer um ao diabetes. Passei a tomar refrigerante Diet, para me previnir. Mas acabo de ler que é a pior das bebidas. É considerado o “veneno do século”. O aspartame induz ao câncer, ao mal de Alzheimer, ataques epilépticos, fadiga crônica e danos silenciosos terriveis. Pode? O leite, só o desnatado, coisa que não existia na antiga. Mesmo assim, sai fora dele, pois com água sanitária, só serve para lavar. E o tão gostoso pão com manteiga, nem falar; cuidado com o bromato e o colesterol. Aquele pastel de carne ou queijo que deliciávamos nos botequins da vida, hoje, stop! Não chegue nem perto, pois mata a certa distância! Queijo amarelo, proibidíssimo. Só está liberado aquele pálido, branco, que de Minas não tem nada; mas nele abundam colibacilos ou coliformes fecais. E o que dizer de bacon, fritas, lombinho, chope com bolinho de bacalhau, presunto, torresmo e outras delícias que se falam com horror? Se algum mortal de coragem se aventurar nessa empreitada, só pode ser salvo desligando a TV, o rádio e não ler nada por um bom tempo. Café, chocolate e as outras coisas doces da vida é querer transgredir ou atentar contra a própria. E carne vermelha? Essa, apesar da nossa não estar louca, dá até arrepio ou pena, ao ver alguém entrando na churrascaria. Pode-se lhe encomendar a alma. Mas se tudo isso não bastasse, os aditivos estão aí à espreita, prontos para nos matar. Isso é o que dizem. E veja se em alguma coisa comível que vem em pote, caixa, garrafa ou lata, não estão gravados os FI, FII, FIII, INS221 e por aí. Sobrou a água; mas até ela está cheia de coco clorado. Finalmente nos fazem ler e ouvir, os obrigatórios exames de próstata, fazer checapes de tudo que está dentro de nossa embalagem... Caso contrário... E fico a lembrar, que nos tempos de antanho, nem próstata se tinha. Ou se tínhamos ninguém sabia. Hoje, ela nos faz virar pó.
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Pois é. O que nos informam diariamente e em profusão é para nos sentirmos culpados, humilhados, estressados, doentes por indução, na pré-UTI. Só posso desconfiar que por trás disso haja um complô orquestrado, para nos matar. De medo! Talvez venha do Planalto o conluio, querendo diminuir os custos com os aposentados. Portanto, ser sadio, insuportavelmente cheio de saúde é para a garotada de hoje. Nós já estamos perdidos. Mas ha!ha!ha! (uma risadinha): só falta descobrir o que podem comer. Nós já estamos conformados e envenenados. Comemos de tudo e fomos felizes. E nem nos importamos se a vida poderia ser mais longa ou não. Afinal, pra que prolongar aquilo que se vai perder...
Alô, alô, quem fala. Em nosso tempo, hão de pensar que telefone era tocado a manivela. Nada disso. Mas podem dizer que era um troço preto, desengonçado, que se enfiava o dedo no buraquinho (para discar). Para falar com alguém fora da cidade, teria que se pedir à telefonista, pois era ela que tempos depois completava a ligação. Muita encrenca nisso. Nada parecido com o de hoje, que não precisa de fio ou muito menos com o tal do celular, bem menor do que um maço de cigarros, com mil e uma utilidades. Bate fotos, filma, paga-se conta, entra-se na internet e muito, muito mais. Virou órgão humano e sem ele, dizem, não se vive. Na verdade, passou a se ter cabeça, tronco, membros e celular. Quem não o tem, é deficiente.
Assustando os coroas Mas o que apavora mesmo e até espanta quem jogou no “primeiro tempo”, foram os avanços da ciência e da tecnologia, que cismam em correr mais do que a gente. Principalmente esse tal do computador que já foi chamado de “cérebro-eletrônico”. Em nossa cabeça vão misturando os neurônios no meio de sites, chips, bites, fotolog, “pendraive”, blog, “uatisapi” e o diabo-à-quatro. Até a arroba entra nessa história; no Armando Amorim - Memórias
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meu tempo pesava só 15 quilos. E tome sexo virtual, pra cima das cyberminas, paquera, compras, Orkut, face book e muito mais, via internet, e-mails e já dizem que no futuro teremos chips no cérebro, ligados ao computador, via satélite. Para nós, coroas, isso é demais. E fico espantado em saber que tudo o que aprendi - principalmente as besteiras, em grande quantidade - cabem num simples pendrive. Já soube também que a japonesa Aqua Power inventou uma pilha que é carregada com água, saliva, suco de frutas e até xixi. Pode durar até 10 anos. Outra maluquice foi produzida pela canadense Queen’s: um computador de papel que além de flexível, pode ser usado como celular ou tablet e ainda iphone com funções de Smartphone. Pera aí... Isto é sacanagem... Também uma cama eletrônia para os preguiçosos, que se auto-arruma. E até TV controlada pelo movimento dos olhos. Querem confundir a cabeça aqui do coroa. E sabem de uma coisa? Vou comprar um drone pra brincar... Gostei do aviãozinho. Mas o que me apavora de verdade é o que está chegando com a tal biotecnologia. Das chamadas plantas transgênicas, vão acabar misturando chuchu com abóbora, jaca com morango e por aí afora, fazendo a nossa horta virar uma barafunda. Isso sem falar no lado dos bichos, pois já estão criando galinhas com quatro coxas, porcos com seis pernas e carneiro com pêlos de seda. Orelhas humanas em rato já colocaram, além dos xenotransplantes que falam por aí, pois vão tirar os órgãos do bicho e colocá-los em nós. Isso, se não pudermos escolhê-los nos xopingues: “me embrulhe aquele rim ali, pois o meu não anda lá muito bom”. Para quem gosta de beber vai ser uma beleza, pois vai haver fígado até em promoção: “Compre uma caixa de uísque 30 anos e leve um fígado de 15”. E de clonagem, nem gosto de pensar, pois já se fala em copiar, inventar e fabricar gente, principalmente agora, pois descobriram o nosso genoma. Só espero que não apareça ninguém querendo falsificá-la no Paraguai ou com defeito de fabricação. Já imaginaram ter que reclamar no PROCON? E ainda há a possibilidade de errarem a “receita” e acabarmos virando macacos. 236 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Acabou! Mas... Se quiserem continuar, fica aqui o convite. São assuntos mais pessoais, coisinhas que fiz e contações da família. São registros do tempo dos colégios, dos fazeres, dos personagens familiares. Muitos vão reparar nas semelhanças vividas. Mudam talvez os lugares, as datas e as pessoas, mas os sentimentos, as emoções são iguais ou bem parecidas. Portanto, o convite para continuar a leitura.
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Tempo de Aprender (mas sem exagero) Os colégios Não digo que fui inimigo de todos, mas confesso que não gostava de estudar, como toda criança normal. Cheguei a esta conclusão, pois certa época da vida busquei motivo da minha aversão. Dizem que os pais, quando obrigam e pressionam os filhos para que estudem, acabam fazendo com que eles o rejeitem. Esse não foi o caso, pois não eram ações de meus pais, mesmo porque eles tinham compensações de sobra; meu irmão Hélio, um gênio, e a mana Cely, que chorava quando raramente não recebia nota 10. Mais tarde, as outras duas, Regina e Luíza, seguiram os seus passos. Portanto, em casa, ser excelente aluno virou coisa monótona e as minhas repetências não incomodavam seu Armando e dona Idalina. Pensei então que pudesse ser o jardim da infância, que cismei em não frequentar, no Colégio SOS, na Rua do Bispo, Rio Comprido, pois o seu uniforme era um avental azul, semelhante a uma saiazinha. “Sou um menino”, esbravejava e chorava. Meus pais resolveram deixar o ano passar e me colocaram direto no 1° primário. Rapidamente me alfabetizaram, o que me fez passar direto para o 3º ano, agora no Colégio Renascença, também na Rua do Bispo. No ano seguinte fiz concurso para o Externato São José, na Rua Barão de Mesquita, e passei para o Admissão. Não durei lá muito tempo, pois ao término do 2º ginasial o reitor José Maria, o “Gabiru”, me convidou a sair do Colégio, justificando que eu não cumpria as suas normas, entre elas a de andar, no verão, com os quatro botões do paletó de brim caqui, abotoadas. Acusou-me de bagunceiro, o que não concordei e nem alguns professores, como o Irmão José, que solicitou ao reitor a minha permanência. Não conseguiu, e o Colégio perdeu um excelente jogador das peladas do pátio, onde brilhava também o Zagallo, da turma bem mais antiga. 238 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
No La-Fayette, Zequinha, Laélio,, eu, Jacson, Palumbo, Leo e Paulo. Sentadas: Edda, Ana e Maria do Carmo,
Minha turma no Externato São José. Estou aí à direita, na segunda fila.
No La-Fayette, segundo científico, Zequinha tá com a mão no meu ombro. E outros grandes amigos como Zé Alfredo, Elpenor, Palumbo e outros mais.
Pensei, então, que essa rigidez de certo modo medieval, poderia ter sido o motivo da minha aversão ao estudo. Mas no Instituto La-Fayette, o colégio seguinte, a liberdade era total. E tanta, que nos primeiros dias, em seu pátio, esquecia de assistir as aulas, pois sempre aparecia uma pelada no seu campinho de futebol. De excelentes instalações, ótimos professores, o La-Fayette preparou homens e mulheres notáveis, que se destacaram nas artes, na política, na ciência e outros campos. Do pessoal da inteligência, tivemos um Arthur Rabaça e o notável José Guilherme Melchior, este, um dos notáveis brasileiros do século. Também lá, estudou o nosso prefeito Conde, Erasmo Carlos e o cantor/compositor Luiz Ayrão. De outros campos, tivemos “eu”, isto é, dos “campos” de futebol, pois era bom nisso. No ginasial e científico fui levando aos trancos e barrancos. Os treinos no campo do América não permitiam coisa melhor, nem a farra na Quinta da Boa Vista ou as paqueras às normalistas do Instituto de Educação. Portanto, era obrigado a “matar” aulas, para atender aos anseios maiores. Mas posso dizer que certa vez as meninas me obrigaram a estudar. Elas adoravam cadetes e estes levavam grande vantagem na hora da paquera. Nas festas de debutantes ou de formatura, então, eles reinavam, com aquela fardazinha colorida, cheia de botões dourados e o miserável espadim que os transformavam em heróis. Não aguentando a concorrência desleal, resolvi fazer concurso para o Colégio Naval e fui ter aulas extras no Curso Werneck, apesar de que muitas não assisti, por culpa das sessões do Cineac, seu vizinho. Os exames eram realizados na Ilha das Enxadas e chegávamos lá, transportados por um rebocador da Marinha. Por algumas brincadeirinhas durante a travessia, acabei “preso” e como castigo passei a fazer as provas com um fuzileiro em pé, ao meu lado. E era obrigado a ficar na ilha até o anoitecer, saindo no úl240 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
timo rebocador. Acabei passando, mas não fui classificado. Sorte minha e da Marinha pois, pelo jeito, acabaria com a patente de “prisioneiro”. Mas posso dizer que no La-Fayette, fui o melhor aluno em latim, graças à firmeza do professor Pompílio da Hora em me deixar para 2ª época, no 3º ano ginasial. Pela primeira vez estudei de verdade, assistido pelo professor Fadda, antigo seminarista e amigo da família. Durante as férias inteiras eram aulas diárias e montanhas de exercícios, que me roubaram horas e horas de pelada e farra com a turma da rua. Nos exames - prova escrita e oral, nota 10, para espanto do professor Hora, que não conseguia entender a minha transformação. No ano seguinte, quando algum aluno não sabia responder alguma pergunta, era o “Mendes” ( como ele me chamava) quem respondia. Este foi o meu momento de glória nos estudos, apesar de ter sido o único. Entretanto, sempre fui prestigiadíssimo pelo diretor do Externato, Sr. Alberto. Apaixonado por futebol, ele formou o time “Aimorés”, adversário e inimigo nº 1 do “Tamoios”, dirigido por seu irmão Norberto, diretor do Internato. Era como se fosse Flamengo x Vasco. Como futebol era “matéria”, de que entendia, conseguia obter tudo do diretor - da abonação de faltas a perdão de suspensão, que algum professor mal intencionado às vezes solicitava. Caso contrário, não apareceria no dia dos jogos, que era sempre aos sábados. Valia a chantagem. Fato curioso era a irradiação das peladas. Um moleque de mais ou menos treze anos, magrinho, queixinho pra frente, ruim de bola, mas apaixonado por futebol, enfiava uma varinha de bambu numa laranja e fazia dela o seu “rádio” transmissor. Irradiava toda a partida e no final havia até “entrevista” com os jogadores. Seu nome: Washington Rodrigues, o famoso “Apolinho”, que anos depois dessas “transmissões” se transformou no maior locutor de campo, criador das expressões “arquibaldos e geraldinos”, “bola no barbante”, entre outras. Hoje é o conceituado comentarista esportivo do país. Foi, sem Armando Amorim - Memórias
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dúvida, a mais precoce aptidão profissional que presenciei. Excelente colégio para praticar esportes, o Instituto La-Fayette também proporcionava excelente estudo, com uma equipe docente das melhores: professores Roque, Morais, Ester, Débora, Noêmia, Fonseca Passos, Belucci, Sílvio, Pompílio da Hora, Cirene, Miss Léa, alguns deles transformando-se em meus amigos, após o tempo de colégio, como o Roque e o Passos. Se preferi um pouco mais a farra, a culpa foi só minha. Muito tempo depois quis reverter à situação e mostrava aos meus filhos, permanentemente, a necessidade de se preparar bem, de aproveitar ao máximo o tempo dos estudos. E não deixava escapar em nenhum momento, expressão que pudesse mostrar que foi um tempo de imensa felicidade. Um tempo que não perdi. Foi lá que ganhei amigos inesquecíveis, como Zeca “Milharal” Ferreira, com quem varei madrugadas estudando para passar de ano e muitos outros: Elpenor Francisco Gomes, Edda Lucaccio Bonacossa, Julieta (Juju), Regina Eizemberg, Eurico, Paulo Fernando Cortes, Cláudio Roberto Correa de Sá, Michel Rosemberg, Maurile, José Alfredo Damásio, Anazeguete, Norma Correa, Ana Queiroz de Abreu, José Palumbo, Marly Coutinho, Michla, Délio, Rubinho da Aureliano, Sérgio Cinelli, Ferenc Aszmann, Carla Paolini, Roberto da Silva, Lucinha, Wilma Gonçalves Rosas, Roberto Lobianco, José Carlos dos Santos Pereira, Merchior, Laélio Ladeira, Moacyr Cortes Pires, Mário Braune, Elísio Ferreira de Freitas, Paulo da Costa Cardoso, Vera de Souza, Claudino Brasil da Nóbrega, Jorge Augusto de São José, Washington Rodrigues, o “Apolinho”, Carlos Alberto Villela dos Anjos, Wilson “Camelo”, José Júlio, Graciozila, a Gracy, Maria dos Prazeres Ventura, Helena H. Fernandes, Jackson Capdeville, Newton Carlos Guimarães Santo Anastácio, Hélio Tavares, Pinia Trambuck Bel Kós, Pedro Kós e Otacilio José da Fonseca Lima, o “Tatá”. Valeu o tempo de Colégio.
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Tempo de trabalhar, uma diversão Para os filhos, uma explicação Neste capítulo, apresento meus “fazeres”, na tentativa de explicar aos filhos a profissão do pai. Digo que fui publicitário. Mas eles nunca entenderam, pois, como agora, estou terminando algumas pinturas para a próxima exposição em Nice, França; criando um projeto arquitetônico “Memorial das Artes Cênicas”, a ser construído na Avenida das Américas; roteiro para um balé; criação de cadeira, embalagens para guaraná e leite longa vida; programa de TV (um talk-show); criando linha de perfumes com o amigo Ramsay; desenvolvendo o projeto “Postais Sociais”; monumento para Barra da Tijuca, a pedido do Lino,; músicas em parceria com Tom da Bahia; pintando roupas para a “Maria Xica”, decoração de um quarto para o amigo Fernandel, editando revistas; produzindo campanha política para o amigo Assad e outra para o meu irmãozinho Laerte Grisi que vai ser reitor da UFRRJ; escrevendo artigos para a Embalagem Vende, criando esculturas para a comemoração do Natal da Cidade e por aí. Realmente era uma misturação, uma barafunda na cabecinha deles, difícil de responder, quando os amiguinhos perguntavam o que o pai deles fazia. Podem ter certeza de que sempre foram coisinhas simples, sem muita importância, mas que me divertem e me divertiram. Nome para isso não tem. Assim, conto algumas experiências que fui tendo, no que chamam “trabalho”, transformado por mim numa imensa brincadeira. E que até me pagaram para fazer. O começo foi assim:
Vem trabalhar, vagabundo! Estava novinho, verde, cheio de cica, quando o amigo Chicão, companheiro de infância, me convidou para trabalhar na empresa de seu pai. Antes, já havia experimentado um pouco Armando Amorim - Memórias
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disso, riscando plantas na empresa de engenharia do mano Hélio. E havia ganhado algum dinheirinho vendendo as minhas pinturas; mas, naquele tempo, não me entusiasmava esse ofício, como fonte de renda. Relutei por algum tempo o convite, pois sabia que o Chicão invejava mesmo a minha boa vida. Daí o apelido que andou me colocando de “Mandinho VT” (Vida Torta). Mas cá pra nós, em mim havia a preocupação de que o trabalho iria me tirar boa parte da vida maravilhosa de estudante que levava. Também não me animava os conceitos relacionados a esse tema; não combinavam com o que eu pensava. Até aquele tempo, só havia escutado relacionar trabalho com “sacrifício acima de qualquer coisa”... e por aí. Escutei também muitas vezes que “o trabalho dignifica o homem”. Não acreditava nisso, pois havia aprendido com meus pais, que o que dignifica o homem, são as suas virtudes. E trabalho não é virtude. É uma oportunidade que todos deveriam ter para ganhar algum dinheiro. Voltando ao deboche, escutei muitas vezes que “trabalho nunca matou ninguém”. -Mas era melhor não se arriscar... Não é à toa que a palavra trabalho vem do latim tripalium, que era um instrumento de tortura. E assim, “matar-se no trabalho” chegou até nós pelas heranças escravagistas dos senhores de outrora, muito bem absorvido pelo capitalismo selvagem, que vê o homem como um equipamento para auferir lucro cada vez maior. E que também foi absorvido pelos regimes comunistas, fazendo o homem se “matar” pelo Estado. Em verdade, a vida não nos foi dada para isso. Mas, como não conseguiria um emprego sem a minha presença, acabei me convencendo que poderia ter prazer no trabalho, pois iria transitar pelo desconhecido, ousar e, até me emocionar. O novo sempre me fascinou. Percebi então que o não saber é fundamental para o saber. É ele que nos impulsiona para o conhecimento. Estava eu então super preparado, pois não sabia nada. Compreendi ainda, naquele momento, que o cérebro sem estímulos não vale pra quase nada. Necessita ser exercitado. Ao 244 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
entrar o desejo do conhecimento e da curiosidade, chega-se ao tesão. Descobri que o cérebro necessitaria ter ereção, o que confirmei depois lendo Fernando Pessoa. Portanto, aceitei o convite do Chicão - para terminar também com o apelido. E seja o que Deus quiser! Logo no início, reparei que era necessário ter curiosidade e ousadia. O resto se arranja. Aqui vale dizer que a Cia Fábio Bastos era uma empresa familiar, do setor agropecuário, a maior do país, com trinta lojas em vários estados e mais de seiscentos funcionários. Pois bem, três meses foram o bastante para conhecer a companhia e verificar que não possuía Departamento de Publicidade. Mostrei aos diretores a importância de se criar tal setor e me instalaram numa sala, onde passei a ter a função de produzir anúncios, folheteria, cartazes, etc. Claro que eu não entendia nada desse assunto. Mas não menti, pois ninguém me perguntou. Minha primeira providência foi imprimir cartão de visitas e colocar debaixo do meu nome, “Diretor de Publicidade”. Isso confesso, uma arma para impressionar as menininhas. O salário era pouco, mas me considerava bem pago, pois não entendia nada de publicidade. Comecei a produzir os primeiros trabalhos, que foram espetacularmente pavorosos. Passei então a devorar publicações sobre a ciência da comunicação e criei o sistema “marcha-ré” de aprendizagem, que é descobrir como e porque algo é produzido, a partir da coisa pronta. Colecionava anúncios, folhetos e peças promocionais e passava dias e mais dias descobrindo os motivos de tal criação. Assim, fui fazendo a minha Universidade. Os anúncios melhoraram os folhetos também, criei um serviço de mala-direta e até uma revista, Seleções Fábio Bastos, que circulou por doze anos, tempo que permaneci na empresa. A Cia. Fábio Bastos não só foi a responsável por minha formação. Ela me proporcionou conhecer gente muito especial, como o Armando Amorim - Memórias
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gerente Homero Sette, que depois de infindáveis discussões, não se importava mais com meus horários, totalmente diferentes dos outros seiscentos funcionários. Chegava a qualquer hora e saía também a hora que entendesse, apesar de que trabalhava muito mais horas do que devia, por prazer. Meu patrão maior, Roque Garcia Tosta e mais: Jesus Motta, Vinícius, Sady, Mozart Bravo, Sebastião Pires, “seu” Miguel, Daniel Cruzeiro, Silva, Leonor, Edson, Francisco, Paulinho Bastos, Frossard, Ivo, Risetti, José Sette, Beiró, Hélio, D. Maria, Renato Bastos, Geraldo, Menezes, Jayme e Joel foram outros amigos que lá deixei. Também amigos de fora que pude conhecer, como o jornalista e compositor David Nasser, um dos mais notáveis do país e temido por governantes, sendo que muitos políticos sofreram por sua “pena”, em memoráveis artigos em O Cruzeiro. Fazendeiro, produtor de leite, cliente da empresa, ao chegar lá passava na minha sala para uma prosinha. E sempre me presenteava com uma crônica para a revista “O Produtor de Leite”, que nesta altura eu já editava, quase todas “metendo o pau” no baixo preço pago aos produtores; o que acontecia naquela época. E abaixo de sua assinatura, fazia questão que fosse colocado: “O burro do leite”. Certo dia apareceu um trabalho extra. A oportunidade de uma assessoria de marketing: ampliar as vendas do Hidrolitol, que os da antiga devem lembrar muito bem. Tratava-se de um pó branco, tipo sal-de-frutas, que era misturado à água. Apregoavam-se poderes de fazer o estômago, o fígado e outras coisinhas funcionarem melhor. O pó vinha de mina na Itália e só havia uma loja, na Lapa, que vendia o famoso Hidrolitol. Vivia lotada. A proprietária ficara viúva e pretendia ampliar o negócio. Criei então carrocinhas pintadas de azul e branco, tipo das que vendiam o sorvete Kibom e as fixei em diversos pontos da cidade. O sucesso foi bem razoável e aumentou logo o faturamento. Estava assim, com um pé na nova profissão, que acabei exercendo por longo tempo. Com seis anos trabalhando em publicidade na Cia. Fábio Bastos e engatinhando no marketing me entusiasmei em fundar a minha Agência. Nasceu a Armando Amorim Publicidade, apesar de continuar trabalhando na empresa que me acolheu. Começava a “misturação” de negócios. 246 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Uma Agência Diferente Fundada em 1962, com um só funcionário: o dono, impossibilitado de contratar profissionais das várias áreas, entre elas criação, redação, arte, montagem, mídia, contato, produtor e outras mais, necessárias para o seu funciomento, pois capital não havia. Também porque não havia cliente algum. O jeito então foi aprender cada função, o que levou algum tempo, mas me possibilitou, mais tarde, dirigir tecnicamente a empresa. O cliente que inaugurou um ano depois a Armando Amorim Publicidade foi a corajosa Moinho Fluminense. A AAP chegou, depois de alguns anos, já com mais de 80 funcionários, filial em São Paulo, a ser a 33ª maior Agência do país, entre as 2.500 que existia. Isso pode ser considerado um feito extraordinário, pois, pelo que diziam os compêndios de modelos organizacionais, a minha empresa era uma bagunça e eu, um péssimo administrador. Só não confirmo isso com veemência, em respeito aos excelentes profissionais que por ela passaram e outros que nela foram formados, em seus 30 anos. A não ser o pessoal de apoio, ninguém possuía horário. Chegava-se à hora que bem entendesse e o dono, a partir do meio-dia. Afinal, quem cedo madruga, fica com sono. Também não havia desconto por faltas e nem perguntas, pois se alguém não aparecesse, o motivo certamente seria justo. Na empresa, o que todos sabiam era o que precisava ser feito. E o ambiente não poderia deixar de ser alegre e gostoso de estar.
Com Dona Isabel, que cuidava muito bem de mim e Tânia.
Jonas
Armando Amorim - Memórias
Almir e Lineu
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Para isso, nada de cara amarrada, suor, horários, regras e mais regras. Assim, o ambiente na Armando Amorim Publicidade sempre foi descontraído, todos se ajudando, felizes e em consequência, produzindo com a máxima eficiência e rapidez. Descobri que para se ter maior criatividade é necessário tempo ocioso, horas de lazer e total liberdade. Mas bagunça, havia. Nesse ambiente, a Agência virou uma turma criativa, amiga, alegre, solidária, onde se sentia prazer em trabalhar.
Parte dos funcionários da Agência, gente muito especial.
Mucio, Ismael e Antenor.
Eu, Gildinha, Lino e Luciano
248 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Essa turma também era da linha de frente da AAP. Esses e os outros são responsáveis pelo sucesso da Agência. Eu sempre fui muito desorganizado.
De costas D.Isabel, Cris, eu, Valter, Mucio, Arthur Brandão, João, Elmo, Selma e outros.
Rosa Nepomuceno, eu, Alexandre, Donato e Valter.
Almir, Luiza e Jonas
Romanelli
Regina Helena
Luiz Antonio
Almir, Susana, Elmo e Arylio.
Arylio de Souza Aguiar
Valter, Eu, Elmo, Lenise, Heliane, Cris e Valter Vicente.
Valdir
Marlene, Lineu, Valter, Elmo, Duarte, Heliane, Almir, Valter fazendo graรงa e eu.
Com Romeu Martins
Almir, Prietro, eu, Mucio e Valter Vicente
Leila Diniz
Mais um grupo da AAP, vendo-se Gilda e Bianca.
Marise, Almir e Caroline
Medrado, Gilda, Eu, Tom e Fernanda
A secretรกria Susana, hoje rainha dos cogumelos Shiitake Na Armando Amorim Publicidade
Após o expediente Depois das 7 da noite, aumentava a circulação; eram amigos que chegavam de todas as partes, trazendo novidades e a postos para discutir qualquer assunto. O maior contador de “causos” sempre foi Múcio Capobiango, que a cada dia, como numa novela, relatava passagens de sua vida. Mineiro de “Guiricema” era obrigado a provar que a sua cidade existia. Portava até um mapa de Minas, que assinalava onde havia nascido. Mesmo assim, ninguém acreditava, pois era ele dono de gráfica e dizem o autor da impressão. Múcio lembrava fatos ocorridos em sua vida no campo e depois na cidade grande, aonde chegou aos 17 anos. Seu pai, sitiante, criador de galinhas e outros bichos, lhe dava a tarefa de levar as penosas, regularmente, ao entreposto que comprava as bichinhas. Presas ao burro, Múcio relatava que as galinhas sofriam mais do que ele a longa caminhada, muitas vezes com sol forte no lombo. E assim, volta e meia parava a tropa, para fazer respiração boca-a-boca nos galináceos. Não podia perder nenhum. A compensação viria depois, com o peso a mais que arrumava, pois, já perto do entreposto molhava as bichinhas no riacho, para pesarem mais. Certo dia falou o nome da empresa desse entreposto: Brasilaves - por coincidência era de meu pai, na época. Claro, que teve que contar a ele a trapaça, para o riso de todos. Com aparência de galã de cinema, forte e bonitão, se transformou em artista de vários comerciais da Agência, onde mostrou seu talento. Mais do que fornecedor, proprietário que é da conhecida Maio Editora, Múcio virou amigo de todas as horas e ao lado da esposa Armando Amorim - Memórias
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Márcia, gente especial como ele, transpôs os limites da AAP e vamos nos encontrando por aí. Outro, que não deixava um dia de estar lá era o marchand Luiz Guimarães, o “Barba Roxa”, que sempre chegava com um quadrinho debaixo do braço e um amigo ao lado, para conhecer a turma. Assim, por seu intermédio, viramos amigos de Paulo Magoulas, do arquiteto Irley, do iuguslavo Arsen e do tcheco Arnost Blaha, entre outros. Mas nunca se soube por que o “Barba Roxa” lavava as mãos, de 5 em 5 minutos. Ele próprio não sabia. O “Vedeko”, na verdade Ismael Pereira, proprietário da Metalúrgica Vedeko, (daí o apelido), fabricava torneiras sensacionais. Era um papo-firme que atravessava a madrugada. E muitos outros: o jornalista Antônio Medrado, alguns amigos do morro 117, 71 e Salgueiro, o fotógrafo Paulo Sallorenzo, Pedro Dragon, advogado, Luiz Antônio, diretor da Spam - Leite Mimo, o casal Toninho e Vera Arruda, animadores culturais, Luizinho Moreira, Mattos e Antenor, que possuíam empresas no mesmo prédio; Malzoni e Mariélio, Nei Coelho, vendedor de papel, Roberto Romanelli - correspondente da revista Época (italiana), os cineastas Zé Cavalcante e Renato Nunes; Machado Sobrinho, Gildo, Luciano Barbedo, Comandante Eurico, o meu compositor favorito: Ademir, da Compósita; o cartunista Piankowiski; Pedro, da Meira; o showman Eraldo Leite, jornalista Cláudio Kuck , o “Sábio” Elias “velho” Lobo; Luciano, cantor do Teatro Municipal, Carlinhos, da T. Janer, o pintor Josimar, o Jô, também do Itamarati; jornalista Ruy Paneiro, Tuca, Wilsinho Santana, Lino Seabra, Arno Turner, Gabriel e Vasco Loureiro, da turma do sereno, o jornalista Duque, sempre aguardado, pelos deliciosos papos e Tom da Bahia, da dupla Tom & Dito. Do lado feminino, Maria José Azevedo, a escritora “Lia”, Tânia Quaresma, uma fotógrafa extraordinária, jornalista e cineasta. Chegamos a ser sócios em um Studio. Rosa Nepomuceno, uma excelente jornalista que escrevia para os jornais Diário Popular, O Globo, Diário de Notícias, revistas Vogue, Manchete e Isto é. Se não bastasse, é ótima cantora e escritora premiada. Também apareciam por lá Narinha, a bela Gleide, rainha das mulatas da Bahia, e a jornalista Graça Maria Lago, filha de Mário Lago, além de outras amigas. Com presença marcante, Décio Rufino, de ascendência africana, 254 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
geólogo de profissão, com vários livros publicados, também parapsicólogo e igualmente autor de livros sobre o assunto, nos contava histórias fantásticas. Era um apaixonado pela cultura de seus ancestrais e da magia de seu povo. Amigo de Senghor, embaixador do Senegal no Brasil, chegou a levá-lo ao escritório, para me assistir desenhando com bastão de crayon. Pela rapidez com que produzia cada desenho, dizia ter a certeza que eu “incorporava” alguém. Queria inclusive me estudar, pois afirmava aparecer uma luz, no momento em que eu desenhava. E não adiantava lhe explicar que a rapidez era somente devido a já ter produzido mais de mil desenhos. O embaixador chegou a formalizar um convite, para ensinar aquela arte, em universidades do seu país. Seu pai, Leopold Senghor, presidente do Senegal, foi ensaista e notável poeta, homem de grande cultura. Foi quem deu à língua francesa uma nova palavra e um conceito novo que se espalhou pelo mundo: o de “negritude”, que engloba as aspirações da raça negra. Como sempre fui amante da cultura negra e admirador da raça, me comprazia com a chegada do Décio, que me ensinou muitas coisas de seu povo. Valeu. No carnaval aparecia Leila Diniz, pois o escritório ficava junto à concentração das Escolas de Samba, que desfilavam na Presidente Vargas. Era lá que Leila preparava-se para desfilar a sua beleza no Salgueiro. Muita conversa, muita risada e em alguns encontros, pude conhecer uma notável mulher, festejada por sua liberdade, mas uma pessoa doce, alegre e de senso de humor incomum. Palavrão ela falava. E muito, Mas todos bem colocados, com tal naturalidade, que não chocavam, não soavam agressivos. Era só por pura molecagem. Isso contrastava com sua beleza suave e seu jeito quase infantil de tratar todo mundo. Não se considerava irreverente, nem musa rebelde. Se usava biquini quando grávida, se falava abertamente sobre sexo, fazia isso com total naturalidade, pois achava natural essas atitudes. Era na verdade uma atriz talentosa, bonita e inteligente, que tinha amor à vida e à liberdade. Quando descia e entrava na Avenida, o povo vibrava, pois ela era a musa do Rio. Gente muito especial. Assim, todos os personagens que frequentavam a Agência, uns de vez em quando e outros com frequência diária, transformavam a empresa em point cultural divertido e que nos fazia muito bem. A minha convicção, portanto, de que o trabalho poderia ser prazeroso e o local, um lugar de gostosa convivência, tinha sido possível. Consegui. Armando Amorim - Memórias
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Como ganhar a conta de uma multinacional Mas, na Armando Amorim Publicidade também se trabalhava. E muito. Com alguns clientes importantes, como Caixa Econômica Federal, Café Moinho de Ouro, CCPL, Ministério da Educação e Cultura e outros mais, produziam-se ali, excelentes Campanhas. Mas para não entrar em assuntos de autopromoção, vale registrar um case uma passagem memorável da Agência, envolvendo o laboratório Smith Kline. É necessário explicar, que nesta época, a empresa possuía uma editora de revistas técnicas e em razão de um de seus títulos, o nosso contato Luciano Barbedo foi visitar a empresa, em busca de anúncio. Na entrevista, foi informado de que, a partir do mês seguinte, iria visitar a agência de publicidade que estava sendo selecionada e não mais a empresa. Vendo a oportunidade, Luciano, meu amigo de infância, informou que possuíamos também uma Agência e quis saber se ela poderia concorrer. Multinacional de renome mundial, o seu diretor explicou que já haviam sido selecionadas para a concorrência, as três maiores agências do país: Alcântara Machado, MPM e Mcann Erisson, mas que a Armando Amorim Publicidade poderia se candidatar. E com o cavalheirismo que lhe era peculiar, o diretor Pedro Lichtinger marcou uma reunião para o dia seguinte. Luciano chega então animado à agência, me conta os detalhes do encontro e a minha primeira reação foi a de lhe mostrar, que seria uma conta impossível de se conseguir, principalmente pelos concorrentes. E nós estávamos bem longe dessas potências. Mas me calei, em respeito ao amigo, que estava “cavando” novos clientes. Fui despreocupado à reunião e iria “perder” menos de meia hora, tempo suficiente para falar de nosso tamanho. E para multinacional, tamanho é documento. O papo com Pedro começou às 14h e acabou lá pelas 18h. Estava diante de uma pessoa extraordinária, de exagerada inteligência. Na oportunidade, me informou que viriam ao Brasil o diretor da empresa para a América Latina e, dos Estados Unidos, o diretor de marketing internacional. Eles visitariam as empresas, 256 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
formalizariam seus pareceres, mas o diretor no Brasil ainda teria o poder da escolha, pois arcaria também com as consequências. E assim foi feito. Visitaram as mega-empresas instaladas em suntuosos prédios de vinte e tantos andares, assistiram a shows publicitários em suas dependências, salas de cinema passando rolos de filmes comerciais, belas recepcionistas e até servindo-se de uísque verdadeiro. Chegou o momento da Armando Amorim Publicidade. Inicialmente, o diretor para a América Latina nem quis ir à nossa Agência, pois marcou reunião no Aeroporto. Deveria ter sido avisado de quem se tratava. E com essa atitude, estava claramente eliminando a AAP. Mas, para o nosso azar, o americano do marketing foi. Depois de andar em belos e amplos salões atapetados, estava ali um americano gordo e grandalhão, instalado numa pequena sala, sentado ao redor de uma também pequena mesa redonda. Dava a impressão que o “mister” não cabia na sala. Pior, era época de um verão intenso e o ar condicionado, pifou. Suando dos pés à cabeça, o americano pediu que abríssemos a janela. Mais um azar: na hora de subir a persiana, a força e o nervosismo fez com que ela despencasse, surgindo uma nuvem de poeira branca, pois estava segura em teto de gesso. Nessa situação, fazer o que? A minha única providência foi conter o riso, ao ver o homem espanando-se e tentando tirar o pó branco da cara suada e vermelha. Depois de uns quarenta minutos, a reunião tragicômica estava encerrada. Tudo havia funcionado como não devia; até o guaraná que serviram ao gringo, pois ele não gostava. Pedro e o “mister” se despediram. A risada foi geral e esquecemos do assunto. Um mês depois, numa 6ª feira, recebo telefonema de Pedro Lichtinger, querendo saber se eu tinha ali um champanhe. E logo veio a notícia solene: “A Armando Amorim Publicidade é a Agência da Smith Kline no Brasil”. Pensei que fosse gozação, mas era à “vera”. E rimos, pois Pedro deveria estar pensando, justamente, o que eu estava também. Começaram as primeiras campanhas e em pouco tempo, em alguns segmentos a Smith Kline passou a ser líder de mercado. A Armando Amorim - Memórias
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competência e ousadia de Pedro deixavam a concorrência - também multinacional - tonta, sem saber como reagir. Com um presidente assim, as ideias criativas e inusitadas da turma da AAP eram postas em prática. Passamos a criar até as embalagens dos novos produtos, que serviam como ferramentas de marketing. Uma delas, a do Valbazen, foi a grande responsável pelo sucesso do produto, além de ser um excelente vermífugo para bovinos e ovinos. Inicialmente, os 5 botijões de 5 litros iam embalados em um baú metálico, prático e bonito, com muitos usos na fazenda, inclusive para guardar ferramentas. Posteriormente esse baú passou a ser forrado de isopor e se transformava em “geladeira”, para guardar e transportar vacinas, tão úteis no campo e até para ser levado em piqueniques e pescarias. Assim, os produtos iam tendo a preferência dos consumidores, não só por sua qualidade, mas pela praticidade das embalagens. Chegou um tempo em que os fazendeiros já possuíam alguns baús e algumas geladeiras, e era necessário mudar. Aí a ousadia foi maior. Lembro-me que ao levar o protótipo de nossa ideia, estava receoso, pois achava que esta Pedro não aprovaria. Mas de pronto, depois de rir bastante, como era o seu costume, exclamou: Genial! Está aprovada; faça a encomenda! O produto, então, passou a ser embalado em armários modulados de madeira, com portas de correr. E o apelo da campanha era o de “juntar o útil ao agradável”, e mostrava como montar uma estante, uma cozinha modulada, além dos armários servirem como mesas de cabeceira ou de canto. Serviriam ainda para serem instalados em salas de ordenha, estábulos ou em qualquer lugar, por sua utilidade. De novo, a concorrência não sabia o que fazer para suplantar o Valbazem. Para outros produtos foram criados estojos, displays e todas as caixas de papelão ondulado eram forrados com peças da campanha publicitária, uma novidade criada por nós. Com desenho atraente, eram empilhadas nas lojas, formando grande painel promocional.
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Com isso, os produtos Smith Kline tomavam conta do visual das lojas distribuidoras e para onde se olhasse, via-se a presença da empresa. Do relógio ao porta-chaves só dava Smith Kline. Era o domínio total. Mas em tudo estava sempre a visão de Pedro, que andava bem à frente dos dirigentes concorrentes e até da própria empresa, pois era comum ter que explicar aos seus próprios diretores o motivo de suas estratégias. Chega um dia ao Brasil o presidente internacional da companhia, Mr. Norman Blancher. Muito simples e afável, quis me conhecer, para elogiar as campanhas dos vários produtos lançados no Brasil, algumas delas superiores às que tinham sido produzidas em mais de 130 países, onde atuavam. Diante desse elogio, coroando o trabalho da equipe da AAP, tive a oportunidade, neste dia, de perguntar ao Pedro, o motivo da escolha de nossa agência. Sorrindo, me respondeu que a AAP havia sido reprovada não só pelo americano de marketing e pelo diretor para a América Latina, Martin Braun, mas por seus diretores também no Brasil, David Rezende (Diretor Técnico) e José Resende (Diretor Comercial) que se tornaram depois grandes amigos, sendo que o último, meu sócio, na empresa Casa de Piangelli, de perfumes. Mas me informou que contrariou a todos, pois, na escolha, não levou em consideração as instalações e a grandiosidade das Agências. O que interessava para ele eram as pessoas que iriam produzir as suas campanhas e aí valeria somente a competência, a criatividade e a visão do mercado. Foi o melhor elogio que recebemos. Muitas outras Campanhas ficaram na história da Smith Kline e nos dez anos de atendimento, houve tempo bastante para também fazer amigos: José Resende, Paraguassú, Cristiano Simon, Hugo Wahnish, Miltinho, Mário, Lineu, Alfredo Navarro, David, Juan, Cheryl, Rômulo, Polybio, Briant Canha, Laerte Grisi, Moya Gonzalles e, particularmente, Pedro Licthinger.
Armando Amorim - Memórias
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Rezende
O Presidente da CCPL, Roberto, sendo apresentado ao Presidente da Smith Kline, Hugo Wanish. Os dois, clientes da AAP.
Grupo da Smith Kline que foi à Exposição em Esteio/RS. Moya e Vitoria, Juan, Miltinho e esposa, Cristiano e esposa, Praguassu e Suely, Churchill. Abaixo: Eu, Regina e Mario, Sarita e Laerte Grisi.
Norman Blancher, presidente internacional da Smith Kline, Rômulo, eu e Cristiano Simon, presidente da SK no Brasil
Rezende, Marcia, Gilda, Cida e Pedro..
Cida e Pedro Jonathan, Cida, Stephanie e Pedro
Pedro, Jonathan, Stephanie e Cida.
Pedro acabou meu amigo, desses que a gente gosta de estar perto, de conviver. E não podia deixar de ser, depois que certo dia me mandou o bilhete: “La riqueza de La vida se centra em El contacto com El ser humano; yo me tenido La suerte de conocer uma persona única em su sensibilidad como persona y artística, um amigo que solo hoy conoci como pintor. Te felicito por ser asi”. Apesar da origem mexicana e de se formar e viver nos Estados Unidos, encantou-se com o Brasil e por uma brasileirinha super especial: a Cida. Assim, para a nossa alegria, eles passam até hoje algumas de suas férias entre nós, com os filhos maravilhosos Jonathan e Stephanie. Quando moravam em Bruxelas, Bélgica, de onde Pedro comandava a SmithKline da Europa, Cida conseguiu galeria de arte, para promover uma exposição individual de meus trabalhos: sucesso total. Eu e Gilda, hóspedes em sua mansão durante um mês, nos deliciamos com suas gentilezas, jantares e passeios. Dias antes do vernissage, Pedro e Cida prepararam bela recepção em sua residência, quando acolheram as personalidades de Bruxelas. E ainda danificaram as paredes da belíssima decoração, com os pregos que sustentaram os 40 quadros que estariam na exposição. Foi um pré-vernissage e naquele mesmo dia, no coquetel sofisticado e de muito bom gosto, várias obras foram arrematadas. Há pouco tempo, a Smith Kline foi vendida à Pfizer. Esperava-se que os dirigentes máximos da empresa adquirida estariam fora, pois quem compra “tem a preferência.” Mas isto não aconteceu com Pedro Lichtinger, simplesmente por sua competência. Quem seria doido em perder alguém com a sua inteligência e visão? Hoje, com pouco mais de sessenta anos, em Nova York, é quem dirige a Pfizer Internacional, a quarta maior empresa do mundo!
O Leite em nossa vida Um cliente especial da Armando Amorim Publicidade, a CCPL passou a fazer parte da história da AAP, pois esteve conosco, du262 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
rante 28 anos - um recorde. Foi um cliente diferente, pois o atendimento era total e às vezes inusitado para uma agência. Para qualquer assunto a Armando Amorim Publicidade era convocada. Assim, criamos todas as suas campanhas, embalagens, stands, prêmios, bandeiras, revistas, brindes, uniformes e até ajudamos a desenvolver produtos. Produzíamos as suas festas e recepções e chegamos a criar a decoração de seus ambientes, comprando móveis e objetos decorativos. Isso acabou se estendendo e participamos do projeto arquitetônico e de decoração da sede da fazenda do presidente Roberto Ferreira da Silva Pinto, nosso amigo. Nesse contato de tantos anos, fizemos ali outros, como o diretor José Carlos Bustamante de Carvalho, Mário Canellas Barboza, vascaíno como eu e cronista dos melhores, ao mesmo tempo, conselheiro da empresa. E mais: Sérgio Silva, Valdir Ferreira Lopes, Daniel, Miguel Garetto, Renato Viveiros, Augusto, Evandro, Roberto, Fernando Miliossi, Pedro Gonçalves Bastos, Alfredo Lopes Martins Neto, Arthur Augusto, Sílvio Marini, França, Paulinho, Fernando César, André Pinheiro, Alberto Mendes, Nívea e Márcia. Mas, particularmente, por coincidência, o leite entrou em minha vida. Ou melhor, as suas embalagens. Trabalhava ainda na Cia Fábio Bastos, quando conheci o médico, Dr. Milton Panaim, que possuía uma fazenda em Teresópolis, RJ. Certo dia resolveu instalar mini-usina para beneficiar ali, o seu “Leite Paquequer”. Nesta mesma época surgia na França uma nova embalagem, cuja proposta era a de substituir as garrafas de vidro - grande problema para as indústrias, pelo retorno e sanitização. Sabendo disso, Dr. Panaim foi à França e trouxe uma pequena embaladora Thimonier e me convocou a produzir o desenho da primeira embalagem de leite em saquinho plástico do Brasil. Segue-se o tempo e nos Estados Unidos surge embalagem em cartão Pure Pak, para o leite pasteurizado. Agora, já atendendo a CCPL, sou convocado para produzir a primeira embalagem no Brasil neste material, pois a Cooperativa foi a primeira a adquirir o equipamento. Anos depois (1973), a grande inovação vem da Suécia. A Tetra Pak havia desenvolvido uma embalagem, também em cartão, mas que não necessitava de frio, para conservar o leite. Armando Amorim - Memórias
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A CCPL novamente importa o equipamento e é a primeira a colocar no mercado esse tipo de leite, denominado Leite Esterilizado e hoje Leite UHT (Ultra Hight Temperature). Novamente sou convocado para criar a primeira embalagem, e lhe colocamos a marca LONGA VIDA. Acontece que por ser o primeiro no país, as outras empresas que o lançaram depois, passaram a utilizar a nossa marca para denominar esse tipo de leite. E todos os leites, viraram “Longa Vida”, na verdade, a nossa marca. Assim, por coincidência, fui o autor das primeiras embalagens de leite, na história de sua evolução no Brasil.
Uma equipe diferente Para terminar essas histórias da AAP, não poderia deixar de lembrar alguns dos excelentes profissionais que passaram por lá, e que foram os responsáveis pelo sucesso da Agência. Era ao mesmo tempo uma turma divertida, que criou um ambiente diferente e gostoso de trabalhar. Muitos que se destacavam recebiam, regularmente, propostas mais vantajosas de mega-empresas, mas relutavam deixar a AAP, sendo eu, muitas vezes obrigado a pressioná-los para que aceitassem. Com isso, as amizades ficaram e todos relembram com saudade aquele tempo. Eu também. Valter Vicente foi um deles, e depois fundou com sucesso a sua Agência. Entrou lá como responsável pela remessa de notas e faturamento e se tornou um dos melhores publicitários do país. Como todo excelente criador, era um pouco aluado. Certa vez, a minha sala estava trancada, pois tinha sido instalado um fundo infinito eventual para uma foto. Escuto então uma batida na janela e o vejo fazendo sinal, pois queria falar comigo. Simplesmente ele veio caminhando pelos beirais das janelas até o da minha sala. Até aí, não parece tanta loucura. Só que a Agência era instalada no 21º andar. Quando abri a janela, uma multidão nos prédios vizinhos apontava para a minha sala.
264 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Gilda, eu e Fernandel.
Mucio, Marcia, eu e Gilda
Alberto, Érico, em pé, Elmo, Serrano, eu e atrás Romeu.
Churchill
Raquel, Cadinho e Gilda.
Anunciata, a Cici, Angelo e eu
Mas os outros eram mais normais: Cristina Amorim, sobrinha, que também iniciou os primeiros passos na AAP, e virou expoente no setor, com prêmios nacionais e internacionais; a outra sobrinha Renata Amorim que depois criou a sua própria agência a “Olho Nu”. E mais: Fernando Vieira Sampaio, o “Fernandel”, pessoa mais criativa que conheci; o nosso “faz tudo” Almir Tardin, o fotógrafo Eduardo Nunes, os criadores e artistas em diversas áreas: Wiston Churchill, Alice Madruga, Suzana, Valdir, Alcides, Farias, Márcia, Sílvia, Arylio de Souza Aguiar, Moacyr Bilheo, João Antônio, Serrano, Raquel Grasso, Carlos Alberto, Kleverson, Romeu Martins, Marlene, o sobrinho Breno, Arthur Brandão, Julinho, Nina, Monteiro, Júnior, Luciano Barbedo, Selma Alcântara, Luiz França, Regina Helena, Luizmar, Aldemar, Marilene, Regina, Donato, Lineu, Tião fotógrafo, Tânia Regina, Osvaldo José da Silva Junior, o “Juninho”, Regina Silva, Cláudio Lombardi, Sandra Reis, Sônia Maria Araújo, José Heronides, Rogério Douglas, Crehuet, Regina Coeli Campos, Jorge Luiz Ribeiro, Adão Atelier, Ana Maria G. Pires, Walter dos Santos, Elias Aguiar, Waldeck Santos, Wilson Soeiro, Maria Tereza Monteiro, Geraldo Gomes, Manuel Gonçalves, Maria Cristina Mendes, José Geraldo Saulis, Luiz Antônio Moraes, Rosa Nepomuceno, nas traduções, Roberto Romanelli Maia, Vera Lúcia Marinho, Eufrodízio J. Santos, Cecília Mendes, Maria da Graça Rangel, Vera Lúcia Gomes, Antônia Teixeira, Marisa Spíndola, Carmem Luzier, Carlos Alberto dos Santos Silva, Elmo, José Duarte, Sônia Bernardo, José Ravics, José Rimaston (Chicho), Albanita, Ramirez (“Perón”), Farias, Alcir, Érico, Batista, Lina Scalércio, Roberto Carillo, Lino, Sandra Helena, José Carlos Sampaio, José Carlos Rodrigues, Maria Tereza, Carlos Alberto, Isabella Gonçalves, Waldir Pires, a sobrinha Cláudia, Geraldo Gomes, José Geraldo, Margarida, Francisco Xavier Diniz, Walter Braga, Zé Duarte, Úrsula, Israel de Assis, Oswaldo Teixeira, Lindalva, Raposo, Mário Diniz, Jonas do Rosário, Francisco Sérgio, Lenise Maria, Heliane Motta, José Santana, Lourenço Santiago, Ricardo Vieira, Luiz Fernando, Wanderley Salim, Anunciata (Cici), Ricardo Ravics, o sobrinho Vagner, Vivaldo Azevedo, Isabel Neres, Pinheiro e Gildinha, que se tornou minha esposa. Essa era uma turma de frente, mas outros de que não me recordo os nomes, foram também os responsáveis pelo sucesso de tantos anos da Armando Amorim Publicidade. Foi por causa dessa turma que a AAP, com a sua informalidade e muita “desordem” se tornou uma agência criativa, com excelen266 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
tes profissionais que sabiam fazer vender qualquer produto ou serviço. Alguns úteis, outros inúteis.
Virando “Revisteiro” A Armando Amorim Editora nasceu como um apêndice da empresa de publicidade e se destinou a publicar revistas especializadas. Mas a minha manifestação em ser editor começou muito mais cedo. Para criar confusão, lancei “O Meleca”, por volta de 1958. Era o jornalzinho de gozação da “turma do sereno”, só que ninguém sabia quem era o autor. Aliás, desconfiavam ser o Cândido “Maometano”, pois era o único, que de propósito, não era citado. Claro que gozava a mim também. A cada edição, as ameaças de porrada aumentavam e o “Maometano” jurava não ser o autor. Chicão “Saúva” também coautor, conseguia imprimí-lo na empresa do pai e funcionava no setor de expedição. Fez nome “O Meleca” e Aldo “papel” e Marisa ainda possuem alguns números. Na época, não sabia que um dia iria me tornar editor. A primeira publicação que produzi, relacionada ao setor rural, foi “Seleções Fábio Bastos”, um house organ da companhia onde era seu diretor de publicidade. Mas a primeira publicação comercial foi criada em 1967, meio que “forçada”, para arrumar o que fazer ao Luiz “barba roxa”, meu amigo. Passava o dia “coçando” e à tarde ia arrumar assunto na minha sala, na Cia. Fábio Bastos. E perturbava! A revista “Avenida Central” foi então criada, com sua parceria, e passou a tratar de arte, turismo, comportamento, negócios, entrevistas e vivia comercialmente de anunciantes do edifício do mesmo nome. Foi ela quem lançou o fotógrafo Antônio Guerreiro, que depois criou fama. Um de seus primeiros trabalhos foi um ensaio fotográfico com Scarlet Moon - irmã do conhecido Roniquito e que foi esposa de Lulu Santos. Na época, desejava se tornar modelo. Com ótimos colaboradores e já consolidada, a revista foi entregue ao “Barba-Roxa” para que seguisse o seu rumo, na certeza de que lhe tinha arrumado emprego: uma das minhas grandes façanhas! A seguir lancei a revista “O Produtor de Leite”, uma publicação Armando Amorim - Memórias
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da CCPL, sobre pecuária leiteira, que circulou por 28 anos. Também “O Produtor Rural”, de assuntos exclusivamente agrícolas, início de outras do mesmo segmento. Foi então criada a Armando Amorim Editora, desmembrada na época, da Agência de Publicidade. Outras revistas seguiram, mas o destaque foi a revista “Embalagem Vende”, que conseguiu grande sucesso no mercado editorial de revistas técnicas do país. Depois, participando de parceria com o conhecido crítico de música Tarik de Souza, do JB e Ana Maria Baiana, hoje, correspondente de “O Globo”, nos EUA, foi lançada a “Revista do Rock”História e Glória, de venda em bancas e circulando com grandes tiragens. Dela participavam, entre outros, Ezequiel Neves, Chico Caruso, Pianka, Henfil e outros de que não me recordo. Hoje ainda há sites falando dela e até leilão de suas edições. Fez sucesso. Mas a publicação que nos deu grande prazer em participar foi a revista “Cultura”, do MEC, com 100 mil exemplares nas bancas, além dos assinantes. Nela circularam os expoentes de nossa cultura e apesar da luxuosa apresentação, era vendida a baixo preço, para que todos pudessem ter acesso. Depois de alguns anos, com o falecimento de Mozart Bemquerer, diretor do DDD do MEC, que vibrava com a publicação e era o seu responsável junto ao Ministério de Educação e Cultura, a revista acabou. Em seu lugar entrou alguém que simplesmente afirmou que a “Cultura” era muito luxuosa e erudita demais para a população brasileira. Um medíocre. A editora lançou mais algumas revistas e alguns livros e sonhou com uma ousada Revista: “Fato e Razão”. Na época, circulava no país e era a grande sensação, a revista “Realidade”, da editora Abril. A Fato e Razão seria a sua concorrente, uma pretensão... Utilizaria o “multi-meio”, ou seja, outros meios para que os leitores percebessem melhor o que estariam lendo e vendo. Anexo à revista, encartado, um disco compacto em plástico, complemento das reportagens.
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Entre as várias reportagens, na pauta da primeira edição, um artigo sobre a emoção do futebol, preparado por Nelson Rodrigues. No disco, para perceber melhor o que dizia Nelson, foram gravadas as conversas dos jogadores, durante um Fla-Flu e até as broncas do Juiz Armando Marques. Também estavam gravadas as “vozes” da torcida, dos técnicos, dos locutores e de todos os envolvidos na partida. Assim, os leitores poderiam perceber melhor a emoção, a paixão que envolve uma partida de futebol. As outras reportagens seguiam a mesma proposta, como reportagens de Roberto Romanelli e o artigo de Tânia Quaresma sobre os remanescentes da guerra do Paraguai, na oportunidade com idade acima de 80 anos e que gravaram depoimentos de ações e passagens das batalhas e suas emoções. Também o artigo mostrava os depoimentos do lado paraguaio, que reclamava das atrocidades. O Projeto era ousado para a época e por isso mesmo, todos vibravam e trabalhavam nele até altas horas da madrugada. Muitos deles, excelentes jornalistas, estavam desempregados, por força da repressão, pois vivíamos em plena época da ditadura militar. Apesar do conceito original, de uma equipe das melhores, não conseguimos compor a viabilidade econômica, pois os bancos negaram o apoio e as Agências diziam que os seus clientes - com medo do regime - não aceitavam o corpo editorial. Foi grande a frustação minha e da equipe. E a tristeza foi maior, quando alguns companheiros que dela participavam, foram presos pela ditadura e outros saíram do país. Isso me fez, anos mais tarde, vibrar, quando fui convidado por Eustáquio Gallejones a editar a revista “Diretas Já”, pequena contribuição para engrossar o movimento da volta à democracia. Mas a “Fato e Razão” não deixou de nascer. Aproveitando o registro do nome, passamos o título para o MFC - Movimento Familiar Cristão e meu irmão Hélio a edita até hoje, com grande sucesso, circulando também em espanhol, para a América Latina. É uma revista que, entre outros assuntos promove os movimentos sociais e é uma voz dura e ativa em defesa dos excluídos do sistema. Assim, valeu muito, pelo menos, pela criação do título. Armando Amorim - Memórias
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Depois, ao resolver parar de trabalhar para me dedicar só a pintura, acabei ainda criando a micro-editora “GABA”, (as iniciais da família), pois a filha Bianca iria estudar comunicação. Surgiram então a Casa Barra que irá virar Casa Rio e , em outra editora, com os primos Lúcia e Rogério, acabamos relançando a revista Embalagem Vende. Também editamos a revista Glória Rural da Kraft Foods. Essa valeu, pois encontrei novos amigos, como o brasileiro “meio inglês” Paul Delaney, velejador de muitos mares e que me fez conhecer René. E gente muito especial: Luís Eduardo Araújo, doce e educada criatura que me alegra a amizade e José Aníbal Amaral, engenheiro agrônomo, com jeito gostoso e mineiro de bater um bom papo. Esse foi meu tempo de editor.
Vivendo de cartaz Lino Seabra, amigo de infância, vende a sua indústria de peças de moinhos e me visita: “Mandinho, estou agora sem nada pra fazer e preciso de alguma ideia”. Apesar de não ser consultor de novos negócios, acabei propondo que fizéssemos um novo tipo de cartaz (out-door), utilizando uma retícula móvel, tipo lantejoula, ideia que não tinha posto em prática, por falta total de tempo. O novo painel iria substituir o out-door pintado, pois oferecia movimento, bastando para isso, leve brisa. Assim foi criada a Mercadus. Dela fez parte também o amigo Clayton Conrado e Fernando Sampaio, o “Fernandel”, responsável pelas monumentais instalações. A patente foi concedida, a fábrica instalada e os cartazes foram sendo coberto com as “lantejoulas” do “Painel Flash”, nome que lhe demos. Muitos devem ainda lembrar da fachada da Churrascaria Plataforma; do gigantesco painel do Túnel Novo, na passagem do cometa Halley ou ainda da torre de Niterói, com o painel Banerj, o maior do Rio e várias centenas de outros. Também foi muito comentada a decoração da cidade, que executamos para o Carnaval de 86. Entre as muitas obras, uma se destacou: a decoração da Boite Regine’s para um de seus reveillons. Presente às festividades, ma270 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
dame Regine dela se encantou e a levou para a matriz, em Paris, para ser a decoração permanente da famosa boite. Assim, por um bom tempo, vivi também de cartaz.
Fabricando sem fábrica Aos oito anos de idade, soube que das flores se faziam perfumes. Então, as rosas que a minha mãe cultivava, no pequeno jardim da Praça Del-Vecchio 39, eram a matéria-prima necessária para produzir os meus. Conseguindo vidros vazios, amassando as pétalas com álcool e completando-os com água, produzi os meus primeiros “perfumes”. Fiz rótulos a meu modo e saí para vender a coleção. Claro, os clientes eram da família e esta foi a primeira vez que ganhei um dinheirinho com meu próprio suor. Talvez essa “fabricação” de perfumes, fosse uma premonição do que aconteceria mais tarde, quando fundei, junto com José Honório Resende e Vanderley Passos, em 1990, a Casa di Piangelli. Foi uma experiência até certo ponto inusitada e que, por esta razão, merece aqui ser contada. Descobri que poderia ter um produto industrial, sem ter a indústria fisicamente. Tudo começou quando criei, para o Laboratório Smith Kline, cliente da Armando Amorim Publicidade, dois perfumes personalizados, para serem oferecidos como brindes de final de ano, em belos estojos, aos funcionários e diretores das lojas distribuidoras. O sucesso foi tão grande, que durante o ano continuamos a produzi-los, pois quem recebia e usava, pedia sempre mais um. Tempos depois, Resende, ex-diretor da Smith Kline, e também da multinacional ICI me procurava, sugerindo a criação de uma indústria de perfumes, em virtude do sucesso que ele presenciara. Convidamos mais um, o químico industrial Vanderley Passos e estava criada a Casa di Piangelli, cuja linha seria italiana. Seguindo os passos anteriores, lançamos a coleção “FragrânArmando Amorim - Memórias
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cias Misteriosas”, onde em sua composição, entravam essências de flores que participaram de antigas lendas: “Talima”, Acqua dell’amore, “Mintha”, da Amizade, “Vincus”, da Prosperidade; “Zantra”, da Sensualidade, “Azacantho”, da Beleza e ‘Linza”, da Pureza. Em pouco tempo, 30 mil vidros vendidos. Mas o interessante deste “case”, é que se pode ter uma pequena indústria bem rentável, sem possuir prédios, máquinas, equipamentos, pessoal e até pouco capital inicial. E eu conto: basta ter uma boa idéia e um bom produto. Há empresas especializadas na produção e, assim, não se necessita montar a fábrica. O custo industrial, incluindo a matéria-prima e as embalagens não chega a 1/6 do preço de venda. Excelente negócio que basta somente um bom desenvolvimento de marketing. A Casa di Piangelli fez muita gente “cheirar bem” e sonhar com os poderes de sua misteriosa linha. E quase nos fez abandonar os nossos negócios. Não foi possível, pois um dos sócios era diretor de multinacional, o outro, consultor químico de diversas outras multinacionais e eu comandava a empresa de publicidade e uma editora. Mas deixo aqui a sugestão para quem quiser transformar 1 dólar em 6 e ainda ensino o “pulo-do-gato”. É fácil. Para mim não só valeu a experiência - que foi notável - e mais que isso: a minha primeira tentativa com as rosas, em ser perfumista, aconteceu.
Uma inventada profissão Confesso que tive uma queda pela arquitetura e certo prazer em “mexer” com obra. Mas nunca pensei em fazer nada disso, profissionalmente, mesmo porque já possuía a agência de publicidade. E mais uma razão: não entendia nada do assunto. No máximo, admirava as belas formas da arquitetura e os ambientes bem decorados. Mas em certa ocasião, estava pintando o retrato de dona Belita, uma ex-embaixatriz muito simpática, moradora de bela e ampla residência na Rua General San Martin, no Leblon e o inesperado aconteceu. 272 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Como planejava a redecoração do seu “apê”, começou a pedir opiniões, pois, como pintor, dizia ela, conhecia bem a combinação de cores, de trabalhar com espaços e até de possuir bom gosto. Apesar de que essa não era a minha “praia”, acabei sugerindo que derrubasse uma parede, rebaixasse tetos, aplicasse pedra numa das paredes e fui me entusiasmando nos palpites. Como as novidades sempre me empurravam para ir em frente continuei nas escolhas de estofados, cortinas, móveis, pisos e a moradia foi sendo transformada e até orientações para pedreiros, ladrilheiros e gesseiros acabei me arvorando a dar. O apartamento pronto quis me pagar, mas relutei, mesmo porque havia também adquirido algumas das minhas pinturas, para a nova decoração. Tempos depois, dona Belita me telefona dizendo que a amiga dona Marta tinha adorado a decoração e desejava mudar tudo também em seu apartamento de cobertura. “Tive de dizer a ela que você é um decorador caro e cobrou “X”. Lembro-me que esse “X” era uma grana alta, o que me apavorou de início, relutei, mas me levou, por isso mesmo, a aceitar a nova aventura. E assim foi feito. Com certa ”cara-de-pau” e pose de entendido, fui inventando e tocando a obra. Para encurtar essa história que é longa, acabei com boa clientela e mais que isso, convidado a dirigir o departamento de Arquitetura de Interiores da famosa empresa F.I. Lemos, onde atuei por três anos. Talvez, a grande mentira da minha vida, inventando uma profissão. Depois fundei a Cabana Arquitetura de Interiores Ltda. Do limitada fizeram parte os amigos Alfredo Gutierrez e Mário Messaggi. Foram excelentes momentos, pois é uma atividade que empolga. E serviu também para aplacar a frustração de não ter sido arquiteto. Não fui no papel, mas executei muitos projetos. Espetaculares? Nem tanto.
Criando uma Secretaria Eleito Saturnino Braga em 1986 prefeito da cidade do Rio de Janeiro, resolveu criar uma Secretaria, que até então não existia: Esporte e Lazer. Convidou o médico Márcio Guimarães, meu Armando Amorim - Memórias
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amigo, com militância política, para assumí-la. Como seu conhecimento maior era nas ciências médicas, me convocou a ser o subsecretário e Diretor de Planejamento, para ajudar a conceituar e dar forma à Secretaria. Além de ser uma experiência nova - e estas sempre me cativaram- estava ali uma oportunidade em levar esporte e lazer às áreas carentes, o que me fez afastar, por algum tempo, das minhas empresas. Preparamos o planejamento e começamos a implantar diversos programas, em sua maioria instalados nas favelas e periferias. Um deles, demos o nome de “Esporte no Rio - ninguém na reserva”, orientado por centenas de professores de educação física. A criançada, dividida por faixas etárias, recebia aulas de iniciação esportiva, em várias modalidades e recebia alimentação. Ao mesmo tempo, os professores eram orientados para motivá-los ao estudo e não poderiam faltar às aulas no colégio. Márcio fazia questão que os programas atingissem o pessoal de baixa renda. Aceitou ser Secretário, pois percebeu uma boa oportunidade de melhorar a vida de muita gente. Se alguém não estivesse matriculado, os instrutores procuravam as famílias e providenciavam a sua inclusão, na rede escolar. O objetivo não era formar atletas nem jogadores, mas simplesmente proporcionar uma ocupação sadia, assistida, valorizando a participação de cada um, aumentando-lhes a autoestima. Evitaria também que se aproximassem dos tóxicos, pois em suas idades, estão sempre vulneráveis ao vício e envolvimento com o tráfico. Com a penetração nessas áreas e recebendo o apoio das comunidades, implantamos, junto com as lideranças das Associações de Moradores, programa paralelo para a formação de profissionais: cozinheiros, manicures, cabeleireiros, eletricistas, costureiras, merendeiras e outros. Sabíamos que, muitas vezes, a dificuldade dos moradores dessas áreas em conseguir emprego estava na falta de qualificação profissional. Ao mesmo tempo, criamos diversos programas na cidade, atendendo outros públicos, como o Corredor Esportivo da Ilha; nas 274 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
praias da zona sul e outros bairros. Isso nos possibilitava a parceria com a iniciativa privada, que em contrapartida patrocinava programas em áreas carentes. Também foram criados programas para atender ao lazer e à prática de esportes para a terceira idade e portadores de deficiências físicas e sensoriais. Mas o motivo de registrar aqui essa minha experiência, é deixar a idéia de um projeto que acabamos não realizando, pois surgiu no final do mandato de Saturnino Braga. E não estava em nossa área de atuação, mas foi logo aprovado por sua esposa, dona Eliana, que comandava o Serviço Social da Prefeitura. O projeto era o de instalar Cooperativas nas favelas e áreas carentes. A primeira seria na Favela dos Guararapes, em Laranjeiras, utilizando uma marcenaria e uma serralheria que dona Eliana conseguiu instalar. Chegamos a montar a estrutura do sistema, com o apoio de Mário Canellas Barbosa e sua equipe da OCERJ Organização das Cooperativas do Estado do Rio de Janeiro. Inicialmente, sabemos que uma Cooperativa é formada e gerida pelos próprios cooperados, não havendo participação de nenhum setor do governo. Mas ele pode ser o incentivador de sua criação e, o que é mais importante, viabilizá-la, não só acompanhando e atuando em seu planejamento, como na obtenção de recursos. Poderá, inclusive, de acordo com o tipo de produto ou serviço, firmar parcerias pré-estabelecidas, se tornando cliente. Por exemplo, a cooperativa de costureiras, forneceria os uniformes da COMLURB e de outros organismos; a cooperativa de marcenaria forneceria móveis e brinquedos educativos para as escolas e assim por diante. E há como “casar”, legalmente, algumas aquisições que o governo faz no mercado com as cooperativas que seriam instaladas. Elas, entretanto, não teriam só o governo como clientes. E poderia haver outros tipos de cooperativas, como as de artesanatos (trabalhando com diversos materiais), de brindes, tapeçaria, serviços, etc. Para a sua organização, a OCERJ oferece todo o apoio, além de se ter o SEBRAE, com seus diversos e eficientes cursos e treinamentos. Em nosso projeto, o embrião seria iniciado com o apoio das Associações de Moradores, mas dela participaria qualquer Armando Amorim - Memórias
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morador que se habilitasse, formando o corpo de associados cooperativados, que elegeriam a diretoria. Esta teria o seu conselho administrativo e fiscal. Para apoio a todas as cooperativas, inicialmente esboçamos um núcleo de marketing profissional, para estudos de mercado e estratégias para a comercialização dos produtos e serviços. Enfim, a instalação de um sistema cooperativo bem organizado, em favelas e áreas carentes, possibilitaria ganhos extras para numerosas famílias e emprego para grande número de pessoas. Em levantamentos preliminares, foi verificado, nessas áreas, alto índice de ociosidade, não só de jovens, mas de mulheres que não podem sair para trabalhar, pois há carência de creches. Também de pessoas com idade acima de 50 anos, ou até menos, que são rejeitados pelo mercado de trabalho. Implantadas, as próprias cooperativas poderiam instalar creches para os seus cooperados e empregar essa clientela. Também no levantamento, verificamos que a grande população que habita essas áreas, é oriunda do norte e nordeste, sendo que a maioria sabe bordar, produzir rendas, utensílios de palha e outros variados predicados. Mesmo os que não têm aptidões gostariam de aprender, o que não é difícil, a partir de orientação e cursos. São programas simples de geração de renda, que no nordeste e em outras regiões do país já estão obtendo sucesso e grande número de cooperativas já exportam as suas produções. E se há sucesso nessas regiões, por que não haveria também aqui no Rio, com a vantagem de serem instaladas junto ao grande mercado consumidor que é a nossa cidade. Ainda mais, é esta cidade que recebe o maior número de turistas, clientes em potencial. E bastaria o apoio inicial as primeiras, pois as outras surgiriam naturalmente, inclusive baseando-se na experiência das precursoras. São programas que não necessitam de grande capital, pois baseiam no esforço de todos, para o benefício de cada um. Assim, nesta passagem curta pelo governo municipal, pude notar que se pode ajudar muito áreas carentes, além de possibilitar aumento de emprego e ganhos extras para todos. Basta vontade e executar! 276 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Quem sabe se no futuro, ao invés de conhecermos o morro tal, como sendo propriedade do traficante X, não será conhecido como a “favela das rendas de bilro” ou a “produtora de brinquedos educacionais”, outras produzindo artefatos de bambu, cerâmica esmaltada, roupas, brindes e até serviços de acabamento para indústrias. E haveria grande local cedido pela Prefeitura, para exposição permanente e venda. Tenho a certeza que seria mais um ponto turístico do Rio de Janeiro. Aposto e vou torcer.
Um dia entrei na moda Nos meus vinte anos, quando era necessário ganhar mais um dinheirinho, valia pintar qualquer coisa, sem nenhum pudor: cortinas, móveis, colchas e até galhos de cerejeiras nas paredes, que se assentavam bem nas decorações orientais. Para a minha alegria, em certa época a roupa pintada virou o máximo da moda e durou bom tempo, pois as mudanças não aconteciam tão rápidas, como agora. Rapidamente me inteirei da técnica, mas as tintas utilizadas eram gelatinosas, impossíveis de bons efeitos. Foi então que descobri tinta de tecido líquida francesa da Talens que, por possuir excelente fixador, poderia ser misturada à tinta a óleo. Descoberta a química ficou fácil o trabalho. Iniciei a produção em conjunto com a mana Cely e a tia Odete, a “Dédé”, que produziam as roupas. O “Departamento” de vendas ficou a cargo do amigo Zé Carlos, o “Gengivinha” e rapidamente as roupas passaram a ser vistas nas vitrines de butiques famosas. Na época, o programa de rádio “Desfiles Bangu” passou a promover concursos de roupas pintadas. Eram apresentados por Ribeiro Martins, conhecido também pelos concursos de fantasia que promovia no Teatro Municipal, durante o carnaval. Os “Desfiles Bangu” eram aos sábados, nos clubes sociais da cidade e os seis primeiros foram vencidos pelos meus modelos e não pude mais concorrer. Passaram então a desfilar Hors Concours. O sucesso não estava em meu trabalho, mas nas tintas e cores que conseguia desconhecidas dos concorrentes. Pela grande divulgação que o tal programa proporcionava, rapidamente chegou ao conhecimento do costureiro português Nazaré, que vestia as elegantes, as socialites. Era ele o Denner, o Armando Amorim - Memórias
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Clodovil da época. Convidado a ser exclusivo do seu atelier, acabei pintando “vestidos de baile”, usados nas festas de formatura e de debutantes e até vestidos de noiva - todos eles custando uma nota “preta”, e eu ganhando a minha também. Mas o que me leva a contar essa historinha é para contar outra, que deixou felicíssima a minha mãe. Certo dia, como era ótima costureira, preparou um vestido para participar do casamento da filha de uma amiga. Tratava-se de um vestido em seda preta, sem nenhum detalhe que o realçasse. No dia do casamento, ao chegar em casa, o vejo estendido em sua cama, pronto para ser vestido, aguardando somente a sua volta do cabeleireiro. Para espanto da tia Dédé e da mana Cely, peguei o vestido e o estampei em prata, começando com ramagens densas na base e esmaecendo após a cintura. Como a tinta era de secagem instantânea, o coloquei no mesmo lugar e aguardei a sua volta. Quando chegou, o espanto. Não estava entendendo nada e quase perguntou onde estava o seu vestido. Mas logo reparou que era o próprio. Uma emoção! Vestiu e ficou maravilhoso. Ao voltar da solenidade estava mais feliz ainda, pois não havia quem não o tivesse elogiado. E ela respondia orgulhosa: foi meu filho quem pintou! Era assim a nossa mãe, que nunca perdeu uma oportunidade de elogiar os filhos. Quase sempre, muito mais do que mereciam. E só por lhe ter proporcionado esse dia, valeu aprender a pintar tecidos... a entrar na moda.
Nuvinho Verde e Azul da Silva Não há, entre os meus amigos, quem não conheça o anjinho sacana, com nome e sobrenome: “Nuvinho Verde e Azul da Silva”. 278 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
A criação desse personagem e as suas histórias me fizeram passar momentos divertidos e muitos não entendem por que até hoje a coleção com seis livros ainda não foi editada. Nem eu. Na verdade, a coleção acabou formando outra história e eu conto: Ao ser escrito o primeiro livro, Billy - cunhado e amigo sugeriu que Geraldo Casé, Diretor Internacional da Rede Globo e conhecido autor da Série “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, conhecesse o “Nuvinho”, por ser ele um especialista em personagens infantis. O anjinho que é maroto e sabido conquistou o mestre Casé, e ele fez questão de marcar encontro com o pessoal da Xuxa, que dominava na época o mundo dos “baixinhos”. A turma de lá também gostou e Marlene Mattos sugeriu que se criasse, a partir das histórias, um roteiro para filme, a ser estrelado por ele e Xuxa. Assim, foi criada uma aventura com os dois e me comunicaram que seria rodado no ano seguinte, pois Xuxa já estava nas filmagens de outro. Nesse meio tempo, sugeriram que Nuvinho participasse, como personagem, de seu programa. Tudo bem, disse eu. Dias depois, acompanhado do meu amigo Mauro Montalvão - homem de Televisão - fui ao escritório de Xuxa para os acertos e lá, muito bem recebido pela diretora de marketing, dona Argélia. E veio a pergunta: quanto você quer pelo Nuvinho? Claro que disse que anjo não se vende. Se fosse um personagem político, até que poderia ser... Mas anjo, não! Nuvinho que já estava mostrando as suas asinhas, teve que recolhê-las e, assim, o enfiei debaixo do braço e voltei. Tempos depois, o maestro Tom da Bahia passou a fazer parte também da coleção. Isto porque, cada historinha do Nuvinho, que é defensor da natureza, mas bem sacana e levado, acaba em poesia. E Tom, lendo a coleção, resolveu criar músicas para cada uma. E ficaram sensacionais, com vários rítmos, que vão do rock à bossa nova. Passamos a ter uma coleção com seis livros e CD, com 16 músicas. Surgia assim um musical infantil. Passado algum tempo, outro personagem entra na história. O cineasta e amigo Joel Vaz, fã do Nuvinho, me convenceu juntá-lo a outra anjinha, “Angélica”, e assim foi feita nova coleção. Seu sócio Queiroz que fora produtor de Angélica na Manchete passou Armando Amorim - Memórias
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a ser “padrinho” do anjinho e fomos a São Paulo, ao encontro da loirinha, na TV Bandeirantes. Conversamos durante uma tarde, na presença da irmã e do empresário Léo. Angélica adorou o Nuvinho e quis fazer a parceria. E ainda solicitou ao empresário a diminuição dos royaltes, para viabilizar o projeto. Contato com a Editora Salamandra, que aceitou editá-los, mas aí entra a minha culpa: deixei o Nuvinho na gaveta, tempo suficiente para Angélica se mudar para a Globo. Novos contatos que Joel Vaz fez, agora com grande empresa que administra os seus negócios. E impõe que sejam pagos adiantados, os royalties sobre 180.000 livros, ou seja, 30.000 coleções. Aí, quem não aceitou foi a Editora Salamandra, pois era alto o investimento. Conclusão: Nuvinho de novo na gaveta. Tempos depois, há o interesse da Fundação “O Boticário” de lançá-lo na Feira de Livros, no Rio Centro, mas os altos custos acabaram inviabilizando o projeto. Mais uma vez, gaveta. Nessa altura, se Nuvinho não fosse anjo, já estaria servindo o Exército. Como dizem por aí que devemos perseguir o nosso sonho (se não encontrar numa padaria ir a outras), continuei a busca. Certo dia, novamente Joel Vaz me leva ao encontro de alguém, para que Nuvinho seja apresentado. Não lhe coloquei roupa nova, pois ele gosta mesmo de andar nú e até de mostrar o peruzinho. O novo amigo era Augusto César Vannucci, na época diretor dos projetos especiais para a TV Globo e reconhecido como um dos mais capacitados da TV brasileira. Leu a coleção e se empolgou: “Vamos rodar um filme”. “Seria uma produção independente, em parceria com multinacionais com as quais mantinha contatos e que participariam como sócias do empreendimento”. Seu objetivo era depois vendê-lo à Globo e por intermédio de seu setor internacional, e colocá-lo em outros países. 280 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Alguns encontros, algumas explicações técnicas da produção e muita animação. Principalmente a minha. Pensei até: finalmente esse anjo vai me fazer ganhar um dinheirinho, o que não faz mal a ninguém. Puro engano! Dias depois, numa tarde, recebo a notícia: Vannucci morreu. Enfarte fulminante. Fiquei transtornado pela pessoa extraordinária que sempre foi, com um trabalho de doação ao outro, que poucos conhecem. Voltei a colocar Nuvinho na gaveta, agora, para sempre. Estou bronqueado com ele, pois sendo anjo, podia dar uma mãozinha. Não deu!
Por acaso, entrei nas Artes Na verdade, a arte entrou na minha vida, por necessidade. Não no sentido da sublimação. A necessidade que eu tinha era a de me esconder. Nos meus 17 anos, briguei com alguns policiais, com o forte apoio do pessoal do morro, depois de uma discussão que ninguém estava com a razão, mas que eles quiseram resolver no cacetete e no tiro. Apesar de ninguém ferido gravemente, a procura pela revanche passou a ser diária, o que me fez internar-me em casa, nas férias de fim de ano. Dona Idalina, minha mãe, passou a desconfiar da presença no lar e as perguntas começaram. Sem ter nada convincente para justificar, acabei pedindo que comprasse uma tela e algumas tintas, pois iria pintar. A reação veio rápida: “como pintar, se você não sabe?”. Mas acabou me trazendo uma telinha, meia dúzia de tubinhos Armando Amorim - Memórias
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e um pincel. Talvez em seus pensamentos, ela achasse que era o momento de transformação... De pensar em alguma coisa diferente da diversão. Mãe é assim. Peguei então uma foto com mar, farol e um barquinho e estava “obrigado” a reproduzi-la. Juntando paciência com determinação, fui descobrindo as misturas das cores e colocando-as na tela. Em dias, o “milagre”: a tela bem igual à foto. O espanto de todos. Quem aparecia em casa, dona Idalina saía correndo para mostrar vaidosa a “obra” do filho. Também fiquei surpreso. Esquecido da briga fui apresentá-la ao professor Montano, pai do amigo Ramsay, que era a minha referência cultural. De início a exclamação, seguido do elogio: você é um artista! E por vários dias me animou para continuar. A partir Dali, me convenci de que era mesmo um artista plástico e saí pintando, até que um dia me aventurei a criar. Surgiram então os meus “neguinhos” e suas brincadeiras - que eram as minhas também - e mais tarde se juntaram às “caboclas” elegantes, sempre se alongando, até chegar à forma atual, apesar de ter passado por vários estilos e “ismos”. O segundo fato casual aconteceu tempos depois. Acabava de buscar alguns quadros no moldureiro e os estava mostrando à amiga Marilda, no hall de seu edifício, já tarde da noite. Passa por nós um cidadão. Para, olha e vem a pergunta: “usted los pinto? - me gusta mucho”. Depois de um curto papo, de pegar as telas, pediu que lhe telefonasse, pois desejava ir ao atelier, conhecer melhor o meu trabalho. Não dei muita importância ao fato, mas a Marilda - como sempre a curiosidade das mulheres - me fez marcar o encontro, quando levei outros quadros ao apartamento onde estava hospedado, pois não possuía atelier. Nessa altura pensei que estivesse interessado em comprá-los e já havia calculado o preço. Lá chegando, me contou a sua história: a família veio do Chile para o Brasil e ele fora ainda moço para a Alemanha, agraciado com bolsa de estudos. Acabou se formando e virou professor de arte na Universidade de Frankfurt e também crítico. Soube, depois, que se tratava de Pablo Serejo, conhecido em toda a Europa por seus livros e artigos em revistas européias. Examinou meus meninos soltando balões, pipas e brincando 282 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
as suas brincadeiras e gostou não só dos motivos, mas das formas esguias, fixadas no expressionismo. Veio então o convite: quer expor na Alemanha? A resposta veio meio gaguejada pela emoção, ao mesmo tempo em que sabia ser difícil sair do país, pois era funcionário de uma empresa. A proposta então foi a de levar os quadros e expô-los sem a minha presença, o que não me animou muito. Perguntou então o preço de cada formato. Só aí é que percebi que as cotações eram baixas, pois o chileno propôs comprar todos, expô-los e me enviar as notícias por carta. E assim foi feito, pedindo que os levasse ao moldureiro para retirar não só as molduras, como os chassis. Alguns meses depois, recebo as notícias e os recortes da mostra, ao mesmo tempo o pedido para preparar outra coleção, pois no final do ano estaria novamente visitando os pais, o que fazia sempre. Ganhei assim um marchand de luxo na Europa, levando meus trabalhos, todos os anos, a vários países. Apesar de ter havido reajustes nos preços, nunca soube por quanto foram vendidos, uma curiosidade que me perseguiu por muitos anos. Esses foram os dois fatos casuais que me fizeram virar pintor: uma briga e um chileno meio alemão, que me fez produzir. Hoje, depois de mais de 50 anos pintando e pesquisando arte, me sinto cada vez mais confuso, neste mundo que é sem pé nem cabeça. Não adiantou ler muita coisa e nem as conversas e discussões com Valmir Ayala, Sistier, Vallery, Pablo Serejo e outros críticos, pois continuo com alguns pontos de vista, bem diferentes do que dizem por aí. Durante anos li e escutei muitas teorias, muitos pensamentos que pareciam levar à descoberta do sentido da arte. Mas na verdade reparei, depois, que não levam a lugar nenhum. Ficam tão afastados da realidade, que não conseguem enxergar o óbvio, o que é simples, o que tem sentido. No caso dos intelectuais da arte, quiseram me levar a admirar o que não tem nada de tão admirável. Tentaram me convencer que o sentido da arte é de ficarmos perplexos diante do desconhecido, principalmente por não entendermos o seu significado. Falaram-me da genialidade de Duchamps, colocando uma privada de ponta cabeça, transformando assim objetos do cotidiano em obras de arte etcetera e tal. Armando Amorim - Memórias
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Não sou ingênuo e sei que há necessidade de muitas vezes romper e mesmo transgredir com o estabelecido, para avançar ou para modificar, e que nem sempre pode ser para melhor. Mas há gênios que conseguem, apesar de que não são tantos, como nos querem convencer. Não há como negar que traços, formas geométricas, borrões e até pinceladas a esmo, podem, muitas vezes ser atraentes, não só pelas cores bem estabelecidas ou pela harmonia das formas. Mas, fazer disso algo repleto de mensagens e insinuações metafísicas é demais. Os críticos e quem se arvora em escrever sobre arte estão conseguindo distanciá-la do público, pois para promovê-la, produzem textos complicados e muitas vezes não querendo dizer nada, apesar de que parecem dizer. Certa vez anotei um desses textos e durante anos procurei intelectuais que me pudessem traduzir. Ninguém conseguiu. Diante de três rabiscos em preto no fundo roxo, o crítico dizia: “o seu censor do psiquê flutua no onorimento dos conteúdos subliminares, numa teoria do eu sonante instintivo e do panorama ético mental da complementaridade”. Em verdade, isso não quer dizer nada; é um texto sem sentido. Mas o público lendo essa besteira acha que o burro é ele, pois se julga incapaz de entendê-lo, por “falta de cultura”. Em outras instâncias, para comentar a obra de Oiticica, disseram que “este homem-poliedro amalgamou casa mentale e transe instintivo genital em que a obra espelha o paroxismo do prazer, dança do intelecto e dilaceração dionisíaca”. Mesmo no catálogo da Bienal de São Paulo, o curador Nelson Aguilar dizia sobre Goya: “ele delineia um eu exposto à labilidade das instâncias intrapsíquicas; Goya se singulariza pela vontade multimediática”. Esse mesmo Nelson, dizia que Munch é uma “curiosa transmigração imagética”. E assim, os textos sobre arte e artistas vão criando mitos, verdades, promovendo com linguagem inintelegível, as maiores fraudes e mentiras. Daí, na tão aplaudida vanguarda atual, fragmentada e sem sentido, batem-se palmas e extasia-se diante de um porco cortado em pedaços, que o autor, 284 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
um tal de Kirsch, diz estar “celebrando a vida”. E os críticos se deliciam - não com o porco que até é gostoso - mas com a genialidade do autor. Outra recente, foi a “genial” performance de Chris Burden, em que um amigo ficou chutando-o de uma escada e em seguida lhe jogou pedras. Chamar isso de arte é sacanagem. Penso que as artes plásticas suplantaram os limites e se perderam do senso. Em verdade, parte dela; pois continuam a sobreviver Glauco Rodrigues, Maria Bonomi, Faiga Ostrower, Cláudio Torzi, Antônio Dias, Roberto Magalhães, Marília Kranz e tantos outros admiráveis. Não me convenci, portanto, das extravagâncias das vanguardas atuais, apesar de me deliciar com o novo, com o inusitado, com a criatividade suplantando desafios. Às vezes, penso que a arte em geral é, para o artista, somente um desafio a serviço da transformação. Pode ser uma folha de papel em poema ou várias delas formando uma história. Pode ser o desafio de juntar notas musicais e transformá-las numa sinfonia ou sons que divertem ou chegam à alma. Também dar forma ao bloco de mármore ou chapas de aço e ferro ou fazer surgir cores, movimentos, numa superfície qualquer. É sempre um desafio. Artista, portanto, é aquele que busca permanentemente um desafio, usando a destreza, a habilidade, a criatividade e sensibilidade. Pode-se usar nisso até o corpo, conseguindo movimentos e harmonias e transformá-los em dança ou ser capaz de transmutar-se em personagens ou dominar a sua voz, para dela surgirem belos sons. E, simplesmente, depois da obra acabada, a satisfação do artista em ter chegado ao seu objetivo: “consegui transpor o desafio!” O objetivo seguinte é saber se aquilo que produziu, conseguiu sensibilizar, emocionar, divertir ou simplesmente ser admirado pelo público. Assim, não acredito nos artistas que dizem que isso não interessa... Que o aplauso é circunstancial... Artista se alimenta do aplauso. Até os que produziram a anti-arte esperavam ser comentados e verem seus nomes citados pelo desafio. Isso são ingredientes do ser humano e artista não é nada sobrenatural, apesar de que muitos se esforçam para dizer que são. Armando Amorim - Memórias
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A arte, para o artista, só tem essas duas serventias: mostrar a si que é capaz de transformar coisa nenhuma em alguma coisa e nesse processo se deliciar... Viajar acima de águias e fragratas e, finalmente, receber o aplauso por isso. Nada mais. Só não digo que ela é inútil, pelo que vem depois, ou seja, para quem por ela os sentidos são tocados. Os que conseguem transformar o que viram ou escutaram em sensações profundas e infinitas. Esses assistentes são às vezes até mais criativos do que o próprio artista, pois podem ir muito além da própria criação, capazes de recriar abstratamente, usando a imaginação e os sentidos. A arte, portanto, se transforma numa linguagem, pois contém um meio que chega ao observador, para recriá-la, de acordo com as suas atitudes subjetivas e perceptivas. Penso assim e mais algumas coisinhas. E para aqui não repeti-las, transcrevo alguns trechos de uma entrevista publicada na revista chilena “Ahora -Arte Letras”, transcrita também em minha exposição “Brava Gente Brasileira”, em que explico um pouco desse mundo louco, que é a arte. E de que ainda entendo pouco, pelo que vejo, leio e escuto. M.P. Está parecendo, pelo que você afirma, que é totalmente contra os radicalismos. É assim? A.A. Em certa época da vida, fui um sonhador da anarquia, achando que as mudanças só chegariam assim. Hoje, acho que os radicalismos não fazem avançar coisa alguma. As rupturas propostas estilhaçaram a arte em milhares de fragmentos. E fica difícil saber agora quem está com a razão. Não sei quem, certa vez falou: “Deus criou a mosca, mas esqueceu de dizer, por que”. É mais ou menos por aí. M.P. Pelo que você falou anteriormente, parece que também não aceita as instalações, as performances, a arte conceitual? A.A. Absolutamente, não sou contra. Somente não gosto de alguns trabalhos. Muitas vezes a gente acaba se 286 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
aborrecendo de ver tanto túnel com televisões cheias de chuviscos. Mas há muita apresentação criativa, bem bolada. De modo geral, acho que foi a grande sacada dos últimos tempos. Acho mesmo que está sendo criada uma nova arte, que tem ainda muito espaço para se desenvolver. Como surgiu o cinema - que uniu a literatura, o teatro, a música, acho que as instalações e as performances estão fazendo surgir uma nova arte, que ainda nem nome tem. E acho que elas vão se aproximar cada vez mais da arte interativa, da realidade virtual, da cenografia e dessa mistura toda, nova expressão surgirá. A partir daí se separará definitivamente da arte do suporte, da pintura e mesmo das obras tridimensionais, pois ainda há uma certa ligação. Isso pra mim é extraordinário, pois a arte necessita de uma permanente reinvenção, gerando criatividade constante. M.P. Percebe-se que você cultua os modernistas e para muitos é coisa do passado. É assim? A. A. Penso que o homem necessita de permanente auto-subversão para ir avançando. Mas isso não quer dizer acabar com as conquistas anteriores, pois são elas que fazem o ponto de partida e assim não podem ser chamadas de conservadoras. Não tenho nada contra as coisas que passaram. Pelo contrário. Acho também que todo artista deve ter a liberdade de modificar regras estabelecidas e até criar problemas para que alguém os resolva. Mas não é por isso que vamos ignorar o que passou o que já foi feito, como clamam certos vanguardistas. Parece que eles vivem em outro planeta e que só nele existe vida inteligente. Será que não ficou nada de Cézanne, Machado de Assis, Portinari, Oswald de Andrade, João Cabral, Pixinguinha, Picasso, Guimarães Rosa, Manoel de Barros, José de Anchieta, Carlos Drumond de Andrade, Cervantes, Glauber Rocha, Van Gogh, Tom Jobim, Racine, Villa Lobos, Cícero Dias e assim por diante?
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Quem rompeu totalmente com esse “passado”, precisa apresentar coisa melhor. E será que estão? M.P. Portanto, você definitivamente não se preocupa com a tão falada contemporaneidade? A.A. Olha, tudo que é contemporâneo, amanhã já não é mais. É temporário. E imagine ficar obcecado por isto. A gente acaba esquecendo-se de fazer arte. O meu negócio como já falei, é ligar o meu trabalho, à minha vida, às lembranças do meu inconsciente e da minha consciência. E deixar que isto me leve a sonhar um pouco, a inventar muitas vezes utopias. Não é nada mais que isto. Faço só uma coisa simplezinha. M.P. Diante das afirmações anteriores e por passar por tantos estilos, qual ou quais lhe interessaram mais e quais os artistas que você consagra? A.A. Pra me defender da parte dos estilos por onde andei, cito sempre Picasso que está entre os 10 melhores de todos os tempos e andou por vários. Portanto, estou em boa companhia. E sobre as expressões da arte, acho que gosto de quase tudo. Sobre os artistas fica difícil, pela quantidade, enumerar todos. Mas cito alguns: No Brasil, a última fase de Portinari é coisa de gênio; a mineira Lygia Clark e seus bichos articulados; os fios dourados de Maurício Bentes; o fora de série Roberto Magalhães, com seu humor; os bichos do goiano Siron Franco e mais; Rubens Gerchman, Glauco Rodrigues, Cláudio Torzi, Souzanetto, Ângelo de Aquino, Scliar, Cícero Dias, o romeno Sanson Flexor, Antônio Dias, Di, Milton Dacosta, Volpi, Leda Catunda, Reynaldo Fonseca, Ismael Nery, Sigaud, Ivan Serpa, Maria, filha da amiga Rosinha, os sépias do lituano Lasar Segall, o italiano/paranaense Guido Viaro, Carlos Bracher, Marcier, Guignard, Bianco, o nosso Op Fiaminghi, e mais Rosário com seus mantos e suas naves! O “Professor das Artes”, de Rio Preto com seu chapéu colorido,... E nossos naifes e primitivos geniais. E muito mais.
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M.P. Você não falou dos artistas internacionais que admira. A.A. Devem ser também algumas centenas. Mas cito Roualt, Matisse, Van Gogh, Cézanne, mais Braque que Picasso; a fase expressionista do belga James Ensor, o austríaco Oskar Kokooschka, o pessoal do movimento Cobra - Karel Appe, Corneille e Constant, o genial De Kooming, Olivier Debré, Raymond Besse, Juan Gris, Lucebert, Paul Klee, Bran Vanvelde, Marc Chagall, Delacroix, Pollock, Kandinsky, Roberto Matta e mais uma penca. M.P. O que você acha da globalização - que está na moda. Ela atinge a arte? A.A. A globalização na economia deveria ser um ponto positivo para que países pobres e em desenvolvimento, como o Brasil, pudessem melhorar de vida e inclusive se desenvolverem tecnologicamente. Mas o que temos visto não é nada disso, pois a globalização entre desiguais aumenta a desigualdade. A tal OMC que regula o comércio entre as nações, beneficia sempre e somente os países ricos, que continuam com as barreiras e os fantásticos subsídios. E querem que países de grande mercado consumidor, como o nosso, estejam sempre à sua disposição. Essa é a covardia que se vê e, pelo andar da carruagem, assim vai ser por muito tempo. Já na globalização da comunicação, da informação, é certo que também os países de maior força econômica vão sempre ganhar. Vão assim impor cada vez mais padrões, estilos de comportamento, de gosto, de valores e isso, de certo modo, anula os valores de quem é atingido por essa força que é descomunal. Por outro lado, não acho que o isolamento seja a solução e não sei a receita para se encontrar o meio-termo. A arte não escapa dessas influências, muitas vezes impostas. Como sou a favor de que a arte de cada país, de cada região seja sempre preservada e desenvolvida via cultura, percebo que vai sendo atingida.
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M.P. Quer dizer que você é contra a universalização da arte? A.A. Em certo sentido sou. Quando todo mundo estiver fazendo tudo muito igual, muito parecido, a gente vai morrer de aborrecimento. Acho que a graça da vida está nas diferenças, na diversificação. Homogeneização pra mim, só no leite. Portanto, a multiplicidade, as diferenças, os desiguais são a grande sacada do planeta. E não podemos criticar o Criador. Ele fez justamente assim. Imagine se tivéssemos um só tipo de árvore, uma só flor, uma só cor ou uma só raça. Já teríamos morrido de tédio. Como fomos criados à Sua semelhança, devemos continuar a diversificação, ampliar a criação, como fez a sabedoria do português, inventando a sensacional mulata. Na arte, que ela reflita as diferenças de cada cultura e que pela liberdade, possa ser transformada e multiplicada. Também ser apreciada por outras culturas. E que as influências, as misturas sejam feitas de forma natural, nunca pela força da comunicação, pelo poder do dinheiro, que não deixam de ser uma forma de ditadura. E nesta estou sempre fora. M.P. Você então é a favor de que haja uma arte mais brasileira do que universal? A.A. Acho que quanto mais a arte tenha raízes com a cultura de um povo, mais será universal. E não sou o primeiro a dizer. E no nosso caso, temos razões de sobra pra pensar assim. O Brasil com uma cultura riquíssima, diferente, talvez o único país do planeta que soube misturar três raças a partir da chegada dos portugueses e africanos e depois de várias outras e fazer uma gente extraordinária, não pode deixar de transparecer na arte, a sua identidade tropical, colorida, criativa, cheia de graça. E que assim seja mostrada em todo o planeta. Não devemos tentar fazer o que se faz na Escandinávia. 290 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Devemos sim, saber apreciar e até nos emocionar com o que se faz lá e em outros lugares. Devemos apreciar as valsas vieneneses ou os blues e o jazz americanos, que são lindos. Mas na hora de compor, vamos fazer o nosso samba, nosso chorinho, nossas bachianas, a nossa bossa. Isso faz a nossa diferença e temos que preservar, para o mundo se admirar. M.P. E quanto aos temas sociais, você não acredita mais na arte engajada? A.A. Durante algum tempo utilizei o expressionismo para mostrar com traços densos e negros a minha indignação pela pobreza, pela má distribuição de renda do país. A miséria, a fome, a falta de oportunidade para muitos e outras formas de injustiça sempre me incomodaram. M.P. Mas hoje, até os seus meninos das favelas e caboclos que eram muito magros, engordaram. A situação melhorou ou você pensa de outra maneira? A.A. A situação melhorou muito pouco e a indignação continua a mesma. Se eles estão mais coloridos, mais bonitos, é porque sempre achei essa gente muito bonita. Por dentro e por fora. Meus meninos das favelas, das periferias é uma gente pura que brinca, que ama, e que só quer uma oportunidade para viver dignamente. Já os meus “sem terra” é uma gente forte, cheia de bravura, solidária, e que só necessita de um pedaço de chão para plantar. Esses fazem parte da “brava gente brasileira”, de um tal hino. M.P. Para finalizar nossa conversa, apesar dos desencontros que você falou, me diga para onde se encaminha a arte? A.A. Acho que os que determinam artificialmente as tendências estão perdendo a força. Acho também que os que quiseram e querem produzir choques, a anti-arte, etc, já estão cansando e saindo de moda. Inclusive na última Documenta de Kassel, os “transgressistas” não apareceram, ou, se apareceram, não transgrediram nada; não foram Armando Amorim - Memórias
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notados. Isto quer dizer que devem procurar coisa melhor pra fazer. Isto não quer dizer que a arte não necessite dos marginais, dos “mudadores” de rumo. Mas até para transgredir você tem que ter competência, originalidade, capacidade para tal. M.P. Então, para qual estrada a arte vai? A.A. Quem sou eu pra responder a isso, se ninguém sabe? M.P. Mas dê então um palpite. A.A. Bem, se é pra palpitar, acho que a partir de agora, todas as linguagens vão ser mais apuradas, mais trabalhadas. Acredito que neste aperfeiçoamento vai se desligar um pouco da arte “mais escrita” do que produzida. E já na entrada do próximo decênio não teremos mais carnes podres ou cenas mórbidas. A arte nunca mais vai ficar presa a “ismos” e deve abolir a obsessão desenfreada e muitas vezes inconsequente de alguns, que querem, por que querem, ficar à frente do seu tempo. E acho que pra fazer isso, só os gênios. E eles não são tantos assim. Também, com total liberdade, cada artista encontrará o seu lugar, buscando toda a possibilidade que os espaços, a cor, os planos, as formas oferecem. Acho ainda que se vai buscar a qualidade formal, a excelência estética, a arte como objeto de reflexão, de observação. E vão aparecer muitos que saberão usar pra isso a criatividade, o virtuosismo, a habilidade, a imaginação iluminada. É isso aí. M.P. Você é um desses? A.A. Não! Sou somente um aprendiz... Como diz Manuel de Barros, “fazendo coisinhas sem importância”... E isto não é modéstia, é pura constatação. Verdade pura. M.P. Não concordo. A.A. Mas é.
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Acabo de mostrar nessa dezena de páginas a misturação de fazeres. Nunca consegui fazer uma só, como qualquer mortal ajuizado. Fui assim enchendo a vida com coisinhas diferentes e todas me deram muito prazer, pois me divertiram. E continuo fazendo, como se esse mundo dos negócios fosse um grande parque de diversões, uma divertida brincadeira, onde o chamado “trabalho” pode ser uma atividade prazerosa. Basta, para isso, não esconder da vida, a nossa parte criança e quando retiramos do “fazer alguma coisa” o seu lado sizudo e mal encarado. Serviu assim para mostrar ou não mostrar aos filhos a profissão do pai. Particularmente me considero um publicitário, pois durante mais de trinta anos exerci a atividade. Mas em grande parte de suas vidas eles assistiram as misturações e assim não se convenceram. Podem então dizer que o pai de vocês é um criador de coisas úteis e inúteis. Mais da última.
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Assuntos familiares: Pai, mãe e a gente É aquela velha história: quando se é criança, os pais têm vontade mesmo é de cantar assim: “Nana, neném, que a noite já vem, eu não vejo a hora de te levar para a FEBEM...”. Pelo lado da criança, os pais são os inimigos a vencer. São eles que nos fazem tomar sopa, comer os terríveis legumes, a vestir o que não se quer, a nos fazer estudar, a nos fazer parar de brincar e a nos obrigar a dormir, mesmo que não se tenha sono. Há outras imposições, como tomar banho, lavando bem atrás das orelhas; escovar várias vezes os dentes; cortar o cabelo como eles querem, sair agasalhado, enfim, criança é obrigada a fazer tudo aquilo de que não gosta. Por outro lado, o que é bom, não pode: chiclete, refrigerante, muita bala, biscoito e até falar um palavrãozinho. Assim, como qualquer criança, vivi dias terríveis. Nos meus quatro anos, detestava usar calção vermelho com alça, para o banho de mar, estampado com peixinhos. Depois, me enfiaram umas calças bombachas e, nelas, me sentia um ser horripilante. Na hora de cortar o cabelo tinha que ser a “La príncipe danilo”, com máquina zero nas laterais, que fazia as minhas orelhas pularem, parecendo duas ventarolas. Ficava tenebroso. Na hora de escolher o sapato, tinha que ser o “Tank” - pesado e desajeitado - mas o mais resistente. E ainda, passava-se no sapateiro, para ser colocado um ferrinho na frente e outro no salto, para não gastá-lo. Ou seja, me vestiam e me arrumavam, como se eu fosse estrelar filme de terror. E, apesar de tudo, ainda tinham 294 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
D. Idalina, nossa mãe Seu Armando d’Amorim, nosso pai.
a coragem de comentar com os vizinhos e amigos: “veja como ele é uma gracinha...” Na hora de comer, sopa de legumes estava no cardápio diário do jantar e, quem dela não se servisse, não poderia comer o restante, sempre mais saboroso. Ficava pensando: com tanta proibição, legume deveria ser também proibido para menores de 10 anos. Mas, de tudo o que mais detestava, já nos meus 10 ou 12 anos, era de não poder sair à rua para brincar, na quantidade de tempo que eu achava necessário. Isso doía. O jeito então era fugir, quando a mãe ia fazer as suas comprinhas. Como acabava descobrindo, passava a trancar os meus sapatos. Saía descalço. Mais rigidez aparecia: o guarda-roupa trancado, chave escondida e eu de pijama. No desespero, cortava as pernas do dito e rua! Aí a porrada comia. E comeu muitas vezes. Armando Amorim - Memórias
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Mas a gente vai crescendo, ficando mais forte e aí a coisa se modifica. E as ordens vinham: “Mandinho! passe palha-de-aço na casa e depois a cera! “Vamos comigo à feira, para trazer as compras!” E quando faltava água - e naquele tempo, no Rio havia muita falta - a ordem era certa: “Vá ao Seminário apanhar água e encher a banheira!”. Mas, nem tudo era assim. Havia as compensações e, uma delas, lhe fazer companhia nas comprinhas, no centro da cidade. Algumas vezes sobrava algum presentinho pra mim e, antes de voltar, lanche na Leiteria Vitória ou Leiteria Mineira, esta, na Rua da Ajuda. Chegava então o café com leite, acompanhado de torradas de Petrópolis com muita manteiga e cortada em palitinhos. Uma delícia! Também, poderíamos ir comer uns docinhos na Cavé, na Rua Sete de Setembro ou na Manon, que ficava na Ouvidor.
O pai, a mãe e nós: Helio, eu e Cely. Aparece ainda a Lucinda
Eu, Cely, Jayme, Regina, Luiza e o nenem é Luiz Eduardo
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Helio e seu carango
Maria Cely
As nenens Maria Regina e Maria Luiza
Depois, a gente cresce um pouco mais e, em nossa sabedoria adolescente, os pais cismam em não concordar com nossa filosofia, nossas certezas absolutas. Não estão à altura. Mas a gente releva esse defeito, pois, coitados, são uns “quadrados”... Viveram em outro tempo..., não podem entender a vida atual.
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Já adultos, a vida se torna uma correria; muita coisa a fazer, muito sonho a realizar e, para os pais, sobram um “olá!”, “como vai?”...”tudo bem!”... É chegar em casa e sair, pois o mundo está aí à nossa disposição. Os pais podem esperar para o bate-papo, pois haverá ainda muito tempo. Afinal, pra gente, eles são eternos. Assim, dá para perceber que, relação perfeita entre pai e filho, só enquanto bebê. Aliás, quando a gente já começa a ver o cabelo branco aparecendo, percebe que os pais não são tão eternos assim, e já mais calmos, sem tanta energia, bateria um pouco arriada, começamos a nos aproximar. Assim foi comigo, e ainda deu tempo para reparar como os meus pais foram pessoas extraordinárias. Amaramse durante cinquenta e tantos anos de vida em comum e distribuiram muito amor, não só aos filhos, netos, bisnetos e à família, mas a todos ao seu redor. Vida simples, bonita, os dois tiveram.
“Seu” Armando D’Amorim, a bondade. O nosso pai nasceu em Portugal, em 1907. Como os outros meninos que viviam no campo, estudou até a quinta série, que na época iniciava pela manhã, bem cedo e terminava à tardinha. O tempo que sobrava era para ajudar em casa e algumas brincadeiras. Ao terminar o curso, ou iria para a cidade grande continuar os estudos ou sair para a aventura, que se resumia em ir para outros países e entre eles, o mais procurado, Brasil. E foi isso que o pai fez. Saiu de sua terra Paredes de Coura/Minho, com treze anos de idade em um navio de carga, o paquete “Ceylan” e chegou aqui, em 21 de agosto de 1920. E quase não saiu de lá, pois uma bronquite crônica e violenta, durante a meninice, o obrigava a um tratamento difícil e diário. Certo dia, uma tia que acreditava nessas coisas, o levou a uma velha cigana, que 298 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
lhe receitou uma “garrafada”. Não se soube o conteúdo. Mas nunca mais a doença se manifestou. Chegou ao Brasil sozinho e a única referência era o irmão Antônio e o tio Oliveira, na verdade, casado com Angelina, irmã da nossa avó Miquelina, sua mãe. O tio Oliveira lhe arrumou emprego em um armazém, onde passou também a morar. Salário, não havia; só de vez em quando um dinheirinho para ir ao cinema. Mas, no final do primeiro ano, o patrão lhe entregou um título de sócio da Beneficência Portuguesa e a saúde estava garantida, pois até os remédios eram fornecidos. Nos outros anos, a caderneta da Caixa ia acumulando algum dinheiro. Como bom patrício, foi juntando, juntando e, depois de muito tempo, acabou sócio de um açougue e outros comércios. Fundou, finalmente, com amigos, a Avícola Brasileira, que mais tarde se transformou numa empresa que ficaria famosa: Brasilaves. Foi ela, no Brasil, a primeira a vender aves abatidas, que inicialmente foram rejeitadas pela população. Uma lei, porém, modificou o costume do brasileiro, pois passou a ser proibido aos hotéis e restaurantes abaterem aves em suas instalações. Em pouco tempo, a Brasilaves já estava abastecendo esses estabelecimentos, as forças armadas e os navios, nos portos. O crescimento foi relâmpago e o povo habituou-se a se servir das aves abatidas. Nessa época, o pai trabalhava mais de quinze horas por dia e, com certeza, alimentava-se mal. Não havia nem tempo para comer e a mãe chegava a levar comida em seu próprio trabalho. Veio então a doença terrível da época: tuberculose. Tratamento difícil, pois os antibióticos estavam apenas começando a chegar ao Brasil. Foi obrigado, por ordens médicas, a vender a sua parte na empresa. Com seus 40 anos, em 1947, passou mais alguns em tratamento e se salvou, graças às estações de água e a quem descobriu a estreptomicina - que merece vela acesa e nossas orações. Eram três injeções por dia, durante muitos meses. Foi assim que o mano Hélio, ainda criança, aprendeu a aplicar injeções... Nesta época era fácil reparar nele a angustia em não poder trabalhar - o que adorava fazer. Com o dinheiro da venda, agora reduzido, conseguiu ainda comprar um terreno na Rua Dipsis e construir um prédio com seis apartamentos e mais tarde, anos 50, uma casa em Teresópolis, querendo assim, garantir um patrimônio para cada um dos filhos. Armando Amorim - Memórias
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Chegou o início da década de 60. A empresa do mano Hélio e seus sócios - Sarte Engenharia - se desenvolvia a passos largos e foi necessário contratar um diretor financeiro: Armando d’Amorim. Não havia melhor. Empresa com centenas de empregados, muita obras, o pai foi um de seus esteios, trabalhando lá por longos anos e aposentando-se perto dos 80. Era sempre o primeiro a chegar e o último a sair, talvez querendo compensar o tempo que a doença lhe tirou de atividade ou por mania mesmo de trabalhar muito, como já o fizera em seu negócio. Mas o que sempre me intrigou no pai foi o seu conhecimento sobre qualquer assunto, a sua cultura, o seu escrever correto e de lambuja, um estilo de letra de fazer inveja a qualquer calígrafo. Isto porque, foram poucos os anos de estudo em seu Portugal, pois aqui chegou menino e foi só trabalho. Para qualquer assunto, o “seu” Amorim tinha a opinião sábia, correta, bem fundamentada e assim orientou os filhos, por toda a vida. Nele conviviam suas características marcantes: a obsessão pela honestidade, não admitindo a mais leve “arrumaçãozinha” ou “boquinha”. Nada que não fosse reto e certo. Foi, portanto, o responsável por tudo que não tenho... Outra, é que não havia quem dele não gostasse, pois o sorriso era constante e farto e de quebra a imensa e espontânea bondade. Para todos havia sempre uma palavra para acalmar e fazer entender as coisas boas da vida. Um grande pai. Um grande homem. Um excelente amigo.
Dona Idalina, pessoa linda. A mãe, linda quando moça pianista ainda jovem, era uma mulher com força de vontade muito grande, destemida, voluntariosa, capaz de resolver qualquer problema. E era dominadora, não pelo simples prazer de mandar, mas com a intenção de que tudo corresse pelo lado certo, 300 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
O casamento dos nossos pais
para o bem de todos. Às vezes, por causa disso, até extrapolava, pois, morando perto dos filhos casados e, consequentemente dos genros e nora, acabava querendo interferir aqui e ali, esquecendo-se de que novas famílias haviam se formado. Mas os filhos e nossos cunhados, com jeito, mostravam que teriam que resolver os seus próprios problemas e ela acabavam entendendo. Mas sofria... Quando se sentava ao piano, até os deuses se aproximavam, pois dele saiam sons que pareciam não ser desse mundo. Interpretando Chopin e outros autores clássicos, a casa se alegrava e até os vizinhos batiam palmas. Muito religiosa, como o pai, dona Idalina vivia em permanente solidariedade com os pobres, não só recebendo-os em casa, mas nas obras sociais da igreja Nossa Senhora das Dores. Lá havia sempre bazares, coletas, quermesses ou qualquer evento para arrecadar dinheiro, e adquirir mantimentos, roupas, remédios e o que fosse necessário para atenuar a vida dos que precisavam. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 301
A noiva Idalina
Nossa mãe em Teresópolis
Helio, Cely e eu.
Eu, Cely e Helio com nossos pais
Para nossa gula, preparava comidinhas divinas e ficaram em nossa lembrança os crocantes risoles, o arroz de forno, as bacalhoadas portuguesas e vários doces de se lamber os beiços, como o seu “mineiro-com-botas” que ficou famoso. Mas ela gostava mesmo era de um pudim de leite e de marmelada com catupiry.
302 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Adorava ir à cidade fazer umas comprinhas e isso fazia com frequência. Deveria ser muito conhecida dos lojistas da Rua da Alfândega e adjacências. Quando voltava, reunia a família, para mostrar o que havia comprado, sempre com a exclamação: “não sei como podem custar tão barato!”. Quase sempre eram roupas para os pobres. Quando não era isso, estava junto à máquina de costura, fazendo roupas para toda a família. A mãe
Mas sempre sobrava um tempinho para os pais nos levarem a um passeio, na época em que éramos crianças. Podia ser ao Campo de Santana. Naquele tempo eu não sabia ter sido ali que D.Pedro I fora aclamado Imperador do Brasil e tampouco acontecido a queda do Império, proclamando-se a República. O que eu adorava, mesmo, era brincar com as cotias e pisar nas “bolinhas” que estalavam ao pisar, caídas aos milhares, dos gigantescos pés de ficus, que ali existiam e ainda devem existir. Perto dali, também me fascinava o quartel do Corpo de Bombeiros onde, do largo portão, avistavam-se os belos carros. Depois, íamos ao Passeio Público, lugar meio misterioso em que, além das belas esculturas do mestre Valentim e pirâmides, havia caminhos, córregos e pontes e enorme chafariz com jacarés e busto da deusa Diana. Outro passeio a que nos levavam era à Quinta da Boa Vista, onde rolávamos em seus gramados. Dalí rumava para o Museu Imperial e o meu preferido: Jardim Zoológico. Na época de verão, podíamos ir de táxi à praia, com o motorista “seu” Palhinha que, junto de nós, aproveitava o banho de mar. Na Praça 15, algumas vezes almoçávamos no restaurante “Albamar”, com nosso pai, pois ele trabalhava no Mercado Municipal, vendendo seus galináceos. O restaurante fazia parte do Mercado, ambos com bonita estrutura de ferro. Ali, me atraíam os peixes, no imenso aquário. Perto, encontrava-se a estação das barcas, outro local de imenso fascínio. Prazer imenso, neste tempo das calças curtas, e muito esperada, a parada de 7 de Setembro. Vibrava com os tanques, aviões em formação e, principalmente, com a banda dos fuzileiros navais. Arrepiava. As forças armadas garbosas, em suas evoluções, pareciam soldadinhos de chumbo, outra alegria em criança. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 303
Eram passeios simples, mas que nos davam imenso prazer, motivo de os aqui relembrar, voltando à meninice, despindo-me do que aprendi, nessa faina permanente de acumular idéias e pensamentos complicados. Outro nosso prazer, era quando as visitas chegavam a nossa casa. E eu, em particular, tinha um motivo maior para ficar feliz. Isto porque eram muitas: Irene Silva, dona Maria, mãe de Lúcia e Eduardinho; Ida e Ivete, primas do papai; os nossos tios; Manoel, Alcindo, Antônio e Trieste, os primos Eiser, Elisabeth e Eduardo, padre Simão, da Igreja Salette, do Catumbi; meus padrinhos e suas filhas; dona Olívia, que trabalhava no Moinho Fluminense, e que chegava, para a nossa alegria, carregada de imensos sacos de biscoitos, alguns recobertos de um açucar rosa. Vários outros amigos nos visitavam. Na casa de nossa avó Maria, morando no mesmo prédio, encontrávamos dona Germana, a amiga inseparável. Mas o que eu gostava mesmo era da movimentação que se formava com as visitas, pois dona Idalina se distraía e eu me esbaldando na rua com a garotada, voltando antes que fossem embora. Era um tempo sem computador, sem TV e as brincadeiras de rua, deliciosas. Tempo de não se esquecer. Principalmente porque lembram também, dos tempos de convívio com meus pais.
As três Marias A primeira filha do seu Armando e de dona Idalina, foi batizada com o nome de Maria Cely e nasceu um pouquinho antes de mim e depois do mano Helio. As outras duas Maria Regina e Maria Luiza chegaram quando eu já estava nos meus dez/onze anos, tirando a minha banca de caçula.
Luiza, Cely e Regina com o pai
304 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
A primeira Maria Maria Cely, a paciência em pessoa, era quando mocinha, de “dar duro” em casa, pois, naquela época, as tarefas haviam de ser divididas. Assim, transformou-se em conhecedora profunda de pós, ceras, sabões e exímia motorista de enceradeira e outros aparelhos. Excepcional aluna, Cely formouse professora - a profissão das meninas da época - fazendo depois brilhante carreira, chegando à coordenadora do tradicional colégio Mello e Souza. Na língua portuguêsa sempre foi bamba, inclusive revisando textos de escritores brasileiros famosos. Foi “cobra” nisso.
Luiz Eduardo
Cely, Jayme e Luiz Eduardo Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 305
Leon
Ramon
Maitê
Na adolescência, a sua turminha de rua - Maria Ruth, Marly Giuseffi, Maria Déa, as meninas da casa do “muro alto”, como eram conhecidas, e mais algumas, sofriam do mesmo “mal” da educação das mamães de outrora, que não davam sopa com suas filhinhas. Era um tempo em que as moças casavam virgens e valia tudo para preservar o hímen. Namoro somente em casa ou no portão e sob vigia. Assim, era um verdadeiro “perrengue” ir ao bailinho ou alguma festinha, pois, além do interrogatório, da marcação de horário, haveria de ter sempre uma das mães acompanhando o grupo. Bem diferente de hoje, quando o hímen virou “defeito físico” e ninguém consegue conviver com ele. 306 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Miro, Luiza, Ronaldo, o pai, Regina, Cely e Jayme
Mimi, Lucia, Cely, Claudia e Jayme
Ramon
Jayme, com Roberta
Bia, Claudia e Cely
Gisele com MaitĂŞ
Como na época as meninas não frequentavam barzinhos, não havia discotecas, videokês, as baladas e os agitos de hoje, o jeito era mesmo fazer programas de “papo” e, quando possível, um cineminha, uma praia. A mana casou-se com Jayme Abreu Ramos, o tio “Mengo”, que veio agitar a família e alegrar a sobrinhada. Como eu, estudou no La-Fayette e era becão do time do colégio. Bom de papo, quando chegava a qualquer roda, era certo que iria haver discussões, pois, seus pontos-de-vista ele defendia no grito e na gozação. Gente boa, o Abreu. A mana Cely, de quem sempre fui fã ardoroso, além dos vários predicados que nela transbordavam, era capaz de preparar um “bolo de laranja” que não há quem faça igual ou parecido. Divino. Mas, “por dentro”, Cely sempre foi especialíssima, pois bondade era a sua especialidade, onde se destacava a solidariedade. Durante o ano, a sua preocupação maior era preparar cestas para os pobres, roupas, brinquedos, alimentos e o que fosse necessário. Estava sempre a postos. O filhão Luís Eduardo, engenheiro mecânico e tão mengo como o pai, ganhou um padrinho vascaíno, que sou eu. Mas o defeito é só esse, pois é gente super especial de se gostar, igual aos filhos Ramon, Maitê e Leon. Ramon formado em Literatura, Cultura Comtemporaneidade na PUC, virou também excelente escritor e poeta. A mana Maitê se formou em Letras, Portugues e Literatura na UFRJ. Luiz Eduardo casadinho com a loura Giselle, um dos “G” da GG Confecção - a primeira experiência dela e de Gilda no mundo da moda. É uma loura divertida, simpática, inteligente, que trouxe alegria para a grande família.
308 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Gisele, Gilda e Luiz Eduardo
Claudia, Jayme, Bianca, Mando, Glorinha e Heloisa.
Ramon e Sassa
Cely, Vanessa e Ramon
Luiz e Gisele e os filhos MaitĂŞ e Ramon
Com Jayme
Cely e Gisele
Com Heloisa, grande amiga da Cely
Cadinho com MaitĂŞ
A segunda Maria Dona Idalina fica novamente barriguda e nasce a segunda Maria, quando o caçula da casa que era eu, já soprava dez velinhas no aniversário. Com três marmanjos em casa, a nenenzinha Maria Regina, fazendo jus ao nome, passou a reinar. Mas foi por pouco tempo, pois no ano seguinte nasceu a terceira Maria, a nossa caçula Maria Luíza. Maria Regina também se formou professora, o mesmo acontecendo com Maria Luiza. A casa passou a ter três Marias, três professoras. Para mim um acinte, uma provocação, inimigo que era dos estudos. Em casa, só se ouvia: “tenho que preparar a aula”!”...” preciso corrigir as provas “...” preciso falar com a mãe de tal aluno, que não está indo bem nos estudos “... E isso soava mal aos meus ouvidos, pois o recado parecia pra mim. Na época de mocinhas, as duas Marias conseguiram um pouquinho mais de liberdade. Mas não muito, pois a mãe “marcava” de perto todos os passos das meninas. E as reuniões eram quase sempre em nossa casa e lá estavam: Lenise Maria, Neide Viegas, Mônica Turner, as gêmeas Marly e Terezinha, a prima Lucinha, a Teresona e mais algumas. Maria Regina, que é também excelente artista plástica, vendendo suas telas pelo mundo, casou-se com o arquiteto Ronaldo da Motta Leite, na época, sócio da Cadeg 3 Engenharia, especializada em refrigerar ambientes. Gente especial o “magrão” - um dos tricolores da família - que passou a fazer a mana viver gorda, isto é, prenha. Regina pariu de início o menino Flávio, meu afilhado e em seguida, cinco meninas: Renata, Cláudia, Vanessa, Roberta e Sabrina. Recentemente, duas delas e Flávio fizeram a mana e o cunhado virarem vovós, pois Renata casou-se com o mergulhador e fotógrafo Carlos Eduardo e chegou o netinho Pedro e depois Anabella. E do casório de Cláudia com o locutor da JB, Izeumar, o “Zema”, nasceu Giovanna, depois Igor, Laís e Yasmim. Renata, voz mansa e delicada, resolveu seguir os passos do tio e foi trabalhar na Armando Amorim Publicidade. Ótima no desenho Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 311
desde criancinha acabou anos depois, fundando a “Olho Nu”, empresa de artes gráficas, programação visual e que produz livros e revistas. É uma craque que vai longe! O mano Flávio, seu braço direito na empresa, cuidava da parte comercial. É um dos galãs da família e poderia estar trabalhando na novela das oito. Preferiu ajudar a irmã e acabou criando a “Olho Nu Promoções e Eventos”, com vários projetos executados com sucesso. Com Flávia, a esposa, são pais de Beatriz e depois nasceu Bruno. Cláudia, de figura bela e esguia, parece com os personagens de meus quadros. Quando quero imaginá-los, basta lembrar a sua elegância, o seu sorriso, os seus gestos e transportá-los à minha pintura. Virou digitadora nos trabalhos da irmã Renata, mas podia ser modelo fotográfico. Vanessa, podemos dizer, viveu em duas casas: na sua e na nossa, pois passou a fazer dupla com a prima Bianca, nossa filha. Quando criança era mais moleque do que qualquer menino e, assim, boa de subir em árvores, muros, aprontando mil e umas. Quando virou mocinha, foi estudar agronomia na UFRJ, pois gosta de bichos, da terra, da natureza. Mas voltou à cidade para estudar marketing na Cândido Mendes e trabalhar na empresa do pai. Passou pela Olho Nu e agora está dando aulas particulares de matemática e outros assuntos. Durante um tempo andou pela França, mas resolveu voltar. Adora as artes e chegou a estudar música no Instituto Villa Lobos. Hoje, de sua flauta saem sons maravilhosos. Se resolver pintar, ela consegue. Esculpir também. Pois sensibilidade nela transborda e basta ler seus textos, a sua poesia e seus bilhetes, para se comprovar. É doçura essa menina, que diz saber preparar uma deliciosa lasanha. Só que esperamos isso, já a bastante tempo. E nada. Roberta, também craque no desenho, é melhor ainda nos estudos. Ainda novinha, fez concurso para engenharia da PUC, UFRJ, UFF e UERJ, pois havia incerteza se seria aprovada. Passou com destaque em todas! Formou-se na UFRJ, já fez curso de edificações no CEFET, trabalhou no projeto “favela-bairro” e, recentemente estava construindo represa na República Dominicana. Vai ser uma expoente na profissão, pois é “cobra”. Finalmente, a caçula Sabrina preferiu as artes cênicas e o esporte. Neste último se destacou na ginástica olímpica e só não foi às Olimpíadas porque não quis, apesar dos apelos da instrutora. Em seus quinze anos preferiu fazer carreira no teatro e estudou na 312 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Escola de Eventos. Elétrica, desinibida, voluntariosa, na certa vai se transformar numa Fernanda Montenegro. É uma linda menina, carregada de emoções. No momento faz outras coisinhas...
Ronaldo e Regina com a família que não para de crescer.
Ronaldo e Regina com as filhas e o filho Flavio. O casal com os filhos Claudia, Renata, Vanesa e Flavio. Chegaram depois mais meninas. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 313
Eu com Vanessa.
No Sitio, Renata, Roberta, Bianca, Claudia e Vanessa.
Eu com Roberta e Sabrina.
Vanessa com o avĂ´ Maximiniano Vanessa, Regina, Ronaldo, Roberta, Renata e Sabrina.
No casamento de Zema e Clรกudia, ve-se Gilda, Bianca, Jayme, Mando, eu e Cely.
Zema, Claudia e Gigi
Renata, eu, Carlos e Pedrinho.
Zema, Igor, Giovanna, Lais e Claudia.
Carlos, e Renata com Pedro e Ana Bella
Roberta, Ronaldo, eu, Regina e Helio.
Giovanna
Beatriz e Bruno. Carlos, Renata com Pedro e Ana Bella
Zema e Clรกudia com Lalรก
Ana Bella
Flávio e Flávia com Bruno e Beatriz
Vanessa com Pedrinho
Vanessa com a “sobrinhada”
AnnaBella e Pedrinho
Sabrina e Roberta
Flavio e Flรกvia com Bruno e Beatriz
AnnaBella, Vanessa, Renata e Pedro
Regina e Ronaldo com os netos
Ricardo e Ceuzinha
Sabrina
Beta
Regina com LaĂs e AnnaBella
Carlos, Regina e Renata Roberta e Sabrina
A terceira Maria A mana caçula Maria Luiza é do riso. Não há nada que lhe tire a tranquilidade permanente. Gostosa de se lidar, a nossa maninha é a internacional da família, graças à atividade do maridão Altamiro Canejo, para nós o “Mirinho”. Engenheiro mecânico que se especializou em telefonia, trabalhou inicialmente na Standard Eletric. Bom de cuca e de trabalho foi enviado à França, onde passou alguns anos. Lá nasceu a filhona Juliana, minha querida afilhada, hoje moça linda e dentista, casada com o simpático engenheiro Marcelo. Os dois já fizeram Luiza e Miro virarem vovós, com o nascimento de Marina e recentemente Olivia. A mana Luiza esteve também na Bélgica. Voltando ao Brasil, outra beleza chegou: Fernanda, que se formou em comunicação, menininha super inteligente, esperta e que sabe o que quer. Poderia ter sido ginasta de fama, mas preferiu seguir outros caminhos. Mas, cuidado com a menina, pois é campeã de hai-ken-do.
Luiza, Monica e Regina
Miro e Luiza
Miro e Luiza casando
320 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Luiza com Juliana na França
Juliana, Adriana, Fernanda, Luiza e Miro
Depois de certo tempo entre nós, a família foi para a Espanha, pois, Mirinho novamente foi convocado para trabalhar fora do país, agora em terras espanholas, em outra multinacional da telefonia. E mais uma mocinha nasceu: a espanholita Adriana, menina lindinha e esperta que estudou na Unicamp e se formou engenheira química. Continuando na empresa Alcatel, no Brasil, Miro comandou grande equipe de engenheiros. Hoje, comanda a sua: Data Network Telecomunicações que está fazendo grande sucesso, acumulando prêmios de excelência e outros mais. É cracão da telefonia, muito natural para quem o conhece, pois é super dotado de cuca.
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 321
Luiza, eu e Gilda
Fernanda e Vanessa
Canejo, pai do Miro Fernanda e Adriana
Adriana, Fรกtima e Luiza.
Juliana com a vovรณ Isabel
Miro e Luiza
Juliana com Marina
Juliana e Marcelo
Bia e Fernanda Bianca, Mandinho, Gilda, Luiza, Fernanda e Miro.
Juliana e Fernanda
Juliana, Fernanda, Adriana e Marina
Marina
VovĂ´ Miro com Marina
Marina
Marina curtindo a mana pronta pra sair Olivia, filha de Juliana e Marcelo
Marina
Marina com Olivia
Juliana e Marcelo com as filhas Marina e Olivia
Hoje, a mana Luiza está entusiasmada com a pintura e tem produzido belas obras. Qualquer dia desses estaremos expondo juntos, pois a sua pintura precisa ser mostrada, para a alegria de outros olhos. Também desenvolveu uma notável arte com azulejos que ela vai cortando e compondo desenhos incríveis. Mas a mana também é craque nos quitutes. No tempo em que moramos juntos, me deliciava com as suas comidinhas, saciando a minha gula.
Casal nota dez Sou fã de um casal maravilhoso: meu mano Helio e a cunhada Selma. Eu, a família e mais um milhão. Sei que o irmão não vai gostar que eu diga que ele é gênio desde criancinha, desses de jogar xadrez com gente grande, de ganhar 10 a pamparra durante todo o curso, sem que eu o visse pegar em livros para o estudar. Não resisto, e conto: quando terminou o científico sem fazer cursinho e como quem não quer nada, fez exames para engenharia, para saber como seriam. Passou nos primeiros lugares para a PUC e a Nacional. E eu, assistia em casa o meu “oposto”, perplexo por ter sido gerado pelos mesmos pais. Sobre a sua genialidade neste campo, há muito mais. Mas o mais importante em sua vida aconteceu justamente nessas férias, na cidade mineira de São Vicente de Minas, que já tinha sido Francisco Salles. Ali, levado à casa da vó Tita e o vô Tatão do amigo Villela, o “Quartinha”, conheceu Selma, que o “lá de cima” escolheu a dedo para ele. Rapidamente casaram-se. Era 31 de dezembro de 1952. Ele, com 19 anos, ela, com 18. A partir daí, achando que essa bola azul que rola por aí era bem grande, resolveram povoá-la. Foram nascendo: Helinho, Cristina, Cláudia, Paulo Tarso, Marcos Leonardo, Breno Vinicius e Roberto Dimitrius. E foram, com muito amor, criando outros ao seu redor: Jorge, Jens, Klaus, Sônia, irmã de Selma, André, Clarissa, Cristina e Glorinha. 326 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
O mano Helio, crianรงa.
Selma e Helio
Minha cunhada Selma, muito especial
Paulo de Tarso, Claudia, Cris e Helinho
O nosso anjĂŁo Roberto Dimitrius.
Sonia com Roberto e Marcos Leonardo
Marcos Leonardo
Glorinha com Sema Cristina nos primeiros passos
Marcos
Breno
Maria Rosa, Sonia e Alfredo
Beto, Gilda, eu, Claudia e Marcos.
Sonia e Lucinha
Claudia e Cris
O pai com Selma
Eu com Selma e Helio
Helio e Selma com Marcela AndrĂŠ e Kity
Paulo de Tarso e Mariza.
Os netos na casa do ItanhagĂĄ
Helinho e Celia
Mary Angela e Marcos
Priscilla, Selma, Marcela, Bruna e outra Bruna
Mando, Bia e Priscilla.
Jans Leticia e Klaus com Lars
Yuri e o cĂŁo
Mary Angela com Eric e Yuri
Bia, Breno, Luiz, Mando, Flรกvia e Helio
Helio, Breno e Jens
Sonia
Marly,Glorinha e Helio
Glorinha Miro, Luiza e Juliana, eu, Cely com Beta, e Jayme, Ronaldo e Regina, Vanessa, Helio e Selma e Gilda
Formado em engenharia, Helio juntou-se a mais seis amigos, entre eles, José Maria de Oliveira Villela, o “Quartinha”, Francisco Fortes Filho e outros e criaram a SARTE Engenharia, ou Sete Amigos Resolvidos a Trabalhar em Engenharia. A ela se juntou mais tarde outro amigo, Gilson. E durante quase trinta anos construíram magníficos prédios, conjuntos habitacionais, milhares de metros quadrados de construção. Criaram fama. Mas, além da engenharia, Hélio brilhou também como arquiteto, em projetos belíssimos. Para um deles, construído há mais de 40 anos, bato palmas até hoje, pelas linhas arrojadas e harmoniosas. Tratase da Igreja Matriz de São Borja e que já virou cartão-postal do município e até figura na agenda oficial, da cidade gaúcha, onde nasceu Getúlio Vargas. É de grandes dimensões, com estrutura em forma de catenária, raramente usada. E sua acústica é considerada perfeita. Mas Helio soube também morar. Um grupo amigo resolveu viver vida comunitária, nos lados da Barra da Tijuca, ainda despovoada. Não existiam os conhecidos e atuais condomínios e parece ter sido o primeiro de que se tem notícia. O projeto arquitetônico belíssimo e moderno, que se integrou à paisagem, também bela da região do Itanhangá, foi de autoria do prefeito Conde e sua esposa Rizza, com construção da SARTE. Premiado pelo IAB, dizem que Lúcio Costa ao visitá-lo ficou maravilhado e teria dito que se sentia na Finlândia. Mais importante do que a forma, no entanto, estava no jeito de morar, tendo um só quintal, onde as crianças poderiam se esbaldar e conviver juntas e os adultos se integrarem a uma vida solidária. Essa nova maneira de viver foi motivo de ampla reportagem na revista Realidade, quando ali já moravam os dez casais amigos, com suas sessenta crianças. Hoje, quase todos que chegaram ao final da década de 60 ainda moram ali, agora curtindo os netos, que são muitos. E a experiência foi tão boa, que resolveram publicar o livro “30 anos - Uma Versão de Memórias Soltas”, editado por Cris, em que contam desde a idéia original do casal Villela e Zilda às experiências vividas pelos casais moradores: Letícia e Fernando; Maria Sílvia e José Leal; Rizza e Conde; Selma e Helio; Esther e Dymas; Mariana e Cyro. Outros viveram ali, mas tiveram que mudar para outra cidade. Diz a publicação que a garagem da casa 9 virou biblioteca de livros usados, ponto de referência da meninada, que já abolia os programas de TV. Muitas festas e comemorações foram ali realizadas, entre elas as famosas juninas, que arrecadavam dinheiro para as comunidades carentes. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 333
O condomínio passou a ser também local de desenvolvimento cultural para a garotada, instalando-se escolinhas de arte e música. Celebrações e cultos de todas as tendências, missas, reuniões de reflexão, presença de pastores e padres, bispos e religiosos, ali se promovem, pois as coisas da alma são importantes. E também realizados muitos batizados, bodas e casamentos, inclusive o meu. Nos anos 70, durante a violenta repressão política, seus moradores demonstraram que praticavam a solidariedade, pois muitos perseguidos políticos estiveram ali escondidos. Alguns chegavam morenos e saíram louros, com reforma do visual. Isso motivou duas invasões de militares armados no condomínio, onde praticaram prisões e as conhecidas violências. Muitas histórias podem ser contadas desse lugar aprazível, aos pés do morro da Tijuca, de uma comunidade que resolveu mostrar que se pode viver em relacionamento permanente, ao mesmo tempo resguardando as individualidades. E como diz Cyro Miranda, um dos fundadores, “onde foi criada uma solidariedade compartilhada, para ser exercida com outros” Mas além dessa vida comunitária, Helio e Selma viveram em constante doação ao próximo. Lembro-me do mano, diretor da Sarte Engenharia, nessa altura uma grande empresa, encerrando o expediente às sete da noite, para subir o morro do Pinto, na Gamboa, e ir dar aula no Supletivo/ Curso de Alfabetização de adultos. Chegava em casa depois da meia noite, com dona Idalina, nossa mãe, na varanda, esperando preocupada a sua chegada. E, durante alguns anos foi preparando a sua turma, inclusive, muitas vezes dando aulas em casa, nos fins de semana, para alguns que, depois de alfabetizados, queriam continuar os estudos e inclusive ingressar em universidades. Era uma dedicação que me assombrava. A partir daí, os dois iniciaram uma vida de total doação, para diminuir o sofrimento dos mais necessitados e também para melhorar o ajustamento conjugal, com Cursos de Noivos do MFC Movimento Familiar Cristão. Selma se transformou em guerreira e não havia favela, lugar brabo em que não se metia. Meninos, velhos, doentes, gente muito pobre, viviam ao seu redor e ela se virando para resolver cada 334 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Yara e Alcides
Vilela e Zilda que conviveram com Helio e Selma em mais de 60 anos
Marly, AndrĂŠ e LYllian
Vilela, Zilda e Kity
Sinesio, Jurema, Helio, eu, Selma, Jayme, Marcela, Cely e Gisele
Marcos, Mando, Bia e Breno
Mรกrio com Ella
Yuri e Gabriel
Manuela, a Manu
Breno com o neto Cesar e a filha Manu
Breno e Helio
Helio e a turma no Itanhangรก
Eu, Claudia, Ceuzinha, Renata, Regina, Roberta, Helio, Selma, Ronaldo, Sassรก, Vanessa, Rafaela e Giovanna
problema. Ajudava a criar uma comunidade com vida mais digna no Morro do Céu, em Senador Camará ou melhorar a situação do pessoal do Morro do Banco, no Itanhangá. Vivia em asilos, favelas e onde soubesse que havia pessoas necessitando de ajuda, o que fez até pouco tempo. Os dois, juntos com amigos, criaram uma obra fantástica, o Instituto da Família - INFA, que hoje atende a mais de 900 pessoas. A instituição funciona há mais de 35 anos e já cuidou de milhares de famílias carentes, que necessitaram de tratamento com psicólogos. E não para de crescer, hoje funcionando em três casas: na Tijuca, no Engenho de Dentro e na Favela Tijuquinha. É uma obra notável e aqui aproveito e apelo aos leitores, para que ajudem, tornando-se colaboradores. Vale a pena! (Tels: 2567-9899 e 2269-0896). Mas, antes, visitem os locais, para ficarem emocionados. É uma obra de respeito! Hoje, além de tudo o que faz, o mano Helio atua na ABCE - Associação Brasileira de Consultores de Engenharia e era ainda secretário-geral da FEPAC- Federação Panamericana de Consultores, sendo obrigado a viajar com frequência pelas Américas. E na época, ainda lhe sobrava um tempinho para colaborar no fantástico projeto “Favela-Bairro”, do seu amigo Conde, pois sabia da importância em fazer esse povo viver com dignidade. A cunhada Selma também colaborou com a Obra Social da Cidade do Rio de Janeiro, ligada à Prefeitura, comandada por Rizza Conde, pois viu a oportunidade de ajudar muito mais gente. E fizeram durante a gestão do ex-prefeito, um trabalho extraordinário, infelizmente pouco divulgado. Poderia aqui desfilar fatos e mais fatos desse casal “nota dez”, mas o pouco que aqui contei já não vai deixá-lo à vontade, pois os dois fazem tudo isso na “surdina”. Como presenciei muitos, não pude deixar de registrar esses comentários, pois acho lindo quem vive em doação ao próximo. Mudo então de assunto, dizendo que eles fizeram outras coisas também. Filho já falei, pois são especialistas. Selma - que ia ter o nome de “Salma”, criado pelo avô libanês, mas acabou sendo registrado erroneamente pelo escrivão, foi excepcional artista. De suas mãos sairam belas tapeçarias, arranjos florais notáveis, pipas mexicanas, fantásticas obras plásticas com pedras e outras 338 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
naturezas, vitrais, mesas pintadas, bordados lindos, arandelas decoradas, bolsas com mil miçangas e por aí afora, além de paisagista das melhores, arrumando belos jardins. Tudo em que metia as predicadas mãos virava beleza. Se fosse para o lado da culinária, aí ela dominava. Suas comidinhas, seus doces, seus pães recheados, foram receitas que devem ter sido ensinadas por deuses, bons de forno e fogão. Mas há outro predicado em que ela era mestra; sabia pedir, em nome dos pobres, para dividir um pouco, o que sempre foi mal dividido. Bastava ver a sua expressão, que a mão se dirigia logo aos bolsos... Era uma craque. E se avistasse um brilhante, desses que ardem os olhos, engastado na orelha de qualquer madame, era certo que estaria imaginando: “um desses daria para construir, pelo menos uma creche”. Para o mano Helio, sempre sobrou um tempinho para tocar um piano maravilhoso, de acordes suaves, pois foi o único que herdou da mãe, os predicados. Mas virou também “revisteiro” e edita e produz a importante revista Fato e Razão, do MFC, publicação que desnuda os problemas sociais do país, promove os valores da família e, para isso, possui um corpo editorial de respeito. E, se não bastasse, de vez em quando escreve um livro, como o “Descomplicando a Fé”, com prefácio do frei Clodovis Boff. Para os dois, ainda havia um jeito para participar do coral “Canto da Barra” e de encarar a vida com total alegria e entusiasmo. Foi assim o dia-a-dia desse casal que chegou a completar 60 anos de bonita vida-a-dois. Vida mais que perfeita; referência de solidariedade cristã. E se alguém procurar defeito num dos dois, o máximo que poderá achar, talvez seja uma vista cansada ou uma unha encravada. Na alma, não há. Mas sou obrigado a dizer que recentemente Selma nos deixou, pois Papai do Céu precisava dela mais lá em cima do que entre nós. O que se vai fazer... E recentemente Selma pediu para o Helio ir pra lá...
Nos 50 anos, a família cresceu Helinho, o primeiro filho, parece ter herdado, não só a inteligência dos pais, mas o “gen” que localiza esposa. Foi encontrar Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 339
a eleita, na mesma cidadezinha onde o pai encontrou a sua. E a mineira Célia, da mesma maneira mulher especial, mostra que São Vicente de Minas é excelente fornecedora de esposas. Helinho, que a encontrou, um ser também especial, centrado, se formou em física. Além de professor na Universidade do Fundão, é pesquisador, com vários trabalhos publicados em revistas científicas internacionais. É “crânio”. Ao mesmo tempo, uma figura que transmite paz, tranquilidade e harmonia. Se não fosse o que é, certamente fácil seria imaginá-lo vestido de frade franciscano. É o que me parece. Cristina chegou em seguida e depois de crescida (não muito), passou a ser destaque na publicidade brasileira. Fez desenho industrial na ESDI, mas acabou iniciando os seus primeiros passos, na Armando Amorim Publicidade. Hoje, considerada uma das melhores profissionais do país, anda com a mania de colecionar importantes prêmios nacionais e internacionais. Mas seu prêmio maior, ainda tem 21 anos: a lindona e inteligente Priscila, sua filha, que virou estilista de moda, orgulho também do papai “Lando”. Gente maravilhosa de se gostar. A irmã Cláudia, que também trabalhou na AAP, se formou bióloga. Professora dessas “de verdade”, como se tinha na antiga, vai fazendo a garotada saber das coisas. É um dos papos mais agradáveis para qualquer assunto. É realmente super especial a mãe das “manequins”, Bruna e Marcela, filhas também do papai médico Luiz Carlos. A Bruna casou-se com Daniel e já fez Cláudia virar vovó de Leonardo. E Marcela está casadinha com Sergio. Depois chegou Paulo Tarso, e mais um engenheiro civil na família se formou. Era o xodó do avô, meu pai, por seu carinho, a sua atenção com todos, sempre pronto a ajudar. Casou-se com a engenheira Marisa e deram a Helio e Selma, mais dois netos: Pedro e Vitor. Hoje estão separados.. Marcos Leonardo é o homem do campo, da natureza. Formado em zootecnia, sempre andou metido nos matos, nos campos, seja para curtir a natureza de verdade ou criar as suas abelhas. É da Paz e Amor. Virou há anos administrador de fazenda, onde mora com a simpática Mariângela ou Mary Ângela e os filhões Gabriel e Yuri. Lugar maravilhoso que só conheço por fotos, mas vou chegar lá. 340 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Glorinha e Helio Mary Angela e Marcos
Helinho, Cris e Priscilla
Marcela, Bruna, Cris, Mary Angela, Claudia, Maria Antonia e Priscilla.
Helio e Selma e a sua grande produção.
Em seguida nasce Breno Vinicius, que em criancinha queria ser presidente da República. E poderia ser, pois competência tem. Começou trabalhando na Armando Amorim Publicidade, como redator e fazendo outras coisinhas. Acabou se formando em Direito, mas entrou nesse intrincado mundo da telefonia, no qual é craque. E, agora na indústria de móveis. Pai de Manuela chegou depois Maria Antônia, filha de Flávia. Virou vovô, pois a Manu, casada com Peter, lhe deram Cesar e Daria. E Helio é agora bisavô. O caçula não precisava ser nada. Roberto Dimitrius tinha a tarefa maior de ser aqui na Terra, exemplo de bondade. E foi, em todos os seus dias. Desempenhou com tanta intensidade essa tarefa, que aos 21 anos, os de cima o convocaram, pois necessitavam mais dele lá do que aqui. Virou anjão - o maior do céu, com asas duplas. Quando o Helinho ainda era criança, ganhou um irmãozinho um pouco mais tostado, o Jorge, menino especial. Casado com Regina aumentou a família, com as filhonas lindas, Tatiana e Bruna. Gente muito especial. Também chegou de Juiz de Fora a irmãzinha Glorinha, gente doce, que viveu na família até se casar com Helio, irmão de Selma e é gente pra lá de boa. Era mais um de São Vicente de Minas, mostrando que gente especial pra casar, vem de lá. Glorinha se transformou em dedicada enfermeira e hoje atende no Barra d’Or e em hospital do Estado. É especialíssima essa mocinha e do casal, sou fã. Mais três filhos chegaram e se incorporaram à família: Jens, Klaus e André. Ainda bem crianças, os pais biológicos - Fleming e Aileda (também de São Vicente) faleceram em um desastre e eles encontraram novos irmãos. Dr. Jens se formou em medicina, casou-se com Lillian e do casal nasceram Anne, Fleming e Breno. Jens foi prefeito da mineira Coqueiral, eleito e reeleito logo no primeiro turno. É dos bons. O irmão Klaus se formou em comércio internacional e andou pelo mundo. Recentemente encontravase na multinacional dinamarquesa, Dumex-Alpharma, mas hoje está em Campinas. Em outra empresa. Casou-se com Letícia e são os papais de Lars. E André, estuda ainda o que vai fazer. Para fechar o âmbito dessa maravilhosa família, ainda temos que falar de Soninha, menina de alma boa, irmã de Selma. Viveu 342 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
desde miudinha com a família e dela nasceram gente bonita: André e Cristina (Kitty). Como Sônia chegou também de São Vicente, não precisa dizer que foi também especial. André casou-se com a linda Lillian e me disseram que está pra chegar um neném. Em tempo, já chegou e toda a família está muito feliz. E Kity está casadinha com Carlos e deles nasceram filhos lindos: Eric, Yuri e Ella. E Sinésio, o nosso “Noventa”, sabia também que era gente maravilhosa, mas nos deixou.
Que lugar é esse? Nessa altura, alguém deve estar perguntando: que São Vicente de Minas é esse, tão falado aqui? Que lugar é esse, de que ninguém ouviu falar? Posso afirmar que existe e é muito especial. A sua localização, não digo ser tão fácil assim: fica perto de Andrelândia, Carrancas, Aiuruoca, Cruzília, Minduri o que, para a maioria, continua difícil saber onde se situa. Mas posso afirmar que esse lugar desconhecido tem em seus ares alguma magia, pois estive lá na minha mocidade e ainda vive em mim. Mesmo porque há alguma mineirice em mim, principalmente depois que Guimarães Rosa disse que “ser mineiro é o homem em estado de minas-gerais”. Não sei se pela gula em seus doces, queijos e suas comidinhas; ou por gostar do sotaque ou do jeito de ser acanhado, hospitaleiro, precavido, meditativo, obstinado, paciente, harmonioso, alegre e irônico e outros mais.
Eu e as vaquinhas Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 343
Turminha da Glorinha em São Vicente
Glorinha, minha paquera
A estação
A Igrejinha
Nessa casa que foi remodelada, morou a familia da Selma
Helio Mileip, a avó, Ivan, Seu Salim, Selma, Sonia, a mãe Maria Raula e Abraão.
Eu e Glorinha
Os papais seu Salim e Maria Raula.
Quem inventou cidades com nomes de Boa Esperança, Soledade, Pouso Alegre, Passa Tempo, Resplendor, Brejo das Almas e criou até um Mar de Espanha, mostra quem é. Na minha admiração entra também o jeito roceiro, simplório desse povo, que ainda celebra procissões e festas religiosas, pois não se esquece de que as coisas do céu valem mais. Verdadeiramente sempre me encantou andar pelas Minas e há até uma predileção. Não se esquece nunca a hospitalidade, principalmente da gente simples do lugar, quando nos convida para uma prosa e nos serve um delicioso café numa xícara de ágata, adornada de machucados, talvez pelas quedas que levou, em seus anos de vida. E mais que isso; acompanhado de uma fatia tostadinha e crocante de bolo de fubá. Se isso não bastasse, o convite para se sentar no banco tosco e curtido e escutar muitas histórias. Algumas misteriosas e outras recheadas de mentiras verdadeiras. Não se pode esquecer esses encontros. Como qualquer cidade do interior, em São Vicente há a igrejinha junto à pracinha e, em volta, uma porção de casinhas. Mais algumas poucas ruas se espalham pelas redondezas e acabou. Pelo menos, na época em que lá estive, era assim. Claro, que ao redor estavam as fazendas, que enviavam o seu leite ao laticínio da cidade. Beleza, posso dizer que tem muita, principalmente para quem, como eu, gosta de natureza de verdade, dos caminhos de beiradas floridas, de olhar em silêncio as quaresmeiras, de tentar reparar de quantos tipos de verde as matas se vestiram. Também, para quem gosta de sentir cheiros, não há nada mais gostoso do que o aroma que vem da primeira chuva, batendo no capim ou na terra quente. Mas o melhor de todos é o cheiro que vem dos fogões a lenha, cozinhando as comidinhas mineiras. Enfim, para quem gosta desses detalhes em que mal se repara, São Vicente de Minas é maravilhosa. Mas o que também me encantou, foi a sua gente. No tempo em que lá andei, fui hóspede do libanês Salim Mileip, não só pai da cunhada Selma, mas também de Abraão, Sônia, Ivan e Helio. Mascate, como todos que chegavam do Oriente, “seu” Salim trouxe também a tradição de contar histórias. Com sua sabedo346 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
ria milenar, me punha a viajar em um tapete mágico e eu me via diante de camelos, deserto infindável e visires. Filho de beduíno vivera também em tendas no deserto. Como era costume, o pai possuía três mulheres e o nosso Salim não se afinava com duas delas. O jeito foi se transferir para as montanhas, e se instalar na casa de um tio. Com ele chegou o deslumbramento em conhecer a nossa terra, pois o tio volta-e-meia pegava um punhado de areia no chão, exclamando: “no Brasil essa terra é ouro puro! Tu tropeças em pedras preciosas! Nesse paraíso, se tiveres fome, é só apanhar bananas e frutas que nascem em qualquer lugar”... E completava: “vai pra lá rapaz e procura o teu tio José Abraão”. Animado, imaginando encontrar o país dos sonhos, Salim saiu de Beirute e acabou na Rua da Alfândega, no Rio, em empreguinho que lhe arrumaram. Só então percebeu que o país era um pouco maior do que pensava e encontrar um José Abraão não era tão fácil. Dali rumou para São Paulo e mais tarde para Ouro Preto, pois a primeira palavra do nome da cidade combinava com o que procurava. Foi, então que, no bate-papo com os patrícios, acabou localizando o tio, na cidadezinha de São Vicente. Realmente ali vivia José Abraão, libanês, ex-mascate, casado com a brasileira Judith e agora distribuidor bem sucedido de produtos para outras regiões. Rapidamente Salim passou a ser mais um a pegar o trenzinho e sair por terras mineiras, vendendo roupas, sapatos e qualquer treco, com uma “brestaçãozinha” barata. Em pouco tempo, o tio-patrão o presenteou: “Salim, tu és o mais bonito de todos daqui e vais casar com Maria Raula, minha filha.” Moça linda, inteligente e craque nos quitutes, Salim, finalmente encontrara o “ouro” que procurava. Foi desse libanês-sãovicentino, alegre e simpático, que escutei ao vivo, histórias de mil e uma noites, vividas nas areias do deserto e nas tendas de seus parentes. E a descrição chegava em detalhes, dizendo das roupas, dos adereços, dos enormes tapetes colocados sobre a areia e até das vasilhas em que comiam, fazendo bolinhas e atirando-as na boca. Os papos orientais varavam a noite e me faziam recordar das histórias dos Contos de Fadas, lidas em criança. Abraão ou “Abrãozinho”, entre os filhos homens o mais velho, era o humor em pessoa e aprontava em São Vicente. Coisas assim, como a “procissão dos duros”, sendo ele levado no “andor” e que Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 347
no final, recebia umas porradas do padre Chico, pároco da cidade. Certa vez, já agrimensor, se viu internado numa região deserta de mata, fazendo levantamento de estrada. De seu contato com a civilização, lhe sobrou uma revista. O jeito, dizia ele, foi fazer dela a sua leitura diária, durante anos. A dita foi lida centenas de vezes, que o fez tornar-se pessoa com “poderes extrassensoriais”. A qualquer um pedia para abrir em qualquer página e informar o seu número. Dizia então todo o texto, inclusive as pontuações. E se achava um homem de sorte, pois fora a revista, só havia um catalogo telefônico. Ivan, o filho do meio de Salim e Maria Raula, também era uma diversão. Contava e inventava fatos do pai, vendendo os seus badulaques, imitando o linguajar meio avariado, em que trocava o “p” pelo “b”. E o caçula homem, Helinho, naquela época gente miúda, só se apresentava para rir. Soninha, a filha mais nova, já morava no Rio com a irmã Selma e nosso mano Helio. A casa de “seu” Salim era antiga e confortável, de pé direito alto, com chão de tábuas corridas, que ao pisar, gemiam. No grande quintal, os pés de frutas me convidavam a me servir delas e as canas nasciam ali, para oferecer o seu doce caldo. Também fui apresentado aos pés de café, cujos frutos eram secados no terraço e quando prontos torrados em tabuleiros, no forno do grande fogão de lenha. Fixado na parede, um moedor de ferro que o moía, deixava perfume no ar. Beber um café assim tem sabor que vem dos deuses. E para acompanhar? Aí vinham os pãezinhos, os biscoitinhos preparados no forno de tijolo e barro, que se instalara ao lado da casa, com sabores que não se esquece. Nem é preciso dizer que o lugar das reuniões era essa cozinha onde, na mesa de tábuas curtidas, assentavam-se as delícias que ali eram servidas. Eu me deliciava com os papos e as comidinhas. Foi em São Vicente que conheci também gente do campo, que vivia nos arredores. Gente que faz a vida parar; os mesmos gestos, as mesmas frases, pois conhecem poucas palavras. Mas, com elas, falam coisas simples, que enchem a vida de ternura, de calma, de querer bem. O chapéu amarrotado não está na cabeça para se proteger da chuva ou do sol. Ele o usa para tirá-lo na mesura, quando diz bom dia, boa tarde, boa noite. Pois o homem do campo é educado, respeitoso e deseja a todos, que a vida seja boa. De verdade. 348 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Foi daquele tempo que veio o entendimento desse povo simples e que acabaram em minhas telas. Certa vez me perguntaram numa entrevista, por que os apresentava vestidos de branco, esguios, verdadeiros manequins. Pinto-os assim, pois quero mostrar a sua dignidade, as suas almas puras e bonitas. É um povo que só tem um sonho na vida: ter um pedacinho de terra. Dele. Um ranchinho pra plantar e pra colher. E essa certeza veio de conversa em conversa, que mais tarde traduzi numa toadinha, que Tom da Bahia musicou: “Passo facão, passo foice Vou colher cana caiana Pra virar doce pra vida doçura que não se tem na amarga vida da gente Colho fruto do cacáu Mãos ardem, mãos calam. Meu filho não sabe não viu, não vê barra de chocolate. E trigo que já colhi
vira farinha, vira pão na casa de caboclo só não vira refeição Trabalho em terra de Deus que os homens tomaram Dele, se Ele puder ainda, que dê a minha também Só quero um pedacinho, basta pra vida viver, pra plantar e pra colher
Armando Amorim - Memórias
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Terra pro filho crescer, amar e compreender; quem sabe se ela não dá estudo pra se formar. Pois meu suor vai molhar a terra que vou plantar Vai nascer feijão de trança e muito mais no roçado vai crescer uma beleza, matando a fome da gente E quem sabe se na terra sabiá não vai cantar nos pés de fruta que ainda hei de plantar Neste pedacinho de terra Que Deus ainda há de dar vou pegar minha viola nas noites de lua cheia vou cantar modinha alegre do amor que se semeia E pra minha cabocla a mais bela do lugar vou plantar uma roseira e vai dar rosa vermelha De vermelho tão intenso, igual ao amor da gente. E essas mãos feias e grossas vai um dia assim colher e delicadamente oferecer o primeiro presente Que meu amor há de ter.
350 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Volto ao centro da cidade de São Vicente, onde as noites se iluminavam das luzes fracas, envoltas no nevoeiro que sempre vinha. E na única e singela pracinha, o papo divertido com Zé Zuquim, Djalma, Edinaldo, Tatãozinho, Murilo, Jason, Jorge “sapateiro”, Juquinha, os Teixeira, Aileda, a irmã Nair e o irmão Celsinho, Inah, casada com Alaor, Márcio, que falava com gestos, o becão Amadeu, o fazendeiro Fábio, Valdemar Cariello, Ana Maria e Elisabeth, irmãs de Glorinha, Elcione, Inês Resende, Marilda, e outros, que só não lembro dos nomes. Nos sábados e domingos a pracinha virava um “indo-e-vindo” das mocinhas e rapazes, que se olhavam, riam e de vez em quando, uma paradinha para a conversa. Era a paquera. Tive as minhas, claro!: Glorinha, filha de Geraldo Fonseca. Em sua casa eram colocadas cadeiras na sala e virava o cinema da cidade. Também possuíam o bazar Cláudia, onde se vendia de tudo. Com Glorinha aprendi a andar a cavalo, inicialmente com enorme medo. Mas já no final das férias, até em pé ficava nele, simplesmente para me mostrar, fazer “visagem”. Glorinha era um lindeza, dengosa, papo gostoso e me deliciava estar com ela. Antes, logo que cheguei, tinha paquerado a Zeily Bartholdy, a Zizi, da Pasqualini, filha do dono do laticínio da cidade; uma lindeza também. Ela é de uma linhagem dinamarquesa que ficou famosa pelos queijos que produziu. Da turma nórdica que chegou por lá, são conhecidos Thorvald Nielsen, Hans Norremose, Godfredsen, Axel Sorensen, Knud Paulsen, Paul Bartholdy e outros, talvez. Tornaram a região o berço dos queijos finos produzidos no Brasil inventando, inclusive, alguns. Marcas ficaram famosas, como Luna, Skandia, Dana e Campo Lindo que, infelizmente, hoje perderam o sotaque, pois foram adquiridas pelas multinacionais; uma pena. Hans Norremose foi o primeiro a fazer o Camembert no Brasil, além de lançar outros queijos finos, como Port Salut, Limburguer e Tilsit. Casou-se com Paulina, filha de Paul Bartholdy. Este, inicialmente, fundou a agência Ford em São VIcente de Minas, e ficou conhecido por trazer progresso para a região, inclusive abrindo estradas entre os municípios vizinhos. Em 1936 arrendou a Armando Amorim - Memórias
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primeira fábrica de Nielsen, na Fazenda Campo Lindo, fazendo surgir a famosa marca. Mais tarde, ela foi instalada ao lado da estaçãozinha da Rede Mineira de Viação - RMV, que no tempo que lá estive, era conhecida como “Ruim Mas Vai”, pois o trenzinho já passava da 3ª idade e não conseguia correr com a mesma velocidade de quando mocinho. Mas o Laticínios Campo Lindo foi chegando a outras cidadezinhas, como Andrelândia, Madre de Deus e Carrancas, produzindo queijos especiais como Camembert, Gorgonzola, Port Salut, Gruyère e outros bem conhecidos, como o Estepe, invenção de Bartholdy. De certa forma, temos uma ligação com os queijeiros da região, ou melhor, com um deles: Fleming, um dinamarquês que chegou ao Brasil para trabalhar na Dana. Mas acabou na Campo Lindo e foi o criador de deliciosos queijos. Casou-se com Ayleda, mocinha do lugar. Deles nasceram Jens, Klaus, André e Christian que, bem novos, perderam os pais em desastre; mas três deles ganharam outros: o mano Hélio e a cunhada Selma. Há alguns anos em visita ao Instituto de Laticínios Cândido Tostes, em Juiz de Fóra, encontrei uma aluna com sobrenome Bartholdy. Quis saber se conhecia a Zeyli. A resposta veio rápida: “é minha mãe”. Portanto, mais uma queijeira com pedigree, anda por aí. Nos fins de semana, em São Vicente havia os bailinhos, as festas no clube, os piqueniques e até pescaria de balaio eu aprendi, pois me levaram a uma lagoa, depois de andar horas à cavalo. Para rapaz da cidade grande, foi uma aventura bater o balaio - um cesto sem fundo - na lagoa, e prender as traíras. Outras vezes, pesca no rio Aiuruoca. Quando não havia nada pra fazer, rumava então para a estação, pois é um dos lugares que me fascinam. O motivo não sei. Deve haver alguma coisa que a envolve, talvez a emoção de quem chega ali ou de quem vai embora, continue no ar. E da estaçãozinha de São Vicente de Minas, acabei mais tarde contando essa historinha:
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De algum lugar Trem vem trem passa quebra e requebra Mistura apito com mugido de vaca em cio Trem chega trem para Na estação sem ninguém; só burro vadio e eu. Parece-me esse trem caixas de madeira uma segurando a outra, como brincadeira de roda. Apita Como um grito, faz fumaça que embaça e se mistura na nevoença fria Sem deixar nada vai embora levando sonhos de quem está ali como o burro vadio e eu. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 353
Das origens, o lado Amorim. Nossa origem é bem portuguesa, com certeza. E minhotos. Quanto ao sobrenome em documentos, dizem que surgiu pela primeira vez, no ano de 1033, quando trinta famílias de agricultores estabeleceram-se a 30 km da costa, pelos lados de Póvoa do Varzim, dando início à Freguesia dos Amorins. Mas foi na região do Minho, Norte de Portugal, que as famílias de nossos avós, tanto por parte de pai como da mãe viveram, apesar de esta ter nascido no Brasil. O meu avô Joaquim Vicente Amorim, era filho de Secundino d’Amorim e Emília Fernandes de Brito; e a avó Miquelina Afonso Rodrigues, filha de José Afonso e Camila Cândida Rodrigues. Ambos eram agricultores em sua quinta, na Freguesia de Ferreira, Paredes de Coura, que depois virou Conselho de Viana do Castelo/ Braga. Mas, antes, o nosso avô Joaquim esteve no Brasil durante vinte anos, sendo atacadista na Rua do Acre, Rio de Janeiro. Acabou vendendo o negócio, voltando a Portugal, quando ali aplicou o dinheiro em terras e construiu a quinta, casando-se com a vó Miquelina. Como a maioria dos agricultores da região, passou a cultivar uvas, para a produção de vinho. Além de nosso pai, os dois tiveram mais sete filhos: Antônio, Manoel, Alcindo, Maria, Noêmia, Leonídia e Olivia. De todos, a única que não aportou em terras brasileiras, foi a tia Noêmia, que casou com José Costa e emigrou para os Estados Unidos. Lá nasceram os nossos primos gêmeos, Eduardo e José.
A casa da Quinta do pai em Paredes de Coura, onde ele viveu até os 13 anos. Ali se plantava uva para fazer vinho.
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O lado Amorim: Nosso avô Joaquim Vicente, Noemia, Leonidia, Maria, o pai Armando, vó Miquelina com Olivia e os tios Antonio e Manoel.
A vó Miquelina entre as filhas Noemia, Leonidia, Maria e genro Arlindo
Em Paredes de Coura, Minho. Aparece a mana Luiza Tias Olivia e Maria, Luiza, Tio Carlos e eu
Cely, tia Olivia, eu, e as primas do pai Nicia e Lucília. Tios Antonio e Triestre, com os filhos Eiser e Elisabeth.
Beth e vó Miquelina
Tia Maria e o pai
Entre videiras, a mana Luiza junto ao poço da Quinta.
Os primos gemeos, Eduardo e José, filhos da tia Noemia
Tio Carlos e Elisabeth
Igreja em Paredes de Coura, onde o pai foi batizado.
Tios Alcindo e Antonio.
Tia-avรณ Isaura, com seus quase 100 anos, a mana Luiza e a tia Noemia.
Os primos Eduardo e José, filhos da tia Noemia e José Costa. Aparecem ainda a vó Miquelina e o tio Manoel.
Tia Noemia, Mimi, Isaura, Lúcia e amigos
Jayme, tio Antonio, Eiser, Maria Amélia, Thais, Eduardo e tia Triestre.
Por volta da década de 20, Portugal não oferecia oportunidades de emprego e era comum os filhos homens emigrarem para o Brasil, neste caso, pela facilidade do idioma. Caso contrário, teriam que trabalhar na lavoura. Para situar a época, quando nosso pai nasceu, em 1907, o rei D. Carlos I havia sido assassinado e passou a reinar o seu filho, D.Manuel III. A realeza autoritária havia deixado o país na miséria quando, em 1910, foi proclamada a República. O que parecia ter sido a solução, não foi, pois durante os quinze primeiros anos do novo regime, houve muitas dificuldades, instabilidade marcada por revoltas e assassinatos. Apenas um presidente, entre oito, chegou ao fim de seu mandato. Vieram as ditaduras que também foram tumultuadas. A de Pimenta de Castro, em 1915 e a de Sidônio Pais, de 17 a 18, acabaram fazendo surgir em 1919 o CGT, de caráter anarquista, e o partido comunista, em 1921. Em 1928, o general Manuel Gomes da Costa acaba dando outro golpe militar, mas quem passou a ser o novo presidente foi outro general: Antônio Carmona. Entregou o poder absoluto a Antônio de Oliveira Salazar, que fez calar por muitos anos a oposição e qualquer foco de revolta. O país só se livrou deste ditador, em 1974, com a conhecida “Revolução dos Cravos”.
Nossos pais e o montão de netos. Armando Amorim - Memórias
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Portanto, o povo português passou bom tempo por grandes dificuldades. Se junta a isso, que o português em seu inconsciente e na identidade que o acompanha, sempre foi um povo das conquistas e descobertas. Daí os filhos de Joaquim e Miquelina emigrarem, por volta de 1920, na certeza que nosso país ofereceria melhores oportunidades e aventuras. O primeiro dos filhos a chegar, foi o tio Antônio, o mais velho entre os irmãos, que deveria vir com nosso pai. Mas ao se preparar a viagem, o “seu” Amorim não conseguiu embarcar, pois lhe surgiu um terrível ataque de asma. Mas, tempos depois o pai estava pronto para a viagem, não muito confortável, pois a embarcação era cargueiro. Chegou aqui com 13 anos, para trabalhar e assim, foram os seus anos de Brasil. A vó Miquelina esteve entre nós, e morou em nossa casa por três anos. Veio rever os sete dos oito filhos que aqui viviam há muitos anos. Lembro-me das grandes latas de azeite que chegaram em sua bagagem, além de vinhos e das carnes defumadas, que fizeram nosso pai e os irmãos matarem a saudade das iguarias da “terrinha”. Alta, elegante e com a fineza de uma dama, a vó Miquelina era doce, delicada e risonha criatura. Tempos depois, retornou à sua quinta. É comum se dizer da nostalgia e mesmo certa tristeza do povo português, principalmente dos que emigravam. Mas isso não combinava com os filhos de Joaquim e Miquelina, pois nunca presenciei tanto riso e tanta alegria. Parecia mesmo, que só se reuniam para rir. Bastava iniciar a conversa, que o riso e as gargalhadas surgiam. No Natal, então, quando as festas em nossa casa eram regadas à vinho “Grandjó” fazia aumentar a alegria e até a vizinhança se divertia. Mas a mais impressionante gargalhada que até hoje ouví, foi a do tio Carlos, ourives em São Paulo, casado com a nossa tia Maria. Nunca, realmente, ouvi outra igual. Alta, sonora, escandalosa, dobrada e tão esfusiante, que não havia quem não risse junto. Mesmo se não fosse do “ramo”. Chegava ele de “Sampa”, para as festas de fim de ano, carregado de caixas de frutas, vinhos e o que mais nos prazerava: uma joia para cada um da família. 360 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Tia Maria, boa de costura, era uma mulher esguia e elegante. Falava alto e rápido e cada frase, quase sempre finalizada por uma boa gargalhada. Formavam assim um casal perfeito e a atração entre eles deve ter sido por este predicado. E não duvido que no dia do casório, diante do padre, tivessem incluído: “juramos rir até o fim de nossas vidas”. Cumpriram. Pelo lado da caçula, tia Olívia - também de muito sorrir e boa de conversa - o que mais me impressionava era a sua beleza e seu senso de humor. Viveu um tempo no Rio e foi então para São Paulo, morar com a tia Maria. Lá trabalhou em algumas lojas, inclusive, nove anos na empresa Fotótica. Voltou ao Rio em 1956 e, a partir daí, foi a responsável pela contabilidade da Casa Tavares, por quase vinte anos. Aos quase 90 anos, bem lúcida, conversávamos por horas, contando-me lembranças de seu Portugal. O tio Manoel, casou-se com Maria Ramos e veio o filho Acácio. Foi um típico português no Brasil: dono de padarias. O tio Alcindo, caçula entre os homens, por certo tempo morou em nossa casa. E adorávamos a sua presença, não só pela simpatia e o riso permanente, mas também porque chegava sempre, carregado de balas e guloseimas. Foi sócio do tio Manoel nas padarias e casou-se, não muito novo com Maria, e deles nasceram Joaquim e Denise. Não conheci alguém mais educado do que este tio. O tio Antônio, casado com a tia Triestre, outro de falar alto e de riso permanente, acabou sendo um dos sócios da Brasilaves, empresa que nosso pai havia ajudado a fundar. Os filhos Eiser, Elisabeth e Eduardo estiveram sempre morando próximos da gente. Por ser da minha idade, Eiser foi meu companheiro de muito papo e muitas noitadas. Oficial da Marinha, depois de quase almirante aposentado, resolveu ser dono de restaurante, para confirmar a origem. Casou-se com a simpática Maria Amélia, consultora de turismo e tiveram os filhos Giselle, advogada que já deu a netinha Carol aos dois e mais Léo que casou com Aninha e está morando em Natal, RN. Eduardinho, irmão mais novo, casou-se com Thaís e hoje curtem o filho Rodrigo. E Elisabeth, mãe da lindeza Andréa, andou algum tempo na terra dos avós, mas hoje, vive entre nós. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 361
A outra tia Amorim, a Leonídia, viveu por aqui uma temporada, mas voltou para o seu Portugal. Casada com Arlindo, estiveram morando também em nossa casa, durante certo tempo. Dizia este tio que “água não lhe sei o gosto”. Isto, porque, em toda a sua vida, o único líquido que tinha bebido era vinho. Daí as bochechas super coradas.
Os Mendes Do lado da mãe, os seus pais vieram também da região do Minho, em Infesta, Viana do Castelo. A nossa avó Maria era filha de Casimiro José de Araújo e Cândida Albina Cerqueira. Nascida em l887, com 26 anos casou-se com Antônio Bento Mendes, ainda em Portugal, em 7 de junho. Vieram então “descobrir” o Brasil e os filhos foram nascendo: Idalina, nossa mãe; a tia Mimi, na verdade Ermelinda e a tia Dedé (Odete), a caçula, que por acaso nasceu em Portugal, numa das visitas dos avós à “terrinha”. Joãozinho foi o único filho homem, mas morreu ainda rapaz, pois contraiu tuberculose. Dizem que foi um grande baloeiro no Catumbi, construindo e soltando monumentais balões. Hoje, estaria em “cana”.
A vó Maria
O nosso bisavô Belarmino A vó Maria e os netos Helio, Cely e eu, quando moramos na Praça Del-Vecchio, 39.
362 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
O lado Mendes: Idalina, nossa mãe, tio Joãozinho, vó Maria e vô Antonio Bento, Tias Odete e Mimi.
Piquenique em São Cristovão, vendo-se o vovô Antonio e a vó Maria com a mãe Idalina com 1 ano.
Tia Odete em 1925
Primeira comunhão de Odete e Joãozinho. 1925
Tio Joãozinho com 1 ano, em 1919.
Vó Maria
Nossa mãe Idalina.
Festa da Brasilaves, empresa do pai, onde aparece toda a turma de casa.
Mandinho com o vĂ´ Armando. As manas Idalina, Mimi e Odete.
Mimi com a mana Regina
Cely e Lucia
Nosso avô Antônio Bento também morreu cedo, aos 45 anos. Possuía ele um grande negócio de “secos e molhados” na Rua do Mercado, 11. De gosto refinado, frequentador de teatros e bons restaurantes, dizem que ajudava a todos que chegavam da sua região, em Portugal, inclusive fundando uma associação com os que vinham de lá. Era filho de João Batista Mendes e Francisca Barbosa, meus bisavós. A vó Maria de Jesus Cerqueira Mendes, ao contrário, teve uma vida longa e morou sempre perto da gente. Inicialmente, quando os nossos pais se casaram e em nossos primeiros anos, moramos no mesmo sobrado, na Rua Queiroz Lima 45, Catumbi. Ela no andar de cima e nós no térreo. Foi nesta casa que aconteceram as primeiras brincadeiras e uma delas, os manos Helio e Cely, preparavam. Amarravam um barbante à duas caixas de pó de arroz Myrúrgia, que eram rígidas, sendo que uma delas atravessava a rua e instalava-se na casa da amiguinha Nenéia. O “telefone” fucionava muito bem. Tempos depois, o nosso pai comprou um terreno e construiu a casa 54 na mesma rua. Para lá, mudamos. Nessa época de bem criança, me lembro das guloseimas que a vó oferecia, inclusive “pão com manteiga e açúcar”, uma delícia. Adorava também da casa da vovó, ver os bondinhos circulando no morro de Santa Teresa. Estava nos meus quatro anos de idade e usar o seu binóculo era o máximo. Melhor do que isso era quando me levava à 366 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
padaria da esquina e me comprava “bala miudinha” e rebuçados de Lisboa. Mudamos então para o Rio Comprido, na Praça Del-Vecchio e em seguida para a Dipsis, hoje Paula Frassinetti. Tempos se passaram e nossa avó e a tia Dedé vieram morar no mesmo prédio onde morávamos, construído por nosso pai. Assim o contato era diário, para a minha alegria, pois a vó Maria foi um dos meus maiores amores. Muitas vezes evitou que eu levasse umas porradinhas da mãe, pois sempre ajeitava as anarquias que eu aprontava. Religiosa em grau máximo rezava por mim diariamente; e como era feita de inteira bondade, valeram as rezas. Quando vovó Maria morreu, já bem idosa, senti a minha primeira grande tristeza. Não ouviria mais a sua voz firme, me dizendo sempre: “levante os ombros, olhe pra cima, estufe o peito!”. Isto porque, dos 15 aos 17 anos eu crescera muito e andava meio encurvado. Mas o que eu adorava mesmo, é que ela dizia para todos que eu era bonito. Isto enchia o meu ego e me dava enorme satisfação. Coisas de avó. Com a morte desta minha querida, ganhamos a tia Dedé que, para não ficar sozinha, pois morava com a nossa avó, veio viver com a gente. Era super especial. Boa de papo, alegre e prestativa. Uma tia de “apoio”, para tudo que se precisasse, inclusive encobrir alguma besteira que eu tivesse feito. E ainda alegrava a casa, tocando um piano gostoso. Sabia também fazer muitas coisas bonitas e ficaram famosos os seus “mosqueteiros”, que serviam para cobrir bolos e doces, que ela também era craque. Cortando um tecido telado em vários gomos, bordava neles belos motivos em ponto-de-cruz. Não havia na família quem não possuísse um. Apesar de bonita, inteligente e cheia de predicados, não se casou, talvez por ser a companhia de nossa avó, durante toda a vida. Dizem que foi namorada do Lamartine Babo, o “Lalá”. Se não foi, o compositor a paquerava, pois na dedicatória que fez em partitura de uma de suas músicas e que começava com “Oh! Dete” mostrava as suas intenções. Dessa época, estou numa foto, em meus três anos, sentado no colo do Lalá, em frente ao Hotel Silva, em que ficávamos na cidade mineira de Cambuquira. Muito magro Lamartine parecia um cabide, suportando o paletó. Anos depois, já rapaz, o encontrei várias vezes na Rua Teófilo Otoni, Armando Amorim - Memórias
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agora bem mais gordo e sempre com seu terninho de linho branco, assobiando alguma modinha. Não lhe perguntei sobre a tia Dedé. A dúvida ficou. Gozador, de grande presença de espírito, certa vez o Lalá foi passar um telegrama. Vendo a sua magra figura, o atendente bateu o lápis na mesa, em código Morse, para o companheiro ao lado: “magro, feio e de voz fina”. Lamartine puxou a caneta e imediatamente, batendo no balcão, retrucou: “magro, feio, voz fina e ex-telegrafista”. Em seus últimos anos, a tia Dedé foi morar com a irmã Mimi, e a prima Lúcia. A tia Mimi, muito bonita e elegante, tocava também o seu pianinho. Era gente muito especial e esteve também sempre perto da gente, inclusive morando no mesmo prédio durante alguns anos. Casou-se com José Barbosa Lima e nasceram os nossos primos Rogério e Lúcia. Rogério foi com vinte anos para os states e por lá ficou. Sua história é digna de um capítulo à parte. A prima Lucinha, que adora uma viagenzinha e já andou pelo mundo, virou professora e trabalhou em empresas de aviação. Com suas amigas Mônica Turner e Neide Viegas andou pelos quatro cantos e tem muitas histórias pra contar, nas reuniões da família. Durante um tempo morou nos Estados Unidos com a mãe, perto do mano, em Fort Lauderdale, na Flórida. Recentemente nos associamos na Barbosa Lima Editora, para o relançamento da revista Embalagem Vende. .
Prédio roubado O pai de Lúcia e Rogério, nosso tio José Barbosa Lima, engenheiro eletro-técnico, primo do conhecido Barbosa Lima Sobrinho, que foi presidente da ABI e figura de destaque no cenário nacional, era filho do também conhecido Almirante Barbosa Lima, ex-presidente do Loyde Brasileiro . A mãe, D. Teresa, além de José, pariu Átila, coronel, e Maria Luiza, que se casou com Otávio. Criaram a filha Teresa Cristina, mãe de Andressa. Esse tio José de quem sou fã, foi gênio da eletricidade e da eletrônica, muitas vezes criando ou inovando processos. Montou fantásticos sistemas de som, carros sonorizados, além de aparelhos elétricos. Mas seu grande e permanente sonho era possuir 368 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Eu com José Barbosa Lima
Tios José Barbosa e Mimi
O pai e Mimi
Lucia e Paulo
uma emissora de rádio, talvez pela paixão em ser radioamador, no prefixo PY1ACD, que nunca esqueci, pois o assistia durante horas, repetindo-o, tentando se comunicar com o mundo. Conseguiu, finalmente, o que perseguia: concessão para montar e comercializar uma emissora de rádio, oferecida quando era governador de Minas, Juscelino Kubischek. Entretanto, teria que ser colocada no ar, no prazo de dez anos. Como o dinheiro na época era Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 369
pouco e difícil, ficou impossível comprar os equipamentos. Resolveu então, ele próprio construir os transmissores, receptores e até a monumental antena. Isso tudo, claro, durou anos e foi produzido dentro de sua casa, na Rua Almirante Cóckrane, na Tijuca. O terreno que conseguiu, no alto de um morro em Belo Horizonte, esperava também depois de anos, a construção do prédio, para receber os equipamentos, agora, quase prontos. E, com muito esforço, foi sendo erguido. Por outro lado, estava sendo preparada a infraestrutura da programação, com muitas centenas de fitas gravadas, milhares de recortes, revistas e jornais arquivados, que foram tomando conta de todas as dependências da casa. Isso acabou obrigando a tia Mimi a se mudar com a filha, deixando espaço para a estação de rádio, mas também para a simpática Lourdes, que um dia o encontrou e viveu com ele até subir aos céus. Mas o prédio foi sendo construído e já estava quase pronto. Pequeno, inicialmente, mas o tio esperava ampliá-lo, construindo inclusive um restaurante, aproveitando o belo visual do local. Certo dia ele vai a Belo Horizonte, para as providências finais e qual não foi o seu espanto: o prédio tinha sido roubado! Isso mesmo. O prédio havia sumido totalmente. Não sobrou nenhum tijolo, nem telha, nem nada! Foi a primeira e única vez que eu soube que um prédio havia sido roubado. Literalmente. Acabou assim o sonho do tio Zé Barbosa, pois o prazo expirou e não foi possível renová-lo. Craque das quadrinhas e das poesias jocosas, Zé Barbosa estava sempre na Armando Amorim Publicidade e nós nos deliciávamos ao ouvi-lo. Era um papo dos melhores, por seus conhecimentos e a inteligência notável.
De um par de sapatos velhos, à venda de MIG’S O sonho de muitos brasileiros é “descobrir” a América e colocar no bolso os seus dólares.
370 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Rogerio e Sonia com as filhas.
Roger e Priscilla
Rogerio e as filhas Rebecca e Priscilla
Roger e Sonia
Vão para lá, como fossem descobrir mina de ouro, bastando levar a vontade, como picareta. Isso não é bem assim para a maioria, que acaba retornando. Se ficam, sujeitam-se a trabalhar em qualquer coisa, mais horas do que devem, o que certamente não fariam no Armando Amorim - Memórias
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Brasil. E, alguns, economizando ao extremo, acabam ganhando uns dolarzinhos. Poucos, portanto, conseguem encontar a mina. A nossa história é de um que conseguiu e bem poderia virar roteiro de filme. Começa na Tijuca, Rua Almirante Cokrane, onde morava o primo Rogério Barbosa Lima, filho dos tios José e Mimi, esta, irmã de minha mãe. Desde miúdo, havia nele uma predileção incontrolável por trocas. Trocava qualquer coisa, por coisa qualquer. Se encontrasse alguém escutando radinho de pilha, poderia voltar descalço para casa, se o companheiro aceitasse trocar o dito, pelo seu tênis. Assim, durante certo tempo, acompanhei algumas de suas barganhas, o que o fez chegar, talvez, aonde não esperava chegar. Um par de sapatos usados foi trocado por um casaco de couro, também já “malhado”. Este, permutado por um rádio AM/FM, que mais tarde, foi dado em troca de uma luneta. Aqui é bom explicar, que muito habilidoso, consertava qualquer coisa, o que fez com o compressor avariado que recebeu em troca, pela luneta. Foi a vez de dar o compressor, pintado e reformado, por um kart, bem “esmerilhado”, que não funcionava. Tempos depois, o kart novinho foi o responsável por fazer Rogério chegar ao seu sonho: um automóvel! Não importava que fosse um Dauphine, o mais desprezado do mercado e por cima enguiçado, batido e enferrujado. Em pouco tempo, o dito estava faiscando de novo. Juntando mais alguns badulaques, não foi difícil oferecê-lo em troca de um taxi, bem velho, mas valia o relógio, ou seja, a licença/táxi. Novamente colocou o carro nos trinques e passou a ganhar dinheirinho, como motorista. Nesta época, já tinha passado em 1º lugar para professorado de desenho, na UFRJ e tempos depois estava dando aulas no curso preparatório da Universidade. Dizem, que até lá, não conseguia conter os seus desejos de troca. E permutava merenda com os alunos. Com dezenove anos resolveu ir para os Estados Unidos. Como não conhecia nada do idioma, recebeu umas aulinhas de inglês do nosso cunhado Jayme Abreu. Vendeu então o táxi, distribuiu o dinheiro em casa, comprou a passagem e, com poucos dólares se “mandou”. 372 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Inicialmente, na terra de Tio Sam, fez de tudo: engraxou sapatos, trabalhou em barbearia, lanchonete, oficina mecânica e até sapateiro foi. Encarava o que viesse. Chegou o dia em que começou a ganhar um dinheirinho maior e já dava até para guardar uns dólares: era manobrista de um estacionamento, além de conseguir mais uns trocados, polindo o carro dos fregueses. Tempos depois, viu que poderia aumentar o faturamento, vendendo eletrodomésticos usados. Conseguiu um caminhãozinho e passou a recolher o “lixo” eletroeletrônico, que os americanos deixavam na porta de suas casas - o que lá é normal - e passou a consertar aspiradores, aparelhos de TV, máquinas de cortar grama e outros, quase sempre com pequenos defeitos. E conseguiu um lugarzinho no estacionamento, para vendê-los a um bom preço. E jeito para camelô nunca lhe faltou, pois, além da simpatia, é dessas pessoas que fazem a gente rir e se divertir. Aumentou até o negócio vendendo radinhos japoneses e outros badulaques. O dinheiro foi entrando e as economias iam sendo “costuradas” na cortina. Isso mesmo. Como o seu apartamento já tinha sido arrombado por assaltantes (lá também tem!), resolveu costurar seus dólares entre os panos da cortina, na parte superior. Sabia que nenhum larápio se interessaria por cortinas velhas. Chegou um tempo em que as ditas valiam um dinheirão. Resolveu então mudar de negócio e comprou pequena oficina mecânica. A empresa foi de vento em popa e em pouco tempo ampliada, para vender carros usados, reformados por ele e sua equipe. Durante bom tempo ganhou o suficiente para comprar casa lá e apartamento aqui no Brasil, que depois virou dois, em Ipanema, onde mora a irmã. Mas, certo dia, resolve vender o que possuía nos states e voltar. Aqui encontrou o Alberto Brisola, na época apresentador de TV. Com ele, e mais o amigo alemão Ditter, resolveram criar o “Clube do Amor”, na verdade uma discoteca, no antigo e conhecido restaurante do Joá. Reformaram-no, gastaram muito dinheiro e o local ficou uma beleza. Apesar da casa lotar, a garotada que frequentava gastava pouco. Em poucos meses estavam falidos. Rogério resolveu então voltar para os Estados Unidos e ganhar tudo novamente. Como era piloto e possuia um amigo com empresa de venda de Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 373
aviões, passou a trabalhar nela, levando e buscando aviões e ajudando nas vendas. Para resumir, em pouco tempo já estava também com a sua. A Southeast Jet Holding se transformou em grande empresa, vendendo aviões até para governos. Certa vez, para se ter uma ideia, esteve tratando da venda de aviões Mig’s , para o governo de um país da América Latina e foi hóspede do governo russo. E andou vivendo em palácios nos Emirados Árabes, nos países asiáticos, na Europa e por aí afora, vendendo aviõezinhos, e pilotando o jato particular. Também a sua empresa transformou aviões, modificando-lhes as asas e aumentando a sua autonomia de voo. Casado com a bonita e simpática Sônia, deles nasceram duas princesas: Rebecca e Priscilla, que vivem na bela mansão em Fort Lauderdale. Mas continua com o mesmo jeito brincalhão, irreverente, gozador, contando deliciosas histórias que vão acontecendo em sua vida, mais que vivida. E, ainda tem um tempinho para tocar um piano, gostosamente. E se aparecer alguém por aí, querendo trocar um aviãozinho por algumas toneladas de batatas ou outra coisa qualquer, pode acreditar: tem negócio...
Outros da grande família Como relatei, quando nosso pai chegou ao Brasil, foi recomendado aos tios Oliveira e Angelina, que já moravam aqui e foram padrinhos do mano Helio, o primeiro filho a nascer, do “seu” Amorim. A tia Angelina era irmã de nossa avó Miquelina. Assim, estávamos sempre em visita à sua casa no Maracanã, lugar alegre e movimentado, pelo número de filhos, genros, noras e netos: Milton, casado com Déa, Alvarinta, com Edgar; Diamantina, com Diamantino (que coincidência!), Manoel, com Lígia, Dulce, com Maurício, dos quais nasceram Dulcinha e Arnaldinho e, finalmente Alberto, que não se casou. Era uma turma divertida, que no meu tempo de calças curtas, me parecia uma multidão, todos falando ao mesmo tempo, rindo e brincando com tudo. Eu gostava da “anarquia” e dos lanches que eram deliciosos. Além de Angelina, nossa avó Miquelina era irmã de Rozalina, a mais velha e de Maria. A primeira ainda vive em Portugal. Pariu 374 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
oito filhos: Felisbela, Miquelina, Augusta, Esmênia, Esmeralda, Emílio, Dulcídio e um que morreu novo. E, finalmente a irmã Maria, casada com Manoel, tiveram as filhas Lucília e Natália. Nosso pai adorava essas primas, sempre simpáticas e atenciosas com ele. Em casa, o pai sempre se referia a elas com muito carinho. Lucília casou-se com Agostinho e tiveram duas filhas: Nícia e Neide. A prima Nícia casou-se com o médico da Marinha, Dr. Sérgio e dois filhos nasceram: Maurício e Mauro. A irmã de Nice, a Neide, casou-se com Wanderley e são pais de Gustavo e Luciano. Já o nosso avô Joaquim Vicente, que era da região de Cunha, não tinha irmãos. Sabe-se dos seus tios João Amorim e Felino Amorim. O primeiro foi padrasto da vó Miquelina, pois a mãe dela se separou do marido, que conta-se, era violento, e casou-se com João Amorim, tio de nosso avô Joaquim. Do segundo casamento de nossa bisavó Camila, teve ela dois irmãos: Antônio e Esperança. É o que se sabe da família Amorim. Por parte da vovó Maria Mendes, Alfredo, seu irmão, casou-se com Olívia, que muito conviveu com a gente, em visitas constantes e recíprocas. As filhas do tio Cândido (irmão da Olívia), Ida e Ivete, estiveram também sempre em nossa casa e eram presenças agradáveis, super simpáticas. Boas de conversa, nunca vi gente mais educada. Quando a mãe se foi, rumaram para Portugal, onde passaram grande temporada. Cândido casou-se de novo, e Ida e Ivete ganharam duas irmãs: Idair e Ilsa, que ainda bem crianças, frequentavam a nossa casa. Esta é a nossa grande família, iniciada em Portugal e que no Brasil está sendo ampliada. Não só pelos Mendes e Amorim e, nós em particular, pelos Albuquerque Salles, mas por todos que a ela foram se ligando, surgindo muitos sobrenomes: Salim, Barbosa Lima, Leite, Silva, Ramos, Canejo, Mileip, Larsen, Soares, Corrêa, Fasura, Viglio, Martins, Oliveira, Ruchiga, Baía e tantos outros. Com certeza, as misturas vão se transformando em molhos e temperos cada vez mais saborosos, pois cada pitada de novo gen, de cada cultura diferente, é que dá graça à raça humana. E ela foi feita, para isso mesmo. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 375
A FAMÍLIA DE TERESÓPOLIS Moacyr Borelli, um personagem notável. Esse foi meu herói em criança, muito mais do que o Superman, Capitão Marvel e até do que o Homem Aranha.
Moacyr Moacyr e Rosinha
Moacyr com a filha Thereza
Thereza e Luiz Antonio
376 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Casado com Rosa Motta, filha de meus padrinhos, Moacyr Borelli reunia todas as forças dos heróis de quadrinhos, só que não necessitava de nenhum sinal mágico para que lhe chegasse a força. Ele era a própria. Para se ter ideia, fazia exercício com roda de trem e em seu trabalho, presenciei muitas vezes virando ferro com as mãos, construindo um portão, quando o normal seria usar marreta e bigorna. Ferreiro de profissão, com a oficina nos fundos da casa, no Alto, em Teresópolis, o vi pela primeira vez, quando ainda me vestia de calças curtas. Rosinha me levou para um banho no rio Paquequer, que corta a cidade, naquela época de água pura e cristalina. De repente sai do mato, um brutamontes, que de início me assustou. Era Moacyr, namorado de Rosinha e dizem contra a vontade do meu padrinho Motta, daí o namoro escondido. Diziam que naquela época, volta e meia se embrenhava nas matas da Serra dos Órgãos, sozinho, e passava ali vários dias, como um índio, só comendo frutas e bichos. Pode ser, pois para quem o conheceu, seria normal.
Andrea com a filha Maria Isabel
Rosa, neta de Rosinha
Moacyr, Rosa e Thereza Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 377
Casaram-se e eu passei a frequentar a sua casa, herança do pai, reconstruída por ele e decorada por Rosinha, que sabia, não só produzir coisas bonitas, bordados incríveis mas, com arte e criatividade, fazer um lugar gostoso de morar. Rosinha era o humor em pessoa, hilariante e sempre com sorrisos no rosto bonito e expressivo. Tudo que contava, seu modo de falar, de se expressar, tirava risos de qualquer um. Um pouco doidinha, andava em pé no cavalo em pelo, em plena avenida principal, soltava de ônibus andando, fazia piruetas notáveis em cima de uma bicicleta. Certa vez, quando lá chegou um circo, pegou a motocicleta no tal “globo-da-morte” e saiu rodando e ao mesmo tempo gritando que não sabia pará-la. Não morreu disso. Era, portanto um casal mais que perfeito, especialmente criado um para o outro. E eu me prazerava em conviver com eles. Filho de Giuseppe Borelli, chegado diretamente de Sessa Cilento, Itália, em 1898, virando aqui José Borelli, Moacyr é protagonista de muitas histórias, algumas delas inusitadas. Umas eu presenciei; outras me contaram Jacy, seu primo e a irmã Mucira. Nas poucas vezes que vinha ao Rio de Janeiro, seu prazer maior era atravessar a nado, de Copacabana à Ilha do Governador e voltar, também a nado. Mas no Rio, serviu ao Exército, na cavalaria, época da IIª Guerra, passando lá dois anos. Ia ser expulso, pois certa vez lavando o cavalo do coronel levou um baita coice. Não deu outra: o equino levou umas três bolachas e desmaiou. Também se meteu numa briga fardado, com seis indivíduos, em São Cristovão, que foram parar quebrados no Pronto Socorro. Conta o primo Jacy, que um general amigo foi quem segurou a barra, pois um deles era filho de conhecido político. Na verdade, Moacyr não era chegado a brigas, talvez por saber da força que dispunha. Mas certa vez me contou que os sujeitos estavam importunando um mendigo e ele só chamou a atenção, educadamente. “Eles quiseram me bater e eu só me defendi”... Cena de humor, eu presenciei num jogo de futebol, em que jogavam o time de Teresópolis contra um do Rio. Estávamos na arquibancada, sentados em largas tábuas corridas, quando o juiz marcou um pênalti que não existiu, contra o time da casa. Era 378 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
final de jogo e estava 1x1. Moacyr mandou o pessoal se levantar, arrancou a tábua que media uns três metros, pulou no gramado e partiu para o juiz “ladrão”. Vendo aquele “armário” com a “ arma” em sua direção, sua “ senhoria” começou a correr e Moacyr dando “tabuadas” em sua bunda. Não preciso dizer que o jogo acabou empatado e o juiz deve ter até hoje aquela visão. Na platéia, uma risada só. Outra do Moacyr, não presenciei, mas quem me contou foi seu amigo e parceiro de buraco, Tuninho, homem que não mentia. Disse ele, que certa vez Rosinha desmanchou o namoro, por pressão do “seu” Motta. Em represália, em pleno carnaval, cidade abarrotada de gente e à tardinha, ele atravessou a cidade no carro conversível do Mariozinho de Oliveira. Só que estava completamente nu, como uma estátua grega, mandando beijnhos para todos. E dizia depois: “agora, ele vai ter razão de proibir o namoro”... Meus pais o adoravam e vice-versa. Quando chegava a nossa casa, batia na parede, para não derrubar a porta. Era um homem alegre, gozador, brincalhão e só se exaltava em certas ocasiões. Numa tardinha fui visitá-los e logo que cheguei, Rosinha me alertou: “Não entre na cozinha, pois Moacyr está preparando o seu gato”. Espantei-me e quis saber: “O Moacyr come gato”? Fazendo cara de nojo, me respondeu: não comia, mas agora... E me explicou com a história: Colecionador de canários belgas e apaixonado por cada passarinho, alguns dias antes acordou de madrugada, com o barulho da queda de uma gaiola. Ao se aproximar, ainda viu o gato correndo, com seu passarinho na boca. Naquela madrugada, contou Rosinha, ele andou por cima de telhados, correu nas casas vizinhas, até pegar o “assassino”. E segurando o bichano pelo pescoço, saiu esbravejando: “Você comeu o meu canário, agora vou te comer”! E não deu outra, apesar dos protestos da Rosinha, que desolada me contou: ele gostou e volta-e- meia come um” ... Outra que lhe tirou do sério também me contaram. Havia duas regiões distintas em Teresópolis: Alto e Várzea; e dizem, que entre os seus moradores, existia “bairrismo”. Certo Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 379
dia Moacyr resolveu ir ao cinema com Rosinha, mas o filme que passava primeiro na Várzea e depois no Alto estava demorando a chegar. Já nervoso, pegou o telefone para reclamar. De lá responderam malcriadamente, dizendo que o pessoal do Alto não precisava de cinema e se quisesse assistir ao filme, que fosse à Várzea. E mais alguns desacatos. Como os dois cinemas eram de um só dono, Moacir não se conteve: “se não precisa, vou acabar com ele”. E assim fez. Deu uma peitada na porta e arrancando uma a uma as poltronas, foi jogando-as no riacho que corria na frente do cinema. Dizem que nunca mais a sessão atrasou e até melhoraram o dito. Em Teresópolis não havia quem não o conhecesse e todos o adoravam, não só pela pessoa especial que era, mas sempre pronto a ajudar qualquer um, tamanha a solidariedade. Quando saíamos pela cidade, a cada passo um cumprimento, uma palavra. Por isso, certa vez me contou, seu sonho de consumo: - “Se um dia ganhar muito dinheiro, a primeira coisa que vou fazer é “comprar” um chinês. Igualzinho aqueles que aparecem nos filmes, de cabeça raspada e cheio de mesuras. Ele vai andar ao meu lado e quando passar alguém e falar: Bom dia Moacyr!”, eu lhe catuco e ele responde. Outra dele, no mesmo tema, dizia que o único acessório útil em seu Ford 29, seria colocar “mãozinha balançando”, para dar um “tchauzinho” ao pessoal que por ele cruzava. No Rio, na década de 50, havia a famosa “Turma dos Cafajestes”, quase todos ricos, que se rebelaram contra o comportamento da chamada alta sociedade da época e se divertiam com irreverência, fazendo mil diabruras. Da turma faziam parte Mário Saladini, Carlos Boboca, Fernando Ribas - “o Palmeira Triste”, Carlinhos Niemeyer, o “Nini Canal 100”, Sérgio Porto, (colunista Stanislaw Ponte Preta), Leo Peteca, Vadinho Dolabella, Fernando Lobo, Bolão, Paulinho Soledade, Mestre Edu, Heleno de Freitas, Ibrahim Sued, apelidado de “Meia Noite” Celso Lara, Baby Pignatari e o mais famoso, Mariozinho Oliveira, o “Milonga”, que criava uma onça em seu apartamento, da Avenida Atlântica 400. Ficaram famosas as festas que promoviam, muitas vezes “fechando” boates, para os seus “Cajus Amigos” e, no carnaval, aprontavam mil e umas travessuras. 380 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mariozinho possuía sítio com mansão em Teresópolis, na Granja Guarani, com piscina decorada com azulejos portugueses antigos e belos jardins. Na entrada, uma placa de madeira entalhada, com o nome do dito: “ESADOF”, que até hoje pode ser vista, mostrando a sua irreverência. O sítio, no verão, estava sempre cheio, não faltando o coronel -aviador Melo Maluco, que com seu aviãozinho dava rasantes na cidade, passando por baixo de pontes. Era um “porra-louca”, que todos conheceram. Mas, Mariozinho, tinha o seu representante em Teresópolis: Moacyr Borelli. E ao viajar, já mandava avisá-lo, pois sua presença era indispensável. De tão amigos, certo dia Mariozinho pegou a chave do seu belo Ford 29 que desfilava pela cidade e a entregou ao Moacyr: ele é seu. E por anos, Borelli desfilou com o “fordinho” amarelo, de capota preta, que ainda pode ser visto na garagem de sua filha, Andréa. (acho que ainda está lá) Com seu jeito brincalhão, gozador, qualquer assunto era motivo para transformá-lo em risada. De força descomunal e gestos bruscos algumas vezes, mas quase sempre terno e carinhoso com as pessoas, as filhas e amigos, “ganhava” a todos. E isso, certa vez me valeu. Estava brincando o carnaval no Higino quando, por alguma bobagem, briguei com um dos Gracie, o Robson, o único “folgado” da família. Acabei na delegacia, na frente de um delegado brabo, apelidado de “Japonês”, que não parava de me esculhambar, com promessas de me deixar preso durante o carnaval. Até que me perguntou se tinha moradia em Teresópolis. Fui rápido: “estou na casa do Moacyr Borelli; sou seu sobrinho”... E ele, com cara de espanto: “porque você não me falou isso antes, rapaz! “E às gargalhadas me pegou pelo braço, convidando: “Vamos tomar um café; me desculpe”... E em meia hora contou algumas façanhas do Borelli, ordenando depois que seus auxiliares me levassem de volta ao Higino. Certo dia, Rosinha ainda nova, voou para o outro lado; talvez o Todo-Poderoso necessitasse de mais alegria por lá. Moacyr virou tristeza, pois o amor que a ela devotava era imenso e intenso. Mas ficaram as suas duas princesas - Andréa e Thereza, que o fizeram retomar as forças que havia perdido. De tanto amor, passou a ser Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 381
também “mãe” e até a ajudar nas tarefas de casa. Notava-se um cuidado sem limites com as filhas, uma superproteção, que “às vezes até incomodava”. Mas era o amor, a vibração por elas serem também, super-especiais. Andrea, com jeito ativo e esperto da mãe, tocava um violão com muito jeito e arte, que deixava o pai vaidoso. E Theresa, com os olhos do pai e não menos artista, criava miniaturas incríveis, personagens de um mundo encantado, como foi o de seus pais. Nessa época, durante alguns anos, estivemos juntos nos fins de semana e o buraco comia solto. Jogávamos dez a quinze horas do jogo que ele era mestre. E eu me divertindo com o papo que acontecia e me deliciando com os bolos e outras iguarias que as filhonas preparavam. Um dia, o rim cismou em não funcionar como devia e Moacyr foi reencontrar Rosinha. E devem estar fazendo os do céu, morrerem de rir. Aqui, ficaram as saudades, que são muitas. Mas pra mim, ainda continua a sua presença, pois, como nos “quadrinhos”, os heróis nunca morrem.
Os Mottas Rosinha, de quem estava falando, era uma das três irmãs, filhas de meus padrinhos, “seu” Motta e dona Laudelina. As outras duas, Olga e Tude, não eram menos especiais. Todas, muito bonitas com predicados que transbordavam. Podia-se mesmo dizer que reinavam em Teresópolis. Tude, de voz especial e afinadíssima, poderia ter sido cantora de sucesso. Mas, naquela época, nem pensar a “filha do seu Motta” virar cantora profissional. Sobrou cantar aqui e alí, na casa dos parentes e amigos ou quando o prefeito de Teresópolis a convocava para um saráu. Perdemos uma bela e talentosa cantora que casou com Mário Fialho Valadares, figura simpática e eu me prazerava em freqüentar a casa dos pais dele, bela mansão. Era uma casa de “bacana”, com piscina - um luxo na época - caminhos, escadarias e belos jardins. Um lugar mágico para mim. De Tude e Mário nasceram os filhos Mariozinho e Marília.
382 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
O primeiro é Moacyr e o terceiro o primo Jacy, ao lado de Mariozinho de Oliveira, o”Milonga”, da famosa turma dos “Cafajestes”, do Rio. Anos 40
Meus padrinhos Laudelina e Motta, com a neta Thereza
Rosinha com fantasia de papel crepon para o banho da piscina Sloper, no Carnaval
As irmãs Rosa, Tude e Olga.
Rosinha
Andrea com Maria Isabel
Cecy, Hilda, Rosinha e Thereza Andrea com um aluno
Rosinha filha de Thereza
Heliane e as filhas, Bianca, Nina, e Marion.
Meus padrinhos com filhas e netos.
Pintura de Olga. Igreja Santo Antonio em Teresรณpolis.
Olga era da pintura e foi, sem saber, minha incentivadora na arte, quando eu ainda vestia calças curtas. Um de seus quadros, pendurados na sala de estar da casa dos padrinhos, retratava uma paisagem rural, com lua azulada. A árvore em primeiro plano, na verdade um pequeno galho real, colado ali, oferecia a terceira dimensão. Lembro-me de o ficar contemplando, extasiado. Casada com José Carlos, muitas vezes meu parceiro no buraco, parecido com Clark Gable, tiveram cinco filhas, não só bonitas como também especiais - Helena, Heloisa, Heliete, Heliane e Isabel - todas casadas com um time de respeito- na ordem - Francisco, Dr. Julio, Pedro, Alain, e Paulo. Meus padrinhos, Motta e Laudelina, já eram amigos de meus avós Antônio Bento e Maria Mendes, quando Olga Motta - meus pais eram ainda bem novos. De nome completo Antônio Carvalho da Motta, nasceu em Portugal, no Lozar do Oiteiro, Freguesia de São Miguel de Carvalho, Conselho de Celorico de Basto, Arquidiocese de Braga, em 21 de Setembro de 1894. No dia de seu aniversário, em 1908, embarcou em Leixões, no vapor Corcovado e chegou ao Brasil no dia 5 de Outubro. Trabalhou inicialmente em algumas casas de “secos e molhados”. Numa delas, em São Cristovão, de Manoel da Cunha Brandão, conheceu Laudelina, a filha do patrão, uma carioca, nascida em Janeiro de 1899, com quem mais tarde se casou.
Meus padrinhos
Em Teresópois, Mimi, Odete, Milton, Helio e eu.
386 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Vó Maria, Mimi, José, Odete, Idalina a mãe. Abaixo meu pai Armando, Cely, Helio e eu.
Eu e a madrinha Laudelina.
Maria Isabel
Mario Valadares, marido de Tude, a madrinha, Rosinha, Cely e Helio
As manas Thereza e Andrea.
A linda Rosinha
Nosso pai, eu e Helio, em Tere.
Parte da casa dos meus padrinhos, na Paraguassu.
Os tres homens são Antonio Bento, meu avô materno com minha mãe no colo ao lado da minha avó, Seu Brandão pai de Laudelina e a direita meu padrinho Motta.
Na casa do padrinho, Mimi, Rosinha, Olga, Odete, Tude, vรณ Maria, A Madrinha Laudelina e nossos pais. Meu padrinho Motta, eu, Cely e Helio.
Rosinha
O padrinho, Olga, Mimi, Odete e Rosinha
As Mottas, irmãs, primas e sobrinhos.
Alain Gaubert e Heliane com as filhas Bianca, Nina e Marion e já ganharam um neto Zé Carlos e Olga
Como em certa época a família do patrão foi para Portugal, o padrinho se empregou numa casa da Rua Marechal Floriano, chegando em 1913 à gerência parcial, quando estourou a Iª Guerra Mundial. Perdeu o emprego, na redução de despesas, mas em 1915 já estava trabalhando no Moinho Soares, na Rua Camerino, 92, de José Antônio Soares, que ele passou a considerar, pelo resto da vida, seu melhor amigo. Com a morte do patrão, “seu” Motta virou gerente e, finalmente, o moinho passou a ser comandado por ele, em 1926, o que foi feito até 1938. Mais tarde retirou-se da empresa que se fundira a outra e nesta altura já possuía o seu moinho, que foi vendido posteriormente, para adquirir terras e propriedades em Teresópolis. Casando-se com Laudelina em 1917, foram morar na Rua São Januário, 269, em São Cristovão e mais tarde na Coronel Brandão, 199, onde nasceram os filhos Paulo, Olga e Rosa. Em 1941 mudou-se com a família para Teresópolis, instalando-se na Rua Paraguassu, 297, mas estiveram morando antes na Ilha do Governador e outras localidades. O filho Paulo, que era afilhado de meus avós Antônio Bento e Maria Mendes, morreu cedo, em 1937, com 20 anos, após um acidente. Olga, a segunda filha, nasceu em 4 de Abril de 1920 e seus padrinhos foram José Bento Mendes e Angelina Rosa Mendes, irmã de minha avó. Rosinha nasceu dois anos depois, no dia 4 de Janeiro. E a caçula Tude, nasceu em Portugal, no Minho, em 3 de Maio de 1923, numa visita da madrinha à “terrinha”, mas chegou ao Brasil, logo depois, aos 7 meses. Toda essa família fazia parte também da nossa. Nas férias de julho e de fim-de-ano encontravam-se e tudo virava festa. E para aumentar a turma, a nossa vovó Maria, as tias Mimi e Dedé e algumas amigas, eram presenças certas. Os padrinhos moravam em um belo casarão antigo, amplo, de pé-direito alto, como se tem nas fazendas. Quintal imenso para as minhas pequenas pernas naquele tempo. Ali fui apresentado a galinhas vivas, pé de milho e batata, hortaliças, fruteiras e outras naturezas. E adorava ajudar o padrinho a tirar batatas da terra, colher Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 391
espigas, alimentar o pessoal do galinheiro - o que me deixava com alegria imensa. Minha madrinha Laudelina, que eu chamava de “dindinha”, era de uma personalidade extraordinária e amada por todos. Era quem me abastecia a toda hora de guloseimas, talvez nem percebendo como eu adorava isso.
Nossa segunda cidade Na época, havia um jeito europeu na cidade, principalmente no estilo das casas. Isto, talvez, herança de nascença, pois Teresópolis foi colonizada por ingleses, no tempo de D.João VI que trouxe ao Brasil muitos comerciantes da terra da Rainha. Um deles, George March, em 1820, implantou na região a Fazenda dos Órgãos, conhecida também como Fazenda March. Outros foram chegando e, em 1855, criaram a Freguesia de Santo Antônio do Paquequer. Só passou a se chamar Teresópolis em 1890, em homenagem à D. Teresa Christina, esposa de D.Pedro II. Este, muitas vezes por lá andou, hospedando-se na casa do Barão Escragnolle. Mas só no ano seguinte Teresópolis desliga-se de Magé, tornando-se município. A partir de então vai sendo a escolhida por franceses, alemães e outros povos europeus, não só para instalar ali casas de veraneio, mas também morar. Talvez pela altitude da cidade que beira 900 metros, pelo clima em torno de 17°C ou, simplesmente por sua beleza. Inicialmente, o que mais me fascinava era o trenzinho de madeira, Maria Fumaça, que subia lentamente a Serra dos Órgãos. E quem construiu essa estradinha de ferro de Magé a Teresópolis, foi José Augusto Vieira, avô de Mário Fialho Valadares, marido de Tude. No pé da serra, entrava mais uma locomotiva. E cada uma passava a puxar dois vagões. Havia as paradas, que me deliciavam, com os meninos vendendo pastel, amendoim torrado, cambucás, cocadas e o que se podia fazer. Era uma viagem de não se esquecer, que durava mais de três horas. Quando chegava à estação do Alto, nossa parada, uma festa, e a sensação de ter chegado ao paraíso. Cheia de gente à espera de parentes e amigos, e a rapaziada 392 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
O trenzinho “Maria Fumaça”
A mãe, eu Helio e Cely
Nós na pracinha
Em nossa casa de Teresópolis: Odete, a mãe e o pai, vó Maria, Mimi, Helio, Cely e eu de calça bombacha, que odiava.
paquerando, notando as meninas que chegavam. Como em Teresópolis, praticamente não havia táxi, a diversão continuava, pois o transporte para casa era de charrete. Sentia-me um príncipe em carruagem. Nos meus poucos anos, Teresópolis me fascinava. Meu padrinho Motta nos pegava bem cedo para excursões, ou seja, andar a pé no mato (Teresópolis era quase só isso). Colocávamos um chapéu duro, daqueles de explorador inglês, uma bengala que nos emprestava e íamos à represa ou ao rio Paquequer tomar banho, ao Parque da Serra dos Órgãos, Fonte Judith, Granja Guarani, Cascata do Imbuí, Quebra Frascos, Serra dos Cavalos e outros belos lugares. Foi o meu primeiro contato com a natureza de verdade. Nossos pais também nos levavam a várias andanças e o lugar preferido a pracinha do Alto, com seu lago lotado de filhotes de sapo e uma gruta de pedra e cimento, um tanto misteriosa, pra nós, na época. Inicialmente e durante muitos anos, ficávamos numa casa de meu padrinho, bem próxima à dele, na Paraguassu. Rua de terra batida, aonde chegavam vendedores ambulantes, em carroças puxadas a burro: leite, hortaliças, frutas e pão - esta última, a da nossa preferência. Lembro-me até hoje e dá ainda água na boca, ao abrir a tampa metálica e corrediça da carroça, fazendo aparecer aqueles pães doces de creme transbordante ou salpicados de açúcar cristalizado. Essa e outras lembranças me fazem sempre perceber que quando se é criança, tudo é mais delicioso. Também não me esqueço do cheiro que saía do fogão-a-lenha, das comidinhas que a mãe preparava. Quase todas as tardes, a programação incluía o Bar Ângelo, naquela época com cadeiras de palhinha na calçada e ponto de encontro de quem estivesse em Teresópolis. Para nós, um dos locais mais esperados, pelos deliciosos sorvetes que servia. Se fosse época de carnaval, dali íamos a piscina Sloper, para assistir ao esperado desfile de fantasias de papel crepon. Passeio mais longe era na Várzea, local do comércio, onde a mãe gostava de fazer as suas comprinhas. Mas se fôssemos chegar à noite, era certo cada um estar com a sua lanterninha, para não pisar em sapos, abundantes em Teresópolis. Naquela época, os postes, um aqui e outro bem acolá, com fracas lâmpadas, dei394 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
xavam a cidade em penumbra, ajudada pela neblina intensa, que sempre aparecia. Na hora do abastecimento da despensa, o escolhido era o armazém do “seu” Coelho, onde comprava-se tudo a granel. Mas, além das compras, haveria uma conversinha sempre animada. Por volta de 1954, papai comprou o terreno ao lado da casa dos compadres, e construiu a sua, projeto do mano Hélio. Hoje, nela moram, os sobrinhos Helinho e Célia. Nessa casa, a turma da rua já freqüentava e boas farras aconteceram. Depois, Hélio, já sócio da Sarte Engenharia construiu o condomínio Casa Grande - projeto do Prefeito Conde, e o papai comprou alí também, a casa 52. Projeto lindo, casa pequena, mas aconchegante, que mais tarde foi adquirida por mim, para dar continuidade à família em Teresópolis. Com o sucesso do condomínio, a Sarte construiu outros - Casa Kalipal, Casa da Serra, Casa da Fonte e Casa da Posse. Pela facilidade da compra, cheguei a ter mais casas nesses condomínios. Em 1979 adquiri o sítio Alto da Glória. Tive a sensação que ele me esperava. O nome não me dizia da glória como fama, como magnificiência; mas o máximo da bem-aventurança do lugar.
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 395
Localizado dentro da cidade, no bairro Posse, fora construído por um francês de bom gosto, ex-presidente da Belgo Mineira. Fez ele uma bela e confortável casa, com vários salões, seis quartos, suites, quatro lareiras e outros etceteras e ainda trouxe de sua terra lustres, arandelas, móveis e outros detalhes, que deliciam nossos olhos. De certa maneira há nela um conforto exagerado e confesso que me bastaria a casa de hóspede com seus três quartos. Todavia, como iria nela abrigar os amigos e a família, estava, portanto de bom tamanho. Mas o que me fascinou de verdade foram os 14.000m2 de natureza que a circundava. Tudo que ali havia, quase completava todos os meus sonhos de posse. Não a posse com desejo de ter, de possuir; mas o de conviver. Confesso que desde as calças curtas, certas coisas me fascinam. São árvores que se deixam subir; gramados para se deitar e olhar o céu; riachos de água pura; pássaros, flores, pés de jabuticaba, vagalumes, caminhos estreitos e aquelas pedras de rio, de formas arredondadas, coloridas de cinza chumbo, de certo porte e com reentrâncias que facilite nelas subir. E que estejam em um gramado. Fora dessas naturezas, gostaria de ter um coreto. Ainda não descobri porque me emocionam. Portanto, coisas para se ter me bastariam essas. Desses sonhos, só três o Alto da Glória não oferecia: a pedra, o riacho e o coreto. Este último, não há como construí-lo. Gosto deles com bandinhas das cidades do interior, com crianças brincando e casais de namorados. Esse conjunto é que me fascina. A pedra sei que já é possível construir uma como se deseja, igualzinha à natural. Achei, entretanto que seria uma pedra genérica. Não haveria nela história alguma. Mas o riacho não me contive e construí um. Mede não mais do que 50 metros. Desce ele sinuosamente entre pedras que roubei de um verdadeiro, até cair em um laguinho, também falsificado. Bem, para o rio funcionar, tem que abrir a torneira que escondi muito bem. Nesses anos, muitas emoções esse lugar me ofereceu: abençoado seja ele. E Teresópolis, continua sendo a cidade que adotei como minha. 398 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Gilda e Cida
No sitio, eu e Gilda, Luiz e Gisele, ValĂŠria, Vi e Bubu. Sentados: Ramon, Bia, Vanessa, Raquel e Cadinho.
O Ford do Moacyr Borelli
Mandinho
Moacyr no sĂtio
A pelada no sitio
Hora do rango.
No sĂtio Rey, Raquel e Gilda
OS ALBUQUERQUE SALLES & CIA
Saloca e Maria Luiza
Nelio, Gilda, Guesa, Tuta, Coó, Berê e Marise.
Maria Luiza, a guerreira. Dizem os maldosos, que “sogra devia ter só dois dentes: um pra doer e outro pra abrir garrafa”. A minha não era dessa turma, pois foi uma mulher especial e nosso amor, recíproco. O primeiro encontro poderia não ter sido bom, mas foi. Telefonou-me com a pergunta preparada: “minha filha está esperando um filho seu. E agora?”. Só pude responder: “Ótimo!, a senhora vai ganhar uma netinha linda, com o sobrenome Amorim. Foi o início de uma grande amizade e a oportunidade de conhecer uma notável mulher. Mãe de dez filhos, enfermeira que fez os próprios partos, foi sempre uma mulher de coragem. Mas, para se conhecer melhor a Maria Luíza, precisa-se saber de José Anastácio, o “Saloca”, seu marido. Não o conheci, mas ela e as filhas me contaram a sua história. Chegado de Pernambuco para se filiar ao Exército, seu sonho acabou transformando-se em martírio. De patente baixa, simpatizante do comunismo na época do Levante, acabou sendo o escolhido por oficiais superiores, para fazer explodir algumas dependências do Ministério da Guerra. A investida fracassou, pois os explosivos estouraram antes, fazendo-o perder quase todos os dedos de uma das mãos. Para completar, acabou preso. Apesar dos 402 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
constantes interrogatórios, não denunciou seus companheiros e nem os superiores. No dia do julgamento conseguiu fugir, talvez ajudado por altas patentes envolvidas. Para as filhas, o responsável pela fuga foi um “patuá”, entregue a ele por Maria Luiza, presente de uma mãe-de santo. Seja como fôr, “Saloca” fugiu e passou a ser procurado. De início foi para São Paulo, onde conseguiu emprego em cinema, local escuro, difícil de ser reconhecido. Maria Luiza foi também, deixando os dois primeiros filhos - Zezinho e Eurídice - aos cuidados de uma avó. Na terra paulista nasce a filha Berenice e, tempos depois, resolvem retornar ao Rio. Começa então longa peregrinação, não permanecendo muito tempo em um só lugar. Assim, moraram em Éden, Nilópolis, Nova Iguaçu, Meier, Madureira, Engenho Novo, Padre Miguel, Campo Grande e mais alguns. Foram momentos de grandes dificuldades, o que obrigou Maria Luiza a se formar em enfermagem na Escola Ana Nery e trabalhar em diversos hospitais do Rio. Para complicar a falta de dinheiro, outros filhos foram chegando: Cleonice, Laércio, Florenice, Avanice, Dionice, Berenice, Gildenice, Nélio Jorge e, finalmente, Marco Antônio. De outro casamento, do qual ficou viúvo, José Anastácio teve três filhas: Marise, Janete e Marly, sendo que a irmã Marise participou sempre com os irmãos por parte de pai, da vida em família.
Com uma turma tão grande, não precisa dizer que a casa estava sempre cheia, pois, juntavam-se aos amigos, os paqueras das meninas. Era uma tradicional casa de subúrbio, onde a movimentação e a alegria imperavam. Visitas quase diárias da pianista Mana e suas filhas Stelinha, Betoca, Sônia e Lúcia, amigas até hoje. Lá também aparecia o compositor Paulinho da Viola, a sua prima Dayse e a “tia” Áurea e Bira “presidente”, do Fundo de Quintal; mas a lista é enorme. Para facilitar a criação da “turma”, alguns filhos foram internos no colégio Madre Guell e lá ficaram até os 13 anos. Em casa, tomando conta da tribo, Saloca organizava e administrava, enquanto Maria Luiza distribuía as tarefas que a cada uma das filhas, cabia. Na sobra do tempo, o pai da “patota” devorava livros, enciclopédias e conseguiu adquirir uma grande e variada cultura, que passava para os filhos. Chegou a ter um quadro-negro na parede da cozinha onde, diariamente, dava aula sobre os mais diversos assuntos. Conhecia da álgebra ao direito, passando pela lingua portuguesa, corpo humano, astronomia e tantos outros. AsArmando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 403
Rogerinho e Hellen Berla
Casamento da BerĂŞ
CoĂł com Murilinho e Gabi
Maria Luiza quando mocinha
Marquinho com Matheus
Edna, Gilda, Tuta e Gabi
Beta e Ghesa
Mandinho e Rachel
Tuta e Beta
Marcinho, Rogerinho, Wilsom, Zezinho, Marcelinho e Jorge Luiz.
Mando e Rachel
Marquinho, Gabriel, Bebel e Fernando
Alexandre e DĂŠbora com os filhos Pietro e Manuela
Ghesa, Beta e Bily
Paulo, Maria Luiza e eu
Guesa, Alexandre, Maria Luiza com Bia e Laercio
Eu e a afilhada Beta.
Mandinho, Luiz, Laercio e Murilinho.
Nelio, Guesa, Coรณ, Euridice e Tuta
Os primos, Luiz, Murilo, Laercio e Mando, Beta, Gabi, Bebel, Juju, Paulinha e Bia
Ghesa, Tuta, Eliane, Coó, Gilda e Berê
Luiz, Guesa, Beta e Bily
Juninho, o anjo da família.
Coó e Gabi
Paulinha e Laercio Juju, Bia, Tuta, Mando e Beta.
Mandinho com Matheus e Gilda Zezinho e Rivanda
Gilda e Tuta. Vivi, Bernardo, Bia e Mando, VitĂłria, Marise e Mimi.
Chiquinho e BerĂŞ
Gilda e Tuta.
Mando, Mulilo e Luiz Sergio
Euridice, eu e Tuta.
Bebel, Euridice e Alexandre.
Bibica na pose.
Malu
Coรณ e Malu Laurinha
Deco e Bia
Paulinha e Matheus
Laura
Maria Fernanda, filha da Gabi
Bia e Laura.
Beta, Tuta, Bebel, Gabi, Murilo, Bia, Mando, Paula, Berê, Laercio e Luiz. Abaixo: Juju, Maria Eduarda, Euridice, Coó, Malu, Gilda e Guesa
Luiz Sergio, Guesa, Beta e Bily
Laercio
Glorinha, tia de todos
Bernardo
sim ia ele ajudando na formação curricular da turma. Com excelente senso de humor, como todos contam, Saloca era quem fazia a divisão da comida nas refeições, pois os filhos eram muitos e o “rango”, nem tanto. E inventava pratos de qualquer sobra, pois nada podia ser desperdiçado. Para demostrar que a paz deveria reinar em casa e que os irmãos não poderiam se desentender, criava junta, a viralata “Cigana”, a gatinha “Mimática” e os ratos “Cosme” e “Damião”. Se os inimigos naturais poderiam viver em harmonia, porque não os filhos... Enquanto isso, nos hospitais, nas ambulâncias, a mãe Maria Luiza se transformava em guerreira, com um só objetivo: criar bem, a numerosa família. E foi conseguindo, não só os orientando como devia, mas possibilitando-os seguir as carreiras que iam escolhendo. Ajudava ainda quem dela precisasse, não só em seu ofício de enfermeira, mas atendendo solicitações de qualquer natureza. Era total a solidariedade para com os outros. Enfim, os filhos cresceram e foram formando outras famílias. E viu os netos chegando. Nós lhe demos Bianca e Mandinho; de Cleonice (Coó) e Paulo, nasceram Murilinho e Gabriela. Hoje, teria a bisneta, sua xará Maria Luíza, a Maluzinha, que chegou dos papais Isaac e Gabriela e a mais novinha, a Maria Fernanda. Também os bisnetos Daniel e Leonardo, filhos de Jorge Luiz e Sheila. Além do neto Jorge Luíz, Zezinho e Rivanda lhe deram outros: Marcelinho, Marcinho, Rogerinho e Claudinha. De Marcinho, Maria Luiza ganharia a bisneta Valentina. E Rogerinho, o China, o bisneto Pedro. A filha Eurídice que se casou com José Ruchiga, lhe deu os netos Alexandre e Bebel; Alexandre, casado com Debora são os papais de Pedro e Manuela. E Bebel, casada com Fernando deram para Maria Luiza os bisnetos Gabriel e Jade. De Berenice (Berê) e Ary do Rosário, Laércio, casado com Fabiana, a bisneta Ana Beatriz e Paula o bisneto Matheus; de Avanice (Tuta) e Júlio Baía, a neta Juliana que produziu as fofíssimas Maria Eduarda e Ana Júlia; De Florenice (Ghesa) e Ubiratan (Billy) a minha afilhada Roberta, irmão de Luís Sérgio, que chegou do papai Sérgio. Da filha Dionice (Bubu) e Vilson (Vi), o neto Juninho, que virou anjo. De Nélio e Conceição, Pedro Paulo e de outra produção, Camila. Marquinhos e Terezinha ainda não produziram. 412 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
E, finalmente, Marise e Moiséis: Vagner (Vavá), Miriam (Mimi), Vilma (Vivi) e Valéria, de quem nasceu Bernardo e Vitória. Anos depois, Saloca foi absolvido, talvez por influência dos superiores que estiveram envolvidos no levante. Foi promovido e recebeu os soldos atrasados. A situação melhorou. Nos seus últimos anos de vida, Maria Luiza já viúva, se sentia recompensada pelo esforço. A filharada estava bem encaminhada na vida. E melhor, amigos, solidários, alegres, o que não falta nos encontros quase diários, quando tudo vira festa. Talvez para celebrar o esforço de uma mulher que guerreou pelo amor aos filhos e, com certeza, ainda dá uma ajudazinha lá de cima. Louvada seja Maria Luiza, minha sogra.
Maria Luiza com Bernardo
Vilma, Maria Luiza e Marquinho
Maria Luiza e Roberto
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 413
Eu, Paulรฃo, Gilda e Coรณ.
Marquinho e Teresa
Bebel, Alexandre, Euridice e Ruchiga
Eu e Bebel
Mando, Rivanda, Vavรก, Marise, Gilda com Bianca, Rogerinho, Jorge Luiz, Zezinho, Marcinho, Nelio e Wilsom
Malu
Marquinho, Laercio e Nelio
Mando, Regina, Mimi, Vivi, e Vitรณria.
Gilda, Guesa e Bily
Maria Luiza, Edna, Gilda com Bruno, Bubu e Bia.
Vi e Bubu
Laercio, Paula, Mando, Vivi, Juju, Luiz e Mimi.
Luiz Sergio
Moises e Marise
Beta e Juju
Gilda e ValĂŠria
Marcelinho
Paulinha com Matheus e Flavinha com a filha Samantha
Tuta e Julio Bahia
Eu e Gilda
Ary, Seu Murilo e Gabi
Bernardo Laercio, Paula, Alexandre, Marquinho, Bebel e Bia
Gilda, Berê e Tuta
Marcinho “Popó”
Eu com Euridice
Pedro, filho de Alexandre e DĂŠbora.
Matheus nenem Bia e Deco
Eu, Guesa e Gilda
Esposa de Bernardo e a filha Maria Eduarda.
Sheilinha
Juju
Paulinha
Maria Eduarda e Malu
Marcio Dick
Magal e tia Glorinha
Bernardo
Luiz e DĂŠbora
Marquinho e Malu
VavĂĄ e Marise
Marcinho e Valentina
Diva e Beta
Malu
CHALÉ Um lindo lugar Não conheço lugar mais lindo do que este: coqueiros, gramados, flores, tudo perfeito para adornar um belo chalé alpino que, por dentro, parece casa de boneca. Ao lado, uma pracinha de chão de pedra, com bancos e lampiões, que nos faz pensar em tempos dos jograis. Lugar ideal para serenatas.
Bia e Gabi no Chalé
Na parte da frente um deck de madeira servindo de varanda, para apreciar as embarcações que de vez em quando passam no canal, semelhante a um largo rio beirando o lugar; e que ainda se pode ver garças, e outros pássaros e até capivaras ocupando o manguezal. Se não bastasse, a cortesia dos anfitriões ao receber todos que ali chegam, para colocar as fofocas em dia e, de lambuja, brisa fresca, que sempre tem.
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 421
Não precisava mais, pois acima disso é exagero. Mas tem: piscina, sauna, carne na churrasqueira e tudo que uma boa vida requer. Esse lugar maravilhoso, localizado no condomínio Marapendi; na Barra da Tijuca, ficou conhecido simplesmente por “Chalé”. E os felizardos que ali moram, são os meus cunhados Paulo e Coó, esta, uma das treze irmãs da Gilda. Não precisa dizer que nosso point preferido é este. E é no Chalé que se festeja qualquer evento familiar. Já virou até galeria de arte, quando foi montado um salão de lona, com 120m². Uma exposição inesquecível. Não só para mim, mas para todos que ali estiveram, pois até hoje perguntam, quando realizarei outra, no lugar. Apesar do belo apartamento oficial, em Copacabana, o casal não resistiu a beleza do lugar e o Chalé virou moradia permanente, quando foi construído um anexo. É neste lugar, portanto, que a família pode ser encontrada, além dos habitués, que aparecem. A lista é imensa, mas retirando a parentada que é grande, cito alguns: Hélio “Roma”, dono dos móveis e cozinhas “Roma Mobili”, cujo único defeito, é ser flamenguista. Imperdoável. Mas para contrabalançar esse desatino, está sempre acompanhado da esposa Vera, artista plástica das melhores, com várias exposições por aí. Portanto, quem quiser ter casa bem decorada, é só procurar o casal, que volta e meia está acompanhado da simpática filha Adriana, “casadinha” com Zezé e dos netinhos Rafael e Luiza. Às vezes, também os filhões gêmeos Alexandre e André aparecem com as esposas Marcela e Renata e filhos. Outro, sempre de prontidão e churrasqueiro-mor do pedaço, é o xará Armando Soluri, advogado misturado com publicitário e corretor de imóveis. O filho Alexandre, publicitário também chega por lá. 422 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Gilda, Lima e Nelio
Berê e Rey
Coó, Guesa, Verinha e Aparecida, a “Santinha”.
Helio e Vera
Hildinha, Gilda, Luiz, Coó, eu e Ieda. Gilda e Malu
Bia, Gabi e Paula.
Eu com Carlos Alberto, o “capita”.
Gabi, Murilinho e Bia
Tuta, Gilda, Fernandel, Coó e Hilda.
Bia e Malu
Paulo recebendo amigos
Seu Murio e Dona Paezinha, com Murilinho
Tuta, Pery e eu. Sonia, Hilda, Vilma, Gilda. Coรณ, Ieda, Guesa
Stelinha e Diva.
Magali do Magal e Gilda
Marcos e Malu Guesa, Tuta, Eliane, Coó, Gilda e Barê.
Hora da “Boca Livre” no Chalé.
Gilda e Mandinho com Luiz Carlos, Ieda e Vavá.
Nelio, Soluri e Cleide e gente que sempre chegava no Chalé.
Vilma, Sonia, Hilda, eu e Gilda
Bia, mãe de uma bela turma e amiga inseparável da dona da casa, não podia faltar. Não só pela simpatia, mas pelo papo sempre divertido. Hoje, é anja, como a amiga Wilma . E tem muito mais gente especial que “fila” ou um dia “filou” o lugar: Luiz Carlos e Ieda, Diva, Margareth, Dr Diogo, “seu” Murilo, Cleide e sua Aparecida “Santinha”, Ferrari e Alice, Stelinha e a mana Betoca com João Luiz, Flávio Snell, Faissal, comandante Geraldo, Elias Nascimento, Cezinha, Reynaldo de Jesus, Beth “Balanço”, Luiz “Maluco”, Adalgisa, de Teresópolis, Ney e sua turma de casa, a divertida Sonia Ramalho, Xavier, o “Xaxa”, Lima e Cleidinha, Paulo Rocco e Regina, Luiz Guimarães e Hildinha, o pessoal do Fluminense, Hamilton, Paulo Zacone, Silvinho, Valbert, Sérgio, Amaral e Cristina, o Dr. Arthur (Tutuca) e Liliane. Também cantores como Pery Ribeiro, Leni de Andrade, Billy Blanco, Tom da Bahia, Sidney Magal com sua Magali, Wando e outros. De Santos chegavam Eliane e a filhona Flavinha, que estão agora nos states. Jogadores e técnicos de futebol, como Parreira, Zagalo, Lazaroni, o “capitão” Carlos Alberto, Admildo Chirol, Jairzinho, o “ furacão da Copa”, Adílio, Branco, e por aí afora. Da “telinha”, já passaram ou passam por lá, Fábio Assumpção, Cristiane Oliveira, Bruna Lombardi e Ritchelli e até certa vez Tarcísio Meira entrou com seu aero-barco no gramado, vindo do canal, para conhecer a turma. Ali pousaram também helicópteros, ultraleves, de gente mais apressada. Além dos amigos dos filhos, Gabriela e Murilinho, que eram muitos. Este era, portanto, um lugar paradisíaco, gostoso de estar, de se bater um bom papo e não faltava a comidinha gostosa e a diversão. Daí afirmo: Como é bom ter cunhado assim ... Pois não tem que arrumar a bagunça depois e nem pagar as contas. Lugar melhor não existe! Deixei para o final a tristeza, para não apagar o brilho do lugar. Nossa anfitriã Coó, mulher fantástica foi convocada pela turma de cima, para alguma tarefa especial. E só pode ser assim, pois a convocação foi bem antes do previsto. Pra nós e pra todos, perda irreparável, que fez esse belo lugar perder a graça e ser desativado. Uma grande tristeza...
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 427
Muita gente chegava no ChalĂŠ nos fins de semana. Eu, Cezinha, Tom, Rey e Mandinho.
Tem gente que chega de ultra-leve.
Eu com Tutuca e Liliane.
Murilo, Bily, Nelio, Lima, Paulo e Soluri.
Rey, Paulo e Tuta.
Flavinha
Ferrari
Mando, Gilda, Xaxá, Zezinho,
Murilinho
Laercio, Bia, Paula, Beta, Juju, Mando, Luiz, Vivi e Mimi.
Marise, Luiz, Coó, eu e Gilda, Helio e Vera, Margareth e Berê.
A turma do fluminense
Exposição que fiz no Chalé.
A família aconteceu Gilda, o amor da minha vida.
Gilda
O aparecimento da Gilda em minha vida, era contada por aí pelo amigo Reynaldo de Jesus, coroa levado, que todos conheceram muito bem. Ele afirmava e dizia que: “Certa vez, um nobre que gostava de aventuras perigosas, participou de uma expedição pela selva amazônica, em busca do famoso inglês, coronel Fawcet, que ali desapareceu, sem deixar vestígios. Passaram alguns anos e nenhuma notícia do nobre e já se pensava ter sido ele devorado por alguma fera ou capturado por índios perigosos. Para encurtar a conversa, acabou Armando encontrando na mata, linda índia botocuda e não resistindo aos seus encantos, se enturmou na tribo. Com seu jeito de levar todo mundo no papo, acabou convencendo o cacique a carregar a botocuda para a civilização. Assim, certo dia, aparece o nobre Armando, com a índia Gilda. De princípio, a botocuda se espantou com a cidade grande, com os costumes dos brancos, mas, rapidamente, se adaptou. Hoje, anda de carro importado, mora na Barra da Tijuca em apartamento Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 431
duplex e passou a ser a primeira índia “emergente”. É ainda pintora, artista gráfica, escultora, estilista e tem sítio em Teresópolis, só para estar em contato com a natureza e lembrar dos seus tempos na Aldeia. E, como um milagre, dele nasceram um príncipe e uma princesa, como nos “Contos de Fada”. Isso é o que contava a todos, o “moleque” Rey; mas o encontro, na verdade, foi em outra selva, a de asfalto e concreto e quem conta agora, sou eu: Quando avistei aquela moreninha de covinhas, sorriso permanente, lindinha, vinte anos mais nova do que eu, fui avisando a todos: “ninguém tasca! - ela é minha! Sabia que na vida ia encontrar uma pessoa muito especial. Não porque merecesse; mas haveria de existir alguém que me aturasse e, principalmente, gostasse dos meus defeitos. Devo dizer que demorou, pois aliança no dedo, só aos 45. Paciente, determinada, Gildinha também quis e logo nasceu fofíssima Bianca, que aos cinco aninhos, fez questão de escrever com a sua letra, a mensagem da capa do convite: “Papai e mamãe vão se casar”. Festa que ela queria, bonita, na casa dos manos Helio e Selma, e bufê inesquecível da cunhada. Um luxo!. Com a benção do padre Nivaldo Machado, da igreja Nossa Senhora das Dores, casamos em belo jardim, ao som do violão do maestro Tom da Bahia e na presença da enorme família e centenas de amigos que foram verificar se era verdade. Lá estava também o filho Mandinho II, só que não pode assistir a cerimônia, pois se encontrava na barriga da mãe. Por dentro.
432 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Nós com Bianca
Nós com Bia e Mando, no Chalé
Gilda com Mandinho
Nós
Começamos uma vida maravilhosa, que vai sendo assim, até agora. Irreverente, alegre, palhaça, solidária, não há quem não goste de Gildinha, principalmente a garotada, amigos dos filhos. E Gilda foi se descobrindo, não só para o meu espanto, mas para o dela também. Possui habilidade para as artes, muito mais do que a minha, que já estou no ofício há mais de 50 anos. E parece surgir do nada, de repente.
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 433
Certo dia resolveu também pintar e logo apareceram telas impressionistas belíssimas que, de início, não acreditei ser possível. Mas estavam ali. Foram surgindo outras, cada uma mais atraente e os clientes apareceram. Tempo depois, o espanto foi maior. Vejo um monte de barro e ao lado, um rosto já formado, com linhas expressivas: Perfeito! Agora, já era demais, pensei. Outras belas esculturas foram surgindo: mulheres, meninos, que de barro passaram para o bronze - todas em movimentos e expressões, que podia ser dito, de alguém que conhecia essa arte há muitos anos. E estava só no começo. Sabia ser ela boa desenhista e preparada, pois se formou em artes gráficas, mas chegar a esculpir, não esperava por isso. Depois, vieram as figuras modernas e aí “arrebentou”! E eu cada vez mais perplexo, por sua habilidade e conhecimentos técnicos e artísticos, que pareciam surgir do nada, ao mesmo tempo, extraordinários. Essa é a Gildinha nas artes. Menina talentosa. Mas Gildinha não é só boa nas artes, não. Podia dizer que é um espetáculo dançando um sambinha, dizendo no pé. E faz com tanta graça e molecagem, que certo dia não me contive e compuz um samba que Tom da Bahia musicou:
Gilda
434 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
De pele morena ardente e corada vestindo de cores a saia rodada Cabelos com flores com fita vermelha da cor dos teus lábios morango, cereja. Gildinha morena cigana danada levanta, levanta, a saia rodada me encha de amor Gildinha danada com a saia rodada Rodando a saia dá voltas no ar que mostra teu corpo moreno gostoso, dourado, mexendo provocadamente Gilda cigana selvagem, sacana, tão bela de amor e paixão, com gana, te agarro te levo te amarro no meu coração. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 435
Apesar de que nesse “departamento” ela sempre fez sucesso, Gildinha é craque também nas finanças. E a minha esperteza, foi transformá-la há muitos anos, na “dona” do dinheiro aqui da casa. É ela quem sabe onde e como gastar; o que pode ser comprado ou não. As economias apareceram. Só uma coisa me atrapalhou: hoje recebo mesada da patroa, e aproveito para reivindicar aumento: tá baixa! Em compensação, vivo na “moleza”. Até quem escolhe e compra os carros aqui é ela. Nem me diz que marca será. Simplesmente chega com ele e avisa que está na garagem, emplacado, segurado e me entrega a chave. Assim foi comprando apartamentos, vai fazendo as obras e o que se tem em casa, ela é quem “peitou”, como se diz. Sabe das coisas e é audaciosa essa menina... Afastada dos estudos há muitos anos, certo dia me diz: quero entrar na Universidade, para fazer Curso de Moda. Nessa ocasião estava montando uma confecção em casa com a sobrinha Giselle, mas dizia que iria parar, para se especializar na profissão, apesar de que a experiência inicial estava dando certo. Como já sabia costurar bem, aprendido também sem professores, não cheguei a duvidar que conseguisse passar, mas pensava que o longo afastamento dos estudos, poderia ser um empecilho. Não foi. Passou em 2º lugar, e nessa altura, nada nela me surpreendeu mais. Como um vulcão, vai pra cima de tudo e consegue realizar qualquer objetivo. Acompanhei bem de perto os seus anos de universidade. Horas e mais horas no estudo, desenhando, lendo e aprendendo, fez um curso brilhante que terminou em trabalho final sensacional em formato de livro, que intitulou “A Forma Inesperada da Arte”, em que mostrava a influência da arte na moda, com vários modelos criados. O trabalho chegou as mãos do fundador da Universidade Estácio de Sá, que gostou muito da obra. Dias depois, recebe convite da esposa Sandra Milanez, para ir a casa de João Uchoa, pois ele quer conhecê-la. Também artista plástico, o diretor lhe diz que deseja editar o livro de seu trabalho e mais do que isso: faz o convite para que seja uma das dirigentes do Centro de Moda, que está para ser criado na Universidade. E assim foi feito. Durante um 436 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
bom tempo dirigiu o Centro, e há pouco dele se desligou para ajudar a filha Bianca a desenvolver a Salles Amorim, uma confecção especializada em uniformes, que já está fazendo sucesso. Mas na Estácio colecionou amigos que ficaram: Lúcia Barros, Beth Rosa, Mônica Costa, Sandra Milanez, Laura Miranda, Cátia Gimenez, Sílvia Helena, Hilário, Valdete, Maria, Danielle Luquette, Solange, Lincoln, Gláucia, Seu Gouveia e Eduardo o “Sorriso”, D. Maria José, Sônia Santoro, Mônica, Camila, Newma, Renata, as alunas Michelle, Carolina, Andréa, Roberto, Gilberto, Eny e outros mais. É assim a Gildinha, que adora conquistar amigos.
A professora de modelagem do Cento de Moda, Sonia Santoro.
Lucia Barros a coordenadora de eventos
Beth Rosa, Supervisora
Gilda com estagiárias do Centro de Moda, Carolina, Camila e Andrea
Gilda, Beth, Renata Miranda, Consultora de Moda e prof. Hilário.
A produtora de moda Monica Costa e Prof. Hilário.
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 437
Sandra Milanez, diretora
Marilza, Beth, Solange, Suzy, Catia Gimenez e Luiza.
No mais, de espanto em espanto, vejo também, que na multiplicidade do seu fazer, vamos ficando parecidos. E o melhor de tudo é que continua sendo a minha garotinha, as vezes encrenqueira, pois nada pode ser totalmente perfeito, mas também lindinha, gostosinha, danadinha, moleque, e que torço para vê -la feliz. As brigas são poucas, principalmente quando passo os 70 canais da TV em todos os poucos segundos, ao mesmo tempo em que escuto noticiário no rádio e um CD. Diz que sou doido. E eu digo que é por ela e lembro até do bilhetinho que lhe entreguei um dia e continua valendo:
“Decidi. Vou colecionar luzes. Vou sair a procura de poentes, nascentes e até meios-dias. Quero luzes amarelas, verdes, azuís e até cor-de-abóbora. Luzes sem sombras, luzes escancaradas. Quaando tiver Todas reunidas vou colocá-las em seu olhar, para que nunca veja o cinzento desta vida. Acho que estou conseguindo Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 439
Esculturas da Gildinha
Telas impressionistas de Gilda
Nรณs
Os filhotes maravilhosos Divinos. Fantásticos. Lindos. Amorosos. Inteligentes. Bondosos. Carinhosos. Solidários. E, no meu limitado da linguagem, fico por aí. Mas se alguém souber de mais algumas virtudes, pode acrescentar, pois eles são tudo isto e mais alguma coisa. Claro, para os pais são sempre assim.
Bianca
Bianca nasceu bem antes de casarmos. Assim reinou os primeiros anos, pois era a nossa princesa. Logo que andou ereta, mostrou ser vaidosa, pois bastava ver a máquina fotográfica, para fazer pose de artista. Nos primeiros anos, muitos bilhetinhos lhe deixei e até musiquinha fiz a letra, que Tom da Bahia musicou, mostrando quem era essa menininha: Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 441
Quando diz que não quer Bate o pé que quase afunda e não adianta castigo, nem palmada na bunda E seu quarto de dormir, uma eterna barafunda. Do sapato é inimiga anda de pé no chão mas do batom é amiga de todo o coração Alegre, brincalhona e feliz, viveu assim os seus primeiros aninhos e não gostava de perder para nenhuma amiguinha, fosse qual fosse o jogo. Certa vez, a coleguinha do apartamento ao lado, lhe contou que seu pai possuía um revólver 45. Ela retrucou no ato: “o meu tem um 53” Aos cinco anos ficou feliz, pois os pais se casaram. Mas, tempos depois, passou a haver uma coisa que lhe deixava sempre triste. E era relacionada ao colégio. Boa aluna em todas as matérias havia uma danada, que lhe tirava do sério.
Eu com a Bibica
442 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Nรณs com Bia
Certa vez, para deixá-la mais aliviada, contei essa historinha: Da matemática não gosta. Já procurei saber por que. Será que os números não lhe atraem? Subtrair, tirar de alguém, não gosta. Mas como gosta somar: duas + duas bonequinhas três + três sorvetes Dez + dez balinhas Multiplicar ainda não é tempo Só quando se casar Mas dividir já mostrou que sempre quer Números? Nenhum deles a atrai pode ser ordinal ou cardinal E decimal? Isto lhe faz mal e dá febre de 40 graus. Na verdade, 444 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
dos números só sobra o sete, que gosta de pintar. Mas, fração, nem pensar! Problema? nenhum pio isto lhe dá arrepio. Pensando bem, é melhor guardar as energias quando de verdade algum chegar Expressões? Ela tem muitas... -no olhar, no sorriso com duas covinhas e até no andar. É isso : Matemática pra ela é um bicho, não de sete cabeças, que número ela detesta. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 445
Mas bicho feio com dois chifres na testa vermelho e com rabo que todos chamam diabo Credo em cruz! sai pra lá avestruz! Pra finalizar essa historinha preciso de final feliz. Vamos lá: Eu também acho que essa tal de matemática é na verdade antipática: começa com “má” coisa ruim pra daná. Se continuar forma “mate” o que manda fazer com a gente. E pra terminar, tem o “tica” que só rima com titica 446 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Bia e Mando
Cada ano acrescentado ia fazendo a nossa Bianca mais carinhosa com os pais e com todos ao seu redor. E apareceram festinhas, bailinhos, os amiguinhos e os danados dos barzinhos. Nossa Bianca foi virando mocinha. Se quisesse ser artista plástica, dava pé, pois os poucos quadros espatulados que pintou, são lindos. No mais, continuou falando rapidinho, que parece, tem mais coisa que falar, do que possa imaginar. E se especializou em ter amigos: A turma é boa: Dadá (Daniele Doher), Cazinha (Camilla) e Bruno, Paula Sgarbi, Andréa (Teca), Aline, Dani (Daniela), a Dan-Dan, tia Francis, Nana, Paula, Mazinho, Andrea (Deca), Waldyr, Bruninho, Fred, Rodolpho, Robertinho, um monte de primos e primas e outros que posso ter esquecido. A Bibica enfim cresceu e se tornou nossa bela rainha (não é só olho de pai...), e continuou com os mesmos predicados da musiquinha, adicionado a outros, pois cozinha muito bem, e faz bolos de se lamber os beiços. É de boas prendas, fala inglês, é motorista, e já terminou a Universidade, com destaque. Apesar de ser uma “comunicadora”, resolveu seguir os passos da mãe e entrou na moda. Criou inicialmente com a tia Tuta a confecção Salles Amorim e hoje, com apoio de Gilda já está fazendo sucesso. Chegou o tempo de esperar o príncipe encantado. Mas eu espalhava que “não venham com essa moda de “ficar”, que boto pra arrepiar”. Para levar a nossa rainha, vai ser preciso ser encantado mesmo. Que não apareça aqui nenhum “chomilongo”, pois ponho pra correr. Quem se candidatar, vai ter que apresentar folha-corrida, atestado de idoneidade, carteira de trabalho, certidões negativas, pagamento do INSS em dia, extrato bancário e mais alguns badulaques. E tudo com firma reconhecida. Estão pensando o que?
E Deco surgiu Como foi sempre protegida pelo lá de cima, surge um dia André, o Deco, carregado de caráter, paciência, solidariedade, gentileza e outros atributos e conquista a nossa princesa. Além disso, Deco é desses de ajudar nas tarefas da casa. Quando é preciso pega na vassoura, rega o jardim, limpa a piscina e ainda é o churrasqueiro da casa. E faz ainda umas comidinhas gostosinhas. Bianca tem muita sorte... Construiram então bela residência e casaram-se, para a nossa 448 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Deco e Bianca
E os dois casaram-se
alegria. E é daquelas casas com piscina, churrasqueira, forno de pizzas e outras mordomias e não precisa dizer que vamos tirando volta-e-meia umas “casquinhas”, nessas coisinhas. Estão vivendo uma vida alegre e feliz, e a gente vai pedindo que anjos, santos e outros poderes, não tirem os olhos do casal, pois eles merecem muita felicidade. E a nossa torcida é total e temos a certeza que vai ser assim.
Mandinho, eu, Bia, Hilda e Aline
Bia e Rachel
Marcos e Gabi
Marta, mãe do Deco
Marcelo e Ursula
Carlinhos com Erica
Dadá, Casinha com amigas
450 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Carrobé pai de Deco.
Rachel e Bia
Bia
Os manos. Nossa produção
Dirceu, Tiago,, Marcos, Fernanda, Mazinho, Mary, e Lisle Casinha, Dadá e Paulinha
Samantha, Bia e Raquel
André, Marcelo, Deco e amigos
Casinha,Bia, Leandro, Aline, Nana e Juliana
Deka
Maria Eugenia, Luiz Sergio e Bia. Marcos, Dan Dan, Tiago, Robertinho e Carol
Dadรก, Paulinha, Amanda e Bia
Bia e Fernanda
Manu e Bia
Tina e Nana
Bia, Hilda e Aline
Tia Fafa, Robertinho, Deka e Bia
Bia e Dan Dan
Bia e Deka
Bia com Malu, Gabi e Casinha
Dadรก, Bia e Nana
Bia e Maria Eugenia
Alex e Nathalia
Gabi, Casinha, Isana, Dadรก e Paulinha
Bia, Erica, Rachel, Dani, Paula e Grazi
Vivendo uma vida feliz, surge então o ponto alto da união, pois nasceu a filha Laura, alegria também do vovô aqui e das vovós. E a minha alegria foi tanta, que com horas de vida, passei essa cartinha pra ela:
Laura Oi Laura, essa é a primeira carta de amor que você recebe. Neste momento, está completando umas 5 horas de vida, vida que a gente está torcendo pra que seja muito feliz. Nasceu lindinha e a família inteira vibrou. Os papais transbordando de felicidade, as vovós, os padrinhos, uma só alegria, como os amigos, parentes e o vovô aqui, que torcia pra você um dia chegar. O outro vovô não estava fisicamente, pois Papai do Céu o chamou cedo, pois andava precisando dele por lá. Mas pode ter certeza que ele está também transbordando de alegria com a sua chegada. No momento você tem dois palmos de altura, mas rapidamente a sua cabecinha vai funcionar e perceber que está morando numa bola azul que rola por aí, às vezes, um pouco complicada. Mas você vai saber viver nela. E vale então lembrar algumas coisinhas, pra facilitar. Uma delas é de ser atrevida, ousada,.. Grite, chore, ria... e ria até das bobagens que fizer, dos erros, pois os erros são sempre transArmando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 455
formados em lições de vida. E quando aparecer um fracasso, não ligue, eles vão sempre aparecer, mas não se deve deixar de continuar sonhando. Outra lembrança pra sua cabecinha: viva intensamente cada momento e mostre sempre quem você é, sem medo. Quando der uma “mancada”, algo errado, fale sem medo, “eu errei”, “me perdoe”...Quando necessário, “eu preciso de você” e com sinceridade, “eu te amo”. Isso sempre faz bem a gente. E melhor de tudo, perdoe sempre e procure o que de bom existe nas pessoas, mesmo que elas sejam bem diferentes de você. Finalmente, perceba que alegria nos dá em ser solidário, em fazer uma pessoa feliz. Não tem preço pra pagar essa alegria. Seus papais prepararam pra você um quarto de princesa, lindo mesmo. E na sua vida você vai ter “isso e aquilo” que eles vão lhe dar... Vai almejar ter, possuir, conquistar, pois a sociedade que vai encontrar aqui é assim. Mas não deixe de reparar também, que muitas coisas sensacionais, não custam nada. São coisinhas simples, como um pôr do sol... o cheiro de terra molhada, as cores de uma flor, um céu estrelado, as ondas se repetindo, beijando o areal e outras pequenas coisas que levam a grandes emoções e mostram a presença de Deus. Aposte nisso. É isso aí minha miudinha. Você já é muito amada e vai ter uma vida feliz! Tenho a certeza! Beijos do vovô Armando, 18 de maio de 2013
Laurinha e Matheus
456 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Aí escrevi esse bilhetinho, mostrando como ela é. Laura agora está assim: linda, moleque, voluntariosa, luta pelo que quer, dando até dentada e umas tapinhas. Não gosta de brinquedos formais. Prefere uma caixa de sapato, uma tampa de panela, celulares, brinca com meus pincéis, com qualquer pedaço de papel e o que vê pela frente. Enfim, mexe em tudo e quer saber o que está a sua volta, um excesso de curiosidade, o que é muito bom. Não gosta muito de comer o que lhe dão. Prefere apanhar qualquer migalha que está no chão e botar na boca. Assim já comeu até pedaço de lagartixa. Outro perigo é que adora subir em qualquer coisa que está acima do chão e subiu até no fogão. Se sobreviver a tudo isso, vai ser uma menina notável. Tem personalidade forte e, persistente como é, não vai desistir nunca de conquistar o que deseja. E vai ser gostada. Hoje, por onde anda conquista todo mundo, com seu sorriso inigualável, além dos acenos e beijos que manda, pois ainda não sabe falar. É assim essa linda molequinha, super amada pela mamãe Bia, pelo papai Deco, pelos avós e por todo mundo. Beijos do vô Armando
O gorduchinho com a mãe de Uma Pessoa Comum 457
Armando Amorim - Memórias
Mandinho O filhão nasceu grandão, quase pronto para servir o exército. Bitelão mais fofo do mundo, não havia quem não adorasse lhe apertar as bochechas. Aos cinco anos, era mais que fofíssimo muito engraçado e esperto. E não pude resistir e registrei como era:
O pai com Mandinho
458 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mandinho
Pinturas do Mandinho no mรณvel e uma das suas esculturas.
Pitcum, Pitcum, Pitcum Pôo, plaft, Plumm! Zafti - vooommm, vom , vumm!... É assim a voz do Mandinho brincando de carrinho, cavalo ou qualquer bichinho Garoto sapeca, sacana, danado de bonito ( ora, é meu filho ) Tem olho arregalado, Mass quando ri Fica todo fechado E, quando mexe o pinto ele diz: “É porque está colado” Gosta de falar que tudo é “muito maneiro” principalmente o baleiro Mas tem coisa que não gosta, não tem jeito: É a tal, água no chuveiro. “Mandinho!!! grita a mãe bronqueando: “Vá correndo tomar banho!” “Mãe, responde ele, já choramingando, “Precisa ser este ano?” Não sei do que mais gosta: Será de calça comprida? ou do prato de comida? 460 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Balas, nem pensar É seu melhor manjar. Medo? quem não os tem? O dele, não é bicho papão nem trovão. Mas se ele se solta e late, “Socorro!!!” -seu medo é de cachorro. Mas é um danadinho esse Mandinho Sabe cativar pai e mãe, pois quando faz coisa errada fala logo: “mamãe, eu te amo” Papai, te adoro! “ Tudo isso, Pra não levar palmada. Tudo sabe o “sabe-tudo” até dançar lambada imitando o visual do seu amigo Magal. E quando vê na TV aquele beijo na boca fica sem jeito e arretado e logo diz: “Estou todo arrepiado!”
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 461
E faltou dizer que adorava carrinhos e os coleciona até hoje. É um craque no assunto. Pode passar carro de qualquer marca, nacional ou importado, que ele diz na bucha qual é, inclusive fornecendo todos os detalhes do modelo. Gosta de paixão de carros e até de dirigi-los. Com 12 anos, devo admitir uma doideira do pai: ele aprendeu a dirigir; e com l4 anos, já dirigia como gente grande, reduzindo nas curvas, estacionando de ré e, sempre muito responsável, obedecendo todas as regras. Um craque, que pode acabar motorista de taxi ou diretor da General Motors. Prefiro a última. Apesar de pai vascaíno, é tricolor apaixonado, de vestir camisa do flu e ir a seus jogos, demonstrando que na casa há democracia Mas o moleque foi crescendo e a paixão em todas as épocas foram os esportes: natação, surf, futebol (foi um craque), kart, patins, bicicleta, tênis, que leva muito jeito, judô e até remo. Mas ele é mesmo campeão no “levantamento de garfo”. Pizzas, hambúrguer, pão de queijo e outras comidinhas, o adoram. Daí estarem sempre ao seu alcance. Neste departamento, é fora de série; não só preparando deliciosas pizzas e sanduíches super transados, mas se servindo deles com muito prazer. Gostava também de ir a discotecas com a sua patota e paquerava um montão de gatinhas. O seu celular e as contas denunciavam. Agora, seu amor é a Rachel, uma lindeza que esbanja simpatia e que a gente adora. Moleque de sorte. Tristeza, na verdade, só havia uma: hora de estudar. E os maldosos hão de dizer: tinha a quem puxar - coisa que não se deve espalhar. Mesmo assim, como a cachola é boa, acabou passando para a universidade e estudou administração. Engatinhando no assunto de dar duro, já teve uma boa experiência quando lançou com o amigo Marcelo, o “Guia Mais Útil”, que circulou na Barra. Agora está na multinacional Glaxo, em seus primeiros passos, mas já dirigindo uma equipe. Sempre foi bamba no computador, nele fazendo miséria. Também no inglês, em criança, se destacou e, as histórias que escrevia, eram sensacionais. Para a arte, levava todo o jeito, pois fez esculturas e pinturas em tela, muito boas. 462 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mando e sua secretรกria Raquel
Mando e a secretaria
Paulinho Bulus, Livio, Daniel Xisto, Mandinho e Rodrigo Xisto,
O cantor
Com o Rey, seu chapa
ZĂŠ Henrique, Paulinho, Felipe Muca, JoĂŁo e Mandinho, da turma do Riviera.
Paulo Bulus e Mando
Mando, Luiz, Laercio e Murilo.
Vinicius, Mandinho, Paulinho, Rodrigo e Thales.
Mandinho e Gilda
Rodrigo “Goiano�, Mandinho, Paulinho e Marcos Pestana
Mandinho
Mando e Fernanda
Mandinho e Cristine
Mandinho
Mando e Beta
Amigos, posso dizer que teve e tem muitos. Alguns bem mais velhos do que ele. Do seu tamanho, há uma turminha legal. Da “comissão de frente”, conhecemos: Paulinho Bulus, Marcos Pestana, Porca, Doug (Rafael), Goiano (Rodrigo), Bozó, Breno Poubel, Alex, que está nos states, Sabrina, Carol, Cristine Coelho, Erika Kubotta, Maria Eugenia (Geninha), Marcelo de Menezes, Jovan, Cassia e Rodrigo, Bianca Teixeira, Alexander Silva, Luis Felipe Alves... Com certeza, os filhotes são sensacionais. Não chegam a ser aquela perfeição absoluta, exagerada, pois não seriam deste mundo. Portanto, muitas vezes, viravam um pacote de encrencas. E, como na casa de todos, na nossa também se escutava: “Arrume o seu quarto!.. ”Não deixe a roupa jogada no chão!”... “Tire a toalha molhada da cama”!”... “Dê descarga na privada!”... Não briguem!”...” quem fez bagunça na cozinha? “e assim por diante, igualzinho ao que nossos pais diziam e berravam. Mas o amor sempre existiu. Como existiu e existe..
E chegou Rachel
466 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mas certo dia, a gente repara que o Mandinho cresceu ficou mais bonito e deu uma sorte danada. Encontrou a sua princesa: Rachel, uma lindeza de menina, que esbanja simpatia e que a gente adora. Moleque de sorte. Rachel é realmente uma mocinha linda e especial, gente doce, generosa e prestativa. E não pode haver quem dela não goste. Pela delicadeza, tem um jeito mais ou menos de boneca de porcelana. E não é preciso dizer que já acumulamos as funções dos nossos anjos e santos pra cuidar dia e noite dos dois também. De conversa inteligente, Rachel se formou em Administração, fez o Ibmec e não precisa dizer que é cobra no assunto. E já trabalha na empresa dos pais, Nair e Hegberton, a ETT First RH e também andou pela Souza Cruz. Amor de menina, Rachel rapidamente conquistou toda a família, não só pela simpatia e delicadeza e, em relação a mim, servindo-me ainda de deliciosos bombons e me enviando regularmente, divinas tortas e barras de chocolate. E, ainda volta e meia me presenteia com as belas camisas que ando desfilando por aí. Posso até dizer que me visto “a la Rachel”, pois o estoque é grande. Mas o mais sortudo nessa história é o Mandinho; e todos em casa vivíamos na torcida para que o final fosse muito bom para os dois. E aconteceu: casaram-se e estão morando em bela residência perto da gente, para a nossa alegria. Estãovivendo uma vida feliz. Merecem. De conversa inteligente, Rachel se formou em Administração, fez o Ibmec e não precisa dizer que é cobra no assunto. E já trabalha na empresa dos pais, Nair e Hegberton, a ETT First RH e também andou pela Souza Cruz. Amor de menina, Rachel rapidamente conquistou toda a família, não só pela simpatia e delicadeza e, em relação a mim, servindo-me ainda de deliciosos bombons e me enviando regularmente, divinas tortas e barras de chocolate. E, ainda volta e meia me presenteia com as belas camisas que ando desfilando por aí. Posso até dizer que me visto “a la Rachel”, pois o estoque é grande. Mas o mais sortudo nessa história é o Mandinho; e todos em casa vivíamos na torcida para que o final fosse muito bom para os dois. E aconteceu: casaram-se e estão vivendo uma vida feliz. Merecem.
Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 467
Guilherme, Mando e Rachel
Marcos, Rachel, Rafael (Doug) e Mandinho
Guilherme, Rachel, Nair e Egberton Marcos, Rachel, Mando e Carol Sales
Nair e Rachel
Doug e Rachel Rachel, Paulinho e Mandinho.
Eu
O último membro desta família, por ordem de importância, sou eu. Como já foi visto, nada em mim há razão para destaque. Conto então umas manias, que na vida me perseguem. Não sei se faço parte de algum grupo desacertado, que não gosta em se desfazer de objetos. Não pensem que tenho a casa entulhada. Nada disso. Ela é até minimalista, clean, não pela moda, mas por gostar de viver em ambiente claro, alegre. Também não sou do tipo colecionador de coisas fabricadas. Não gosto. Entretanto, não consegui até hoje me desfazer de certas coisinhas. Elas ocupam só uma caixa que não mede mais de 40 cm por 20 cm e um palmo de altura. Ali estão os meus objetos, alguns com 30, 50 anos, ou até mais. Todos, sem serventia alguma. A não ser quando os filhos menores se deliciavam em neles mexer, como se fossem objetos mágicos. Passavam horas maravilhados. Armando Amorim - Memórias
de Uma Pessoa Comum 469
São relógios parados, isqueiros que não funcionam, moedas antigas sem valor, alguns chaveiros, um casal de diabinhos, medalhas de santinhos para contrabalançar; um mini cadeado, um dado; um soldadinho de chumbo; pequeno revólver de espoleta, apito, micro caixinha de metal; figa de madeira; bonequinhos e alguns bótons; óculos sem lentes; medalhas que me deram sem mérito; coisinhas e mais coisinhas. Bugigangas. Todas sem serventia alguma, mas que nunca consegui delas, me desfazer. Não servem nem mesmo para me fazer lembrar de bons e maus momentos ou de alguém que se quer bem. Não sei que mistério é esse; em que lugar do cérebro estão esses neurônios alienados, que impedem de desfazer-me dessas coisinhas inúteis. Várias vezes tentaram. Dos objetos maiores, me desfaço prazerosamente: máquinas fotográficas, de escrever, móveis, projetor de cinema, aparelho de som, vitrola e outros que não uso ou não me servem, ofereço com prazer. Confesso até certa alegria, ao vê-los deixando a casa. Mas essas quinquilharias pequenas, não. E os papéis? Estes, apesar do incômodo, nunca os joguei no lixo; só os que mereciam. Como me desfazer de cartas, postais de viagens, cartões de natal que recebemos e marcou um momento, uma conversa sem presença, uma querência que fôssemos prósperos e felizes? - Não poderia deixar de guardar convites de casamento, de aniversário, bodas, formatura ou qualquer evento tão importante para quem nos enviou e que compartilhamos; registros de felicidade, de amor, de conquista, cada um deles com sua história. E quem tem coragem de jogar fora santinhos com preces e sem preces, alguns que botamos fé? Eu não consigo. Quem sabe se não vou precisar deles para dar uma mãozinha em qualquer desacerto? E já precisei. Dos filhos e de Gilda, guardei todos. Contam emoções. Bilhetes, muitos bilhetes de amor que costumam ser trocados. Também não poderia deixar de guardar o registro do esforço de nossos pixotes em escrever as primeiras letras, as primeiras frases... E os desenhos? Mostram ali os movimentos direcionados por um 470 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
cérebro ainda em miniatura, descobrindo o mundo... e depois os outros... Até chegarem aos atuais, carregados de símbolos. Assim, fui guardando papéis, não só do pessoal de casa, mas dos amigos; dos amiguinhos dos filhos, da sobrinhada que circularam entre nós. São registros notáveis. Gavetas então se transbordaram. Avolumaram-se as caixas, envelopes, pastas. Muitos. A enorme quantidade só se comparava à de fotos. Essa mania no duro. Registro tudo. São milhares que marcaram cada tempo, cada momento. Tempos bons, outros nem tanto, mas de bom saldo. São sorrisos e caretas dos filhos, de Gildinha, dos amigos, da família, de lugares. De comemorações. De tudo. Certo dia, um impulso para desocupar lugar, me fez rever papéis e fotos. Talvez muitos poderiam ir embora. Que nada! Encontrei ali incrível história. Nada merecia ser descartado! Mas sim, estar em lugar especial. Misturei papéis e fotos que foram sendo colados e legendados, transformando-se em duas dezenas de volumes encadernados. Basta agora a gaveta encher-se, que mais um volume é iniciado. Vão assim contando a história de nossa vida. Com centenas de personagens que vivem em nós; memórias de papéis guardados que viraram romances, contos, encontros e desencontros, minibiografias. Basta querer decifrá -los. Por outro lado, me safei das broncas de Gildinha, pelos papéis enchendo o que poderia ser enchido, inclusive a paciência dela.
Armando Amorim - Memórias
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Uff! Terminou! É isso aí Não há quem não vá comentar: “que barafunda esse livro!” “Uma misturação danada!”. Eu também achei. Podem me jogar tomates, ovos e até vaiar. Como já me justifiquei, não sou das letras. Podia até, para me desculpar, dizer que “sendo o primeiro...” (podem ficar tranquilos, corrijo: “o último...”) Muitos devem também me cobrar: cadê seus fracassos; as brigas em que você levou porrada... as mancadas... Isso é fácil responder: acabaram-se as páginas previstas e não houve espaço pra contá-los (escrevo mal, mas não sou bobo). Mas nada disso; na verdade errei muito, como um mortal dos bons. Só não fico a relembrar, pois não sou daqueles que vivem a repetir que errando é que se aprende. Isso porque, erro até hoje. Finalmente, chego ao final do livro, com uma dúvida: será que as pessoas sem fama devem mesmo contar as suas memórias? Mas também estou com a sensação que valeu a pena, pois contei fatos que vão trazer boas lembranças à família, aos amigos, à turma da antiga e, demonstrar afinal, que pessoas sem fama, “existem”. Mesmo que, como eu, não tenham feito nada de notável. 472 Memórias de Uma Pessoa Comum - Armando Amorim
Mas tem mais... A seguir teremos os verbetes: um guia prĂĄtico para ninguĂŠm se perder nesta rede de amigos e familiares https://issuu.com/olhonu/docs/verbetes_-_armando_amorim
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