Besouro vol. 1

Page 1



demetrios galvão & lucas rolim / org.

teresina, pi. jun/ 2016 uma publicação do blog janelas em rotação


CONFESSIONÁRIO DO KAOS

um ou dois meninos carregam o peso dos Indecisos. a grande fábrica suicida distribui ansiedades pela rua. [eu preciso acordar deste sonho apressado. diminuir o ritmo dos tambores do céu. afogar-me de vez numa nuvem, encher de pássaros o velho pulmão, rachar meu esqueleto e reparti-lo entre os estudantes de medicina.] a loucura boia sobre o corpo febril, o cais adormece com o sol distante. deito-me sobre a dúvida e amanso o delírio com a intimidade da voz.

2

Lucas Rolim Teresina (PI)


FIOS DO INFINITO

“mesmo com Deus por companhia. tempo gigantesco é um dia” [Alberto da Cunha Melo]

Os cabelos agem silenciosamente, crescem cativos nas mãos humildes do tempo de tanto comerem os ventos assoviam a liberdade.

Bruno Gaudêncio Campina Grande (PB)

3


UM POEMA PARA T. S. ELIOT

Resquícios do fruto amargo entre os dentes Abrigando sua ausência O futuro é uma canção entoada pela sua voz esmaecida Sua garganta agora se confunde com a garganta escura do mar Onde ainda posso escutar seu lamento Enquanto uns partem outros se acomodam entre as folhas Amarelas de cartas jamais enviadas Sonhei que descansávamos em leito inoceânico Nunca remado Despojados de tudo A violência não nos vitima O movimento não nos consome Como a onda às rochas Sonhei que o mar não nos julgava E nenhum outro tribunal

4

Yasmin Nigri Rio de Janeiro (RJ)


CINEMA-NOSFERATU

o desenho era feio andava só, sem dono não respirava mas sabia apostar tinha nas costas as marcas de muitos túmulos seu rosto inundado formava um aquário de angústias a matéria que preenchia os ossos era fibra de pesadelo puro não atendia por nome algum não tinha memória, nem afeto pertencia a uma cosmologia protozoária ao reino das insolências carregava um olho violento e a geometria do susto exalava um caravana de medos eletrostáticos... ... naquele corpo não tinha gente.

Demetrios Galvão Teresina (PI)

5


METEOROLOGIA DOS CORPOS

Nenhum dilúvio limpará esse ódio haverá sempre uma vingança justa sempre uma revolta necessária. Qualquer apelo é inútil rezar nem se fala. Não há onde esconder esse desespero As crianças não cabem nos bolsos e ainda precisam empilhar corpos como os brinquedos de uma guerra. Um olho nunca será uma bolinha de gude, uma amarelinha não se pula sobre cadáveres. O único céu é o da boca quieta como um dia nublado em que a chuva encontra o silêncio que abandonou a carne. Sangue não é urucum para pintar o rosto da cidade com pavor e medo. Nem tente recostar seu rosto nessas bochechas que desmancham,

6

Pedro Spigolon Araras (SP)


qualquer carinho é um crime toda empatia uma cumplicidade. Do telhado do país a vertigem das gotas, em vão esfrega essas mãos: água não lava o horror. No Jornal Nacional tudo será paz e progresso e a previsão do tempo indicará estiagem seca das lágrimas racionamento da saudade. A vida escorre confundindo choro com chorume... Daqui algum tempo, quando o sol evaporar o medo o ódio grudará nas nuvens escurecendo o céu e novamente seremos morttos órfãos ou cúmplices. Pedro Spigolon Araras (SP)

7


O SILÊNCIO BRANCO

Dentro da casa cabem sérias feridas, elas falam de uma cor ausente (um silêncio branco) algo que dilui as retinas.

8

Bruno Gaudêncio Campina Grande (PB)


ARCABOUÇOS DA ENGRENAGEM DE CARNE “Nós não somos nossa pele encardida, não somos horrorosas locomotivas sem imagem abandonadas cheias de pó, somos dourados girassóis por dentro, abençoados por nosso próprio sêmen & peludos corpos-de-satisfação nus formando-se no interior de loucos negros girassóis formais no pôr-do-sol, observados por nossos próprios olhos à sombra da locomotiva raivosa [...]” [Allen Ginsberg]

atrás da testa, a ossatura obsoleta é o muro das lamentações. o que se torna luz, um delírio isolado no zigurate. o eco dos gritos no microcosmo é um menino perdido nas rugas do labirinto. MUNDO EXTERNO & MIMESIS meu estado alheio é um girassol aéreo d a n ç a n d o no piso do crânio.

Lucas Rolim Teresina (PI)

9


MANUAIS

A gente sabe que está vencendo no capitalismo Quando nos procuram pra falar só de trabalho Você me diria ah, mas qual a necessidade disso tudo que fazemos vira poesia, tem eco Ao passo que eu ué, você fez uma panela enorme de lentilhas essa semana qual a necessidade de toda essa lentilha? Essa desistência é provisória Tudo será superado Domingos transgênicos tabagismo danças húngaras Talvez seja mesmo de aceitar Que a toda hora há alguém traduzindo — mal traduzido Uma obra do Nietzsche

10

Yasmin Nigri Rio de Janeiro (RJ)


NOITE TURVA

um casal emplumado encarou a tempestade de ferrugem com a ternura de um abraço profundo. suportaram o assombro do céu e os ataques nervosos. bateram-se contra às águas e os ventos como se o peito fosse de marfim e a coragem, uma armadura impermeável. (o baile cambiante das pernas na regência dos trovões vorazes seguia em compassos de pavor) o império turvo do céu rogava assombros em lastros de serpentes luminosas. o casal lutou na rinha feroz da noite que não oferecia extremidade ou margem para abrigo.

Demetrios Galvão Teresina (PI)

11


Lucas Rolim / Teresina (PI), Poeta. Veicula seus poemas através de impressos e publicações artesanais independentes. Autor dos fanzines poéticos Tetrapoemas (três volumes, 2015), Esquizofrenia (2015) e No Panorama do Tempo o Menino se Alarga (2016). Tem textos publicados no Jornal O Dia, nos blogues A Musa Esquecida e Janelas em Rotação e nos sites Mallarmagens e LiteraturaBR. olucasrolim@outlook.com

Yasmin Nigri / Rio de Janeiro (RJ), carioca, graduada em filosofia pela UFF, onde atualmente cursa o mestrado na linha de estética e filosofia da arte. Feminista, cofundadora e integrante do coletivo Disk Musa, trabalha com produção de conteúdo áudio visual e performance buscando aliar arte a uma atitude política transformadora. Colabora também com a Oficina Experimental de Poesia, que acontece toda quarta-feira no Méier.

Pedro Spigolon / Araras (SP), graduou-se bacharel em Sociologia pela UNICAMP. Autor do livro de poemas Espanto (2015), pela editora Medita, na coleção “Galo Branco”. Tem poemas publicados em diversas revistas virtuais e impressas. pedrospigolon@gmail.com

Demetrios Galvão / Teresina (PI), poeta e historiador. Autor dos livros de poemas Insólito (2011), Bifurcações (2014) e do objeto poético Capsular (2015). Foi membro do coletivo poético Academia Onírica (2010/2012). É editor da revista Acrobata, do blog Janelas em Rotação e colabora no site LiteraturaBR.

Bruno Gaudêncio / Campina Grande (PB), (1985), é escritor, jornalista historiador e professor. Publicou diversos livros, destaque para Acaso Caos (Poemas, 2013, Ideia), Ariano Suassuna em Quadrinhos (Quadrinhos, 2015, Patmos), com ilustrações de Megaron Xavier e O Silêncio Branco (Patuá, 2015). Têm poemas publicados em diversas revistas e sites culturais nacionais e internacionais. brunogaudencioescritor@gmail.com




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.