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EDIÇÃO ESPECIAL ARTES VISUAIS
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A REVISTA O MENELICK 2º ATO É UMA PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL DA MANDELACREW COMUNICAÇÃO E FOTOGRAFIA. RUA ROMA, 80 – SALA 144. BAIRRO OSWALDO CRUZ – CEP: 09571-220 – SÃO CAETANO DO SUL/SP. TEL (11) 9 9651 81 99 I ISSN 2317-4706. DIRETOR NABOR JR. I MTB 41.678 I nabor@omenelick2ato. com | DIAGRAMAÇÃO ALBA CERDEIRA RODRIGUES I albacrodrigues@gmail.com | CONSELHO EDITORIAL ALEXANDRE ARAÚJO BISPO, CHRISTIANE GOMES, LUCIANE RAMOS SILVA, NABOR JR. RENATA FELINTO | DISTRIBUIÇÃO GRATUITA EM GALERIAS DE ARTE, SHOWS, FEIRAS, FETSIVAIS, CASAS DE ESPETÁCULOS, LOJAS, BIBLIOTECAS, TEATROS, BOTECOS E ZONAS DE CONFLITO. CONTATO REVISTA@OMENELICK2ATO. COM / ANO VI – EDIÇÃO ESPECIAL ARTES VISUAIS – JULHO/ 2016 VISITE NOSSO SITE OMENELICK2ATO.COM
Apoio
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EDITORIAL
ARTISTAS E INSTITUIÇÕES: É PRECISO COLORIR PARA ENXERGAR
A CASA GRANDE EM QUEDA – PERSPECTIVAS AFRICANAS EM PAPEL, RISCO E CONCEITO
UMA CONVERSA ENTRE FORMA, TEMA, AUTORIA E COR EM TERRITÓRIOS
MEMÓRIA, NARRATIVA HISTÓRICA E ARTE CONTEMPORÂNEA
HERDEIRO DA NOITE
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D a e s q . pa r a d i r . NABOR JR I RENATA FELINTO I ALEXANDRE ARAÚJO BISPO LUCIANE RAMOS-SILVA I HÉLIO MENEZES I JANAINA BARROS SILVA VIANA
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E ditorial “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”. Mia Couto, provérbio moçambicano de abertura de As Confissões da Leoa (2012).
texto RENATA FELINTO
Pesquisar e estudar as artes visuais produzidas no Brasil a partir dos lugares e/ou meios validados pelo sistema de arte tem colaborado para a manutenção de uma estrutura de exclusão de artistas afrodescendentes. Isso como reflexo dos fundamentos racistas sobre os quais erigiu-se a sociedade brasileira. Neste caso, compreendemos o termo sistema de arte como os lugares e profissionais que contribuem para a existência do mercado de artes visuais tais quais artistas, universidades, espaços de exibição, comercialização, pesquisa e salvaguarda, dentre outros. Exceto, talvez, pelo período no qual predominou o movimento barroco no qual encontramos grandes nomes de nossa arte como os mineiros Antônio Francisco Lisboa (1730-1814) e Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), ambos afrodescendentes filhos de
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portugueses com negras escravizadas, é raro que esses e essas artistas sejam mencionados e tenham as suas biografias e produções aprofundadas nos parcos livros que tratam da história das artes visuais brasileiras. Se pesquisadoras e pesquisadores realizam suas investigações por diversos meios e têm nos livros uma considerável fonte de exploração e de conhecimento, evidencia-se, dessa forma, os porquês dessa ausência, uma vez que, essas publicações vêm reproduzindo o que está dado enquanto verdade incontestável pois que escrita. Por sua vez, como fonte de pesquisas também identificamos os acervos de museus, centros e institutos de arte e cultura como importantes referenciais para se escrever estes mesmos livros que narram a história das artes visuais no Brasil. Ambos, livros e museus, são indispensáveis na produção dos saberes nessa área.
Sobremaneira, constatamos que as principais fontes de pesquisa na construção e manutenção de conhecimento na área das artes visuais excluem de seus espaços os legados materiais e artístico-visuais de alguns segmentos étnico-raciais, sociais e de gênero, tanto nos registros escritos quanto nos lugares físicos. Constatamos, assim, que segmentos humanos que diferem do padrão imposto como normativo – homem, branco, heterossexual – têm sido sub representados nessa seara.
1 Tadeu Chiarelli é diretor geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo desde 2015. Dentre outras atuações é Professor junto ao Departamento de Artes Plásticas, leciona na Graduação e PósGraduação da ECA/ USP; entre 1996 e 2000 foi Curador-Chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo; entre abril de 2010 e abril de 2014 foi Diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP.
Nas narrativas históricas, as representações simbólicas, os códigos, as linguagens e as visualidades que demonstram a diversidade de um grande contingente populacional brasileiro não possuem lugar, ao menos não o suficiente ou equitativo. Há anos, nós da revista O Menelick 2º Ato, vimos produzindo textos de apresentação e de reflexão bem como entrevistas acerca das produções de um expressivo número de artistas visuais do nosso país e de outros lugares do mundo, aos quais temos denominados artistas da diáspora africana, afrodiaspóricos. Temos nos dedicado tanto a resgatar biografias e produções pouco visitadas, quanto à introdução de novos pensamentos pautados na visualidade e na estética trazidos por uma geração mais jovem que despontou no fim do século 20 e vem mostrando a que veio desde o início do 21. Numa insistência movida ao amor à arte feita por afrodescendentes que nos falam sobre nossa condição de existência no mundo, nos situamos como a única publicação que no Brasil de hoje reúne esforços para garantir escritos críticos sobre essas mulheres e homens que, por sua vez, também persistem na produção de artes visuais num país que pouco espaço concedeu à valorização de suas trajetórias e criações. Por esses vários motivos, para nós foi com imensa satisfação que recebemos o convite da Pinacoteca do Estado de São Paulo, representada na figura de seu diretor e curador Tadeu Chiarelli1, em sermos parceiros na curadoria do seminário da exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. Dividida
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em três momentos que serão melhor apresentados ao longo dos textos apresentados nessa edição especial de O Menelick 2º Ato, a exposição de curta duração revisitou o acervo da centenária instituição e localizou bem como resgatou nomes e produções de artistas afrodescendentes atuantes do século 19 ao 21. Além disso, valorizou de forma respeitosa os esforços de um de seus mais marcantes gestores, o artista visual Emanoel Araujo, que geriu a instituição de 1992 a 2002. Durante a sua passagem pela Pinacoteca do Estado, o artista, diretor e curador, reuniu esforços para investir na aquisição e promoção de exposições de curta duração que prestigiaram as produções de artistas afrodescendentes, assim como as mais variadas facetas da cultura afro-brasileira em suas múltiplas visualidades. Numa continuidade desse caro processo revisionista da história da instituição e, por conseguinte, da história das artes visuais no Brasil, a direção da Pinacoteca do Estado também promoveu a atualização de artistas e obras que se identificam com o segmento afrodescendente adquirindo novas obras para o acervo. Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, inaugurou com um total de 106 obras e com uma crítica em um grande jornal na qual foi acusada de manter “preconceito com gueto negro”2 . Ora, mas exposições de artistas italianos, japoneses, alemães dentro outros segmentos étnorraciais, nacionalidades ou ascendências nunca foram chamadas de gueto pela crítica “especializada”. Teríamos, então, uma inversão dos sentidos de uso dessa palavra? Compreendemos a ousada iniciativa de Chiarelli justamente como um empreendimento de “desguetização”, uma vez que, nos coloca num lugar de direito, de artistas visuais afrodescendentes ocupando com legitimidade um lugar no tempo e no espaço que também lhes pertence.
2 Ler a crítica de Fábio Cypriano publicada no jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, Mostra da Pinacoteca mantém preconceito com gueto negro, em 24 de dezembro de 2015.
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Ao completar 110 anos a instituição de artes visuais mais antiga do Estado de São Paulo, a partir da figura de seu atual diretor, realizou um movimento (in)esperado por parte de uma instituição tradicional. Revisitou o acervo com o objetivo de levantar e exibir as obras de artistas afrodescendentes reconhecidos dentro e fora do país. Alguns deles, ainda que extremamente talentosos e com vigorosas produções, ainda pouco conhecidos do grande público. A palavra tradicional no Brasil tem sido entendida como lugar de imutabilidade, de repetição de um conjunto de práticas e de demarcação social no sentido da manutenção de privilégios. Também consideramos ser uma das funções de um museu retornar de tempos em tempos ao seu acervo, e (re)ver o que se colecionou ao longo das décadas, mapear as obras que o compõem, garantir outras significações às mesmas posto que também são essas ações curatoriais e de pesquisa de grande relevância. Um museu, um centro, um instituto são de fundamental importância não para a manutenção da história das artes visuais da maneira como está escrita, mas justamente para (re)apresentar outros nomes de igual ou superior qualidade aos que já se encontram validados pelo sistema de arte. Ao revivescer esse potente legado da gestão de Araujo salvaguardado na reserva técnica da Pinacoteca, a direção atual não apenas reconhece o seu pioneirismo ao tentar equipar em termos de representatividade as produções de homens e mulheres brancos e negros, porém também se alinha à crítica e ao questionamento do discurso hegemônico na história das artes visuais. Assim sendo, faz coro, soma vozes e esforços junto a alguns dos mais importantes curadores da atualidade como o nigeriano Okwui Enwezor, curador da 56º Bienal de Veneza e a espanhola Elvira Dyangani Ose, curadora da Bienal de Gotemburgo de 2015.
É preciso que tratemos crítica e argumentativamente das violências simbólicas contidas na escrita, difusão e imobilidade de uma versão da história das artes visuais fundamentada nas condições da existência que reiteram a hétero normatividade, o gênero masculino, a cor de pele branca dando sentidos apenas a uma visão de mundo ocidental e do ponto de vista dos que colonizaram, se é que usaremos ainda esse eufemismo para tratar de violências as mais variadas. De forma geral, os museus dão imagem ao que está escrito. A Pinacoteca do Estado de São Paulo está na dianteira nesse procedimento mais que humano de nos convidar a sentar à sala de estar. O seminário que1 acompanhou a exposição Territórios: artistas afrodescendentes na Pinacoteca, nos deu vez e voz e visibilidade. Foi assim que nos representaram. É assim que nos representamos. Somos leoas e leões inventando nossas próprias histórias.
PARA LER Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história Arthur C. Danto EDUSP, São Paulo 2006. Arte Como álibi no Caderno SESC_ Videobrasil 10 Elvira Dyangani Ose Associação Cultural Video Brasil São Paulo, 2015
RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP. Compõem o conselho editorial da revista O Menelick 2º Ato na qual publica textos.
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Emanoel Araújo, então diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em registro feito em 1992, pelo fotógrafo estadunidense Chuck Martin.
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“Artista! Pode lá isso ser se tu és d'África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuada de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia!” Trecho do poema Emparedado, de Cruz e Souza (1861-1898). tex to N A B O R J R . foto s C H U C K M A R T I N E M A N D E L A C R E W
Vestindo um elegante sobretudo cru, bem ornado com generosos botões pretos e geometricamente findando a altura dos joelhos, Emanoel Alves Araújo caminha lentamente por uma das laterais do auditório da Estação Pinacoteca, no bairro da Luz, em São Paulo. Os ponteiros do relógio já deslizavam para marcar 10h20 quando seus passos firmes o aproximaram do fim do corredor. Enquanto caminhava lançou um breve olhar em direção ao público de aproximadamente 60 pessoas que, ansiosamente, o aguardava naquele sábado gelado de abril para a fala de abertura do seminário Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. Altivo com o seu recorrente chapéu tipo Fedora, de cor preta, Emanoel, antes mesmo de percorrer os últimos metros do chão acarpetado do edifício que um dia sediou o sombrio Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP) é cordialmente recepcionado por Tadeu Chiarelli, ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP e que desde 2015 dirige a Pinacoteca do Estado de São Paulo, e conduzido à mesa que o esperava.
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Aos 76 anos de idade e avesso a encontros do gênero “Eu detesto este tipo de seminário. Não gosto de falar. Tenho certa angústia com essa história de falar. Prefiro escrever, fazer. E também por não ser um historiador, ou um acadêmico, não me sinto muito a vontade. Minha formação é como artista plástico, por tanto, toda intuitiva. Mas a intuição precede a pesquisa, não é mesmo”, declara antecipando sua fala inicial. De temperamento explosivo, o respeitado e competente diretor-fundador do Museu Afro Brasil sabe muito bem a importância da sua presença no encontro que, além de estimular a reflexão sobre as obras e a trajetória dos artistas presentes na mostra Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, também o homenageia. Nascido na aprazível Santo Amaro da Purificação, localizada a pouco mais de 70 km da capital Salvador, na Bahia, em 1940, Emanoel Alves Araújo, homem, negro, escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador, cenógrafo, pintor, curador e gestor público foi, nos mais de 110 anos de existência da Pinacoteca, o mais emblemático diretor da instituição, cargo que exerceu por quase uma década (1992 – 2002). Figura singular do histórico, mas constantemente invisibilizado, protagonismo negro no campo das artes visuais no Brasil, cujas primeiras figuras de destaque são os artistas barrocos Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho ( 1730 – 1814) e Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim (1745 – 1813), Emanoel – nestes quase três séculos da fundamental presença da mão afro-brasileira nas artes plásticas do país, consolidouse como o seu mais importante representante, como poderemos concluir ao final deste texto. Não apenas por sua contribuição enquanto talentoso artífice, mas também por sua essencial atuação como gestor cultural, promotor de ações de salvaguarda e catalogação de obras de artistas afro-brasileiros, bem como pelas dezenas de publicações críticas que organizou e promoveu. Sua bem sucedida incursão pelo universo editorial, diga-se de passagem, guarda resquícios de um dos primeiros trabalhos que Araújo desempenhou ainda na juventude, em Santo Amaro da Purificação, quando trabalhou com linotipia, composição gráfica e impressão na Imprensa Oficial da cidade.
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Se ao assumir o cargo de diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1992, Emanoel –que entre os anos de 1981 e 1983 já havia sido determinante para a instauração de um novo período na história do Museu de Arte da Bahia (1918), também sendo seu diretor – tornou-se o primeiro negro a ocupar a função, a aquisição de obras de artistas negros no acervo da instituição, por sua vez, possui uma tímida história precedente. Arthur Thimóteo da Costa (1882 – 1922), carioca que estudou na Escola Nacional de Belas Artes e que morreu melancolicamente sem ao menos saber da sua inserção no circuito paulista institucional foi o primeiro artista a ter uma obra no acervo da Pinacoteca. A aquisição aconteceu em 1956 – após 51 anos de atividades da instituição - quando o colecionador Benjamin de Mendonça doou à Pinacoteca um emblemático Autorretrato (1908) do artista. Obra esta, aliás, um dos pontos altos da mostra Territórios. A segunda obra de um artista afro-brasileiro a integrar o acervo da Pinacoteca também foi um trabalho de Arthur Thimóteo da Costa – a pintura Cigana (1910) – doada em 1965 por Julieta Andrada Noronha. As demais aquisições de obras de artistas afro-brasileiros pela instituição – voltariam a acontecer com substância somente com a chegada de Emanoel ao topo administrativo do museu, e posteriormente com Tadeu Chiarelli. Entre 1992 e 2001, cerca de 60 obras de artistas afrobrasileiros foram adquiridas em forma de doação ou compradas pelo Governo do Esta do de São Paulo para à instituição. Se pensarmos que todo o acervo da Pinacoteca, que atualmente conta com aproximadamente 9 mil obras, possui apenas 106 trabalhos produzidos por artistas negros, podemos mensurar a importância de Emanoel na construção de uma coleção mais democrática, diversa e atenta as matizes que formam a nação brasileira. Entre os artistas negros que ganharam o acervo da instituição durante sua gestão destacam-se: Edival Ramosa de Andrade (1940 – 2015), Antônio Bandeira (1922 -1967), João Timotheo da Costa (1879 – 1932), Arthur Timotheo da Costa, Antônio Firmino Monteiro
Cartaz da mostra Pintores Negros do Século XIX (1993). Na foto o artista plástico Emmanuel Zamor (1840-1917), em registro atribuído a Nadar. Detalhe para o endereço de entrada do prédio da Pinacoteca, ainda localizado na Av. Tiradentes. Posteriormente a reforma conduzida por Emanoel a entrada principal da instituição foi transferida para a Praça da Luz.
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(1855 – 1888), Estevão Roberto da Silva (1845 – 1891), Mestre Valentim (1745 – 1813), Benedito José Tobias (1894 – 1963), Maria Lidia Magliani (1946 – 2012), além de trabalhos do próprio Emanoel, que doou a Pinacoteca 24 obras suas entre os anos de 1992 e 1993. Mais do que ampliar o acervo da Pinacoteca com obras de artistas afro-brasileiros, buscando assim equilibrar no seio do mais antigo museu de artes de São Paulo a diversidade étnica brasileira presente nas ruas, Emanoel também contextualizou e estimulou a reflexão sobre essa produção apresentando-a ao público, e dando início a uma série de contribuições que, mais tarde, revelar-se-iam fundamentais não somente para a valorização institucional dos artistas e das artes visuais afro-brasileiras, como também para emprestar sentido e relevância a própria função e razão de existir da Pinacoteca: um museu público cujo papel primeiro é manter-se atento as questões da arte produzida em seu país.
FRAGMENTOS DO IMAGINÁRIO NEGRO Adjetivada por seus contemporâneos como inovadora, a gestão de Emanoel Araújo frente à Pinacoteca do Estado de São Paulo precedeu a administração da crítica e historiadora da arte Maria Alice Milliet (1990 – 1992), e foi sucedido pela gestão do advogado e museólogo Marcelo Mattos Araújo, que exerceu a função entre os anos de 2002 e 2012. Para o público em geral e para a historiografia das instituições oficiais de arte no Brasil, os principais legados deixados por Emanoel quando este ocupou o cargo de diretor foram: a premiada revitalização do museu e a recuperação do espaço público do seu entorno; o prestígio internacional emprestado a instituição ao abrigar, por exemplo, exposições vindas da Espanha, França, Itália, Holanda, Dinamarca e Portugal, colocando a Pinacoteca no mapa dos grandes museus mundiais; a criação da Associação dos Amigos da Pinacoteca, entidade civil responsável por auxiliar a captação de recursos e a organização de atividades culturais no museu; o incremento de aproximadamente mil novas obras ao acervo da Pinacoteca; o significativo aumento no número de visitantes, saltando de 70 pessoas (em meio á então acanhada sede do museu, ainda no início dos anos 1990) quando da abertura da mostra Vozes da Noite (1992), para vernissages que reuniam, em geral, mais de 5 mil pessoas quando deixou a instituição no início dos anos 2000. O marco definitivo da visibilidade adquirida pelo museu através da sua administração foi a exposição Auguste Rodin: A Porta do Inferno (2001), que levou á Pinacoteca mais de 200 mil visitantes. Em suma, um novo e revigorado espaço público foi entregue a população paulistana e ao país. Já a contribuição que proporcionou para a visibilidade e protagonismo intelectual da produção artística e dos próprios artistas afrobrasileiros dentro da Pinacoteca, bem como seu incansável trabalho para a salvaguarda dessas produções e para o fortalecimento da história da arte brasileira foi inestimável. Ainda nos seus primeiros meses como diretor, Araújo inaugurou, em 26 de novembro de 1992, em curadoria compartilhada com José Roberto Teixeira Leite e Olívio Tavares de Araújo, o seminal conjunto de exposições Vozes da Diáspora, mostra que se estendeu até 20 de janeiro de 1993.
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Vozes da Diáspora reuniu cinco exposições em uma: Os pintores negros do século XIX, com obras de Emmanuel Zamor (1840 – 1917), Antônio Firmino Monteiro, João Timótheo da Costa, Artur Timótheo da Costa, Antônio Rafael Bandeira (1863 – 1896) e Estevão Roberto da Silva; Altares Emblemáticos de Rubem Valentim, com mais de 50 obras pertencentes à Lucia Valentim (esposa do artista); Brasil África Brasil - 90 anos, com fotografias de Pierre Verger (1902 – 1996) e curadoria de Arlete Soares; Mantra de Oxalá, instalação de Regina Vater (1943); e O Inconsciente Revelado - Esculturas de Agnaldo Manoel dos Santos, com 34 esculturas do artista baiano. “Busquei no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia a Coleção Nina Rodrigues, que era formada por obras que haviam sido jogadas fora ou apreendidas em razão das batidas policiais nos candomblés da Bahia – e que estavam no Museu da Polícia. Eu havia visto essas obras ainda quando era estudante e fui buscar essas peças para a exposição Vozes da Diáspora. Quando cheguei para pegar essas obras o que vi foi um território arrasado, com obras com cupim e bem danificadas. Não houve cuidado e nem restauro do que talvez fosse o mais importante acervo afro-brasileiro do país. Acervo este muito provavelmente mais importante do que o acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, chamado de Coleção Perseverança”, recorda-se durante o seminário. Laureada como a melhor exposição do ano de 1992 pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), Vozes da Diáspora foi um marco na história da Pinacoteca do Estado de São Paulo, e um cartão de visitas de Emanoel a cidade, aos seus moradores e autoridades
Cartaz da mostra Brasil África Brasil: Pierre Verger - 90 Anos. Na foto Mãe Senhora do Axé Opó Afonxá, em registro feito por Verger.
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Emanoel AraĂşjo Tribute to Louise Nevelson (Homenagem a Louise Nevelson), 1998-2015 Tinta sobre madeira
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públicas - revelando um dos seus principais objetivos a frente da Pinacoteca: renovar a instituição em todos os sentidos. “Aqui estão alguns artistas negros do século 19 como prova de resistência de um tempo nem sempre favorável a ação destes ilustres homens, uma verdadeira herança cultural para o Brasil”, disse Emanoel no catálogo da mostra. Em 1994 – mesmo ano em que recebeu o título de cidadão paulistano do então vereador Marcos Mendonça – Emanoel Araújo voltou a sublinhar a temática da diáspora negra na Pinacoteca ao propor e fazer a curadoria da
1991), Nino, Maurício Araújo e da já postulante ao “cargo” de mais bem sucedida artista negra da história do país, Rosana Paulino (1967), com a sua obra Parede da Memória (1994). “Herdeiros da Noite, não era uma busca linear, voltada apenas aos artistas plásticos, mas nós pensávamos também nos intelectuais, nos poetas, escritores, que tinham voltado os olhos para uma expressão notadamente afro-brasileira. E essa exposição foi uma procura, através de um texto instigante do poeta Cruz e Souza, a obra Emparedado, onde ele dizia, abrindo o coração e se expressando de uma maneira tão extraordinária – que o africano não poderia ser artista”. Em 1996, Emanoel voltou a flertar com a fotografia documental e sua potencialidade realista, inaugurando no Dia Internacional dos Museus daquele ano a mostra Bahia, África, Bahia. A exposição reuniu 75 trabalhos de Pierre Verger, e outros 40 do fotógrafo franco-brasileiro Marcel Gautherot (1910 – 1996). Verger apresentou sua pesquisa de 17 anos sobre as relações históricas e mitológicas entre as regiões baianas e as do Golfo de Benim, na África, expondo as origens do candomblé e de seus rituais. De Gautherot, foram exibidos trabalhos focados no protagonismo cultural do povo baiano e nas suas manifestações populares, como a lavagem da igreja do Bonfim, o carnaval e a extinta puxada do xaréu.
exposição Herdeiros da Noite: Fragmentos do Imaginário negro – constituída sob o marco histórico dos 300 anos do Quilombo dos Palmares. Com vídeos, música, elementos visuais vindos da cultura popular, como ex-votos, patuás, máscaras e bandeiras ritualísticas, mesclando a produção de artistas negros e brancos cuja influência primeira fosse a cultura africana, a mostra reuniu fotografias de Bauer Sá, Madalena Schwartz, Pierre Verger, Pedro Ribeiro e Lamberto Scipione; esculturas de iconografia ioruba de Mestre Didi (1917 – 2013); instrumentos litúrgicos do candomblé de autoria de José Adário dos Santos, além de trabalhos de Manuel Gracindo, Rubem Valentim (1922 –
Em 1997, Emanoel organizou outras importantes mostras fotográficas na Pinacoteca com foco na produção afrobrasileira e na comunidade negra do país, até então subrepresentada pela maioria dos museus públicos: Pixinguinha e Outros Batutas, com fotografias do brasileiro Walter Firmo (1937) e História e Ficção: 100 anos da Guerra dos Canudos, com trabalhos do ilustre cronista baiano Flávio de Barros. Além de outras duas mostras - simultaneamente expostas as dos artistas brasileiros enquanto contraponto estético aos trabalhos nacionais. Uma delas foi a do nigeriano Rotimi Fani-Kayode (1955 – 1989), e a outra do icônico fotógrafo do Mali, Seydou Keita (1921 – 2001), todas elas integrantes das comemorações do 3° Mês Internacional da Fotografia, evento promovido pelo coletivo Nafoto (Núcleo dos Amigos da Fotografia). “Ele (Emanoel) praticamente criou dentro da Pinacoteca um núcleo dedicado a arte afrodescendente, colocando o assunto em pauta e trazendo uma série de outras contribuições”, disse Tadeu Chiarelli, na abertura do seminário Territórios.
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Emanoel Araújo Um homem e uma mulher, 1979 Madeira pintada
NOVA PINACOTECA “Quando eu cheguei a Pinacoteca todos os móveis estavam quebrados ou amarrados com arame. O que vi foi um lastimável espaço público de São Paulo. Era uma tragédia. Precisávamos fazer com que a Pinacoteca voltasse a pertencer ao cenário da cidade, porque naquela época as pessoas passavam em frente ao prédio da Pinacoteca e se benziam pensando que aquilo fosse uma igreja. E uma das primeiras medidas que tomei foi promover um encontro, uma espécie de seminário reunindo intelectuais como Carlos Lemos, Paulo Mendes Rocha, Ulpiano Bezerra de Menezes, entre outros, para estabelecer um conceito sobre a Pinacoteca. E também para discutirmos tipologicamente a sua nova estrutura”. Muito provavelmente, Emanoel, na fala proferida durante a abertura do seminário, estivesse referindo-se ao 1° Encontro sobre a Arte de Restaurar Bens Culturais, idealizado e viabilizado pelo próprio, e que visava mostrar aos profissionais da área e à opinião pública o estado lamentável da Pinacoteca e, ao mesmo tempo, que ainda havia tempo de salvá-la através de meios técnicos e científicos de conservação e restauração. O encontro foi o embrião do surgimento da Associação Paulista de Conservadores Restauradores de Bens Culturais (APCR), em maio de 1994, no próprio auditório da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A histórica reforma da Pinacoteca aconteceu entre os anos de 1993 e 1998, e o seu projeto arquitetônico – que optou, entre outros, por cobrir os vazios internos do edifício com claraboias de aço e vidro laminado, e interligar os pátios laterais com passarelas metálicas - foi concebido pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928). Pela ousadia, arrojo e funcionalidade do projeto, o arquiteto ganhou em 2001 o prêmio Mies van der Rohe de arquitetura para a América Latina, considerado o Nobel da arquitetura. Antes mesmo da reforma do prédio originalmente projetado por Ramos de Azevedo (1851-1928) e Domiciano Rossi (1865-1920), em 1895, Emanoel tinha consigo a ideia
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de que o centro de São Paulo merecia mais respeito e atenção, e que não deixaria de ser o cartão postal da cidade. Então decidiu – junto com Paulo Mendes da Rocha – que a entrada da Pinacoteca, anteriormente localizada na avenida Tiradentes, ficaria em frente a Estação da Luz. “Foi importante incluir também o Jardim da Luz à Pinacoteca como forma de eliminar aquelas cenas com pessoas usando drogas, se prostituindo, enfim, de certa maneira ocupar o espaço com as esculturas que lá haviam”. Emanoel refere-se à integração do pátio da Pinacoteca ao Jardim da Luz ocorrida em 1999. Na ocasião, ele reabriu o espaço com a exposição Esculturas Monumentais Europeias, marcando o início de uma maior interação entre o museu e o parque.
do texto elucida-se por si só: Emanoel é o mais importante artista plástico negro do Brasil. E a mostra Territórios uma homenagem a sua basilar contribuição as artes e aos artistas negros, que hoje orgulham-se de suplantar obstáculos com as próprias pernas graças as trilhas abertas pelo suor e sapiência de homens e mulheres como Emanoel, Antônio, Estevão, Leandro, Theófilo, Manoel, Arthur, Yêada, Maria, Rosana...
Entre o início e o fim da reforma, em junho de 1997, para acelerar a conclusão das obras, o prédio da Pinacoteca foi fechado à visitação e a instituição passou a funcionar temporariamente no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega (hoje sede do Museu Afro Brasil), no Parque do Ibirapuera. Neste espaço temporário, outras significativas mostras realizadas, além da já citada História e Ficção: 100 anos da Guerra dos Canudos, Araújo fez também a curadoria da exposição Negro de Corpo e Alma (2000), e promoveu, em curadoria compartilhada com Frederico Pernambuco de Mello a mostra Arte Popular (2000), dois dos 13 módulos da exposição Brasil 500 + Mostra do Redescobrimento. Em 2001, organizou uma retrospectiva de Rubem Valentim com 60 obras do artista, em mostra intitulada O Artista da Luz (2001), com curadoria de Bené Fonteles. Desde 2004 a frente do Museu Afro Brasil – singular instituição paulistana fundada a partir da sua coleção particular e que hoje conta com um acervo composto por mais de 6 mil trabalhos; com cerca de 2 mil obras doadas a instituições culturais brasileiras de variadas regiões do país; protagonista de mais de uma centena de exposições em diversas partes do mundo (seja como artista ou como curador), e com entusiasmo para continuar a sua missão de produzir e promover as artes e a cultura afro-brasileira, a afirmação do inicio
NABOR JR. é fundador-diretor da revista O MENELICK 2º ATO. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELCREW.
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é preciso colorir para enxergar
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texto JANAINA BARROS SILVA VIANA
foto s M A N D E L A C R E W
No texto Descolonizando o conhecimento da escritora, professora e artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba, com ascendência em Ilhas São Tomé e Príncipe e Angola, ao utilizar numa passagem de sua escrita a figura da Escrava Anastácia, encarcerada numa máscara de folha de flandres que silencia a sua voz e sua autonomia, a artista metaforiza os lugares contemporâneos da fala de indivíduos que historicamente encontram-se em condição subalternizada. Para isso, ela levanta as seguintes questões norteadoras: “Quem pode falar? Quem não pode? E, acima de tudo, sobre o que podemos falar? Por que a boca do sujeito Negro tem que ser calada? Por que ela, ele ou eles/elas tem de ser silenciados/as? O que o sujeito o Negro poderia dizer se a sua boca não estivesse tampada? E o que é que o sujeito branco teria que ouvir?1”. Neste sentido, Kilomba coloca justamente em questão uma narrativa hegemônica que define o que pode ser caracterizado como conhecimento. Além da maneira como se dá a sua estruturação nas agendas oficiais, e também sobre aqueles que são reconhecidos oficialmente como agentes e produtores de conhecimento. Analogamente, torna-se possível traçar uma história dita universal, objetiva, neutra, racional e imparcial, constituída numa relação assimétrica, que realmente não conta outra perspectiva histórica sobre aqueles, outros culturais, que são postos numa atuação política restrita. Portanto, esta narrativa hegemônica e eurocêntrica localiza estas autorias para delimitá-las dentro do campo da experiência, da subjetividade, da pessoalidade, da emoção e da imparcialidade. Logo, não há o reconhecimento de qualquer forma de sapiência que esteja fora de certos paradigmas eurocêntricos. Sobremaneira, estabelecese uma relação hierarquizada e racializada quanto a valores culturais, estéticos e morais. A construção em torno de uma Europa Moderna como protagonista, centralizada, e paradigmática acerca de uma História Mundial, alicerçou uma história de poder em que consequentemente, outras formas culturais são identificadas como periféricas. Então, trata-se daquilo que o filósofo argentino Enrique Dussel, no artigo Europa, Modernidade e Eurocentrismo, aborda sobre o etnocentrismo europeu moderno. Este pode ser definido como universal/
1 Grada Kilomba apresentou este artigo inicialmente na forma de palestra-performance, a convite do Goethe-Institut São Paulo, na 3° Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP) no Centro Cultural São Paulo no primeiro semestre de 2016. O texto integral pode ser acessado em: goethe.de
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William H. Johnson Blind Singer (Cantor Cego), 1940 Guache sobre papel
2 Vale a pena destacar três exposições
interessantes para o debate a respeito de narrativas hegemônicas e multiculturais, que atuam para construções de marcadores de identidades na redefinição do papel da arte na tradição ocidental. São elas: Primitivism in 20th Century Art ocorrida no Museum of Modern Art (MOMA) de Nova Iorque, em 1984. A ideia de primitivismo estava exclusivamente fora da cultura ocidental. A exposição Magiciens de la terre, no Centro Georges Pompidou de Paris, em 1989. O debate situava-se numa empreitada póscolonial para a redefinição de estratégias de expor diferentes narrativas multiculturais. E, mais recentemente, a exposição Afro Modern: Journeys through the Black Atlantic, no Tate Liverpool, Inglaterra, em 2010.
2 Doutora em História da Arte pelo IFCH- Unicamp é coordenadora da Unidade de Formação Cultural da Secretaria de Estado de Cultura (SP) e gestora de programas Fábricas de Cultura, Oficinas Culturais e SP Escola de Teatro.
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mundial produzindo numa lógica de poder eurocêntrica uma confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta. Isto é decorrente de uma invenção ideológica de uma Europa Moderna que linearmente se fundou em Grécia/Roma/ Europa no fim do século 18 durante o Romantismo alemão. Era uma espécie de aparato de manipulação conceitual posterior do “modelo ariano” de viés racista e racializante. O “modelo ariano” referenciava negativamente diferentes grupos étnicos e suas produções tecnológicas, intelectuais e culturais. É imprescindível não deixar de citar as contradições do Iluminismo, onde em seus países de origem reivindicava-se a implantação de uma sociedade burguesa pautada no principio de igualdade e liberdade. No entanto, os iluministas defendiam a diferença entre os homens baseandose em um naturalismo que formulou um determinismo biológico, no qual sistematizou as teorias raciais que ainda justificam as desigualdades sociais entre os indivíduos na contemporaneidade. A Europa Ocidental deve ser relida na cifra de uma invenção moderna na qual traduz uma história de poder, por meio do processo colonial onde cria um sistema de dominação e exclusão, que constitui formas de subalternidades referentes à África e a América. Os lugares hierarquizados e desprivilegiados construídos para indivíduos ou grupos considerados racializados.2 Em síntese, refere-se sobre aquilo que seja Europa contraposta com aquilo que seja não/Europa. Dessa maneira, a Europa estabeleceu-se historicamente assumindo o controle sobre os diferentes mecanismos atrelados ao trabalho, ao capital e, também ao mercado mundial. Portanto, quando um (a) artista se define como negro (a) reivindica o seu lugar de fala, no qual traduz politicamente a urgência de seu tempo e de sua história numa tentativa de reescrita de outras narrativas. Ao mesmo tempo, este (a) produz metodologias visuais como forma de estruturação e/ou ordenação de poéticas que mesmo que se refira ao debate étnico-racial não são homogêneas a outras produções artísticas. Pode-se retomar a palestra proferida pela pesquisadora Renata Bittencourt3 As instituições brasileiras em relação à produção de artistas afrodescendentes, durante a programação do seminário sobre a exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, no qual trata inicialmente sobre a percepção imediata de sujeitos negros naquilo que o olhar do outro inegavelmente capta: a cor da pele. São corpos visíveis. No entanto, esta existência aparece de maneira não tão visível quando se analisa do ponto de vista de uma presença de artistas negros e negras em galerias, museus e instituições culturais, mesmo que estas produções existam com temas e modalidades artísticas distintas. A pesquisadora enfatiza o papel das instituições culturais em
Heitor dos Prazeres Festa de São João, 1961 Óleo sobre papel
propor diferentes formas de leituras de produções de artistas negros (as) e, na mesma medida, visibilizá-las distantes de uma história representada de modo específico sobre estes (as). Uma vez que, estas instituições se encontram no campo da cultura e não podem ser vistas apenas como espaços de neutralidade, e sim como espaços de fomentação, diálogo educativo e abordagem de diferentes narrativas culturais e visuais. Podem-se observar relações de proximidades formais ou situações de encontros entre Kerry James Marshall (1955) e Rosana Paulino (1967), William Henry Johnson (1901-1970) e Heitor dos Prazeres (1898-1966). Neste cenário contemporâneo é possível elencar uma série de produções de artistas negros, onde formulam, sistematizam e operam formalmente suas experiências sociais em temas e práticas artísticas diversas. Neste sentido, a exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca reelabora um espaço reflexivo para a abordagem de diferentes narrativas culturais e visuais. Soma-se ainda, a proposição de diálogos e leituras compartilhadas por meio da criação de material de apoio à prática pedagógica e de seminário em parceria com a revista O Menelick 2º Ato durante o período de 30 de abril e 07 de maio de 2016. O seminário Artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca ocorreu com a presença dos seguintes pesquisadores e artistas: Emanoel Araújo, Tadeu Chiarelli, Nabor Jr., Renata Bittencourt, Janaina Barros, Nelson Inocêncio, Alexandre Araújo Bispo, Jaime Lauriano, Sidney Amaral, Rosana Paulino,
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4 E, ainda pode-se ampliar esta lista com outros
nomes, tais como Eustáquio Neves (1955), Ayrson Heráclito (1968), Peter de Brito (1967), Renata Felinto (1978), Wagner Leite Viana (1981), Priscila Resende (1985), Michelle Mattiuzzi (1980), Luiz de Abreu (1963), Juliana dos Santos (1987), Olyvia Bynum (1990), Lidia Lisboa (1970), Sonia Gomes (1948), Rafael RG (1986), Tiago Gualberto (1983), Dalton Paula (1982), Aline Motta (1974), Moisés Patrício (1987) e etc.
Renata Felinto, Peter de Brito, Flávio Cerqueira, Rommulo Vieira Conceição e Genilson Soares. A exposição divide-se nos seguintes territórios: Matrizes Ocidentais, Matrizes Africanas e Matrizes Contemporâneas. Neste último território estão as pesquisas visuais dos artistas Genilson Soares (1940), Rosana Paulino (1967), Rommulo Vieira Conceição (1968), Paulo Nazareth (1977), Sidney Amaral (1973), Jaime Lauriano (1985) e Flávio Cerqueira (1983).4 No texto Mostra da Pinacoteca mantém preconceito com gueto negro, publicado no jornal Folha de S. Paulo em 24 de dezembro de 2015, Fabio Cypriano acusa a escolha curatorial da exposição em optar por expor artistas negros a uma prática de compensação de políticas públicas de discriminação. Ao invés disso, o autor sugere à instituição a elaboração de estatísticas de retrospectivas de artistas afrodescendentes nas últimas décadas como postura política relevante. O jornalista rotula e classifica como gueto a gama de visualidades de artistas negros, sinalizando como pouco relevante destacar a cor da pele de um (a) artista na mostra apresentada pela Pinacoteca. Para Cypriano, a cor da pele de um artista é irrelevante para determinar a qualidade do objeto artístico, e a cor não deveria ser enfatizada. Não obstante, o lugar desta crítica reafirma a construção de um olhar colonizado, cristalizado e homogeneizante para estas produções. Decerto, ele em sua análise não nomearia da mesma forma visualidades de outros grupos culturais como guetos, entre os quais, artistas ítalo-brasileiros, franco-brasileiros, nipo-brasileiros e etc., cuja presença é forte na Pinacoteca. A importância da exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca segundo o diretor geral e curador Tadeu Chiarelli é visibilizar as diferentes narrativas de produtores negros ou afrodescendentes, olhando para a história do próprio acervo, e sua contribuição para o debate historiográfico da arte brasileira. O museu completou 110 anos em 2015. E, a exposição Territórios apresenta 106 obras destes artistas de período e modalidades artísticas distintas de seu acervo. Este debate inicia-se com a gestão do artista Emanoel Araújo na Pinacoteca (1992-2002), uma figura relevante neste cenário. Destaca-se neste período no acervo, um autorretrato do pintor Arthur Timótheo da Costa (1882-1922) de 1908, doado em 1956. Logo, há a ampliação do acervo com produções desde o século 18 até o momento presente. Acresce-se ainda, a recente aquisição de obras de artistas negros pela gestão de Tadeu Chiarelli.
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Paulo Nazareth Sem título, 2010 Da série Para tampar o sol de seus olhos Impressão digital sobre papel de algodão
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O debate sobre uma produção de autoria negra na arte brasileira possui um percurso histórico onde se destaca a atuação do artista, gestor e curador Emanoel Araújo na criação do Museu Afro Brasil, em 2004. Araújo organizou uma vasta publicação sobre uma autoria negra como maneira de contribuição para a história enquanto memória e produção de arte, ciência e cultura brasileiras. Ressalta-se a exposição A mão afro-brasileira com curadoria de Emanoel Araújo, sediada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM- SP), paralelamente a publicação do catálogo homônimo em comemoração ao centenário da abolição, lançado em 1988. E, posteriormente uma versão reeditada e ampliada em dois volumes em 2010. Um dos objetivos do catálogo era fazer o mapeamento de artistas negros contemporâneos. O olhar de Araujo destaca-se por tecer diferentes perspectivas históricas para a releitura de lacunas do passado, para repensar e tencionar o presente e alinhavar o futuro. O pesquisador Nelson Fernando Inocêncio5 na Mesa Redonda Artistas e Instituições analisa a partir do tema Artistas afrodescendentes no acervo do Museu Afro Brasil a revisão de uma história constituída pela produção estética e política de autoria negra ou afro-brasileira. Inocêncio observa criticamente as circunstâncias que antecederam a criação do museu como espaço representativo de pesquisa, produção e circulação de visualidades que se encontram num sistema de exclusão racial. Cita o Projeto da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que patrocinou durante a década de 1950 pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. A tese era de que não existia racismo no país assim, no decorrer das pesquisas, o mito de origem freyreana sobre a existência de uma democracia racial tornava-se uma falácia.
5 Doutor em Artes pela Universidade de Brasília (UNB). Atua profissionalmente como
Professor Adjunto do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília.
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Arthur Timothéo da Costa Autorretrato, 1908 Óleo sobre tela
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6 Doutor sobre o pensamento religioso da Babilônia na École des Hautes Études de Paris. Desenvolveu seus estudos sobre África no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). Lecionou na Universidade de Ifé, na Nigéria. 7 Havia obras dos artistas Agnaldo Manoel
dos Santos, Julia Van Roger, Otávio Araújo, Lúcia Fraga, Aldemir Martins, José Barbosa, Manoel Bonfim, José de Dome, Agenor, Nilza Benes, Lito Cavalcanti, Heitor dos Prazeres, Maria Albuquerque, Holmes Estevão, Juarez Paraíso, Emanuel Araújo, J. Tarcísio, João Alves, Solano Trindade e etc.
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O termo arte afro-brasileira aparece nos estudos de Mariano Carneiro da Cunha, quando cita uma visualidade atrelada a uma estética tradicional africana e/ou que desempenha o papel de culto dos orixás ou, então aproximada a tema ligado ao culto.6 Trata-se de temas ordenados de cunho afro-brasileiro, nomeadamente em seu sentido lato e estrito, como a presença cultural do ‘caboclo’ como representação de ancestrais indígenas presentes nos ritos afrobrasileiros, como por exemplo, na umbanda. Em outras palavras, são formas demarcadoras de brasilidade ou o processo dinâmico de ressignificação cultural. Numa breve digressão, no artigo Ensaio de uma estética afro-brasileira do sociólogo francês Roger Bastide, publicado no jornal O Estado de São Paulo, durante o período de 1948-1949, Bastide analisa o caráter místico-estético presente nos pontos riscados das macumbas no Rio de Janeiro ou espiritismo na umbanda como expressões estéticas afro-brasileiras. Em síntese, o termo afro-brasileiro para Cunha aparece de maneira ambígua e provisória em razão de traduzir determinados dinamismos de aspectos culturais africanos no Brasil. Porventura, justificar-se-ia em razão de haver a presença de muitos artistas brancos, um tanto de mestiços e poucos negros que abordam esta temática de modo incidental ou recorrente em suas poéticas. Anteriormente, o artista, dramaturgo e pesquisador Abdias do Nascimento depois do 1º Congresso do Negro Brasileiro realizado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) a partir de uma comunicação de Mário Barata sobre A escultura de origem africana no Brasil em 1950, começa a colecionar trabalhos de artistas negros ou afrodescendentes. Em 1955, propõe um concurso em artes visuais com o tema Cristo Negro. Neste percurso, cria o Museu de Arte Negra, sem sede própria e, apenas com uma única exposição ocorrida no Museu de Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro, em 19687. Abdias do Nascimento coloca em questão a importância de destacar a cor da
pele de uma autoria artística, pois evidencia relações de assimetria e desigualdades sociais tecidas por uma história de colonialidade de poder. Certamente, não existe um sujeito sem cor e composto por uma total neutralidade. Segundo ele, somente a restituição de um autorrespeito e autoestima permite a totalidade de uma pessoa em formas de representatividade e reconfiguração histórica.
Em resumo, o debate étnico-racial nas artes visuais contemporâneas ainda é pertinente como articulação política na delimitação de uma dada autoria. A autoria traz o sentido de pertença e reescrita de narrativas hegemonizadas. E, justamente insere-se no debate a respeito do equivoco ocidental de um universalismo na Arte, debatido no livro O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois, escrito pelo historiador de arte alemão Hans Belting e publicado em 1995. Ou ainda, a impossibilidade de leitura de objeto artístico que não esteja moldado pelas grandes narrativas ou a acepção de universais da arte, abordado no livro Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história pelo filósofo e crítico de arte americano Arthur Danto publicado em 2006. A exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca propõe a leitura de uma narrativa hegemonizada que deve ser analisada fora de uma construção no campo da experiência, da subjetividade, da pessoalidade, da emoção e da imparcialidade. Pois, é a única forma de descolonizar as diferentes narrativas poéticas. É imprescindível criar novas estratégias de leitura para repensar outras escritas para uma produção vista como homogeneizada, não formal esteticamente e aprisionada a determinados paradigmas eurocêntricos. Só assim é possível analisar criticamente uma visualidade plural em sua potência criativa, formal e conceitual.
JANAINA BARROS SILVA VIANA é artista visual, pesquisadora e professora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. Atua como formadora do Núcleo de Educação ÉtnicoRacial (NEER), Diretoria de Orientação Técnica (DOT), Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
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texto ALEXANDRE ARAÚJO BISPO fotos JOÃO LIBERATO e MANDELACREW
Atribuiu‑se recentemente a idade de 2 milhões de anos a certos restos fósseis de hominídeos de Java. Seixos lascados de várias jazidas do Sul da França foram, em alguns casos, considerados daquela mesma idade. Mas, no atual estágio dos nossos conhecimentos, a África continua vitoriosa pelo número e importância das descobertas de tão remota antiguidade.1
A atuação dos artistas afrodescendentes no cenário internacional e a revisão histórica e crítica acerca do protagonismo dos afrodescendentes. Era este o título da comunicação que fui convidado a fazer no seminário organizado em uma parceria inédita entre a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a Revista O Menelick 2º Ato, para discutir a exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. Como o assunto da mesa era enorme e complexo para o tempo curto que tinha, preferi partir do título proposto objetivando chamar a atenção para o nome da exposição. Essa aposta de Tadeu Chiarelli diretor e curador da mostra em olhar para seu acervo é uma ação por si revisionista e a parceria com a revista afirma tal postura. O título da exposição coloca um problema: porque a categoria “afrobrasileiro” comumente referida com a temática ou com os artistas negros e mestiços foi dispensada, apesar de sua estabilidade histórica e cultural, e em seu lugar usou-se afrodescendente? Orientado por esta questão e ciente dos usos e funções sociais dos conceitos, organizei a minha fala primeiro discutindo a categoria afrodescendente, em seguida apresentei alguns artistas em função dos territórios nos quais nasceram, vivem e/ou trabalham para defender o uso de afro-brasileiro. O termo é mais adequado para pensar o território destes artistas que, em qualquer lugar do planeta, continuarão ligados ao Brasil. Na sequência apresento alguns nomes afro-brasileiros pensando sua circulação na cena internacional; seguem os afro-americanos, depois os afroeuropeus e africanos, atentando para a circulação da produção destes últimos na Europa. Feito isso retomo com mais vagar aos trabalhos de Jaime Lauriano, Rosana Paulino e Sidney Amaral exibidos em Territórios nos quais figuram cada qual a seu modo, uma poética da memória. Para eles o passado é uma caixa de memória que pode ser vasculhado, mexido e revisto de qualquer ponto do presente. O resultado dessa burilação poética são obras como as expostas em Territórios. 1 Y.Coppens. A hominização: problemas
gerais, parte I. In: Enciclopédia Geral da África, p.470.
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OUTRAS HISTÓRIAS DAS ARTES Partindo da ideia de internacionalização não restrita à Europa e Estados Unidos, pode-se afirmar que um traço comum, ainda que tímido, entre os artistas afrodescendentes, é a circulação de suas obras também fora de seus países de origem em exposições e publicações, sobretudo, nas duas últimas décadas. Contribuem para esse interesse o esgotamento de uma periodização tradicional ocidental conhecida como “História da Arte”. Seu fim foi discutido por Hans Belting e Artur Danto ainda no início da década de 1980, que sugeriram uma revisão do conceito de história da arte. No caso dos brasileiros, sendo o país o segundo maior em número de negros depois da Nigéria, ficam dúvidas quanto à circulação desta produção, o conhecimento de uma história da arte paralela à contada nos livros e o consumo das obras por colecionadores privados ou públicos, uma vez que o tratamento dado a estes artistas, em geral, caminha junto com as desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Nesse sentido o interesse internacional ajuda para que o Brasil se (re) conheça também na multiplicidade de sua produção plástica, cuja agenda diversa demanda investimentos e apostas inteligentes como esta da Pinacoteca. Manifestando postura de crítica revisionista bem antes da difusão dessa noção, o Teatro Experimental do Negro criado em 1944 por Abdias do Nascimento (1914-2011) e outros, chegou a colecionar trabalhos de artes visuais e incentivar artistas negros realizando em 1955 um concurso de artes plásticas a partir do tema Cristo Negro. Mais que isso o grupo propunha a criação do Museu de Arte Negra, ação que revela os esforços de integração social na sociedade competitiva do pós-abolição que ainda não mudara os costumes e acirrara as barreiras contra a presença negra nas artes onde mulheres e homens negros iriam “encontrá-la odiosa”.2 O racismo supõe a existência não apenas de mais de uma raça no mundo, mas que negros e indígenas seriam uma sub-raça destinadas por natureza à subalternização. O tema é atualíssimo e as pesquisas paleoantropólogicas empreendidas no continente africano demonstram o oportunismo desta concepção.
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ÁFRICA ORIENTAL: SOMOS TODOS AFRODESCENDENTES 2 Jornal Ultima Hora. Ano 1, São Paulo 13 de
Junho de 1952, nº 74. Arquivo pessoal Nery Rezende da Silva.
Organizada por Joseph Ki-Zerbo, o volume 1 da Historia Geral da África (2010) dedica três capítulos a reflexão sobre o processo de hominização que tem início no continente. Segundo pesquisas de Yves Coppens, Lionel Balout e Richard Leakey, família de cientistas, entre outros, não há duvidas de que a raça humana emerge naquele continente, e mesmo o homo sapiens que aparece no ultimo milhão de anos migra dali espalhando-se para povoar o mundo. Entre 1 e 2,5 milhões de anos surgem hominídeos como o fóssil do garoto de Turkana descoberto em 1984 no Quênia pelos Leakey, cientistas que vêm fazendo pesquisas em África desde a década de 1930. Tais descobertas derrubam a hipótese da existência de várias raças humanas. As variações nas características físicas dos povos devem-se a relações estreitas entre sua vida animal e o ambiente que os cerca e abriga. Do ponto de vista sócio-histórico a categoria afrodescen dente implica pensar a experiência social das pessoas no lugar que habitam. É essa experiência que produz diferentes territórios, sendo necessário quando do uso da palavra dizer de qual território se trata, pois se somos todos afrodescendentes na origem, nem todos sofremos o peso do racismo fundamentalmente centrado na cor da pele e outros traços negróides que atuam na produção do espaço.
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OS ARTISTAS AFRO-BRASILEIROS NA CENA INTERNACIONAL: ALGUMA REVISÃO Poderíamos voltar ao fim do século 18 para pensar em como os artistas afrobrasileiros circulam na cena internacional para estudar. Em 1794 José Teófilo de Jesus (1758-1947) foi estudar em Lisboa frequentando aulas de desenho na academia daquela cidade, por orientação de seu mestre José Joaquim da Rocha (1737-1807). De volta ao Brasil o pintor opera em sua obra a transição da estética barroca para o neoclassicismo tanto do ponto de vista dos temas quanto do desenho, da cor e da perspectiva, evidentes em obras como o São Francisco do acervo do Museu Afro Brasil em São Paulo. Outros artistas negros e mulatos do século 19 estudariam fora como é o caso dos irmãos Timótheo. O baiano Emmanuel Zamor (1840-1917), o sergipano Horácio Hora (1853-1890), por exemplo, terminaram seus dias no destino desejado por muitos dos artistas daquela geração, a França. No século 20 podemos destacar Antonio Bandeira (1922-1967) que juntamente com os irmãos Arthur (1882-1922) e João Timótheo da Costa (1879-1932) está em Territórios. Rubem Valentim (1922-1991) e Heitor dos Prazeres (1898-1966) também presentes na exposição estiveram no 1º Festival Mundial de Artes Negras de Dacar em 1966. Eles cabiam nos critérios estabelecidos pelos organizadores: ser de “raça negra ou ascendência africana” como assinala o crítico e curador Claudinei Roberto da Silva. O fato de, atualmente, sabermos mais acerca da arte e dos artistas brasileiros e de quem entre eles foi negro, tem possibilitado novas descobertas garantindo a atribuição de autoria, inserções em acervos e exposições como as que Emanoel Araújo vem realizando, desde a década de 1980, especialmente com a A mão Afro-Brasileira no MAM-SP em 1988 e aquelas exposições que fez durante sua gestão na Pinacoteca (1992-2002). Esse feixe de referências são fatos de história que nos ajudam a compreender a importância de olhar para o passado a partir desta plataforma privilegiada que o presente nos oferece.
OS ARTISTAS AFRO-AMERICANOS Ainda pouco conhecidos entre nós os artistas norte americanos negros tem uma produção incrível que vem sendo paulatinamente reconhecida dentro e fora dos Estados Unidos. Em curso oferecido no Centro Universitário Maria Antonia, a pesquisadora Renata Bittencourt apresentou com sala cheia de gente interessada, e muitos negros entre o público, nomes como Willian Johnson (1901-1970), cuja obra tem semelhanças com Heitor dos Prazeres, Kara Walker (1969-), Berkley Hendricks (1945-), Nick Cave (1959-) e Kerry James Marshall (1955-), entre outros. Marshall é um artista fundamental para entendermos como as relações afetivas podem ser um tema dos mais importantes para abordar a experiência social negra no campo dos afetos. Veja-se o caso da obra Amantes 2015. O artista leva ao limite em suas pinturas a discussão sobre a visibilidade da pele negra: até que ponto é possível ver uma pessoa negra? Qual seu grau de visibilidade social e, posto no plano da cor pictórica, até onde se
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pode vê-lo? As correspondências entre este artista e o Brasil são verificáveis em algumas obras de Sidney Amaral e seu gosto por abordar a afetividade do homem negro. Também o goiano Dalton Paula na série fotográfica Promessa (2012) parece mirar o mesmo universo: corpo, afeto, alteridade sentimental.
Kara Walker Detail of: The End of Uncle Tom and the Grand Allegorical Tableau of Eva in Heaven, 1995 Cut paper on wall (installation)
Outra artista importante foi-nos apresentada pela curadora Fabiana Lopes; trata-se de Lorraine O’ Grady (1934-). O’ Grady propôs na década de 1980 ações de presentificação negra em exposições de arte. Naquele momento ela criara uma personagem – a francesa Mlle Borgeoise Noire – que ia a exposições trajando uma capa e um vestido feito de 180 pares de luvas brancas, onde declamava poesias que falavam de segregação e racismo. Tratava-se de fazer presença no branco-centrado universo da arte contemporânea norte americana com toda sua negro-descendência. Com efeito seu traje provocador tem circulado em exposições importantes nos Estados Unidos desde 2007. Impossível não lembrarmos de Merci Beacoup, Blanco! (2012) de Michelle Mattiuzzi e das ações do coletivo A Presença Negra.
ENTRE AS ÁFRICAS DA EUROPA Em 2014 o Museu Afro Brasil apresentou a exposição África africans que trouxe à luz a produção plástica diversa de mais de 20 artistas negros que ou nasceram, vivem e trabalham no continente, ou tem por território mais de um país africano e outros ocidentais. A mostra exibiu a colossal obra do artista afro-britânico Yinka Shonibare (1962) The British Library – A Biblioteca Britânica - crítica aguda ao extenso e violento processo de colonização inglesa na África que resultaram na produção de conhecimento comparado de base determinista, especialmente produzido no âmbito da antropologia física, seguida de uma febre inédita de acumulação de cultura material nos museus etnográficos com forte postura etnocêntrica e racializante. Em seguida o Sesc Belenzinho apresentou Aqui África (2015/16) exibindo um conjunto de artistas que na Europa, Estados Unidos e países africanos vem ganhando mais espaço: a arte africana contemporânea está em alta, tanto quanto nomes como os de Okwi Enwezor, curador da última Bienal de Veneza que levou Sonia Gomes para a mostra principal em 2016. Os artistas na mostra do Museu Afro Brasil não eram os mesmos da mostra no Sesc, o que indica para a diversidade de nomes, mas também para a complexidade na composição do que, afinal, estamos chamando de “artistas africanos contemporâneos” que sob essa rubrica começam
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a circular na cena internacional, incluso ai o Brasil. A exposição do Museu dirigido por Emanoel Araújo não é a primeira, basta lembrarmos a belíssima O Benin está vivo ainda lá, ancestralidade e contemporaneidade (2007). Outro artista de África africans o ganense El Anatsui (1944) justifica o fascínio que desperta na imaginação artísticofetichista ocidental. A delicadeza de suas tecelagens de metal que resultam em tecidos monumentais demarcam outros modos de olhar para os materiais no sistema de consumo e excesso das sociedades capitalistas. O jovem Omar Ba (1977), artista do Senegal que vive e trabalha em Genebra, foi-nos apresentado pelo Belenzinho com outros 25 artistas sob curadoria da armênia Adelina Von Fürstenberg. Essa circulação aponta um momento novo
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para o debate da produção artística afro orientada e diaspórica. No Brasil tem se formado um ambiente fértil para o surgimento de novos artistas e em menor escala também críticos, inclusive fora do eixo Rio-São Paulo.
PAREDE DA MEMÓRIA Retomemos a contribuição dos três artistas de poética revisionista presentes em Territórios: Rosana Paulino, Jaime Lauriano e Sidney Amaral. Em bate-papo, mediado pela também artista Renata Felinto sobre a sua trajetória no seminário em torno da exposição, Rosana Paulino (1967) deixa claro seus interesses pelo tema da experiência feminina negra na sociedade brasileira em perspectiva
Rosana Paulino Parede da Memória, 1994-2015 1.500 peças em fotocópia, aquarela e tecido costurado
histórica. Na ocasião ela mostrou ao público as bases de sua poética remetendo ao início de sua produção plástica. Entre seus trabalhos da década de 90 a ideia de passado e da possibilidade de narrá-lo aparece tanto no uso da fotografia de família, quanto nos nomes das obras: Retrospectiva, (1993); Aracnes (1996) – lembremos que as aranhas tecem, arquitetam espaços e nele Paulino introduz o retrato de mulheres de sua família – , ou Parede da memória (1994-2015). Certas ocupações femininas do passado como o cuidado materno emergem em: Amas de leite, (2007) ou em As amas (2009). Com a instalação Assentamento (2013) a artista adentra o universo do racismo científico formulado por ideólogos como o geólogo e zoólogo Louis Agassiz (1807-1873). A operação poética
da artista procura ao mesmo tempo denunciar a falácia racista, quanto trata a mulher negra identificada como “Escrava Mina Tapa” pela lente de August Stahl em 1865, não como um “tipo” racial segundo a ciência praticada por Agassiz, mas como uma pessoa e, mais ainda, um ancestral comum, descoisificando-a. Faz total sentido que a mulher negra de Assentamento seja vista como uma base, uma espécie de mãe que ultrapassa a genealogia familiar, pertencendo como fato histórico a todos nós. Ao retirar sua imagem do arquivo na qual foi guardada ela a torna momentaneamente familiar, aproximando-a de nós com o mesmo respeito com que trata parentes seus em Parede da Memória (1994-2015), obra incorporada ao acervo da Pinacoteca. Este trabalho composto por 11
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Jaime Lauriano ร xodo, 2015 Giz pemba branca e lรกpis dermatogrรกfico
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retratos fotográficos de sua família reproduzidos à exaustão configurando uma parede com 1500 peças, nos coloca diante do problema da reprodução da sociedade no tempo, tarefa para a qual as famílias tem papel importante. Contrariando as expectativas racistas que rechaçavam a mistura racial, Paulino nos mostra uma família negra com membros mais ou menos escuros do qual ela herda geneticamente traços, mas que dela não participa com sua própria imagem. Para a reprodução social a memória coletiva é fundamental porque é capaz de transmitir valores culturais, psiquismo e parâmetros identitários grupais que servem de referência aqueles que chegam. Ao gerar esta parede memorial, mas frágil, porque feita de pano e fotos recolhidas em uma caixa mnemônica de papelão a artista nos põe diante de ao menos três funções da fotografia de família: guardar a aparência dos parentes no tempo, aproximar pessoas distantes temporal e espacialmente, circular em redes afetivas.
O ÊXODO ÓBVIO E A OCULTAÇÃO DA COR O tratamento de eventos passados da história brasileira sob os quais ficaram memórias materiais e simbólicas, atraem o paulistano Jaime Lauriano (1985). Em uma das obras presentes em Territórios, Êxodo, (2015) somos convidados a lidar com um assunto dos mais óbvios, mas que no Brasil insistimos em ocultar: o deslocamento e a violência da escravização de base religiosa, comercial e científica e seus efeitos perversos no presente. Com apenas dois quadrados pretos cortados sem maior preocupação com o acabamento, como uma metáfora de algo que ainda não foi finalizado, ele sobrepõe um pedaço ao outro dando a ver dois mapas o do continente africano de um branco anuviado, tempestuoso e manchado, e do território brasileiro apenas delineado com giz pemba branca. Este material é bastante utilizado na Umbanda – religião pensada como genuinamente brasileira por muitos de seus adeptos – para produzir pontos riscados no chão por entidades sobrenaturais. A moleza deste pano se contrapõe a resistência de outro trabalho seu não mostrado em Territórios, no qual uma placa de bronze traz gravado os dizeres “A história se encerra em mim” (2013). O antropólogo Helio Menezes, em leitura atenta acentua o impasse carregado de tensões no processo de vir a ser da obra Aqui em se plantando tudo dá (2015), outro trabalho exposto em Territórios na qual Lauriano investiga as violências da história brasileira a partir de sua permanência na atualidade. Sob o verde
das folhas da planta assistida e controlada há a cor vermelha que embora não se mostre sabemos existir. O desejo por essa cor no sistema sócio-cromático europeu arrasou sociedades indígenas, algumas das quais extintas no contato com o colonizador europeu. Enquanto em Lauriano essa cor se esconde sob o corpo da árvore em crescimento que necessita ser destruída para ser notada, a ponto de esquecermos a ganância que deu origem a sua exploração, lembro de Desvio para o vermelho - (1967-1984) de Cildo Meireles, no qual o vermelho nada esconde, ao contrário revela tanto sobre as formas e sobre a cor que o espécime de pau-brasil insiste em ocultar.
UM GESTO DE ACOMODAÇÃO NARRATIVA Para os estudos de cultura material contemporâneos, incluindo-se aí as pesquisas com obras de arte, os objetos possuem trajetória, tem biografia, pois, como os seres humanos, eles tem vida social, deslocamse, produzem efeitos. Vi Incômodo pela primeira vez em Histórias Mestiças, (2014), exposição de Adriano Pedrosa e Lilia Schwartz que reuniu uma boa quantidade de obras em torno deste assunto caro ao imaginário brasileiro. Falar de mestiçagem, todavia, repõe a ideia de que há diferentes raças, e o pior de tudo: raças puras! Adquirido pela Pinacoteca em 2015, como parte de uma estratégia de atualização e ampliação do acervo em comemoração aos seus 110 anos de existência, a obra Incômodo dividida em cinco partes – políptico – foi exibida também em O Banzo, o Amor e a Cozinha de Casa, no Museu Afro-Brasil em 2015, sob curadoria de Claudinei Roberto que faz uma produtiva análise estética do uso intencional da aquarela por Amaral. Vale destacar em Incômodo a maneira como a noção de memória funciona nesta obra que recupera elementos da cultura visual brasileira. Memorizar aqui é invenção, daí o artista montar um cenário alternativo ao 13 de maio oficial no qual Isabel (1846-1921) tornouse a princesa redentora. Os cinco enquadramentos retangulares – unem figuras que se tornaram públicas pela fotografia como o homem de chapéu conhecido apenas como Carregador africano (1905-1910) em retrato de Rodolpho Lindermann, e no extremo oposto Retrato de homem da etnia mina mondri de 1865 feito pelo mesmo Stahl que capturou a aparência da mulher Mina Tapa da obra Assentamento de Paulino.
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Sidney Amaral Incômodo, 2014 Cinco desenhos - políptico - em aquarela, grafite, guache, lápis de cor e tinta de caneta permanente sobre papel
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Outras fotografias transmutam-se em aquarelas no retângulo central – o carté de visite de Mônica, ama de leite de Augusto Gomes Leal, feito por João Ferreira Villela, em Recife de meados da década de 1860; ao retomar a imagem desta famosa ama, Amaral a liberta de seu senhor que some definitivamente da cena; Luiz Gama (1830-1882) em registro de Militão Augusto de Azevedo (1837-1905) é um dos retratos que ladeiam a negra – alegoria da liberdade – acompanhado dos retratos de João Cândido “Almirante negro” (18801969), Chico da Matilde “Dragão do Mar” (18391914) e José do Patrocínio (1854-1905) jornalista e abolicionista dos mais importantes. Finalmente, e isso não esgota as possibilidade de apreensão crítica desta obra, um famoso Xangô fotografado pelo francês Pierre Verger (1902-1996) na década de 1960 no Benin, dança agora colorido, não mais lá, mas no Brasil, afirmando que o Benin está vivo aqui. Gosto pessoalmente da composição no centro na qual uma cruz em pedra, símbolo da empresa colonial também católica que foi a escravidão africana, está caída no chão, e serve de apoio a um quase invisível machado bifacial de Xangô posto de pé tendo a sua frente um sacerdote agaixado. Como alguns artistas do passado citados no decorrer deste texto, os artistas afro-brasileiros do presente começam um movimento de internacionalização, que não é propriamente novo indo aprimorar suas pesquisas em residências artísticas, exposições e publicações. Isso muitas vezes é feito sem o devido acompanhamento da crítica, ainda pouco ou nada interessada em rever os enquadramentos tradicionais ou ampliar e incluir mais gente no território artístico. Jaime Lauriano bem lembrou no seminário sobre Territórios o quão era sintomático a ausência de curadores, críticos de arte e galeristas naquele sábado 07 de maio de 2016. Eles, afirmou o artista combativo, estão perdendo o bonde da história.
ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo; também atua como curador e crítico de arte.
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Mestre Valentim Caรงador Narciso (esq.), 1785 Bronze
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Mestre Valentim Ninfa Eco (dir.), 1785 Bronze
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A R TE NEGR A / A R TES DE NEGROS:
uma conversa entre forma , tema , autoria e cor em Territórios
tex to H É L I O M E N E Z E S foto s M A N D E L A C R E W, E D O U A R D F R A I P O N T e G E N Í L S O N S O A R E S
O Brasil era ainda uma colônia de Portugal quando, lá nos idos de 1780, Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), “filho de um fidalgote português contratador de diamantes e de uma crioula natural do Brasil”, nas palavras do crítico e historiador da arte Araújo Porto-Alegre (1806-1879), esculpe as primeiras estátuas em metal fundido da história do país. Ninfa Eco e Caçador Narciso, que compunham o antigo Chafariz das Marrecas, foram confeccionados para integrar o então recém inaugurado Passeio Público do Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa, que há pouco se tornara capital e sede da administração colonial no Brasil, ganhava assim o primeiro parque público das Américas. Espaço cujo planejamento e execução caberiam também a esse excepcional entalhador, urbanista e escultor negro, não por acaso apelidado de Mestre Valentim. Passados mais de dois séculos, réplicas fidedignas dessas duas obras-primas do barroco brasileiro, situadas no centro do primeiro dos núcleos de Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, denominado “Matrizes Ocidentais”, recepcionam os visitantes que chegam ao quarto andar da Estação Pinacoteca. Ladeados por obras de outros artistas afro-brasileiros, Eco e Narciso ajudam a compor um espaço expositivo múltiplo, no qual variados temas, motivos, estilos, técnicas e faturas são postos em diálogo. Esse é também um espaço formado pelo cruzamento de muitas temporalidades: o arranjo curatorial de Tadeu Chiarelli, guiado a expressar a grande diversidade – formal e semântica – da produção de artistas brasileiros afrodescendentes cujas obras integram o acervo dessa respeitada instituição paulista, reúne num mesmo plano peças que datam do século 18 aos dias atuais, borrando as fronteiras lineares do tempo que as separa.
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A disposição das telas nas paredes da sala retangular segue um critério pautado no gênero das obras, aproximando-as com base em suas similitudes: no lado direito, retratos de si e de terceiros agrupam nomes como Arthur Timótheo da Costa (18821923) e Maria Lídia Magliani (1946-2012) enquanto, no lado esquerdo, naturezas-mortas sucedem o tradicional gênero de paisagens, cotejando artistas como Estêvão Silva (1845-1891) e Firmino Monteiro (1855-1888). Ao fundo e, não à toa, nas esquinas com as paredes laterais, Antônio Bandeira (1922-1967), Genilson Soares (1940) e Rômmulo Vieira Conceição (1968) compõem um conjunto de artistas que, por questões de conveniência e síntese, denominaremos “geométricos”.
Toda exposição, como toda obra de arte, é uma espécie de tese em andamento, aberta a tantas interpretações e leituras quantas forem as pessoas que lhe dediquem o olhar. Se a filósofa estadunidense Donna Haraway (1944) tem razão ao afirmar que “todos os olhos, incluindo os orgânicos, são sistemas perceptivos ativos, construindo traduções e maneiras específicas de ver”, então os sentidos de uma imagem serão sempre tributários, em maior ou menor grau, das especificidades e interesses contingentes de quem a observa. Bem como das relações tecidas com as demais imagens que a ela se acercam. O modo de apresentação das obras em Territórios, possibilitando alguns encontros curiosos entre telas que há muito se flertavam, vem corroborar essa ideia.
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Rômmulo Vieira Conceição Representatividade: O Óbvio I, II e III, 2013 Acrílica sobre papel vegetal
O avizinhamento do tríptico Representatividade: O Óbvio (2013), de Rômmulo Vieira Conceição, com a também tripartida Am. 1-Memória (1979), obra de Genilson Soares, é um desses casos. Nesta última, espaços perspectivados, formados por cores e linhas que convergem para um ponto de fuga extremado à direita, criam o efeito de espaços intercalados no qual objetos comuns, como cadeiras, escadas e corredores, convivem numa certa estranheza. A superposição de diferentes momentos de uma mesma coisa, como numa sequência de “fotos” quase idênticas que se sobrepõem, reforça a impressão. Dentro, fora, entre: a fusão do tempo com o espaço, ambos dispostos em camadas, é tema caro ao fazer artístico de Rômmulo. A inspiração nas obras de Genilson, em franco diálogo com tópicos pertinentes à sua produção, especialmente entre as décadas de 1970 e 1980 – como a criação de espaços geometrizados no interior de outros espaços, fundindo-os num mesmo plano; bem como o uso da luz em movimento, formando linhas que demarcam espacialidades de aparente solidez – é trazida à evidência com a contiguidade das telas.
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O arranjo expositivo possibilita ainda outras tantas e imprevistas conversas entre telas, autores e temas, inseridas, entretanto, numa variedade tanto formal quanto semântica irredutível a qualquer unidade. Diante de tanta diversidade, os visitantes haverão de se perguntar: estes artistas e obras dispõem de alguma característica comum? À parte o fato de cada um, a seu modo e em seu tempo, imprimir às suas criações uma releitura original de linguagens artísticas e convenções acadêmicas de origem europeia, alterando-as enquanto as incorporam, haveria algum fio condutor subjacente a tamanha variabilidade? As indagações se ampliam à medida que avançamos nos outros espaços, ou “ilhas”, que dão corpo a Territórios. Também em “Matrizes Africanas” e “Matrizes Contemporâneas”, o mínimo denominador estético comum às obras expostas e artistas selecionados (alguns, inclusive, presentes em mais de uma sala) é a própria irredutibilidade do conjunto a uma narrativa única ou a um critério classificatório exclusivo.
Genilson Soares
Am. 1-Memória, 1979 (detalhe) Grafite, pastel, guache e aplicação de plástico vinílico espelhado sobre papel Ingres
Por certo, uma série de paralelos e influências pode ser traçada entre as técnicas empregadas nas xilogravuras e esculturas em madeira de Emanoel Araújo (1940), as serigrafias de Rubem Valentim (19221991), as litografias de Octávio Araújo (1926-2015) e os múltiplos suportes que dão corpo à obra de Edival Ramosa (1940-2015) agrupada, junto às demais, sob a (vaga e imprecisa) rubrica de “africanas”1. Enganase, entretanto, quem acredite encontrar nesse núcleo alguma unidade temática ou formal: embora filhos da mesma diáspora, a gama de preocupações desses artistas extrapola suas relações com a África – seja esta real, mítica, vivenciada ou reinventada no Brasil. De modo similar, os diálogos e referências bastante fecundos que as artes contemporâneas de Sidney Amaral (1973), Rosana Paulino (1967), Flávio Cerqueira (1983), Jaime Lauriano (1985), Rômmulo Vieira Conceição e Paulo Nazareth (1977) travam entre si, não esgotam as múltiplas potencialidades de sentido que cada peça abarca. Tampouco são capazes de vocalizá-las num só discurso: embora a preocupação em revisitar criticamente a história do Brasil e de repensar as experiências socioculturais dos (e das) afrodescendentes se configurem como motivos subjacentes à maior parte das obras reunidas nesse núcleo expositivo, essas inspirações não encerram, nem poderiam pretender, o conjunto de ideias e inquietações que impele os artistas a produzir.
1
Em outro artigo O lado negro da arte - sobre Territórios Artistas Afrodescendentes no acervo da pinacoteca comento com mais vagar a ideia genérica e exotizante de África que parece subjazer ao argumento expositivo desse módulo de Territórios. Disponível em: (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/ O-lado-negro-da-arte-sobre-Territoriosartistas-afrodescendentes-no-acervo-daPinacoteca-/39/35408)
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ESCOVANDO A HISTÓRIA (DA ARTE BRASILEIRA) A CONTRAPELO Essas afirmações podem parecer óbvias ao leitor acostumado à ideia moderna de que a todo artista é dada liberdade para fazer a arte que quiser, como quiser, sobre o que quiser. Não se espera de artistas europeus que suas obras versem exclusivamente sobre a Europa, nem que as obras de artistas mulheres se refiram unicamente ao universo feminino. Quando se trata de artistas negro/as, da África ou fora dela, entretanto, frequentemente nos deparamos com a busca – por parte tanto de curadores, diletantes, críticos, historiadores da arte como de pessoas nela só ocasionalmente interessadas – de sinais de africanismos ou negritude em suas obras, tenham seus autores deliberadamente optado por esse caminho ou não. Por quê? Essa pergunta, que animou boa parte das discussões suscitadas na mesa de encerramento do Seminário sobre a exposição, promovido pela Revista O Menelick 2o Ato em parceria com a Pinacoteca, fez brotar outras tantas indagações. Composta pelos artistas Rômmulo Vieira Conceição, Genilson Soares e Flávio Cerqueira, a mesa, intitulada Artistas e a forma: É preciso criar para existir, contou ainda com a mediação de Tadeu Chiarelli e tratou questões de difícil doma. Qual espaço nos mercados das artes para artistas negros cujo processo criativo, ou ao menos parte dele, se pauta em motivos do universo sociocultural afrobrasileiro? De maneira inversa, como se dá a inserção de artistas negros cujas obras não necessariamente dialogam com essa temática, enveredando por outras escolhas – como os trípticos de Rômmilo e Genilson que há pouco comentávamos? Teriam essas questões algo a ver com os perversos e persistentes processos de esquecimento e embranquecimento de artistas afrodescendentes na história das artes brasileiras, ao menos na versão oficial que nos é contada?
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O debate é longo e tem raízes antigas. Para entendêlo, precisamos dar corda à memória e revisitar alguns persistentes equívocos que historicamente o acompanham. Refiro-me, especialmente, 1) à suposta vinculação inescapável da cor da pele de um artista às características de sua arte, como se produtor e produto se determinassem mutuamente, numa espécie de conaturalidade de destino. Refiro-me também à 2) delimitação restritiva de temas pertinentes ao artista negro, como se este só pudesse se expressar sobre determinados assuntos e de determinadas maneiras; bem como ao 3) apagamento histórico da decisiva presença negra na criação e desenvolvimento das artes nacionais, da Colônia aos dias correntes. Em comum a todos esses entendimentos, a manifestação de diferentes facetas do racismo, mesmo quando este não se expressa de maneira intencional. Se não, pensemos nas naturezas-mortas de Estêvão Silva, pintor que pertenceu à última geração da Academia Imperial de Belas Artes e que também integra Territórios. Luís Gonzaga-Duque Estrada (1863-1911), um dos primeiros no país a se dedicar sistematicamente à crítica de arte, assim se referia às cores fortes que tanto caracterizam a produção desse artista: “essa prodigalidade de vermelhos, de amarelos e verdes não é nem pode ser mais que um reflexo transfiltrado do seu instinto colorista, vibrátil às sensações bruscas, como é peculiar à raça de que veio”. Para o crítico, que descrevia Estêvão como um “descendente de africanos, conservando ainda traços profundos e
Estêvão Silva Natureza Morta, 1888 Óleo sobre tela
radicais”, a condição racial do pintor seria fator determinante no resultado de suas obras. Como se à base da criação do artista negro residissem não influências e métodos propriamente estéticos, frutos de sua criatividade, mas antes condicionamentos raciais que lhe servissem de guia. Em entrevista recente, publicada na edição 14 da revista O Menelick 2o Ato, Emanoel Araújo, diretor executivo e curatorial do Museu Afro Brasil (São Paulo), ajuda a desfazer parte do engano: “Estevão Silva tem uma cor quente e a gente pode atribuir a ele alguns aspectos, além da sua própria origem. Mas isso não quer dizer que a arte dele seja afro-brasileira. É uma arte quente de um artista
negro, com características de sua própria vivência”, sentenciava, estendendo o pensamento também à produção dos irmãos Arthur e João Timótheo da Costa (1879-1932), ambos negros. Quando perguntado se a fatura de sua produção guardaria indícios africanos, sua resposta é taxativa: “eles são muitos mais voltados à sua formação eurocêntrica do que preocupados em procurar uma legitimidade africana”. E nem poderiam: “para estes artistas”, complementa Emanoel, “a África sempre foi um passado muito remoto, no qual nem os próprios africanos (no Brasil) puderam se expressar como uma cultura material, porque era proibido. E aqueles que tentaram tiveram sua obra destruída pelas batidas policiais”. OM 2º ATO
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A assertiva faz referência à perseguição e invasão sistemáticas a terreiros e casas de candomblé, entre as quais o infame “Dia do Quebra”, de saque e destruição de diversos Xangôs alagoanos nos idos de 1910, é certamente o episódio mais emblemático de um racismo religioso ainda infelizmente em curso no país. Refere-se igualmente, e de maneira crítica, à subsunção da pluralidade de experiências, escolhas e escolas que orientam a produção multifacetada de artistas negros a uma única categoria artística, como se a afro-descendência de um sujeito se estendesse de maneira automática a seu objeto. Mal entendido que nos leva ao segundo ponto de nossa releitura dessa história tão mal contada: haveria um repertório predeterminado de assuntos supostamente mais “válidos” que outros à inspiração de artistas negros? A esse respeito, o crítico de arte Clarival do Prado Valladares (1918-1983), em seu conhecido artigo O negro brasileiro nas artes plásticas (1968), já afirmava que “a sociedade ‘branca’ sabe armar o circo de suas exposições e promoções, porém, necessita injetar, de tempos em tempos, quotas de validade do contexto histórico e cultural. Estas são as oportunidades em que artistas negros, hoje com mais frequência procedentes do autodidatismo e do primitivismo, são descobertos, assimilados, promovidos e amplamente consumidos pela sociedade ‘branca’”. A preocupação de Valladares é justificada. Já à sua época, a produção de uma arte controversamente denominada “primitiva”, ou naïf, encontrava um espaço tanto específico quanto diminuto para artistas negros no mercado da arte. Um nicho formado por um olhar com forte tendência folclorizante, pautado na busca de uma genuinidade popular e de uma autenticidade artística pretensamente livres de convenções. Artistas afrodescendentes, indígenas e oriundos de camadas sociais mais pobres, assim como um número expressivo de mulheres de variadas procedências raciais, compunham (compõem) a grande maioria dos artistas merecedores desse rótulo, numa “coincidência” que mal disfarça a parcialidade de seus critérios ditos técnicos de classificação.
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Com efeito, e desde então, parte significativa dessa produção tem sido também denominada de “arte popular” – produtos de menor prestígio, à margem, por assim dizer, do hierárquico sistema das artes –, a despeito das reconhecidas habilidades técnicas, sofisticadas soluções formais e criativa abordagem temática de seus autores. Agnaldo Manuel dos Santos (1926 - 1962), cuja primorosa arte escultórica fora
Flรกvio Cerqueira Antes que eu me esqueรงa, 2013 Espelho, madeira e pintura eletroestรกtica sobre bronze
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chamada de “instintiva” pelos críticos (incluindo o próprio Valladares), e Heitor dos Prazeres (1898-1966), cujas telas são continuamente identificadas como “arte genuína”, são dois dos exemplos mais flagrantes, embora não únicos. É certo que hoje os tempos são outros. Mas bem sabemos que a história navega sem bússola: vai e vem, ignora rotas para logo tomá-las, carregando muita continuidade no correr de sua mudança (o inverso é igualmente verdadeiro). Artistas negros têm conquistado cada vez mais espaço nos circuitos de crítica e circulação da arte, ainda que encontrando muitas pedras, portas fechadas e remunerações mais baixas no meio do caminho. Mas também não é verdade que os mercados da arte, predominantemente brancos, masculinos e frequentemente conservadores na eleição de suas preferências, ainda hoje apliquem critérios difusos de “autenticidade” sobre as obras de artistas negros, privilegiando aquelas menos “incômodas”, preferencialmente não relacionadas a questões raciais pungentes? Essa mesma lógica não estaria por trás do efeito paralelo de estranhamento que obras com conteúdo distante da “temática negra” frequentemente causam a tantos curadores, críticos, público e marchands desavisados que se deparam com sua autoria negra? A história oficial da arte brasileira reúne uma vasta coleção de estranhamentos semelhantes. Ao desconsiderar a contribuição decisiva da mão afrobrasileira no desenvolvimento das artes no país, essa história parece mais convidar a equívocos do que desfazêlos, se convertendo numa narrativa cheia de vazios e
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omissões. O antropólogo Lévi-Strauss (1908-2009), para quem “a história nunca é a história mas a históriapara”, certamente não pensava nisso quando escreveu a famosa frase de O Pensamento Selvagem (1962). Seu sentido, contudo, parece-me perfeitamente extensível, especialmente se levarmos a sério o ensinamento do historiador Manuel Querino (1851-1923) de que “foi o trabalho do negro que aqui sustentou, por séculos e sem desfalecimento, a nobreza e prosperidade do Brasil; foi com o produto de seu trabalho que tivemos as instituições científicas, letras, artes, comércio, indústria etc., competindo-lhe, portanto, um lugar de destaque, como fator da civilização brasileira”. O caráter peremptório da afirmação tem procedência: em todos os ramos artísticos nacionais, da arte sacra à música, passando pela pintura, ourivesaria e literatura, são muitos os nomes de afrodescendentes importantes. Alguns célebres, como Aleijadinho (17301814), Teodoro Sampaio (1855-1937) e Machado de Assis (1839-1908); outros nem tanto, como José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), renomado músico da corte imperial, engrossam o caldo de referências negras fundamentais à constituição de nossa arte, cultura e identidade(s) nacional(is). A história, entretanto, tem sistematicamente ocultado, quando não deliberadamente branqueado, a pele de inúmeros deles. Esse processo de embranquecimento da cultura, justamente denunciado por Abdias do Nascimento (1914-2011) como uma “estratégia de genocídio” da população negra, é uma velha (e recorrente) conhecida da história do Brasil, como bem sabemos.
Mas o que tudo isso tem a ver com Territórios? Um espelho com muitos reflexos A resposta, embora resultante de caminhos tortuosos, é relativamente simples: porque o arranjo de Territórios expõe, e de maneira inequívoca, a multiplicidade e inventividade dos modos históricos de ser negro, de ser artista. Na receita desse bolo não há ingredientes ou etapas obrigatórios: um artista negro será sempre e, antes de tudo, um negro artista. Não se trata aqui de mero jogo de palavras: “a consciência negra é imanente a si própria”, como já bem ensinava o filósofo martinicano Frantz Fanon (1925-1961). Levar na pele a cor da terra, a cor escura da terra, numa sociedade racialmente hierarquizada como a nossa, é fator constitutivo da própria personalidade e entendimento de si do artista negro. Sua vivência e trajetória, como as de todo artista, incidirão inescapavelmente em suas obras, versem estas sobre questões raciais ou não. E nem poderia ser diferente: a produção dos artistas afrodescendentes, diversa por definição e princípio, é causa e consequência da diversidade mesma de ser negro, das diversas maneiras de ser negro e estar no mundo. Em outras palavras, e fazendo uso de outra formulação sintética de Fanon: “não há um preto, há pretos”. Exigir-lhes um afinamento temático ou formal na feitura de seus trabalhos é como querer que alhos e bugalhos, massas e maçãs, pela similitude de seus nomes, tenham o mesmo gosto ou atendam aos mesmos propósitos. Uma missão impossível, além de descabida.
É também querer que uma imagem na sala de espelhos seja sempre idêntica a si mesma, esquecendo que seu reflexo pode tanto duplicá-la quanto distorcê-la, reduzila ou aumentá-la. Talvez seja tempo de recordar o trágico enredo de Narciso, que tanto inspirou nosso Mestre Valentim para suas esculturas do Passeio Público carioca. A imagem que só vê a si, como bem demonstra o mito, pode acabar se afogando no próprio reflexo. Além, é claro, de perder de vista a bela ninfa Eco que, condenada a repetir infinitamente a fala de terceiros, segue um destino tão melancólico quanto o do vaidoso caçador por quem se enamorara sem correspondência: a perda da própria voz. Quem sabe não aprendemos a domar o espelho, pautando a liberdade como condição primeira e inalienável de toda produção artística, com toda sua pluralidade de temas, formas, materiais e motivos? Liberdade para falar da cor da pele ou das cores do mundo, quiçá de ambas – ou mesmo de nenhuma delas. O garotinho de Antes que eu me esqueça (2013), obra de Flávio Cerqueira que integra Territórios, talvez nos sirva de boa inspiração: com os pés erguendo o próprio corpo, olhos fechados de quem está antes olhando para o bronze dentro de si do que buscando o reflexo porcelanizado no espelho, saltar em direção ao mundo – e ao próprio beijo.
HÉLIO MENEZES é graduado em Relações Internacionais e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da mesma universidade, atua também como pesquisador do Núcleo de Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS) e do Núcleo Etno-história.
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Senga Nengudi Studio Performance with ´R.S.V.P´ 1976
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A CASA GRANDE EM
perspectivas africanas em papel, risco e conceito. Uma conversa com a Contemporary And
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texto e tradução: LUCIANE RAMOS-SILVA
Testemunhamos momentos de profundas mudanças na reflexão sobre o universo de produção de arte, suas estéticas, poéticas e estruturas de difusão. As muralhas sólidas e antigas do chamado sistema de arte, historicamente dominado pelo binômio brancoeurocêntrico, lentamente se esfacela diante de um conjunto de realidades inexoráveis. As gentes negras, de mil tons e ascendências, aparecem gradualmente como protagonistas dessa fissura. Produzir, criticar, publicar arte – é o que está na mira. Tal fato aponta para um esforço de descolonização de processos e estruturas, pois não basta apenas estar presente ou criticar as hegemonias, é necessário apresentar propostas. E são argumentos que longe de apenas sinalizarem para uma inversão de poderes propõem alterações de perspectivas, das formas de sentir e ser – sábia e astuta estratégia, pois como afirmou a respeitada intelectual e militante Audre Lorde (1934-1992): “As ferramentas do sinhozinho nunca irão desmantelar a casa grande”. Nessas novas escritas conhecemos a Contemporary And – plataforma online e impressa focada nos saberes e fazeres das artes com perspectivas africanas. Sua produção intensa entre ensaios, entrevistas, curadorias, difusão de eventos e chamadas para congressos e residências, apresentação de artistas, produtores culturais e diversos outros materiais produzidos em inglês, francês e alemão, articula ideias e discursos sobre as práticas artísticas de diferentes espaços do continente africano e de suas diásporas, circulando internacionalmente. Lançada em 2013 a publicação/plataforma dissemina informações sobre produções de arte contemporânea fora dos perímetros do hemisfério norte. Ao apreciar a riqueza de materiais da plataforma, percebemos o quão pouco sabemos e conectamos com os universos das artes visuais nas Áfricas e mesmo nas diásporas. Estará o circuito das artes visuais brasileiras interessado nesses universos? As africanidades que fecundam a experiência brasileira são conteúdos que servem para o pensamento artístico elaborado pelo mainstream canônico? Artistas negras e negros de distintos discursos são bem vindos ou tolerados? Sabemos que a negativa prevalece como resposta.
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Os enunciados polidos e supostamente bem intencionados só revelam o quanto estamos longe de uma discussão sensata e honesta sobre os privilégios que envelopam o mundo das artes. Há no Brasil sutilezas muito próprias de uma noção de convivência harmônica entre as diferenças, que, se a crítica cultural já derrubou por terra (vide as produções intelectuais de Beatriz Nascimento, Antônio Sergio Guimarães e Abdias do Nascimento, por exemplo), as lógicas paternalistas ainda insistem em sustentá-las. As propostas expositivas que possibilitam a visibilidade de artistas negras e negros são, com frequência, avaliadas de maneira redutora e superficial, pautadas por questionamentos rasteiros de que tais projetos incentivam rótulos e guetos. Essa seria (ou é?) a resposta fácil dos segmentos inconformados com o escurecimento dos novos tempos e comprometidos com a velha e carcomida democracia racial brasileira. Parece até um certo saudosismo às noções de arte primitiva em voga no século passado, fruto do conhecimento antropológico que idealizava a Europa como o ápice do processo evolutivo e colaborava para noções dicotômicas como “objetos de arte” versus “artefatos etnográficos”. Curadores de museus, historiadores da arte e outros produtores de conhecimento são predominantemente orientados e alinhados com o hemisfério norte. Entender o sistema de arte no Ocidente implica percebê-lo como sistema de dominação. Mesmo que no imaginário brasileiro colonizado e no conjunto de produções valorizadas e visibilizadas pelo mercado de arte o elemento negro plural esteja ausente, há um volume vivo de produções que já não pode mais ser silenciado. As 106 obras apresentadas na exposição Territórios: artistas afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca mostra isso. Os subalternizados falam, desenham, pintam, fotografam... Criam criticamente. A circulação de ideias, a formação de jovens intelectuais artistas e acadêmicos, além da contínua e
Yvette Mutumba, Aisha Diallo e Julia Grosse da Contemporary And.
ativa presença de militantes dos diversos movimentos têm mundialmente trazido à tona os dilemas que acometem a produção de conhecimento nos circuitos legitimados de poder assim como as maneiras possíveis de se mover dentro dele, arredondando formatos e ampliando a paleta de cores. Esse movimento quebra a cultura do silêncio que atravessou por muito tempo o mundo das artes visuais. E se a arte afeta os símbolos através dos quais as pessoas se mostram ao mundo, devemos pluralizar as linguagens e os sensos de presença para que possamos de fato nos reconhecer na diversidade. Uma nação que não sabe quem é , que vive à sombra e à revelia de modelos colonizados, está fadada ao fracasso.
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Propostas como a da Contemporary And não constituem-se apenas em materiais que preenchem lacunas, mas sim fomento e fermento para espaços de criatividade. É possível investir na multiplicidade e não sucumbir ao confinamento da história única. Nossa entrevistada, Julia Grosse, historiadora da Arte nascida e baseada na Alemanha, co-fundadora da Contemporary And tem perspectivas muito positivas em relação às mudanças desse cenário - prognósticos um tanto diferentes da realidade brasileira - ainda marcada por contornos tacanhos. Porém, não há mais como disciplinar corpos conscientes dos espaços dignos a que têm direito. Trata-se de restituir a fala e decentralizar o mundo das ideias para além da Europa e seus braços bem sucedidos. Trata-se ainda de questionar as bases estéticas que informam nossa produção de arte. Falar de perspectivas africanas significa abrir um extenso corpo de ideias, conceitos e sentidos que renovam nossa experiência e ampliam nossas possibilidades de Ser. O MENELICK 2° ATO: Qual a primeira ideia ao concretizar o projeto da Contemporary And? Julia Grosse: Viajando bastante por diferentes países e cidades africanas nós percebemos que havia uma produção muito rica e que havia muita coisa acontecendo ao redor de todos esses artistas das novas gerações. Nós pensamos em criar essa plataforma para conectar essas riquezas. Trazendo todas essas diferentes perspectivas na África e nas diásporas. Uma plataforma/revista que pudesse criar grandes
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conexões. Às vezes conhecemos uma artista em Acra e de repente ela não conhece um performer do Cairo. Por que eles deveriam saber uns dos outros? Às vezes as pessoas do mainstream da arte chamam-nos “artistas africanos”. O que um pintor de Nairobi tem a ver com um de Acra? Eles têm diferentes ideias estéticas, diferentes backgrounds e biografias e ainda assim as pessoas dos cânones chamam-nos de “arte africana”, isto é algo que devemos superar. Então tivemos a ideia de fazer essa plataforma com perspectivas africanas. É claro que há essa tendência ou sensibilidade para uma perspectiva africana num sentido mais amplo, espaços que guardam referências, determinadas relações e temas comuns relacionados às cidades africanas. OM2°ATO: Parece que há na publicação uma preocupação em mostrar algumas realidades que frequentemente estão fora do esquema normativo das artes. Ao mesmo tempo vocês fazem conexões entre artistas de África e da diáspora. Qual o público da revista? JG: Olhando para os dados brutos de quem está lendo a C& vemos que são pessoas que não estão apenas em Londres e Paris, por exemplo. Muitos são de Lagos, Nairobi, Durban, Cape Town, Dakar e muitas outras cidades africanas - o que para nós é importante porque não produzimos conteúdos para os contextos europeus de produção de arte ou para leitores interessados em uma arte exótica africana, mas nós realmente desejamos artistas que vivam em Acra ou Nairobi assim como em Londres, Paris ou São Paulo. Queremos saber de protagonismos
Edson Chagas Tipo Passe
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oriundos do Brasil também. Realmente a ideia de uma perspectiva africana parece alcançar as pessoas. Estamos abordando esses artistas de diversos lugares porque de fato eles estão em vários lugares.
mas ainda é algo muito novo. Temos por exemplo a Grada Kilomba(1), alguns temas estão sendo tratados nas universidades e tal... mas é ainda algo novo para a sociedade. Vamos dar uns dez anos e provavelmente as pessoas serão vistas nas ruas apenas como alemãs.
OM2°ATO: Sabemos que há uma condição diaspórica que liga as experiências de pessoas de ascendência africana, porém há especificidades em cada território. Entre as diversas discussões provocadas pela exibição da Pinacoteca uma referiuse à nomenclatura “afrodescendente”. como é essa discussão na Europa e principalmente na Alemanha, local onde vocês nasceram e que, sabemos, há numerosos cidadãos e cidadãs alemãs negras. JG: Há muito trabalho a realizar. Há situações em que uma pessoa negra é completamente alemã, mas os alemães parecem não aceitar. Você pode falar propriamente a língua alemã, sem nenhum sotaque, mas não aceitam. Passamos situações como “Ah, você é alemã? mas de onde você é? Respondemos “sou de Colônia” (ou outro lugar) e o interlocutor simplesmente não aceita o fato de você ser alemã e negra. Eles tentam investigar sua genealogia. Por exemplo, se minha bisavó veio de um país africano irão dizer,” ah… ela é de Gana!”. Oras, posso ter uma bisavó nascida em Gana mas nunca ter ido para lá e tampouco falar uma língua de lá, enfim. Na Alemanha, na França, e todos os espaços com histórias coloniais ainda ha um longo caminho a percorrer. Se houvesse uma exibição como esta da Pinacoteca na Alemanha não sei como seria a recepção porque mesmo havendo artistas negros na Alemanha eles ainda não confrontam ou chegam a situações de tensão com a cena de artes alemã. A noção do “nativo africano” ainda é muito presente na Alemanha e em alguns lugares da Europa.
OM2°ATO: A exibição da Pinacoteca traz apenas duas artistas mulheres – o que é retrato de um quadro mais amplo do apagamento da mulher das esferas públicas. Como é isso no contexto em que vocês atuam e na sua trajetória como historiadora da arte? JG: Minha tese de mestrado foi sobre a Kara Walker observando as possibilidades de leitura do seu trabalho - do estereótipo ao empoderamento. Eu gosto da maneira singular e sistemática que ela lida com o racismo. Eu comecei meu doutorado abordando a obra da Adrian Piper, uma grande artista americana minimalista e acadêmica. Ela ganhou o Leão de Ouro na 56ª. Bienal de Veneza no ano passado – o maior prêmio do evento. Por muito tempo as pessoas pensavam que ela era um artista branco, um homem britânico e não uma artista afro americana - justamente porque o nome confundia e ninguém creditava aquela qualidade de trabalho a uma mulher. Em termos de presença feminina há muitas. É um território desafiador.
OM2°ATO: Parece também que há uma resistência para que esses espaços europeus, reconheçam que os povos africanos e suas diásporas participam ativamente do mundo contemporâneo e suas práticas artísticas estão conectadas com essa globalidade. JG: Sim, somos historiadoras da arte, financiadas por instituições alemãs, temos uma socialização alemã...
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OM2°ATO: E como vocês tem sido percebidas pelo mundo branco/normativo/privilegiado das artes? JG: Realmente é curioso. Muitas vezes as pessoas brancas do mundo da arte ocidental perguntam por que ainda precisamos de uma revista com perspectivas africanas. Perguntam se isso ainda é possível ou necessário e nós respondemos que sim, que ainda é necessário. Ainda há um longo caminho mesmo que hoje a situação seja muito melhor que antes. É uma questão de longo prazo. Idealmente talvez daqui uns 10 anos não precisaremos mais, mas neste momento é importante dar visibilidade a esses artistas que provavelmente não teriam oportunidades em grandes galerias como a Tate Modern, por exemplo. De outra forma esses artistas nunca seriam conhecidos. OM2°ATO: Recentemente discutíamos sobre a ausência de galerias de arte focadas em artistas,
Lebohang Kganye The Alarm, 2013
estéticas e poéticas negras nas cidades brasileiras. Como está essa situação nos contextos em que vocês atuam? JG: De fato há algumas galerias. Na África claro, há muitas. Na África do Sul, por exemplo, há grandes galerias e programas, mas muitas só com artistas brancos - mesmo lá isso é uma questão. Na Europa há galerias que historicamente são focadas em artistas negros como a October Gallery, em Londres, que foi a primeira a convidar o El Anatsuy. Nos Estados Unidos há a Jack Shainman em Nova York, que costuma hospedar grandes nomes como Kara Walker. Há ainda
a Victoria Miro e a 1:54 , ambas em Londres. Entre muitas outras. Sim, o cenário está mudando. Há trinta anos as galerias eram um tanto old fashion e focavam essas coleções em perspectivas de arte histórica ou ainda como “arte, artesanato e objeto” e não realmente como arte contemporânea. Há galerias dirigidas por pessoas brancas que se esforçam em mostrar a “arte africana”. Nossa recente experiência no The Armory Show1 como curadoras foi muito interessante, pois intencionalmente convidamos pessoas de cidades africanas e a maioria de galerias negras - o que para nós é extremamente importante. Há diversas galerias
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brancas interessadas em arte negra. Mas os representantes dessas galerias são predominantemente brancos – a ideia é realmente nos libertar e superar esses poderes. Liberar desse olhar branco que decide o que é importante. OM2°ATO: Há outros enfoques além das artes visuais? JG: Nós estamos interessadas em todas as formas de arte, mas o foco está nas artes visuais. Às vezes incluímos festivais de dança, por exemplo, mas somos historiadoras da arte e esse é o lugar de onde viemos. É um campo tão amplo para trazer luz que nos sentimos mais confortáveis assim. OM2°ATO: A conexão arte e política se dá de diversas maneiras? JG: Talvez uma parte da expectativa do Ocidente seja que todos os artistas negros trabalhem com o tema da identidade, da pobreza, da corrupção ou outros tópicos difíceis. Esperam ainda que esses artistas abordem sua própria “identidade negra”. Claro que há muitos trabalhos com tópicos como migração, por exemplo... Mas abordam também aspectos diversos como bauhauss /arquitetura. Ninguém precisa sentir-se forçado a trabalhar com arte política. Isso é muito bom para ensinar as pessoas a mudarem seus olhares, suas expectativas e as imagens em suas cabeças. OM2°ATO: Estamos falando bastante sobre aqueles que concebem a obra artística, mas há um passo que é o da formação de crítica especializada. JG: É interessante porque estamos numa revista de arte e idealmente precisamos de críticos, de críticos negros, e mesmo que possa haver exceções, se temos uma exibição em Acra ou Lagos não é um especialista britânico branco que queremos. Estamos interessadas em especialistas locais. Lagos, por exemplo, é uma cidade que tem alguns desses especialistas se comparada com outras cidades. Talvez dois ou três em toda cidade. Temos desenvolvido workshops onde convidamos jovens jornalistas interessados em arte, sem impor uma ideia europeia sobre arte – esta é nossa forma, quase egoísta, de obter mais críticos de arte negros. São poucos, mas há. Se produzimos trabalhos precisamos expô-los a todos os olhares e não apenas ao ponto de vista europeu. OM2°ATO: Quem faz revista? JG: O time central é pequeno. Somos quatro mulheres - Eu, Yvette Mutumba e Aisha Diallo – alemãs com backgrounds diaspóricos - mais uma ampla rede de colaboradores em Cape Town, Cairo, Londres e outras cidades. A ideia de diáspora está incutida na ideia da Revista.
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Notas 1 - Grada Kilomba – Escritora, teórica e artista interdisciplinar de origem portuguesa radicada na Alemanha. Seus percursos abordam os temas da raça e gênero e seus cruzamentos com os traumas sociais, as memórias e os espaços pós- coloniais. 2 - The Armory Show é uma das mais importantes feiras internacionais de artes que ocorre anualmente em Nova York exibindo trabalhos de artistas estabelecidos e em emergência. Apresentando galerias, curadores e projetos.
PARA ACESSAR: Contemporary And http://www.contemporaryand.com/ 1:54 Contemporary African Art Fair http://1-54.com/new-york/ Funk Lessons – Performance interativa de Adrian Piper. Excerto do vídeo e comentários da artista. https://archivingthecity.com/2010/06/11/ adrian-pipers-funk-lessons/
PARA LER The global Africa Project Museum of Arts and Design. NY. 2010
LUCIANE RAMOS-SILVA é antropóloga, bailarina e mobilizadora cultural. Doutoranda em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP estudou diáspora africana no David. Driskell Center for the Study of the African Diaspora na Universidade de Maryland/EUA. Atuas nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação buscando a interdisciplinaridade.
Emanoel Araújo Um homem e uma mulher, 1979 Madeira pintada
Emanoel Araújo Mulher e o cavalo I, 1969 Xilogravura em cores
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