O MENELICK2ºATO # EDIÇÃO ZER020

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OMNLCK2ATO


Capa Gabriel Ribeiro S/Título (Série Negro Drama) Ilustração, fotografia, colagem manual e pintura digital 2017


“POR QUE AS MORTES DAS PESSOAS NEGRAS NÃO CAUSAM UMA CRISE ÉTICA?” DENISE FERREIRA DA SILVA


C O L E T I V U N A (Maurício Pazz, Kenia Cardoso e Juão Vaz) Empena Fotografia 60 x 85 cm 2015


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Berbe Aqui Jaz Fotografia e manipulação digital 60 x 80 cm 2016



Tutano Nômade S/Título Desenho manual e Ilustração Digital 26 x 26 cm 2017



Tatiana Silva Chuva em mim Técnica mista 42 x 60 cm 2017



PESSOAS QuE nOS APOiAm Allix Thompson / Adriana Aragão / Acervo África/ Aparelha Luzia / Adriano José / Aimê Uehara / Aysha Nascimento / Allan da Rosa / Aretha Sadick / Aryani Marciano / Akins Kintê / Arthur Gomes Costa / Ananda M. King / Aline Motta Aurélio Nespoli / Aline Ramos / Anelise Mayumi Soares / Alba Cerdeira / Ana Paula Araújo de Lira / Ana Flávia Magalhães Pinto / Ana Lúcia Silva Souza / Aryella Lira / Associação Cachuera! / Alexandre Roberto de Oliveira / Allyson Mendes do Amaral / Aline Reis / André Chusyd / Adriana Casarotto Terra / Antônio Freitas (Tapera Taperá) • Beth Beli / Beatriz Aranha Coelho / Betelhem Makonnen / Bruno Santos / Bianca Bittencourt / Bárbara Framil / Bel Coelho / Betinho Hiar / Binho (Robinson Padial) • Clayton Olimpio / Claudinei Roberto / Cidinha da Silva / Caroline Correia / Clanm Cia. De Dança / Ceiça Ferreira / Cármen Sampaio Amendola / Camila Loos Von Losimfeldt / Cris Lima / Cavalera / Cris Moscou • Djalma Moura / Danilo Ramos Silva / Daniela Bousso / Dirce Lopes / Danilo Devichiati (Panda) / Daniella Barsoumian / Deise Alberto / Dirce Julião / Daniela Maria Moreau / Danilo Pêra / Daniel Melim / Dora Madiba / Douglas Germano • Eduardo Mosaner Junior / Ester Campos Mello de Andrade / Eduardo Silva / Eleilson Leite / Elizandra Batista de Souza / Elisângela Fernandes / Esdras Soares / Érica Peçanha / Evelyn Cristina • Fernanda de Andrade Santos / Fernanda Cabral de Melo Oliveira / Flora Furlan / Francine P. Ramos / Fernando Ferraz / Fabricia Cabral de Lira Jordão / Fernanda Ribeiro do Nascimento / Felipe Zanardo Chammas / Fabiano Maranhão / Flavio Carrança / Flora Pereira Da Silva • Girlei Miranda / Gleicy Mailly da Silva / Giselda Perê / Gal Oppido / Guilherme Maia Mendes / Gabriela Leandro Pereira / Gorete Pêra / Gabriel Maia Salgado • Iago Ferrão / Imagina Coletivo / Ildo Rogério Alves da Silva / Ilka Cintra / Ivana Boal / Inaicyra Falcão dos Santos • Jé Oliveira / Jomal Diego Castro Santos / Jorge Mauricio Herrera Acuna / Jadiel Ferreira dos Santos / Janette Santiago / Joyce Maria Rodrigues / João Kulcsár / Julia Ruiz Di Giovanni /


Juliana Biscalquin / Janaína Carvalho • Juliane Cintra de Oliveira / Jose Belmontt Verzola • Kelly Cecília Teixeira / Katerina Elias-Trostmann / Karoline Maia Mendes Pardinho / Kiko Dinucci • Lu Oliveira / Loo Nascimento / Lívia Goldzvaig Bernardo / Liana Zakia Martins/ Lucia Makena / Luiza Meira Eugênio Alves / Luanna Teófilo / Laura Belinky Gaiarsa / Lúcia Klück Stumpf / Laura Muradi / Luciana Braga / Luciana de O. M. Cruz / Laís Oliveira • Mafalda Pequenino / Mazé Cintra / Micaela Cyrino / Marisa Moura / Micha Nunes / Moisés Patrício / Maria Dirce Couto / Martha Lemos / Maria Aparecida Paulino / Mirian Brasil Corrêa / Marcos Paulo Pimenta / Marilea Almeida / Mariana Mota / Mário Augusto Medeiros da Silva / Maria Cristina da Silva / Manoel Galdino / Maria Aparecida Oliveira Lopes / Maíra Gerstner / Maria Cecília Felix Calaça / Marcus Vinicius de Jesus Bonfim / Maíra Kubík Mano / Mariana Lemos / Marcelo D´Salete / Mônica Cristina Cardim de Cerqueira / Maria Cecilia Braga dos Santos • Natália Neris • Oswaldo Faustino / Oswaldo de Camargo / Otávio Bontempo • Pablo Lafuente / Priscila Lourenço / Paula Chieffi / Patrícia Meschick / Patrícia Pellegrini / Peter de Brito / Paola Maués / Pedro Matado • Regina Santos / Rafael Cardone / Renata Martins / Regiane Ishii / Renato Borges / Rosyane Silwa / Roberta Estrela D’Alva / Reinaldo Reis / Roberta Stein / Rodolfo Lo Bianco / Renata Felinto / Rosana Paulino • Sidney Santiago / Stereo Royale / Semayat Oliveira / Spensy Pimentel / Sarau do Binho / Sayonara Pereira / Sirlene Barbosa / Silvia Tavares / Sidney Amaral / Stefania Gola Piacentini / Stéfanie Fanelli Casellato / Samuel Ramos da Silva / Suzi Soares • Tadeu Chiarelli / Tula Pilar / Tamara dos Santos Cereja / Tai Cossich / Tárcio Vasconcelos / Tiago Gualberto • Vilma Barban / Vanderlei Yui / Velluma Azevedo / Valéria Boa Sorte / Victor Armani Mikalonis / Vanessa Carvalho • Wendy Jehlen

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2o ATO É UMA PUBLICAÇÃO DA MANDELACREW COMUNICAÇÃO E FOTOGRAFIA. CNPJ 27.612.347/0001-41 RUA ROMA, 80 – SALA 144 – SÃO CAETANO DO SUL/SP - CEP: 09571-220 / TEL (11) 9 9651 81 99 / ISSN 2317-4706 diRETOR NABOR JR. I MTB 41.678 I nabor@omenelick2ato. com cOncEPÇÃO EdiTORiAl LUCIANE RAMOS-SILVA e NABOR JR. cOnSElHO EdiTORiAl ALEXANDRE ARAUJO BISPO, CHRISTIANE GOMES, LUCIANE RAMOS-SILVA e NABOR JR. REviSÃO VALÉRIA JULIÃO APOiO EdiTORiAl NATÁLIA PAIVA diAGRAmAÇÃO EDSON IKÊ I ensaiografico.com. br PROJETO GRÁFicO E diREÇÃO dE ARTE NABOR JR e EDSON IKÊ diSTRiBuiÇÃO GRATuiTA EM CENTROS CULTURAIS, SARAUS, GALERIAS DE ARTE, SHOWS, FEIRAS, FESTIVAIS, CASAS DE ESPETÁCULOS, LOJAS, BIBLIOTECAS, TEATROS, BOTECOS E ZONAS DE CONFLITO. cOnTATO revista@omenelick2ato.com | omenelick2ato.com ANO VII – EDIÇÃO ZER0XX

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A REviSTA O mEnElicK


FOTO JOร O LIBERATO

Sidney Amaral Trauma Bronze e pintura eletroestรกtica 8 x 10 x 8 cm 2014 15


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Ana Lira Flora Mota Coletivo Assalta! Gabriel Ribeiro Amadou Kouyaté Marcelo D´Salete Thiago Consp Aryani Marciano Cidinha da Silva Fábio Mandingo Luciane Ramos-Silva Alexandre Kishimoto Nabor Jr.


SUMÁRIO

TEXTOS

022 APONTAMENTOS PARA UM RESPIRO Ana Lira 032 VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E INVISIBILIDADE SOCIAL DOS QUILOMBOLAS Alexandre Kishimoto 042 OUTRO DIA Fábio Mandingo 084 ELAS CONJURAM Luciane Ramos-Silva 064 #PAREM DE NOS MATAR! - MEMÓRIA DA LUTA DE PESSOAS NEGRAS COMUNS PARA SE MANTEREM VIVAS Cidinha da Silva 072 ESPAÇOS PENSANTES, MAS POUCO ATUANTES: O RACISMO NA

052 O NÃO-DITO PORÉM OUVIDO Amadou Kouyaté 031, 041, 049, 063, 083, 097 PESQUISA / O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO

UNIVERSIDADE Coletivo Assalta! NEGRA NO BRASIL Flora Mota 18


ARTES CAPA Gabriel Ribeiro| ARTISTAS SELECIONADOS 1O CONVOCATÓRIA ARTES VISUAIS

05 C O L E T I V U N A 07 Thays Berbe 09 Tutano Nômade 011 Tatiana Silva | ARTISTAS CONVIDADOS 051 Thiago Consp 098 Marcelo D´Salete 059 Aryani Marciano 064 Cena 7 022 Betelhem Makonnen 015 Sidney Amaral (em memória) O MENELICK 2O ATO:

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e d i tor i a l

A 20a edição da Revista O Menelick 2º Ato toma corpo a partir de uma urgência imperativa: chamar atenção e responsabilidade para a banalização das violências físicas e simbólicas replicadas cotidianamente sob a vida da população negra, legitimadas pelo aparato do Estado e ignoradas por parte do corpo social brasileiro. A desumanização dos grupos que são percebidos socialmente como “Outros” é fruto de um pensamento colonial que, atualizado, retoma as velhas premissas de hierarquização que cindiram o mundo em “supostos civilizados” e “supostos primitivos”, disseminando toda sorte de dualismos para garantir a manutenção de privilégios e o monopólio da narrativa eurocêntrica. Enquanto mídia ativista, nos sentimos comprometidas/os em fortalecer o discurso crítico a partir de escritas agenciadoras e cientes do território movediço sob o qual bailamos. Assim, os impactos devastadores do racismo, que em terras brasileiras ganham contornos escorregadios e dissimulados, precisam ser discutidos e enfrentados. Não há dúvidas sobre a relevância do assunto. Basta ler a história e as estatísticas. O racismo é uma chaga que afeta diretamente a vida das pessoas negras, mas também a saúde social. Precisamos discutir privilégios, entender as diferenças que nos constituem e restituir o senso de humanidade há tempos perdido, não apenas em razão do racismo, mas pelo corte afiado do capital, do patriarcado e dos imperialismos.


A desigualdade brasileira se estrutura também na racialidade, ao contrário do que querem fazer crer os herdeiros da falaciosa democracia racial. Contradições e complexidades envolvem o tema, mas enquanto não discutirmos com a devida honestidade, permaneceremos nesse lodo de enganos e mortes. Insistiremos na relevância dessa discussão enquanto os corpos das pessoas negras permanecerem como mercadorias descartáveis, notas de rodapé ou especiaria para avivar pratos insossos. Apresentamos às leitoras e leitores, uma edição trançada por discursos de artistas e gente de ação de diversas gerações, linguagens e pulsos criativos. Como de costume nestes 7 anos de resistência da revista, a arte é inspiração, subversão e mote para transcender. Não buscamos a concordância, mas um debate crítico capaz de implodir os imaginários de estigma e fazer refletir sobre o pertinente enunciado da filósofa Denise Ferreira da Silva: Por que as mortes das pessoas negras não causam uma crítica ética? Estamos com o corpo atento para nossas afirmações tornarem-se grandes movimentos que reafirmem humanidades, interpelem a justiça e ampliem o conhecimento sobre as contribuições fundantes da população negra para a existência do Brasil. Não negociaremos nossa dignidade e seguiremos criando novas formas de existência. Luciane Ramos-Silva Conselho Editorial O Menelick 2o Ato


Betelhem Makonnen Victorian colonial mirror (wall, small) Espelho encontrado e tinta 40 X 60 X 3 cm 2016 22


Aponta mentos para um respiro TEXTO Ana Lira

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Um diálogo comum moveu minha colaboração para esta edição da revista O Menelick 20 Ato- o estado de suspensão em que ficamos quando vimos o vídeo O evento racial: uma proposição de Denise Ferreira da Silva, resultante da conversa que a filósofa brasileira realizou na Casa do Povo, em São Paulo, em 2016. Ela parte de uma questão que permeou seus caminhos de pesquisa, nos últimos vinte anos: por que a morte de um corpo negro não gera uma crítica ética? Denise desenvolveu uma trajetória de estudos permeada por uma extensa revisão da construção do pensamento moderno ocidental e seus impactos políticos, conceituais e éticos no cotidiano global. Em seus escritos e conversas, ela aponta, com muita delicadeza, uma série de proposições sobre as quais penso que precisamos nos envolver para repensar a estrutura que dia a dia contribui para sufocar expressões diversas. Uma das proposições mais fortes nos conta que qualquer pessoa, comunidade, cultura, sociedade, entre outras configurações, cuja produção de conhecimento não esteja assentada na construção de uma narrativa racional determinista (que parte de algo como o tão difundido penso, logo existo) está passível de ser exterminada. Ou seja, se eu consegui compreender adequadamente o percurso de pesquisa de Denise, o que ela compartilha conosco é que [de novo] qualquer pessoa, grupo, cultura, entre outros, cuja produção de conhecimento tenha como base, por exemplo, vivências com a natureza, as sabedorias corporais, outros métodos de lidar com o tempo ou outras análises e narrativas que consideram perspectivas

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não-lineares de experimentar e observar o mundo, estão sendo forçadas a se esconder ou levadas a desaparecer, como o caso de diversos povos latino-americanos e negrodescendentes. Esmiuçando um pouco mais...

a) o discurso de mocinho e bandido que foi criado para contrapor policiais e moradores das favelas - e matar ambos, uma vez que são praticamente todos negros, vindos de grupos sociais que, entre outras coisas, compartilham um cotidiano com baixos salários e outros desrespeitos cotidianos; b) a violência contra estudantes da periferia nas universidades públicas e privadas; c) a perseguição às religiões de matriz africana; d) a expulsão de um rapaz pela polícia, do show do Coldplay, em São Paulo, na base de um “neguinho de merda”, somente porque ele ficou na frente de duas moças em uma escada; e) bem como a cegueira intencional que permeia a produção cultural e artística que envolve as comunidades negrodescendentes e afins... são consequências cotidianas de um programa sociopolítico que foi legitimado para afastar a presença de qualquer outra proposta de vivência no mundo. Essas vivências que se quer manter longe são justamente as que percebem e organizam seus saberes sem passar, primeiro, por uma resposta única, racional, determinada e linear de construção de conhecimento. Além disso, elas não partem do princípio que todas as demais respostas estão erradas e devem ser descartadas. Um exemplo deste programa sociopolítico é a maneira como uma das linhas da medicina, a halo


pática, foi considerada “o único caminho certo e seguro”, para tratar das molezas físicas, [desconsiderando processos sensoriais e espirituais]. Em uma campanha precisa, feita durante décadas pela indústria de medicação e aparelhos, ela conseguiu colocar em dúvida toda uma gama de saberes gerados por dezenas de outras linhas de cura que circulavam no mundo, ao tratá-los como insuficientes, secundários e duvidosos, causando a desconfiança de grande parte da população urbana que vive no mundo. Pensando neste conjunto de reflexões propostos por Denise, creio que temos bons desafios a desenrolar. Um deles é fazer com que as proposições dela sejam traduzidas para as nossas línguas, uma vez que praticamente toda a pesquisa foi desenvolvida fora do Brasil, publicada em inglês, e nenhuma editora local teve interesse ainda de difundir por aqui [por que será?]. Outro é promover um intercâmbio das proposições que ela traz com o público em geral, uma vez que muitos dos conceitos e linhas de reflexões que ela aborda usam termos distantes da maioria da população. Não podemos negar que é uma escolha política do nosso programa educacional distanciar as pessoas destas proposições esclarecedoras e questionadoras; além de ser uma escolha política da própria academia continuar reforçando linguagens que são compreendidas somente por quem frequenta seu cotidiano. Deste modo, creio que um de nossos papéis é encontrar estratégias de promover um abraço entre esses conhecimentos, da forma mais acessível que pudermos. Se não colocarmos nossos

corpos e capacidades para sermos conexões, os saberes que elaboramos – dentro e fora dos circuitos institucionais – vão continuar servindo para alimentar a mesma estrutura de poder que faz parte do sistema de exclusão e extermínio que a própria Denise aponta. Ouvindo as reflexões que ela nos traz, sinto, do fundo do coração, que não podemos mais nos contentar com a ideia de que a nossa trajetória só faz sentido neste mundo se ocuparmos os ditos espaços de poder como eles estão estruturados hoje – com todos os seus filtros que excluem fingindo que estão incluindo. Um bom apontamento desta questão veio por meio da entrevista que outra filósofa brasileira, Sueli Carneiro, deu para a revista Cult, em maio deste ano. No texto, ela conta que como a sociedade escravocrata não conseguiu impedir que todos os negrodescendentes ascendessem socialmente. Ela usa o exemplo dos que, aos trancos e barrancos, furaram o bloqueio para afirmar que os demais são incompetentes. É o mito da jornada do herói que acreditamos e que nos faz individualizar conquistas, ao invés de perceber que politicamente, socialmente, economicamente e culturalmente estamos em um programa que não foi [e nem é] construído para caber as nossas experiências. Do estudante que sabe muitas coisas sobre andar de ônibus, que nunca caem na prova do ENEM, aos pacientes que não conseguem explicar aos médicos o que é fastio, porque o vocabulário para o esmorecer do corpo, na medicina popular, é visto e difundido como anedota nos circuitos médicos brasileiros.


Em outro contexto, as discussões que envolvem a presença de negrodescendentes nas artes brasileiras, hoje, também se situam muito bem neste exemplo das coisas que não cabem. A estrutura não acolhe temáticas, técnicas, materiais, filiações, saberes, modos de trabalho e caminhos de produção de conhecimento da maioria de nós. Não consegue lidar e nem respeitar a autonomia de expressões existentes na arte de rua, pintura popular, música “não conceitual”, entre outras. Elas são sempre acessórias, dependentes... um lugar que um dia vai atingir outro patamar [sério, qual?]. O circuito lida, muito menos, com a ausência de formação acadêmica presente na vida de artistas negrodescendentes. Este aspecto é importante porque, na escolha pelo direcionamento de recursos para produções culturais, acaba sendo essa formação, junto com a situação financeira, um filtro facilitador de quem vai ter condições de transitar com suas produções, embora não seja garantido que elas possam expressar com autonomia as questões que se propõe. Se colocarmos na mesa a pergunta seminal da Frente 3 de Fevereiro – “Onde estão os negros?” – e aplicarmos ao circuito das artes e da cultura, eles estarão do lado de fora, em todos os sentidos. E, a meu ver, discutir a presença deste grupo na arte, partindo somente da experiência de quem está dentro do circuito, pode ser uma armadilha, porque o sistema articulado para criar as narrativas dos eleitos pode servir para alimentar e reforçar a exclusão. Cuidado é essencial, quando estamos nesse lugar... Dito isso, eu pergunto: será que ainda podemos

acreditar em quebrar esta estrutura por dentro? Denise comenta, em um segundo texto, publicado em 2016, intitulado Sobre diferença sem separabilidade, que a crítica deste programa não consegue questionar a estrutura do próprio sistema, porque suas bases e instrumentos de análise foram elaboradas dentro dele [e para ele?]. Então, como podemos achar que a transformação está em ocupar os espaços de poder usando os mesmos instrumentos, regras e seguindo a mesma rotina que ele propõe? Tudo bem que a própria pesquisa dela e da Sueli Carneiro foram desenvolvidas nestes espaços constituídos de poder, mas, ambas apontam para mudanças que talvez não possam ser resolvidas dentro deles. É fundamental pensar nisso: conseguimos apontar as falhas do programa estando dentro dele, mas será que conseguimos mover a estrutura a partir deste mesmo lugar? Será? Essas questões provocaram um redemoinho na minha rotina interna - o que eu considero benéfico, por me fazer matutar todo santo dia como podemos encontrar caminhos. Por um tempo, eu acreditei piamente que podíamos agir pelas brechas, até que em uma aula recente na Universidade das Quebradas, no Rio de Janeiro, a coordenadora do grupo, Renata Codagan, me disse um enfático “cansei de viver pelas brechas, me escondendo, eu quero respirar o meu lugar no mundo”. Eu quero respirar meu lugar no mundo... Agora, me diga: como podemos respirar o nosso lugar no mundo, em um programa que foi construído para exterminar as presenças e lugares


simbólicos de onde viemos? Em um programa que, para neutralizar as próprias exclusões, finge incluir? O redemoinho interno que começou na proposição da Denise ganhou a força de uma tempestade tropical e eu confesso que está muito difícil continuar defendendo os paliativos que construímos para existir. Quando eu penso nessas questões todas, sinto dificuldade de lidar com meu vocabulário, com a linguagem que aprendi, com a maneira com que recebo e distribuo conhecimento, com a forma como convido pessoas para trabalhar junto ou como estruturo orçamentos de projetos. Sinto uma urgência de mudança em cada ponto do corpo, porque sinto nas palavras de Renata uma proposição tão forte quanto a de Denise. Nós ainda não respiramos nosso lugar no mundo. A morte do corpo negro [que tem como maior e mais grave exemplo a morte física da juventude negra, em especial, nas favelas brasileiras], é também cada coisa que deixamos de produzir com alegria e intensidade porque estamos todo dia ofegando para sermos incluídos neste programa. Todo dia exaustos para conseguir o diploma que achamos que vai nos livrar, finalmente, dos preconceitos. Todo dia exauridos pela roupa, pelo cabelo, pelo emprego, pelo currículo, pelo parágrafo nas leis do estado democrático de direito, pela imagem, pelo voto no político e no líder comunitário, pela atenção do professor, pelo respeito no posto de saúde ou ao cruzar a viatura policial, por qualquer coisa que nos faça acertar a danada da senha do programa que vai nos fazer sair e voltar para casa sem

sentir medo ou com um olhar de dúvida pesando nos ombros. A vida dos negrodescentes e de outros povos com configurações culturais semelhantes é estar no mundo desde que este programa foi estruturado e tomou conta do que entendemos por economia, educação, ciência, religião, artes, trabalho, cultura, entre outros. E tenho acreditado, nos meus sonhos mais sinceros, que é possível construir um caminho de transição, enquanto, trabalhamos nas entrelinhas na elaboração de outros mundos possíveis. Denise aponta, tanto em sua proposição O evento racial quanto no texto Sobre diferença sem separabilidade, que estamos no fim do mundo como o conhecemos. Isto é, que este programa, da maneira como está estruturado, não se sustenta mais. O problema é que as proposições vindas de quem atua nele com tranquilidade visam uma troca de roupa e não uma transformação da estrutura. Ela sabe tão bem disso que está dedicando a segunda parte da sua pesquisa a articular saídas. Uma delas é começar resgatar experiências passadas que antecedem ou não respondam aos pilares do programa moderno de construção de conhecimento. Outro caminho é estimular a imaginação e a experimentação de proposições que não obedeçam aos princípios de articulação e conexão a que estamos acostumados, como, por exemplo, a divisão da nossa rotina no cronograma de tempo-trabalho-descanso proposto por um dos modus operandi do sistema no qual vivemos para trabalhar. Se isso parece absurdo, considerando a vida da maioria dos brasileiros, em especial daqueles que


sustentam famílias nas periferias do Brasil, é porque talvez, eu repito, talvez, o culto ao medo da escassez [um dos pilares que mantém este sistema ativo] esteja trabalhando em conjunto com outras repressões para neutralizar as nossas vias de saída para outros contextos menos massacrantes. Uma das mais difundidas é a de que nada mais podemos criar. Ou, em outra atualização do mito neutralizador, ouvimos todo santo dia, da escola à universidade, nos botecos ou dos nossos pais, que “tudo já existe e não podemos inventar a roda”. E, com isso, esquecemos que a situação que vivemos também foi uma criação que é alimentada todo dia por negociações e relações de poder. Divido uma experiência recente: recebemos um prêmio para expor em Belém, por meio de um edital nacional. Pela proposta, nós precisávamos selecionar estudantes de artes visuais para a equipe de mediação. Eu assisti ao O evento racial dias antes de elaborar a convocatória pública e, depois de conversar com Mariana Porto, uma amiga cineasta que pesquisa educação, não havia a menor condição de pensar na equipe tendo o conhecimento formal e o percurso institucional das pessoas como balizadores das escolhas. Selecionar já era tortura, imagine fazer isso nos modos tradicionais? Era preciso iniciar uma transição. Então, abrimos a convocatória pública para estudantes de artes visuais, mas deixamos claro que não queríamos receber currículos. Fizemos uma série de perguntas pessoais, pedimos que eles compartilhassem referências e fizessem uma carta de desejos, que podia ser em texto, áudio ou vídeo em que comentassem como viver pode ser um ato político? [Outros meios

de seleção ou abolir seleção, que é uma ideia que eu prefiro, é trabalho a expandir]. Diante das conexões entre participantes e o projeto que estávamos querendo construir na cidade, propusemos uma segunda fase de encontro em que eles elaboraram um roteiro de visitas [cerca de uma hora] em seus próprios bairros. Em vez da turma vir até nós, a equipe é quem foi até cada um deles, de ônibus, seguindo o percurso que informaram. Esta escolha foi essencial para compreender a rotina de cada um: trajetos, amplitude dos deslocamentos, enfrentamento corporal nos coletivos, como se relacionavam com os lugares em que moravam, em suas potências e conflitos; e, principalmente, diante de uma equipe externa aos seus contextos, como faziam escolhas e compartilhavam essa produção de conhecimento. A experiência mudou todas as percepções de mediação que havíamos construído até então; e, se não era mais possível usar os instrumentos tradicionais de seleção como filtro de escolhas, era ainda menos possível propor que se vestissem, falassem, agissem e desempenhassem as funções tradicionais de mediação que vemos nos espaços de arte [os poucos que possuem mediação, porque na maioria dos casos, o mediador é reduzido a guardião de obra]. O que a equipe [Andresa Carvalho, Beatriz Paiva, Dairi Paixão, Lígia Ramalho e Maurício Almeida] desenvolveu foi um experimento, partindo de suas vivências pessoais, escolhas e articulações em diálogo com o trabalho exibido e as rotinas dos grupos visitantes. O projeto artístico não era o fim, mas uma das peças com as quais eles se conectaram


para discutir como compartilhamos experiências com grupos que podem ou não estar afinados com nossas proposições. Como é possível reconhecer diferenças sem precisar desaparecer com o outro do mundo? Denise coloca em Sobre diferença sem separabilidade, que um caminho é não lidar com as diferenças como oposições [que criam abismos e colocam o outro sempre como algo que deve ser afastado para que ideia da existência universal de alguns possa se manter intacta] mas como singularidades. Ela comenta que se pensarmos que somos manifestações singulares desse todo que nos compõe, podemos criar outras possibilidades para os contextos de extermínio físico, cultural, social, político, espiritual, econômico, entre outros, que vivemos.

Nota: um grupo conduzido pelo artista chileno Amilcar Packer tem se dedicado a traduzir textos de Denise para português, em São Paulo, e tem lançado publicações de grande valor, além de disponibilizar na internet. O texto Sobre diferença sem separabilidade pode ser lido neste contexto. O vídeo O evento racial: uma proposição de Denise Ferreira da Silva também está disponível no Vimeo. Contudo, é preciso esforços queridos para que o conteúdo possa ganhar formatos que possam ser usados, por exemplo, em aulas para para crianças, em estudos de grupos para estudantes, em cartilhas, em casas de passagem, em trabalhos artísticos, em projetos sociais urbanos e rurais, entre outros.

É por isso que, ao ouvir suas proposições, eu concordo que pistas possíveis dessa transição podem estar no conhecimento que já temos dos povos dos quais somos descendentes; diversas outras podem estar na produção de saberes que estamos desenvolvendo agora, entre um fôlego e outro do dia; ou residir, neste momento, em iniciativas nos próprios circuitos periféricos do país. Sinto que é preciso investir energia em agregá-las e, se vamos colocar nossos corpos na berlinda, que seja para encontrar saberes, instrumentos, estratégias e fomentos para respirar nossa existência.

Ana Lira Fotógrafa e artista visual que vive e trabalha em Recife, Brasil. As experiências em que procura estar presente discutem viver como um político e as ações coletivas como processos de mediação. Relações de poder e implicações nas dinâmicas de comunicação estão entre seus interesses no desenvolvimento de projetos, que articulam narrativas visuais, material de imprensa, mídias impressas, publicações independentes. É especialista em Teoria e Crítica de Cultura.



GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL Em 2012, foram registrados 56.337 casos de homicídio no país, configurando um índice médio de 29 homicídios por 100 mil habitantes. Este número é quase o triplo do índice indicado pela ONU (Organização das Nações Unidas) para classificar situações de violência epidêmica. Do total de homicídios em 2012, 30 mil vítimas eram jovens entre 15 e 29 anos e, desse total, 77% negros. A maioria dos homicídios é praticado com armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.

PESQUISA Flora Mota

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ViolĂŞncia simbĂłlica e invisibilidade social dos

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TEXTO ALEXANDRE KISHIMOTO

No dia 3 de abril de 2017, em palestra realizada no Clube Hebraica Rio, no Rio de Janeiro, ao criticar os processos de demarcação de terras indígenas e dos quilombos, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), em clima de pré-candidatura presidencial, afirmou: “Eu fui num quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. (...) Se eu chegar lá (na presidência), não vai ter dinheiro para ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar. Pode ter certeza que se eu chegar lá, no que depender de mim (...) não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”.

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A presença do deputado no Hebraica Rio e o teor de sua fala desencadearam reações contrárias por parte de judeus brasileiros. Naquela mesma noite, do lado de fora do auditório, um protesto articulado por movimentos juvenis da comunidade judaica lembrou em voz alta os nomes de judeus brasileiros assassinados pela ditadura civil-militar de 1964. Em São Paulo, quinze dias depois, os Judeus Progressistas Brasileiros (JuProg), grupo que apoia o fim da ocupação e o reconhecimento do Estado Palestino, organizou na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Desembargador Amorim Lima o Seder de Pessach “Liberdade e Justiça Para Todos”. Pessach, a Páscoa Judaica, é a celebração da libertação do povo judeu da escravidão sob o domínio egípcio. Um dos organizadores, Sérgio Storch, abriu o evento com as seguintes palavras: “Por que este Seder é diferente de todos os outros? Ele é universal pela liberdade e pela justiça no nosso país. Porque estamos aqui ao lado de todos os que no Brasil sofrem ameaças da ferocidade de pessoas, que, em nossos próprios ambientes, como aconteceu na Hebraica do Rio de Janeiro, elogiam ditadores e torturadores e agridem os direitos de diversos grupos sociais que estão aqui hoje conosco. Este Seder é um grito de: Não em nosso nome!”

No dia 6 de abril, a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), junto com a organização Terra de Direitos, protocolou uma representação contra o deputado Jair Bolsonaro na Procuradoria-Geral da República, citando a prática de racismo e pedindo que a PGR iniciasse uma ação penal contra o parlamentar. No documento encaminhado, a Conaq afirma que “o deputado corrobora o discurso racista de

ódio, onde quilombolas não teriam lugar ou função na sociedade brasileira, sem nem mesmo terem condições de perpetuar suas famílias.” Ações semelhantes foram protocoladas pela Frente Favela Brasil e por deputados federais, como Benedita da Silva (PT-RJ). Uma semana depois foi protocolada outra ação, na qual Bolsonaro está sendo processado pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro por danos morais coletivos a comunidades quilombolas e à população negra em geral. Em caso de condenação, ele pode ser obrigado a pagar indenização coletiva no valor de R$ 300 mil, a ser revertida em projetos, a serem indicados pela Fundação Cultural Palmares, de valorização da cultura e história dos quilombos. Mas o que se esconde por trás da fala racista do deputado? Preconceito, ignorância, má fé? Ao tentar deslegitimar as demandas territoriais dos quilombos de todo o país, Bolsonaro citou especificamente os quilombos da região da cidade de Eldorado (SP), no Vale do Ribeira. Essa referência não é aleatória. Nascido em Campinas, Jair Bolsonaro mudou-se com a família para Eldorado, onde passou sua infância e adolescência. Em 1970, aos 15 anos de idade, tomou contato com tropas do exército que chegaram à região à procura de Carlos Lamarca, episódio no qual ele teria se decidido pela carreira militar. Até hoje a família Bolsonaro mora na região e mantém quatro estabelecimentos comerciais em Eldorado.


A fala do deputado reflete a visão racialmente preconceituosa e discriminatória que parte considerável da população local nutre com relação aos quilombolas da região. Os quilombolas do Vale do Ribeira foram referidos por Bolsonaro como supostos vagabundos, que não trabalham, não fazem nada, vivendo à custa de recursos do governo federal e das ONGs. Há algo de factual nesta fala? Se não há, por que então falas como esta são mais comuns do que gostaríamos de imaginar? Talvez porque isto esteja relacionado à invisibilidade social dos quilombolas no Brasil, no estado de São Paulo e, mais especificamente, no Vale do Ribeira. Na visão do senso comum, o Vale do Rio Ribeira de Iguape, que abrange as regiões sudeste do estado de São Paulo e leste do Paraná, caracterizase pela pobreza, pelos baixos indicadores sociais e pelo baixo desenvolvimento econômico, exemplificado pela falta de mecanização da agricultura ou da intensificação agrícola, etc. No entanto, da perspectiva socioambiental, trata-se do contrário. A região abriga a maior área remanescente de Mata Atlântica preservada do país (21% do total), protegida por um conjunto de Unidades de Conservação, como a APA (Área de Proteção Ambiental) dos Quilombos do Médio Ribeira, o PETAR e a Caverna do Diabo. O Vale do Ribeira conta, principalmente, com uma rica sociodiversidade, formada por aldeias Guarani, comunidades caiçaras em Cananéia e na Ilha do Cardoso, pequenos agricultores familiares, além de 88 comunidades autodenominadas descendentes de quilombolas, em diferentes fases de reconhecimento territorial por parte do Estado. 35


As comunidades quilombolas fixaram-se há mais de 300 anos na região. Ao longo deste período, elas desenvolveram uma forma ecológica de cultivar alimentos dentro da floresta, sem prejudicar a natureza. A cada ano os quilombolas cultivam arroz, feijão, milho, mandioca e diversos outros tubérculos, verduras e frutas para o sustento de suas famílias. O sistema de corte e queima tradicionalmente utilizado, conhecido como coivara, consiste na derrubada e queima da vegetação original, no cultivo e no rodízio das áreas de plantio, deixando-as em pousio por alguns anos até voltarem a ser produtivas. Assim, não é coincidência o fato dos quilombolas do Ribeira desenvolverem historicamente seu sistema agrícola tradicional na região mais preservada de Mata Atlântica do país. Com sua forma de ocupação tradicional, junto com os indígenas, eles contribuíram e continuam a contribuir decisivamente para a preservação das florestas da região. 36

Diversas pesquisas científicas recentes, como as do Grupo de Pesquisa Ecologia Humana de Florestas Neotropicais da USP, comprovam como esse sistema agrícola tradicional vem favorecendo a manutenção e a biodiversidade da fauna e da flora da Mata Atlântica. Nesta perspectiva e tendo em vista os efeitos das mudanças climáticas, os quilombolas desta região prestam um serviço ambiental de fundamental importância para nós, moradores dos centros urbanos da região sudeste, e o fazem de forma não remunerada. Além da manutenção da biodiversidade da Mata Atlântica, há outro serviço de valor incalculável que os quilombolas do Vale do Ribeira prestam para nós, urbanos: a manutenção e o fomento da agrobiodiversidade. A agrobiodiversidade quilombola é a riqueza e a diversidade de variedades de cultivares conservadas e selecionadas pelas comunidades quilombo-


las em sua história de ocupação do Vale do Ribeira. Trata-se de variedades de arroz, milho, feijão, mandioca, entre outras, que foram sendo adaptadas aos diferentes solos e microclimas locais. Em 2015, as comunidades junto o Instituto Socioambiental realizaram um mapeamento, em que foram identificadas 15 variedades de arroz, 11 de milho, 15 de feijão e 18 de mandioca. Mas qual é a importância disto? A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha faz parte de uma força-tarefa internacional, o Painel Intergovernamental da Biodiversidade e Serviços Sistêmicos que, diferentemente do Painel do Clima, dá ênfase ao conhecimento tradicional tanto dos povos indígenas quanto de comunidades locais. Em entrevista concedida em março de 2016, ela relembrou o caso da grande fome da Irlanda, ocorrida no século XIX. Na época, a base alimentar da população pobre era a batata. No entanto, eles dependiam do cultivo de apenas duas variedades, que foram devastadas por

uma praga que durou cinco anos. Um milhão de irlandeses morreram de fome e outro um milhão imigraram para os Estados Unidos. Mas essa vulnerabilidade, o perigo de depender de uma base estreita para a nossa alimentação, se mantém na atualidade: “Você tem dois terços da alimentação mundial baseada em um número muito pequeno de cultivares. Então a base alimentar já é estreita. Por que que são importantes essas variedades, assim, para a agricultura como um todo? Porque essas variedades podem ter características que podem ser muito úteis, por exemplo, diante de mudanças climáticas, por exemplo, diante de ataques de novas pragas, novos insetos. (...) Esse reconhecimento de um sistema agrícola como o dos quilombolas do Vale do Ribeira, ou de outros povos, porque está acontecendo em outros lugares também, é muito importante ao perceber que esses povos tem uma função que interessa a todos, trata-se da segurança alimentar de todo mundo”. 37


A relação das roças quilombolas com a segurança alimentar não se restringe ao seu papel de banco de sementes mantido na roça, contra eventuais ameaças à alimentação. Os alimentos produzidos pelos quilombolas caracterizam-se como orgânicos, antes mesmo do advento desta definição, isto é, são tradicionalmente livres de insumos químicos, em contraponto com os cultivares produzidos pela agricultura convencional, impregnados de agrotóxicos, que se consome nos centros urbanos. Em 2012 as comunidades quilombolas de Eldorado e Iporanga (SP) criaram a Cooperquivale (Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira). Ela nasceu da necessidade de auto-organização das comunidades para a co38

mercialização de sua produção agrícola de forma justa. A cooperativa conta com cerca de 236 cooperados de 16 comunidades. Atualmente, são comercializadas mais de 80 toneladas mensais de 70 diferentes produtos de suas roças para os programas de governo como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o PAA (Programa Nacional de Aquisição de Alimentos). Esses dados por si só desmentem a fala do deputado. Há um último aspecto a ser abordado, além do preconceito, da ignorância e da má fé, que se relaciona com a parte em que Bolsonaro diz que, caso ele seja o próximo presidente da República, se depender dele, não haverá um único centímetro demarcado para reserva indígena ou quilom-


bola. ‘Coincidentemente’, está para ser retomado no STF, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239, proposta, em 2004, pelo então PFL, hoje DEM, contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta a demarcação dos quilombos atualmente. Para Givânia Silva, da Conaq, por trás da ADI está o interesse dos grandes proprietários de terra: “Esse título, uma vez concedido para essas comunidades, permanece para as gerações futuras. Essa terra sai do mercado. Estamos falando de uma disputa de terras, do poder do latifúndio em nosso país, que continua cada dia mais forte”. O futuro das comunidades está ameaçado. Novas titulações não serão possíveis sem o decreto. Mais de 6 mil comunidades ainda aguardam o reconhecimento de seu direito. Na fala de Bolsonaro fica explícita a convergência de interesses entre a bancada da bala, essa constituída por militares e civis que apoia o genocídio dos jovens afro-brasileiros moradores das periferias urbanas; e a bancada do boi, essa dos latifundiários que defende o genocídio das populações indígenas e das comunidades quilombolas. Se os setores mais reacionários do país estão se unindo, precisamos, mais do que nunca, tomar as lutas dos quilombolas e indígenas como nossas.

Alexandre Kishimoto é antropólogo e documentarista. De 2014 a 2016, atuou no Programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental, no processo de patrimonialização do Sistema Agrícola Quilombola junto ao IPHAN. Atualmente integra o coletivo Outras Vozes. 39



GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL EVOLUÇÃO DOS NÚMEROS DE HOMICÍDIOS EM NÍVEL NACIONAL A análise dos dados sobre a violência no Brasil entre 2002 e 2012 revela uma tendência de queda no número absoluto de homicídios da população branca e de aumento nos números da população negra. No período citado, entre a população negra, o número de vítimas cresceu de 29.656 para 41.127, um aumento de 38,7%. Enquanto isso, os casos que envolviam vítimas brancas reduziram de 19.846 para 14.928, ou seja, uma queda de 24,8%. Entre a população jovem, no mesmo período, o comportamento dos homicídios se mantém: os assassinatos de jovens negros cresceram 32,4% passando de 17.499 para 23.160 homicídios. No caso dos jovens brancos houve uma redução de 10.072 casos para 6.823, ou 32,2% no período.

Fonte: Waiselfiz, 2014

Fonte: Waiselfiz, 2012

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Outro dia

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TEXTO FÁBIO mandingo

“Aqui, irmão?” “Assim , de cara?” O mesmo lugar onde sempre iam fazer a cabeça e ver o pôr do sol por cima da cidade. No fundo do 2 de Julho, passando o Grêmio Carnavalesco Fantoches da Euterpe como se fossem descer a Preguiça. Encostados na parede por uma apara que só tinha mesmo o espaço para os pés. Dali era o precipício. Os carros passando pequenos lá embaixo na Avenida Contorno. E a Baía de todos os Santos. “Você tá tranqüilo na sua. Tá de planos feitos pra frente, coroa. Eu só não agüento mais, não dou conta mais, não suporto mais. Você é seguro de si, é um guerreiro, um linha de frente. Eu não sou nada disso. Só um inadequado, você nunca iria entender como eu me sinto. Eu quero deixar.” Nada mais de sol pra se pôr naquele horário entre a tarde e a noite. Restos de aquarela. As luzes sendo ligadas e começando a aparecer. Nos carros também, um pequeno congestionamento começando a se formar lá embaixo, de pessoas voltando do trabalho pra casa. E muriçocas enormes mordendo com seus dentes de venom. “Eu não sou o homem novo, meu mano, não se engane!” Os olhos se cruzaram, pela primeira vez. Os rostos começando a se perder no quase escuro. “A ferida também sangra em minhas costas. Eu também carrego todos os nossos mortos, menino. Todo um cemitério de rostos de dor, todo um repertório de gritos e lamentos, todo um estoque de lágrimas e sangue. Também trago comigo irmãozinho, quando escovo os dentes e quando pago uma conta na padaria, os olhos sempre estão vendo. Vendo e esperando.” “Você agüenta, meu velho. Você é forte. Não cobre isso de mim, eu não sou assim. Só me deixe ir.” “Eu às vezes também quero só deixar ir. Eu às vezes não suporto essa porra toda de ‘mostrar o caminho’. Eu às vezes queria só ficar na feira fazendo pule de bicho, comendo rabada e lambendo os dedos, brigando por ciúme e me entristecendo pelo problema dos outros na televisão. Criando barriga e inchando o tornozelo, cheio de hipertensão. Perder a voz no domingo no Barradão, três latinhas por cinco reais.” “É outra coisa. Não me tire por você. Pra que essa insistência sua? Nem era pra você estar aqui. Cheio de hipertensão...isso não existe, né? Ou tem ou não tem.”


“Não quero te perder meu irmãozinho. Você é importante demais em nossas vidas pra ir embora assim. Puta que pariu, nem consigo imaginar uma porra dessa.” “Nada, meu velho, fique tranquilo, nada vai mudar. Os dias vão continuar seguindo sem mim, tudo vai continuar seguindo sem mim.” “Eu já fui deixado quase morto aqui nessa avenida, sabia? E foi ali que os meninos foram mortos. Tiro de 12 na cara, arrastados no asfalto enquanto as namoradas esperavam em casa eles voltarem. Será que tem algum tipo de maldição aqui nesse lugar?” “Essas histórias que você já me repetiu tantas vezes...qual lugar dessa cidade não seria amaldiçoado então? Beiru? Engenho Velho? Cosme? Cidade túmulo da desgraça, se o cara for de visão vive assombrado nessa merda. E não só dos seus mortos, mas de todos os mortos de todos. Fantasmas, almas penadas vagando por cada rua, Alto de Coutos? Engomadeira? São Cristóvão? ” À noite eram duas escuridões os dois ali escondidos do mundo. Quem passava na rua de cima não via e nem ouvia. Quem passava lá por baixo nem imaginava. O vento trazia um pouco do que é frieza nessas terras, cheiro das bananeiras encravadas na encostas, o mel minando do coração que durante o dia fica cheio de abelhas e beija-flores. “Ontem eu fui ver Zé Raimundo na OAB e quando saí fiquei ali parado um tempo naquela encruzilhada da Piedade que vem da Joana Angélica e fiquei encantado com o frenesi da cidade. Tanto tempo trabalhando em espaços fechados, maninho, que fiquei igual bobo encostado no poste olhando os meninos vendendo perfume Avon e chip de telefone, as pretas lindonas atravessando a rua como se tivessem desfilando em tapete vermelho, os shortinhos de dois dedos que faz a gente ficar doido, as moças com o cabelo alisado pintado de loiro tentando vender empréstimo, exames de vista.” “Você já é um saudosista, meu velho. Talvez já fosse saudosista quando tinha minha idade. Apegado a essa porra aqui. Eu só vejo esforço. Esforço. Esforço pra fazer sem adiantar porra de nada. Você vê como é, um com o braço arrancado, outro feito peneira cheio de tiro, outro com os ossos esmagados, outro crescendo sem o pai. Você está aqui, sabe que não é fantasia nem filme. Sabe que é sangue mermo, que é lágrima mermo, que é dor mermo, que nunca mais vamos se bater com ele no meio da rua pra falar de time, pra zuar das tatuagens feiosas que ele tava fazendo. Eu cresço nisso aqui. A menina ta tendo que ir às quatro da manhã toda semana na feira pra comprar pramil pro coroa dela revender lá dentro. Tomar dedada de guarda, esculacho toda hora. Porque desgraça você quer me prender aqui?” “Talvez você seja mesmo abiku.”


“Talvez você esteja tentando me vender uma ilusão. Talvez seja você o fraco dessa história, coroa. Pagando seus impostos, cumprindo seus horários, planejando as coisas que nunca vai ter. Vai ser quando? Quando o pau não subir mais? Quando já tiver tão feio que nenhuma mulher te queira? A gente não vale nada nessa porra. Animal de carga. Jegue de moenda. Girando a pedra. Pra moer a cana. Pra tomar quentura na cara até virar rapa. Pra se encher de catarata, pra se encher de arritmia, pra se encher de artrose, pra ficar banguelo numa cadeira se cagando sem conseguir nem se limpar sozinho. Pra quê isso? Pros brancos viver no luxo??? Pra quê, coroa? Pra quê? Sua vida é melhor do que a minha em quê? Toma enquadro igual a mim, toma esculacho igual a mim. E é velho!” “Vamo sair daqui meu irmãozinho, por favor. Sua mãe ta te esperando, sua irmãzinha te ama, maninho. Os olhinhos dela chegam a brilhar quando te vê. O irmão grande dela. Sua namorada não marcou contigo de assistir o Vitória mais tarde lá no largo? A menina gosta de você de verdade, apaixonada. Você é nossa alegria irmãozinho. Suas brincadeiras que enchem a rua de alegria, não tem resenha sem sua gaiatice. Você é luz pra nós, meu parceirinho.” “Luz pra quem, coroa? Eu sou ‘cara de suspeito’! Eu sou ‘devia ser envolvido com o que não presta’! Eu sou ‘sementinha do mal’! Eu sou ‘pela cara já dá pra saber o caráter’! Eu sou ‘se correu é porque devia’! Eu sou ‘recebeu a guarnição com tiros e foi morto após reagir’! Eu sou ‘alemão do outro bairro que desceu de ralo’! Eu sou ‘encontrado carbonizado na estrada cia/aeroporto’, eu sou ‘infelizmente durante a operação foi atingido por uma bala perdida’! Eu sou ‘morto em um surto de sarna e tuberculose nas celas do bloco três’! Porra, meu velho, você quer baratinar quem com essas idéias? Vai procurar sua turma pra jogar dominó e crescer a pança, puta que pariu...” “Eu nunca pensei nessa solução yanomâmi pra nós, sabia? Nem de banzo. Nem de banzo. Não posso te mentir. No meu mundinho nunca sofri de banzo. Só a dor, é lógico. Essa dor o tempo todo, essa ânsia. Mas nunca pensei em ir assim.” “Eu só quero parar essa dor, meu velho. Só quero que a dor pare pra sempre. Eu sinto tudo isso muito forte...” “Vamos subir guerreirinho, prometi a sua mãe que te levava pra casa.” “Suba na frente. Não vou embora levando raiva sua. E tô cheio de ódio de você agora. Um velho desocupado, intrometido e chato pra caralho. Hoje não.” Ficou lá de cima esperando. Olhava absorto o mar escuro à sua frente. A uma altura onde um simples descuido seria sua queda no vazio. Até lá embaixo onde os carros seguiam com suas luzes teimosas, subindo e descendo de uma cidade pra outra. Alta-Baixa. Baixa. Alta. Deu a mão pra que subisse sem risco. Um vento forte subia


varrendo as pedras das ruas e jogando poeira em seus olhos. “Vinte reais eu chupo os dois. Vinte reais eu dou pra um e chupo o outro. Vinte reais eu deixo vocês dois me foder. Vinte reais. Fudidos! Viados! Devem ser dois viados! O mais velho comendo o mais novo e o mais novo comendo o mais velho!” A menina parecia saída do nada no meio da ladeira. Esbravejou e arremessou um saco de lixo em direção dos dois. Passou longe. Devia ter uns quatorze anos. No ponto em que se alcança o Sodré, dois vieram na direção com as mãos por baixo da blusa. Suja. Furada. As marcas dos ossos no rosto. “Sai desgraça! Aqui é morador! Sacizeiro da desgraça, volte pro seu canto, desgraça, aqui é morador!” Um parecia um menino ainda. O outro homem já feito. Se esgueiraram de volta pra debaixo da marquise onde estavam. Suas sombras se projetavam ladeira abaixo. Sentaram próximo ao ponto de ônibus abaixo do elevador. Comeram um acarajé e um abará cada um. Uma cerveja meio gelada. Nunca gelada totalmente. O carrinho de café tocava alto Silvano Sales. Uma senhora de idade vestida somente com uma camisa de político e calcinha dançava com uma lata de cerveja na mão. Os cabelos arrepiados pra cima. Descalça. As pessoas se apinhavam esperando a condução. Voltando do trabalho com roupas suadas. O rádio no fone anuncia a escalação da equipe pra o jogo de mais tarde. Moças de calças apertadas desenhando o quadril, cansadas. Grupos de meninos com fardas escolares, perdidos no horário. Atazanando o vendedor de CDs perguntando sobre os filmes e preços das gravações piratas. Aquele vento vinha varrendo desde a baixa do Pilar, pelo Julião, pelo Comércio. Trazendo a fedentina do lixo não recolhido, dos corpos crackudos encolhidos nos cantos, do sangue estagnado dos cortes sem costura. Levava no vento o cheiro do azeite, a música grudenta, a juventude da menina risonha que esperava na saída do elevador de olho na tela do telefone o namorado atrasado. “A guerra hoje em dia é ultra, meu senhor. Quando a gente estiver conseguindo sair um pouquinho disso aqui, os caras vão estar nos filmando via satélite, modificando o gens de nossos filhos, envenenando nossa comida, nos matando sem precisar dar um tiro. Você ainda está com a cabeça em Panteras Negras, meu senhor, mas hoje a guerra é de videogame. Se deixarmos por um momento de ser corpos descartáveis na cidade. Caranguejos brigando eternamente pra sair do balde. Sacrifícios vivos do diabo que eles cultuam e que se alimenta diariamente do nosso sangue. Aí eles não precisam mais dar um tiro, meu senhor, não vai importar mais a bravura nem a disciplina das tropas de Nzinga. Vamos ser dizimados de chuva química, lobotomi-


zados em massa. Os poucos de nós que forem necessários pra que eles continuem vivendo em sua orgia permanente.” “Trinta centavos, pra subir o elevador.” “Observe e contemple o desespero, meu velho.” “Aquele fogo que dá pra você ver queimando lá no longe, é a refinaria de Madre de Deus. Eu já trabalhei lá um tempo atrás. Ali logo depois vem Candeias e Simões Filho. Já tive uma namorada por lá, faz um cozido maravilhoso, daqueles que você cai no sono logo depois que come, mesmo se não estiver bebendo nada. Ali vindo por São Tomé você pode pegar a barca pra Paramana. Você já foi em Paramana? Logo quando a barca encosta você consegue ver seis metros de água transparente, os peixes todos, as arraias. Quero te levar lá. Acho que você e sua mãe vão gostar.” “Eu nem quero refletir nesse monte de merda, meu velho. Juro pra você. Não quero brigar contigo. Você tem sido como um pai pra mim. Já te disse isso. Já tive oportunidade de te dizer isso várias vezes. Só quero dar uma pausa nessa náusea que dura o tempo todo. Estancar essa dor, esvaziar isso.” “Fique com a gente menino. Mais um pouco. Você nunca vai ser descartável aqui. Curta mais sua irmãzinha, ensine coisas pra ela. Deixe sua mãe ter o prazer de te ver sair pro colégio. Deixe eu lembrar de você quando tiver vindo da feira e trazendo aquela fruta-pão que você gosta. Deixe sua menina feliz de te ouvir chamando por ela no portão. Deixe seus amigos sorrir mais um pouco de suas piadas idiotas. Deixe a gente te curtir um pouco mais. Deixe sua vó te passar folha, te fazer invisível pra maldade da polícia e dos bandidos.” “Vamo velho, vamo. Por hoje é só. Vamo descer esse Pelourinho outra vez, mais uma vez. Que hoje daqui a pouco é toque de recolher.”

Fábio Mandingo Nascido em Santo Amaro e criado em Salvador. Pai de família. Ogã de Xangô, Capoeira e rapaz comum. Tem lançado os livros: Salvador Negro Rancor, Morte e Vida Virgulina e Muito Como um Rei, os três pela Editora Ciclo Contínuo.



GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL TAXA DE VITIMIZAÇÃO NEGRA* Em 2010, a taxa de vitimização negra nacional era de 132,3%. Ou seja, para cada pessoa branca vítima de homicídio, haviam proporcionalmente 2,3 vítimas negras. Na Paraíba esse índice chega a 1824,3, ou seja: para uma vítima branca de homicídio, haviam 19 vítimas negras.

*Número de homicídios de pessoas negras para cada pessoa branca

Fonte: Waiselfiz, 2012

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O Não

dito porém Ouvido A história encoberta da percussão e da dança africana nos Estados Unidos

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TEXTO Amadou Kouyaté Tradução Allix ThompsoN

Eu sou um Djeli. Nasci Djeli e 150 gerações antes de mim também foram Djelis. Na cultura mandinga da África Ocidental, meu papel é o do historiador da comunidade. O que chamo de comunidade é, na prática, um lugar conhecido “DMV”, uma área que mescla uma porção de Washington DC, Maryland e Virgínia formando uma espécie de cidade mesclada. O papel do Djeli é o de documentar os atos e lições do passado, tecendo tudo em música para que sejam transmitidos de geração a geração.

e esta comunidade pan-africana – a capital Washington DC. Há raízes que se espalham pelo mundo inteiro, além de muitos ramos que carregam frutos de uma jornada.

Aqui não é a África Ocidental. Estamos nos Estados Unidos da América. A única coisa que os EUA fazem melhor do que a maioria das outras nações é compartimentalizar verdades - uma verdade para cada conveniência. Mas minha verdade é a da conectividade.

Os discursos dominantes nos EUA disseminam olhares subjetivos sobre determinadas expressões de cultura, impondo, através de lentes corrompidas, um vácuo induzido por propaganda que recria uma narrativa que é, muitas vezes, conveniente e não necessariamente consistente. A comunidade da percussão e da dança africana nos EUA é um exem

Vivo entre o continente de minha herança

Essa jornada que narro é antitética à fantasia americana, mas tão potente quanto o desejo de todos que caminham por esta terra: a autodeterminação, seja por meio da cultura, religião, raça, orientação sexual ou qualquer outra realidade.

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plo da aplicação seletiva da verdade, assim como são muitos outros aspectos da vida aqui nesta pátria satélite.

O Hip Hop já não surge dos contos de nossos griôs da rua, mas se tornou um show para ser vendido como produto ou para cumprir agenda. Se pensarmos no Jazz de hoje, não se trata Essa comunidade tem folclore e histórias pró- mais daquela alquimia musical dos nossos gêprias, que são frequentemente sequestradas nios, mas sim uma moeda de validação para por uma parcela da população que se torna acadêmicos e intelectuais musicais, venerados cada vez mais apaixonada pela assimilação de por elitistas. O mesmo pode ser dito sobre o culturalismos. Há muitos ‘Não ditos, porém Rock and Roll, o Blues, o Punk e outras estéouvidos’ entre o povo negro nos EUA. Um ticas nascidas da articulação da experiência exemplo é a noção de que, como as pessoas ne- africana na diáspora. gras estavam à venda durante o tráfico atlântico, de certa maneira, o direito sobre sua pro- Há um lugar para a cultura africana na Améripriedade intelectual tornou-se disponível para ca que é ao mesmo tempo resiliente e misterioo consumo de quem estava disposto a reduzir so. A cultura da percussão africana é uma pedra nossas expressões ao entretenimento. Esta preciosa endurecida pelo peso da opressão e tendência à aculturação de africanismos tem pelo anseio por autodeterminação. Foi forjada desmantelado o vínculo sagrado entre função nos relacionamentos mantidos entre os filhos e espiritualidade no qual é criada a maioria das de África em hemisférios diferentes do mundo. expressões nascidas da luta. Uma pedra polida por gerações que conheciam


o ritmo desde seus nascimentos, mas falavam em todos os Estados Unidos e punidas com múltiplos idiomas em terras estrangeiras. a morte. Assim, os ritmos e movimentos dos nossos antepassados seriam todos extintos se No despertar da nova paixão do mundo pelo não fosse a engenhosidade [investida] para se djembe, um tambor de mão oriundo da Áfri- adaptar e mascarar intenções frente ao regime ca Ocidental que ficou conhecido em todos os opressivo da Lei Jim Crow, sob a qual a maioria cantos do planeta, há uma jornada de ascen- das pessoas negras nos EUA vivia até a décasão que coloca os africanos, tanto nas Améri- da de 1960. Naquele tempo, a maioria das excas quanto no continente, como figuras fun- pressões da cultura africana difundidas eram damentais na tarefa de preservar esse legado arremedos e interpretações redutoras, sem das nossas africanidades, inaugurando uma fundamento e cheias de estereótipos viciosos. mudança de paradigmas. Entretanto, Pearl Primus, Katherine Durham, Asadata Dafora e outras artistas começaram a Mas é importante entender as raízes desabrir portas e reintroduzir os movimentos da sa presença africanizada nos Estados Unidos África para seus filhos deslocados no Ocidenpara ter uma noção mais precisa. Com exceção te, assim como os pioneiros Chefe Bey (criada Congo Square (Praça do Congo), em Nova dor do sistema de afinação para djembe atraOrleans, onde os africanos escravizados povés de aro) e Babatunde Olatunji, entre outros diam praticar seus costumes nativos, a música que começariam a trazer o tambor de volta às e a dança africana eram estritamente proibidas mãos das pessoas negras nos EUA.


“Estamos enfrentando a luta pelo controle da narrativa. À medida que as expressões tradicionais que compartilhamos com nossa casa ancestral ganham popularidade, lutamos para garantir que elas não sejam despojadas de sua história para serem palpáveis ao consumo”.

Na década de 70, houve um movimento de deslocamento de alguns dos membros dos Balés Nacionais na África Ocidental para os EUA. Estes balés não eram apenas grupos de performance, mas guerreiros políticos na luta para redefinir os imaginários sobre a África trazendo alguns aspectos da cultura sagrada para o palco. Construíram-se comunidades em torno desses professores em comunidades negras em todo o país - por exemplo: Djimo Kouyate e Assane Konte, em Washington DC; Zak e Naomi Diouf, em Oakland, Califórnia; Papa Ladji Camara e Marrie Basse Wiles, em Nova York, isso para nomear apenas alguns dos pioneiros. O legado desses homens e mulheres na comunidade de dança e percussão africana nos Estados Unidos se estende há quase um século e existem gerações que foram educadas ao longo da vida com a profunda influência dessas práticas artísticas e espirituais da África. Hoje estamos passando por uma era de síntese

de aculturação. Os Africanismos tornaram-se tão integrados na vida das pessoas nesta comunidade que, muitas vezes, não há divergência de conhecimentos e habilidades entre africanos e afro americanos. Somente a água do oceano nos separa. Assim como prevalece esse africanismo aqui, talvez o reconheçamos também em nossa família extensa no Brasil, Cuba, Haiti, Colômbia e grande parte do hemisfério sul, como um aspecto da prática cultural africana tradicional cultivada nas Américas. Uma viagem quase milagrosa, considerando os esforços para despedaçar a conexão entre descendentes desterrados e sua herança tradicional. Depois de termos recuperado nosso direito enquanto herdeiros de nossas tradições, enfrentamos agora a luta pelo controle da narrativa. À medida que as expressões tradicionais que compartilhamos com nossa casa ancestral ganham popularidade, lutamos para garantir que elas não sejam despojadas de suas histó-


rias para serem palpáveis ao consumo. A continuidade das tradições é tão viável quanto a expansão das expressões que dela se originam, porque são ferramentas na recuperação da nossa identidade africana - para os que estão no continente e em toda diáspora. A indústria da cultura não deve comprometer a integridade dos movimentos culturais.

AMADOU KOUYATE é professor de etnomusicologia e artista. Nascido em Washington DC, é parte da geração dos griôs kouyaté, uma família de historiadores orais da África do Oeste.


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GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL FEMINICÍDIO-HOMICÍDIO DE MULHERES NEGRAS Entre 2003 e 2013, o número de homicídios de mulheres brancas reduziu 9,8% (1.747 para 1.546). No mesmo período, o número de vítimas negras aumentou 54,2% (1864 para 2875). O perfil se mantém após a vigência da Lei Maria da Penha (2006): O número de vítimas brancas caiu 2,1%, enquanto as vítimas negras aumentaram 35%. O índice de vitimização das mulheres negras em relação às mulheres brancas vem crescendo: em 2003 o índice era de 22,9%, em 2013 ele chega a 63,7%.

Fonte: Waiselfiz, 2015

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FOTO FELIPE CHOCO

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memória da luta de pessoas negras comuns para se manterem vivas

#Parem de nos matar!

Texto Cidinha da Silva

A questão-motriz deste ensaio é: por que as mortes de pessoas negras e violências raciais contra elas não provocam uma crise ética? O contexto sócio-histórico da pergunta poderia ser o Brasil, a Diáspora Africana, África ou mesmo o mundo e a resposta não sofreria variações significativas. A parte mais óbvia do problema é que em decorrência de questões históricas ligadas à exploração de seres humanos por outros, o corpo negro foi constituído como um corpo de menos valor, de fácil reposição, tranquilamente substituível. Um corpo também, mutilado de maneira impune para atender a adestramentos sociais necessários à manutenção do poder explorador. Um corpo ignorado, quando conveniente, para reforçar sua menos-valia por meio da negação da condição de corpo-humano.


Cada um dos três argumentos acima pode ser exemplificado. Vamos então fortalecê-los e torná-los mais nítidos. Ainda no período escravocrata os corpos negros eram punidos, vilipendiados, torturados e mutilados, porque podiam ser substituídos com facilidade. As surras naquele período eram constantes para adestrar os corpos negros, assim como as ameaças policiais de hoje, aos primeiros suspeitos em qualquer situação. Quanto ao corpo negro ignorado, é fácil percebê-lo na fila de acesso aos locais de arte e cultura, nos quais a maioria dos frequentadores é branca e estes sequer pedem licença a uma pessoa negra para passar à sua frente. Também são desconsiderados os corpos negros de pessoas em situação de rua, mortas pelo frio de São Paulo e tratadas como parte da paisagem urbana, como aquelas que morrem pelo frio mesmo (como se fosse aceitável alguém morrer de frio), “sem sinais de violência no corpo”. O livro #Parem de nos matar! (Ijumaa, 2016), de minha autoria, documenta em forma de crônicas e textos opinativos, aquilo que não pode ser esquecido e que pretende robustecer uma ética do cuidado das pessoas negras consigo mesmas (por meio do registro crítico de sua memória). Esta é a contribuição da obra em suas 240 páginas e 72 crônicas, para alterar esse estado de coisas.

CENA7 Sobre o levante de uma nação e os seres que habitam a fauna Acrílica, látex, spray, aquarela e nanquim 2,30 x 2,30 m 2016

Trata-se de um livro vivo, em movimento, que frequentemente depara-se com parentes e amigos de pessoas negras assassinadas e/ou desaparecidas e, não raro, esses encontros causam constrangimento e impotência à autora, como aconteceu num curso no SESC Ribeirão Preto (SP). Lá esteve presente a irmã de Luana Barbosa, jovem lésbica negra, morta em decorrência de espancamento perpetrado pela polícia, porque resistiu para não ser revistada por homens. Ou o encontro com Ruth Fiúza, mãe de Davi Fiúza (desaparecido pela PM baiana em 2015 numa periferia de Salvador), em mesa promovida pelas Mães de Maio (SP) na reitoria da Universidade Federal da Bahia (maio, 2017).


A pergunta que arrebenta os miolos é: o que fazer diante das pessoas que sobreviveram a mortes e desaparecimentos tão aviltantes? E a resposta possível até o momento tem sido: prosseguir, via literatura, no exercício de agenciamento de uma produção de sentidos sobre nós mesmos. Uma agência que não nos deixe esquecer quem somos, de onde viemos e para onde vamos como membros de uma mesma comunidade de destino. Desse modo, Cláudia da Silva Ferreira, arrastada num porta-malas de viatura policial em Madureira (RJ), não é única, não é um caso isolado, somos todas Cláudias. Tanto porque, como mulheres negras, estamos expostas ao mesmo destrato dado a ela, quanto porque todas nós fomos efetivamente arrastadas durante o martírio de Cláudia da Silva Ferreira. O já mencionado livro, #Parem de nos matar! exigiu abertura de janelas para nuançar sua dureza e para que o leitor pudesse respirar. Fiz isso ao alternar conjuntos de textos que escrutinam situações de violência e extermínio e outros que demarcam de alguma forma a resistência das pessoas-alvo do racismo. O livro é aberto por um bloco de textos que tratam do extermínio do povo negro no sentido alargado, não só da morte física. Passam da vida que é retirada à vida que sobrevive, mas não conta, não importa, como a vida das 276 meninas sequestradas pelo Boko Haram para fins sexuais, no interior da Nigéria e os 2.000 mortos em uma única cidade, também assassinados por esse grupo islâmico-fundamentalista durante três ou quatro dias, enquanto os olhos do mundo estavam totalmente voltados para os atentados ao jornal Charlie Hebdo, na França. Assassinatos de jovens negros gays,


segundo testemunhas, executados por grupos neo-nazistas, mas tratados pela polícia como suicídio. Dimensões raciais da perseguição aos Rolezinhos nos shopings de São Paulo e de todo o Brasil e discussão da política de confinamento destinada a certos grupos sociais x direito à cidade. Duas chacinas imortalizadas no início de 2015, a dos doze meninos e homens no Cabula, Salvador, legitimada pelo governador de plantão como “gol de placa da polícia” e os meninos do Morro da Lagartixa, no Rio de Janeiro, fuzilados por 111 tiros. Em setembro de 2017 a polícia paulistana conseguiu superar a marca carioca e matou 10 homens com 140 tiros no bairro Morumbi. O bloco finaliza com uma crônica sobre os que juntam vinténs na microeconomia do carnaval soteropolitano. A seguir, um grupo de crônicas amplifica vozes dos movimentos de mulheres negras e de Luiza Bairros, uma de nossas grandes lideranças, em dois momentos, como ministra do primeiro Governo Dilma e numa homenagem desta autora, por ocasião do passamento da ativista em julho de 2016. O bloco seguinte é bem movimentado e trata de aspectos diversos da morte simbólica imposta aos negros pela programação da TV aberta brasileira, principalmente a Rede Globo, mas o grupo começa pelo refresco afirmativo representado pelo casal odara do seriado Mr. Brau, Michelle e Brau. O próximo grupo de crônicas aborda a presença/participação das pessoas negras no movimento preparatório ao golpe político-jurídico-midiático, os anacrônicos negros de direita, e também dos que estiveram na resistência democrática, com destaque para os funkeiros que fizeram um baile de favela nas areias de Copacabana, para gritar que a juventude funkeira e negra era também a juventude universitária e os golpistas queriam barrar aquela ascensão. Na reunião de textos seguinte, mais racismo na TV e nas redes


sociais com áreas de respiro trazidas pelo garoto negro e brasileiro, Matias Melquíades, e seu diálogo com Jhon Boyega, ator negro que representou um papel no filme Star Wars, por meio do boneco negro de seu personagem, encalhado nas lojas e escolhido pela identificação racial de Matias. Temos na sequência, mais um bloco duríssimo. São abordados alguns assassinatos individuais que ganharam espaço na mídia por motivos diversos: grau absurdo de violência que escandalizou a todos; mobilizações populares em torno do caso; pessoas de certa visibilidade pública. A crônica, Quanto mais negro, mais alvo, um texto duro na abordagem temática, mas de certo lirismo na forma encerra o bloco. Os três conjuntos de textos seguintes tratam de juventude e educação, notadamente das escolas de ensino médio ocupadas pelos adolescentes que nelas estudavam; textos sobre letramento racial discutindo casos emblemáticos vivenciados por protagonistas brancas e uma longa exegese sobre a morte do ator Antonio Pompêo; crônicas sobre manifestações racistas no futebol. Finalmente, surge o bloco do pescoço fora d’água, textos com alguma poesia para respirar e recompor o espírito. Não porque o livro deva terminar em “festa”, mas porque não podemos perder a esperança e porque insistir na poesia e nos horizontes faz parte da promoção da humanidade mais profunda e do combate mais rotundo ao racismo. Quando decidi publicar o livro #Parem de nos matar!, defini também a publicação do Canções de amor e dengo, livro de poemas cometidos ao longo da vida, já que não sou poeta. Fiz isso para que o segundo amenizasse o primeiro e para poder falar menos sobre o #Parem, evitando assim a visita àquelas narrativas das dores incuráveis dos assassinatos e desaparecimentos de pessoas amadas. 69


Outra estratégia foi sempre convidar pessoas para comentarem o livro, o que também aliviava a necessidade de que eu falasse sobre ele. Passados nove meses de trabalho de divulgação e circulação, porque um livro independente ou publicado por editora pequena deve ser continuamente trabalhado para que venda, já consigo falar mais da obra pela leitura dos textos, o que é mesmo o mais indicado, haja vista que o texto literário deve falar por si mesmo. E com uma crônica do livro, Quanto mais negro, mais alvo!, quero encerrar este ensaio como síntese propositiva. Quanto mais negro, mais alvo! Em verso genial do poema Rondó da ronda noturna, o poeta Ricardo Aleixo nos conta que “quanto mais negro, mais alvo”. Como na letra de Haiti, de Caetano e Gil, Rondó contém doutoramentos inteiros. Teses completas sobre a assimetria das relações raciais no Brasil. É o poder de síntese e de expansão da arte. Engana-se quem pensa que somos vítimas de racismo, somos alvo do racismo, como disse Carlos Moore há décadas, antes de conhecer Ricardo, que por sua vez o disse em 1999, também sem conhecer o Carlos. Existia então, em ambos, o poeta e o antropólogo, compreensão similar desse fenômeno que mata a gente negra, como matou Amarildo da Silva, Cláudia Ferreira, Patrick Ferreira de Queiroz, Douglas Rafael, o DG, e desapareceu a Davi Fiúza, entre milhares de outros homens, jovens, mulheres e crianças negros que não tiveram seus nomes divulgados e são executados pela polícia dia após dia. Quanto mais negro, mais alvo, só seria dito assim por um poeta. Quanto mais negro, mais visível. Visível por ser alvo, por ser buscado em qualquer lugar, em qualquer classe social, em qualquer situação, seja como Rafael Braga Vieira, morador


de rua, preso durante as manifestações de junho de 2013, como se terrorista fosse, por carregar na mochila um vidro de desinfetante e outro de água sanitária. Condenado a cinco anos e dez meses de prisão. Durante dois anos, o único preso remanescente das manifestações daquele inverno. Seja como Thamires Fortunato, estudante da UFF, que durante manifestação contra o alto custo do transporte público no Rio de Janeiro no verão de 2015, foi covardemente imobilizada no chão e algemada, depois de ter tido a blusa arrancada e ter sobre si um brutamontes da polícia, paramentado para a guerra, tratando-a como bandido de periculosidade comprovada. Seja como a farmacêutica e doutoranda em Bioquímica Mirian França, mantida presa por 16 dias no Ceará sob acusação de assassinar uma turista estrangeira com quem fizera contato num sítio de mochileiros. Presa porque apresentou contradições em depoimentos à polícia, tais como o número de cafezinhos que a vítima, Gaia Molinari, teria tomado enquanto estiveram juntas. Mirian foi carimbada como principal suspeita da morte de uma pessoa abatida por pancadas fortíssimas e que lutou para se defender. E ela, a suspeita, de compleição física frágil, não apresentava qualquer marca de luta corporal. Quanto mais negra, quanto mais consciente e senhora de si, mais alvo, como Lília de Souza, jornalista baiana, cujo cabelo black power foi rejeitado por um sistema de renovação de passaporte, obrigando-a a prendê-lo com uma borracha de escritório para que sua imagem fosse aceita. Quanto mais negro, quanto mais melanina, mais alvo. Quanto mais negro, quanto mais negros juntos, mais alvo, mais Auto de resistência. E nessas horas, estamos sós, desprotegidos e sós. Só depois, se sobrevivermos ao susto e à violência, a poesia nos acalentará.

Cidinha da Silva é prosadora e dramaturga. Autora de 11 livros de literatura entre crônicas para adultos, conto e romance para crianças e adolescentes. Tem textos traduzidos e publicados em espanhol, francês, inglês e italiano.


ESPAÇOS PENSANTES, MAS POUCO ATUANTES

O RACISMO NA UNIVERSIDADE TEXTO coletivo assalta!

A universidade é um espaço que gera constantes fricções entre os diferentes corpos que por ela circulam e que nela (re) existem. As fronteiras entre diversidades corpóreas e o espaço acadêmico são latentes, pois a instituição acadêmica é uma evidência das estruturas de poder sobre as quais ela própria se funda e é mantida. Quando se trata de um curso de artes, essas fronteiras vibram pela própria natureza do fazer e da expressão artística. Em junho de 2017, algumas pixações racistas foram feitas em muitos locais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Um dos alvos do acontecimento em questão foi o terceiro andar do prédio do Centro de Letras e 72

Artes (CLA), onde ficam os departamentos de Licenciatura em Teatro e de Atuação Cênica. Frases como: “pretos fedem” e “KKK” foram escritas à caneta tipo piloto ou em giz de cera. Além disso, essas manifestações racistas foram expostas nos banheiros de outros prédios que fazem parte do CLA. Na mesma semana, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também testemunhou ocorrências de ofensas deste cunho. Na UNIRIO, estudantes indignados, em sua maioria negros, organizaram-se para realizar ações contundentes em resposta aos explícitos atos de agressão, entre as quais performances e conversas aber-


tas. Entretanto, não conseguimos promover um efetivo engajamento da coletividade acadêmica. Discentes solidarizaram-se expressando o quanto lamentavam o ocorrido; membros representativos como a secretaria do departamento de licenciatura em teatro, a secretaria da direção da Escola de Teatro e a Escola de Letras, lançaram moções de repúdio e encaminharam o caso para investigações junto à Polícia Federal. Em contrapartida, houve silêncio ou comentários que diminuíam a gravidade do fato, afirmando-se uma provável loucura do autor das pixações. Ainda vivenciamos o não reconhecimento de práticas racistas e violentas dessa magnitude dentro da universidade, além de

nos depararmos com um tipo de inoperância que é adotada pela instituição e por uma parcela significativa daqueles que a constroem quando se trata do enfrentamento aberto aos atos de racismo. É evidente que algumas medidas burocráticas são necessárias, mas a nível institucional e, em uma dimensão prática que realmente interfira e afete a experiência cotidiana dos negros que ocupam seu lugar de direito na UNIRIO, o que se pode fazer? Diante de um pixo ostensivamente registrado nas paredes de um corredor, como devemos proceder para uma mudança verdadeiramente efetiva? Será que uma formação intelectual e cultural torna o indivíduo menos racista? O que esses pixos preten-


dem para além de exibir pela ocultação tais ideais? Qual o barulho que fazem? Eles são gritos no espaço? E se forem, quem de fato os ouve? Talvez algumas das respostas estejam na relação entre corpo, diversidade e espaço acadêmico. Nessa relação pode haver uma abertura à alteridade: ou seja, um interesse pelo outro não para transformá-lo em um igual, mas para lidar com as diferenças e valorizar toda a potência que isso representa permitindo que estejamos todos - alunos, professores e funcionários - sempre em movimento, atentos e críticos a nós mesmos e àquilo que construímos e propomos nos nossos fazeres expressivos e cotidianos. Desde uma peça teatral à ementa de uma disciplina obrigatória da matriz curricular, outras narrativas – além das colonizadas –, podem estar presentes. Então, para se fazer qualquer coisa mais contundente do que os expedientes e trâmites institucionais, é preciso ser corporalmente afetado por aquelas pixações?

É preciso entender que esses escritos inauguram mais uma violência entre tantas outras e que precisam ser de fato apagadas daquelas paredes. O autor das pixações, incomodado com a presença negra naqueles espaços pode a qualquer momento expandir sua violência para além das paredes, justamente por não enxergar as pessoas negras como indivíduos, mas como meros objetos. Por isso, é necessário ter um pouco de medo também. Não um medo que nos paralise, pelo contrário: que realmente nos mova em urgências quanto a casos como esses, pois sabemos muito bem que nossas mortes vêm de atos racistas como aqueles anunciados nas paredes. Seja de forma direta, como temos observado em diversos casos no mundo, devido à ascensão de uma extrema-direita insana, seja de forma indireta, enquanto política ou modus operandi institucional do Estado em todas as suas instâncias: nossas mortes vêm daqueles escritos nas paredes.


“Por que essas pixações não detonam uma crise ética nas universidades? Por que essas grafias do ódio não inauguram um debate sobre espaço universitário e diversidade? Por que esse tipo de violência não é visto como algo crítico?”

Parafraseando uma formulação de extrema importância feita pela socióloga Denise Ferreira da Silva: “Por que as mortes das pessoas negras não causam uma crise ética no Brasil?”. Perguntamo-nos: Por que essas pixações não detonam uma crise ética nas universidades em questão? Por que essas grafias do ódio não inauguram um debate sobre espaço universitário e diversidade? Por que esse tipo de violência não é visto como algo crítico? Se compreendermos que no Brasil a morte das pessoas negras é também uma estratégia estatal para que os poderes permaneçam onde estão e para que se continue perpetuando uma política colonialista repaginada, desconfiamos da eficácia de medidas institucionais na resolução e no tratamento de episódios racistas como este. Devemos também recorrer a estas medidas existentes, mas é hora de nos voltarmos também para a micropolítica. Embora algumas universidades públicas tenham ampliado nos últimos anos o acesso às pessoas ne-

gras e indígenas (sabemos que a implementação das políticas de cotas, que tiveram início em 2003 na UERJ, foi decisória para o aumento do número de estudantes negros e indígenas no ensino superior), o que se nota é que elas abriram espaços, mas há poucos esforços para acolher de fato esses novos sujeitos de direito. Acreditamos que é função da própria universidade e de todos aqueles que a constroem manter uma constante escuta e disposição para se reinventar. A falta de interesse em repensar a existência desses novos sujeitos nos espaços acadêmicos pode produzir a evasão destas pessoas, consideradas desviantes diante dos padrões eurocentrados e da nossa sociedade meritocrática. Esse quadro de ineficiência no combate ao racismo deflagra toda uma incapacidade de exercer autocrítica e, consequentemente, de abrir mão de algumas certezas e privilégios (políticos, financeiros e intelectuais) para produzir-se respeito mútuo. Pessoas brancas precisam compreender que a universidade também é




(1) Rafael Braga Vieira é um jovem negro, pobre. Preso em Junho de 2013 portando um Pinho Sol e um desinfetante, foi acusado de portar material explosivo, que seriam coquetéis-molotov. Desde então sofre com a seletividade da justiça. Para saber mais: libertemrafaelbraga.wordpress.com

local e potência de luta contra racismo enraizado na sociedade brasileira. Não entendê-la como tal seria, mais uma vez, camuflar as ofensas racistas presentes nas citadas pixações. Inscrições no espaço: a importância da escuta

As paredes da UNIRIO são brancas. Branca é a pele do corpo docente e majoritariamente do corpo estudantil. Branca e brancos como um clarão de cegueira. Para que estes pudessem perceber as paredes foi preciso a entrada de estudantes negros que produziram, pela presença corporal, um contraste. As paredes brancas da UNIRIO e de outras universidades viraram uma questão evidente a partir do momento em que esses estudantes negros impuseram suas presenças. Por outro lado, essas mesmas paredes brancas, exibem escritos como: Liberdade a Rafael Braga1”, “UNIRIO racista”, “Cheque seus Privilégios”. Dessa maneira, mostram-se, em alguma medida, como superfícies de comunicação entre o estudante ne-


gro e a instituição: a mão negra riscando e mostrando alguns caminhos que ainda precisam ser percorridos pelas universidades brasileiras. Essas mãos inscrevem com tintas, cartazes, performances e discussões cotidianas sobre os fazeres no espaço acadêmico: única forma de (re)existir. Tal qual a realidade cotidiana, as pixações racistas são inscritas no espaço: quase imperceptível para alguns, porém presentes e violentas para muitos. As medidas institucionais enquadram e repreendem, mas se nada mais é feito, esse escrito é congelado no tempo e ganha estatuto de quadro na parede. Quando apontamos uma inoperância nas medidas tomadas pelo corpo acadêmico estamos cobrando mudanças. Cobramos uma reforma dos conteúdos estudados, da abordagem e do redesenho curricular dos cursos. Queremos diálogo aberto com o corpo docente, que flexibilize os horários das aulas ou ofereça opções para aqueles estudantes que


também são trabalhadores e querem terminar o ensino superior.

(2) Aumento este, que se deve à gestão do PT (2003-2016) e que possibilitou, ainda que possa haver críticas, uma política de cotas e de distribuição de bolsas, diversificando um pouco o contexto homogêneo das universidades no Brasil.

Desejamos também, uma política de fomento – não apenas financeiro, mas estrutural – para eventos que sejam norteados por temáticas étnico-raciais. Afinal, quando falamos em escuta institucional nos referimos à necessidade de acompanhamento e orientação também na manutenção de grupos e coletivos que estão se formando com o aumento da população negra nas universidades2. Espera-se que, ao nos referirmos a pessoas em posição decisória dentro da academia, possamos ser reconhecidos e respeitados: a escuta faz parte disso.

Coletivo Assalta! teve início em 2017 dentro da UNIRIO. A proposta inicial era estudar e promover outras narrativas que não fossem as eurocêntricas. No entanto, o grupo de estudos se tornou também um coletivo que se aventura enquanto micro-produtora. É composto por Beatriz Galhardo, Bruna Christine, Carla Costa, Clara Anastácia, Fernando Porto, Ingrid Constantino, Lyz Parayzo, Marjory Leonardo e Pedro Bento.




GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL VIOLÊNCIA POLICIAL (RIO DE JANEIRO) Em 2013, aproximadamente 1800 pessoa foram mortas pela Polícias Militar e Civil em Serviço. Esse número equivale a 5 pessoas por dia. Perfil das vítimas de homicídios decorrentes de intervenção policial (entre 2010-2013): 886 são negros (79,11%) 234 brancos (20,89%) 99,5% são homens. Só existem dados disponíveis sobre a idade da vítima em 557 casos, destes: 75% tinham entre 15-29 anos.

Fonte: Anistia Internacional, 2015

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ELAS CONJURAM Amara Tabor-Smith em uma casa cheia de mulheres negras Texto e tradução Luciane Ramos-Silva Fotos Robbie Sweeny

Ao longo da história, mulheres de distintas nacionalidades, etnias e perspectivas de mundo, estiveram à frente de ações resistentes aos múltiplos processos de opressão, atuando em aquilombamentos, rebeliões e revides cotidianos pouco referidos na história oficial. Comprometidas com transformações sociais e movidas pela capacidade de vislumbrar novos horizontes, elas teceram contra-narrativas aos modelos de compreensão da realidade enraizados na velha patriarquia estrutura de poder que tentamos fissurar cotidianamente. Essas diferentes contestações se fundamentam em potências criadoras que, em muitos casos, enga84

jam a ancestralidade feminina como mola propulsora para o fazer artístico e para a mobilização de corpos políticos capazes de desmantelar os dispositivos de controle e silenciamento. Os ajuntamentos artísticos têm sido um campo propício de debate, muitos deles alicerçados na construção comunitária, no compartilhamento dos dilemas para a busca de soluções e na ritualização da cura. House Full of Black Women (Casa Cheia de Mulheres Negras), performance-ritual concebida pela coreógrafa e bailarina Amara Tabor-Smith em colaboração com um grupo amplo de mulheres artistas, é uma dessas ações que movem, provocam e apontam relevâncias.


Trata-se de uma proposta de site specific e performance ritual, onde cada apresentação conforma uma espécie de episódio, que acontece em espaços públicos, trafegando por diversas locações como ruas, cafeterias e praças, envolvendo a expectadora em uma interação orgânica entre artista, audiência, espaço urbano e questões sociais. O cenário é a cidade de Oakland, na Califórnia, território conhecido por sua comunidade historicamente negra e não por caso, local de nascimento do Partido dos Panteras Negras. A cidade vem mudando drasticamente com os processos de gentrificação que provocam o deslocamento forçado de populações negras, latinas e asiáticas. Essa criação de zonas de exclusão é um dos motes urgentes que Casa Cheia de Mulheres Negras aborda, além de outros temas cortantes que atravessam as vidas daquelas mulheres: como o tráfico sexual. Os episódios da performance são motivados por uma pergunta central: Como as mulheres e meninas negras podem encontrar espaços de de res-

piro e sentirem-se bem em uma casa de acolhimento? No episódio intitulado Agora você me vê, o grupo realiza uma vigília-ambulante, perpassando ruas barulhentas, interrompendo o trânsito e despertando a curiosidade dos transeuntes, que observam aquelas mulheres vestidas de branco, com cabeças cobertas por 85


camadas de algodão, renda e mistério. Como num cortejo elas passam por vitrines de lojas e restaurantes, dançam, conversam, riem e contornam vagarosamente uma viatura da polícia. Explorando as possibilidades e desafios da estética do site specific, ora integrando ora atravessando o publico, o trabalho cativa a comunidade não só para a reflexão sobre a experiência das mulheres negras, mas, de uma maneira mais ampla sobre a desigualdade social, a cultura do estupro e o sistema de justiça criminal. A obra se comunica com uma longa trajetória de engajamento que permeia os temas dos trabalhos de Tabor-Smith, criadora que acumula uma série de parcerias com artistas de grande relevância no campo da dança estadunidense, entre eles os coreógrafos Ed Mock e Ronald Brown, a respeitada Cia. Urban Bush Women, na qual atuou como intérprete e diretora artística, além de diversas colaborações ao redor do mundo, fincando pés, inclusive, em terras brasileiras. Fundadora do Deep Waters Dance Theater (Águas Profundas Teatro de Dança), a artista frequentemente enraíza seus trabalhos no ritual, no bem viver e na elaboração de uma dança que mira as culturas negras e subalternizadas em seus embates político-sociais, ao mesmo tempo que se preocupa com uma arte capaz de acolher, curar e desconstruir as desumaniza-

ções históricas que desafiam a contemporaneidade. Entre seus trabalhos citamos Our Daily Bread (2011), que aborda as tradições alimentares e os sistema econômicos de exploração; He Moved Swiftly But Gently Down the Not Too Crowded Street (2014), dedicada à memória do artista afro americano Ed Mock, falecido nos anos 80; EarthBodyHOME (2015), peça multimídia de dança inspirada na trajetória e legado da artista cubana Ana Mendieta, abordando o tema do exílio, da opressão patriarcal e da reconexão com as forças da natureza. Cientes de que nas obras de Amara TaborSmith a excelência artística está constantemente atravessada pela consciência crítica, perguntamos a ela qual seria o papel das mulheres nos processos históricos e contemporâneos de luta por liberdade: Amara Tabor-Smith: Primeiramente, digo que as mulheres negras estiveram na linha de frente ou sustentaram as lutas por dignidade e liberdade em todos os lugares que estiveram e estão no mundo, seja historicamente ou em tempos contemporâneos. Se olhamos a história dos Estados Unidos há incontáveis mulheres que posso nomear e que foram líderes em lutas por liberdade – Harriet Tubman, Sojourner Truth, Ida B. Wells, Ella Baker, Fannie Lou Hamer, Ângela Davis para


nomear apenas algumas delas. E estas são ape- Amara Tabor-Smith: Como povos negros da diásnas algumas das mulheres que ficaram conhe- pora, nós já criamos esse espaço. No Brasil, o tercidas como líderes. Há muitas outras que foram esquecidas e que sustentaram movimentos formando a base ou a ligadura que deu estabilidade à eles. Durante o aniversário de celebração de 50 anos do movimento Black Panthers aqui em Oakland, onde vivo, houve vários seminários e palestras onde antigas membras mulheres discutiram as funções que desempenhavam no partido e como frequentemente elas eram as pessoas que mantinham as estruturas intactas enquanto os homens eram mais publicamente visíveis como líderes. Trata-se de um exemplo de como a dominação masculina foi uma questão nesse período dos movimentos por direitos civis. Esta era a realidade e norma daqueles tempos. Elas chegaram para ficar A arte de conjura afro futurista de Amara Tabor-Smith, é desta maneira que a artista conceitua seu trabalho, aponta presentes e futuros possíveis em criações que desafiam as construções hegemônicas de raça e feminilidade em provocadoras peças protagonizadas por mulheres, mas que incorporam reivindicações diversas e que são urgentes para a transformação da des(ordem) das coisas. Em um contexto no qual o corpo das mulheres negras é constantemente violentado pelo consumismo capitalista em suas formas mais brutais ou dissimuladas, a autonomia e solidariedade são armas poderosas. Assim, questionamos a artista: Como podemos refletir sobre o significado de casa para além das lógicas capitalistas brancas patriarcais?

reiro de candomblé é um exemplo perfeito. É um espaço onde a espiritualidade, a liderança feminina e o suporte coletivo já existem. Isto vai no caminho inverso da supremacia branca. A questão não é como pensamos a ideia de casa fora do esquema branco patriarcal supremacista, mas como descolonizamos nosso pensamento, lembrando dos caminhos que nós já forjamos e valorizamos acima do capitalismo. Muitos de nós nos tornamos tão colonizados em nosso pensamento e tão conectados aos desejos capitalistas, que nem mesmo percebemos que esses espaços estão ao nosso redor. E é importante que reconheçamos esses espaços como espaços alternativos de negritude e que estão sob ataque da supremacia branca, particularmente em uma de suas formas que é a igreja evangélica. Então é importante que comecemos a valorizar a existência desses espaços ao nosso redor. Não é preciso acreditar no candomblé ou praticar esse tipo de espiritualidade para reconhecer sua relevância. Avançando rapidamente para o presente – Black Lives Matters é um exemplo de movimento fundado por mulheres negras e que abrange pessoas negras queer e de gêneros não binários, assim como incorpora a espiritualidade e o auto cuidado como importantes princípios do movimento. Este é um importante exemplo da maneira como os atuais movimentos de liberação estão se transformando. House Full of Black Women desvela a maneira como os discursos são produzidos por meio da 87


ação social e tornam-se respostas potentes às antinomias e perversidades multiplicadas pelo Estado e reproduzidas pelos indivíduos. Numa tarde ensolarada de 2015, em terras estadunidenses, Amara apresentou-me diversos artistas e ativistas dessa Oakland negra e reveladora, durante o evento de comemoração do 49º aniversário do movimento dos Panteras Negras. Mestra que é, afirmava que era necessário abraçar a escuridão. Hoje entendo essa premissa não apenas como um enlace criativo do mistério, mas como uma contra narrativa à oposição binária natureza/racionalidade, que nasce com a ciência moderna eurocêntrica. Também percebo nessa expressão uma fresta para construir vidas através de propostas que devem ser o avesso do projeto de mundo que se construiu até nossos dias, recriando sensos, significados e razões para nossos movimentos.

Nota: *Site Specific é um tipo de arte criada com um planejamento singular para um local ou meio ambiente desenvolvendo relações com esses espaços. Em sua origem, esteve ligado à critica à espaços de arte restritivos como museus e galerias. Tornou-se uma expressão construída em estreita relação com os espaços, estando sujeita às suas dinâmicas sociais.

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Para saber mais: deepwatersdance.com Luciane Ramos-Silva É antropóloga e artista da dança. Doutoranda em Artes da Cena e mestra em antropologia social pela Unicamp. É membra do Conselho Editorial da Revista O Menelick 2O Ato e gestora de projetos no Acervo África e professora na Sala Crisantempo.




(1) O relatório considera violência homofóbica como preconceito ou discriminação contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou orientação de gênero presumidas, incluindo portanto, losbofobia, transfobia e bifobia.

Violência contra a população negra LGBT Em 2013, o Disque Direitos Humanos registrou 1.695 denúncias de 3.398 violações relacionadas à população LGBT. A partir desses dados, o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil constata que 32,1% das vítimas de violência homofóbica1 se autodeclararam pardas e 7,8% pretas. É preciso levar em conta que as informações são comprometidas pela forma de registro: em 32% dos casos de homofobia analisados, a raça/cor das vítimas não foi informada, configurando subnotificação do perfil das vítimas da violência homofóbica. Segundo o relatório, o perfil da população LGBT mais vitimizada é jovem (54,9%), pretos e pardos (39,9%), do sexo biológico masculino (73%), gays (24,5%) e travestis/ transexuais (17,8%).

Flora Mota é graduanda em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo, integra um grupo de pesquisa que estuda a produção acadêmica brasileira sobre a América Latina, com foco em perspectivas decoloniais e abordagem da questão de gênero. Participou como ativista da Anistia Internacional durante dois anos, atuando principalmente nas campanhas Jovem Negro Vivo e Diga Não à Execução.

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Marcelo D’Salete Ilustração da HQ Risco / Livro Encruzilhada (Nova Edição) Nankim e acrílica 30 x 42cm 2011 98


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(1) O relatório considera violência homofóbica como preconceito ou discriminação contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou orientação de gênero presumidas, incluindo portanto, losbofobia, transfobia e bifobia.

GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL Violência contra a população negra LGBT Em 2013, o Disque Direitos Humanos registrou 1.695 denúncias de 3.398 violações relacionadas à população LGBT. A partir desses dados, o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil constata que 32,1% das vítimas de violência homofóbica1 se autodeclararam pardas e 7,8% pretas. É preciso levar em conta que as informações são comprometidas pela forma de registro: em 32% dos casos de homofobia analisados, a raça/cor das vítimas não foi informada, configurando subnotificação do perfil das vítimas da violência homofóbica. Segundo o relatório, o perfil da população LGBT mais vitimizada é jovem (54,9%), pretos e pardos (39,9%), do sexo biológico masculino (73%), gays (24,5%) e travestis/ transexuais (17,8%).

Flora Mota é graduanda em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo, integra um grupo de pesquisa que estuda a produção acadêmica brasileira sobre a América Latina, com foco em perspectivas decoloniais e abordagem da questão de gênero. Participou como ativista da Anistia Internacional durante dois anos, atuando principalmente nas campanhas Jovem Negro Vivo e Diga Não à Execução.

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O Não

dito porém Ouvido A história encoberta da percussão e da dança africana nos Estados Unidos

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TEXTO Amadou Kouyaté Tradução Allix ThompsoN

Eu sou um Djeli. Nasci Djeli e 150 gerações antes de mim também foram Djelis. Na cultura mandinga da África Ocidental, meu papel é o do historiador da comunidade. O que chamo de comunidade é, na prática, um lugar conhecido “DMV”, uma área que mescla uma porção de Washington DC, Maryland e Virgínia formando uma espécie de cidade mesclada. O papel do Djeli é o de documentar os atos e lições do passado, tecendo tudo em música para que sejam transmitidos de geração a geração.

e esta comunidade pan-africana – a capital Washington DC. Há raízes que se espalham pelo mundo inteiro, além de muitos ramos que carregam frutos de uma jornada.

Aqui não é a África Ocidental. Estamos nos Estados Unidos da América. A única coisa que os EUA fazem melhor do que a maioria das outras nações é compartimentalizar verdades - uma verdade para cada conveniência. Mas minha verdade é a da conectividade.

Os discursos dominantes nos EUA disseminam olhares subjetivos sobre determinadas expressões de cultura, impondo, através de lentes corrompidas, um vácuo induzido por propaganda que recria uma narrativa que é, muitas vezes, conveniente e não necessariamente consistente. A comunidade da percussão e da dança africana nos EUA é um exem-

Vivo entre o continente de minha herança

Essa jornada que narro é antitética à fantasia americana, mas tão potente quanto o desejo de todos que caminham por esta terra: a autodeterminação, seja por meio da cultura, religião, raça, orientação sexual ou qualquer outra realidade.


plo da aplicação seletiva da verdade, assim como são muitos outros aspectos da vida aqui nesta pátria satélite.

O Hip Hop já não surge dos contos de nossos griôs da rua, mas se tornou um show para ser vendido como produto ou para cumprir agenda. Se pensarmos no Jazz de hoje, não se trata Essa comunidade tem folclore e histórias pró- mais daquela alquimia musical dos nossos gêprias, que são frequentemente sequestradas nios, mas sim uma moeda de validação para por uma parcela da população que se torna acadêmicos e intelectuais musicais, venerados cada vez mais apaixonada pela assimilação de por elitistas. O mesmo pode ser dito sobre o culturalismos. Há muitos ‘Não ditos, porém Rock and Roll, o Blues, o Punk e outras estéouvidos’ entre o povo negro nos EUA. Um ticas nascidas da articulação da experiência exemplo é a noção de que, como as pessoas ne- africana na diáspora. gras estavam à venda durante o tráfico atlântico, de certa maneira, o direito sobre sua pro- Há um lugar para a cultura africana na Améripriedade intelectual tornou-se disponível para ca que é ao mesmo tempo resiliente e misterioo consumo de quem estava disposto a reduzir so. A cultura da percussão africana é uma pedra nossas expressões ao entretenimento. Esta preciosa endurecida pelo peso da opressão e tendência à aculturação de africanismos tem pelo anseio por autodeterminação. Foi forjada desmantelado o vínculo sagrado entre função nos relacionamentos mantidos entre os filhos e espiritualidade no qual é criada a maioria das de África em hemisférios diferentes do mundo. expressões nascidas da luta. Uma pedra polida por gerações que conheciam 88


o ritmo desde seus nascimentos, mas falavam em todos os Estados Unidos e punidas com múltiplos idiomas em terras estrangeiras. a morte. Assim, os ritmos e movimentos dos nossos antepassados seriam todos extintos se No despertar da nova paixão do mundo pelo não fosse a engenhosidade [investida] para se djembe, um tambor de mão oriundo da Áfri- adaptar e mascarar intenções frente ao regime ca Ocidental que ficou conhecido em todos os opressivo da Lei Jim Crow, sob a qual a maioria cantos do planeta, há uma jornada de ascen- das pessoas negras nos EUA vivia até a décasão que coloca os africanos, tanto nas Améri- da de 1960. Naquele tempo, a maioria das excas quanto no continente, como figuras fun- pressões da cultura africana difundidas eram damentais na tarefa de preservar esse legado arremedos e interpretações redutoras, sem das nossas africanidades, inaugurando uma fundamento e cheias de estereótipos viciosos. mudança de paradigmas. Entretanto, Pearl Primus, Katherine Durham, Asadata Dafora e outras artistas começaram a Mas é importante entender as raízes desabrir portas e reintroduzir os movimentos da sa presença africanizada nos Estados Unidos África para seus filhos deslocados no Ocidenpara ter uma noção mais precisa. Com exceção te, assim como os pioneiros Chefe Bey (criada Congo Square (Praça do Congo), em Nova dor do sistema de afinação para djembe atraOrleans, onde os africanos escravizados povés de aro) e Babatunde Olatunji, entre outros diam praticar seus costumes nativos, a música que começariam a trazer o tambor de volta às e a dança africana eram estritamente proibidas mãos das pessoas negras nos EUA. 89


“Estamos enfrentando a luta pelo controle da narrativa. À medida que as expressões tradicionais que compartilhamos com nossa casa ancestral ganham popularidade, lutamos para garantir que elas não sejam despojadas de sua história para serem palpáveis ao consumo”.

Na década de 70, houve um movimento de deslocamento de alguns dos membros dos Balés Nacionais na África Ocidental para os EUA. Estes balés não eram apenas grupos de performance, mas guerreiros políticos na luta para redefinir os imaginários sobre a África trazendo alguns aspectos da cultura sagrada para o palco. Construíram-se comunidades em torno desses professores em comunidades negras em todo o país - por exemplo: Djimo Kouyate e Assane Konte, em Washington DC; Zak e Naomi Diouf, em Oakland, Califórnia; Papa Ladji Camara e Marrie Basse Wiles, em Nova York, isso para nomear apenas alguns dos pioneiros. O legado desses homens e mulheres na comunidade de dança e percussão africana nos Estados Unidos se estende há quase um século e existem gerações que foram educadas ao longo da vida com a profunda influência dessas práticas artísticas e espirituais da África. Hoje estamos passando por uma era de síntese de aculturação. Os Africanismos tornaram-se 90

tão integrados na vida das pessoas nesta comunidade que, muitas vezes, não há divergência de conhecimentos e habilidades entre africanos e afro americanos. Somente a água do oceano nos separa. Assim como prevalece esse africanismo aqui, talvez o reconheçamos também em nossa família extensa no Brasil, Cuba, Haiti, Colômbia e grande parte do hemisfério sul, como um aspecto da prática cultural africana tradicional cultivada nas Américas. Uma viagem quase milagrosa, considerando os esforços para despedaçar a conexão entre descendentes desterrados e sua herança tradicional. Depois de termos recuperado nosso direito enquanto herdeiros de nossas tradições, enfrentamos agora a luta pelo controle da narrativa. À medida que as expressões tradicionais que compartilhamos com nossa casa ancestral ganham popularidade, lutamos para garantir que elas não sejam despojadas de suas histórias para serem palpáveis ao consumo. A continuidade das tradições é tão viável quanto a


expansão das expressões que dela se originam, porque são ferramentas na recuperação da nossa identidade africana - para os que estão no continente e em toda diáspora. A indústria da cultura não deve comprometer a integridade dos movimentos culturais.

AMADOU KOUYATE é professor de etnomusicologia e artista. Nascido em Washington DC, é parte da geração dos griôs kouyaté, uma família de historiadores orais da África do Oeste. 91


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