O MENELICK2ºATO # EDIÇÃO ZER021

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OMNLCK2VTO


ALEXANDRE ALVES Isabelle Acrílica sobre tela 150 x 180cm 2019


Luciane Ramos-Silva / Nabor Jr. 1


LINOCA SOUZA Estudos para novos símbolos nacionais Manipulação digital 40 x 30cm 2018/2019 2



LINOCA SOUZA Estudos para novos símbolos nacionais Manipulação digital 40 x 30cm 2018/2019 4



LINOCA SOUZA Estudos para novos símbolos nacionais Manipulação digital 40 x 30cm 2018/2019 6



NO MARTINS Reciclar é necessário, URGENTE! Acrílica sobre tela 150 x 200cm 2017


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LAĂ?S OLIVEIRA Ferro de Ogum Xilogravura 21 x 29,7cm 2017


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EMOL Sem título Acrílica sobre papel 28 x 21cm 2019 12



ATO

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CNPJ 27.612.347/0001-41. ENDEREÇO RUA ROMA, 80 – SALA 144 – SÃO CAETANO DO SUL/SP – CEP 09571-220. TEL (11) 9 9651 81 99. ISSN 2317-4706. DIRETOR NABOR JR. CO-DIRETORA LUCIANE RAMOS-SILVA. REVISÃO LÉIA GUIMARÃES. DIAGRAMAÇÃO NINA VIEIRA I zalika.com.br PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE NABOR JR. E NINA VIEIRA. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA EM CENTROS CULTURAIS, SARAUS, BIBLIOTECAS, GALERIAS DE ARTE, MUSEUS, SHOWS, FEIRAS, FESTIVAIS, CASAS DE ESPETÁCULOS, LOJAS, TEATROS, BOTECOS E ZONAS DE CONFLITO. CONTATO revista@omenelikc2ato.com I omenelick2ato.com ANO X – EDIÇÃO ZEROXXI

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NUNCA Sem título Mista sobre tela 190 x 190 cm 2019

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A REVISTA O MENELICK



quilombo

LETRAS ADRIANA OLIVEIRA CARMEN LUZ EUGÊNIO LIMA FLÁVIA RIOS FRIEDA EKOTTO LUCIANE RAMOS-SILVA NABOR JR SALLOMA SALOMÃO TATIANA NASCIMENTO


IMAGENS ABINIEL JOÃO NASCIMENTO ALEXANDRE ALVES ALINE MOTTA ANDRÉ BISPO EDSON IKÊ EMOL JOY GREGORY LAÍS OLIVEIRA LINOCA SOUZA NO MARTINS NUNCA RENATA FELINTO SIDNEY AMARAL (EM MEMÓRIA)


TEXTOS 038 EMERGÊNCIA 020 GUMBO E FEIJOADA 030 ELAS MANDAM A LETRA 057 LEVE SUA CULPA BRANCA PARA A TERAPIA 060 LENDO FRATZ FANON NA ERA DO BLACK LIVES MATTER 076 TÉCNICAS DE VIDA E MORTE: BREVES NOTAS PARA DANÇAR 048 WYNTON MARSALIS: JAZZ, SUPREMO MOVIMENTO DA VIDA 084 A CRÍTICA CULTURAL NA IMPRENSA NEGRA EM BRASAS: SP E RJ 068 GRADA KILOMBA: ROTAS INVERTIDAS PARA CAMINHOS POSSÍVEIS 092 A CURADORIA NEGRA NAS ARTES VISUAIS – CAMINHOS DE AFIRMAÇÃO

sumário



GUMBO E FEIJOADA: Visagens e descobertas, colagens e miragens, conceitos e imagens, nas terras de Sun Rá e Angela Davis Dedicado a memória de Monika Jun Honma texto Salloma Salomão Não me parece possível ler adequadamente um agrupamento humano, sem um longo convívio, sem acessar sua língua e outros códigos cozinhados na sua autoconstrução. Sem isso, nos restam as impressões, sentimentos, confirmações ou o descarte de preconceitos e outras prévias vestidas em noções gerais, quadros provisórios e parciais. Ainda assim, muitas vezes, precisamos pintar tais quadros de superfície das paisagens e configurações humanas do mundo. Principalmente, quando conquistamos, sem grande orgulho, algum tipo de cartão de trânsito ou salvo conduto. Um passaporte carimbado, por exemplo.


“Um dos aspectos mais cruéis impostos aos humanos é a paisagem confinada. Uma vida bem vivida precisa de horizonte todos os dias.”

Sim, quase nunca vamos além das “cercas embandeiradas que separam quintais” da humanidade. Um mundo murado, monetarizado e racializado, impedindo deslocamentos. Então camadas e camadas de complexidades marcam as figuras e blocos humanos, mesmo quando totalmente desumanizados. Mesmo quando vistos como um grupo dentro do outro; em sub e subgrupos por cor, raça, sexo. Divididos infinitamente por gênero, geração, interesses, poder, cultura, jeito de corpo e modos de espírito. Mesmo quando desfigurados e inversos no espelho, ainda assim são parecidos, dessemelhantes pela cultura. A única e real criação humana. Deus, o metal, o comércio, o sexo de quatro minutos, as expressões de artes e a cultura. Um dos aspectos mais cruéis impostos aos humanos é a paisagem confinada. Uma vida bem vivida precisa de horizonte todos os dias. Em fins de julho de 2019, nossa trupe embarcou no Aeroporto Internacional de Guarulhos e lançamos âncora em Atlanta (EUA), dali viajamos de carro para a cidade sede do projeto, onde fomos confortavelmente hospedados. Essa introdução um tanto didática, peço desculpas, visa situar relativamente minha leitora sobre as situações e observações que fiz ao longo dos dias e as quais publiquei nas redes sociais. Aqueles microrrelatos é que deram origem a este texto, que submeto à sua gentil apreciação. Quero dizer, peço sua condescendência para com as brechas, imprecisões, erros de julgamento e má grafia.

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Mas, de outro lado, trata-se ainda de uma escrita quente, quer dizer, sob a brasa da emoção do tal feito, qual seja, visitar e pisar o mesmo chão por onde andaram lendárias figuras políticas e artísticas negras, pessoas reais cujas imagens heróicas foram difundidas a partir de dentro do império, são histórias vinculadas à internacionalização das lutas antirracistas e à dimensão global das artes negras e afrodiaspóricas do século XX. No Brasil e nos EUA os hipócritas projetam mais concentração de renda onde nunca houve decência. Mentem, ameaçam, prevaricam abertamente, chantagiam, matam e permitem matar. Mas se há algum governo que estejam efetivando, talvez seja a governança moral neoevangélica da Babilônia Mundi. As repúblicas teológico-militar-comerciais são bastiões digitais de controle dos desejos, dos impulsos e sonhos coletivos de uma maioria à deriva, de uma banda medrosa e da diminuta ala da gritaria (onde eu fico). Temos um barco de pedra sobre um rio sólido, nunca havendo correnteza nem remanso. Nessas paisagens e topografias monótonas escaneadas, quem poderá ansiar pela manhã de fartura, ternura e lirismo? Quem há de vir nos salvar? Sun Rá? Quem? Afro o quê? Afroconsumismo? Afroportunismo? Afrofortunismo? Onde? Quando? Que diálogos criativos podemos ter hoje com os criadores e criadoras dissidentes de ontem? Qual extensão geográfica das águas negras? Estamos falando de Beatriz antes e Gilroy depois. Elas, Angela e Beatriz, inundaram o mundo atlântico navegando; nós boiaremos na superfície por mera preguiça imaginativa? Vamos para o fundo das águas com escafandro. Na superfície só tem dejetos e escombros. Luciano de Jesus é um jovem diretor e ator afro-índio das beiras da metrópole, ligado às experiências e pesquisas teatrais criadas e difundidas desde finais dos anos 1970 por Jerzy Grotowsk. Doutorando pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, sua pesquisa caminha entre fundamentos do WorkCenter e antiquíssimas cantigas negras das Minas Gerais. Uma forma singular de canções tradicionais conhecidas de maneira genérica como Vissungos, cujas referências são dois dados relativamente difundidos no meio dos aficionados em música negra no Brasil. Um grupo

musical ativo desde a década de 1970 no Rio de Janeiro, batizado por esse mesmo nome, sob a regência do etnomusicólogo e multiartista Antonio do Espirito Santo. Outra referência é o disco editado pela gravadora Eldorado nos fins dos anos 1980, sob o título O Canto dos Escravos. Tal disco reuniu nomes conhecidos do meio fonográfico para que fizessem arranjos novos para canções grafadas (muitas vezes mal grafadas) pelo folclorista mineiro Aires da Mata Machado, na primeira metade do século XX, e publicadas algum tempo depois. Fato é que me filiei ao projeto criado e dirigido por Luciano de Jesus, ao participar de uma oficina de performance ministrada pelo diretor estadunidense Lloyd Bricken, realizada em 2018 no espaço da Companhia Heliópolis de Teatro, situada na zona Sul de São Paulo. Naqueles encontros trabalhamos cantigas do sul dos Estados Unidos conhecidas como Southern Songs, dentro do gênero Spirituals. Fui convidado a acompanhar parte do grupo numa série de workshops e trocas com artistas da cidade de Birmingham no estado do Alabama, EUA, entre finais de junho e início de agosto de 2019. O recurso para viagem foi obtido por meio de vaquinhas na rede social e um valor baixo, mas imprescindível, junto ao edital ProACSP, que nos permitiu o deslocamento sem custos financeiros pessoais. Lloyd Bricken se incumbiu de nos receber em sua casa e elaborar uma programação que nos permitisse interagir com pessoas e artistas da região no sul do país, na cidade que é a maior em densidade demográfica naquele estado, conquanto não seja capital. Lloyd Bricken é grande diretor de teatro e um artista pleno do seu próprio saber teatral musical, conquistado no WorkCenter e na tradição iniciada por Jerzy Grotowski. Tem um olhar amplo, humanista e um senso de liderança formado na cultura do seu país, que para nós parece um tanto pragmática ou mesmo dura. No entanto, carrega também grande capacidade de audição e um certo cuidado no olhar. Poderia dizer um toque de certeza, suavidade e carinho que imobiliza a intransigência e abre caminho entre a dureza da vida e os sonhos mais poéticos. Bricken se colocou numa prova de fogo em nome de um projeto criativo com seu irmão


de trecho Luciano Mendes de Jesus. Receber por um mês seis figuras incógnitas em sua casa e fazer base para vivências nos arredores de Birmingham foi seu desafio. Nos fortaleceu uma imersão pouco comum a artistas afroperiféricos, por razões que nem preciso enfatizar. Tudo se transformou numa aventura, com picos de suspense, reviradas e surpresas nem sempre boas. E quando foi nos despachar para New Orleans, era bonito ver o verde sulista dos seus olhos d’água gotejando por conta das partidas de uns malditos mamelucos, crioulos e crioulas brasileiras. O termo gratidão tão banalizado no comércio de bens e serviços pode ser bem aplicado nesse caso. Estou começando pelo fim. Então, senta que lá vem um pouco da história. Ao contá-la, também agradeço algumas das personagens que marcaram o percurso. Lillis Taylor, que gentilmente nos ofereceu sua casa nos arredores da cidade e nos aproximou de seu ateliê, onde trabalha ao lado de mulheres negras na criação de belíssimas obras de tecido, numa pesquisa que tem tudo a ver com apontamentos já feitos por Robert Farris Thompson sobre aquilo que denominou “tecidos ritmados”. Aquelas colchas e roupas de retalhos que nossas avós faziam com aproveitamento de retalhos de tecido industrial no século passado, que por vezes aparecem em língua inglesa como patchwork, e nos sul dos EUA, fazem parte de uma tradição ligada a pessoas oriundas da África do oeste, as Quilts; suas criadoras são chamadas Quiltmakers. Em larga medida nossas culturas e artes negras e diaspóricas podem ser representadas por essa imagemsigno, colcha de retalho. Beleza tem em tudo. Até naquilo que a norma diz que não tem. Dividi meus dias aqui, nos Estados Unidos, com uma turma maravilinda. Entre eles quero agradecer publicamente a Naruna Costa, que já me deu a honra em vida de ler trechos de poema meu que fala sobre canções-canoas que me levam por aí. Tais canções de libertação me conduziram a Birmingham, Selma, Menton, GeesBend, Tuskeege e arredores, quase sempre beirando o Rio Alabama. Tudo bem. Numa noite, caviar; noutra, salsicha apimentada. Numa, o racismo local; noutra, o amor e a solidariedade afrocosmopolitas. Uma gamela de Gumbo bem quente, com pimenta. Alguém pensou em feijoada com frutos do mar. Peter Fry adeus. Mas tudo era calor e vento mateiro naquele sul das florestas Apalaches, enquanto gelava em São Paulo e dentro do hospital da Universidade do Alabama onde fiquei uma tarde-noite, no choque emocional de ar-condicionado. Diabetes criando barulho, chatice e células cansadas de mim. Depois tudo bem. Tudo que foi visto eu levo sob a retina, o que foi vivido abaixo da primeira pele. As pretas velhas com seus timbres vindos da quase Kalunga, os contrapontos resultados de labores criativos seculares. Os campos mortos de algodão e suas memórias de sangue negro. As beiras de estrada e dois policiais brancos à espreita, doidos para aplicar seu ódio em cenas que não cabem bem nem em filmes de ficção sobre a kkk. E os olhos cinza 23


e marejados de velhos homens negros, olhos cansados de tudo que é e se arrasta no tempo de uma vida. E novamente as cantigas. Elas ainda nos levaram para New Orleans e depois New York. Parece turismo e festa, mas juro que é de trabalho duro que se trata. Minto. Nem é trabalho, não é tão duro. Para encurtar a lista de agradecimentos vou recortando a lista já publicada por Luciano Mendes de Jesus, uma vez que somos muito gratos aos artistas estadunidenses que nos receberam, quais sejam: Derrick McKenzie Jr., Ej Marable, Shaunteka LaTrese, Latrisha Fee-Fee Redmon, Ashley M. Jones, Jahman Ariel Hill, Jacob Scott-B’ham, Kawmane TheArtiztic, Ardreana Thompson, Mace e Vicky, Edmond Barry Johnson, John Paul Taylor e Patrick Johnson (Real Life Poets), Micah Briggs, Afriye Wekandodis, Ianna, Marie e Allen (Marion), Yogi Dada, Pamela Chu (Victor), Tony M Bingham, Beth McGinnis, Joanne Bland, Rhonda Collier, Victor Specine, Muhjah Shakir, LaDonna Smith, David Murray, Emma Brooks, Tres Taylor, Mama Knox Bricken, Richard Clay Carmichael e Jimmy (nosso grande anfitrião em Selma). Agradecemos especialmente a um velho livreiro chamado Charlie, da cidade de Selma, que nos presenteou com livros e também ao capoeirista brasileiro Fabio Melo, pela sua confiança em ceder especiais instrumentos de percussão. Burgin Mathews, que nos recebeu em seu programa de rádio Lost Child. O preconceito, desrespeito e distrato racial já fazem parte do pacote e nem merecem saliência. Recortando ainda o texto de Luciano, “fomos especialmente recebidos pela Freedom House e East Village Arts of Birmingham (Birmingham), By the River Center for Humanity (Selma), Back When (Marion), Tuskegee University e Metropolitan AME Zion Church. Pessoas delicadamente atenciosas como Marie Anne Petway (coordenadora da Gee’s Bend Quilters Collective); Gloria e tantas outras vocalidades de velhas senhoras e senhores das quais não pudemos guardar os nomes nas cantorias de Marion, mas guardamos as vibrações; músicos de Birmingham e Tuskegee, especialmente a professora doutora Rhonda Collier. Quem me conhece desde a juventude sabe dessa minha contradição básica, uma crítica e repulsa radical ao imperialismo estadunidense e, ao mesmo tempo um encanto quase infantil, uma profunda admiração pelas culturas negras e história dos descendentes de africanos dos EUA (evitando ser um paga pau, um americanófilo bocó). Ângela Davis nasceu em Birmingham, núcleo duro da Jim Crow


e ao mesmo tempo nascedouro de um ponto de bifurcação da luta por cidadania daqueles que mais deram seu sangue para a construção do “grande país da prosperidade”. Estar em um núcleo artístico nesse lugar tem profundo significado político e simbólico para mim. Nós, descendentes de africanos no mundo, temos sido mantidos quase dentro das maiores conquistas da modernidade, no entanto sem poder tocá-las plenamente com nossas próprias mãos. Temos uma história de dedicação e incansáveis esforços para forjar um mundo justo, seguro e aberto para todos, enquanto os pensamentos e práticas mais arcaicas da branquitude devoram ou derrubam, dia a dia, nossos desejos mais puros. Tributo a Martin Luther King, uma canção do rádio na infância dizia: “Luta de negra demais, para sermos iguais (...) Uma canção também se luta irmão”. Simonal cantando uma composição feita por brancos de alta classe. Mas, como eu não sabia desse detalhe, entendia essa mensagem negra como vinda de um homem negro para um menino negro, eu. Wilson Simonal conversava direto comigo na infância, todo o resto era irrelevante. Agora eu podia andar pelas mesmas ruas onde lutou o Reverendo King, passar pela cidade-paisagem sulista onde nasceu Coreta. O racismo foi criado e desenvolvido como justificativa de práticas de violência, exploração e submissão de populações não europeias. Tornou se uma ideologia sedutora porque o medo tem sido a principal arma das instituições que operam de forma massificada os desejos e os medos coletivos, quais sejam, a igreja, o Estado, as Corporações e suas afiliadas. Há uma lógica tão simples no pensamento racial que pode ser reivindicado como autodefesa de forma inconsciente, até mesmo pelas suas vítimas. Por muitas vezes o racismo antinegro me pareceu uma prisão extensiva ao mundo todo. Agora mesmo estou descobrindo que, embora este tenha realmente dimensão global, há pequenas e tangíveis zonas livres conectadas, onde a intercomunicação ativa e efetiva, podem nos fornecer momentos de suspensão e refresco. Então pergunto, quando e onde construímos perspectivas do mundo que estamos desenhando com nossos desejos mais livres? Ao todo foram aproximadamente quarenta dias de “garimpagens culturais” em Birmingham, carinhosamente chamada pelos locais de “Magic City” e cidades do entorno. Nesse curto período de tempo houve dois assassinatos em massa naquele


país. Esse clima de violência mal repercutiu lá onde estávamos, com quem convivíamos. Contudo, ainda se pode ver as imagens de memória sufocante de uma sociedade onde a justiça pode ser escrita a bala em nome da civilidade, tanto em casa quanto no mundo. Isso não impediu, no entanto, que efetivas trocas culturais criativas fossem horizontalmente realizadas entre o grupo de artistas brasileiros e alguns nomes que enumerei anteriormente. Black Madonna em gesso policromado. Objeto mantido numa casa-instalação por uma artista ativista chamada Afree. Ela visitou Gana algumas vezes, tendo se tornado uma guardiã individual da memória das lutas dos direitos civis em Selma. Sua casa-ateliêinstalação é composta de fotografias, imagens, colagens, pinturas, objetos vários. Fragmentos, colagens de africanidades, com destaque para diferentes imagens de Yemonja numa camarinha especial, onde se entra, se convidado por ela. Eu fui. A Black Madona se aproxima de Nossa Senhora do Rosário, figura-emblema dos Congados e Moçambiques do Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Subversão? Cooptação? Aculturação? Camuflagem? Na atualidade dinâmica quase tudo vira lixo em dois dias. Apodrecimento envenenado das relações micro e macro. O que se atente sobre todo chorume dos desejos e frustrações pode ser localizado apenas em fragmentos de velhas cantigas que circulam nas frequências de ondas curtas e discos de vinis, a despeito do mundo digital que se quer único. Poderia ser uma cultura imagética negra atual de cunho kitsch? Uma criação nova, releitura a partir da difusão do cristianismo. Mas se fôssemos à raiz do cristianismo, na fonte africana do Santo Moisés, por exemplo, um filósofo cristino remoto, um mártir, homem negro ou de outros conteúdos da filosofia copta? Tudo ficaria um pouco mais confuso e interessante, porque se trata de teogonias profundamente marcadas por raízes africanas muito profundas e veladas pelo eurocristianismo medieval e renascentista (Veja História do Cristianismo, de Alain Corbin, por exemplo). Mas, mesmo numa guerra religiosa, as armas de fogo têm primazia sobre o conhecimento. Tem um lugar em mim em que a mais simples manifestação da fé me pega e vira. Quando a devoção tem um ritual com gente preta, é bem fundamentado no senso comunitário e na música.


Eu choro, me perco e me entrego totalmente e fico muito confuso. Minhas maiores certezas se desconectam umas das outras e vagam no mundo. Naqueles minutos tudo vem no turbilhão de sentidospensamentos. Meus antigos me levaram uma ponta de ceticismo e uma educação popular afro-brasileira humanista, quero dizer, aceitação sem grandes tensões de diferentes sentimentos religiosos num mesmo ambiente. Então, a devoção sincera se torna comovente em si mesma. Meus pais memórias, meu povo delírio e suas lutasensejos, o desejo de intervenção de uma força super capaz de revirar tudo e pôr no lugareixo, como se de fato houvesse algum... as injustiças repetidas em flash back, os nossos infortúnios coletivos mais severos, o sonho de cessar opressor e revelar um tempo de chuva branda, um cheiro de amor minúsculo saído da terra quase sempre árida, ou qualquer outro sentimento de redenção dos que sofrem, para alívio dos corações vagabundos, errantes e atormentados como o meu. Vou até o limite dos meus paradoxos internos mais radicais nesse devaneio. Depois, volto ao meu estado normal já consolidado de incredulidade, ateísmo e revoltaimpotência. Visitamos a igreja Africana Metodista Episcopal de Birmingham. Ganhei um hinário pensando ser uma bíblia negra de Sião. Saí dali feito o menino que já me fui, preparando uma mochila-bornal pra viagem de férias, casa de uma tia. Deixa pra lá. Ainda assim. Tenho meditado solitário sobre uma dimensão da existência humana: a experiência mística. Devo admitir certo salto cognitivo recente. Olhando com delicada atenção o papel da música na metafísica afrodiaspórica. No sul dos EUA a relação entre a experiência mística e a luta contra a escravidão e também em todo o século XX, o caminho resignado seguido pelos pregadores e reverendos na busca de justiça e igualdade, me leva a reformular o olhar sobre figuras misteriosas da passagem do escravismo e monarquia para as desigualdades programadas da República. Quero dizer que João Camargo, por exemplo, ou mesmo Antônio Conselheiro poderiam ser localizados numa outra semântica onde a fé pudesse ser interpretada sem os preconceitos do positivismo e do racismo científico vigentes até meados dos anos 1960. Cadinhos de Africanidades no sul dos EUA. Em Selma perto da ponte das Marchas. Já na despedida. Garrafas coloridas num arbusto seco, instalação improvisada na entrada do parque público


(abandonado) dedicado aos soldados negros massacrados na guerra civil da elite branca. Esculturas de figuras femininas de madeira parecidas com outras tantas compradas em Dakar, Lisboa, Paris. Um santuário muito simples, mas em tudo lembrando um assentamento. Num centro cultural de uma memorialista há tecidos industriais com motivos “africanos” adornando cadeiras, mesas e sofás. Máscaras em tudo similares àquelas que a amiga trouxe do estrangeiro, ela achou que tinham a sua cara. Um djembé quase igualzinho àquele vendido na Praça da República. Nada disso é ridículo se confrontado com os quadros renascentistas de palácios europeus ou cenas bucólicas de mulheres brancas rechonchudas transformadas em calendários e reproduções de um mundo racial asséptico e brancocêntrico. Em que momento o mundo afrodiaspórico começou a juntar esses objetos como parte de uma cultura negra mundial? Quais critérios orientaram tais formas de seleção? Cromatismo, formato, valor, conteúdo? Terá sido possível elementos visuais difusos, mas potencialmente demarcados por africanismos visuais remotos? Marchas de Marion, Selma e Montgomery. De boca quente a palavra viva (como queria A. H. Ba). Derivar sobre a cidade de Selma é em certa medida uma verdade parcial sobre a marcha. A marcha não foi uma, mas várias. Não começou em Selma, mas num vilarejo erigido em torno de uma pequena igreja erguida por ex-escravizados, em Marion. Então, a narrativa centrada apenas na figura, sem dúvida heroica de Martin Luther King libertador, ofusca toda uma outra luta pregressa liderada por mulheres negras. 28


Boicotes do transporte público, boicote do comércio exclusivo dos brancos abastados, protestos tão corajosos empreendidos tanto por mulheres quanto por crianças. Sim, meninas de 10 anos eram encarceradas em represálias. Tivemos a oportunidade de conversar com uma senhora septagenária, que quando tinha 11 anos foi presa várias vezes porque suas irmãs, um pouco mais velhas, a levavam para os protestos. Estratégias que envolveram um alto nível de sacrifício individual e coletivo. Joane é história viva da resistência negra no coração da terra preta na beira do Rio Alabama. Quando o Dr. King Jr chegou a Selma com todo o seu imprescindível apoio, a cidade já estava aquecendo as brasas do levante há vários meses. O direito ao voto nunca deixou de existir como perspectiva dos citadinos e urbanas negras do velho sul. O bolo teve o seu fermento longamente resfriado pela opressão, medo método, violência e terror racionalizado em práticas e tradições do velho sul. Historicamente, sabemos quando uma sociedade se torna refém de fascistas. Quando a intercomunicação em todos os espaços da vida social é reduzida aos elementos mais ordinários das linguagens, assim interditam toda a capacidade de crítica e reação em nome de um suposto mal menor. Essa operação foi feita na origem da República, durante as ditaduras e agora. Daí nosso impasse.

SALLOMA SALOMÃO JOVINO DA SILVA é intelectual público afromineiro, músico, dramaturgo e professor de História, com doutorado na PUC-SP e pesquisador visitante do (ICS) Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. 29


ELAS MANDAM A LETR A


Slam das Minas - RJ


texto Flávia Rios fotos Diogo Nunes

“Para cada abuso novo, um branco te orienta: negra é forte, negra aguenta”. (MC Dall Farras)

Palavra. Rima. Ritmo. Não só. Performance. Para segurar o mic ou chegar ao centro da roda tem que ter firmeza. É preciso mais: projetar a voz, o corpo, a letra em movimento. É preciso emocionar, criticar e.... surpreender. O coração bate forte, a poesia quase sempre já vem preparada, mas também pode ser improvisada. Tudo na cabeça, mas, não raro, é preciso segurar o papel ou mesmo o celular nas mãos trêmulas. Às vezes a letra corre direto, em outras, um olhar rápido nas escrevivências deixadas na página garante a sequência; outras vezes, porém, é preciso ter humildade: é hora do recomeço. Respirar fundo, pedir desculpas para o público e começar do zero. Sim, mesmo para as mais bem preparadas, mesmos para as poesias já surradas de tão ditas nas quebradas, nas favelas, nos saraus, nos centros culturais, nas festas, nos transportes públicos, nas universidades, nas praças e nas demais rodas da vida, mesmo nelas e delas escapam um verso e até uma estrofe inteira. O recomeço faz parte da performance. Cativa a plateia atenta, gera um silêncio ensurdecedor, marca a cumplicidade entre a poeta e o seu público. A poesia às vezes dura 2 ou até 3 minutos. Pode passar num piscar de olhos ou durar uma eternidade. Em batalhas ou em exibições não competitivas, cada slammer pode fazer várias apresentações seguidas e alternadas por outras minas. É um ritual. As palavras ferem como navalhas, muitas vezes cicatrizam a alma. Há muito o que dizer sobre os Slams. Não é possível fugir ao seu parentesco com a cultura HIP HOP dos anos oitenta nos EUA. Mas é verdade que ele só chega ao Brasil no início do século XXI - especificamente na zona oeste de São Paulo - pelas mãos da artista Roberta Estrela D´Alva. Na cidade de arranha-céus, a poetry slam logo se espalha nas periferias urbanas e floresce na encruzilhada do Rap com a literatura das margens. O fenômeno de poesia falada e performada com voz e corpo parte de São Paulo e logo ganha espaço em outras grandes cidades brasileiras, como foi o próprio percurso do Rap nacional. No entanto, diferente do Rap e dos demais elementos da cultura HIP HOP, que começaram predominantemente masculinos e só recentemente passaram a


“O (slam) talvez seja hoje, uma das arenas da cultura pública e popular a apresentar maior presença de mulheres, particularmente aquelas oriundas das periferias”.

ter uma cena feminina mais expressiva, no Slam as minas logo tomaram de assalto as batalhas da poesia falada. Talvez seja, hoje, uma das arenas da cultura pública e popular a apresentar maior presença de mulheres, particularmente aquelas oriundas das periferias. Assim como na literatura periférica ou literatura negra, são cada vez mais visíveis a presença e a autoria de mulheres nos slams, em particular percebe-se forte presença de mulheres negras. Tal presença não é apenas descritiva, sua marca também se faz visível no conteúdo da poesia. O estudo de Jonas Medeiros1 sobre o movimento de mulheres na Zona Leste de São Paulo mostrou que os valores e as práticas feministas, assim como a consciência das desigualdades raciais e do racismo nos bairros mais afastados do centro da cidade, tinham forte influência dos movimentos culturais, em particular dos saraus e slams, vistos como verdadeiros portadores e agentes da difusão dos discursos antirracistas e contra o machismo na juventude das periferias de São Paulo. Já a pesquisa Feminismo negro em três tempos, conduzida pela autora deste artigo e pela professora Regimeire Maciel, aponta que as ideias feministas e do movimento negro estavam cada vez mais articuladas nas identidades da nova geração de mulheres, especialmente entre aquela juventude que se formou no contexto das jornadas de junho de 2013 e no florescimento da primavera feminista. Nessa nova identidade de mulheres negras, o tema da sexualidade ganhava mais centralidade associado ao discurso da pertença territorial, no caso, originar-se das periferias ou estar à margem dos espaços centrais ou ainda do poder encarnam o adjetivo periférico ao ativismo político e cultural. Neste estudo, os slams aparecem como um dos vetores da popularização das ideias do feminismo negro, mesmo quando as mulheres não se identificam com o termo feminista para a sua autonomeação. Tudo indica que, assim como ocorreu no Rap, as batalhas de slams passaram a incorporar as mulheres, como também discursos sobre as desigualdades e diferenças de gênero e sexualidade. A pesquisa de Matheus Cunha2 mostra a acrescente presença de Mcs mulhe1 MEDEIROS, JONAS. Movimentos de mulheres periféricas na Zona Leste de São Paulo: ciclos políticos, redes discursivas e contrapúblicos, Tese de Doutorado, UNICAMP, Campinas, 2017. 2 CUNHA, Matheus. Ascensão social na trajetória e discurso do HIP HOP. Monografia, UFF, Niterói, 2019. 33


“A rebeldia dos versos é a expressão dos tempos em que a arte é a própria re(existência) da vida.”


res e LGBTQ+ na recente guinada da cultura HIP HOP. Em diálogo com o autor, meu argumento aqui é que o slam parece estar na vanguarda dessa transformação de gênero, já que se trata de uma produção mais horizontalizada, formada muitas das vezes por coletivos autônomos, e que ainda não entrou na lógica do grande mercado, como foi o caso do rap nacional. Em meio às metáforas políticas e de afirmação identitária, nos slams, as minas não passam pano para ninguém. Criticam a política institucional, as epistemologias eurocêntricas nas universidades, os partidos, as autoridades doutas, pastores que pregam intolerância religiosa, empresários, playboys, patricinhas brancas, enfim, o conflito é da natureza da poesia falada. Crítica à moral burguesa e heteronormativa. Flechas no patriarcado. Bombardeio na branquitude. As minas recriam em poesia a dureza do cotidiano e revelam as forças por traz da opressão e da exploração. Nas letras de autoria feminina, emergem cenas de ônibus lotado, da fila dos desempregados, da marmita fria, da falta de grana para fechar o mês, do aumento do pão, do choro da criança, do luto das mães, da bala perdida com destino certo, do estupro e da violência doméstica. Mas aparecem também imagens do gozo feminino, da menstruação, da religiosidade, da sagacidade e inteligência das mulheres pobres, da beleza negra, do afeto, do amor, da correria lado a lado entre elas. Diferente de São Paulo, a presença do Slam no Rio de Janeiro é mais recente. Segundo a pesquisadora Luana Fonseca (UERJ), os ataques de poesia falada vêm ganhando força na cena carioca há apenas três anos. Competições públicas e intervenções nos espaços públicos centrais e também em transportes têm sido produzidos por diversos coletivos que apareceram na cidade do Rio de Janeiro. Mas o slam

não ficou preso aos limites da capital fluminense. Rapidamente atravessou a baia de Guanabara, pelo mar ou pela ponte, e já se encontra em várias localidades periféricas da região metropolitana. No primeiro semestre de 2019, por exemplo, o SLAM DA PRAÇA PRETA, de Niterói, completou um ano. Organizado por um coletivo de jovens vindos de vários lugares periféricos como São Gonçalo, Rio e Niterói. Em um ato irreverente, eles insistiram em alterar a paisagem urbana. Num espaço de arquitetura moderna, pintado somente com tinta branca, estudantes e trabalhadores deparam-se pelo menos uma sexta-feira do mês com as batalhas em verso. De tempos em tempos, especialmente nos intervalos, ouve-se o chamado: poesia na praça.... e o público responde em coro e em alta voz: Preta! No campeonato deste ano, o prêmio era o famoso livro Cumbe, de Marcelo D´Salete. Nas várias rodadas de poesia falada cinco jovens se apresentaram e foram avaliados naquela noite. Só havia uma mulher competindo, embora o público fosse majoritariamente feminino. Entre poesias mais políticas, outras mais filosóficas, os slammers lutavam simbolicamente e sabiam também elogiar a rima complexa do adversário. A plateia atenta prendia a respiração quando, por um segundo, a letra não vinha numa ou noutra ocasião. Mas também vibrava quando o fechamento trazia um lacre daqueles que só os /as maiorais eram capazes de fazer. Embora houvesse apenas uma mina, foi ela quem conseguiu ganhar a parada. Chamava-se Mota-Tai. Experiente, a slammer tinha repertório amplo: ancestralidade, a mulher negra, genocídio negro, violência policial, racismo e resistência cultural. Na letra dela: “o meu corpo está fechado, os meus olhos arregalados e minha língua é um armamento/ vou metralhar com palavras, uma bala de prata, seus fracos argumentos”.


Mas nem só de competições vivem os Slams. Os ataques poéticos podem servir para somar batalhas coletivas políticas e culturais com outras linguagens. Um exemplo foi o caso de um domingo frio na favela do Vidigal, em julho de 2019. Um grupo de mulheres organizou um evento para a comunidade na associação cultural. Organizado pelo Favela no Feminino, uma rede de mulheres da comunidade que se articularam no contexto das fortes chuvas que abalaram o morro no início do mesmo ano. Além da solidariedade aos moradores e às moradoras, elas conseguiram fazer o evento para discutir temas das suas vidas diárias, como aborto paterno e violência do Estado. A atividade contava com crianças, idosas, adolescentes, mães e avós. Foi lá que se apresentou um dos maiores coletivos do Rio de Janeiro: o Slam das Minas - RJ. O Slam das Minas - RJ se auto nomeia batalha “lúdico poética”. Segundo as integrantes do Slam, buscam “um espaço seguro e livre de opressões para o desenvolvimento de mulheres (héteras, lésbicas, bis ou trans), pessoas queer, agender, não binaries e homens trans”. São poesias calibradas, vibrantes e afiadas como uma navalha. Uma parece ter chamado mais a atenção da plateia no Vidigal. Era a poesia da Gênesis. Na letra da slammer: “tô cansada de ver macho bebendo à tarde na calçada e espancando na madrugada”. Era mensagem de sororidade, de dororidade. De mulher para mulher. Olhos da plateia brilhavam vidrados na poesia e a poetiza mandava o papo sem meias palavras: a mulher não pode apanhar nem viver em relacionamento abusivo. Aplausos efusivos. Uma mensagem encontrou acolhida: uma semente da primavera havia sido plantada pela arte das minas. E, assim, da cultura à política, marcados pela performance face a face, pelo sangue nos olhos, pela coluna ereta, pela voz altiva, os coletivos de Slams se apresentam com uma das expressões mais pulsantes da arte pública da cena contemporânea. Além de popularizar a poesia, rompem com a naturalização da violência diária e a indiferença do cotidiano. As minas, de fato, mandam um papo reto: a rebeldia dos versos é a expressão dos tempos em que a arte é a própria re(existência) da vida. Niterói, primavera de 2019. FLÁVIA RIOS é socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense. Escreveu em coautoria os livros Lélia Gonzalez (Selo Negro, 2010) e Negros Nas Cidades Brasileiras (Intermeios, 2018).


VIOLÊNCIA CONTRA OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL MORTOS POR CONFLITOS DE TERRA O número de líderes indígenas mortos em conflitos no

campo em 2019 foi o maior em pelo menos 11 anos. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT),

7 pessoas foram mortas contra 2 registradas em 2018.


Djonga


EMERGÊNCIA texto Eugênio Lima fotos Fernando Eduardo / Cortesia Djonga / MANDELACREW

Emergência substantivo feminino

1. ato ou efeito de emergir. 2. situação grave, perigosa, momento crítico ou fortuito.


Black Alien


Então eu preparava pra seguir o meu caminho, protegido por meus ancestrais.[...] Mudaram as músicas, mudaram as roupas, mas a juventude afro continua muito louca. Falei do passado e é como se não fosse, Por que eu vejo a mesma determinação no Hip-Hop Black Power de hoje.[...] Sr. Tempo Bom, Thaíde & DJ Hum

O que emerge da música negra contemporânea brasileira? Como pensar na narrativa da música negra produzida hoje no Brasil? Como abordar um tema tão vasto sem o reduzir a teorias gerais, que muitas vezes não passam de reflexos das narrativas dominantes ou dizem muito mais sobre quem escreve, do que sobre o assunto que está sendo escrito. O assunto é amplo, existem muitas vertentes e muita coisa vem sendo produzida, criada, recriada nesses tempos urgentes. Às vezes tudo me soa como uma grande enxurrada de sons e narrativas, outras, vezes me atravessa como um furacão sonoro. Diante desse panorama, existe na imensa produção musical uma música negra contemporânea brasileira que subverte as narrativas musicais dominantes (estereótipos de classe, raça, gênero, centro-periferia, para ficar nos mais óbvios). “Não precisa ser Amélia pra ser de verdade Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser Seja preta, indígena, trans, nordestina Não se nasce feminina, torna-se mulher” Não Precisa Ser Amélia, Bia Ferreira

No meu entender não há como pensar esse assunto sem reconhecer que se trata de uma armadilha pois não há como dar conta do material.

O

CHAMADO.

Meu pai Ogum mandou chamar Eu vim, eu vim de lá Meu pai ogum mandou chamar Eu vim, eu vim de lá

As coisas que emergem podem estar sendo gestadas neste momento sem o meu conhecimento, por mais que eu tenha como um dos focos de pesquisa da minha vida a música da diáspora negra brasileira criada por pessoas negrxs. Muita coisa foge ao meu conhecimento, muitas cenas existem que desconheço ou que hoje não são consideradas relevantes, mas que amanhã podem ser determinantes para compreender nosso tempo. Cenas que se relacionam de maneira diversa com as várias formas de criar, produzir e publicar música.

Ele me ensinou coisas sobre amor E que na paz só se chega com a guerra E que toda bonança do trono do rei Xangô Só vai conhecer quem for justo na Terra, ei

“Quem tava lá Quando os relíquias fincaram nossa bandeira? Eu tava, você não, né?! Deixa eu falar Pezinho no chão, bebê, não fala besteira”

De Lá, Djonga.

Respeita Minha História, MC Neguinho do Kaxeta

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Nestes tempos urgentes, pensar, escutar e divulgar música negra é sobretudo pensar como ela se relaciona com o seu local de criação, quem cria, onde é criada, quem divulga, quem ouve, ou seja, é um processo complexo que relaciona o entorno com um mundo externo, que muitas vezes é o avesso de onde aquele som foi criado. “A partir de agora considero tudo blues O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues Tudo que quando era preto era do demônio E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues É isso, entenda Jesus é blues Falei mermo” Bluesman, Baco Exu do Blues

Hoje os arquivos musicais circulam de uma maneira muito rápida, realidades podem ser compartilhadas assim como modos de se vestir, gírias, sotaques. Porém, apesar de existir uma grande variedade de narrativas musicais negras, muitas delas ainda reforçam os estereótipos, sejam eles: raciais, de classe ou de gênero (só para citar, como eu já disse, os mais óbvios), ou seja, apesar de serem muito potentes elas reforçam os papéis cristalizados. Como todxs sabem, a internet não é uma plataforma horizontal e mesmo assim fenômenos podem acontecer.

“Respeita minha história Antes de bater no peito, julgar Baixa a bola, procure saber quem eu sou Minha trajetória Não foi da noite pro dia, da água pro vinho Eu confesso que demorou Eu sou do tempo que o asfalto era fora de cogitação aqui A chuva caía e o futebol era na lama Passageiro do tormento, visitei a fome, nunca desisti 1 por amor, 2 pelo funk, consequência: fama” Respeita Minha História, MC Neguinho do Kaxeta

Sendo assim depois de muito refletir e quase desistir de escrever esse artigo, resolvi escrevê-lo como um jogo de pergunta e resposta. Resolvi escrevê-lo como uma mixtape; mixtape é uma compilação de músicas, adquiridas de fontes alternativas, gravadas tradicionalmente em cassete. As músicas podem ser dispostas de forma sequencial ou agrupadas por características comuns como ano de publicação, gênero e outros aspectos mais subjetivos. As primeiras e mais comuns mixtapes eram bootlegs, feitas na clandestinidade em formato estéreo 8; se vendiam nos chamados mercado das pulgas e em postos de gasolina desde os finais dos anos 1960 até o começo dos anos 1980. Com a chegada do som digital tudo mudou, a criação e distribuição das mixtapes sofreram enormes transformações, mas o termo mixtape ainda é comumente utilizado, mesmo para mixagens, em diferentes suportes. A ideia aqui é criar/mixar uma cartografia musical descolonizadora, para a qual escolhi três amigues para consultar: Luz Ribeiro, João de Souza Neto e Roberta Estrela D’Alva.


A

METODOLOGIA

“Habito as fronteiras da travessia do espelho Point of no return No confinamento, as paredes são Minhas páginas de cimento, babylon burn Jurei por Deus que ia acertar as contas E aí lembrei que é Deus quem acerta as contas Ele acerta no início, no meio, e no fim das contas Quem somos nós nesse mundo complicado? Danger zone, sou só mais um Sente o som e o peso da pata do pirata Sem garrafa de rum” Carta Para Amy, Black Alien

O método foi simples, e eu escolhi alguns artistas que no meu entender representam, de uma maneira própria, um discurso relevante dentro do mosaico da música negra contemporânea brasileira. Isso não quer dizer que esses artistas sejam xs “portavozes” de todxs xs artistas ou que elxs resumam tudo o que está acontecendo no país neste momento: escolhi-os a partir do lugar dos afetos, ou seja, a partir do que me atravessa, aquilo que acho necessário, e não necessariamente aquilo que gosto. Reconheço nelxs vozes singulares, que carregam na sua trajetória outras vozes e que, portanto, acabam ligando diferentes gerações, na árdua tarefa de mudar através da música a narrativa dominante; escolhi-os por conta das batalhas para construir um outro olhar possível sobre ser negrxs brasileirxs, no mundo que nos toca viver. Batalhas travadas na língua, na atitude, no som e na música. Algumas vozes partem de um lugar intimista, outras criam odes, outras ainda invocam os ancestrais para cantar juntxs e algumas teorizam sobre o mundo. Depois disso enviei a lista para elxs (xs amigues), que por sua vez me mandaram sugestões de nomes; alguns eu já conhecia outros não.

Escutei os que não conhecia, juntei com as minhas sugestões e a partir disso, selecionei as músicas que eu acho mais relevantes de todxs e construí uma playlist1, que é o ponto de apoio do artigo que você está lendo.

SOBRE NARRATIVA OU APERTA O PLAY “O que a gente quer disputar é a narrativa, é quem conta a história, como a conta a história e quais são as formas que utiliza pra contá-la”, foi assim que respondi, quando me perguntaram, o que de fato eu queria como artista diante da narrativa hegemônica. Como eu disse anteriormente, o ato de escrever revela, não só o assunto, mas sobretudo quem escreve. “Ninguém nos disse que seria fácil Segurar a onda, dá na cara e continuar Não deixe que tentem te colonizar Te converter, te doutrinar Te alienar Eu quero voar Escrever o meu enredo Liberdade é não ter medo!! Eu não vou entrar nessa jaula Eu não nasci pra ser adestrada Me deixa correr no espaço Deixa eu exibir a minha pele pintada” Descolonizada, Larissa Luz

Descolonizar é urgente e necessário e para isto no meu entender a representação não basta. É preciso que a parcela da sociedade que ignora, que prefere não ver, que finge não estar envolvida, que se omite embora não concorde, seja convocada a se posicionar. Sua posição/omissão precisa ser confrontada de maneira pública. 1 http://abre.ai/aEuz


O racismo e suas consequências nefastas são um problema da sociedade brasileira, ou seja, nos envolve a todos e todas, negrxs e brancxs. É preciso criar um novo campo de debate, é preciso mudar a narrativa e, principalmente, é preciso mudar quem narra. “Sou ascenção Vim de baixo, debaixo da opressão Complexa demais pra sua compreensão Visão periférica, voz periférica Coloco o ego desses boy na minha mão Quero mais que KITS, era Nefertiti Com a dor fiz feat, transformei em som Nóiz não tamo quite, várias dívidas 400 anos cês vão me pagar Não vão me pegar, não, não Mas eu vou cobrar Cada gota de sangue que nem Rubi Nem vem de ignorância pra reprimir Sou Zacimba não sou sua Bi Tô no corre, sou Dandara sem Zumbi” Rosas, Drik Barbosa

Talvez seja justamente isso que foi imposto a essa geração de artistas: o receio de que a apropriação cultural imposta pelo sistema da branquitude conseguisse concretizar a eliminação da nossa história. A disputa pela narrativa não é abstrata, ela é densa e concreta. O que percebo nesse conjunto de artistas, é que mesmo de maneira profundamente heterogênea, respondem ao momento histórico com a afirmações poéticas e, portanto, políticas, diversas, mas quase todas relacionam sua presença à sua existência, seja na voz que articula a vida, seja contrariando o enredo previsto, seja pelos corpos insubmissos que dançam a vida, mas de qualquer forma é como se no sub grave profundo uma frase ecoasse: eu preciso estar vivx, eu estou vivx, e isto precisa ser ampliado para todxs. Cantam porque percebem que sua existência está em perigo, que suas vozes correm o risco de serem apagadas e, com este apagamento, apagam-se também suas vidas.


Drik Barbosa


Linn da Quebrada


Ser real é mais que olhar o momento histórico. É olhá-lo num instante de perigo. Estar em relação é estar em risco. É uma geração que articula a sua poética diante da necessidade imperativa de construir a vida e a negritude, ou, como disse Grada Kilomba: “Fazer o que se quer é um privilégio, mas também uma conquista”. Uma conquista que vai muito além do que postular lugar na cadeia produtiva, dentro da lógica altos cachês/protagonismo/palco principal=visibilidade; tudo isso é necessário e legítimo, porém ainda está na lógica do capital. E não é a mesma coisa que estar em risco. Por mais que eu concorde com a primeira, uma coisa é o plano da lógica do capital e a outra é no campo da sobrevivência real. Antes de mais nada é preciso estar vivx, “vivão e vivendo”, e isto precisa ser ampliado para as próximas gerações, viver sendo quem se é, viver sendo quem se quer ser, tudo isso sem esquecer de todxs xs que se foram. O resto é história. Matéria do tempo. Cruel, Sábio e Certeiro... “Mas não se esqueça Levante a cabeça Aconteça o que aconteça O que aconteça: Aconteça! Continue a travecar Continue a navegar Continue a atravessar Continue a travecar Continue a atravessar” Serei A (part. Liniker), Linn da Quebrada

EUGÊNIO LIMA é Dj, Ator-Mc, Pesquisador da cultura diásporica, Membro Fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e da Frente 3 de Fevereiro e Diretor do Coletivo Legítima Defesa.


WYNTON MARSALIS JAZZ SUPREMO MOVIMENTO DA VIDA

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texto e entrevista Luciane Ramos-Silva ilustração Edson Ikê A Música, assim como outras formas de arte, está profundamente entrelaçada aos movimentos humanos atuando como potência para expressar ideias, desejos ou comunicar sensos sobre o mundo e para expandir o que somos/ estamos. Fazer e experimentar arte nos instrumentaliza para improvisar diante dos desafios, para nos sentirmos livres a fazer escolhas assim como perceber a vida em coletividade como uma possível experiência da democracia – onde a contribuição individual é um compromisso para a manutenção do todo. Essas janelas simbólicas parecem se abrir quando o assunto é jazz, forma musical nascida da experiência afro-americana e que proporciona ricos caminhos para entendermos como a criatividade, o apuro técnico, a capacidade de reinvenção e o amor estão no cerne das vidas negras. Para esmiuçar esses pulsos presentes no jazz, encontramos Wynton Marsalis, exímio trompetista dos nossos tempos. Nascido em Nova Orleans, no chamado sul profundo* estadunidense, Wynton cresceu em meio a uma família de músicos, rodeado por grandes referências do jazz. Seu pai, o pianista Ellis Marsalis, ensinou música a Wynton e seus três irmãos Brandfort (saxofonista), Dealfeayo (trombonista) e Jason (baterista). Sua carreira como grande trompetista está atravessada por uma sólida formação musical e diversos prêmios como o Grammy e o Pulitzer - este último ressoou historicamente, pois foi a primeira vez que uma obra de jazz foi agraciada (vale lembrar que em 1965, o pianista Duke Ellington foi citado pelo júri, mas os membros do Pulitzer negaram a indicação). Além de múltiplas distinções, Marsalis, tem uma longa atuação como compositor, educador e diretor artístico da Orquestra Jazz at Lincoln Center, onde também dirige, há décadas, um programa de educação musical para crianças, jovens e adultos que desenvolve capacidades e interesses. Nos anos 1990, criou a Marsalis on Music uma série para a PBS, TV pública dos EUA, posteriormente distribuída em vídeo, livro e cd pela Sony. Como um programa-aula de auditório, estruturado no formato de arena, Wynton ocupava um tablado multicolorido, rodeado de crianças na plateia e a orquestra exemplificando seus ensinamentos: “músicos de jazz improvisam melodias e improvisar significa inventar espontaneamente – como quando nós falamos... nós usamos palavras para expressar o que queremos dizer, 49


para fazer sentido... músicos de jazz fazem a mesma coisa mas com notas... Aqui ouviremos alguns exemplos sobre o que os músicos de jazz podem fazer”. Mirando sua biografia, vemos que suas ações criativas ao longo da história foram construídas no aprofundamento das tradições bem como na expansão de relações e diálogo com outras formas artísticas. Wynton compôs, por exemplo, para a magnífica bailarina e coreógrafa da Alvin Ailey American Dance Theater, Judith Jamison, a obra Sweet release, peça que conta a história de um casal, representado pelo trombone e o trompete, e as tentações que ameaçam o romance. Conhecido por sua posição crítica ao hip hop tanto em termos estéticos quanto como fenômeno social, e por problematizar as criações que fundem jazz com outras linguagens da música, suas ideias geram debates e controvérsias. Polêmicas à parte, Wynton define à seu modo a relação com as tradições do jazz e neste bate-papo curto e exclusivo (não foi fácil conseguir uns minutos desta célebre e simpática figura) trazemos às leitoras e leitores um pouco dos interesses, perspectivas e realizações de um artista que fala de música, mas também das dinâmicas que nos movem para superar desafios e nos lançarmos harmonicamente adiante ouvindo a música que temos dentro de nós mesmas/os. Brilhante e carismático, Marsalis afirma que o jazz é uma procura por equilíbrio. Nestes tempos de tanta desarmonia e infinitos paradoxos, essa busca por “balance” torna-se uma necessidade. Nossa conversa também destrinchou memórias e fundamentos da música, reconhecendo o quão ela está entrecruzada com a história negra e à edificação da humanidade. Passamos pela Congo Square, o legendário coração musical de New Orleans e berço de grande parte das vertentes musicais daquelas terras; falamos sobre o romancista Halph Ellison e do programa de educação dirigido por Marsalis junto à Jazz at Lincon Center em Nova York – a música como forma de retomar humanidades e produzir belezas.

* Sul profundo = do inglês deep south – área que abrange os estados do sul dos Estados Unidos especialmente Georgia, Alabama, Carolina do Sul, Lousiana e Mississippi. Ao longo da história tornou-se não apenas uma entidade geográfica, mas também cultural.


LUCIANE RAMOS-SILVA - Nossa conversa será sobre cultura, Jazz e

mudança social. WYNTON MARSALIS - Vamos falar sobre isso! LRS - Ok. Vamos lá! Nós, na revista, acreditamos na arte - e na música consequentemente - como um modo de entender o contexto ao redor. Pessoas criam, negociam e se adaptam. Pensando na presença da cultura africana e o movimento da diáspora africana, é possível entendermos o Jazz como uma linguagem para sobreviver e resistir, mas também para ampliar a criatividade de pessoas negras na diáspora? WM - Bom, acredito que precisamos entender a dinâmica de

pessoas negras fora da África. Diáspora, negros, se vieram e foram escravizadas, ou se foram colocadas numa posição para garantir uma classe social mais pobre da classe social mais pobre. A luta pela liberdade nunca foi de brancos contra negros, mas foi sempre brancos e negros contra brancos. E sempre há características dessa luta, e a característica principal dessa luta é ir além da identidade étnica das pessoas e chegar a sua identidade e herança humana. E a música é a arte do invisível. Logo, vai direto para as coisas invisíveis que fazem parte de viver, como sua memória, seus sonhos, sua imaginação, suas aspirações, ciúmes, inveja, raiva, todas essas coisas que existem... intelectualismo... essas coisas não são uma cor, e não são uma cultura, são todas culturas. E quanto mais profundo você for conectado a esse espaço vazio, mais você é capaz de entender a espiritualidade que faz todos serem uma parte de uma única coisa. É muito difícil compreender intelectualmente, mas é muito fácil intuir. Nós sobrepomos nossa intuição e nossa razão com intelectualismo todo dia. Por que intelectualismo é algo que você sente que fez, então as pessoas podem dizer “Olha o que eu fiz.”. Enquanto a intuição é algo que você é dado ou que você tem, então você olha além disso para procurar a resposta errada, você olha além da resposta certa e estuda anos para chegar à resposta errada. É uma resposta longa, mas a linguagem da música, do Jazz e o melhor dessa música vem desse mundo espiritual que todos têm, por isso que a música é tão adaptável a formas diferentes. LRS - Pessoas costumam pensar que a imaginação e a criatividade

dos negros eram características naturais, inatas. Então eu gostaria que você falasse um pouco dos conhecimentos técnicos e mecânicos envolvidos nisso.


WM - Bom, todas as pessoas são criativas, e isso é inato. Todas os seres

humanos da Terra são criativos. Se você for pra qualquer lugar do mundo, você verá pessoas com estilos de cabelos diferentes, utilizando linguagem de modos distintos, pessoas decoram sua casa e se vestem de determinada forma, independentemente da classe social, e são criativas. Têm jóias, têm suas casas decoradas, são criativas, não importa onde for, negros... Em que medida uma pessoa é ou não é negra? São seres humanos. Agora no que diz respeito a uma maestria artística, bom, isso é bem diferente. Porque, isso quer dizer que você interpreta a mitologia. Inicialmente a mitologia que configura o grupo de pessoas da qual você faz parte. E se seu dom for profundo o suficiente, a mitologia do ser humano. E o que possibilita você a interpretar essa mitologia e, depois, conseguir compartilhar com os outros o que se sabe é o que exige muita habilidade técnica. Porque? Não saberia dizer. É como se todas as pessoas tivessem um pregador que prega ou fala, e todos tem falsos pregadores. Porque o falso pregador prega com bastante carisma, mas não é a verdade espiritual. Mas para ter a verdade espiritual e poder dar voz a ela e tocar pessoas, por algum motivo, requer um preço muito elevado. Por isso que os gregos costumavam dizer que os guardas têm inveja dos artistas, então os faziam sofrer. Não se enxerga isso sem tremenda habilidade técnica, e eu não sei porque. Não se tem o insight espiritual profundo sem a grande habilidade técnica, em qualquer cultura, não importa. LRS - Lendo Cornel West, ele dizia que o Blues veio do amor

catastrófico. Pensando a respeito de New Orleans e Congo Square como o coração da possibilidade dessas pessoas africanas de imaginar um novo modo de viver, e também a respeito do seu álbum de 2007, ‘Congo Square’, o que você acredita que seja importante as pessoas saberem sobre Congo Square? WM - Em Congo Square está tudo na música. Porque em Congo Square havia o mestre Yacub Adi, que faleceu recentemente, eu queria escrever algo com ele e pra ele, então é algo muito pessoal. Os escravos em New Orleans, como eram escravizados pelos franceses podiam tocar tambores e dançar e vender bens e ter um mercado. Um mercado é muito importante. E muitas vezes quando se consegue ver a liberdade é muito diferente do abjeto. E assim é o Blues. Mais uma vez, o que Yacub falava sobre eram coisas relacionadas ao ser humano como um todo. Ele não era muito um tribalista. Ele tinha sua identidade tribal, eu não sou da sua tribo. Ele é da tribo de Deus. De New Orleans. Ele 52


era diferenciado. Congo Square é sobre mães, avós e pais, irmãos e irmãs, algo que o mundo inteiro tem. E ele era muito avançado. Ele dizia muitas coisas engraçadas. Ele me disse uma vez, falando sobre um ritmo: “Esse é um ritmo imperial”. Eu disse: “Não é imperial pra mim, sou dos Estados Unidos” e ele respondeu “É por isso que você nunca vai tocar esse ritmo direito”. Ele me ensinou muitas coisas, sobre ritmos ele disse que era difícil tocar uma polirritmia, porque quando as mãos esbarram uma na outra é o que tira sua atenção. “É como pessoas”, ele disse: “Desde que estejam separadas um do outro, podem ir e vir contra o outro e está tudo bem. Mas o problema surge quando duas pessoas têm que estar juntas. Se você tocar um ritmo (Wynton batuca um ritmo com as mãos na mesa). É quando se bate uma mão na outra que se erra. O Blues é uma expressão americana, tem expressões africanas na raiz, do shuffle rhythm. Mas é uma expressão americana. E está relacionada a todas as coisas, está relacionada à música do Oriente Médio, música espanhola, está ligada às três notas fundamentais da música do Ocidente, o coro, está relacionada aos cânticos ingleses, está relacionada à música do Oriente. (Wynton assobia um ritmo). O Blues está relacionado a todas a coisas porque é o Blues. Então Yacub entendia sobre humanismo. Isso era quem ele era. Então ele me ensinou muitas coisas. Sinto falta dele. Eu o amo e o respeito profundamente. E é até difícil falar sobre quão profundas suas lições foram. Um professor muito profundo. Nomway era como o chamávamos. Ele me ensinava como tocar ritmos. Ele cantava o ritmo (Wynton vocaliza enquanto bate palma ritmicamente) e me fazia contar o “um, dois, três” bastante. LRS - Ralph Elisson, o Homem Invisível. Qual a importância desse mestre na sua vida? WM - Eu conhecia o Ralph, ele tocava trompete. Então ele também se juntou ao meu mestre de verdade Albert Murray. Cuja casa visitava toda hora, todo fim de semana. O grande Albert Murray, escreveu o livro chamado Stomping the Blues. Mas Ralph, em O Homem Invisível, estava falando sobre aspiração e O Homem Invisível mostra que não é brancos contra negros, por que toda vez que o protagonista encontra alguém, essa pessoa está fazendo algo para tirá-lo de seu caminho. O presidente da faculdade, o benfeitor, Ras “o destruidor”, não importava quem era... a irmandade... qualquer lugar que ele fosse havia um nível de fraudulência. E o Homem Invisível nos leva do Sul ao Norte, e no fim tem algo sobre identidade. Em que as pessoas achavam que ele era outra pessoa, que ele podia de modo repentino mudar de identidade. É 53


um livro sobre identidade. Quando ele foi trabalhar na indústria de tinta, ele colocava tinta preta na branca para deixar a tinta mais branca. Isso é engraçado. E a luta que ele teve com o homem negro mais velho. É o tempo todo... E o protagonista é qualquer homem, ele não tem característica especial, ele não é herói, ele apenas tem boa intenção. Como colocam ele na Irmandade e o colocam responsável por questões de mulheres no Harlem. Ele não sabia nada a respeito disso. É como hoje em dia, pessoas tomando conta de coisas que não conhecem. Ralph conseguia ver muito. Ele tinha uma inteligência inimaginável. Então para mim tem muito em comum com Nomway. Sempre tive sorte de estar próximo a grandes nomes. Nomway era um grande nome. Ralph também. LRS - Falando sobre grandiosidade e aprendizagem. Ensinar a

transgredir. Eu estava lendo sobre o programa de educação em escolas públicas do Lincoln Center, que tipos de oportunidades você acredita que o Lincoln Center oferece a jovens? WM - Nós trazemos o quanto podemos. Mas há tanto contra eles.

E a liderança é tão ruim. É como se entrássemos em um hospital e o sistema de saúde é muito pobre, e eles nos dão remédios que vão te matar, mas que também vão nos manter vivos por mais duas semanas. Há tanto contra nesse momento específico. Pode parecer incomensurável. Mas às vezes, essa esperança já é o bastante. É como estar no Congo Square. Se você era um escravo em Mississippi, você não tinha esperança. Você não podia sair, não podia batucar, você não podia vender algo, você não podia comprar a liberdade de seus filhos. Se você fosse um escravo em New Orleans você podia comprar a liberdade de seus filhos. Quantas pessoas faziam isso? Não muitos. Mas você podia fazer isso. Você podia tocar música, você podia vender coisas. Com seres humanos, desde que haja alguma esperança, desde que exista esse símbolo, as pessoas encontrarão isso, e é isso o que representamos. Não é sabido que é isso o que representamos. Por que tem muito contra, é uma luta muito séria. Você pode sorrir e ser educado, mas são tempos muito difíceis. E tem muitos modos de estar engajado nessa luta, não apenas na rua com um cartaz. Isso é um modo. E a música foi sempre um modo de manter a humanidade em situações desumanas. Se a música for consciente o suficiente, pois a música pode também ser uma droga.


LRS - Aqui no Brasil nós estamos sendo destruídos em termos de

política, direitos civis, democracia. Qual a importância de fazer arte em tempos de Bolsonaro e Trump? WM - Bom, não vejo Trump como algo diferente do que tivemos.

Quero deixar isso claro. Trump não vem e faz diferente de 370 milhões de pessoas dois anos antes. Eu não separo o Trump. O que tínhamos antes de Trump não eram bombas e explodir coisas? Há um movimento da direita ao redor do mundo. É sempre uma tentativa de controlar recursos e pessoas, principalmente pelo medo. E mais uma vez, é uma consciência baixa. E é dado a pessoas de todas as raças, não apenas àquelas mais bem sucedidas. Talvez você pode ser o mais bem sucedido, mas eu estou tentando também. Talvez você seja melhor em explorar pessoas. Se olharmos ao redor do mundo, vemos liderança fraca em todos os lugares. Vemos pessoas sendo exploradas em todos os lugares, não apenas em países brancos. Vemos pessoas perdendo suas vidas sem razão. Vemos todo tipo de injustiça, que é forçada diretamente à população. As pessoas estão apenas tentando viver suas vidas. Não estão lidando com essas questões. É sempre uma tentativa de controlar recursos, controlar dinheiro, controlar sexualidade, controlar informação, forçar pessoas a fazer coisas e a trabalhar pro ganho de poucas pessoas. Isso é consciência baixa. Música, em algum sentido... Música espiritual... Se não for uma droga, pode ser consciência alta, mas isso leva tempo. O tempo de vida de um ser humano não é tempo suficiente. Por que leva muito tempo a mudar a ideia que não há recursos suficientes na Terra para sua população. Ou a ideia que você é mais bem sucedido, porque tem mais recursos. Você sabe que não se trata tanto de Trump ou pessoas negras. Porque apenas os negros? Ninguém os controla. E porque apenas os asiáticos? Ninguém os controla. Você olhar ao redor do mundo e vê todas essas pessoas. Entende? A questão da música é a representação simbólica. Pois a representação simbólica é muito poderosa, especialmente quando há a música, porque a música é invisível. Então entra dentro de você, como por exemplo a música do John Coltrane que ainda simboliza alguma coisa. Pessoas podem colocar a música dele e ele está morto, mas a música dele entra dentro deles e isso significa algo. LRS - Sim. É invisível, mas nos alimenta, nos traz... WM - A alma é invisível. Mas está lá.

AGRADECIMENTOS Ester Campos pela contribuição na gravação da entrevista e Alexander Dejonghe pela tradução da entrevista para o português. LUCIANE RAMOS-SILVA é co-diretora da revista O Menelick 2º Ato. Antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Gestora do Acervo África. Docente na Sala Crisantempo. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.


VIOLĂŠNCIA CONTRA

TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

NO BRASIL Com 47% do total das mortes notificadas, o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de Travestis e Transexuais. De acordo com o Transgender Europe, que monitora os assassinatos de Travestis e Transexuais ao redor do mundo, entre outubro de 2017 e setembro de 2018

foram assassinadas 167 pessoas Trans no Brasil.


leve sua culpa branca pra terapia texto Tatiana Nascimento terapia me parece um lugar ótimo pra aprender a lidar com a culpa. sítio propício pra se falar exaustivamente sobre ela, pra se repetir memórias, revisitá-las, propor alternativas ou apenas ficar remoendo mesmo a coisa toda pelo tempo que for preciso antes de deixá-la ir. mas talvez, no caso da culpa branca, levá-la ao ambiente terapêutico suscite, além de uma maneira positiva, curativa, transformativa de lidar com a culpa, uma alforria às pessoas negras que, como eu, convivemos com pessoas brancas y não queremos nem precisamos ser interpeladas a lidar com essa culpa, alheia. penso culpa branca não como alguma culpa sentida por alguma pessoa branca: mais precisamente o sentimento de ser culpada pela própria branquitude. tenho visto aparições desse sentimento como tentativa de expurgar o pecado do racismo da própria vida. às vezes ele me parece uma manifestação secundária, derivada da percepção inicial da branquitude como ao mesmo tempo mantenedora e beneficiária maior do racismo. uma manifestação que dá o passo seguinte à autocompreensão tida por pessoa branca sobre o lugar que ocupa numa sociedade colonial. mas esse passo seguinte, sendo a culpa, é estacionário. poucas coisas podem ser tão paralisantes quanto a culpa. no caso da culpa branca, tendo a notá-la como ainda mais convenientemente paralisante, por (aparente contradição, mas só aparente) movimentar uma forma específica de desresponsabilização racial que tenho assistido com atenção, reflexivamente. essa culpa especialmente quando

sentida por ativistas brancas / brancos é que tem me feito refletir, por ser uma muito característica que aciona, primeiramente, o dispositivo paralisante que opera pela criação de uma incapacidade de ação, de posicionamento ativo, reflexivo, transformador (ou “reparador”, como tem sido apontado) com relação ao racismo. ela parece congelar a pessoa branca em dois frames: primeiro, um daquele expurgo / expiação – como se quem sente culpa por ser branca expressasse com aquela culpa seu desejo por uma liberação, um livramento de seu próprio racismo. “não sou tão racista assim. sei que o racismo é tão cabuloso que me sinto culpada por ser branca. não é como se eu tivesse orgulho, entende? isso deve valer de alguma coisa nesse tabuleiro, não?”. o segundo frame em que culpa branca define paralisação é no lugar de mártir que parece dar à pessoa branca. aí, mesmo que afirme não sentir orgulho por ser branca, há algum brio no sentir dessa específica culpa (“mea, mea, maxima”), um certo viço, alguma expectativa de reconhecimento da dor vinda do sentir culpa por ser pessoa branca – eu sei, parece um exagero. mas vi isso muito recorrentemente a ponto de poder esboçar essa reflexão –, levando-a a um tipo de protagonismo, ou desejo de protagonismo, branco, no plano geral de seu empenho antirracista (que também poderia vir entre aspas). a culpa sole ser usada como uma daquelas cartas que dão muito poder numa rodada de uno, uma espécie de passe-livre que faz, por exemplo, pessoas brancas se sentirem à vontade pra expressar como se sentem tristes, culpadas, terríveis, sem-saber-o-que-fazer, quando estão em reuniões com pessoas negras, ou em eventos públicos sobre cultura negra ou com protagonismo negro, y até mesmo quando estão com uma única pessoa negra numa conversa. elas parecem se esquecer, as pesso57


as brancas que fazem esse tipo de carpidação de suas próprias dores-advindas-da-culpa-oriunda-de-serem-brancas, que o foco da nossa libertação, enquanto pessoas negras, não é elas. mais que isso, sinto, meio passada mas não surpreendida, que não é só que esqueçam disso, mas fazem questão de trilhar, pela performatização da culpa – a qual deve sempre ser alastrada em público, devassada em detalhes experienciais e oferecida numa forma de espetáculo que conjura expressões faciais a gestuário específico & tons de voz que muitas vezes beiram o choro, quando não desembocam abertamente aí –, o caminho de seu protagonismo no que elas consideram como a luta antirracista. a própria naturalidade com que pessoas brancas parecem esperar que pessoas negras estejamos sempre dispostas a ouvir suas lamentações & tristezas & arrependimentos & memórias-de-quando - e r a m - c r i a n ç a s - r a c i s t a s - c o m suas-empregadas é indício bastante demonstrativo dessa forma pela qual (algumas d)elas parecem considerar a culpa como um sentimento que as deixa além de aptas a, necessitadas de, receberem toda a atenção, y as faz acionar uma expectativa de cuidado paliativo: querem que estejamos prontas a acolhê-las, cuidá-las, ouvi-las, emitir pareceres redentores, auxiliá-las no processo de compreensão de “o quê quando como onde houve racismo ali”, enfim: oferecê-las alívio afetivo pro momento catártico de escoamento sentimental, subsídio político pra seu desenvolvimento moral e/ou status de ativista, e, lógico, perdão pela culpa por serem brancas. em outras ocasiões / textos já comentei quão perverso é esse mecanismo de pedir desculpas por ser / ter sido racista, no que esse pedido tem a capacidade de inverter a carga de respon-

sabilização do racismo ao esboçar tirá-la da pessoa branca querendo lançá-la sobre a pessoa negra num plano quase litúrgico em que não só a pessoa negra torna-se responsável por redimir a pessoa branca da culpa que sente (o que seria a consequência esperada de, efetivamente, perdoá-la) mas, se não o fizer, poder ser ela, pessoa negra, condenada à consideração de sem coração, pessoa ruim, incompreensiva, desumana, enfim, esses ou quaisquer outros adjetivos abjetos que hão de recair, como praga no egito, sobre quem não “quer” perdoar. já analisei também de que forma essa noção de o racismo como algo passível de perdão funciona perversamente ao sugerir que racismo se resolve relacionalmente, na base de um pedido bem cristalizado mimético ao movimento super familiar de uma pessoa adulta obrigar duas crianças a se abraçarem e dizerem uma à outra “me desculpa / tá desculpade”, tratado no plano do banal, levianamente – como não fosse, o invés, algo de uma solidez que é social, cultural, econômica, história, política, estruturante. como isso não fosse já o bastante, aquele dispositivo paralisante primeiramente mencionado tem uma pareja-paradoxal: por mais que a culpa seja profundamente paralisante das pessoas brancas (ela praticamente cria um tapete vermelho no qual elas param pra brilhar sob os flashes imaginários de minhas metáforas), ela exige profunda movimentação de pessoas negras. posicionamento político. revertério intestinal. giros oculares nas órbitas caveirais do crânio. reavaliações relacionais. essa reflexividade cinética pode gerar uma série de atos da pessoa negra, tragada num quadro branco de expiação da culpa racista, demandando seja que ofereça o socorro almejado pela pessoa branca (tendo vivido entre tantas, inclusive amigas ou bem próximas, me pus exaustivas vezes nesse lugar em que simultaneamente fui posta), seja que evada física ou mentalmente do terço de recuerdos racistas que a pessoa branca começa a rezar. já me vi nessas todas situações, y sair fisicamente é a mais fácil, apesar de não ser sempre o mais indicado nem o mais possível. por exemplo, nos contextos em que sou formadora, as pessoas praticamente esperam que eu esteja disposta a ouvir suas histórias de terror racial matizadas – mas não neutralizadas, nunca, diferentemente do que parecem pensar – pela culpa branca, y mesmo que eu as interrompa, ou a alguma delas, uma outra sempre acha que


sua história é mais importante / dramática e vai anunciá-la sem sequer avisar que ali pode haver alguns gatilhos emocionais para, por exemplo, pessoas negras como eu. evadir mentalmente costuma ser mais exigente, por precisar duma capacidade de ativação de inescuta seletiva, quase um tipo de botão-de-distração – mas prestar desatenção (gracias, nina, pelo desconceito) me é uma das coisas mais difíceis na vida. acho impressionante, mesmo, como algumas pessoas brancas parecem ter uma necessidade febril de narrar detalhadamente fatos, acontecimentos, lembranças de eventos racistas que tenham presenciado ou promovido, para, ao final, dizer como aquilo foi traumático / marcante pra elas; como elas se sentem culpadas y/ou envergonhadas de terem feito aquilo mas só depois de tantos anos terem reconhecido quão perversamente racista foi; y quase sempre, como um corolário desses episódios, ressaltar a importância de terem percebido aquilo pra diferenciá-las, torná-las engajadas na luta antirracista, fazê-las sentirem seus profundos incômodos ou só, simplesmente, ativar a tal da culpa branca mesmo. também já comentei em inúmeras ocasiões sobre o sadismo funcional ao racismo que criou na colonialidade o gosto pela desgraça, especialmente pela desgraça negra. esse sadismo se atualiza cada vez que são recontadas essas histórias, pois o narrar tem foco na expiação da culpa da pessoa branca e não tange qualquer cuidado como, quem sabe, digamos, favorecer algum tipo de bem-estar negro que reside em se poupar pessoas negras de ouvir aquele tipo de informação (que só parece inédita, aliás, pra brancas). algumas tentam inverter esse sadismo; ouvi recentemente, numa das formações, que aquela culpa, chorada em público, aquele mal-estar em ser branca, faziam a pessoa branca sentir estar favorecendo “a causa negra”. um revanchismo, talvez? algum tipo de vingança?, pensei. mas se o tema é justiça social (meu interesse, foco da minha ação política), & não

BDSM, que tipo de solução é essa? como, perguntei a ela, seu mal-estar me favoreceria? ¿não é peculiar como, quase pra simular uma performática clássica na (de)formação colonial católica-branco-europeia, seja erguida uma cruz branca de sofrimento branco mas na qual os corpos efetivamente crucificados (porque o sofrimento da culpa branca é um sofrimento espectador) têm tons escuros como o “bronze queimado, as pedras de jaspe e sardônio” com que o apocalipse bíblico descreve o ator principal que vem ocupando esse cenário há milênios (cerca de dois, pra ser exata), a despeito das toneladas de pó-de-arroz pra branquializá-lo? seja como for, culpa branca não é responsabilidade negra, salvo em casos de terapeuta negra atendendo pessoa branca possuída por esse fenômeno deveras instigante do racismo contemporâneo entre ativistas (mas ainda assim seria corresponsabilidade). como toda culpa (penso eu categórica, religiosamente), deveria ser tratada em terapia. tirar essa cruz simbólica dos ombros brancos que tentam não dar conta de carregá-la (a ponto de qualquer ocasião entre/com pessoas negras ter de servir pra sua expiação) talvez permita a pessoas brancas observarem práticas mais úteis nesse contexto, como responsabilização efetiva. letramento racial. reparação, quando y se possível. ou só uma suspensão temporária desse aburrido me me me.

TATIANA NASCIMENTO é palavreira: escritora, cantora, compositora, editora na padê editorial (onde publica livros artesanais de outras autoras negras y/ou LGBTQI). licenciada em letras - português pela universidade de brasília, é doutora em estudos da tradução pela universidade federal de santa catarina. livros seus: esboço (2016, padê), lundu, (2016, padê), mil994 (2018, padê), 07 notas sobre o apocalipse, ou, poemas para o fim do mundo (2019, garupa+kza1), cuírlombismo literário: poesia negra LGBTQI desorbitando o paradigma da dor (2019, n-1), quando (?) nossas mortes importam (2019, macondo). site: www. pade.lgbt/tatiana | IG: @tatiananascivento


LENDO FRANTZ FANON NA ERA DO BLACK LIVES MATTER texto Frieda Ekotto tradução Marisol Fila fotos Arquivo

“O que importa não é conhecer o mundo, mas mudá-lo.” Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas. Hoje, na segunda década do século XXI, após os mandatos do presidente Barack Obama e vivendo a era de Donald Trump, depois dos violentos eventos de Ferguson, Missouri, Staten Island, Nova York, e enquanto assistimos à ascensão do nacionalismo branco em Charlottesville, Virginia, Christchurch, Nova Zelândia, e os recentes massacres em El Paso, Texas e Dayton, Ohio, para citar apenas alguns lugares, a política racial permanece impregnada na vida americana. Além disso, como mostram as crises de refugiados, a potencial retirada do Reino Unido da União Europeia e as eleções parlamentares de 2019, na Europa, as reverberações do passado colonial são palpáveis nas agitações, discórdia e violência contemporâneas. Todos esses males sociais têm suas origens na his-

tória e na memória, origens que muitas vezes têm sido ignoradas, se não apagadas, mesmo que continuem afetando nosso mundo cotemporâneo. Para abordar essa história simultaneamente aos eventos atuais, este artigo interpreta o Black Lives Matter juntamente com o trabalho de Frantz Fanon na luta pela dignidade das pessoas negras ao redor do mundo. Demonstra como, além do trabalho dos pensadores da Négritude (Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, Léon Damas e W.E.B. Du Bois), os escritos do Fanon oferecem o contexto histórico necessário para compreendermos o movimento do Black Lives Matter e, mais amplamente, a experiência negra americana durante esta segunda década do século XXI. Fanon foi um dos primeiros a articular questões duradouras sobre a condição negra no mundo, e seus aportes teóricos explican por que não haverá paz enquanto a dignidade de homens, mulheres e crianças negrxs forem ignoradas, e as suas vidas esmagadas. A articulação seminal de Fanon de como o colonialismo produz trauma, caos e perda só aumenta em importância com o passar do tempo. No seu trabalho, ele confronta as maneiras perturbadoras pelas quais a violência racial é repetida devido ao seu arraigo no imaginário cultural, apesar dos esforços dos sujeitos negros para se




manifestar contra a dominação. Neste artigo vou discutir como seu trabalho pode nos ajudar a entender melhor o movimento do Black Lives Matter, que tem empreendido o trabalho restaurador de expor a violência contra as pessoas negras, colocando foco na branquitude e no olhar branco. Quero dar especial atenção aos aportes de Fanon na violência sobre a condicão negra e como as pessoas negras devem transformar essa violência em atos de resistência. Começo discutindo um momento formativo no texto de Pele Negra, Máscaras Brancas, quando Fanon se sentiu conscientemente obrigado a transformar a violência do olhar branco em ação. Continuo descrevendo como o movimento do Black Lives Matter tem canalizado a violência cotidiana contra as pessoas negras americanas numa dinâmica poderosa. Termino refletindo sobre a continuidade entre o Black Lives Matter e os movimentos americanos anteriores, mesmo quando eu levo em consideração como as suas características únicas parecem estar moldando novos modos de representação na mídia tradicional dominante. Quando era jovem, Fanon adotou o conceito de “literatura comprometida”, de Jean-Paul Sartre e, aos 26 anos, escreveu Pele Negra, Máscaras Brancas (1952) com um objetivo claro: identificar o racismo, seus fundamentos sociais e funcionamento, seus efeitos nos homens negros, como ele prórpio, e, mais importante, a necessidade de atuar diante da discriminação. Fanon, no seu trabalho como teórico psicanalítico, invocou poderosamente os traumas persistentes do racismo e a terapêutica da mudança psíquica e social. Fanon coloca em primeiro plano o momento em que ele procurou transformar essa violência contra os homens negros em ação nas linhas de abertura de A Experiência Vivida do Negro (The Fact of Blackness), um capítulo fundamental de Pele Negra, Máscaras Brancas. Lá ele relata dois ataques verbais esmagadores e emblemáticos que ele sofreu como um homem negro vivendo na França. Eles são, primeiro, o epitáfio comum “Negro sujo!” e, segundo, “simplesmente”, como Fanon coloca, o comentário causal de uma criança para sua mãe: “Olha, um negro!” (Fanon, 1967, p. 109) . Essas observações, por serem extraordinárias e cotidianas, levam Fanon a refletir sobre o paradoxo de viver como um homem negro numa sociedade racista e colonial.

“Eu vim ao mundo impregnado com a vontade de encontrar um significado nas coisas, meu espírito cheio do desejo de alcançar a origem do mundo, e então descobri que eu era um objeto no meio dos outros objetos”. (Fanon, 1967, p.109)

Inexperiente e paralisado pela objetivação, Fanon se vê sendo restaurado ao mundo pela atenção dos outros – a atenção muito libertadora e vital do testemunho – apenas, e quase imediatamente, para “(atrapalhar)… os movimentos, as atitudes, os olhares do outro (me fixando) lá…” (Fanon, 1967, p. 109). Assim, ele começa a apresentar o paradoxo que é um elemento chave no seu trabalho: o fato de ser duplamente visto e não visto ao mesmo tempo. Geralmente, sentimos que, ao sermos vistos, nos é atribuído valor e, portanto, procuramos isso, mas o que Fanon percebe é que, como um homem negro, ele é fundalmente não visto, ele está presente apenas como um objeto. No entanto, este momento é de uma importância crucial porque a compreensão que isso provoca obriga Fanon a agir para transformar um imaginário branco que insiste na objetificação do homem negro. Ele também afirma com muita controvérsia que a negritude – da maneira como a maioria das pessoas negras a vive e a experimenta – é na verdade uma criação, e uma reação à branquitude, à história e à cultura branca, bem como aos imaginários raciais e coloniais brancos. Ao expor o fato de que a maioria das experiências vividas pelas pessoas negras têm sido e continuam sendo construídas (ou deliberadamente destruídas) pelos brancos, Fanon procura não desvalorizar a experiência negra, mas promover uma ativa consciência crítica antirracista e, fundamentalmente, revolucionário-humanista entre as pessoas negras (bem como entre outras pessoas não brancas e brancas). Essa consciência 63


ativa é o que torna o trabalho de Fanon chave para os movimentos contemporâneos antirracistas como o Black Lives Matter. Seu chamamento ressoa, por exemplo, no pensamento de Alicia Garza, uma das fundadoras do movimento Black Lives Matter. Em outubro de 2014, ela publicou a seguinte herstory: “Black Lives Matter é sobre isto: como vivemos num mundo que nos desumaniza e ainda somos humanos? A luta não é apenas ser capazes de continuar respirando como um humano. A luta é realmente poder andar na rua com a cabeça erguida – e sentir que pertenço a este lugar, ou que mereço estar aqui , ou que apenas tenho o direito a ter um nível de dignidade”. (n.p.)

Na sua articulação do direito de viver num mundo com dignidade, Garza se envolve diretamente com a experiência de Fanon sobre a criança que comenta tão casualmente a negritude do autor. Para Garza, essa luta pela dignidade é urgente. Nos Estados Unidos contemporâneo, os rapazes podem carregar armas e o racismo casual pode frenquentemente se tornar fatal. É por esse motivo que o Black Lives Matter exige que os americanos prestem atenção à relação entre o racismo casual e inconsciente, as mortes frequentes de homens negros, e os igualmente frequentes casos de agressores brancos. Desde que George Zimmeerman, um vigilante branco, foi absolvido por matar Trayvon Martin, em 2012, o Black Lives Matter tem insistido que os americanos enfrentem o fato real da brutalidade contra jovens negros. E mais, tem reclamado ação para reconhecer holisticamente as razões e os resultados da violência racial e sistêmica. Nos Estados Unidos, a violência recorrente acontece, em parte, por causa dos clichês persistentes

sobre os jovens negros, que continuam alimentando a imaginação de alguns policiais e do público em geral. Isso aparece nitidamente nas palavras do Darren Wilson, o policial que matou ao Michael Brown, em Ferguson, Missouri. Numa entrevista publicada no The New Yorker um ano após o fuzilamento, Wilson é citado dizendo: “Não podemos resolver em trinta minutos o que aconteceu trinta anos atrás... Temos que resolver o que está acontecendo agora. Esse é o meu trabalho como policial. Não vou me aprofundar na história de vida das pessoas e descobrir por que elas estão se sentindo de uma certa maneira, num determinado momento” (citado em Halpern, 2015). Aqui, Wilson sugere que a violência racial não tem nada a ver com ele. Em vez disso, ele identifica que o problema tem a ver com “a história de vida das pessoas”. Ao fazer isso, ele indica que, mesmo um ano após do evento, tempo que ele poderia ter tido a oportunidade de refletir sobre suas ações, ele ainda mantém que a história de um Estados Unidos racializado não é sua e que outras pessoas (as pessoas negras) têm que resolver como se sentem, ou melhor, como não sentir os efeitos de um estado policial racista sobre suas vidas diárias. Então ele pode continuar fazendo seu trabalho. Como o caso do Wilson demonstra com tanta veemência, essa negação da importância da história e a recusa em examinar a própria percepção continuam a infligir violência sobre cidadãos nos Estados Unidos (e ao redor do mundo). Também nos leva de volta a Fanon, que insistiu que sentimos, ainda mais do que agimos. O “universo” no qual as pessoas negras se encontram é antinegritude, racista e supremacista branco. Não é um mundo que as pessoas negras tenham criado ou construído. Assim, Fanon argumenta que “devemos nos libertar” desse universo inóspito porque os indivíduos negros não são e não podem verdadeiramente viver, em qualquer sentido da palavra, vidas humanas livres, orgulhosas e produtivas neste mundo atual. A afirmação de Wilson, de que ele não está envolvido nas condições da negritude não é nova. Nos últimos cem anos, escritores, pensadores e artistas negros têm documentado recusas semelhantes para enfrentar essa realidade. No entanto, esse fato permanece invisível porque a sua perpetuação é controlada por discursos dominantes. (Os comentários do Wilson mostram esse argumento com clareza suficiente). Uma das inovações do mo-


vimento Black Lives Matter é o uso das redes sociais para mudar o foco do olhar dos corpos negros para a própria violência. Isso, em si mesmo, não é novo. Encontramos a mesma ideia, por exemplo, na obra Orfeu Negro, de Jean Paul Sartre. Escrevendo desde a perspectiva de um homem negro, ele desafia seus leitores a “sentir, como eu, a sensação de ser visto. Pois o homem branco desfruta há três mil anos o privilégio de ver sem ser visto” (Sartre, 1948, p. 7). Ele continua: “Hoje, esses homens negros têm fixado seu olhar sobre nós e o nosso olhar é jogado de volta em nossos olhos” (Sartre, 1948, pp. 7-8). No entanto, o movimento Black Lives Matter retorna o olhar branco com uma diferença importante. Ele usa as redes sociais como plataforma para exigir que as pessoas negras sejam tratadas como seres humanos. Hoje, qualquer pessoa pode tirar uma foto que tem o potencial para circular globalmente. Como a acessibilidade e a onipresença, têm se tornado comuns as imagens de violência, o Black Lives Matter tem criado um modelo de como usar a tecnologia para continuar a luta pela dignidade das pessoas negras. Partindo dessa importante intervenção contemporânea, xs estudiosxs negrxs são cada vez mais eloquentes na sua insistência para que os indivíduos brancos examinem tanto seus próprios comportamentos quanto a sua adesão a ideias abstratas de nação, país e justiça. Como Fanon, elxs estão reclamando um exame holístico de como as instituições perpetuam e até reforçam as injustiças raciais que afetam o bem-estar – e até as próprias vidas dxs americanxs negrxs. No seu artigo de opinião para o The New York Times, intitulado Sacrificando as vidas negras pela mentira americana (Sacrificing Black Lives for the American Lie), Ibrahim X. Kendi responde convincentemente à decisão de um júri de Minnesota que coloca a responsabilidade pela morte do Philando Castile não no policial que atirou nele, mas no próprio Castile apesar das evidências contrárias em vídeo; Kendi argumenta: “Essa culpa da vítima negra atrapalha a mudança que poderia impedir mais vítimas do violento controle policial no futuro. É possível que alguns americanos prefiram que pessoas negras morram do que matar as suas percepções da América? É a morte das pessoas negras mais aceitável do que admitir a realidade racista da América escravista, da América segregacionista, da América do encarceramento em massa? É a

morte das pessoas negras o custo de manter o mito de uma justa e meritória América?” (Kendi, 2017)

O chamamento de Kendi ecoa com o de Fanon: reivindicar a validade das perspectivas que advêm da própria experiência de sofrimento, e a importância de lutar contra as forças que criaram, perpetuaram e ocultaram as profundezas desse racismo sistêmico. O Black Lives Matter continua a luta pela dignidade, que Fanon e outros pensadores exigiram no início do século XX. No entanto, enquanto o trabalho de Fanon está enraizado na complexa história da negritude e da luta anticolonial, o Black Lives Matter se envolve em condições semelhantes com a situação atual da brutalidade policial. Mas há um problema, para o qual eu considero que os líderes do Black Lives Matter vão além das próprias limitações de Fanon: trazendo sua própria diversidade de vida e experiências, eles têm expandido a diversidade de pessoas pelas quais é essencial lutar. Garza e os cofundadores do movimento, Patrisse Cullors e Opal Tometi, não são somente feministas e membros do BOLD (Organização Negra para a Liderança e a Dignidade – Black Organizing for Leadership and Dignity); elas são também ativas e eloquentes na sua luta pelos direitos LGBTQ+. Garza, por exemplo, tem abertamente enfrentado o fato de que, embora seu movimento tenha sido criado por feministas e lésbicas (Patrisse Cullors é abertamente gay), o patriarcado tanto negro como branco continua a usurpar as suas vozes. Garza escreve: “Homens heterossexuais, involuntária ou intencionalmente, têm pegado o trabalho de mulheres negras queer e apagado as nossas contribuições. Talvez se fôssemos os


carismáticos homens negros - muitos estão se reunindo hoje em dia - teria sido uma história diferente, mas ser mulher negra queer nesta sociedade (e aparentemente dentro destes movimentos) tende a igualar a invisibilidade e a irrelevância”. (n.p.)

É por isso que, para Garza, os direitos das pessoas negras devem convergir com os direitos de outros grupos, particularmente gays, trans e pessoas com deficiência (PcDs) que são oprimidas em suas próprias comunidades negras. Cada um desses grupos tem tido experiências significativas e únicas, e frequentemente tem se baseado nelas experiências para seus apelos à ação. De fato, o Black Lives Matter vai além dessas divisões que podem ser encontradas em algumas comunidades negras, que apelam para que as pessoas negras amem sua negritude, vivam sua negritude e comprem de produtores negrxs, mas que mantêm homens negros heterossexuais na frente do movimento, enquanto irmãs, pessoas que se identificam como queer, trans ou com deficiência (PcDs) recebem um papel de fundo ou não são reconhecidas em absoluto. O Black Lives Matter celebra a vida das pessoas negras queer e trans, as pessoas com deficiência (PcDs), os indocumentados, os indivíduos com antecedentes policiais, as mulheres e todas as vidas negras ao longo do espectro de gênero. A coexistência entre os direitos das pessoas negras e gays é uma parte importante da história americana. É uma das maiores alianças, um verdadeiro legado. É crucial interrogar o impacto das exclusões que acompanham os atos de categorização e se envolvem com as experiências de sujeitos marginalizados em suas múltiplas facetas, a fim de demonstrar a disfunção das categorias. O movimento Black Lives Matter não mostra homens negros caminhando ao lado daqueles que vitima só para criar divisões. Eles

fazem isso para se certificar de que o racismo, o machismo e a homofobia continuam as iterações racistas e coloniais da alteridade. No final, A experiência vivida do negro (The Fact of Blackness) continua sendo a base da realidade histórica para as pessoas negras ao redor do mundo, mesmo se a comunicação desse trauma implica uma formação de compromisso psicossocial que exija uma titulação cuidadosa dessas verdades. Eu afirmaria, de acordo com Audre Lorde, que “não existe diferença que nos imobiliza, (mas) o silêncio” (Lorde, 1984, p. 144). Dado que o machismo, o racismo e a homofobia são “condições reais em todas as nossas vidas neste tempo e lugar”, a nossa responsabilidade pela opressão dos outros (mesmo se somos nós mesmos oprimidos) exige que “alcancemos esse lugar profundo de conhecimento dentro de [nós mesmos] e atingir o terror e a aversão de qualquer diferença que mora lá” a fim de “que vejamos de quem é o rosto” (Lorde, 1984, p. 113). No trabalho de sobrevivência precisamos quebrar o silêncio e responder aos outros, para fazer o que Lorde chama de poesia: a “destilação reveladora da experiência” (Lorde 1984, p.37). É aqui onde predicamos as nossas esperanças e sonhos em direção à sobrevivência, curamos as brechas devastadoras entre os sujeitos produzidos e multiplicados pelo trauma, e discutimos as construções opressivas e hierárquicas de diferença nos espaços psicossociais (e aqui não existem outros) onde a comunicação e a comunhão ocorrem (Lorde, 1984, p.37). Esse trabalho continua e ainda ganha impulso em fóruns populares e dominantes como Netflix, que no verão de 2019 lançou a série Olhos que condenam (When they seee us), sobre as infames e falsas condenações de cinco homens de cor, Kha-


rey Wise, Kevin Richardson, Antron McCray, Yusef Salaam e Raymond Santana Jr., acusados de um violento ataque e estupro, ocorrido no Central Park de Nova York na primavera de 1989. O objetivo expresso dessa série é expor a forma como as percepcões raciais continuam permitindo que esses tipos de injustiças grosseiras ocorram. Numa entrevista, a diretora, co-roteirista e produtora executiva Ava DuVernay descreve por que ela queria que a série fosse chamada Olhos que condenam em vez de Os cinco do Central Park, que tinha sido o título de trabalho da série. Ela explica: Os cinco do Central Park parecia algo que tinha sido colocado sobre os homens reais pela imprensa, os querelantes, pela polícia. Tirava o rosto deles, tirava suas famílias, tirava seus pulsos e seus corações batendo. Os desumanizava. Eles são Yusef, Antron, Kevin, Raymond and Kharey, e precisamos conhecê-los e dizer seus nomes”. Esse ato de revisar a história e reivindicar os nomes é apenas outra maneira pela qual xs ativistas negrxs contemporâneos estão forçando discussões sobre a branquitude na sociedade americana contemporânea. Olhos que condenam relata as complexas circunstâncias raciais que levaram esses rapazes à prisão pelo crime de serem negros ou latinos. Isso, juntamente com outros ativistas negros, nos pede que consideremos a perda da dignidade, de liberdade, até da vida, que, como a Claudia Rankine escreve no seu livro Citizen: An American Lyric, continua a ser inscrita em corpos negros e na pele negra. Até que essa memória, essa história e este momento atual sejam vistos, reconhecidos e honrados, até que os policiais brancos não possam mais comentar de maneira ofensiva “Olha, um homem negro” e em seguida o prendam ou o matem, a violência infligida aos corpos negros continuará, e a dignidade devida às pessoas negras será negada.

FRIEDA EKOTTO é professora dos departamentos de estudos AfroAmericanos e Africanos, Literatura comparada e Estudos francófonos na Universidade de Michigan (EUA) e autora de dez livros. Em 2017, co-produziu o documentário de longa metragem Vibrancy of Silence: A Discussion with My Sisters, que estreou na Universidade de Michigan. Naquele ano, ela também recebeu um título honorário do Colorado College e, em 2018, recebeu o prêmio Sub-Sahara no Zagora International Film Festival por seu trabalho no cinema africano.


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rotas invertidas para caminhos possĂ­veis


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texto e entrevista Luciane Ramos-Silva foto Cortesia da Artista

Encontramos Grada Kilomba numa manhã típica de inverno paulistano. A garoa respingava o olhar enquanto aguardávamos na entrada da Pinacoteca do Estado de São Paulo - museu que conta algumas histórias da arte e que vem, vagarosamente, propondo desconstruções de seu legado eurocêntrico a partir da aquisição de obras de artistas negras e negros, promovendo exposições e reflexões pontuais que atravessam o campo expandido da arte, seus poderes e privilégios. A exposição Desobediências Poéticas, foi o mote e o lugar de encontro com essa artista que interpreta as oficialidades históricas e propõe formas de responder a elas, lascando madeiras de lei das arquiteturas coloniais de longa data. Grandes questões parecem exigir mais que uma disciplina para respondê-las. O híbrido de linguagens proposto por Kilomba, acionando diversas formas de comunicação e questionamentos, desmonta hierarquias de conhecimento muito comuns nas estruturas hegemônicas de produção de saberes. Sua movimentação expandida em diferentes áreas proporciona um trânsito entre o acadêmico e o artístico, trazendo possibilidades de acesso e interlocução. A autora tem sido lida por muitos olhos, entre eles a população jovem negra. De alguma maneira sua obra, afluente de autores como o martiniquenho Frantz Fanon (19251961), pensador fundante para a análise do mundo colonial seus processos de racialização e os cruzamentos com a linguagem, ou a indiana Gayatri Chakravorty Spivak (1942), que lá nos anos 80 chamava atenção para a restrição enunciativa do sujeito subalterno, entre outros autores, sai da exclusividade acadêmica e amplifica-se para o mundo ganhando novos contornos. As instalações e performances propostas pela pensadora, assim como seu livro Memórias da plantação, lançado no Brasil à mesma época da exposição, interroga-nos para o direito de restituir vozes e corpos por tanto tempo descritos a partir do olhar venenoso da supremacia branca – que destituiu de humanidade, castigou e criminalizou as populações negras ao longo da história. Que reações reverberam quando o

público se depara com narrativas da mitologia grega performadas por pessoas negras em histórias como as de Narciso, Eco e Édipo que elucidam os conflitos humanos? Grada destrincha os ideais de universalidade arraigados no imaginário coletivo em seus diversos atos criativos. A presença da exposição Desobediências Poéticas na Pinacoteca talvez tenha representado apenas rachaduras efêmeras considerando toda longa história racista que permeia as instituições museológicas brasileiras assim como o pouco acesso que a população preta e periférica tem a esses espaços. Entretanto, suas imagens e movimentos não serão facilmente esquecidos. A tentativa de Grada Kilomba de criar novas configurações de poder e conhecimento é uma busca de grande relevância para nosso tempo/ espaço brasileiros, pois nas diferentes esferas contra-hegemônicas temos discutido as novas epistemes e as agências envolvidas. Ela discute como a língua é lugar de opressões, criticando, por exemplo, o masculino predominante na língua portuguesa. A preocupação com a linguagem, enquanto base de poder para definir formas de ver o mundo, é fundamental para problematizarmos as heranças coloniais entre Brasil e Portugal. Nascida em Lisboa e radicada há mais de uma década na Alemanha, Grada conhece bem a tacanhice da colonização lusitana e a arrogância que o Estado Português mantém em glorificar até hoje a história colonial. Se por um lado existe o racismo enraizado nas formas portuguesas de dominação que, de alguma maneira se estendem historicamente para o Brasil, devemos considerar as formas sociais aqui gestadas no avesso à tais lógicas. Lembremos ainda que: a língua portuguesa brasileira é profundamente africanizada.


A conversa com Grada provoca perguntas e reflexões críticas quando conhecemos as complexas redes de relações fruto dos impactos coloniais, entre elas o ideário da falsa democracia racial e os tipos de ligações que experimentamos em sociedade. Essa reflexão nos obriga voltar o olhar para como as relações de forças definidas pela democracia racial foram interrogadas por intelectuais e ativistas negras e negros que desde os anos 70 discutem e propõem ações, assim como intelectuais não negros comprometidos, trouxeram interpretações sobre nossa realidade sociocultural de maneira oposta ao pensamento lusitano. Assim, as contra narrativas existem e existiram, gerando respostas fundamentais para a conformação social que hoje presenciamos. A lei 10.639 e a lei de cotas são importantes exemplos. Nossa conversa com Grada Kilomba possibilita imaginar a terceira margem do Rio – aquela determinada pela canoa, por quem navega. Ao chamar atenção para a descolonização, a artista transcende os jargões porque propõe latências. Sua voz calma e olhar penetrante, nos chama para ver avessos, despertar sentidos e outras rotas para viver.

LUCIANE RAMOS-SILVA Grada, há uma coisa

que eu sempre gosto de pensar que é: as coisas têm que ter nome pra que elas existam. Então, eu gostaria que você se apresentasse da maneira que gosta de ser apresentada. GRADA KILOMBA: Como eu gosto de ser apresen-

tada? (risos) Então, gosto de ser apresentada como Grada. Não tem outro modo de apresentação. LRS: Em termos de atuação, como você se

apresenta...

GK: Depois de muitos anos de luta, o meu trabalho é muito híbri-

do. E essa questão de quem tu és e como é que tu se define sempre foi muito opressora pra mim. Como o meu trabalho é híbrido, ele envolve muitas disciplinas de frente e, como é um trabalho de descolonização, ele tem de ser um trabalho transdisciplinar. Não se pode estar ancorada em uma única frente, eu acho. Tem que se criar uma outra forma, uma outra linguagem. Linguagem é um formato clássico, uma disciplina clássica. Nós, quando perguntamos “quem tu és?”, “o que é que tu faz?”, estamos sempre à espera de uma definição, de um formato, de uma disciplina, o que é um grande conflito. E depois, há uma hierarquia também de dizer quem é quem. Por exemplo: depois a psicanálise sempre vem em primeiro lugar, eu ser professora universitária vem em primeiro lugar... Tem essa hierarquia dos conhecimentos. Eu passei um certo tempo com esses conflitos entre a escritora, a psicanálise, a professora universitária e isso e aquilo. Acho que a melhor definição pra mim é artista interdisciplinar. Acho que uma pessoa que faz arte e que usa várias disciplinas pra fazer as coisas é interdisciplinar... Acho que é aí que eu tenho mais liberdade. Porque acaba com aquela hierarquia do conhecimento: do que pode ser, do que deve ser. LRS: Pensando em hierarquias de conhecimento, há um lugar importante da arte, da performance... um lugar de um corpo coreografando no espaço. Me parece importante no trabalho que você realiza, e arte toca as pessoas de uma maneira que talvez... eu sou antropóloga, mas sou bailarina também e o que eu consigo falar pela antropologia eu não consigo falar... pra mim a dança é capaz de capturar isso tudo. GK: Mas eu acho que nós vivemos num momento crítico: nós conhe-

cemos todas essas disciplinas, estudamos, mas todas separadas umas das outras. Dança é dança, mas não há um discurso teórico que cuide – muitas vezes – atrás da dança. Aí a dança pode se tornar... LRS: Vazia... GK: Ou a performance... podem se tornar rapidamente vazias... Eu acho que essa é a crise do colonialismo, porque são disciplinas muito coloniais, muito hierárquicas. O teatro, a dança, a performance, a cantoria, a literatura é extremamente hierárquica, tem uma estrutu-

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ra extremante fálica, extremante patriarcal. Eu digo fálica no sentido de: tu aprendes uma coisa e depois tu faz um mestrado sobre essa coisa, e depois se especializas sobre essa mesma coisa e depois faz um doutoramento sobre essa coisa. E aquilo vai subindo, subindo, crescendo e crescendo, sempre pra cima. Então é a forma como nós entendemos quem nós somos é um conceito muito patriarcal, muito fálico. Eu acho que uma coisa que nós fazemos na descolonização é exatamente trabalhar em círculos ou em ciclos, que é mais algo redondo e se torna transdisciplinar. Por exemplo: a antropologia para pra fazer coreografia; a história e a música; a teoria pós-colonial tem diferentes meios e etc., etc. É uma combinação e é um diálogo entre várias disciplinas e é isso que me interessa fazer. Que não é possível fazer quando você está ancorada em uma única disciplina. Mas eu acho que é o que nos devemos fazer em todas as disciplinas quando nós estudamos quando vamos pra universidade. São disciplinas que nos criaram o estado de violência que nós habitamos, que é o colonialismo através da produção de conhecimento de um outro para sustentar e justificar a colonização. Portanto foi através da filosofia, da psicologia, da antropologia, do teatro, do filme; através da imagem, que teve um papel muito importante na propaganda fascista e colonial. São todas disciplinas que contribuíram exatamente para o que nós não queremos ser – que é criar um corpo negro, a identidade negra como a outra, como a desviante, como a diferente como a patológica. São disciplinas que nos observaram, que nos categorizaram. Então, criar novos formatos, criar esses híbridos pra mim é fundamental porque eu não posso contar as histórias que eu quero narrar com as disciplinas que não me deixaram ser autora da minha própria história. LRS: Desobediência poética.... GK: É por isso que essa exposição se chama “Desobediências

Poéticas”, exatamente. Tem que se ser desobediente, porque a obediência narra, tem uma narração dominante onde a minha história não pode ser contada. Então, tem que haver uma desobediência poética. LRS: Aproveitando então o tema que te traz ao Brasil – ou

melhor, a discussão que você traz ao Brasil, você pode só falar

um pouco do que são essas obras e do seu livro, que depois de doze anos foi traduzido pra língua portuguesa. Que bom. GK: Então, as obras que estão aqui... nós ocupamos qua-

tro salas do museu. Essa era a intenção: chamar a atenção que este museu – a Pinacoteca como todas as instituições, como os museus, tem um legado, um histórico porque é um lugar do colonial, e colonialismo não é uma marca de móveis como parece muitas vezes, o estilo colonial como se fosse apenas uma palavra. É uma história. Uma história de genocídio contínuo, de apagamento, de desumanização e violência. Essa palavra “colonial” eu acho que é muito mais complexa do que a forma com que nós a usamos. Acho que a gente não tem bem noção da complexidade, da brutalidade que esse termo trás consigo. Então, a ideia de toda essa exposição era ocupar, interromper esse museu. Porque a questão é: o que nós fazemos com esses espaços arquitetônicos que têm uma história e contribuíram para uma história de exclusão e que têm uma coleção de arte brasileira em que na maior parte dos corpos brasileiros não são representados, não fazem parte da galeria? Como é que nós hoje, no presente, lidamos com uma coleção que glorifica o passado que tem que ser interrompido? Essa é a beleza da arte, do espaço da arte. Nós ocupamos pra transformar. Nós ocupamos quatro salas que são estratégicas em todo o museu. Por onde quer que o público entre, em qualquer ala, tem que passar por essas instalações. E começamos por colocar duas obras, essas instalações de vídeo: esta que está atrás de nós, Ilusions, que foi a primeira... ilusões... dedicada a Narciso e a Édipo. A história de Narciso... o que eu faço nessa obra é um pouco... em todas essas obras de Ilusions é que estavam Narciso e o Ego e do outro lado, um, dois, dedicados a Édipo. Essa série, no fundo, eu vou contar os mitos da mitologia grega, os mitos que nós fomos... que nós conhecemos, com os quais nós fomos educados na escola. Tínhamos que aprender e saber. E olhar pra o que é a história, pra como a história é contada. Mas depois com um pequeno pormenor, que é contar de uma outra forma. Então, me interessa muito recontar as coisas, contar de uma outra forma. Ou seja, o saber e o conhecimento que me são


dados como universais, mas nos quais eu não me vejo, não podem ser dados como universais. Portanto é olhar para a história e contá-la de uma outra forma. É trazer temas que descobrem, revelam temas pós-coloniais. Então eu uso a tradição oral. A tradição oral do griô, que é o contador de histórias – que é uma performance muito importante na África Ocidental e também em Angola, em que a contadora de histórias normalmente é uma mulher que é um arquivo que trás histórias e contos, nomes, acontecimentos e músicas e que vai narrando. Mas que também vira as coisas ao contrário e faz uma análise crítica que é o que nós pensamos que sabemos. Então a história é uma inserção começando com atores, todos afro-homens que são atores de teatro. Eu enceno a história pra depois, na segunda parte, virar a história ao contrário e a história de Narciso – que é apaixonado por si próprio – passa a ser a história da branquitude, que é apaixonada por si própria e que se vê e que se olha, sempre a si própria e que possivelmente sempre produz a imagem de si própria. Eco passa a ser a imagem que se repete. Eco que só pode dizer a última palavra de Narciso, passa a ser o consenso branco que sempre autoriza Narciso, o discurso de Narciso. Então tem tudo aquilo que nós sabemos e pensamos que sabemos, depois tem toda essa economia de transformar a história e contá-la de uma outra forma e falar de questões que são pós-coloniais: a questão da identidade negra, do gênero, da violência e etc. Com Édipo acontece a mesma coisa. E Édipo é uma história que tem muito a ver com violência. Ele foi condenado a morrer antes de nascer por uma questão muito simples que é o poder patriarcal: o pai estava em contradição com o filho e não queria ser morto por ele e então resolve matá-lo. Antes de a criança nascer estava condenada a ser morta pela própria família. Conseguiu escapar e acabou por matar o pai sem saber e casar com sua própria mãe. Então, toda a história de Édipo fala sobre violência e sobre as políticas de violência e de genocídio. Na psicanálise a história de Édipo sempre foi vista como história de casais. Então, as histórias são contadas de uma certa forma, mas toda a história de violência, de invisibilidade como a de Narciso e etc., geralmente são

tapadas e o meu trabalho faz exatamente destapar e fazer essa comparação de Édipo com essa sociedade pra saber de onde é que vem os desejos agressivos contra os corpos negros. Por que que o corpo negro é o corpo onde se passa a performance da agressão? Por que que há uma lealdade com a sociedade com a sociedade branca patriarcal? O que é que se está a defender? Por que essa agressão, essa hostilidade que é uma coação com a figura parental, é depois exercida no corpo negro. Então, todas essas dinâmicas da psicanálise são contadas através da história do griô e das cenas encenadas e da coreografia. LRS: E seria essa uma boa provocação pra um pensamento crí-

tico sobre a branquitude e sobre o privilégio em não enfrentar determinadas histórias, em não olhar pra determinadas histórias – que é um privilégio branco? GK: Eu não vejo como uma provocação. Eu vejo como uma ne-

cessidade. Eu acho que é uma necessidade inevitável em 2019 perceber a complexidade da nossa história e ter responsabilidade sobre nossa história. Não é uma provocação: é um direito. Um direito que foi negado ao longo dos séculos, que é contar a história como ela é. Eu acho que nós estamos num tempo, num momento, num espaço... em tempo de dar os nomes às coisas e de falar: eu acho que essa história colonial é como um fantasma que nos assalta constantemente, que nos aparece e que nos incomoda, nos assusta a todos porque nunca foi devidamente enterrado e nem nunca foi dado o nome devido, então volta sempre em forma de um fantasma branco, quase metaforicamente. E tem que ser contado o por que esse fantasma assusta a toda gente. “Eu acho que é uma coisa que aparece no terceiro trabalho: o trabalho ‘Dicionário”, que é uma instalação de vídeo em que aparecem cinco palavras e a definição dessas cinco palavras. É um trabalho que eu fiz, em que eu pesquisei muitos dicionários internacionais: alemão, inglês, português; na língua portuguesa, na língua alemã, na língua inglesa, na língua francesa; o dicionário de psicanálise etc. E depois eu escolhi, escrevi um novo texto sobre as definições. Cinco palavras que são: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação. Depois, todas essas palavras e suas definições aparecem uma a uma – tem uma instalação de som, na escuridão – e a palavra aparece como se fosse uma folha de dicionário e fica... Então o público tem a pos-


sibilidade de ler o que é a negação, que é a recusa de aceitar a realidade; oposição à verdade. Depois continuam as definições até a explicação do termo psicanalítico da negação, e vai um termo atrás do outro. Então, o que essa instalação faz é uma dramaturgia cronológica em que aparece uma palavra depois da outra e que fala sobre o caminho da consciencialização, que é um processo... que não é um processo banal: é um processo de responsabilidade política... o que é que eu sei e o que eu faço com o meu saber? Então o trabalho em si também dá resposta à tua pergunta. LRS: E pensando nesses estados, nessas contemporaneidades coloniais,

você pensa que as antigas metrópoles – seja Portugal, seja Alemanha, de distintas maneiras – estão revendo criticamente os seus lugares como metrópoles como ações colonizadoras? GK: Eu acho que é um processo muito lento. Eu, por exemplo, acho

que o livro “Memórias da Plantação” que agora foi traduzido – há um mês em Lisboa, em Portugal e um mês depois, agora, no Brasil, mas com onze anos de atraso –, eu acho que mostra exatamente esse atraso. Eu acho que não era possível publicar este e muitos outros livros antes, porque são nações que vivem na negação. Não é por acaso que eu publiquei o livro com onze anos de atraso. O livro em língua estrangeira, num país onde eu sou estrangeira, que é a Alemanha, e onze anos atrás – mesmo escrevendo em inglês e mesmo sendo uma mulher negra estrangeira e imigrante – foi possível eu publicar o livro em Berlim, mas não foi possível publicar aqui. Eu acho que há Estados diferentes que têm a ver com este trabalho do “Dicionário”. Eu acho que Portugal, assim como o Brasil, vive um estado de negação e a negação romantiza o passado. A negação não quer chegar ao presente. Opõem- se ao presente e querem reencenar o passado. Que é a negação. Eu acho que tanto um país como muitos outros glorificam o passado e criaram a sua identidade em torno da glorificação e romantização do passado colonial. Eu acho que aqui ainda mais que em Portugal. Porque Portugal passou por uma revolução democrática, passou pelo fim do fascismo e por uma revolução popular também. Passou por uma democracia e, portanto, passou por um outro processo assim com Angola, passou por uma descolonização: os nomes das cidades, dos rios, tudo foi mudado. Houve uma reestruturação. E o Brasil é uma colônia bem-sucedida. Foi colonizado por colonizadores e está nas mãos dos colonizadores. Então esse processo de descolonização, de revolução, de reestruturação radical não aconteceu aqui. Então aqui, talvez essa história de negação

seja ainda mais presente. E se eu não olho pra onde eu estou, pra onde eu vivo e se eu não aceito a culpa e a vergonha... nós não temos culpa nem vergonha na cara. Pelo contrário: há um imenso orgulho. Nós falamos sobre a história colonial sem pensar na complexidade do que isso quer dizer. Nós falamos da língua portuguesa como se fosse a língua mais bela do mundo, que é uma língua extremamente violenta, patriarcal, colonial. E quando nós traduzimos o livro para o português, o Plantation Memories foi um horror. Porque quando nós recebemos a tradução nós percebemos: “meu Deus! A língua é uma língua terrível!”, porque de repente as frases começaram a não fazer sentido, porque os termos só existem na condição masculina, por exemplo. Quase todos os termos que nós temos na língua portuguesa existem apenas na condição masculina! Mas o que significa quando uma mulher negra está a escrever um texto? Eu não posso escrever com a condição masculina. Não faz sentido absolutamente nenhum. Depois checamos as terminologias e todas elas são coloniais e estão ancoradas na nomenclatura colonial e racista. E nós não temos uma alternativa. Tu falastes da mestiçagem. “Mestiço” vem de toda a animalização... LRS: “Mulata” GK: Exato! Da mula, da mestiçagem dos cães, do

cabrito. Todos os termos têm uma condição animalizante do corpo negro. Depois temos a palavra “negro” que é extremamente popular porque tem uma origem no latim e tem uma nomenclatura colonial. Então tudo isso é explicado no livro. E, de repente, tudo que é explicado no livro é reproduzido, ao mesmo tempo, através da língua portuguesa. Então tivemos uma grande questão a pensar quando decidimos que íamos fazer, pois isso levantou uma questão


muito importante, que é a violência e o poder que a língua – que nós sempre romantizamos que é tão linda e tão bela, como que a língua é capaz de fixar identidades nesse caso e como ela é capaz de definir o lugar da identidade. Com ela é capaz de invisibilizar certas identidades. Como é que tu não podes existir? O que é que significa ter uma identidade na qual a tua... aquilo que quem tu és não pode ser falado ou não existe. Ou então é identificado como um erro ortográfico. E o que que significa ser um erro ortográfico em tua própria língua?! Ou não existir na tua própria língua? Ou poder apenas existir na tua própria língua dentro da nomenclatura racista colonial e não ter a tua própria identidade em que tu te defines. Então, quando eu escrevi o livro Memórias da Plantação, foi um pouco com a intenção de sair da língua portuguesa e procurar um espaço em que eu pudesse escrever e que pudesse me encontrar. Em que eu pudesse ser eu dentro da linguagem que eu estava a criar. Então isso é a arte: cria todas essas questões e vemos a complexidade das coisas, né? LRS: Você vai encontrar com a Conceição Evaristo,

uma escritora que fala muito desse Brasil negro na perspectiva das mulheres negras também historicamente silenciadas e a gente tem no Brasil, o que hoje é chamado de “feminismo”, mas que talvez as nossas mais velhas – Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez – naquele tempo nem chamavam de “feminismo negro” e que tem uma base na coletividade a despeito de uma certa ideia de individualização que o capital parece que impõe. Quais são as suas expectativas em relação a esse encontro? De encontrar esses discursos de mulheres negras? GK: Eu acho que é uma honra muito grande. Eu

acho que quando nós nos encontramos nós não podemos esquecer que temos uma história de fragmentação. A separação faz parte da nossa história,

da nossa biografia. Há uma história de fragmentação, de separação, de trauma, de violência quase física. Quase que uma cirurgia física entre nós e isso pra mim é uma imagem que é muito metafórica, que é muito forte, e com a qual eu tento trabalhar. Por isso eu trabalho com todo este evento de atores, de técnicos, de negros que vêm de diásporas completamente diferentes: da Etiópia, da África do Sul, de Uganda, Angola. A gente veio ao Brasil. Eu tenho uma equipe que vem de todo lado e estamos todos em Berlim. E eu acho que encontrar figuras tão importantes e também essa geração é uma grande honra e também é o momento de... eu acho que é como nós curarmos nosso traumas, nossa ferida. Trauma é uma palavra grega que quer dizer ferida, quer dizer ‘piercing’, ferida. E é exatamente através desses encontros que nós unimos aquilo que foi fragmentado. Uma força que eu acho que não é só intelectual, mas é uma força espiritual. Assim como esses trabalhos que é como um dever espiritual pra mim. É colocar esses corpos, essas narrativas, essa perspectiva e criar e interromper o museu, este espaço e ficar continuamente aqui durante 3 meses em looping até desgastar. E as pessoas podem vir aqui e ritualizar, fazer um update – vocês dizem update, né? – da linguagem, do formato e eu acho que isso é muito importante. Não é por acaso. Não sei se vocês tem isso muito comum aqui no Brasil, mas em Portugal quando nós nos vimos - todas as pessoas negras que se cruzam se cumprimentam. Na Alemanha também. Na Europa inteira. É só assim. Nós sempre nos cumprimentamos, sempre. Tu não cruzas uma pessoa negra sem baixar a cabeça. Isso é uma coreografia das mais belas que é a coreografia do trauma. É quando tu reúnes aquilo que foi separado. Acho que inconscientemente nós sabemos desse trauma colonial, que é um trauma físico também. E todas as conversas, todas as palavras, todas as imagens, todos os autores que são escolhidos: isso conta. Quem escreve, quem é visualizado; quem faz a música; quem compõe a música; quem conta a história, quem traduz. Todas essas cisões – pra mim é reunir o trauma dessa fragmentação. É puxar. É criar. É desobedecer o dominante. É a desobediência poética que nós temos. É a nossa missão. LRS: É a nossa missão também. Obrigada, Grada! LUCIANE RAMOS-SILVA é co-diretora da revista O Menelick 2º Ato. Antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Gestora do Acervo África. Docente na Sala Crisantempo. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.


D E

B R E V E S

VIDA E MORTE

T É C N I C A S

N O T A S

P A R A

D A N Ç A R


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Um filme de danรงa (2013), documentรกrio dirigido por Carmen Luz


texto Carmen Luz fotos Cláudia Ferreira e Walter Firmo

a exotização e a desqualificação de suas histórias, se mirarmos o estímulo à sua autonegação e, ainda, se observarmos o deliberado gosto brasileiro pelas formas coloniais de viver e de matar.

1.

Pode-se verificar a grande quantidade de ideias, reflexões, articulações, tinta, saliva, imagens que, ao longo do tempo, têm sido produzidas para revelar e manipular a recusa do Brasil ao que vê quando se olha no espelho: uma imagem não-branca, não-europeia. Como também o muito que se fez e se faz para analisar e denunciar as artimanhas institucionais que elaboraram e edificaram políticas nacionais de embranquecimento, para mostrar como se continua imaginando, estimulando e impondo o uso permanente do branco como quadro de referências.

Com o intuito de produzir o primeiro de uma série de filmes documentários sobre os temas Dança Afro, Danças Negras e Para uma outra história da dança, realizei, em 2010, 2011, 2012 e 2013, um conjunto de depoimentos com artistas negras e negros de diferentes gerações, territórios, trajetórias e perspectivas acerca do corpo negro e de sua própria dança. Nesse período, em mais de uma ocasião, entrevistei Clyde Morgan, o lendário bailarino, músico, artista plástico, coreógrafo e professor afro-estadunidense, referência da dança moderna e contemporânea da Bahia nos anos 1970. O percurso de Clyde Morgan é constituído pelos conhecimentos e práticas corporais e etnográficas experimentadas nos continentes africano, sul e norte-americano; nele se destaca a profunda integração aos modos de vida, meio artístico e instituições baianas: ele esteve como diretor à frente do Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federal da Bahia, de 1971 a 1980, é filho de Oxalá, consagrado Ogan no Ilê Axè Opô Afonjá e membro-diretor do Afoxé Filhos de Gandhi. A beleza de seu percurso singular, relatado com serenidade e firmeza, foi se afirmando desde a primeira de nossas entrevistas até que de repente, uma pergunta não planejada, veio à tona em uma delas:

-- “Por que dançar?” Ele respondeu prontamente: -- “Por que dançar? Para não esquecer ou para lembrar”.

Um imediato silêncio finalizou a conversa. É difícil sentir a força dessa resposta sintética, profunda, e a suspensão que ela deixou, sem pensar o seu chão ético, o seu enigma, a sua encruzilhada, a sua redundância afirmativa, que pode ser ouvida como apelo, até mesmo um grito, se levarmos em conta a contínua crueldade impingida aos corpos das pessoas negras, se atentarmos para a escamoteação secular de suas invenções, se considerarmos

Mencionar essas abordagens aqui, ainda que de maneira genérica, significa reconhecer o legado de suas contribuições ao esforço de interpretar a complexa realidade racial brasileira; significa deixar escapar “um riso irônico no canto da boca”, porque, mesmo sem citar, elas nos evocam o sistema branco-norte-europeu de dança cênica colonizadora há muito tempo praticado, disseminado e financiado no Brasil; elas nos trazem à memória o ano de 1946, quando a jovem negra Consuelo Rios, reconhecidamente talentosa, desejou, ousou, mas foi impedida de candidatar-se ao posto de bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro; assim como o ano de 1948, que marca a entrada da primeira bailarina autodeclarada negra a ser admitida e a suportar, não sem protestos, as cotidianas violências racistas nessa mesma instituição: Mercedes Batista; elas nos lembram, também, da crescente desigualdade social, econômica, cognitiva que estrutura a vida da maioria das pessoas negras, e dos diversos modos de operar a hegemonia com a dança: “ Só a cultura leva à paz. Menina assassinada. -- A gente coloca o filho para fazer inglês e balé, mas nem isso adianta. Meu pai sempre quis que eu fizesse balé. Eu sou a filha mais velha e então imaginavaele ver a filha de rosa, tutu...mesmo muito pequena eu tenho a lembrança do meu pai dizendo que ia me colocar no balé. Acho que guardei a lembrança porque era algo que eu também queria. O balé nos eleva, nos torna diferentes. O balé permanece o mesmo, mesmo centenas de anos depois. A meta do lugar a se chegar, o céu. Atingir os deuses.” (Lisboa, 2019). 79


Elas também nos levam a refletir sobre os usos e abusos das danças de favela, sobre a disseminação de imagens corporativas, ao fabrico desumanizador de corpos e coreografias descartáveis, as apropriações exotizadas da criatividade, da ousadia e seu poder regenerador para uso doméstico, ao seu refluxo: a explosão da insolência e a invenção e reinvenção constante de técnicas de dança. Portanto, tais abordagens não nos deixam esquecer: ao lado de tudo o que nos mira e nos atinge com suas técnicas de morte, um conjunto de outras práticas, de ataque e resistência, marcam as existências com suas presenças e fundam mundos. Quando não são elas mesmas estéticas, é por esse campo que se esparramam; lentamente as vemos deslocando postos que se queriam fixos, se insinuando por entre regras e valores que não raro as desprezam, instituindo permanentemente políticas de movimento constante. Elas são, ao mesmo tempo, reveladoras e revelam “outras formas de vida, outras tradições de representação”.

2.

A “solução” de Clyde Morgan para a pergunta “Por que dançar?” nos coloca imediatamente diante de alternâncias e alternativas: dança-se por um princípio que se desloca entre a obrigação como retribuição e a comemoração, ou entre a reivindicação e a retrospectiva. A resposta do dançarino nos situa, também, frente à intensificação do lembrar, um lembrar fortalecido pela ação afirmativa sobre a negatividade do esquecer. Não esquecer, então, pode ser entendido como um alerta, uma chamada à responsabilidade para que a pessoa portadora da tecnologia e das técnicas que levam o corpo a dançar o faça de acordo com este preceito. Não esquecer seria o toque da razão, o argumento forte que carrega a obrigação, o compromisso com a vida que para se concretizar necessita trazer de volta, ao tempo presente e de forma compartilhada, o que se tornou passado ou, ainda, o que habita o presente, mas invisivelmente. Há, portanto, uma ética pela qual e com a qual se dança ou se deve dançar, uma ética da memória incorporada naquele e naquela que dança no instante em que se dança. Uma ética corporal que evoca, repassa, celebra e expõe o que não pode ser esque-

cido, que atualiza os antepassados, dá a ver a herança recebida, fortalece as possibilidades de se manter e, ao mesmo tempo, de se ir adiante. Desse modo, não se pode esquecer e deve-se lembrar da força comunitária e de tudo o que lhe dá fundamento. A variedade de práticas desse dançar pode ser verificada, por exemplo, na vida vivida pelas tradicionais famílias negras brasileiras em seus diversos e diferentes espaços de convivência, especialmente em seus espaços litúrgicos; ou ainda dentre tantos exemplos – nas práticas da dança kigodoro (Tanzânia) e mapouka (Costa do Marfim), ancestrais das complexas formas negras contemporâneas de rebolar e afrontar, a partir da retroversão/ anteversão – deslocamento da pelve para trás e para frente e da exibição calculada da hiperlordose lombar; e, ainda, das técnicas que deixa à mostra a singularidade do corpo – geralmente feminino que dança, ao mesmo tempo, que propicia alto rendimento anatômico, estético, de celebração e de ousadia. Dança-se com a comunidade, para a comunidade e pela manutenção de sua existência. Dança-se para celebrar, propiciar e ser propiciado por encontros amplos, para estabelecer e manter laços intergeracionais, interpessoais, de afeto, para ativar, enfim, espaços de convivência sensível. Dança-se pela consciência de ser filho ou filha, neta, neto, bisneto, bisneta... e pela certeza de se vir antes daqueles que seguem: o coletivo é o centro da experiência, a comunidade, um corpo único e o relacionamento entre os vivos e os mortos, sua imanência. Os indivíduos existem porque a relação dinâmica com o grupo no espaço e no tempo os constitui e os fortalece. Dança-se, então, por fazer parte e porque dançar integra o jogo de retribuições e o equilíbrio comunitário.

3.

São muitos os enigmas, as perversidades coloniais e encruzilhadas pós-coloniais a transitarem na dança de um corpo negro, desde sua criação à sua recepção. As estratégias negras de resistência, de ataque às invisibilidades, formuladoras de críticas “de fronteira” e tudo o que subsidia os desejos de libertação, o autoconhecimento, a construção e a reconstrução das pessoas negras passam pela noção de ancestralidade.


A ancestralidade se estabelece, assim, como uma categoria marcante em parte significativa da produção (performance, coreografia, discurso oral e escrito) de artistas negros e negras profissionais de dança cujas trajetórias foram iniciadas ou consolidadas nas duas últimas décadas, sejam as suas “linhas” as chamadas dança afro, dança contemporânea, dança pop-urbana ou dança popular. A ancestralidade se apresenta nas referências explícitas às origens africanas e à diáspora negra, na adesão à mitologia e à religiosidade afro-brasileiras, na busca por saber-se e reconhecer-se negro ou negra e, também, africano/africana, de refazer elos rompidos através de processos de cura que agregam trabalho artístico, de pesquisa em rede, conscientização e empoderamento. A necessidade de conhecer suas origens e de cultuar os antepassados se espalha por pesquisas artísticas em torno de movimentos, gestos e personalidades, bem como uma identificação e, de modo prático, uma certa continuidade na relação com as formas de fazer herdadas. Pois: “É muito importante saber quem somos, de onde viemos, do que somos compostos para poder estender de maneira ampla e corajosa a nossa relação com o universo, senão eu posso correr o risco de me perder”. (Moreira, 2013)

Deve-se assim, e para além, não esquecer e lembrar a necessidade e o desejo de encontrar (-se), operação indissociável da vida plena no presente,

da construção de futuros, de equidade e justiça. As políticas da ancestralidade, o relacionamento dinâmico e amplo com diferentes dimensões de ancestralidades diversas, evidenciam a ideologia comum que orienta a conduta e a multifacetada produção contemporânea de artistas negras e negros de dança.

Cia. Étnica de Dança, do Rio de Janeiro

CARMEN LUZ é coreógrafa, realizadora audiovisual, diretora de teatro, autora e gestora de projetos de arte-educação e artivismo. É mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi diretora artística do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro. É docente na Escola de Cinema Darcy Ribeiro e na Faculdade de Dança Angel Vianna. É curadora do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul. É fundadora, coreógrafa e diretora artística da Cia. Étnica de Dança e integrante da Orquestra de Pretxs Novxs.



JOY GREGORY Série Autoportrait 1989/1990


Da esquerda para a direita: Átila José Gonçalves, Manoel Antônio dos Santos, Luiz Gonzaga Braga, Henrique Antunes Cunha, o pequeno filho do sr. José Correia Leite, e Sebastião Gentil de Castro, na redação do jornal O Clarim d’Alvorada, nos anos 1920, em São Paulo.


A C R Í T I C A C U LT U R A L N A I M P R E N S A NEGRA EM BRASAS: SP E RJ texto Nabor Jr foto Autor desconhecido Desde o nascimento, em São Paulo, do jornal A Pátria (1889), considerado o marco fundador da atuação dos “homens de cor” – como os africanos, seus descendentes, negros livres e libertos eram chamados a época no Brasil - por meio dos seus próprios periódicos, em um movimento que mais tarde ganharia o nome de Imprensa Negra Paulista, até os dias de hoje, o mundo mudou. Na verdade, o mundo é outro – apesar das semelhanças, muitas delas tristes semelhanças, que ainda nos conectam aos séculos passados. E das muitas transformações que ocorreram nos mais variados aspectos da vida humana nestes últimos 140 anos, as conquistas que nos proporcionaram acessar ferramentas capazes de desenvolvermos com maior fluidez reflexões críticas por meio da escrita, sobre a existência negra na sociedade em que vivemos esta entre as mais salutares. Visto, entre outros aspectos, por sua real ligação com o acesso a educação, a mais valiosa ferramenta para alteração do status social de um povo. Em termos práticos, porém, de que maneira essas transformações que forjaram o nascimento de escritores, poetas, músicos, pintores, estilistas, fotógrafos, entre outros profissionais do campo das

artes, foram acompanhadas pela imprensa negra? Que contribuição foi dada a reflexão crítica , do ponto de vista jornalístico, sob a produção de obras responsáveis por moldar as artes brasileiras de autoria negra nos séculos XX e XXI?

PARALELOS E CONVERGÊNCIAS Estudos1 indicam que o jornal A Pátria (1889) inaugura a secular história da imprensa negra paulista. Simpático ao republicanismo, especialmente por estimular uma atmosfera de esperança entre negros libertos e livres de São Paulo, assim como o fizera a então recém assinada abolição, este periódico foi prosseguido pelo jornal O Progresso (1899), o segundo veículo da história da imprensa negra paulista. Esses jornais de combate, denúncia e integração, que se ocuparam da crítica cultural em seu sentido mais amplo – que relaciona a crítica cultural tanto à cultura como à sociedade – pavimentaram o caminho para que uma série de periódicos surgissem em São Paulo nas décadas seguintes, em sua maioria, gestados no seio de associações culturais e grêmios recreativos da comunidade negra paulista. Este movimento, ainda hoje urgente e necessário, cortaria os últimos 140 anos com publicações como: O Menelick (1915), A Rua (1916), O Xauter (1916), O Alfinete (1918), O Bandeirante (1919), A Liberdade (1919), A Sentinela 1 PINTO, Ana Flávia Magalhães. Imprensa Negra no Brasil do século XIX. São Paulo. Selo Negro, 2010. 85


(1920), O Kosmos (1922) e Getulino (1923), Alvorada (1935), Senzala (1946), União (1948), Mundo Novo (1950), Quilombo (1950), Redenção (1950), A Voz da Negritude (1953), O Novo Horizonte (1954), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Hífen (1960), Niger (1960), Nosso Jornal (1961), Correio d´Ébano (1963), Árvore das Palavras (1974), O Quadro (1974), Biluga (1974), Jornegro (1977), O Saci (1978), Abertura (1978), Vissungo (1979), Derebo (1980), Chama Negra (1986), Revista Ébano (1980), Tribuna Afro Brasileira (1989), Pode Cre (1993), Agito Geral (1995), Raça Brasil (1996), Visual Cabelos Crespos (1997), Negro Cem por Cento (1998), Rap Brasil (1999), Planeta Hip Hop (2000), Eparrei (2001), Afirmativa Plural (2004), Elementos (2007), entre outros. E, no campo da internet e das redes sociais, iniciativas como Geledés, CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade), Portal Áfricas, Blogueiras Negras, Blog do Negro Belchior, Alma Preta e, evidentemente, a própria revista O Menelick 2º Ato. Em comum, esses veículos digitais do século XXI buscam constituir-se como um espaço de produção de pensamento onde o negro seja tratado com dignidade e que, quantitativamente, espelhe a sua hegemônica presença na sociedade brasileira. Assim, ao traçarmos um paralelo entre a produção de informação por meio de jornais e revistas produzidos na primeira metade do século XX, com as iniciativas atuais, observamos que, inserida no contexto da “cultura de massa”, a crítica cultural na imprensa negra (como resultado de um fenômeno que também acomete a imprensa de maneira geral) ainda apresenta tímida relevância social, demonstrando apenas um resquício fragmentado do debate que poderia protagonizar. Visto, especialmente, a quantidade e a qualidade da produção cultural negra nos campos da música, literatura, teatro, cinema, artes plásticas, fotografia, gastronomia, moda e televisão. Vale ressaltar que a crítica, no princípio, fora concebida como um espaço voltado para o debate cultural, uma vez que a mesma age como forma de legitimação de sujeitos discursantes, de conceitos relativos à opinião pública e, por fim, de práticas culturais enraizadas no histórico socioeconômico de cada época.

A CRÍTICA CULTURAL NA IMPRENSA NEGRA DE SP Em sua 31ª edição, o jornal O Clarim d’Alvorada, que apresentava em seu subtítulo a frase Órgão literário, noticioso e humorístico, publicada em 17 de abril de 1927, observamos um texto assinado por Horácio da Cunha, com o título Os pretos e a música. Conforme outras raras incursões no campo da produção musical pelos jornais da imprensa negra paulista do período, este texto também não pretende inaugurar um debate, ou construir relações como sugere a chamada para o artigo. Contudo, ao utilizar a música clássica como pretexto para enfatizar a importância da união da raça em prol do bem comum de toda uma comunidade, Cunha acaba por exaltar a capacidade erudita dos negros, ressignificando e valorizando a competência musical destes: “Tendo lido há tempos uma chronica no Jornal do Commercio, que uma pessoa interpelou um ilustre maestro de musica, desejando saber qual era a sua opinião sobre o Jazz-Band, o maestro depois de fazer varias considerações sobre a musica clássica, terminou dizendo: ‘O Jazz-Band é musica de negro!’. Desculpe ilustre maestro da réplica deste despretensioso negro Brasileiro. Chegando em Pariz, uma caravana de musicos Americanos, com um Jazz-Band, cujos estrumentos excêntricos, compondo-se de: Bozina de automóvel, Campainha, Lata de Kerozene, Chacoalho, etc. Pariz a cidade da luz das belezas, das musicas e dos luxos. Pois bem; Pariz, applaudiu com enthusiasmo o Jazz-Band. D´alli esses estrumentos invadi-


ram todas America do Sul. Aqui, em nossa Pauliceia, essa musica teve a maior aceitação, nos salões, e em casas das mais distintas famílias da capital e do interior: é Jazz-Band ao almoço, ao jantar, ao chá e à ceia. Portanto, essa musica não é só para o negro como dissera esse ilustre maestro. É somente para famílias de bom gosto que estão sentados em Cruzeiros. Nós, os pretos brasileiros, sempre fomos apreciadores da musica clássica; e com orgulho da nossa raça negra, podemos apresentar diversos músicos pretos que muito honraram e honram ainda a nossa raça. Como o padre preto, José Maurício Nunes Garcia, o grande músico da Corte de D. João VI, quando Mauricio sentava ao piano para a sua execução os portugueses ficavam extasiados; José Patrício, o grande musico da cidade de Santos; Manoel dos Passos, Carlos Cruz Verrísimo Gloria, Custodio dos Passos e muitos outros que existem ahi pelo interior do nosso glorioso estado de S. Paulo.” (O Clarim d´Alvorada, 1927)

Apesar da pouca presença da crítica cultural nos periódicos da imprensa negra paulista na primeira metade do século XX e nos anos subsequentes, o texto publicado em O Clarim d’Alvorada não é um caso isolado, assim como o esforço das publicações em diversificar suas áreas de atuação com o intuito de informar e atender uma heterogênea e jovem comunidade negra paulista. Na edição de julho de 1960, o jornal Níger, que tinha como subtítulo a frase: “publicação a serviço da coletividade negra”, publicou na coluna Um pouco de tudo e de tudo um pouco, o texto A respeito do TEN-SP, onde o autor, não identificado, dis-

corre sobre a criação do Teatro Experimental do Negro em São Paulo. Também neste texto, a preocupação do jornal está mais em informar seu leitor sobre a existência e atuação da companhia, com ênfase no que hoje entendemos como prestação de serviços: “A História do Teatro Experimental do Negro de São Paulo começou há quinze anos, quando um grupo de intelectuais negros reuniu-se para formar um grupo de atores negros a fim de que este grupo de atores negros rompesse com a tolice até então reinante no teatro brasileiro: de se mascarar atores brancos para os papeis que pediam um negro. Da formação do Teatro Experimental do Negro, tiveram participação ativa o poeta Lino Guedes, o já desaparecido ator Agnaldo Camargo e o jornalista Geraldo Campos de Oliveira, braço forte do grupo e que durante vários anos tem liderado o movimento. [...] O TENSP mantém desde 1955 um coral declamatório, e já apresentou os seguintes programas: Alama do Eito, Negro, Urucungo, África, Inspiração, Novena, Rua de Pobre, Roteiro para o Poema Universal. Interessante observar a legenda da foto que ilustra o texto, demonstrando o interesse dos editores da publicação em fomentar o grupo teatral perante seus leitores: Essa pitoresca fotografia mostra artistas do ‘Teatro Experimental do Negro’ de São Paulo, na interpretação da coletânea de poemas ‘Inspiração’, levada com êxito no Teatro João Caetano, na Sede do Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil e outras casas.” (Jornal Níger, 1960. Ano I, N°1)

Em outubro de 1957, o jornal Notícias de Ébano (Órgão noticioso do “Ébano Atlético Clube”), da cidade de Santos, com o propósito de agregar valor a Semana José do Patrocínio, atividade promovida pela própria organização responsável por gerir a publicação, dedica considerável número de colunas para contar a biografia da atriz Ruth de Souza. Apesar da ausência de uma análise crítica sobre a performance dramatúrgica da atriz, ou de uma reflexão sobre os tipos de papéis por ela interpretados, o texto cumpre bem a função de traçar um perfil da artista. Isso, porque uma série de informações interessantes bem como curiosidades sobre a trajetória de Ruth são apresentadas. Estes fatos acabam agindo como


estímulo aos jovens leitores e leitoras desejosos em seguir trajetória semelhante: “Desde criança Ruth de Souza sonhava em representar, mas no colégio a professora foi de opinião que ‘amor ao teatro não era boa coisa’ não consentindo que ela tomasse parte em espetáculos infantis. Mas o sonho e o ‘amor ao teatro’, continuaram e, assim, ingressou no elenco do Teatro Experimental do Negro onde interpretou várias peças com grande sucesso, chamando a atenção da crítica para seu nome. Nos ‘Comediantes’ fez o papel de Joana na peça extraída do romance de Jorge Amado ‘Terras do Sem Fim’ que foi transposta para o cinema onde recebeu o título de ‘Terra Violenta’ e, neste filme, Ruth de Souza interpretou o mesmo personagem que criara no teatro. Desde então vem dividindo duas atividades entre o palco e os estúdios. Ainda no Rio de Janeiro tomou parte nos seguintes filmes: ‘Falta alguém no Manicomio’, ‘Também somos irmãos’ e ‘Aglaia’. Em 1950 veio para São Paulo a convite da Vera Cruz a fim de entrar no filme ‘Terra sempre terra’, onde sua interpretação do papel de Bastiana lhe fez merecer o Prêmio da melhor coadjuvante do ano (1951), conferido pela Associação dos Criticos Cinematograficos do Rio de Janeiro. Imediatamente depois, tomou parte no filme ‘Angela’ que lhe mereceu o Premio Governador do Estado de São Paulo como ‘atriz coadjuvante’. Seu trabalho em teatro e cinema chamaram a atenção da Rockefeller Foudation, dos EUA, que lhe proporcionou uma bolsa de estudos naquele país, para onde viajou em setembro de 1951. Durante 10 meses estudou em Karamu House, em Cleveland (Ohio) onde se tomou parte em diversos espetáculos. Fez o principal papel feminino da peça ‘Dark Gunman’, ‘A Street Scene’ e ‘Porgy’. Atuou ainda em diversas cidades norte americanas e seu talento foi comentado em termos altamente elogiosos pela critica especializada do país.”

Nascida em 2015, na cidade de São Paulo, a revista Legítima Defesa - Uma Revista de Teatro Negro, uma publicação da cia. de teatro Os Crespos, também pode ser entendida como uma consequência contemporânea dessas primeiras inserções, na imprensa negra paulista, do negro enquanto sujeito protagonista da cena dramatúrgica nacional, e obviamente beneficiário, enquanto coletivo de

teatro, de iniciativas como o TEN (1944), o Teatro Popular Brasileiro (1950) e o Teatro Profissional do Negro (1970). Com periodicidade anual, a revista Legítima Defesa vem, por meio de um profundo investimento intelectual, conseguindo discutir critérios estéticos e políticos do Teatro Negro nas diásporas, possibilitando a inscrição e historicização dos processos artísticos além de estimular o debate crítico em torno do tema, como podemos observar no texto A Cena preta do teatro contemporâneo no Brasil, assinada pela pesquisadora Renata Felinto: “Se os grupos e coletivos de teatro formados majoritariamente por atores e atrizes “eurodescendentes” não incluem, em sua maioria, colegas de profissão negros e negras em seus elencos com assiduidade, como uma prática natural e sequer possuem o interesse ou sensibilidade de realizar pesquisas e montagens que tragam à público esse “Eu” criativo afro-brasileiro, é legítimo que se formem grupos e coletivos de Artes Cênicas encabeçados e constituídos somente por afrodescendentes. Os mesmos desejam ver e rever, pensar e repensar suas realidades históricas a partir de si e de seus semelhantes. Se o teatro (branco) fala de si, o teatro negro também o faz. E não seja entendida aqui uma estratégia para apartar ou excluir, todavia, uma forma de se contemplar, se apreciar. E, ponderando sobre o Brasil, país continental, como será que esses grupos e coletivos de teatro tem discutido e apresentado a estética negra? Este texto pretende debruçar-se sobre a apreciação das várias cores e pigmentos que compõem a paleta do que é ou poderia ser compreendido como estética negra. Mas, primeiramente, para discutir o hoje, revisitemos a terminologia estética e os princípios do teatro feito por


afrodescendentes no Brasil.” (Revista Legítima Defesa, 2014. Ano I, N°1)

por colunistas, não representando efetivamente uma “missão” dos veículos.

Os coletivos cênicos da cena preta contemporânea brasileira não são mais compostos por elencos recrutados “entre operários, empregadas domésticas, favelados sem profissão definida e modestos funcionário públicos, conforme ocorreu, num primeiro momento, com o TEN, o qual tinha entre seus objetivos, para além das ambições teatrais, a alfabetização e a conscientização de seus membros”. Esses coletivos encontram-se numa fase ímpar da profissionalização, do interpretar e dos estudos mais profundos acerca da construção do texto cênico, das questões que norteiam as escritas a serem encenadas, da remuneração por este labor artístico, da pesquisa de textos e peças fundamentais da área das artes cênicas.

Em São Paulo, apesar da atuação urgente, competente e necessária de iniciativas como Geledés, CEERT, Portal Áfricas, Blogueiras Negras, Blog do Negro Belchior, Alma Preta, entre outros, a exceção a este cenário pode ser observada nos esforços empreendidos pelas publicações impressas representadas pelas revistas Legítima Defesa e O Menelick 2º Ato, que se dedicam com maior periodicidade e afinco a ampliação do debate entorno da produção cultural afro-brasileira e da diáspora africana. Apesar de também haver críticos que, especialmente por meio de suas páginas sociais, se situam a meio caminho entre o ensaismo e o resenhismo (Alexandre Araújo Bispo, Cidinha da Silva, Allan da Rosa, Ana Lira, Djamila Ribeiro, Lázaro Ramos). O que se observa nos dias de hoje ainda, é uma distância entre a crítica midiática, de caráter utilitário, e a crítica acadêmica, intelectual, destinada à reflexão, mas fatalmente fechada ao ambiente universitário.

As atrizes e os atores são formados na tradição clássica do teatro, oriundos das melhores universidades e escolas de Artes Cênicas do país. Tal ensino, por vezes, hermético, não considera as realidades e origens de seus múltiplos alunos, pois incorporaram as suas negras vivências e negros anseios, envoltos em conhecimento histórico, político e artístico. E para coroar este momento histórico, eles também estão preocupados com uma produção escrita que registre o desenvolvimento dos afrodescendentes e de suas investidas no universo teatral. Como guardiões e guardiãs que salvaguardam um precioso legado, de fato, essa nova geração valoriza o negro e a sua história e criou uma dramaturgia que abarca muitas das premissas fundadoras do TEN.

A perda da função social da crítica não pode ser tratada como “natural”, inerente à estrutura capitalista. A partir de outros modelos existentes, dentro e fora do país, em outras épocas ou até mesmo atualmente, fica claro que nem sempre isso aconteceu e que não é necessário que hoje isso aconteça. A crítica também deve ter uma função ativa no ciclo de produções culturais, abrindo espaço não apenas para que a discussão seja ampliada como também para alimentar a própria produção cultural. Apenas dessa forma, a crítica se desloca para uma esfera própria, separada da lógica publicitária, assistencialista (do ponto de vista da camaradagem) e da fragmentação generalizada para se inserir no cotidiano da sociedade.

De modo geral, os espaços de reflexão na imprensa negra paulista que permitem mergulhos mais profundos no que tange a crítica cultural, são desenvolvidos com maior fluidez nas áreas autorais de sites, blogs, portais e veículos impressos, sendo que, na grande maioria das vezes, essas análises aparecem de forma isolada, geralmente, assinadas

Estado que mais forneceu publicações da imprensa negra ao longo do século XX, São Paulo ainda não registrou em sua longa trajetória uma publicação como o jornal Quilombo, fundado por Abdias do Nascimento, em 1948, como um braço do Teatro Experimental do Negro (TEN), que congregava num mesmo espaço intelectuais negros e brancos que buscavam, a partir das suas reflexões, contribuir para a construção de

JORNAL QUILOMBO: RJ


uma sociedade mais democrática, justa e que de fato incluísse o negro e seus problemas na agenda do país. Figuravam entre os seus colaboradores, entre outros, nomes como: Guerreiro Ramos, Ironilde Rodrigues, Edison Carneiro, Solano Trindade, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Péricles Leal, Orígines Lessa e Roger Bastide. Isso sem contar os intelectuais estrangeiros que colaboravam com a publicação, como George Schuyler (jornalista do Pittsburgh Courier), o argentino Efrain Tomás Bó, Estanislau Fischlowitz, Paul Vanorden Shaw e Ralph Bunche. Mantendo-se em sintonia com o que se produzia em Paris, Nova York ou Chicago; Quilombo traduziu e deu a conhecer o texto Orpheu Negro, de Jean-Paul Sartre, entrevistou Albert Camus, reproduziu artigos do The Crisis, jornal dirigido por Du Bois em Nova York; manteve contato regular com a equipe do Présence Africaine, órgão da negritude francesa, assim como com os principais jornais negros norte-americanos. Discutiu a música, o cinema, o teatro e a poesia feitos no Brasil por negros, assim como as manifestações da então chamada “cultura afro-brasileira”, tais como os candomblés. Em sintonia com o mundo cultural brasileiro e internacional, tal qual as mais importantes publicações norte-americanas ou francesas da época, Quilombo foi semelhante e, ao mesmo tempo, bastante diferente de seus antecessores (e muito dos seus sucessores) da imprensa negra. Uma vez que, além de cumprir suas funções tradicionais, como a denúncia, a luta por direitos, alternativas para a inserção negra na sociedade, essa publicação também iluminou e deu voz a erudição negra brasileira. Encanta saber as investidas que o periódico fez – na maioria das vezes com profundidade - pela literatura, música, poesia, cinema e, obviamente, pelo teatro. Investidas essas que ainda hoje são vanguardistas. Logo em sua edição inaugural, de 09 de dezembro de 1948, publicou-se o texto Poesia Afro-americana, de Efrain Tomas Bo, especial para Quilombo: “O tema que nos impõe o titulo indica uma limitação no sentido da critica literária. De toda a poesia debruçada em sua expressao, vamos separar aquela que nasceu dos negros vindos para a


America – qualquer seja sua temática. Dentro deste volume de manifestação intima ou interior, trataremos de assinalar os motivos líricos ouros que a inspiram e que tem sua fonte autentica na alma do negro, em sua emoção humana diferenciada, e em seu temperamento espiritual submetido ou adaptado ao clima de convivência americano. Estas suposições nos permitem afirmar que estão fora de nossa valorização poética os motivos nascidos para expressar primariamente o pranto ou a revolta, a resignação ou a luta do escravo. Estes temas podem ter valor em si como incitações politicas ou sociais, porem em poesia eh somente um estimulo que precisa trabalho literário afim de transformar-se em arte. A escravidão – e seus sentimentos paralelos de pranto e revolta, resignação e luta – sao acidentes na condição humana do negro transplantado para a America ou daquele que trabalha em suas feitorias europeias da Africa. (...) Assim como Pushkin e A. Dumas – escritores de cor – nao escreveram desde o ponto de vista e desde a circunstância negra, no século XIX cubano ha escritores de origem africana que se expressam nos moldes e nos padrões da época. Em muitas composições o tema é subjacente porem não esta a flor da consciência. Só na poesia popular o negro se expressa com verdade e com beleza sem o pranto nem a revolta como matéria dominante de sua arte. Será Nicolas Guillen, o poeta lucido que construíra seus versos sobre uma temática verdadeira com sólidas raízes em sua alma e com sabia ideia do essencial na poesia”.

Vistos os exemplos apresentados ao longo deste texto e a conformação da sociedade negra brasileira, cada vez mais instruída e sabedora da sua história de competência intelectual, observarmos o quão importante é estimularmos e valorizarmos iniciativas que, sejam por meio de colunistas ou textos de redação, estimulem o debate crítico para além do bom e do ruim, do gostei e não gostei. A reflexão sobre temas argilosos relacionados à produção cultural negra no Brasil e que ainda hoje não encontram campo para discussão da mídia hegemônica são urgentes. O passado e o presente da imprensa negra mostram que é possível veicularmos tais conteúdos capazes de transgredir fronteiras numa perspectiva ampla da sociedade negra moderna. A mídia pode e deve ser um espaço de empoderamento e reflexão para que possamos ter uma sociedade capaz de enfrentar os desafios cotidianos.

NABOR JR. é fundador e diretor da revista O Menelick 2º Ato. Jornalista especializado em jornalismo cultural, também atua como fotógrafo sob o pseudônimo MANDELACREW.


A CURADORIA NEGRA NAS ARTES VISUAIS - CAMINHOS DE AFIRMAÇÃO

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TEXTO Adriana de Oliveira Silva FOTOS Chuck Martin, Kleber Amâncio, Gisamara Oliveira, Luiz

Alves, MANDELACREW

Fecundo na construção de utopias, o campo das artes também pode surpreender pela insistência em manter o status quo, em especial num país como o Brasil, com uma história marcada pelo racismo e pelo autoritarismo. Não é mero acaso que, nos últimos cinco anos, tenhamos assistido a uma “emergência” de exposições de arte de viés racial assumido, exigindo maior “visibilidade” de artistas, temáticas e modos de fazer negros. Entre as grandes exposições – em quantidade de obras e visibilidade institucional – com curadoria negra ocorridas nos últimos anos, estão Histórias Afro-Atlânticas (2018), no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e no Instituto Tomie Ohtake, com curadoria de Adriano Pedrosa, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo, e dos curadores negros Ayrson Heráclito e Hélio Menezes, que pode ser entendida como uma espécie de continuação “racializada”, na temática e nas proposições curatoriais, de Histórias Mestiças (2014), de Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz, apresentada no Instituto Tomie Ohtake; e Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca (2015-2016), com curadoria de Tadeu Chiarelli, na Estação Pinacoteca, que contou com a inclusão de textos dos curadores negros Claudinei Roberto da Silva e Fabiana Lopes em seu catálogo. Houve outras menores organizadas por curadores negros, como (Re)conhecendo a Amazônia Negra: Povos, Costumes e Influências Negras na Floresta Negra, exposição individual da fotógrafa negra Marcela Bonfim, com curadoria da também fotógrafa Mônica Cardim, na Caixa Cultural (2017); Agora Somos Todxs Negrxs?, no Galpão VideoBrasil (2017), por Daniel de Lima, artista, curador e membro fundador do coletivo Frente 3 de Fevereiro; Afro como Ascendência, Arte como Procedência, com curadoria de Alexandre Araújo Bispo, com base no projeto da artista e professora Renata Felinto, no Sesc Pinheiros (2013), para citar apenas algumas das ocorridas na área central da cidade de São Paulo.

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ANTECEDENTES As experiências curatoriais negras não são recentes: basta lembrar a exposição inaugural do Museu de Arte Negra, no MIS do Rio de Janeiro, idealizada por Abdias Nascimento, em 1968; ou do percurso do artista, colecionador e curador Emanoel Araujo, que, entre 1992 e 2002, foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, quando adquiriu obras de artistas negros e realizou exposições como Vozes da Diáspora (1992) e Herdeiros da Noite: Fragmentos do Imaginário Negro (1995). E foi também de Emanoel Araujo a curadoria, no MAM, de A mão Afro-brasileira (1988), e, como parte da Mostra do Redescobrimento, em 2000, Negro de corpo e alma, um grande inventário da imagem do negro no Brasil. Araujo, aliás, segue sendo a principal referência curatorial quando se trata de combater o racismo tendo a arte como espada, uma qualificação que obteve por meio de exposições e de seus catálogos e de uma extensa e colaborativa pesquisa sobre a questão negra, que culminaria no Museu Afro Brasil, por ele fundado em 2004. É preciso também lembrar o antropólogo brasileiro-congolês Kabengele Munanga, que tem igualmente atuado como curador, com destaque para a exposição Arte Afro-Brasileira, que integrou a Mostra do Descobrimento, em 2000. No entanto, é possível afirmar que a pressão pela participação de artistas e também de curadores negros nas artes no Brasil tornou-se ainda mais decisiva num momento em que uma parcela da sociedade brasileira escancara seu repúdio ao empoderamento negro resultante de ações populares e governamentais, tais como a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em sala de aula, a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, a instituição do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, e a decisão pela constitucionalidade das cotas raciais pelo Superior Tribunal Federal, em 2012. Esse contexto mais geral pode ajudar a compreender por que o uso de blackface numa peça que seria encenada no Instituto Cultural Itaú, em São Paulo, em 2015, causou uma grande mobilização contrária de negros a ponto de a peça ser cancelada e de ter sido

O artista plástico e curador baiano Emanoel Araujo, em registro realizado em 1994, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, instituição que dirigiu entre os anos de 1992 e 2002.


gerado um grande debate sobre a representação do negro nas artes no país e sobre a ausência de artistas e curadores em papéis decisivos no campo das artes, o qual foi organizado numa série de encontros, os Diálogos Ausentes, com curadoria de Rosana Paulino e Diane Lima, no Itaú Cultural, em 2016. Essa espécie de levante de artistas negros pode ser considerada um marco indiciário, no campo das artes, de certa abertura em centros culturais, galerias, museus e outros espaços da arte voltados no sentido de abrigar o pensamento e a produção de negros e outros grupos ditos “minoritários” em espaços e posições de prestígio. Não se trata de benevolência, como muitos interlocutores ressaltaram, mas de uma estratégia de aproximação de público que não deixa de expressar um viés mercadológico, como atesta o número de visitantes da exposição Histórias Afro-Atlânticas – 180 mil pessoas no Masp e 135 mil no Tomie Ohtake. Se, por um lado, é inegável que se trata de um momento de maior reconhecimento de pensadores negros no campo das artes – estejam eles atuando como artistas, curadores, críticos, pesquisadores acadêmicos ou não, alguns, inclusive desempenhando simultaneamente vários desses papéis –, por outro, é preciso notar que essa mesma emergência escancara o racismo sobre o qual o campo das artes, como tantos outros, é estruturado no Brasil. Neste artigo, vamos observar essa situação pelo ponto de vista de curadoras e curadores negros que, com maior frequência e publicidade, têm sido convidados ou tido seus projetos aceitos por pequenas, médias e grandes instituições culturais em todo o país. Os profissionais aqui presentes

emergiram de um mapeamento sucinto que partiu da indicação de profissionais inicialmente pautados pela O Menelick 2o Ato e também daqueles com quem já havíamos conversado durante pesquisa de doutorado sobre arte afro-brasileira. Esses curadores, por sua vez, foram indicando outros colegas. A maioria dos curadores aqui mencionados é do estado de São Paulo ou nele atua, embora também tenha sido possível mapear profissionais do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Fortaleza e Rio Grande do Sul. Um trabalho que, sabemos de antemão, há de ter ausências. Por isso, inclusões serão bem-vindas, já que é preciso encarar a “provocação” do artista e curador baiano Tiago Sant’Ana, que diz: “Vocês pesquisam, gostam e divulgam arte afro-brasileira ou arte afro-sudestina? Porque há uma repetição de repertórios em exposições, festivais e publicações, apesar da diversidade do Brasil”.

O RACISMO COTIDIANO NO CAMPO DAS ARTES No mesmo instante em que uma maior quantidade de pessoas negras enfim consegue assumir posições como propositoras de outras narrativas que não meramente histórias mestiças ou de escravidão, o racismo estrutural e institucional se faz ainda mais pungente. Sobre o desafio de ser curador negro ou mesmo de assumir qualquer posição como produtor de conhecimento no Brasil, Eugênio Lima diz: “Cada vez mais tenho compreendido melhor a tese central de Carlos Moore de que o racismo é o sistema mundial e o capitalismo apenas seu modo de produção”. Para esse ator, DJ, curador e ativista, nascido em Recife e estabelecido em São Paulo, a ideia do cientista social cubano outrora radicado no Brasil ajuda a explicar por que a capacidade de narrar e produzir conhecimento tem sido negada a pessoas não brancas, mulheres, pobres, trans etc. No entanto, para transformar essa situação, segundo Eugênio, a arte é o principal campo de disputa, porque é o meio mais potente para criar novas imagens e narrativas do negro no mundo: “Não


foi à toa que o termo negritude surgiu na poesia de Aimé Césaire e depois foi apropriado pela política”. E é por isso que Eugênio Lima defende que o curador negro, esse propositor de narrativas a partir de objetos da arte, precisa ser interdisciplinar e intersecional, ou seja, fazer curadoria de música, artes visuais, cênicas, pintura, escultura etc. de um ponto de vista que também considere raça, gênero e classe, tal como ele aprendeu com Carla Akotirene e Djamila Ribeiro. Já a professora e curadora carioca Keyna Eleison conta que, quando começou a trabalhar como coordenadora pedagógica na Escola Livre de Arte, no Parque Laje, no Rio de Janeiro, seu corpo e suas ideias remetiam a nada menos que Lélia Gonzales, antropóloga mineira, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), que tinha implantado ali o Departamento de Estudos Negros. O detalhe perverso é que isso tinha ocorrido havia muitos anos: “A instituição levou quarenta anos para contratar outra pessoa negra como produtora de conhecimento, e só foi se lembrar disso quando eu cheguei”, relata Keyna estupefata.

Keyna Eleison

Hélio Menezes, antropólogo baiano radicado em São Paulo, que despontou como curador na exposição Histórias Afro-Atlânticas, no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, em 2018, conta que a presença de curadores negros na equipe curatorial dessa exposição foi estratégica para evitar críticas contundentes como as recebidas em Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake, em 2014, e também no seminário que viria ajudar a construir conceitualmente a exposição de 2018. “O Masp tinha organizado um seminário, Histórias da Escravidão, que foi duramente criticado por artistas, pesquisadores e curadores negros por reafirmar que a história das populações negras no Brasil teria começado com a escravidão, enquanto a pesquisa e a militância de intelectuais negros mostra que essa história antecede a escravidão e, portanto, a dominação portuguesa no período colonial”, afirma. Assim, narrar histórias afro-atlânticas em vez de histórias da escravidão significa contar a história de uma perspectiva não eurocêntrica. “É claro que há um interesse na visualidade criada pela escravidão até porque ela rasga o mundo das artes, como em Negro Cipião, que o artista francês Paul Cézanne pintou inspirado numa fotografia de um escravizado norte-americano torturado. Embora a quanti-


dade de obras que retratam escravidão, trabalho forçado, tortura e a hipersexualização dos corpos negros seja massiva, é preciso ir além delas sob pena de reafirmar uma história de submissão. Para isso, segundo Hélio Menezes, “era preciso mergulhar de cabeça numa produção negra contemporânea no Brasil e no exterior e trazer obras e outras narrativas visuais em que corpos negros apareçam para além do escravismo ou, se na chave do escravismo, de uma maneira crítica, e assim contar histórias afro-atlânticas que passam pela escravidão, mas não se fixam nela”. Outro curador negro convidado para compor a equipe curatorial de Histórias Afro-Atlânticas foi o baiano Ayrson Heráclito. No módulo Rotas e Transes: África, Jamaica e Bahia, que integrava a exposição Histórias Afro-Atlânticas, Heráclito teve a oportunidade de exibir outro modo de compreender a produção artística decorrente das rotas diaspóricas afro-atlânticas, tema de suas pesquisas, o mesmo tendo ocorrido com a exposição Ounje – Alimento dos Orixás, no Sesc Ipiranga, em São Paulo, em 2019, na qual ele atuou como um dos curadores convidados. Pensando na exposição de que Luciara Ribeiro fez a curadoria, Diálogos e Transgressões, no Sesc Santo Amaro, em 2017-2018, surge a questão de como reagir a quem diz que arte racializada não é arte. Diz a curadora: “Para isso, é importante dominar o discurso (ocidental) da arte, assim como ter uma formação como a minha”. (Luciara é mestre em história da arte pela Unifesp e pela Universidade de Salamanca, na Espanha.) “Muitas pessoas tentam te desarmar com argumentos da história da arte porque pensam que você não domina o conhecimento que elas dominam. É quando você mostra que, além de saber o que elas sabem, você tem um conhe-

cimento específico sobre as produções artísticas não hegemônicas que elas não dominam. Então os pesquisadores, curadores e artistas negros têm um bônus e não uma deficiência em relação aos seus pares brancos. Daí a fragilidade da branquitude, que ataca quando percebe que pode perder privilégios. E a gente precisa estar preparada para se defender de um modo que surpreenda o branco, em vez de atacar por atacar”.

CURADORIA POR CURADORAS E CURADORES NEGROS Por curadoria, aliás, a maioria dos interlocutores concebe um processo mais amplo que a própria exposição, que pode incluir a seleção, aquisição de objetos, performances e outras expressões artísticas e sua posterior documentação, análise e armazenamento, e também a pesquisa, planejamento e montagem de exposições baseadas nesses materiais. Longe de ser apenas a escolha de um conjunto de expressões artísticas, a curadoria é a construção de pontos de vista. E, como tal, pode reiterar ou desconstruir lógicas hegemônicas. Alguns curadores enfatizam sua condição de pesquisador, educador e artista, ou mesmo a somatória de todas elas, para afirmar (ou subverter) seu trabalho como curador. Entre os que se definem mais firmemente como pesquisadores está Amanda Carneiro. Em 2018, ela fez sua primeira curadoria, a exposição Ainda Assim me Levanto, com a obra da artista mineira Sônia Gomes, no Masp, onde trabalha atualmente. Daí ela dizer que “está curadora no momento” porque trabalha há dez anos em museus e só agora assinou uma curadoria. Amanda atuou no educativo do Museu Afro Brasil, além de ter pesquisado arte africana contemporânea em Moçambique e na Alemanha. A hesitação em se definir como curadora ocorre por ter


assumido poucas curadorias até o momento e, principalmente, porque defende que “é preciso tirar do curador o papel sacrossanto de detentor do conhecimento, da articulação de contatos e das políticas de exibição”. A pesquisa também é o ponto central para Leandro Muniz: “Sou artista e curador, mas prefiro dizer que sou artista e pesquisador”, conta. Desde a graduação em artes plásticas, ele trabalha como educador, assistente de artista e de curadoria, curador independente e, mais recentemente, como repórter na Select, revista especializada em arte. “Faço curadoria porque faço arte e convivo com muitos artistas com os quais quero dialogar não apenas na esfera privada como na pública, propondo textos, entrevistas, debates.” Na definição de curadoria do antropólogo, curador e crítico de arte Alexandre Araújo Bispo, o caráter educativo e intersecional da curadoria ocupa posição de destaque: “Curadoria é a seleção e a proposição de relações entre coisas, entre pontos de vista. Cada obra pode ser tomada como pelo menos um ponto de vista. A curadoria é a reunião desses pontos de vista, desses lugares interpretativos, fazendo pensar relações marcadas pela materialidade dos objetos e também pela raça, gênero e classe social de seus produtores, público e contexto, tudo isso junto. E, para isso, o investimento em equipes de educadores para dialogar com diversos públicos nas exposições é fundamental, é um dos principais aspectos de um projeto curatorial”. Para o professor e curador Igor Simões: “A curadoria é uma escrita, é uma montagem. Cada trabalho é um fragmento que se articula com outro, seja por aproximação, seja por afastamento. Daí eu pensar objetos em ‘estado de exposição’, ou seja, aptos a assumir diferentes posições em diferentes arranjos expositivos”. O campo de atuação de Igor Simões é a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), onde também dialoga com outra curadora negra, Izis Abreu. Ayrson Heráclito se iniciou ao mesmo tempo como ogã, artista e professor, e essa sua experiência tripla – no terreiro, nas artes e na universidade – marca a sua experiência como curador: “comecei a fazer curadoria porque me interesso por diálogos estéticos que tensionam os limites entre o curador e o artista, então, para

mim, a curadoria sempre foi uma atividade tanto reflexiva quanto inventiva”. A experiência como ogã – sacerdote do candomblé que é o braço direito do pai ou mãe de santo de um terreiro, então responsável pela organização dos rituais e pela segurança das entidades incorporadas – faz com que Ayrson construa uma relação longa e respeitosa com os artistas que pesquisa e de quem faz curadoria. Outro a imbricar papéis é o artista e curador baiano Tiago Sant’Ana. Ao entender curadoria como “um exercício para reconhecer projetos artísticos que estão encobertos por uma hierarquização estética, poética e técnica perversa”, ele acaba transformando pesquisas que resultariam num trabalho autoral em uma curadoria com vários artistas. Exemplo disso foi a exposição Kaurís, no Goethe-Institut Salvador, em março de 2019. Na mostra, baseada na Revolta dos Búzios – um

Igor Simões


de obras e artistas em relação ao espaço disponível decorre disso, mas não só. Quando a gente entende a expografia do Museu Afro Brasil e percebe que aquele acúmulo rebarbativo de informações fura uma imensa bolha de preconceito ao conceber núcleos sem divisões – Trabalho e Escravidão, que se comunicam com Festas Profanas e Sagradas, que se comunicam com Arte Acadêmica e com Barroco – a gente entende que existe uma sensibilidade plural que tem uma origem afro-atlântica e afro-brasileira”.

Claudinei Roberto dos mais importantes movimentos abolicionistas do Brasil, ocorrido em Salvador, mas pouco conhecido, em que os correligionários se valiam de búzios como forma de se identificar –, os búzios nas obras dos artistas, aludem, segundo Tiago, “à liberdade e ao futuro por meio de uma técnica de leitura ancestral”. Uma das experiências mais longevas em curadoria é a do artista, educador e pesquisador Claudinei Roberto da Silva. No momento, ele é curador de PretaAtitude, mostra que desde 2018 está percorrendo a rede Sesc. Sobre escolhas ou estilos curatoriais, suas motivações e consequências no caso de artistas e curadores negros, ele afirma: “Artistas afrodescendentes, sabemos, enfrentam restrições historicamente determinadas que devem ser denunciadas. Não por acaso o nome da exposição é PretaAtitude – Emergências, Insurgências, Afirmações: Arte Afro-brasileira Contemporânea. A grande quantidade

Claudinei também usa uma comparação entre o Masp e o Museu Afro Brasil para defender sua postura: “É interessante que os cavaletes de vidro no Masp sejam considerados revolucionários enquanto a exposição de longa de duração do Museu Afro Brasil seja considerada confusa, porque o dispositivo mental que dispara uma e outra é o mesmo. O que os cavaletes fazem? Permitem que você veja a última obra em perspectiva à primeira, num espaço que não está interditado por paredes. E eu, como curador preto num país racista, não vou afirmar nem reproduzir um certo tipo de curadoria e expografia que me excluiu ou interditou em certos espaços. Porque o cubo branco, ao sacralizar os objetos, mais afastou do que acolheu os sujeitos pretos e outros sujeitos subalternizados em relação à arte. Eu posso até fazer, porque o artista e o curador negros podem e devem fazer o que eles quiserem. Se quiserem fazer minimalismo, abstrato ou exposição sem excesso de obras, qual é o problema? No entanto, o que eles fazem, querendo ou não, fazem a partir de sua condição de preto. Mas é fato que na PretaAtitude decidi ir por outro caminho, e exibir vários artistas ainda que num espaço limitado”.

REFERÊNCIAS NEGRAS PARA APLACAR A SOLIDÃO, O SILÊNCIO E A INVISIBILIDADE Com a curadora, educadora e fotógrafa negra Jordana Braz, Luciara Ribeiro idealizou o projeto Experiências Negras, que estreou em agosto de 2019 no Instituto Tomie Ohtake, justamente para promover debates protagonizados por pessoas negras que atuam em diversas áreas nas instituições de arte e cultura. Desde a exposição Histórias Afro-Atlânticas que foi ali abrigada, além de no Masp, quando foi colocada a bandeira Onde estão os negros?, do coletivo Frente 3 de Fevereiro, em plena fachada do Tomie Ohtake, o racismo institucional ficou es-


cancarado no instituto – Jordana Braz era a única profissional negra a fazer parte da equipe de educadores, já que os negros no Tomie Ohtake eram alocados nos serviços de limpeza, segurança e manutenção. As primeiras convidadas de Luciara e Jordana foram as curadoras Andrea Mendes, Iná Henrique Dias e Keyna Eleison. A performer e curadora Andrea Mendes idealizou o coletivo Incorporações Pretas, em Campinas, para apoiar a produção de artistas negras: “Nosso trabalho sempre recebe não, sempre olham com desprezo para a nossa obra. Eu já passei por isso como artista. Então, como curadora, tenho uma sensibilidade maior. Ao mesmo tempo, penso: ‘Poxa, quem vai ser minha referência como curadora?’. Eu não conhecia curadoras negras até então. Fabiana Lopes passou a ser minha referência, assim como outros curadores negros que fui conhecendo. Muitas vezes, os negros não são referências uns dos outros, mas agora estamos nos fortalecendo”. Iná Henrique Dias é fotojornalista do Jornal Empoderado, veículo independente focado em “dar voz aos silenciados e invisíveis, os periféricos”, e uma das idealizadoras do coletivo Afrotometria, corruptela de “fotometria” – medição da intensidade da luz. Um coletivo “racializado”, como afirma Iná, para reconhecer a intensidade da competência do trabalho de fotógrafos negros. “Fizemos uma exposição na Casa Elefante, no centro de São Paulo, porque encontramos vários fotógrafos negros de periferia bons, desde a velha guarda até a juventude, como Vilma Souza, Jéssica Alves e Júlio César. É preciso estar em todos os lugares. A alegria de participar de uma exposição, de ter o trabalho reconhecido, é uma questão de autoestima. A fotógrafa também revela sua estratégia para compensar a falta de recursos materiais: “Comecei a fotografar em 2012, e minha técnica era bem deficitária, eu não tinha material muito bom, então o que fiz foi estudar e ler muito, para saber exatamente o que queria fazer, que lugar queria ocupar”. Em 2019, Keyna Eleison iniciou no Rio de Janeiro o Nacional Trovoa, um coletivo para reunir mulheres artistas “racializadas” e que rapidamente se expandiu pelo país. “Mulheres racializadas”, insiste Keyna “porque há um recorte racial históri-

co no campo das artes – o recorte branco e masculino. Então, não podemos cair na armadilha de separar arte e política, isso é o mesmo que afirmar que arte é possível fora do planeta, fora da humanidade.” A partir da seleção de artistas mulheres negras que responderam à convocatória feita pelo Trovoa, a paulistana Carollina Lauriano, irmã do artista Jaime Lauriano, propôs a curadoria da exposição A Noite Não Adormecerá Jamais nos Olhos Nossos, na Galeria Baró, em São Paulo, em 2019. Carollina integra a equipe curatorial do Ateliê397, um espaço independente de arte, em São Paulo, e tem como tema central de pesquisa a inserção das mulheres no mercado da arte. Vemos que a estratégia dessas curadoras negras é racializar sua experiência no mundo das artes, fomentar a autoestima ao construir um grupo com iguais, e assim romper a solidão, o silêncio e a invisibilidade a que muitas vezes são relegados os sujeitos negros.

CURADORES BRASILEIROS NEGROS ATUANTES AQUI E NO EXTERIOR Atuando como curadora independente entre Nova York e São Paulo, Fabiana Lopes foi a profissional mais lembrada pelos curadores entrevistados por ser pioneira em reivindicar um lugar para a produção de artistas negros em espaços de arte contemporânea. Além da pesquisa de artistas e da escrita de textos de crítica de arte, Fabiana Lopes desenvolve o árduo trabalho de indagar galeristas brasileiros sobre a ausência de artistas negros nas galerias de arte e, consequentemente, educá-los sobre a importância e a competência desses artistas. Um dos resultados foi a exposição individual da artista Lidia Lisbôa, Entre Tramas, na Galeria Rabieh, em pleno território da branquitude, o bairro dos Jardins, em São Paulo, em 2015. Outro curador paulistano que vive entre o Brasil e o exterior é Thiago de Paula Souza. Ele trabalhou como educador no Museu Afro Brasil antes de decolar em projetos internacionais, entre eles, a convite da curadora negra sul-africana Gabi Ngcobo, a participação na equipe curatorial da 10ª Bienal de Ber-


Fabiana Lopes


lim, intitulada We Don’t Need Another Hero, entre 2016 e 2018. Atualmente, Thiago é membro da curadoria da terceira edição da Frestas, a Trienal de Artes no Sesc Sorocaba. Diane Lima também se projetou para a cena internacional. Em 2019, a diretora criativa e curadora baiana radicada em São Paulo trabalhou como cocuradora da Residência PlusAfrot, na Villa Waldberta, e da exposição coletiva Lost Body – Displacement as Choreography, ambas em Munique, Alemanha. Em 2018, foi curadora do Valongo Festival Internacional da Imagem, em Santos, São Paulo. Hoje, ao lado de Thiago, é curadora da terceira edição de Frestas, a Trienal de Artes no Sesc Sorocaba.

MAIS

CURADORES

Em São Paulo, também vale destacar Renato Araújo da Silva, que, durante mais de uma década, foi pesquisador e educador do Museu Afro Brasil. Entre seus temas de pesquisa mais diletos estão a joalheria africana e afro-brasileira, além do próprio conceito de arte africana e afro-brasileira que resultaram em trabalhos curatoriais no museu. Atualmente, Renato é o curador responsável pela pesquisa na Coleção Ivani e Jorge Yunes (CIJY), que deu origem aos três módulos da exposição África – Mãe de Todos Nós: Conexão entre Mundos, Símbolos de Poder, A Sonoridade da África –, em cartaz durante o segundo semestre de 2019 no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, no Paraná. Ainda em São Paulo, o historiador da arte André Pitol fez extensa pesquisa sobre o fotógrafo brasileiro Alair Gomes e participou como curador do programa-piloto Consultas Curatoriais, destinado a acompanhar a produção de cinco artistas residentes no Pivô, no Edifício Copan, em São Paulo. Entre curadores no Rio de Janeiro também vale ressaltar a artista e pesquisadora Camilla Rocha Campos, que atualmente é a diretora artística da residência artística Capacete, espaço em ação há vinte anos; e Rafael Bandeira, na Caixa Preta, um espaço independente de arte contemporânea onde são desenvolvidos experimentos e pesquisa de modo colaborativo e interdisciplinar.

COMO ESTÃO AS E CURADORES

CURADORAS NEGROS?

Há maior visibilidade, sem dúvida, mas ainda é ínfimo o número de curadores negros que ocupam postos com poder de decisão em instituições culturais, já que a maioria se afirma como “curador independente”. Independência pode ter um tom rebelde e charmoso, mas às vezes escamoteia o caráter precário em que a maioria dos curadores negros desempenha seu ofício. A curadoria ainda é um ofício de branco, mesmo quando as produções artísticas são negras. Na maioria das vezes, ainda é o curador ou o gestor branco que convida ou aprova o projeto do curador negro, geralmente em caráter esporádico, tardio e incompleto. Hélio Menezes diz que ele e Ayrson Heráclito foram chamados apenas no último ano de preparação da exposição Histórias Afro-Atlânticas: “Enquanto, os curadores brancos, contratados pela instituição em caráter permanente, contaram com três anos de pesquisa, nós dispusemos apenas de um ano, o que fez, por exemplo, com que não pudéssemos escolher obras em acervos estrangeiros, já que essas instituições planejam empréstimos com um ou um ano e meio de antecedência”. Alexandre Bispo também ressalta a fragilidade institucional dos profissionais negros: “Nós, curadores negros, ainda não temos uma experiência de abundância curatorial negra sob a forma de exposições, exceto o Emanoel Araujo. Expor obras de arte custa muito caro, depende das suas relações no campo, não é fácil. E, aqui em São Paulo, a gente não tem mais o Ateliê Oço, do Claudinei Roberto da Silva, que era uma estrutura mais simples e aberta, voltada para artes não brancas. Então, como curador, mais escrevo que monto exposições”. Para fazer a curadoria da exposição Em Três Tempos: Memória, Viagem e Água, de Aline Motta (Centro Cultural TCU, Brasília, agosto de 2019), Bispo teve de pesquisar a família negra e mestiça no Brasil. Ao fazer isso, imaginou uma exposição


que reunisse obras de Albert Eckhout, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Guignard, Eustáquio Neves, Rosana Paulino, Renata Felinto, entre outros artistas cujas obras fazem emergir múltiplos pontos de vista da família negra e mestiça no Brasil. Alexandre também ressalta que muitas vezes o curador negro é chamado para participar apenas no final do processo curatorial. Embora ele seja o responsável pela seleção e diálogo com os artistas, em termos expositivos, muitas vezes cabe a ele apenas a redação do texto curatorial, mas não as decisões quanto à montagem da exposição, geralmente realizada pela instituição que o convida. Embora as dificuldades sejam inúmeras, uma coisa é certa: artistas e curadores negros não vão deixar de forçar sua presença física e intelectual em espaços de privilégio branco. A contratação de alguns negros para cargos de gestão ou curadoria traz alento. Nesse sentido, Renata Bittencourt assumiu recentemente o cargo de diretora executiva do Instituto Inhotim, em Brumadinho, e, pela sua trajetória acadêmica e institucional, esperamos que essa nova posição de poder beneficie artistas mulheres, negros, indígenas e trans. Vimos que exposições com curadoria negra são uma emergência no sentido proposto pelos editores da O Menelick ao pensarem esta edição da revista, ou seja, algo a um só tempo ascendente e urgente. Um levante, portanto, ao modo do punho fechado blackpower pronto para desconstruir um cenário descrito pela maioria dos curadores neste artigo como “hegemônico”, “colonizado”, “eurocêntrico”, “homofóbico”, “misógino” etc. Em suma: “branco”. Mero modismo ou uma real descolonização do modo de produzir, pensar e exibir as diversas expressões negras no Brasil? Para construir “um território de arte afro-brasileira”, segundo Rosana Paulino, é preciso montar um tripé, que consiste em fomentar a produção de arte, a pesquisa e a circulação da arte produzida por artistas negros. “A produção é garantir condições para que os artistas produzam bastante e com liberdade. Para isso, é importante a pesquisa, a crítica, a documentação fílmica e fotográfica, que retroalimentam a circulação, que é tanto a exposição como a aquisição de obras por colecionadores e instituições públicas e privadas. O trabalho de Claudinei Roberto da Silva tem sido esse há muito tempo e agora com mais regularidade na rede Sesc, onde ele tem proposto exposições que fazem as obras circularem

e serem compradas. E a gente tem que escrever também, senão alguém vai escrever por nós”, pontua.

CURADORIA

TRÊMULA

Ana Lira prefere não se definir como curadora, já que se vê como “uma artista que articula processos, entre eles processos curatoriais”. Como indício disso, ela nos mandou uma mensagem com a abertura, em agosto de 2019, do 36ª Panorama de Arte Brasileira – Sertão, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que consistiu na exposição das fotografias do trabalho de agricultores e agricultoras que ela acompanhou no semiárido nordestino. É preciso notar que, ao se pautar pelo “sertão” e por “estratégias de criação não hegemônicas e tecnologias e novas tecnologias sociais”, o MAM é mais uma grande instituição cultural que tem ensaiado um rumo mais a Nordeste. Luciara Ribeiro também hesita em se considerar como curadora: “Me vejo mais como pesquisadora; se curadoria significa um lugar hierárquico, não quero assumir esse rótulo. Ao contrário, é preciso pensar estratégias mais colaborativas”. Depois de já ter feito várias exposições, o artista, educador e curador Claudinei Roberto da Silva diz que somente se afirmou como curador com a exposição O Amor: Modos e Usos, de Rosana Paulino, organizada por ele em 2011, no Ateliê Oço, espaço que idealizou e manteve ativo entre 2009 e 2015, e também com a curadoria da exposição de Sidney Amaral O Banzo, o Amor e a Cozinha de Casa, no Museu Afro Brasil, em 2015. Chama atenção a quantidade de curadores que hesita em se assumir nessa posição. Sem dúvida, o argumento de não desejar assumir um papel autoritário e centralizador e hierárquico, reproduzindo um modo de operar muitas vezes qualificado como “hegemônico” e “branco”, é defensável. No entanto, pode também escamotear uma recusa em assumir poder, já que negras e negros poderosos não são a regra nesse país. Keyna Eleison foi


quem chamou a atenção para essa dificuldade em se assumir como curadora, devido ao racismo estrutural, ainda mais marcado no campo das artes. “Demorei muito tempo para me assumir como curadora. ‘Eu curadora?’ Eu ficava trêmula ao me pensar como curadora. E por quê?, se eu tinha muito mais experiência e trabalhos como curadora que muitos colegas brancos? Porque tudo ao meu redor ainda me dizia que essa não é uma posição comum para negros. Ter poder para pensar, para construir narrativas é, supostamente, coisa de branco. Apesar de toda a minha formação, de toda a minha erudição, eu ainda me sentia trêmula”.

À

SUDESTE

Sobre uma São Paulo que ofuscaria possibilidades artísticas e curatoriais em outras cidades e estados brasileiros, Hélio Menezes diz não se tratar de um problema interno às curadoras e curadores negros: “É muito mais um debate sobre como as instituições culturais em São Paulo concentram renda, poder e, consequentemente, um grande número de exposições, publicações, universidades, do que um exercício deliberado de apagamento de outras expressões artísticas de fora de São Paulo”, opina o curador baiano. “É curioso que Bitu Casundé

São Paulo reúne, por um lado, uma grande quantidade de curadores e artistas herdeiros, geralmente brancos, que, claro, não dependem do ofício para se manterem vivos, e nós, sujeitos negros, que muitas vezes saímos da nossa terra para viver de arte, porque é aqui que o dinheiro circula. Esse é o meu caso e de tantos outros curadores e artistas que vêm pra cá ou que permanecem em seus estados, mas em constante diálogo com São Paulo, como Ayrson Heráclito, Diane Lima, Bitu Cassundé, entre tantos outros.”

À

NORDESTE

Como pensam a curadoria os curadores negros Bitu Cassundé, curador do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e coordenador do Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes, em Fortaleza; Marcelo Campos, curador no Museu de Arte do Rio de Janeiro, curadora pernambucana Clarissa Diniz, ficou explícito na exposição À Nordeste, exibida em 2019 no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, e em sua resposta à crítica de Aracy Amaral sobre a mostra. Mais que se perguntarem o que é curadoria, eles se questionam: “Curadoria para que e para quem?”. Ao que respondem: “Para expor outras trajetórias, outras intenções, outros desejos, outros protagonismos, outras urgências, outrxs artistxs, outros nordestes”. Curadoria não é uma tarefa fácil. Pelos fragmentos de experiências aqui compilados, vimos como o cumulativo, o exagero, a violência, o não digerível, a multidão, o labirinto, o redemoinho, a escolha de não privilegiar um ponto de vista sobre o outro, a decisão de não morrer, em suma, dá nó no pensamento da branquitude. Mas que outro jeito de construir, narrar, expor com competência a experiência de mulheres, indígenas, negros, trans e outros não brancos num país racista, fascista e autoritário como o Brasil? Que venham mais curadorias com essa potência “à nordeste”, reafirmando com impertinência a pertinência das experiências não hegemônicas na arte. ADRIANA DE OLIVEIRA SILVA é antropóloga e jornalista. Em 2018, defendeu a tese de doutorado Galeria & Senzala: a (im)pertinência da presença negra nas artes no Brasil, no Departamento de Antropologia da USP, e é membra do Napedra – Núcleo de Antropologia da Performance (DA-USP). Além de atuar como consultora nas áreas de diversidade cultural e escrita criativa, pesquisa o modo como novos sujeitos políticos têm se valido de questões de identidade e diferença para criar experiências (im)pertinentes no mundo

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Provocações suscitadas pela revista O Menelick 2º Ato diante da criação, em São Paulo, da Diáspora Galeria.

E SE A CIDADE DE SÃO PAULO, DE CIRCUITOS DE ARTE VISUAL CONTEMPORÂNEA TÃO SEGREGADOS, RECEBER UMA GALERIA DE ARTE RACIALIZADA? QUAIS SERÃO OS IMPACTOS NO SISTEMA DE ARTE HEGEMÔNICO? QUAIS FATORES INTERCONECTADOS IMPEDEM ARTISTAS NÃO BRANCOS DE ADENTRAREM O MERCADO DE ARTE? O QUE PODE ACONTECER QUANDO “OS OUTROS/ AS OUTRAS” IDEALIZAM, CONSTROEM E GEREM SEUS PRÓPRIOS PROJETOS DE ARTE COM FINS COLETIVOS? QUAIS AFIRMAÇÕES PODEM TRAZER MUDANÇAS NA MENTALIDADE SOCIAL SOBRE RELAÇÕES HORIZONTAIS, IGUALITÁRIAS E DEMOCRÁTICAS NA ARTE?

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ABNIEL JOÃO NASCIMENTO Autopografia #1 30cm x 700cm Acrílica sobre TNT (suportes em madeira) 2019 106


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ANDRÉ BISPO Série imagética Baco: Negro Autorretrato 2014

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ALINE MOTTA Pontes sobre abismos Série de fotografias 2017



SIDNEY AMARAL A ovelha e eu Acrílica sobre tela 2011


omenelick2ato.com


RENATA FELINTO Registro da performance Araújo, da trilogia Axé Marias! Trabalho realizado especialmente para a 29a edição do Programa de Exposições do CCSP Fotografia Jaque Rodrigues 2019


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